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A Literatura infantil e juvenil hoje Múltiplos olhares diversas leituras José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina Silva Michelli orgs 2011 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli Organizadores A Literatura infantil e juvenil hoje Multiplos olhares diversas leituras Rio de Janeiro 2011 Copyright 2011 José Nicolau Gregorin FilhoPatrícia Kátia da Costa PinaRegina da Silva Michelli Publicações Dialogarts wwwdialogartsuerjbr Coordenador do projeto Darcília Simões contatodarciliasimoesprobr Cocoordenador do projeto Flavio García flavgarcoicombr Coordenador de divulgação Cláudio Cezar Henriques claudiocbighostcombr Darcília Simões contatodarciliasimoesprobr Projeto de capa e diagramação Elisabete Estumano Freire elisaestumanoyahoocombr Organização e Revisão José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina dacostapinagmailcomr Regina da Silva Michelli reginamichelliglobocom Logotipo Dialogarts Gisela Abad giselaabadgmailcom Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Instituto de Letras Departamento de Língua Portuguesa Literatura Portuguesa e Filologia Românica UERJ SR3 DEPEXT Publicações Dialogarts 2011 FICHA CATALOGRÁFICA J8011c A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras José Nicolau Gregorin Filho Patricia Kátia da Costa Pina Regina Silva Michelli orgs Rio de Janeiro Dialogarts 2011 Publicações Dialogarts Bibliografia ISBN 9788586837777 1 Estudos Literários 2 Linguagem 3 Leitura 4 História 5 Educação I Publicações Dialogarts II Projeto de Extensão III Universidade do Estado do Rio de Janeiro IV Título Correspondências para UERJILLIPO aC Darcilia Simões ou Flavio García Rua São Francisco Xavier 524 sala 11023 Bloco B Maracanã Rio de Janeiro CEP 20 569900 SUMÁRIO PREFÁCIO 6 A NOSSOS POSSÍVEIS E MUITO DESEJADOS LEITORES E LEITORAS 10 A LITERATURA INFANTIL E JUVENIL HOJE MÚLTIPLOS OLHARES DIVERSAS LEITURAS LITERATURA INFANTILUM PERCURSO EM BUSCA DA EXPRESSÃO ARTÍSTICA 12 José Nicolau Gregorin Filho NARIZINHO E EMÍLIA REPRESENTAÇÕES DE CENAS DE LEITURA E CONSTRUÇÃO DO PERFIL DA LEITORA NOVECENTISTA NA OBRA INFANTIL DE MONTEIRO LOBATO 26 Patrícia Kátia da Costa Pina MARINA COLASANTI CONFIGURAÇÕES ARQUETÍPICAS DO MASCULINO E DO FEMININO EM LAÇOS DE AMOR 47 Regina Silva Michelli MEMÓRIAS DE EMÍLIA DE MONTEIRO LOBATO UMA REFLEXÃO SOBRE A LINGUAGEM 91 Eliane Santana Dias Debus ESTÉTICA DO LABIRINTO NA PRODUÇÃO PARA CRIANÇAS E JOVENS DE ESTRATÉGIAS DE LEITURA AOS DESAFIOS PARA MEDIR A ASTÚCIA DO VIAJANTE 121 Maria Zilda da Cunha POLIFONIA E PERFORMANCE O EXPERIMENTALISMOESTÉTICO EM RETRATOS DE CAROLINA DE LYGIA BOJUNGA 142 Marta Yumi Ando A NAU CATARINETA EM DUAS VERSÕES INFANTIS A NARRATIVA POPULAR ATRAVÉS DAS ILUSTRAÇÕES 163 Rhea Sílvia Willmer UFRJ O APELO À IDENTIDADE NACIONAL E AO UTÓPICO NA OBRA INFANTOJUVENIL DE LAURA INGALLS WILDER 184 Fabiana Valeria da Silva Tavares ENTRE SÓTÃOS RUAS E REIS UM OLHAR SOBRE A PRODUÇÃO LITERÁRIA INFANTOJUVENIL DE RICARDO AZEVEDO 200 Penha Lucilda de Souza Silvestre EXPELLIARMUS O UTÓPICO O PÓSUTÓPICO E A CAMBIÂNCIA DAS IDENTIDADES EM HARRY POTTER DE J K ROWLING 219 Marco Medeiros MANOEL DE BARROS INFÂNCIA IMAGEM E CONHECIMENTO 235 Mara Conceição Vieira de Oliveira CARA DE CORUJA A EXPERIÊNCIA DE LEITURA COMO RECURSO PARA A RENOVAÇÃO DOS CONTOS DE FADAS DE CHARLES PERRAULT NO CONTO DE MONTEIRO LOBATO 251 Geovana Gentili Santos UM PAPO DE ARANHA SOBRE TEXTOS E LEITURAS A ESCOLA BRASILEIRA ENSINA A LÍNGUA DA INTERTEXTUALIDADE 270 Regina Chamlian A ADAPTAÇÃO NA TRADUÇÃO DE LITERATURA INFANTOJUVENIL NECESSIDADE OU MANIPULAÇÃO 283 Renata de Souza Dias Mundt O ATRATIVO E O NUTRITIVO A IMAGEM DO ALIMENTO NA LITERATURA PARA CRIANÇAS 300 Daniela Bunn OLHARES PARA A INFÂNCIA E PARA A EDUCAÇÃO NO CONTO NEGRINHA E EM OUTRAS HISTÓRIAS DE MONTEIRO LOBATO 316 Eloísa Porto Corrêa A ESCOLA NA LITERATURA INFANTOJUVENIL PNBE1999 335 Fátima de Oliveira Ferlete Célia Regina Delácio Fernandes QUEM SOMOS NÓS 361 GALERIA DE FOTOS 6 PREFÁCIO É imenso e multifacetado o universo da literatura infantil e juvenil No Brasil a produção cultural para a infância e juventude em especial a literária cresceu exponencialmente a partir de 1970 Cresceu em quantidade e qualidade tornando cada vez mais refinado o vasto menu de obras Vale lembrar que tal refinamento tendo como norte o respeito ao imaginário infantojuvenil encontra em Monteiro Lobato o seu artesão primeiro e maior Minhas lutas em prol da democratização da leitura no país tiveram início em 1972 logo depois que João Carlos Marinho escrevera a obra O Caneco de Prata 1971 tida por muitos estudiosos como o marco principal do movimento de renovação da literatura infantil brasileira na era pósLobato Por isso mesmo como pesquisador das práticas de leitura venho acompanhando a produção dentro dos limites de minhas possibilidades e sempre muito frustrado por não ser capaz de acompanhar a verdadeira avalanche de lançamentos dessa área Ler conhecer e entender as obras se possível as boas de literatura infantil e juvenil é dever de ofício de todos os professores do ensino fundamental e médio Isto porque eles são mediadores e informantes privilegiados de leitura junto aos estudantes Considerando um pouco da realidade vivida pela infância brasileira eu diria que os professores são hoje em dia os principais agentes de promoção da leitura junto às crianças Bem mais do que a família e outros organismos sociais Por isso mesmo as atividades de fomento e de orientação da leitura exigem dos mestres um adequado 7 repertório de conhecimentos sobre universo da literatura infantil e juvenil os seus diferentes gêneros 7 autores configurações suportes etc A presente coletânea reúne 17 trabalhos que penetram o universo da literatura infantil e juvenil por diferentes ângulos A obra permite um aprofundamento e uma adensamento no nosso conhecimento a respeito desse imenso universo que leva as crianças e os jovens a movimentarem a sua fantasia durante as práticas de recriação imaginativa que são próprias das interações com os textos literários Na leitura que fiz para a elaboração deste prefácio consegui perceber quatro eixos em torno dos quais giram as produções dos autores Certamente que esses eixos produtos de minha interlocução com os 17 textos não esgotam a riqueza e amplitude da obra outros olhares talvez mais sensíveis do que o meu poderão encontrar outros núcleos de significação e de interrelacionamento das reflexões aqui costuradas Evolução da Literatura Infantil e Juvenil A coletânea se abre com um texto de natureza histórica que caracteriza as mudanças ocorridas na produção literária para crianças ao longo do tempo um texto específico voltado para a realidade brasileira puxando os fios da história e mostrando a memória até agora constituída Todos os demais artigos indistintamente introduzem os seus temas com base numa visão panorâmica da história da literatura infantil no nosso país ou no mundo A perspectiva histórica fornece o devido suporte para uma compreensão segura das transformações da literatura na direção de diálogos mais criativos com as crianças ao longo do tempo Monteiro Lobato Revisitado Quatro artigos focam diretamente o rico manancial de Monteiro Lobato ou aprofundando as características dos densos personagens por ele criados ou 8 mostrando o alcance das suas adaptações de contos estrangeiros ou ainda esmiuçando aspectos inusitados de suas obras Nestes termos esses trabalhos permitem aquilatar mais abrangentemente a importância de Lobato para o desenvolvimento da literatura infantil brasileira Estudo de Autores Específicos Marina Colasanti Lygia Bojunga Nunes Roger Mello Laura Ingalls Wilder Ricardo Azevedo J K Rowling e Manoel de Barros são rigorosamente estudados no transcorrer da coletânea permitindo a descoberta de novas idéias para a interpretação de suas obras As abordagens diferenciadas e inéditas dos estudiosos revelam uma ampla variedade de possibilidades de significação mitologia polifonia ideologia oralidade intertextualidade etc fazendo ver aquilo que por vezes nos passa despercebido no acervo de obras desses autores Literatura Infantil Escola e Ensino Ainda que todos os artigos da coletânea tenham no professor um leitor privilegiado pelo menos três trabalhos tratam especificamente da relação entre leitura da literatura e a docência Dentre os aspectos a destacar colocase aquele voltado à maneira pela qual a escola é retratada em obras de literatura infantil e juvenil Dois outros também significativos apontam para questões relacionadas ao ensino da intertextualidade e à imagem do alimento na literatura Recomendo com todas as minhas forças e energias a leitura desta coletânea por parte de todos aqueles que lutam por uma infanciajuventude mais crítica e mais criativa no território nacional Retomando um conceito de Walter Benjamim citado nesta obra a experiência pobre não pode mais residir na esfera do magistério brasileiro sob o risco de reproduzirmos ano a ano uma formação cultural rasteira das nossas crianças e jovens No meu ponto de vista a leitura seja deste livro seja de qualquer outro seriamente elaborado permite a reelaboração e o enriquecimento das nossas 9 experiências e das nossas visões de mundo Nestes termos visitar os lugares visitados pelos autores deste conjunto de reflexões pode significar um ganho de discernimento e uma ponte mais segura para a tomada de decisões a respeito do porquê do o quê e do como dispor ou ofertar determinadas obras e não outras para a apreciação das crianças e dos jovens brasileiros EZEQUIEL THEODORO DA SILVA Campinas fevereiro de 2010 10 A NOSSOS POSSÍVEIS E MUITO DESEJADOS LEITORES E LEITORAS Leitoras e Leitores este livro nasceu do Simpósio A Narrativa Ficcional para Crianças e Jovens e as Representações de Práticas de Leitura que coordenamos no Congresso Internacional da ABRALIC em 2008 na USP Gostamos tanto das experiências que trocamos ali dos momentos que vivemos juntos que decidimos concretizar no impresso um pouco do muito que aconteceu naqueles dias chuvosos e friorentos de julho nessa São Paulo querida e provocadora Alguns dos capítulos deste livro estão completamente diferentes daquilo que apresentamos no Simpósio outros estão um pouco mudados outros ainda permaneceram iguais Todos eles testemunham nossa paixão pela LIJ e pela leitura Vejam quem somos em algumas fotos No final do livro na parte Quem Somos Nós vocês poderão ler um pouco acerca de nossas ações na docência e na pesquisa Um grande abraço a todos Nicolau Patrícia Regina A LITERATURA INFANTIL E JUVENIL HOJE MÚLTIPLOS OLHARES DIVERSAS LEITURAS 12 LITERATURA INFANTIL UM PERCURSO EM BUSCA DA EXPRESSÃO ARTÍSTICA José Nicolau Gregorin Filho Discutir literatura infantil é de certo modo vincular um determinado tipo de texto com as práticas pedagógicas que foram se impondo na educação principalmente após a segunda metade do século XIX Assim na maioria dos livros que buscam teorizar o assunto há o questionamento a literatura infantil é instrumento pedagógico ou é arte COELHO 2000 assim inicia a sua discussão sobre o tema Literatura infantil é antes de tudo literatura ou me lhor á arte fenômeno de criatividade que representa o mundo o homem a vida através da palavra Funde os sonhos e a vida prática o imaginário e o real os ideais e sua possívelimpossível realização COELHO 2000 p 9 Se o texto que se convencionou chamar de literatura infantil é apenas mais um dentre tantos outros recursos disponíveis para o desenvolvimento da prática pedagógica ou um objeto artístico tome se como ponto de partida alguns exemplos da obra Coração de Edmundo De Amicis Edmundo de Amicis foi um escritor italiano mundialmente conhecido Natural de Oneglia onde nasceu em 1846 faleceu em 1908 deixando variada obra em que se destacam narrativas de viagens crítica literária novelas livros de temas sociais políticos e um pequeno livro considerado obra prima de literatura didática Cuore Escrito em 1886 a obra foi divulgada pelo mundo em milhares de edições conquistando leitores de todas as idades e de todas as classes sociais só na Itália conta com mais de um milhão de exemplares A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 13 As cenas deste livro e as suas figuras refletem e corporificam a variada e perturbadora alma humana nos seus anseios sofrimentos alegrias e paixões Em Portugal Ramalho Ortigão o traduz em trechos e Miguel de Novais dá a versão portuguesa integral No Brasil Valentim Magalhães em 1891 elabora sua tradução entre fascinado e surpreso Dessa data em diante Coração invade escolas e lares brasileiros passando a ser lido por todos independentemente da faixa etária e condição social A geração que se inicia no século vinte aprende com ele a lição do trabalho do patriotismo da virtude e da generosidade sendo formados como italianinhos Da obra de cunho didáticomoralizante devem ser selecionadas algumas passagens Eu amo a Itália porque minha mãe é italiana porque o sangue que me corre nas veias é italiano porque é ita liana a terra onde estão sepultados os mortos que mi nha mãe chora e que meu pai venera porque a cidade onde nasci a língua que falo os livros que me educam porque meu irmão minha irmã os meus companhei ros e o grande povo no meio do qual vivo e a linda natureza que me cerca e tudo o que vejo que amo que estudo que admiro é italiano MAGALHÃES 1891 p74 Voltini disselhe não deixes penetrar no teu corpo a serpente da inveja é uma serpente que rói o cérebro e corrompe o coração Op cit p75 Ânimo ao trabalho Ao trabalho com toda a alma e com todos os nervos Ao trabalho que me tornará o repouso doce os divertimentos agradáveis o jantar alegre ao trabalho que me restituirá o bom sorriso do meu pro fessor e o beijo abençoado de meu pai Idem p 81 Mas ouça que mísera desprezível coisa seria para ti se não fosses à escola De mãos juntas no fim de uma semana implorarias para nela voltar consumido de no jo e de vergonha nauseado dos brinquedos e da exis tência Idem p 19 Fixa bem na mente este pensamento Imagina que te estão destinados na vida dias tremendos o mais tre mendo de todos será o dia em que perderes tua mãe José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 14 Mil vezes Henrique quando já fores homem forte ex perimentado em todas as lutas tu a invocarás oprimi do por um desejo imenso de tornar a ouvir por instante a sua voz e de rever seus braços abertos para neles te atirares soluçando como um pobre menino sem prote ção e sem conforto Como te lembrarás então de toda amargura que lhe causastes e com que remorsos as pagarás todas infeliz Idem p28 Por meio dos exemplos acima já se percebe o endurecimento dos valores da época ou seja devese ter profundo respeito por todas as instituições que governam a vida do indivíduo ou seja a família a escola a pátria Há nesses trechos um bom exemplo do maniqueísmo e dos valores de um país que lutava pela busca de sua identidade que procurava ser valorizado Em 1919 Tales de Andrade lança o livro Saudade publicado pela Secretaria de Agricultura do Estado de São Paulo Com ela abre se um caminho que vai ser um dos mais trilhados pela literatura infantil daí em diante o rural O mundo acaba de sair de uma grande guerra situação em que os valores da civilização urbana progressista haviam sido abalados profundamente provocando nos homens a desesperança ou a descrença em sua legitimidade A tendência geral na literatura era para a valorização da paz e da justiça social daí a vida no campo aparecer como um grande ideal valorização nostálgica dos costumes simples do campo em confronto com as dificuldades e fracassos encontrados na vida da cidade Saudade recebe saudações de autores como Monteiro Lobato que diz ser um livro para a infância que cai em nossos meios pedagógicos com o fulgor e o estrondo de um raio Seguindo essa mesma concepção de livro para crianças Viriato Correa lança uma série de obras destinadas ao público infantil desde 1908 Era uma vez livro de contos e dentre eles um dos que mais seguem o estilo didáticomoralista de Coração é Cazuza Lançado em 1938 e continuamente reeditado gerado por idéias e ideais do Brasil A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 15 dos anos 30 Cazuza transfigurou m literatura os impulsos que estavam na raiz do grande movimento histórico nacional então em processo movimento que pode ser sintetizado como sendo o deslocamento de populações do campo para a cidade a fim de impulsionar a modernização do país Cazuza é a história de um menino que dá título ao livro e que depois de adulto resolve escrever suas memórias de infância ligase aos dois primeiros pela ênfase dada ao respeito às instituições sendo a educação o meio ideal para o progresso do homem e pela preocupação de confrontar a vida rural interiorana com a vida urbana Apresenta uma nítida evolução sobre os anteriores pois com experiências simples Cazuza vai tendo oportunidade de revelar o jogo das relações humanas o idealismo humanitário que deve nortear as ações de todos os indivíduos as diferenças inerentes aos vários meios sociais Cazuza foi dos que abriram as portas da literatura para os ventos da vida real com linguagem mais ágil mostrando também experiências necessárias ao indivíduo no seu processo de crescimento Mesmo assim o didatismo moralizante ainda se faz presente conforme o trecho abaixo Essa riqueza de que você tem tanto orgulho foi você que a juntou com sua inteligência com seu suor e com seu esforço Pensa você que o Custódio lhe é inferior porque é pobre Pois é justamente a pobreza que lhe dá valor Sendo paupérrimo o Custódio come mal dorme mal e o tempo que deve empregar no estudo empregao em serviço caseiro para ajudar os pais A lição que ele traz sabida vale mais do que a lição sabi da que você traz Você tem tempo e conforto Custódio não tem nada senão a vontade de aprender o brio de cumprir o seu dever de estudante CORREA 1999 p85 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 16 Vários autores tiveram grande influência na sociedade dessa época foram demasiadamente lidos pelas crianças e exerceram papel marcante na vida escolar do Brasil além dos citados precisam ser lembrados autores como Olavo Bilac Manuel Bonfim Júlia Lopes de Almeida Adelina Lopes Vieira entre outros seja como mantenedores do pensamento da classe dominante no que se refere à política ou às maneiras de se viver em sociedade Na totalidade Das obras por eles produzidas a criança é vista como um indivíduo pronto para receber a educação como dádiva como caráter divino mando sua pátria como berço e fonte inesgotável de benevolências Educação e leitura no Brasil do final do século XIX até o surgimento de Monteiro Lobato viviam alicerçadas nos paradigmas vigentes ou seja o nacionalismo o intelectualismo o tradicionalismo cultural com seus modelos de cultura a serem imitados e o moralismo religioso com as exigências de retidão de caráter de honestidade de solidariedade e de pureza de corpo de alma em conformidade com os preceitos cristãos Com o surgimento de Monteiro Lobato e sua proposta inovadora de literatura infantil a criança passa a ter vontade e voz ainda que vindas da boca de uma simples boneca de pano Emília O que importa é que a contestação e a irreverência infantis sem barreiras começam a ser lidas e vistas por meio dos textos e ilustrações das personagens do Sítio do Picapau Amarelo Lobato apresenta características até então não exploradas no universo literário para crianças apelo a teorias evolucionistas para explicar o destino da sociedade onipresença da realidade brasileira olhar empresarial e patronal preocupação com problemas sociais soluções idealistas e liberais para os problemas sociais tentativa de despertar no leitor uma flexibilidade face ao modo habitual de ver o mundo relativismo de valores questionamento do etnocentrismo e A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 17 um outro ponto importante a religião como resultado da miséria e da ignorância Evidentemente Lobato fora o precursor de uma nova literatura destinada às crianças no Brasil uma literatura que ainda passaria por inúmeras transformações por uma ditadura militar e por grandes mudanças na tecnologia e na sociedade Essas mudanças foram de maneira histórica e dialógica sendo capazes de trazer para a chamada literatura infantil a diversidade de valores do mundo contemporâneo o questionamento do papel do homem frente a um universo que se transforma a cada dia Além disso trouxe também as vozes de diferentes contextos sociais e culturais presentes na formação do povo brasileiro sua diversidade e dificuldades de sobrevivência e o mais importante trouxe as vozes e sentimentos da criança para as páginas dos livros para as ilustrações e para as diferentes linguagens que se fazem presentes na produção artística para crianças Desse modo mais precisamente após a década de setenta encontrase uma produção literáriaartística para as crianças que não nasce apenas da necessidade de se transformar em recurso pedagógico mas cujas principais funções são o lúdico o catártico e o libertador além do pragmático e do cognitivo Autores como Pedro Bandeira Carlos Queiroz Telles Roseana Murray e Regina Chamlian entre outros trazem as vozes das crianças e o universo cotidiano com seus conflitos para serem lidosvistossentidos numa literatura para as crianças de hoje conflitos esses levados às crianças com uma proposta de diálogo não somente de imposição de valores por meio de uma literatura que busca a arte sua característica primeira Como exemplo devese observar os seguintes textos de TELLES l999 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 18 Abobrinhas Batatinhas quando nascem se esparramam pelo chão invadem as escolinhas entram em todas as festinhas e viram declamação Que chateação Ao contrário das colegas de terreiro e de pomar as alegres abobrinhas crescem fortes e felizes sem nunca se perguntar onde meninas dormindo colocam os pés e as mãos Adultices Cuidado Sai daí Vem aqui Fica quieto Já pra cama Come tudo Mais respeito Agradece Não emburra Obedece E depois de tanta ordem bronca e chateação não é que ainda nos pedem com cara de coração Vem cá meu anjinho eu quero um beijinho Vem cá garotão me dá um abração Os dois exemplos já conseguem mostrar que os valores mudaram e a voz da criança já se faz ouvir há o descrédito da A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 19 autoridade que se coloca no poder por meio de uma moral dogmática a linguagem se mostra mais próxima do falar da criança e é nesse relativismo de valores que a criança terá de se situar como cidadão Dessa maneira verificamse dois momentos bem definidos da literatura voltada para as crianças no Brasil e entender esse percurso em busca da arte Um outro momento da trajetória histórica da literatura para crianças e jovens foi a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional Lei 9394 de 20 de dezembro de 1996 de onde surgiram os Parâmetros Curriculares Nacionais e consequentemente os Temas Transversais para serem trabalhados na sala de aula Esses temas são temas de interesse no bojo da sociedade e deles fazem parte a Ética a pluralidade cultural e meio ambiente entre outros A questão é que para atender a esse mercado editorial impulsionado por essas novas propostas educacionais vários livros abordam esses temas transversais de maneira a garantir a sua inclusão em planejamentos pedagógicos e não necessariamente tratam do tema de maneira literária ao abordarem o assunto diretamente e em vários casos não apresentam o mínimo traço de literariedade Um dos exemplos é a discussão sobre a aceitação das diferenças sejam elas de caráter social cultural ou sexual tem sido José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 20 muito comum como temática de livros voltados para crianças e jovens O que surpreende na obra O pintinho que nasceu quadrado é exatamente o contrário Suas autoras por meio da construção de um universo ficcional com raízes plantadas pela fábula enriquecem a discussão de modo a garantir múltiplas intertextualidades nas linguagens verbal e visual do livro A sociedade tradicional é mostrada neste contexto literário por meio da figura de um galinheiro e todos os seus aspectos discutidos de maneira metafórica o machismo é mostrado na figura do galo na primeira página e na figura de um outro galo cuja função é ser o juiz sendo a autoridade que organiza o galinheiro e traça o destino de suas dominadas o ato de viver sem grandes reflexões e a vida assujeitada das classes dominadas é figurativizada no ato de botar ovos ato esse tido como obrigação do sexo feminino Nada pode ser questionado Nada deve mudar a ordem estabelecida É nesse ponto que essa ordem social é subvertida Uma das galinhas Carola que às vezes se encosta na grade do cercado e fica olhando para fora para vislumbrar outras possibilidades de vida bota um ovo Esse não era mais um ovo dentre vários que eram postos diariamente era um ovo quadrado O ato de olhar para fora do galinheiro de ficar observando o horizonte que se abre para além dos limites do galinheiro já diz muito significa a nãoaceitação daquela realidade imposta à sua vida A galinha sonhadora bota um ovo quadrado Mais do que o ato de colocar um ovo em pé discutindo a ordem do mundo esse ovo se mantém em pé por si mesmo Evidentemente isso não poderia ser aceito As colegas de galinheiro comentam o absurdo da forma sugerem para que se jogue fora aquilo que parecia uma aberração Sem aceitar qualquer uma das opiniões a galinha resolve chocar o seu ovo quadrado e ali permanecer Convocase um A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 21 julgamento chamam um galo juiz para organizar e resolvem expulsar a autora daquilo que já toma a proporção de um crime para fora dos limites do galinheiro É o poder do macho e das instituições sociais é a manutenção da ordem Na solidão de sua viagem nasce o seu filho um pintinho quadrado Nessa caminhada inúmeros animais que cruzam o caminho de mãe e filho zombam da aparência incomum da criatura e fica impossível de a galinha encontrar nova moradia para os dois Até este ponto da obra encontramse várias relações intertextuais seja no plano de expressão verbal seja no visual Além de mostrar a rejeição pela sua própria espécie aprofundando as discussões propostas pelo texto de Andersen podese deparar com releituras de céus já pintados por grandes nomes da arte mundial na ilustração assim como se pode lembrar a história ancestral de uma mulher grávida e seu marido buscando abrigo para que uma criança nascesse no oriente há mais de dois mil anos Depois de longa caminhada tempo em que se conheceram e tiveram a oportunidade de conversar sobre ser parecer aceitação e rejeição e exaustos da longa caminha o sono sob o céu de Van Gogh tornase profundo e ao abrir os olhos no dia seguinte mãe e filho se deparam com uma visão incomum animais simpáticos e completamente diferentes da forma tradicional Nesse conjunto há uma tartaruga piramidal um coelho triangular um macaco redondo e uma girafa espiral entre outros Após um alegre cumprimento passam a admirar a beleza do pintinho quadrado e a trocar experiências de rejeição pelas quais todos do grupo passaram Conversam sobre a sua vida em grupo e resolvem sair em busca de um lugar para viverem em paz e serem eles mesmos com sua aparência nada convencional e seus próprios sonhos e desejos José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 22 Conforme se disse anteriormente o livro não mostra a aceitação pela própria espécie ou por um grupo convencional e reconhecido pela sociedade como em O Patinho feio de Andersen nem escancara a realidade das rejeições diárias sofridas por crianças e adultos no cotidiano de ruas escolas e igrejas por pessoas que fogem do padrão quer pela sua aparência quer pela sua ousadia de olhar o mundo de maneira diversa do senso comum como a maioria dos livros lançados após a obrigatoriedade de se discutirem os temas transversais na sala de aula As relações intertextuais de O pintinho que nasceu quadrado levam o seu leitor a rememorar personagens históricos não aceitos em sua época exatamente por olharem para fora dos limites impostos pela sociedade por serem diferentes por viverem de maneira diversa daquela tida como certa A importância deste livro nesta discussão está em colocar a importância da aceitação de si mesmo e o valor da busca por um lugar no mundo um mundo que ainda precisa ser muito transformado Os textos verbal e visual que constroem a obra mostram a estaticidade como elemento negativo para essa mudança é na dinâmica do constante caminhar e na busca incansável que as diferenças podem ser aceitas O exemplo acima é apenas um de muitos outros que surgem no mercado editorial para crianças e jovens e procura instigar o seu leitor para a produção de intertextos de múltiplos diálogos com outras obras e tempos e o mais importante aos poucos vai fazendo com que a criança eduque o seu olhar para a arte ao mesmo tempo em que é levada a perceber e discutir as mazelas do mundo onde ela vive Evidentemente neste breve panorama o que se busca é a discussão de paradigmas emergentes a um momento em construção mas o que se pretende é ressaltar a mudança dos objetivos e de A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 23 mecanismos de construção de um tipo de texto que tem como destinatário a criança e que procura se firmar como arte sem que se descarte a sua presença demasiadamente importante no processo educativo entendendo que o processo educativo também se constrói nestes novos tempos tentando levar em consideração a formação plural do povo brasileiro REFERÊNCIAS ANDRADE Tales de Saudade São Paulo Companhia Editora Nacio nal 2002 ARROYO Leonardo Literatura Infantil Brasileira São Paulo Melho ramentos 1988 BANDEIRA Pedro Cavalgando o Arcoíris São Paulo Moderna 2002 CHAMLIAN Regina ALEXANDRINO Helena O pintinho que nasceu quadrado São Paulo Global 2007 CAMARGO Luís A ilustração do livro infantil Belo Horizonte Editora Lê 1995 CHARTIER Roger A aventura do livro do leitor ao navegador São Paulo Editora da Unesp Imprensa oficial do Estado de São Paulo 1999 COELHO Nelly Novaes Panorama Histórico da literatura infantil e ju venil São Paulo Ática 1991 Dicionário Crítico da Literatura Infantil Brasileira São Paulo Edusp 1995 A Literatura Infantil São Paulo Moderna 2000 O conto de fadas símbolos mitos arquétipos São Paulo DCL 2003 CORRÊA Viriato Cazuza São Paulo Companhia Editora Nacional 1999 DE AMICIS Edmundo Coração São Paulo Hemus 1974 DINORAH Maria O livro na sala de aula Porto Alegre LPM 1987 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 24 EVANGELISTA Aracy Alves M Org A escolarização da leitura lite rária o jogo do livro infantil e juvenil Belo Horizonte Autêntica 2003 GÓES Lúcia Pimentel Olhar de Descoberta São Paulo Paulinas 2004 GREGORIN FILHO José Nicolau A roupa infantil da literatura Arara quara SP 1995 Dissertação apresentada à FCLUNESP Figurativização e imaginário cultural Araraquara SP 2002 Tese apresentada à FCLUNESP Literatura infantil brasileira da colonização à busca da iden tidade In Revista Via Atlântica sl sn n 9 sd p 185194 JESUALDO J A Literatura Infantil São Paulo CultrixUSP 1978 KHEDE Sônia Salomão org Literatura InfantoJuvenil um gênero polêmico Petrópolis RJ Vozes 1983 Personagens da Literatura InfantoJuvenil São Paulo Ática 1986 LAJOLO Marisa ZILBERMAN Regina Literatura Infantil brasileira São Paulo Ática 1984 LAJOLO Marisa Usos e abusos da Literatura na escola Rio de Janei ro Globo 1982 PALO Maria José OLIVEIRA M Rosa Literatura Infantil São Paulo Ática 1986 PERROTTI Edmir O texto sedutor na Literatura Infantil São Paulo Ícone 1986 Confinamento cultural Infância e Leitura São Paulo Sum mus Editorial 1990 ROSEMBERG Fúlvia Literatura Infantil e ideologia São Paulo Global 1984 TELLES Carlos Queiroz Abobrinha quando cresce São Paulo Editora moderna 1993 VALE Fernando Marques do A obra infantil de Monteiro Lobato Ino vações e repercussões Lisboa Portugalmundo 1994 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 25 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs YUNES Eliana PONDÉ M da Glória Leitura e leituras da literatura infantil São Paulo FTD 1988 ZILBERMAN Regina org Leitura em crise na escola Porto Alegre Mercado Aberto 1982 org A produção cultural para crianças Porto Alegre Mer cado Aberto 1982 A literatura infantil na escola São Paulo Global 2003 WORNICOV Ruth et al Criança leitura livro São Paulo Nobel 1986 26 NARIZINHO E EMÍLIA REPRESENTAÇÕES DE CENAS DE LEITURA E CONSTRUÇÃO DO PERFIL DA LEITORA NOVECENTISTA NA OBRA INFANTIL DE MONTEIRO LOBATO Patrícia Kátia da Costa Pina Peter Pan é eterno mas só existe num mo mento da vida de cada criatura Monteiro Lobato Peter Pan O fragmento posto em epígrafe corresponde a uma resposta de Dona Benta a Emília quando terminou de contar a todos a história de Peter Pan Essa personagem representa o indivíduo que não quer crescer que não quer assumir o mundo adulto Peter Pan simboliza a criança dentro de cada um de nós e claro dentro das personagens lobatianas também A adaptação feita por Lobato do romance inglês de J M Barrie posta na voz da velha senhora é partilhada por crianças ficcionais e empíricas através da criação de um ambiente provocador de interessantes discussões sobre cultura história literatura Tal processo narrativo pareceme funcionar como forma de criação de uma relação íntima com o pequeno leitor levandoo a identificarse com o narrado Levandoo a ligarse a essa criança eterna que habita o mundo ficcional A fala dessa contadeira da história inglesa define seus interlocutores tanto os de papel e tinta como os de carne e osso pequenos indivíduos que vivem o exato momento em que se construirão como adultos Pareceme desenharse aí o desejo perceptível nessa e em outras narrativas infantojuvenis de Monteiro Lobato de estabelecer formas de promoção de um processo de educação distensa e informal através da leitura literária Explico A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 27 me a escola fornece na maior parte das vezes e principalmente na época da primeira publicação dos livros lobatianos para crianças modelos endurecidos de relação com o livro livros que excluíam o imaginário que tinham como tom maior a moralização o ensino indireto de valores socialmente recomendados Dona Benta ao contrário da Tia que ensinaria aos meninos e meninas que freqüentavam as poucas escolas do Brasil na época dá um caminho alternativo e divertido para esse contato mostrando que lerouvir histórias pode ser algo prazeroso e libertador do imaginário Segundo Teresa Colomer a literatura infantil e juvenil instrumentaliza os leitores para que possam entrar no jogo da literatura adulta conjugando o estético e o pedagógico Nos livros infantis mais do que na maioria dos textos sociais se reflete a maneira como uma sociedade dese ja ser vista e podese observar que modelos culturais dirigem os adultos às novas gerações e que itinerário de aprendizagem literária se pressupõe realizem os lei tores desde que nascem até sua adolescência COLO MER 2003 p14 Entendo que o referido processo formativo desenvolvido por antecessores de Lobato desde o século XIX tendo um público diverso como alvo segue por vias marginais a fim de contactar e seduzir possíveis leitores de literatura Assim o discurso do narrador congrega os valores que estão a serviço de sua visão de mundo e implícita no texto a competência literária de seu público presumido As vias marginais a que me refiro são basicamente duas a a identificação do leitor com as personagens b a provocação do imaginário do interlocutor do texto a partir da identificação primeira Referindose ao livro Reinações de Narizinho Sônia Salomão Khéde afirma Lobato consegue em sua primeira obra criar persona gens que cumprem diversas funções no Sítio do Pica pau Amarelo A mais importante delas é possibilitar a José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 28 identificação do leitor mirim com o texto literário Em segundo lugar através de processos lúdicos e alegóri cos está a relação intratextual e intertextual que os personagens estabelecem entre si e entre personagens de outros livros inaugurando um diálogo rico pela dis cussão dos valores e das formas de viver KHÉDE 1990 p55 Em cada personagem que habita as páginas das variadas narrativas lobatianas para crianças e jovens vislumbro um perfil de leitor Esses diferentes perfis viabilizam ao que tudo indica a relação do texto literário com múltiplos segmentos do leitorado infantil e juvenil novecentista brasileiro A referida relação pareceme pautar se exatamente pela ativação do imaginário desses pequenos leitores é como se o texto lobatiano funcionasse junto a seus interlocutores como um fortíssimo sopro de pó de pirlimpimpim Regina Zilberman constata e discute essa natureza imaginária e formativa da literatura infantil Como procede a literatura Ela sintetiza por meio dos recursos da ficção uma realidade que tem amplos pontos de contato com o que o leitor vive cotidiana mente Assim por mais exacerbada que seja a fantasia do escritor ou mais distanciadas e diferentes as circuns tâncias de espaço e tempo dentro das quais uma obra é concebida o sintoma de sua sobrevivência é o fato de que ela continua a se comunicar com o destinatário a tual porque ainda fala de seu mundo com suas dificul dades e soluções ajudandoo pois a conhecêlo me lhor ZILBERMAN 1985 p22 A apontada síntese do real parece ser o ponto de partida para a ativação do imaginário do leitor aquilo que lhe dá suporte para construir uma visão própria do mundo Colomer afirma que os pequenos leitores abordam os livros em um encontro despojado de contexto e a partir de sua progressiva aquisição de competência leitora op cit p35 Nesse processo de aquisição de habilidade para ler a literatura a ativação do imaginário desse público específico é fundamental A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 29 Walty Fonseca e Ferreira Cury afirmam em Palavra e imagem que o impresso conduz o leitor a palavra guia suas reflexões A leitura é um processo associativo que promove a in teração escrita e imagem em diversos sentidos a i magem propriamente dita a que ilustra textos verbais aquela construída pelo leitor quando lê que tanto pode restringirse ao momento real de produção de sentido como pode ser base de outras citações Além dis so textos verbais ou pictóricos exibem imagens do ato de ler apreendendo o leitor nas malhas discursivas Representações do livro e da atividade de leitura em diversas produções culturais possibilitamnos também refletir sobre seu lugar social tanto numa dimensão espacial quanto temporal delineando o perfil do leitor no imaginário da sociedade WALTY FONSECA CURY 2006 p7 Ao lerouvir uma história então o leitor se apropria das imagens propostas na tessitura narrativa concretizandoas pela particularidade de seu imaginário O romance constrói e propõe uma cena por exemplo que é reconstruída a cada ato de leitura Nesse processo as habilidades e competências do leitor empírico entram no jogo e determinam os caminhos imaginários da interlocução Na obra infantil lobatiana a síntese apontada acima por Zilberman já configura uma realidade inventada e guiada pela palavraimagem no Sítio não moram os pais das crianças moram a avó e sua ajudante Nastácia Tratase de um universo feminino que se opõe aos padrões familiares burgueses segundo os quais enquanto os pais educam os avós deseducam Dona Benta não deseduca propriamente os netos mas permitelhes viver num estado de exceção ou melhor provocaos para que testem o mundo conhecido através da ação imaginária de cada um conduzindoos nessa aventura No Sítio as mulheres são maioria Assim escolho Narizinho e Emília como as iscas textuais que configurando ficcionalmente distintos perfis de leitoras fizeram escola dialogaram com as José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 30 meninas novecentistas brasileiras e construíram padrões diferenciados de gosto literário e de preferências de consumo de bens culturais impressos como é possível observar em outra adaptação do referido escritor agora da obra magistral de Cervantes Emília estava na sala de Dona Benta mexendo nos li vros Seu gosto era descobrir novidades livros de fi gura Mas como fosse muito pequenina só alcançava os da prateleira debaixo Para alcançar os da segunda tinha de trepar numa cadeira E os da terceira e quarta esses ela via com os olhos e lambia com a testa Por is so mesmo eram os que mais a interessavam Sobretu do uns enormes LOBATO 1967 p3 O tamanho de Emília é simetricamente oposto à medida de sua irreverência de sua astúcia de sua criatividade O fragmento acima recortado dá conta da atitude desobediente da boneca que ganha voz e vida na obra infantojuvenil de Monteiro Lobato Sua curiosidade é insaciável qualquer proibição só faz aumentála ainda mais Pedrinho e Narizinho as crianças ficcionais que dividem o estrelato com Emília seguem parâmetros de comportamento pertinentes ao mundo concreto e nãoficcional precisam obedecer aos mais velhos Emília uma boneca concretização ficcional do lúdico em confronto com o mundo adulto não precisava enquadrarse nas relações familiares comuns e em suas injunções Daí ela poder dar livre curso à bisbilhotice indomável que a caracteriza De um lado Narizinho menina sapeca mas obediente educada inteligente capaz de conhecer e dominar com perfeição as regras do jogo literário e social ela resume as características necessárias à menina novecentista para tornarse uma ótima esposa e mãe Emília por outro lado resguardada pela condição de brinquedo isto é por uma natureza lúdica irrevogável desobedece e transgride todas as regras e todo o bom senso burguês típico da época em que tais narrativas começaram a circular entre os pequenos brasileiros a que se destinavam A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 31 Assim seria impossível segurar a boneca Isso de ver com os olhos e lamber com a testa era para as crianças Por ser brinquedo Emília já carrega a marca da reinvenção da infância ela é uma ficcionalização ficcionalizada da meninice que Lobato construía como possível nessa primeira metade do século passado Dessa forma são os livros inacessíveis que constituem seu grande objeto de desejo essa inacessibilidade talvez simbolizasse para a boneca de macela e retrós o obstáculo encenado por sua própria condição de ser inventado e inventor D Quixote está inacessível fisicamente Peter Pan tem seu grau de inacessibilidade no fato de não estar na época traduzido para o português A narrativa de que destaquei a citação anterior é como afirmado acima uma adaptação da obra de Cervantes para crianças nela me interessa enfocar a função de Dona Benta como mediadora de leitura o que conduz minha reflexão para Narizinho e Emília como personagens paradigmáticas no que tange à formação do gosto pela leitura literária e à criação de identificação entre elas e as leitoras empíricas Dona Benta seleciona normalmente os livros que deverão ser lidos para e pelas crianças A própria arrumação da estante em D Quixote das crianças conota isso como se percebe no fragmento destacado numa referência quase explícita aos degraus do saber que os aprendizes precisam galgar É o que ocorre com o romance Peter Pan and Wendy de Barrie Só que neste último caso é Emília quem exige que Dona Benta que não conhecia o romance o leia e conteo a todos Pois se não sabe trate de saber Não podemos ficar assim na ignorância Onde já se viu uma velha de óculos de ouro ignorar o que um gato sabe LOBATO 1970 p73 V3a A boneca de macela solicita a mediação da avó das crianças do Sítio ela quer conhecer a história direitinho José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 32 A incontrolável indiscrição de Emília subverte no entanto os desígnios da velha senhora Ao pegar D Quixote deixandoo cair e esmagando o Visconde Emília explicita para todos que não vai se submeter a censuras sobre suas leituras Dona Benta então na tentativa de saciar sua curiosidade e a dos meninos se propõe a fazer uma leitura seletiva da obra na verdade a fazer uma contação das histórias de D Quixote e Sancho Pança o mesmo ocorrendo com o romance inglês nesse processo de tradução de Peter Pan Emília revive e reinventa a história tendo tia Nastácia como a vítima da vez Emília saíra da sala pé ante pé sem que ninguém per cebesse e logo depois voltou com a tesoura de Dona Benta na mão E deu jeito de cortar a cabeça da som bra de tia Nastácia que enrolou e foi guardar no fundo de uma gaveta LOBATO opcit p 82 Emília se apropria das histórias contadas e estabelece imaginariamente um padrão de concretude para o que é puramente ficcional o mesmo padrão que lhe permite existir nas tramas lobatianas O paradigma de prática de leitura que essa personagem constrói e representa é marcado pela subversão e pela irreverência Narizinho ao contrário esforçase por sempre agir dentro das normas embora revistaas de um aspecto lúdico inegável O ambiente dessas contações de histórias é interessantíssimo todos se sentam confortavelmente comem os quitutes de tia Nastácia e ouvem os causos contados pela avó Quando vai contar D Quixote ela tenta ler o livro mas o auditório reclama da linguagem ao que retruca Meus filhos disse Dona Benta esta obra está escrita em alto estilo rico de todas as perfeições e sutilezas de forma razão pela qual se tornou clássica Mas como vocês ainda não têm a necessária cultura para compreender as belezas da forma literária A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 33 em vez de ler vou contar a história com palavras minhas LOBATO 1967 p17 Dona Benta aponta a necessidade da mediação por não terem os interlocutores o repertório que lhes permitiria compreender o livro e ressalta de forma indireta a relevância de uma assimetria entre leitores comuns leitores preparados e obra implicitamente definindo o ato da leitura como uma atividade adequada apenas a iniciados A vantagem é que sua mediação é lúdica e interativa No correr da narrativa as crianças e os demais ouvintes podem interferir discutir e até vivenciar o narrado desdobrando a loucura quixotesca Outra característica do processo é que Dona Benta muitas vezes interpreta o texto e conduz o processo reflexivo de sua platéia Tal função fica muito explícita no volume 4 das Obras completas de Monteiro Lobato na seção dedicada às Fábulas bem como no volume 3 da mesma coleção na seção dedicada a Peter Pan O processo narrativo pode ser resumido da seguinte forma as fábulas são dadas ao leitor e a seguir após uma curta e tênue linha surge em letra menor o comentário de Dona Benta a que se seguem as respostas das crianças e da boneca as raras e deslocadas intervenções de Tia Nastácia ou ainda as falas do Visconde LOBATO 1970 p1155 No caso do romance Peter Pan a história contada é fatiada em capítulos numa técnica folhetinesca bastante eficiente no que tange à sedução do pequeno leitor Nisto soou o prrrrr Julgando que fosse alguma coruja que houvesse entrado na nursery a senhora Darling correu para lá Ao ver a janela aberta e as três camas vazias deu um grito e desmaiou Neste ponto Dona Benta interrompeu a história dei xando o resto para o dia seguinte Todos gostaram muito daquele começo e Narizinho observou que as his tórias modernas são mais interessantes que as antigas LOBATO 1970 p81 V3a José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 34 O corte viabilizou uma interessante discussão entre a avó e seus ouvintes O leitor empírico por seu turno vêse levado de um nível de ficcionalização a outro pela narrativa e nesse processo é guiado pela identificação com esta ou aquela personagem para aderir às idéias e aos pontos de vista discutidos vivendo a relação obraleitor de uma forma ativa A descrição dos aspectos materiais do livro e da leitura não vem por mero preciosismo Quando aborda questões relativas ao processo de apropriação dos textos impressos Roger Chartier aponta a presença de instruções que funcionam como uma dupla estratégia de escrita inscrever no texto as convenções sociais ou literárias que permitirão a sua sinalização classificação e compreensão empregar toda uma panóplia de técnicas narrativas ou poéticas que como uma maquinaria deverão produzir efeitos obrigatórios garantindo a boa leitura Existe aí um primeiro conjunto de dispositivos resultantes da escrita puramente textuais desejados pelo autor que tendem a impor um protocolo de leitura seja aproximando o leitor a uma maneira de ler que lhe é indicada seja fa zendo agir sobre ele uma mecânica literária que o colo ca onde o autor deseja que esteja CHARTIER 1996 p9596 Se do lado do autor há dispositivos textuais inscritos na obra impressa para servirem de guia ao receptor do lado do editor há instruções que também se fazem presentes ilustrações diagramação divisão de textos e seções são fatores que dirigem o olhar do receptor sobre os textos Tais senhas viabilizam a interação obraleitor e no caso dos livros para crianças e jovens funcionam como etapas de aproximação entre a obra e seus interlocutores As ilustrações também entram aí são pequenas iscas deixadas pelos produtores de bens culturais impressos de forma que possam fisgar os ariscos consumidores Retomando os livros lobatianos no caso das fábulas os comentários de Dona Benta são elucidativos quanto à forma literária A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 35 assumida por esse tipo textual que vem das práticas de interação oral e invade os domínios da escrita quanto à definição de critérios para que se distinguissem os bons e os maus textos literários quanto a estratégias autorais para conferir um diferencial artístico à linguagem Parecemme muitas vezes instrumentos pedagógicos disfarçados para dar aos pequenos leitores parâmetros de recepção e de formação do gosto pela leitura literária No caso de Peter Pan as discussões que ocorrem durante a contação da história e após cada corte efetuado pela avó incluem reflexões sobre práticas culturais valores morais situações históricas etc Logo no início Pedrinho interage com a contadeira de histórias Nursery repetiu Pedrinho Que vem a ser isso Nursery pronunciase nârseri quer dizer em inglês quarto de crianças Aqui no Brasil quarto de criança é um quarto como outro qualquer e por isso não tem nome especial Mas na Inglaterra é diferente São uma beleza os quartos das crianças lá com pinturas engra çadas rodeando as paredes todos cheios de móveis es peciais e de quanto brinquedo existe Boi de chuchu tem indagou Emília LOBATO op cit p75 Dona Benta traz aspectos curiosos da cultura inglesa um deles está no trecho destacado e aponta para a importância familiar e social da criança entre os britânicos em oposição ao Brasil Emília traduz em sua pergunta a construção imaginária brasileira da infância A possibilidade de aprender com o lúdico fica visível na relação entre Dona Benta e os habitantes do Sítio Após as fábulas A Assembléia dos Ratos LOBATO op cit p20 e O Veado e a Moita Idem p24 Dona Benta dá aulas aos netos à boneca e aos leitores sobre o que faz um texto ter valor literário e sobre formas sancionadas de leitura Na primeira delas a simpática e sedutora avó explica ao curioso Pedrinho José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 36 Meu filho há duas espécies de literatura uma entre aspas e outra sem aspas Eu gosto desta e detesto a quela A literatura sem aspas é a dos grandes livros e a com aspas é a dos livros que não valem nada Se eu digoEstava uma linda manhã de céu azul estou fa zendo literatura sem aspas da boa Mas se eu digo Estava uma gloriosa manhã de céu americanamente azul eu faço literatura da aspada da que merece pau Idem ibidem Certamente D Benta quer levar aos netos à boneca ao Visconde e aos leitores a estes últimos por condução e identificação o consumo da alta literatura da literatura canônica ratificada pelo discurso crítico e historiográfico sancionada pela intelectualidade dominante Os dois exemplos contrapostos na sua fala podem perfeitamente representar a escrita despida dos ornamentos retóricos característicos dos epígonos oitocentistas invasores do primeiro novecentos e a produção dos citados escritores anacrônicos e persistentes os quais dominavam o gosto literário comum A interlocução avóneta é bastante significativa Compreendo vovó disse a menina e sei de um exemplo ainda melhor No dia dos anos da Candoca o jornal da vila trouxe uma notícia assimColhe hoje mais uma violeta no jardim da sua preciosa existência a gentil Senhorita Candoca de Moura ebúrneo ornamento da sociedade itaoquense Isto me parece literatura com dez aspas E é minha filha É da que pede pauIbidem E o pau está dado Ainda que crianças ou adolescentes e portanto pouco hábeis no trato com o texto literário o que os deixaria presas fáceis para escritores de ocasião os leitores estariam tendo a chance de através da ficionalização do diálogo carinhoso entre avó e neta diálogo este recheado de instruções de leitura aprender a escolher o que ler e a ler com olhos mais atentos Quero destacar no fragmento acima a atitude dócil de Narizinho Ela não questiona a fala da avó como Pedrinho faz apenas A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 37 se deixa levar pela conversa e ratifica a opinião dos mais velhos colaborando com exemplos Na fábula O Veado e a Moita ela começa por aplaudir a linguagem usada pela avó demonstrando conhecer as regras do jogo literário Bravos vovó aplaudiu Narizinho A senhora botou nessa fábula duas belezas bem lindinhas Quais minha filha Aquele ouviu latir ao longe o perigo em vez de ouviu latir ao longe os cães e aquele pastou a benfeitora em vez de pastou a moita Se tia Nastácia estivesse aqui dava à senhora uma cocada D Benta riuse Pois essas belezinhas são uma figura de retórica que os gramáticos xingam de sinédoque LOBATO opcit p24 A menina traz para a narrativa a possibilidade de se apreciar a construção literária ainda que não se dominem os códigos basta compreender o processo do jogo o que para ela parece ser bem fácil Dessa forma Narizinho desenha o perfil de uma leitora desejável pelo escritor da época alguém dotada de inteligência certa agudeza perspicácia e predisposição para aceitar as normas que lhes são impostas ainda que sutilmente Esse paradigma de mulher leitora deve ter acalmado o público adulto destacandose pais e professores que viam em Emília exatamente o oposto uma ameaça à ordem familiar e social Na seqüência do trecho acima destacado Emília incorpora à narrativa humor e irreverência Eu sei o que é isso berrou Emília É sem com um pedaço de bodoque Ninguém entendeu Emília explicou José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 38 Sine quer dizer sem quando o Visconde quer dizer sem dia marcado ele diz sine die É um latim E do que é um pedaço de bodoque Parece que é assim mas não é Emília explicou Dona Benta Sinédoque é a synedoche dos gregos e quer di zer compreensão Idem p24 Ao contrário de Narizinho que a cada momento se esforça por aprender mais e melhor as regras do jogo literário e do mundo para o qual se prepara no Sítio da avó Emília brinca com essas mesmas regras e constrói as suas de acordo com os seus limites de imitação da infância A diversão incorporada ao texto e à vida no Sítio parece me outra das iscas lobateanas para envolver o pequeno leitor de seus livros permitindolhe experienciar no domínio quase sagrado do impresso a ludicidade do fazdeconta e a viabilidade de se reinventar a cada linha lida Em D Quixote das crianças Narizinho e Pedrinho estão com ciúmes do sucesso que Emília faz com o público leitor e metalingüisticamente registram isso no texto tentando roubar a voz e a vez de Emília Pare com a Emília vovó gritou a menina furiosa A senhora até parece o Lobato Emília Emília Emília Continue a história de D Quixote LOBATO opcit p115 Essa consciência da ficcionalidade estabelece uma relação ambígua com o leitorado apontandolhe os limites entre a realidade e a ficção E mais a menina afirma que Lobato prefere Emília isto é o dono da história tem predileção pela boneca que foge às regras e constrói novas possibilidades de ler e de viver principalmente para as meninas de então Percebendose excluída da relação entre ledor e interlocutores Emília assume o papel de D Quixote e vai para o quintal lutar contra seus próprios moinhos de vento Algo similar ao que ela faz em Peter Pan quando resolve cortar e recortar a sobra de tia Nastácia trazendo para o ambiente ficcional do Sítio a ficcionalidade outra do A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 39 romance inglês num processo de exposição da natureza imaginária e ficcional do literário Talvez se possa na adaptação de Cervantes vislumbrar o deslocamento social a que as novas mulheres estariam sujeitas seriam como ficções ficcionalizadas brinquedos para um mundo de que o lúdico estava excluído Dona Benta foi espiar pela janela e de fato viu as estrepolias que a Emília Del Rabicó estava fazendo no quintal Vestidinha de cavaleira andante toda cheia de armaduras pelo corpo e de elmo na cabeça avançava contra as galinhas e pintos com a lança em riste fazendo a bicharada fugir num vapor na maior gritaria Até o galo que era um carijó valente correra a esconderse dentro dum caixão Idem p162 Embora boneca Emília traz a marca do feminino marca esta que se nega talvez por se sentir inviável transformandose em um masculino de fantasia O processo de leitura proposto e levado a cabo por Dona Benta pautase na concepção de que o receptor não seria um simples decodificador do texto mas um agente de significados e sentidos A leitura que ali se efetiva ainda que mediada é a leitura do múltiplo do diferente do possível não a leitura do verificável Emília lê as alteridades que pode de acordo com seu parco repertório parco mas aberto sem preconceitos embora vítima deles Laura Sandroni afirma A literatura em si não tem poder Ela atua no terreno das idéias Mas pode atuar contestando o poder constituído através de representações metáforas a existência da censura em todos os tempos é prova palpável do quanto ela incomoda SANDRONI 1980 p11 O texto literário é a possibilidade da transformação ele é potência E como tal demanda alguém que se aproprie dele e que o faça produzirse em incontáveis processos significativos D Quixote realizou os textos que leu Emília os reviveu e os atualizou Para Luzia de Maria José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 40 Através do contato com o mundo simbolizado na litera tura a criança viaja para dentro ou para fora de si mesma experimentando por empatia as sensações vividas pelas personagens e esta é uma forma de se autoconhecer e de conhecer o universo que a rodeia MARIA 2002 p44 Por empatia empatia esta que chegou a incomodar as outras personagens do sítio Emília tornouse um novo paradigma para os pequenos leitores dos textos de seu criador E especifico para as pequenas leitoras Em Emília em suas estrepo lias em suas travessuras em seus questionamentos meninas e meninos encontraram e encontram alternativas para se relacionarem com os diferentes tipos de opressão a que eram e são submetidas os aquelas mais do que estes Daí poder formar leitores e leitores tão irrequietos e inconformados quanto ela Emília é um eficaz e eficiente gancho ficcional capaz de fisgar até os receptores mais ariscos Por si só a boneca de macela feita de trapos redimensiona os polarizados e divorciados segmentos culturais econômicos sociais enfim com os quais se relaciona Ela questiona tanto a cultura popular quanto à erudita relativizando seus limites e a importância que a tradição confere a cada uma Na fábula A Menina do Leite e em O Carreiro e o Papagaio ela reinventa o narrado e indicia a importância do imaginário Emília bateu palmas Viva Viva a Laurimar No nosso passeio ao País das Fábulas tivemos ocasião de ver essa história formarse mas o fim foi diferente Laurimar estava esperta e não derrubou o pote de leite porque não carregava o leite em pote nenhum e sim numa lata de metal bem fechada Lembrase Narizinho A menina lembravase Sim disse ela Lembrome muito bem A Laurinha não derramou o leite e deixou a fábula errada O certo é como vovó acaba de contar LOBATO op cit p22 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 41 Emília tem um lugar de onde fala o da imaginação que dá vida à macela que a recheia e ao retrós que representa seu olho um olho que pelo material de que é feito pode costurar o mundo como bem lhe aprouver O lugar da boneca lhe faculta a possibilidade de ver sempre alternativas para o que lhe é dado como definido e definitivo Assim finais diferentes não a assustam podem inquietá la mas isso em se tratando de Emília é o que se espera A inquietude é a mola das ações da boneca não lhe traz desconforto Narizinho por outro lado opta pela quietude da pertinência e obediência às normas e às injunções sociais Em O Carreiro e o Papagaio Emília se define como a salvação daqueles que estiverem em dificuldades extremas É quando todos estão desesperados e tontos sem saber o que fazer voltaremse para mim eEmília acudae eu vou e aplico o fazdeconta e resolvo o problema Aqui nesta casa ninguém luta para resolver as dificuldades todos apelam para mim Idem p 32 O reino da imaginação através do mecanismo do fazdeconta dá as fronteiras do lugar de Emília Inviável no mundo concreto ela funciona como uma reinvenção dos possíveis da vida transgredindo a ordem natural das coisas Wolfgang Iser traz para os estudos literários a investigação sobre os mecanismos textuais que conduzem a interação da obra com o leitor Há entre ambos uma assimetria que viabiliza o diálogo Para Iser por meio da ficção o leitor pode atravessar as fronteiras do mundo instituído uma vez que ele o refaz antropofagizando a realidade nesse processo coloco a personagem Emília que se apropria do lidoouvido e o reconfigura ressignifica transformando seu próprio mundo e o mundo empírico com o qual dialoga Segundo o teórico alemão o texto ficcional não é pleno em si carrega lacunas que implicam uma projeção do leitor A leitura surge então como uma atividade comandada sim pelo texto José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 42 a relação entre texto e leitor só pode ter êxito medi ante a mudança do leitor Assim o texto constantemen te provoca uma multiplicidade de representações do lei tor através da qual a assimetria começa a dar lugar ao campo comum de uma situação Mas a complexidade da estrutura do texto dificulta a ocupação completa desta situação pelas representações do leitor O au mento da dificuldade significa que as representações devem ser abandonadas Nesta correção que o texto impõe da representação mobilizada formase o hori zonte de referência da situação Esta ganha contornos que permitem ao próprio leitor corrigir suas projeções Só assim ele se torna capaz de experimentar algo que não se encontrava em seu horizonte ISER 1979 p8889 Pela própria indeterminação a relação textoleitor abre incontáveis possibilidades de comunicação que dependem dos mecanismos textuais de controle Os vazios as negações as supressões as cesuras as imagens os cerzidos do texto enfim dão o lugar do leitor quebrando o fluxo textual interrompendo a articulação discursiva seqüencial Dessa forma o texto pode provocar o imaginário do leitor dinamizando o impresso Assim as personagens e suas ações podem funcionar como instrumentos de provocação do imaginário do interlocutor do texto como elementos capazes de suscitar uma leitura ativa Benjamin ao traçar uma História Cultural do Brinquedo em seu livro Reflexões a criança o brinquedo a educação BENJAMIN 1984 p6770 coloca a criança não como indivíduo à parte do mundo mas como ser que transita pelas práticas culturais de sua comunidade de seu grupo social étnico etc A criança pertence ao universo de sua família e de seus amigos ela é engendrada por ele tanto quanto o engendra relendoo através de seu imaginário Vários elementos que o compõem ativam o imaginário infantil mas alguns em especial foram sendo criados com o objetivo de ludicamente aproximar a criança dos padrões sociais desejáveis para cada época e sociedade os brinquedos Carrinhos casinhas A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 43 bonecos trens peões bolas enfim o universo liliputiano BENJAMIN op cit p71 destinado às crianças vem carregado da ideologia dos pais das escolas dos países das igrejas etc Em Brinquedos e Jogos Benjamin afirma O brinquedo mesmo quando não imita os instrumentos dos adultos é confronto na verdade não tanto da criança com os adultos do que destes com as crianças Idem p72 O brinquedo então é uma concretude que projetada pelo adulto para provocar a criança testando e ampliando seus limites físicos psicológicos emocionais cognitivos tornase vivo no ato da brincadeira ganhando contornos de cumplicidade Emília é uma boneca vale lembrar A criança se apropria do brinquedo que se desloca da dominância do adulto escapando de suas previsões O processo de personificaçãoprojeção estabelecido pela criança em sua relação lúdica e imaginativa com o brinquedo vai alimentar suas criações vai lhe dar instrumentos para elaborar o real no qual se insere e que simultaneamente refaz quando instaura o reino do como se do fazdeconta Segundo Jacqueline Held A vida da criança é toda ela dominada pela brincadeira Assim a passagem de uma crença inicial à exploração lúdica dessa crença ocorre muito cedo e de maneira imperceptível HELD 1980 p44 A criança dominada que é pelo adulto e por seus valores desenvolve táticas particulares para distanciarse dessa dominação e jogar com ela subvertendoa muitas das vezes É nesse processo que a ficção literária destinada à infância deve funcionar não como instrumento de controle do imaginário infantil mas como arma de construção de indivíduos capazes de refletir sobre os valores as práticas os discursos que os cercam criando alternativas de diálogo com esse universo sem que sejam devorados por ele José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 44 Pareceme que a vocação pedagogizante da ação de Dona Benta bem como o conformismo denunciado pela obediência de Narizinho podem tanto emancipar como o que penso ser mais provável domesticar o leitor criança e ou adolescente Na contramão vem Emília que por sua inquietação seu inconformismo desestabiliza os suportes burgueses que sustentam as relações familiares e intelectuais no Sítio Emília é a representação do confronto a que alude Benjamin ao identificarse com ela e com as cenas de leitura que protagoniza o leitor tem aberto o caminho para se reinventar enquanto ser crítico e questionador enquanto indivíduo que usa sua imaginação para pensar e fazer o mundo o seu mundo Para Marisa Lajolo É por isso que se lê romance para viver por empréstimo e nesta vida emprestada aprender a viverLAJOLO 2004 p28 E é preciso se reinventar a cada leitura refazendo a si e também ao texto lido através da ação imaginária que preside esse tipo de interlocução Narizinho simboliza o ideal de filha e de neta característico do primeiro novecentos já incorpora o direito feminino à educação mas perpetua a diferença do tipo de conhecimento que pode adquirir em relação ao adquirido por Pedrinho O mais grave pareceme é que enquanto modelo de menina e de leitora Narizinho propõe a reprodução constante e imutável das regras do jogo da vida e da literatura São dois modelos que caminham em direção inversa e que simbolizam a ambigüidade da posição feminina em meados do século XX sabedoras de sua importância de sua capacidade de agir socialmente essas meninasmulheres ainda eram obrigadas a permanecer sob o controle de pais irmãos maridos e até chefes paternalistas sem direito sequer a um fazdeconta que amenizasse seu cotidiano A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 45 Tais personagens concluo funcionaram na construção de pelo menos dois perfis de leitoras novecentistas as independentes e criativas e as dependentes e mantenedoras da ordem social cultural e intelectual que as oprimia E pelo sucesso alcançado pela boneca de pano conforme atesta uma das narrativas de Lobato a inquietude de Emília se desdobrou século afora gerando novas leitoras ou melhor provocando o surgimento de novas práticas femininas e masculinas de leitura da literatura e do mundo práticas estas marcadas pelo poder de reinventar o lido e de se reinventar ao ler REFERÊNCIAS BENJAMIN Walter Reflexões a criança o brinquedo a educação Tradução de Marcus Vinícius Mazzari São Paulo Summus 1984 CHARTIER Roger Do livro à leitura In CHARTIER Roger org Práticas de leitura Tradução de Cristiane Nascimento São Paulo Es tação Liberdade 1996 p77106 COLOMER Teresa A formação do leitor literário Tradução Laura Sandroni São Paulo Global Editora 2003 HELD Jacqueline O imaginário no poder as crianças e a literatura fantástica Tradução de Carlos Rizzi São Paulo Summus 1980 ISER Wolfgang A Interação do Texto com o Leitor In LIMA Luiz Costa org A literatura e o leitor textos de estética da recepção Rio de Janeiro Paz e Terra 1979 p83132 LAJOLO Marisa Como e por que ler o romance brasileiro Rio de Ja neiro Objetiva 2004 LOBATO Monteiro DQuixote das crianças 9ed São Paulo Brasilien se 1967 Fábulas 4 v São Paulo Melhoramentos 1970 Peter Pan 3 v São Paulo Melhoramentos 1970 MARIA Luzia de Leitura e colheita livros leitura e formação de lei tores Petrópolis Vozes 2002 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 46 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 SANDRONI Laura Constância A Estrutura do Poder em Lygia Bojun ga Nunes In et alii Literatura infantojuvenil Rio de Janei ro Tempo Brasileiro 1980 p1125 WALTY Ivete Lara Camargos FONSECA Maria Nazareth Soares CURY Maria Zilda Ferreira Palavra e imagem leituras cruzadas 2 ed Belo Horizonte Autêntica 2006 47 MARINA COLASANTI CONFIGURAÇÕES ARQUETÍPICAS DO MASCULINO E DO FEMININO EM LAÇOS DE AMOR Regina Silva Michelli Qual é a hora de casar senão aquela em que o coração diz quero Marina Colasanti À GUISA DE INTRODUÇÃO MARINA COLASANTI Marina Colasanti é escritora de rara sensibilidade Seus contos refletem o contato estreito com o simbólico e com o inconsciente Imagens metafóricas conduzem a organicidade de seu texto se se pode falar assim Em outras palavras Marina Colasanti assume a intencionalidade de suas narrativas fugirem à linguagem comum Eu nunca trabalho com realismo e nem com linguagem coloquial Gosto da linguagem inventiva que é a linguagem poética COLASANTI 2008 p1 E me ajoelho diante de uma bela metáfora COLASANTI 1997 p129 Em seu conceito sobre contos de fadas deixa clara a associação que existe entre este tipo de texto e o mergulho no humano profundo Quando escrevo poesia ou conto de fadas que são farinha do mesmo saco vou buscar a matéria prima no fundo bem no fundo da alma COLASANTI op cit p128 Em entrevista garante que contos de fadas são metáforas do inconsciente completamente afastados de intenções pedagógicas ou de autoajuda Creo en la fuerza de la literatura como elemento es tructurante lejos de las obviedades de lo previsible de los recados embutidos En cuanto a los cuentos de hadas los verdaderos cuentos de hadas aquellos que estremecen el alma dialogando silencionamiento con ella su esencia está en el origen surgen de las cama das más profundas del inconsciente A veces al escri birlos siento como si yo fuera apenas el receptor de José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 48 historias distantes que por misterio o lujo son con tadas dentro de mí COLASANTI 2000 p1 Não há fadas nem bruxas em sentido explícito nos contos mas uma atmosfera de magia impregna cada linha convidando o leitor a ingressar em um mundo que não é bem o do faz de conta da tradição mas com ele estabelece laços O cenário se configura com castelos reis princesas unicórnios metamorfoses remetendo à herança do maravilhoso porém contos de fadas são como a poesia as pérolas da criação literá ria Estou aqui me referindo a contos de fadas de ver dade não a qualquer conto que só por ter príncipe donzela e dragão se pretende um conto de fada Conto de fada verdadeiro é aquele que serve para qualquer idade em qualquer tempo O que comove E que não morre Contos de fadas são raros e preciosos COLA SANTI 1992 p 71 Ainda que encharcado dessa herança dos contos de fadas da tradição seu texto é contemporâneo e traz as marcas de alguns dos paradigmas que estruturam os tempos e a sociedade em que vive a escritora com uma diferença porém é através da linguagem metafórica e de um tratamento simbólico que afloram nas narrativas os conflitos existenciais da atualidade o mundo complexo dos sentimentos e das relações humanas Os contos de fadas de Marina Colasanti representam um contato direto com o que há de mais profundo na alma humana Afinal a literatura permite essa e outras conexões entre o fascínio da linguagem e o instigante mundo das realidades Para Marisa Lajolo e Regina Zilberman as personagens dos contos são todas de estirpe simbólica tecelãs princesas fa das sereias corças e unicórnios em palácios espe lhos florestas e torres não têm nenhum compromisso com a realidade imediata Participam de enredos cuja efabulação é simples e linear dos quais emergem signi ficados para a vivência da solidão da morte do tempo do amor O clima dos textos aponta sempre para o in sólito e o envolvimento do leitor se acentua através do trabalho artesanal da linguagem extremamente melo diosa e sugestiva LAJOLO ZILBERMAN 1985 p159 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 49 Nas narrativas da escritora percebese o foco que ilumina as relações afetivas entre personagens femininas e masculinas As heroínas se destacam em meio à trama apesar do jugo a que algumas se submetem no fundo imagens representativas de papéis efetivamente desempenhados por mulheres na sociedade não fosse a transfiguração poética que sofre a realidade sob a escritura de Colasanti A ênfase indubitavelmente recai sobre o feminino Eu sou antes de mais nada uma fêmea da minha espécie uma mulher com todos os atributos e todas as cargas das mulheres Só que intensamente crítica 2005 p1 o que se deve em parte ao contato com o movimento feminista e as conseqüências provocadas por esse movimento no âmbito das funções sociais ligadas ao gênero tanto no que se refere à atuação da mulher quanto à do homem pois ambos tiveram de reestruturar seus papéis frente às mudanças ocorridas Pensadora e escritora ativa Marina Colasanti assinala sua participação na imprensa e na televisão Ela trabalhou como jornalista em diferentes revistas sendo editora da Nova ainda atuando como cronista em alguns periódicos Via de regra detém seu olhar em questões que envolvem o comportamento interpessoal e as relações afetivas evidenciando em seus textos a pluralidade de ser mulher em seu relacionamento com a figura masculina Publicou algumas obras especificamente sobre a mulher e o amor como A nova mulher 1980 Mulher daqui pra frente 1981 E por falar em amor 1984 Este último parte da premissa de que é necessário reestruturar a visão sobre o amor E nessa viagem descobri que embora seja sempre tratado como um sentimento único igual para homens e mulheres o amor não o é pela simples razão de que homens e mulheres são diferentes e desempenham diferentes papéis em relação a ele Tentei portanto detectar as formas masculina e feminina de amor e os problemas que José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 50 ocorrem quando procuramos fazer desses dois sentimentos uma coisa só E descobri também que tendo forjado praticamente toda a teoria amorosa da história da humanidade à qual as mulheres tentaram se adequar os homens porém pouco se manifestaram quando se trata de falar do seu amor pessoal do seu apaixonarse Assim a razão amorosa fala pela boca dos homens enquanto a emoção amorosa fala pela boca das mulheres Pareceume uma boa hora para misturar as duas coisas COLASANTI 1987 p1314 Neste estudo proponhome também a uma viagem por alguns contos de Marina Colasanti tendo por objetivo exemplificarmos configurações paradigmáticas identitárias do masculino e do feminino em sua relação amorosa Comecemos porém pela visão dos arquétipos ACERCA DE ARQUÉTIPOS E IDENTIDADES Para Carl Gustav Jung o conceito de inconsciente restringese em princípio a designar o estado dos conteúdos reprimidos ou esquecidos Em seus textos ele defende a existência de um inconsciente pessoal formado por experiências ou aquisições pessoais que repousa sobre uma camada mais profunda inata de natureza universal que é o inconsciente coletivo Jung caracteriza o inconsciente como coletivo por possuir conteúdos e modos de comportamento que são os mesmos em toda parte e em todos os indivíduos constitui um substrato psíquico comum de natureza psíquica suprapessoal que existe em cada indivíduo conteúdos capazes de serem conscientizados 2007 p15 Os conteúdos do inconsciente coletivo são chamados por ele de arquétipos definidos como imagens primordiais imagens universais que existiram desde os tempos mais remotos 2007 p16 tendência instintiva A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 51 que pode se manifestar como fantasias e revelar muitas vezes a sua presença apenas através de imagens simbólicas JUNG 1977 p69 Assim o herói o monstro a criança o velho a mãe são figuras arquetípicas Arquétipos são representações de motivo ou tema que podem se manifestar através de diferentes imagens e se repetem em qualquer época ou lugar do mundo Jung considera que Outra forma bem conhecida de expressão dos arquétipos é encontrada no mito e no conto de fada JUNG 2007 p17 textos que permitem a expressão da alma cujo conteúdo com pouquíssimas variações aparece em países geográfica e temporalmente afastados Buscando a definição de mito Junito Brandão aproximase das concepções junguianas Talvez se pudesse definir mito dentro do conceito de Carl Gustav Jung como a conscientização dos arquétipos do inconsciente coletivo quer dizer um elo entre o consciente e o inconsciente coletivo BRANDÃO2002a p37 compreendendo por inconsciente coletivo a herança das vivências das gerações anteriores Desse modo o inconsciente coletivo expressaria a identidade de todos os homens seja qual for a época e o lugar onde tenham vivido BRANDÃO op cit p37 Pretendese neste trabalho delinear identidades de gênero com base em estudos míticoarquetípicos Focalizase o olhar em contos de Marina Colasanti buscando iluminar perfis paradigmáticos que configurem aspectos do ser feminino e do masculino em sua interrelação A respectiva fundamentação teórica apresenta como esteio os estudos da psiquiatra e analista junguiana Jean Shinoda Bolen que propõe arquétipos femininos e masculinos a partir da configuração mítica dos deuses olímpicos Sob esta perspectiva há também a obra de M Esther Harding Os mistérios da mulher e a de Dulcinéa Monteiro Mulher feminino plural sobre os arquétipos masculinos Rei guerreiro mago amante de Robert Moore e José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 52 Douglas Gillette Jean Bolen contudo oferece uma estrutura analítica semelhante para ambos os gêneros trabalho referendado por Junito Brandão que desenvolve o estudo Ela considera que deusas e deuses podem ser analisados como representações arquetípicas esclarecendo padrões comportamentais Divide as seis deusas mais famosas do Olimpo Héstia Vesta para os romanos Deméter Ceres Hera Juno Ártemis Diana Atenas Minerva Afrodite Vênus acrescentando Perséfone Prosérpina em três categorias que se interrelacionam A primeira formada por Ártemis Atenas e Héstia configura as deusas virgens que representam o atributo de independência e autosuficiência das mulheres são deusas não passíveis de se enamorarem por alguém permanecendo invioladas Explica Bolem que Como arquétipos elas expressam a necessidade de autonomia e a aptidão que as mulheres têm de enfocar sua percepção naquilo que é pessoalmente significativo BOLEN 2005 p39 sendo capazes de atingir os objetivos traçados Junito Brandão referindose ao trabalho da psiquiatra citada caracteriza essas deusas como invulneráveis pois jamais se deixaram dominar e reprimir por seus pares masculinos olímpicos ou quaisquer mortais BOLEN2002 p343 O segundo grupo formado pelas deusas Hera Deméter e Perséfone corresponde ao que Bolen classifica como o das deusas vulneráveis representando respectivamente os papéis tradicionais de esposa mãe e filha São deusasarquétipos orientadas para o relacionamento e suas identidades e bemestar dependem de um relacionamento significativo Expressam as necessidades que as mulheres têm de adoção e vínculo 2005 p40 de afiliação independente do sofrimento que essas relações podem lhes trazer A configuração deste arquétipo delineia um comportamento feminino atencioso e receptivo em sintonia com o outro A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 53 As deusas alquímicas ou transformativas caracterizam o terceiro grupo formado por uma única deusa Afrodite ou Vênus para os romanos Deusa da beleza e do amor no dizer de Brandão sujeita a múltiplas transformações 2002 p343 Afrodite simboliza o poder transformativo e criativo do amor BOLEN 2005 p310 Bolen associa a deusa alquímica às duas categorias anteriores pois Afrodite era capaz de manter a autonomia de fazer o que desejava sem se afastar dos objetivos por interferências alheias como as deusas virgens embora se ligasse afetivamente a vários deuses e mortais como as deusas vulneráveis ao contrário delas porém a deusa da beleza jamais sofreu ou foi vitimada na vivência da paixão O que caracteriza este arquétipo é o valor dado à experiência emocional com o outro sem a preocupação com compromissos e vínculos a longo prazo pode ser vivenciado através de relação física ou de um processo criativo entendendose o contato com o outro como sinônimo de comunicação e comunhão quer no nível físico ou no emocional e espiritual produzindo profundas conexões de amor e crescimento Ao trabalhar com os deuses olímpicos visando à configuração de arquétipos masculinos Bolen destaca a ligação com o patriarcado cujos valores predominantes enfatizam a aquisição de poder e a racionalidade A autora divide os oito principais deuses em dois grandes grupos No primeiro Zeus Júpiter para os romanos Posêidon Netuno e Hades Plutão representam os três aspectos do arquétipo paterno bem como os três deuses irmãos que distribuíram entre si os domínios do pai Cronos Saturno depois de este ser destronado a Zeus coube o céu e a supremacia do universo a Posêidon o mar a Hades o mundo inferior subterrâneo ou Hades Assim como o mundo na mitologia a psique masculina se dividiu em 1 o reino mental consciente do poder da vontade e do pensamento Zeus 2 o reino das emoções e dos instintos José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 54 Posêidon que é geralmente suprimido desvalorizado e às vezes expulso do campo da nossa consciência e 3 o reino indistinto e temido dos padrões invisíveis e dos arquétipos impessoais Hades que só em sonhos costuma ser vislumbrado BOLEN 2002 p74 O céu domínio de Zeus representa a luz e a consciência Este deus articula o poder a autoridade e o domínio manifestando atitudes fundamentadas em controle raciocínio lógico e força de vontade Apresenta temperamento autoritário desempenhando atividades de comando graças à visão objetiva da realidade Caracterizase pelo acúmulo de poder e bens o que lhe garante alta visibilidade e prestígio Posêidon é um deus primitivo regido por emotividade e grande investimento afetivo e emocional O mar seu domínio representa o inconsciente o fundo do mar é o reino dos sentimentos pessoais e dos instintos reprimidos Posêidon manifesta um temperamento violento instável sendo também caracterizado por atividades criativas intuição e reatividade emocional Hades configura a introspecção e a invisibilidade dos que vivem isolados ou reclusos Como seu domínio é o reino inferior esse deus associase à descida à noite escura da alma BOLEN 2002 p149 à depressão e à morte ao inconsciente pessoal e coletivo Mas ele representa também a riqueza do mundo interior cuja reclusão pode ser fonte de criatividade e sabedoria O segundo grupo é composto pelos filhos olímpicos de Zeus Apolo é o deus do sol da luz da música e da poesia Hermes Mercúrio é o deus mensageiro hábil negociador trapaceiro guardião das estradas Ambos são os filhos eleitos mantendose sem se casar Segundo Bolen esses dois deuses definidos pelo distanciamento emocional e pela atividade mental são os que mais se coadunam ao mundo patriarcal Ares Marte é o deus da guerra cuja ação tem por móvel a ira ou a lealdade é um deus destrutivo A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 55 mas também amoroso Hefesto Vulcano é o deus da forja coxo gerado apenas por Hera é um deus criativo artista e solitário mesmo tendose casado com a bela Afrodite Os dois Ares e Hefesto são desprezados pelos demais deuses filhos também rejeitados por Zeus Para a escritora citada esses dois deuses se expressavam através de atividades físicas mais manuais que mentais com predomínio da emoção sobre a razão Brandão 1999 p258 opõe Apolo a Ares o primeiro representa a reflexão e a prudência enquanto o segundo se destaca pelos músculos e pela força física Dioniso Baco deus do vinho do êxtase e do entusiasmo é uma figura ambivalente com uma mãe mortal Sêmele e um pai divino Zeus em cuja coxa completou o tempo necessário para nascer Para Junito Brandão ékstasis êxtase é um sair de si interno uma espécie de transformação uma catarse enthusiasmós entusiasmo é deus dentro de nós é a posse o mergulho de Dioniso BRANDÃO op cit p263 o que estimula o rompimento com interditos de diferentes ordens Para Bolen Dioniso como deus arquétipo e homem era próximo da natureza e das mulheres O reino místico e o mundo feminino eramlhe familiares BRANDÃO 2002 p362 Dioniso configurase como elemento perturbador capaz de criar conflitos e de levar à loucura ao mesmo tempo é associado ao amor à libertação também um arquétipo reprimido nos homens por se ligar a traços femininos a temperamento sonhador e místico a paixão e sensualidade Dioniso traz a marca das oposições violentas como êxtase e horror vida e morte Analisando comparativamente a classificação arquetípica proposta por Jean Bolen para os dois gêneros observase que Dioniso como Afrodite é um deus transformador Apolo e Hermes correspondem às deusasvirgens Hefesto e Ares às vulneráveis Tal correlação justificase porque os arquétipos estão associados a dons e problemáticas existenciais as figuras psíquicas são bipolares e José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 56 oscilam entre o seu significado positivo e negativo JUNG 2007 p184 e estão potencialmente presentes nos seres humanos independente de questões de gênero Pode haver o predomínio de um arquétipo sobre os demais como a alternância de um e outro ou a coexistência de vários em um único ser ao longo da vida Tanto Bolen como Brandão aprofundam o estudo de cada deus e deusa individualmente segundo a narrativa míticobiográfica de cada um destacando atribuições e funções arquetípicas Interessanos dar relevo à caracterização geral das deusas e trabalhar com o grupo dos arquétipos paternos todos eles deuses reis em seus domínios ainda que seja possível realçar algum deus ou deusa específicos que esclareçam a configuração identitária apresentada Entre a espada e a rosa Qual é a hora de casar senão aquela em que o coração diz quero A hora que o pai escolhe Isso descobriu a Princesa na tarde em que o Rei mandou chamála e sem rodeios lhe disse que tendo decidido fazer aliança com o povo das fronteiras do Norte prometera dála em casamento ao seu chefe Se era velho ou feio que importância tinha frente aos soldados que traria para o reino às ovelhas que poria nos pastos e às moedas que despejaria nos cofres Estivesse pronta pois breve o noivo viria buscála COLASANTI 1992 p 23 Marina Colasanti inicia seu conto op cit p 2327 lançando o leitor diretamente no conflito da narrativa logo estabelecido A primeira frase afiança a idéia inicial de liberdade de escolha pessoal A segunda joga por terra tal pretensão levando o leitor para reinos provavelmente medievais onde impera a ordem do pai O Rei na narrativa atualiza o arquétipo do rei existente em Zeus detentor do poder ele controla o desejo do outro subju gandoo aos seus ditames em princípio racionais A única coisa que pre tende o Rei é a aquisição de bens ampliando sua esfera de poder e controle ao estabelecer a aliança política com o povo das fronteiras Sentarse no A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 57 topo com poder autoridade e domínio sobre um território escolhido é a posição de Zeus BOLEN 2002 p83 A marca do ponto cardeal povo das fronteiras do Norte orientação que aparece em vários contos de Cola santi evidencia o rumo indicado pela bússola representando simbolica mente o caminho a ser seguido segundo os parâmetros ditados pela socie dade A personagem feminina a filha é percebida como propriedade e o casamento como meio para consolidar alianças e aumentar domínios Ar quetipicamente Zeus é o pai autoritário que tem a palavra final BOLEN op cit p89 Diante desse contexto o comportamento adequado à Princesa é a obediência a passividade Estivesse pronta pois breve o noivo viria buscála Esses são atributos das deusas vulneráveis em que se destaca Perséfone a filha de Deméter deusa do cereal e da colheita e Zeus Na narrativa mitológica o pai assiste conivente ao rapto de Perséfone por Hades enquanto a mãe desesperada se enclausura provocando a falta de alimentos nada conseguia nascer nos campos Como arquétipo Perséfone representa a mulher tutelada predisposta não a agir mas a ser conduzida pelos outros a ser complacente na ação e passiva na atitude BOLEN 2005 p277 Perséfone é Coré a donzela arquétipo analisado por Jung 2007 p181202 A Princesa do conto porém não se resigna tão facilmente ao destino traçado por outrem Embolada na cama aos soluços implorou ao seu corpo à sua mente que lhe fizessem achar uma solução para escapar da decisão do pai Afinal esgotada adorme ceu E na noite sua mente ordenou e no escuro seu corpo ficou E ao acordar de manhã os olhos ainda ardendo de tanto chorar a Princesa percebeu que algo estranho se passava Com quanto medo correu ao espelho Com José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 58 quanto espanto viu cachos ruivos rodeandolhe o quei xo Não podia acreditar mas era verdade Em seu ros to uma barba havia crescido Passou os dedos lentamente entre os fios sedosos E já estendia a mão procurando a tesoura quando afinal compreendeu Aquela era a sua resposta Podia vir o noivo buscála Podia vir com soldados suas ovelhas e suas moedas Mas quando a visse não mais a quereria Nem ele nem qualquer outro escolhido pelo Rei CO LASANTI 1992 p23 Operase uma transformação na Princesa imersa em lágrimas e a água é um princípio feminino em cuja significação simbólica destacamse as idéias de fonte de vida meio de purificação centro de regenerescência CHEVALIER GHEERBRANT 2002 p15 na visão de Jung A água é o símbolo mais comum do inconsciente 2007 p29 A mudança parte de sua súplica a forças internas ainda desconhecidas mente e corpo O primeiro ordena estabelecendo uma nova ordem o corpo fica permanece e promove a metamorfose Não há fada madrinha como auxiliar mágico embora a circunstância insólita emerja aproximandose do maravilhoso dos contos de fadas tradicionais O fenômeno processase durante a noite que para os gregos é filha do Caos e da Terra e engendrou o sono e a morte os sonhos e as angústias a ternura e o engano momento de transformação de germinação de mudanças que vão desabrochar em pleno dia como manifestação de vida CHEVALIER GHEERBRANT 2002 p639640 A manhã surge com novas possibilidades para a heroína A metamorfose que nas narrativas maravilhosas é provocada geralmente por bruxas aqui é fruto do apelo a forças internas do mergulho no inconsciente concretizandose no corpo pela aparição da barba A necessidade de tal evidência física indicia que a princesa não dispunha de meios como a palavra para defender qualquer ponto de vista que fosse diferente do paterno Sem poder externar o A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 59 próprio desejo a Princesa não consegue subtrairse à vontade do Rei seu pai rechaçando o pretende escolhido por ele Não pode repudiar mas pode ser repudiada Por meios transversos ela consegue fugir desobedecer ao cumprimento da ordem do Pai Primeiro chora busca encontrar uma solução para o casamento indesejado e adormece Ao acordar percebe a mudança instaurandose uma gradação que se repetirá ao final do conto medo diante do novo que se apresenta estranho espanto tomada de consciência pelo enfrentamento no espelho compreensão assimilação do ocorrido A mudança que brota de seu interior assemelhase às mensagens aparentemente incompreensíveis do inconsciente que gradativamente são conscientizadas Como Perséfone a Princesa vai ao Hades esgotada adormeceu trajetória que oferece a possibilidade de transformação da jovem em Rainha Simbolicamente o Inferno pode representar camadas mais profundas da psique um lugar onde as memórias e sentimentos foram enterrados o inconsciente pessoal e onde as imagens padrões instintos e sentimentos que são arquetípicos e compartilhados pela humanidade são encontrados o inconsciente coletivo BOLEN op cit p282 O espelho reflete a própria imagem e no conto evidencia a ambigüidade reinante na figura feminina da princesa corpo de mulher com barba de homem Ao buscar em seu interior a solução para a situação problemática em que se encontrava a personagem efetiva o encontro consigo mesma Iniciase na narrativa o confronto que a heroína vai precisar enfrentar com seu interior e com o espaço social por onde se desloca para que uma identidade ainda adormecida desabroche Quem caminha em direção a si mesmo corre o risco do encontro consigo mesmo O espelho não lisonjeia mostrando fielmente o que quer que nele se olhe ou seja aquela face que José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 60 nunca mostramos ao mundo porque a encobrimos com a persona a máscara do ator Mas o espelho está por detrás da máscara e mostra a face verdadeira JUNG op cit p30 O que pensara a jovem efetivamente acontece Salva a filha perdiase porém a aliança do pai Que tomado de horror e fúria diante da jovem barbada e alegando a vergonha que cairia sobre seu reino diante de tal estranheza ordenoulhe abandonar o palácio imediatamente COLASANTI op cit p24 Zeus era o senhor dos raios símbolo do poder punitivo e do trovão Até os dias de hoje quando ousamos ir contra uma proibição patriarcal esperamos que um raio caia sobre nossa cabeça BOLEN op cit p77 O pai é o símbolo da geração da posse da dominação do valor Nesse sentido ele é uma figura inibidora castradora nos termos da psicanálise CHEVALIER GHEERBRANT op cit p678 Como Pele de Asno princesa de conto homônimo de Perrault a heroína de Colasanti leva alguns objetos que permitem a identificação de seu nobre estatuto social em uma trouxa pequena ela pôs o que lhe era valioso suas jóias e um vestido de veludo cor de sangue 1992 p24 O sangue remete à dor à morte e à vida a Princesa abandona a condição confortável de que dispunha no palácio cujo preço era a dependência e a submissão arquétipo da jovem Perséfone e se lança ao novo a uma nova identidade e à vida não conformada pelo pai Simbolicamente morre a filha e a princesa para nascer uma nova identidade em princípio ambígua a jovem barbada Dito de outra forma morre a menina para dar lugar à mulher passagem que não se efetiva sem alguma dor e se associa ao sangue menstrual Começa a se tecer a passagem da vivência do arquétipo da deusa vulnerável submissa ao poder masculino à da independência da deusa virgem O texto de Marina Colasanti é riquíssimo em metáforas permeado de linguagem poética de tal forma que a cada passo A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 61 tornase interessante transcrevêlo Sobre a saída da princesa do palácio registra a escritora E sem despedidas atravessou a ponte levadiça passando para o outro lado do fosso Atrás ficava tudo o que havia sido seu adiante estava aquilo que não conhecia 1992 p24 O corte entre Rei e Princesa é abrupto Quando o filho não se enquadra no modelo desejado recai sobre ele a rejeição como se observa na mitologia Há um fosso separando espaços tempos e relações atrás o passado o castelo conhecido a proteção do pai com sua conseqüente exigência de submissão à frente o futuro o risco do novo a liberdade Ela não hesita em atravessar de um lado a outro transpondo barreiras Há uma travessia uma morte e um renascimento A trajetória da princesa sua errância pelas aldeias evidencia o conflito a desarmonia entre aparência e essência Na primeira aldeia busca serviços femininos conforme sua identidade de mulher mas é rejeitada devido à barba que lhe confere um aspecto masculino Na aldeia seguinte resolve oferecerse para tarefas masculinas serviços de homem mas o corpo denuncia características femininas sendo novamente rejeitada Na terceira aldeia procura livrarse inutilmente da barba cortandoa com uma tesoura a barba cresce mais cacheada brilhante e rubra do que antes 1992 p24 A heroína do conto tenta encontrar uma solução eliminando o problema que em primeira instância lhe salvara Tornase necessário porém efetivar a aprendizagem de conviver com a barba descobrir o masculino o animus dentro de si arquétipo explicado mais à frente Como deusa virgem com a consciência enfocada BOLEN op cit p193 no que deseja sem mais nada pedir a princesa vende suas jóias e obtém uma couraça uma espada e um elmo Se a aliança com o pai já fora perdida agora se rompe simbolicamente o vínculo com a mãe citada apenas esta vez no discurso mãe distante José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 62 aparentemente morta o que se coaduna à impotência feminina nas famílias patriarcais E tirando do dedo o anel que havia sido de sua mãe vendeuo para um mercador em troca de um cavalo COLASANTI op cit p25 Para que a filha ganhe autonomia é necessário romper os elos de dependência com os pais o que vai lhe permitir a construção de uma identidade madura Prossegue a história Agora debaixo da couraça ninguém veria seu corpo debaixo do elmo ninguém veria sua barba Montada a cavalo espada em punho não seria mais homem nem mulher Seria guerreiro Idem p25 Há uma camuflagem uma aparência que resguarda as marcas de ambigüidade permitindo à Princesa a articulação de uma nova identidade guerreiro e um novo arquétipo a deusa virgem Atenas única deusa do Olimpo a usar couraça capacete escudo e lança O envoltório tanto protege a Princesa das investidas alheias como lhe permite enfrentar o outro Atenas deusa da sabedoria uniase aos homens como seus iguais como uma supervisora do que eles faziam Era a pessoa mais calma na batalha e a melhor estrategista Sua maneira de se adaptar era a identificação com os homens ela se tornava como um deles BOLEN op cit p68 Na qualidade de guerreiro lembrando Joana DArc e Diadorim a Princesa conquista o respeito de todos Sua coragem bravura e vitória em batalhas e torneios fazemna conhecida A couraça falava mais que o nome COLASANTI op cit p25 As suspeitas que seu comportamento levanta obrigamna porém à errância de castelo a castelo Quem era aquele cavaleiro ousado e gentil que nunca tirava os trajes de batalha Por que não participava das festas nem cantava para as damas 1992 p25 A Princesa guerreiro desempenha atributos viris sem contudo perder a gentileza feminina misto de andrógino quase uma supra identidade articulando o feminino princesa e o masculino guerreiro e não A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 63 guerreira Atenas é um arquétipo feminino ela demonstra que pensar bem manter a calma no ponto mais culminante de uma situação emocional e desenvolver boas táticas no meio do conflito são traços naturais para algumas mulheres BOLEN op cit p120 Apenas em espaços livres cavalgando no campo sozinha consegue livrarse temporariamente da viseira permitindose ser A narrativa conduz a Princesa ao encontro com o outro que se tornará desejado Assim de castelo em castelo havia chegado àquele governado por um jovem Rei COLASANTI op cit p25 Surge um segundo Rei na história que diferentemente do primeiro a elege para as batalhas os torneios as caçadas os exercícios os conselhos várias vezes salvando um a vida do outro Uma inquietação começa a se instalar O Rei estranha o fato de seu melhor amigo não se dar a conhecer tirando o elmo Intriga e angustia o jovem Rei o sentimento novo que percebe nascer em si devoção mais funda por aquele amigo do que a que um homem sente por outro homem Idem p26 Por seu turno a princesa exercita sua transformação De dia é guerreiro e luta empunhando sua espada À noite começa a recuperar sua aparência feminina encostava seu escudo na parede vestia o vestido de veludo vermelho soltava os cabelos e diante do seu reflexo no metal polido suspirava longamente pensando nele Idem p26 O conflito se instala na alma do Rei ora evita e foge dela ora percebendo que tal comportamento não a afasta de seus pensamentos só de sua visão mandava chamála para arrepender se em seguida e pedirlhe que se fosse Idem p26 Quem já se sentiu inesperadamente tomado por ondas afetivas poderosas que sobem das profundezas do próprio ser ou percebeu seu corpo tremer e sacudir de dor ódio ou sede de vingança passou por uma experiência direta de Posêidon BOLEN 2002 p115 Tormento é José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 64 a palavra empregada pelo narrador para caracterizar o que se passa no coração daquele jovem Por fim como nada disso acalmasse seu tormento ordenou que viesse ter com ele E em voz áspera lhe disse que há muito tempo tolerava ter a seu lado um cavaleiro de rosto sempre coberto Mas que não podia mais confiar em alguém que se escondia atrás do ferro Tirasse o elmo mostrasse o rosto Ou teria cinco dias para deixar o castelo COLASANTI op cit p26 O jovem Rei diferente do Rei pai exercita o arquétipo de Posêidon Movido por emoção sentimento intuição e instinto este arquétipo associase à destrutividade e ao humor tempestuoso e intempestivo à instabilidade emocional bem como a aspecto pacífico e misericordioso Jean Bolen explica que Posêidon também é o arquétipo por meio do qual pode ser experimentado um domínio de grande profundidade e beleza Acesso às profundezas emocionais é um aspecto desprezado da psique masculina desvalorizado e reprimido pelas culturas patriarcais 2002 p121 O Rei do nosso conto é sensível à presença do outro desenvolvendo sentimentos de afeto e atração por alguém que aparentemente é um amigo de batalha O narrador deixa claro porém que é mais do que afeto o que sentem a Princesa e o Rei Há uma mútua atração fruto da paixão nascente A paixão e o amor são sentimentos perturbadores e enriquecedores e se por um lado há o conflito interior instalado na alma do Rei há também a intuição que o leva a exigir o desmascaramento do outro como se pressentisse algo além da aparência A angústia gera comportamentos contraditórios nele terminando por instalar a agressividade a voz áspera e o ultimato para que o outro se revele Tal como no início a princesa se refugia em seu quarto prisioneira da situação em que se encontra Ela cria um impasse para si acredita que ao se desvelar para o Rei a barba atrairá a rejeição A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 65 dele para sua condição de mulher enquanto o corpo feminino será o obstáculo para continuar guerreiro Novo embate se trava no interior da Princesa Dobrada sobre si mesma aos soluços implorou ao seu corpo que a libertasse suplicou à sua mente que lhe desse uma solução Afinal esgotada adormeceu E na noite sua mente ordenou e no escuro seu corpo brotou E ao acordar de manhã com os olhos inchados de tanto chorar a Princesa percebeu que algo estranho se passava Não ousou levar as mãos ao rosto Com medo quanto medo Aproximouse do espelho polido procurou seu reflexo E com espanto quanto espanto Viu que sim a barba havia desaparecido Mas em seu lugar rubras como os cachos rosas lhe rodeavam o queixo COLASANTI op cit p27 As palavras recuperam a situação inicial intensificando as reações emocionais quanto medo quanto espanto Apesar da experiência anteriormente vivida o novo volta a se instalar insólito Em princípio a Princesa não compreende como da primeira vez a resposta que obtém E perguntavase de que adiantava ter trocado a barba por flores Idem p27 A experiência agora porém inundaa com o perfume das rosas sentiase embriagar de primavera Idem p27 estação das flores e do amor do renascimento da vida Gradativamente operase a metamorfose as rosas vão perdendo a cor vermelha passando a vinho despetalandose sem que novas flores nasçam ao final Só um delicado rosto de mulher Idem p27 A Princesa recobra sua bela aparência e pode aparecer diante do Rei com seu vestido cor de sangue sangue da virgindade que vai perder situação simbolicamente representada nas flores que se despetalam Nova travessia se efetiva agora de deusa virgem a deusa vulnerável mulher esposa desabrochando em primavera Era José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 66 chegado o quinto dia A Princesa soltou os cabelos trajou seu vestido cor de sangue E arrastando a cauda de veludo desceu as escadarias que a levariam até o Rei enquanto um perfume de rosas se espalhava no castelo Idem p27 O conto permite a percepção de diferentes arquétipos na atuação da Princesa Ao final ela é a deusa alquímica capaz de operar transformações em si e no outro Afrodite em pleno gozo de sua feminilidade deusa do amor e da beleza A quem quer que Afrodite impregne com beleza tornase irresistível Resulta uma atração magnética a química acontece entre os dois e eles desejam união acima de tudo BOLEN 2005 p311 A consciência de Afrodite é enfocada e receptiva o que caracteriza respectivamente a configuração arquetípica das deusas virgens e das vulneráveis Atinge o que deseja sem abdicar da interação com o outro Como deusa alquímica é sujeita a múltiplas transmutações Com efeito para chegar ao ouro símbolo também do amor é necessário que a matéria inferior se despoje das gangas impuras até atingir uma pureza total Na realidade o ouro é o aperfeiçoamento de metais inferiores BRANDÃO 2002 p351 O título do conto Entre a espada e a rosa articula a vivência do masculino e do feminino estabelecendo o entrelugar ou a possibilidade de se deslizar de um a outro lado sem fossos exercitando os dois o que se manifesta em sintonia com as identidades cambiantes da pósmodernidade A espada simboliza o combate a luta pelo que se deseja ou acredita é ação ligada ao masculino ao arquétipo do animus o elemento masculino que existe no inconsciente de toda mulher Segundo MarieLouise von Franz O lado positivo do animus pode personificar um espírito de iniciativa coragem honestidade e na sua forma mais elevada de grande profundidade espiritual além de poder lançar uma ponte para o self através da atividade criadora 1997 p195193 A rosa representa a A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 67 delicadeza e a beleza que encantam o perfume que inebria a sensibilidade e a emoção índices do arquétipo feminino da anima o elemento feminino que há em todo homem JUNG 1977 p31 Anima é a personificação de todas as tendências psicológicas femininas na psique do homem os humores e sentimentos instáveis as intuições proféticas a receptividade ao irracional a capacidade de amar a sensibilidade à natureza e por fim mas nem por isso menos importante o relacionamento com o inconsciente FRANZ 1977 p177 No conto observase que as figuras masculinas pouca maleabilidade apresentam São Reis detentores do poder o espaço de atuação já foi conquistado Assinalam porém comportamentos diferentes expressando arquétipos também diferentes O Rei pai articula de forma mais inflexível o poder não há alternativa possível à filha que não se submete às suas ordens e desejos O segundo rei expressa melhor o arquétipo do amante não conseguindo se subtrair às suas emoções e aos seus sentimentos por mais conflituosos que pudessem ser afinal seu interesse recai sobre aquele que aparentemente é um homem amigo de batalhas A figura feminina tangencia diferentes arquétipos evoluindo de uma situação inicial dependente para a liberdade e a autonomia conquistadas à espada típica atitude das deusas invulneráveis para ao final estabelecer a desejada relação amorosa com o outro Luz de lanterna sopro de vento Luz de lanterna sopro de vento COLASANTI 1997 p102105 é um conto que te matiza a espera feminina e a permanência do vínculo afetivo entre o casal Indo o marido para a guerra a mulher acende a lanterna do lado de fora da casa a fim de trazêlo de volta Dia após dia ela realiza a mesma ação mas ao amanhecer José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 68 invariavelmente encontra a lanterna apagada creditando ao vento a ação de extinguir a chama À noite antes de deitar novamente acendeu a lanterna que à distância haveria de indicar ao seu homem o caminho de casa COLASANTI op cit p102 Como as deusas vulneráveis a personagem feminina confere sentido à vida através da relação travada com o companheiro a atração motivacional é o relacionamento mais do que o empreendimento a autonomia ou uma nova experiência O enfoque da atenção é nos outros não num objetivo exterior ou estado interior BOLEN 2005 p191192 Certo dia porém o marido retorna Coberto de poeira e sangue ainda assim não havia vindo para ficar 1997 p103 pois a guerra não acabara Desiludindo as esperanças da esposa que o deseja para si explica sumariamente a razão de ter voltado Vim porque a luz que você acende à noite não me deixa dormir disse lhe quase ríspido Brilha por trás das minhas pálpebras fechadas como se me chamasse Só de madrugada depois que o vento sopra posso adormecer 1997 p103104 A luz efetiva simbolicamente a ligação do casal a distância que os separa não é suficiente para que ele não seja sensível ao chamado dela ainda que este lhe seja inconveniente naquele momento A narrativa assinala outra possível associação à imagem da luz quando o marido regressa a esposa vê sua silhueta a cavalo recortada contra a luz que lanhava em sangue o horizonte 1997 p103 Da parte dele há uma dupla solicitação a do amor e a da guerra Apeou o marido Mas só com um braço rodeoulhe os ombros A outra mão pousou na empunhadura da espada Nem fez menção de encaminharse para a casa 1997 p103 O dever se impõe à personagem masculina que por isso afirma Deixeme fazer o que tem de ser feito mulher 1997 p104 Não resta alternativa à esposa senão obedecer talvez compreendendo as premências dele A esposa carece de alimentar o A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 69 vínculo com o marido distante tentando mantêlo ligado a ela o que efetivamente consegue interfere porém na necessidade que ele tem de se dedicar à guerra A partir do pedido do marido nenhuma luz foi acesa nem no exterior nem no interior da casa Como Penélope sem pretendentes a lhe importunarem a mulher aguarda por longo tempo o retorno do esposo No escuro as noites se consumiam rápidas E com elas carregavam os dias que a mulher nem contava Sem saber ao certo quanto tempo havia passado ela sabia porém que era tanto 1997 p104 Finalmente isso acontece O narrador nos oferece a descrição de um homem alquebrado pelo período em que estava na guerra a pé cabeça baixa o contorno dos ombros cansados a barba no rosto silhueta desenhada na última luz do horizonte sem a marca do sangue avançando devagar Contorno doce sem couraça 1997 p104 Agora que a personagem veio para ficar não precisa mais da couraça que da vez anterior impedira a troca de carinhos com a esposa Encostou a mão no peito do marido mas seu coração parecia distante protegido pelo couro da couraça 1997 p104 A proteção se fez necessária a fim de que ele não cedesse aos apelos mudos daquela com quem estabelece sintonia e de quem precisava se afastar fisicamente naquele momento Acesa novamente a chama da lanterna agora por ele a porta da casa é fechada após a sua entrada com a esposa A luz volta a brilhar ainda que a noite não tenha chegado Observase neste conto o arquétipo de Hera a esposa que deseja acima de tudo a presença do marido a seu lado aguardando ansiosa seu retorno Esse é o objetivo de vida que a caracteriza o vínculo com o ser amado O arquétipo de Hera primeiro e antes de tudo representa o desejo ardente de ser esposa A mulher como forte arquétipo de Hera sentese fundamentalmente incompleta sem um companheiro BOLEN 2005 p203 Com o marido ausente a José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 70 protagonista tem sua atenção voltada para a lanterna que acende toda noite Quando ele retorna da primeira vez A mulher nada disse Nada pediu Encostou a mão no peito do marido 1997 p104 numa nítida atitude de silêncio e submissão Quando ele parte novamente sua casa mergulha nas trevas o tempo passa sem que ela se dê conta O papel de esposa confere um senso de significado e identidade às mulheres do tipo Hera O arquétipo de Hera proporciona a capacidade de se estabelecer elo de ser leal e fiel de suportar e passar pelas dificuldades com companheiro Quando Hera é a força motivadora o compromisso da mulher não é condicional Uma vez casada propõe se a permanecer assim para melhor ou para pior BOLEN 2005 p 205 A personagem masculina define sua conduta em princípio pelo arquétipo de Zeus apesar do amor que tem à esposa seu dever de cavaleiro de guerreiro comanda e orienta sua ação Há porém um outro deus filho de Zeus que ilumina a atuação masculina no conto Ares para os gregos ou Marte para os romanos é o deus da guerra A configuração desse deus é ambivalente é desprestigiado pelos gregos que identificavam nele o descontrole bélico a irracionalidade e a sede de sangue enquanto os romanos o veneravam como protetor da comunidade e pai dos gêmeos fundadores de Roma Rômulo e Remo Apesar de toda a agressividade inerente às funções guerreiras Ares ou Marte distinguese por ser o amante mais famoso de Afrodite ou Vênus a deusa da beleza e do amor Em algumas genealogias Eros ou Cupido é filho dessa união Referindose a Ares e Afrodite Bolen assinala que Esse dois amantes tiveram uma longa história em comum naquele que foi o mais estreito elo de compromisso entre os olímpicos 2002 p281 acrescentando que Ares era pai de sentimentos intensos que agia em defesa dos filhos 2002 p282 A A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 71 escritora destaca a importância da emoção na conduta de Ares sobressaindo as qualidades de coração grandioso e coragem O arquétipo de Ares como o deus está presente nas reações intensas e apaixonadas Com Ares um surto de emoção provavelmente mobiliza uma ação física imediata Esse é arquétipo reativo de tipo aquiagora No entanto quando a ira e a raiva aparecem ele reage de maneira instintiva e muitas vezes entra em situações que o prejudicam e causam danos aos outros BOLEN 2002 p284 O marido é comandado pela emoção e pela sensibilidade tanto que percebe o apelo da esposa Precisa porém sufocar a atenção a ela pela necessidade da guerra o que lhe diz de forma quase ríspida O afeto precisa ser tolhido pela couraça que o impede de se aproximar dela Há a interdição ao desejo que desabrocha ao final do conto luz que ilumina internamente a despeito do momento se dia ou noite Aflora o arquétipo do amante a acender ele mesmo a chama do amor e a cerrar a porta da casa isolando o casal na reclusão do ninho A luz da lanterna assinala a sintonia que existe entre eles marido e mulher luz tão forte que o impede de dormir de se desligar da vida e do amor Dois dos três significados do casamento são a satisfação de uma necessidade interior de ser cônjuge e um reconhecimento exterior entre o marido e a esposa O arquétipo do matrimônio também é expresso num terceiro nível místico como luta pela totalidade através de matrimônio sagrado BOLEN 2005 p 205 Quando acontece o matrimônio sagrado a experiência é considerada numinosa José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 72 A mulher ramada O conto A Mulher Ramada 1982 p2328 apresentanos inicialmente a figura feminina transfigurada na imagem da roseira constantemente definida em seu perfil pelo jardineiro A origem do plantio da árvore remonta à solidão dessa personagem masculina cuja insignificância social é assinalada na narrativa ninguém o via quando passava pelo jardim ou sequer o ouvia quando murmurava algo Sua vida sua imagem confundiase quase com suas plantas mimetizavase com as estações 1982 p23 A solidão levao a buscar companheira tal qual Adão no Paraíso Duas mudas de rosa ele planta com cuidados amorosos aguardando o tempo necessário para que elas brotem Pacientemente então vai podando os galhos entrelaçandoos até que eles adquirem o formato por ele desejado Rosamulher é o nome com que batiza sua mulher ramada a quem acompanha e visita com desvelos de amante ao longo das mudanças das estações do ano Agora levantando a cabeça do trabalho não procurava mais a distância Voltavase para ela sorria contava o longo silêncio de sua vida E quando o vento batia no jardim agitando os braços verdes movendo a cintura ele todo se sentia vergar de amor como se o vento o agitasse por dentro 1982 p24 Observase que a seiva percorre aquele corpo vegetal fazendo o desabrochar Há porém um criador modelando esculpindo podando impedindo Rosamulher de crescer livre das amarras idealizantes de perfeição que a priori aprisionam o ser a um modelo que lhe é exterior erigido pela paixão que segundo a própria escritora significa um processo de enamoramento Tomados pela paixão vemos o outro como simplesmente perfeito e não aceitamos A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 73 outras visões 1987 p19 A chegada da primavera significa a explosão da energia de vida Mas enquanto todos os arbustos se enfeitavam de flores nem uma só gota de vermelho brilhava no corpo da roseira Nua obedecia ao esforço do seu jardineiro que temendo viesse a floração romper tanta beleza cortava rente os botões De tanto contrariar a primavera adoeceu porém o jardineiro E ardendo em amor e febre na cama inutilmente chamou por sua amada COLASANTI 1982 p25 O narrador assinala a docilidade da árvore que se rende e se submete à imagem imposta apesar da resistência nos botões que nascem O esforço de agir contra a natureza de moldar o outro a seu prazer tem o preço da doença o que favorece a solidão e a introspecção de certa forma a entrada no mundo de Hades Recuperado o jardineiro retorna ao jardim e percebe o que sua ausência causara Ainda que modelada pelo jardineiro a roseira negase a ser mero objeto do desejo do outro e floresce Embaralhandose aos cabelos desfazendo a curva da testa uma rosa embabadava suas pétalas entre os olhos da mulher E já outra no seio despontava 1982 p25 A perfeição da figura desenhada se perdera mas do seu amor nada se perdia Florida pareceulhe ainda mais linda Nunca Rosamulher fora tão rosa E seu coração de jardineiro soube que nunca mais teria coragem de podála Nem mesmo para mantêla presa em seu desenho 1982 p2627 Instalase o amor onde antes era paixão Se de início a roseira assinala a submissão feminina às mãos masculinas uma vez quebrado o jugo ainda que perpetrado em nome do amor desabrocha Rosamulher em plenitude de ser Nunca Rosamulher fora tão rosa A transformação é registrada no nível do discurso recuperada a identidade feminina graças ao interregno de liberdade concedido devido à doença do jardineiro a roseira passa de José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 74 Rosamulher a mulherrosa A ênfase é dada ao substantivo mulher como no título assinalando a condição de que ela passa a gozar O jardineiro por sua vez admira a inteireza daquele ser que não admite mais mutilação Se anteriormente ele modelava a roseira mulher a seu prazer motivado pela paixão a uma imagem do feminino agora se depara com a força criadora desse feminino É o amor que desabrocha no respeito ao outro É o jardineiro que cede e se entrega Então docemente a abraçou descansando a cabeça no seu ombro E esperou E sentindo sua espera a mulherrosa começou a brotar lançando galhos abrindo folhas envolvendoo em bo tões casulo de flores e perfumes Ao longe raras damas surpreenderamse com o súbito esplendor da roseira Um cavaleiro reteve seu cavalo Por um instante pararam atraídos Depois voltaram a cabeça e a atenção retomando seus caminhos Sem perceber debaixo das flores o estreito abraço dos a mantes 1982 p2728 Neste conto a personagem feminina exemplifica inicialmente o arquétipo das deusas vulneráveis submissa ao poder masculino à tesoura ilustrando uma dependência quase filial O jardineiro artífice mostrase qual Pigmalião encantado diante de sua própria criação apaixonado por sua própria idéia vivificada na imagem que havia esculpido na roseira Ao experimentar porém a força transformadora da primavera após o inverno que se associa à morte a agora mulherrosa floresce o exercício de poder que até então marcara as atitudes do jardineiro para com a roseira dá lugar à entrega amorosa Rosamulher remete ao arquétipo de Perséfone a filha de Deméter raptada e violentada por Hades com quem passa a conviver um terço do ano após a mãe ter conseguido que a filha lhe fosse devolvida caso Perséfone nada tivesse comido no Inferno na A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 75 companhia de Hades ela teria se libertado inteiramente dele como aceitou comer sementes de romã precisava retornar A deusa Perséfone Prosérpina ou Coré para os romanos assinala uma ambivalência Foi adorada de dois modos como a jovem ou Core que significa garota jovem ou como Rainha do Inferno BOLEN 2005 p275 Como jovem é bela e esbelta associada a símbolos que indicam fertilidade é filha como rainha é uma deusa experiente que reina sobre os mortos guia os vivos que visitam o mundo das trevas e pede para si o que deseja BOLEN 2005 p275 Tal como Perséfone Rosamulher é violentada no espaço em que vai reinar assinalando seu crescimento e maturidade livre floresce Perséfone é juventude vitalidade e potencial para novo crescimento BOLEN 2005 p284 terminando por abarcar o companheiro em um abraço que o afasta da realidade circundante metáfora do reino de Hades a terra dos mortos geralmente associado ao inconsciente à loucura O jardineiro parece exercitar inicialmente o arquétipo de Zeus o deus pai organizador do universo detentor do poder que racionalmente impõe a ordem mas é Hefesto o deus artífice quem se manifesta no tipo de configuração e no comportamento da personagem masculina Hefesto como deus arquétipo e homem personifica a ânsia humana profunda de fazer coisas criar objetos que sejam funcionais e belos Rejeitado e expulso do monte Olimpo Hefesto não era valorizado no elevado reino de Zeus em que importavam o poder e a aparência Em vez disso trabalhava sozinho em sua forja no fundo da terra Seus atributos são igualmente desvalorizados pela cultura patriarcal e os homens que lembram esse deus têm dificuldades em obter sucesso BOLEN 2002 p317 A genealogia de Hefesto caracterizao como o deus artesão inventivo do Olimpo BOLEN 2002 p319 e seu arquétipo remete José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 76 ao trabalho criativo à capacidade de transformar a matéria bruta em obra de arte A invisibilidade social a criatividade a preocupação com a beleza e a perfeição são traços do jardineiro Como ele é atribuída a Hefesto na Teogonia de Hesíodo a criação de Pandora uma bela mulher modelada segunda as deusas imortais Além dela o deus fez para si mesmo servas de ouro verdadeiras obrasprimas de seu gênio que pareciam lindas mulheres capazes de falar e que faziam habilidosamente tudo o que ele lhes ordenava BOLEN 2002 p320 Hefesto é também o deus solitário que trabalhava nas forjas modelando os objetos graças ao fogo dos vulcões serralheiro dos deuses olímpicos confeccionou belas jóias palácios e tronos além dos raios com que Zeus venceu os gigantes Era considerado o deus do fogo subterrâneo que é metáfora para sentimentos apaixonados para o intenso fogo sexual e erótico contido no âmago do corpo até que seja expresso para a ira e a raiva contidas e amortecidas ou para uma paixão pela beleza que se agita e é percebida no corpo ou a terra da pessoa BOLEN 2002 p322 Apesar de feio e coxo casouse com Afrodite e com Caris ou Graça respectivamente na Odisséia e na Ilíada ambas de Homero na Teogonia foi marido de Aglea a mais nova das Graças A união de Hefesto com essas divindades assinala o casamento entre a beleza ou a graça e a habilidade de confeccionar objetos BOLEN 2002 p326 o que conduz à arte No conto de Colasanti o jardineiro vive isolado até que uma dor de solidão começou a enraizarse no seu peito p23 verbo que remete ao seu trabalho corpoterra Como Hefesto ele cria atento aos mínimos detalhes e de forma apaixonada sua própria companheira a quem atribui beleza e graça E aos poucos entre suas mãos o arbusto foi tomando feitio fazendo surgir dos pés plantados no gramado A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 77 duas lindas pernas depois o ventre os seios os gentis braços da mulher que seria sua Por último o cuidado maior a cabeça levemente inclinada para o lado O jardineiro ainda deu os últimos retoques com a ponta da tesoura Ajeitou o cabelo arredondou a curva de um joelho Depois afastandose para olhar murmurou en cantado Bom dia Rosamulher COLASANTI 1982 p24 A narrativa efetivamente remete à história de Pigmalião rei de Chipre Rejeitando as mulheres da ilha por apresentarem uma atitude em sua opinião libertina Pigmalião esculpe uma estátua que representa a mulher ideal perfeita em beleza e pudor Afrodite dá vida à estátua com quem o rei se casa e vem a ter um filho a estátua de Galatéia feita por Pigmalião foi transformada em mulher verdadeira com vida através do amor BOLEN 2005 p320 graças à influência de Afrodite Se de início o jardineiro define o outro a partir de suas expectativas tal qual Hefesto e Pigmalião depois se entrega à força do outro que transcende os limites anteriormente impostos Ele não se furta à experiência plena de amor ao outro e com o outro Abdica da posição de criador para se entregar à criatura não a mulher que foi desenhada por ele mero manequim mas a que brotou em sua essência de vida desabrochando em sua liberdade de ser O estreito abraço dos amantes debaixo das flores atualiza o mito do andrógino de Platão recuperando a unidade através da fusão com o outro completude amorosa reconquistada O moço que não tinha nome Era um moço que não tinha nome Nem nunca tinha tido Um moço que não tendo nome também não tinha rosto COLASANTI 1997 p25 Dessa forma surpreendente iniciase o conto op cit José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 78 p2528 já de chofre seduzindo o leitor para o restante da narrativa Há uma situação insólita que se configura pela ausência de um nome e de um rosto levando a personagem a uma busca por sua identidade A procura se desenvolve através do encontro com o outro estabelecendo porém uma relação especular sendo chamado por alguém quando se aproximava quem o tinha chamado via em lugar do rosto dele seu próprio rosto refletido como num espelho E enchiase de espanto Idem p25 Ele por não possuir uma identidade visivelmente estruturada não pode oferecer o que não possui Por sua vez o outro só vê a si mesmo no encontro com o moço não há conhecimento nem troca o outro vê um prolongamento do próprio eu que não sai de sua visão narcísica encontro esvaziado de sentido A visão no espelho é ameaçadora e poucos conseguem sustentála Aqueles que se viam na ausência de rosto do moço enchiamse de espanto Era muita ausência para ele carregar Idem ibidem mas mesmo assim o protagonista espera crescer para sair em busca do rosto que acredita estar em alguma parte do mundo O peso da falta de uma identidade própria de se sentir singular é o que gera a errância dele por espaços exteriores como se em algum lugar desconhecido estivesse guardada a sua face Nosso herói empreende a viagem elemento invariante assinalado por Propp na análise estrutural de contos maravilhosos a saída de casa ou do espaço conhecido é ação necessária ao amadurecimento Em primeiro lugar no conto a procura se dá através da arte que expressa um fazer criativo humano O moço examinou quadros tapeçarias esculturas pinturas e bordados tudo inutilmente A viagem contínua que empreende à procura de seu rosto assinala uma travessia e uma peregrinação As cidades e as pessoas se sucedem nessa busca sem que ele encontre o que deseja mas sem que também desista A palavra travessia remete à idéia de A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 79 deslocamento e à de vida como trajetória dinamismo Peregrinação a uma longa e exaustiva jornada que se assemelha aos ritos de iniciação CHEVALIER GHEERRANT 2002 p709 As experiências vão trazendo um acúmulo de vivências ao herói que constrói sua história A procura tece um caminho O encontro com o que busca com tanto afinco será inevitável Pela primeira vez o moço não se aproxima de alguém visando a satisfazer a sua carência de um rosto A aproximação acontece porque ele olha e percebe a necessidade do outro aproximação solidária E nesse caminho um dia encontrou a moça que volta va da fonte Ia tão atenta para não entornar o cântaro equilibrado no alto da cabeça que nem o viu chegar pela trilha E quando ele se aproximou oferecendose para carregar o cântaro foi com surpresa agradecida que encarou o rosto vazio Mais do que com espanto COLASANTI 1997 p26 A personagem masculina deixa nesse momento a centralidade em si mesma para penhorar ajuda A moça vem da fonte ele simbolicamente busca a fonte Ela é portadora da água cujo simbolismo na visão de Chevalier e Gheerbrant podem reduzirse a três temas dominantes fonte de vida meio de purificação centro de regenerescência 2002 p14 A reação da moça assinala o quanto ela não estava acostumada a receber ajuda o sentimento que nela se instala diante da falta de rosto dele vem imerso na gratidão não há espanto rejeição ou repulsa Buscar água na fonte é uma das ações mais antigas da mulher já registradas na Bíblia A fonte associase à fecundação às origens não só da vida como da força da graça da felicidade Analisando a presença da fonte nas cantigas de amigo Stephen Reckert destaca Que o encontro amoroso naquele sítio pertence ao patrimônio comum românico e Que a fonte mágica da juventude do amor da José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 80 fecundidade e da vida é uma herança popular ainda mais universal sd p103 É focalizada também como fonte do conhecimento evocando o inconsciente É esse mesmo simbolismo da fonte como arquétipo que Jung traduz considerandoa uma imagem da alma como origem da vida interior e da energia espiritual CHEVALIER GHEERBRANT 2002 p446 Todas as imagens que dão sentido à fonte apontam para a moça que vai se configurar fonte de vida para o moço Ele estabelece uma rotina e a disciplina da rotina ajuda a construir um referencial para a existência cultivando um sentido de ser GIDDENS 2002 p42 indo esperála todos os dias oferecese para carregar o cântaro abdicando da busca desenfreada em que se encontrava A moça abrese à ajuda do outro e ao aceitá la permite que o cântaro passe às mãos do rapaz partilhando trabalho e produto a água Os encontros se sucedem na fonte assinalando a necessidade de se construir um relacionamento no tempo marcado na narrativa pelo presente no advérbio de tempo pelo imperfeito do indicativo que assegura a continuidade da ação pelo gerúndio Agora já se demoravam sentados à beira da nascente conversando sem pressa enquanto o tempo escorria junto com o regato 1997 p27 A referência à nascente reitera as idéias ligadas à fonte à origem A identidade se constrói através das trocas efetivadas no encontro com o outro a cada novo encontro ela olhava os próprios olhos refletidos nele e os via ficarem mais brilhantes olhava sua boca e só lhe via sorrisos 1997 p27 Há uma transformação nela que se opera através desses encontros ela não apenas se vê nele mas transformase por e com ele O indivíduo não é um ser que de repente encontra outros a descoberta do outro de modo cognitivo emocional é de importânciachave no desenvolvimento inicial da autoconsciência como tal GIDDENS 2002 p53 A ausência do A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 81 rosto deixa de ser significativa com a convivência pois o Moço tinha tantas coisas para contar tanta doçura na voz que ela passou a achálo mais e mais bonito 1997 p27 Ainda que não tenha um rosto uma identidade o moço já tem uma história sendo capaz de articular uma narrativa portanto uma biografia A identidade de uma pessoa não se encontra no comportamento por mais importante que seja nas reações do outro mas na capacidade de manter em andamento uma narrativa particular GIDDENS op cit p5556 expressando continuidade biográfica que é fruto de uma captação reflexiva passível de ser comunicada a outrem A aparência a imagem vai cedendo espaço à essência de ser A convivência instaura o conhecimento e o amor Se o sentimento da paixão corresponde ao início do relacionamento talvez à primavera na narrativa aproximase a estação fria e com a chegada do inverno não haveria água para buscar a moça não teria mais desculpa para sair de casa COLASANTI 1997 p28 O inverno assinala o tempo das dificuldades sendo também o momento de definir aquela relação ou ela sucumbe frente às adversidades ou se consolida em amor Mas naquela manhã em que as beiradas do regato co meçavam a fazerse de cristal o medo de perder o mo ço atravessoua como um vento Quis retêlo chamá lo Em ânsia estendeulhe as mãos E quase se sentir num sopro Amado Foi o nome que lhe deu Ondejou seu reflexo no rosto do moço Lentamente seus espelhados perderam a nitidez desfezse o con torno dos lábios Naquele vazio só restava uma névoa E na névoa trazidos de longe pelo chamado de um nome começaram a aflorar duas sobrancelhas espes sas depois a aresta de um nariz a sólida linha de um queixo a ampla testa Traços cada vez mais nítidos desenhando o rosto enfim encontrado Pingentes de gelo formavamse nas folhas Adensa vamse as nuvens Mas ele o homem que agora tinha rosto e nome sorria como um sol 1997 p28 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 82 O amor é o sentimento que permite ao outro ser o que verdadeiramente é afastando máscaras e fingimentos Toda a concretização erótica tem por princípio uma destruição da estrutura do ser fechado que é no estado normal um parceiro do jogo A ação decisiva é o desnudamento BATAILLE 1987 p17 O desnudamento significa a retirada das máscaras para que se possa estabelecer uma proximidade entre a aparência e a verdade do ser A própria escritora distinguindo afeto de amor e paixão explica que o amor exige um rosto e bem definido já que sua característica principal é concentrarse num único objeto Há no amor a intenção de perenidade Eu diria que o amor pensa que é reflexivo E que enxerga ou quer enxergar o outro em sua realidade individual COLASANTI 1987 p18 A figura feminina é a portadora do sentido da vida construído através do amor é ela quem enuncia a palavra mágica que tudo modifica Amado Na proposição arquetípica de Jean Bolen ela configura o exercício Afrodite a deusa alquímica que simboliza o poder transformativo e criativo do amor 2005 p310 A jovem do conto aparece sozinha na fonte mas seu comportamento não a aproxima das deusas invulneráveis é com agradável surpresa que aceita a ajuda recebida sem a marca da independência e da auto suficiência que caracteriza essas deusas Tampouco parece expressar as deusas vulneráveis frágeis e dependentes da relação com o outro O que ocorre neste conto é um processo gradativo de conhecimento e comunhão o ápice é a revelação verbal do significado do outro e da relação através da percepção e da voz dela voz doadora de sentidos Sobre Afrodite Bolen destaca a capacidade de ser receptiva ao outro e de vivenciar sentimentos mútuos amando e sendo amada sem o distanciamento típico das deusas invulneráveis ou a vitimização das vulneráveis ela valorizava mais a experiência emocional com o outro que a independência ou a permanência A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 83 duradoura do vínculo A vivência Afrodite abarca não só a vontade de ficar junto como um impulso mais profundo em direção à inteireza do outro conhecer é compreender realmente um ao outro O desejo de conhecer e de ser conhecido é o que gera Afrodite BOLEN 2005 p311 expressando o interesse acolhedor pelo objeto daquele sentimento percebido em sua singularidade O amor associase ao altruísmo visa à felicidade do outro e significa uma interpenetração psíquica e afetiva tal a que acontece entre a moça da fonte e o moço O moço que não tinha nome nem rosto longe está das configurações celebradas pela sociedade patriarcal cujo poder exemplificase em Zeus Talvez essa personagem assinale uma identidade masculina em crise buscando novas representações concedidas pelo feminino A personagem lembra o arquétipo de Dioniso deus ambivalente o deus do mais abençoado dos êxtases e do amor mais enlevado Walter Otto Apud BOLEN 2003 p362 associado ao reino místico e ao mundo feminino mas também à loucura à violência à tragédia que não se coadunam à personagem masculina do conto O arquétipo ligase à dualidade marcada por oposições intensas como o êxtase e o horror o amor e a destruição violenta porém Quando uma qualidade extática permeia a relação sexual e existe a sensação de comunhão o amor é feito no templo de Dioniso BOLEN 2002 p419 Essa comunhão existe entre as personagens principais do conto A escritora que vem norteando o trabalho com os arquétipos Jean Bolen discorre sobre um deus que falta entre os olímpicos o filho de Métis e Zeus cujo nascimento foi previsto e que devia suplantar seu pai Zeus e passar a reger com o coração compassivo Para que ele nasça Métis a sabedoria feminina teria de emergir mais uma vez na cultura ocidental e em nossas consciências 2002 p422 Acrescenta a autora José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 84 Nos mitos contemporâneos como na mitologia grega Métis sabedoria feminina está ausente mas seus valores que enfatizam a afiliação com os outros e a vinculação com a terra e todas as formas de vida estão emergindo E quando os homens e as mulheres refazem sua ligação com a sabedoria feminina como está acontecendo agora com muitas delas refazemos a ligação com um genitor que faltava e encontramos o deus que estava perdido dentro de nós Minha impressão é que todos nós chegamos a este mundo como crianças que querem amor e se não obtemos amor concordamos em ter poder Quando nos lembramos de Métis lembramos que o amor é aquilo que o tempo todo estávamos querendo BOLEN 2002 p435 O conto de Marina Colasanti apresenta a configuração da identidade através do amor o amor passa a ser o princípio regente em nossa psique BOLEN 2002 p436 quando norteamos nossas escolhas e ações pela sabedoria e pelo amor ao invés de priorizar o poder o controle a posição social a imagem pessoal A personagem masculina representa simbolicamente o novo homem contemporâneo perdido em sua identidade face às mudanças ocorridas na sociedade e na cultura identidade construída no diálogo com o feminino e não mais a despeito dele ou subjugandoo corresponde a um novo arquétipo do masculino O final da narrativa traz a imagem do sol símbolo da vida e da consciência Na narrativa ele o homem que agora tinha rosto e nome sorria como um sol 1997 p28 apesar do inverno que chega A experiência de amor permite a bemaventurança de ser sentir pleno expressa na alegria que desponta no sorriso dele na luz e no calor que ele passa a irradiar através da comparação com o sol CONCLUSÃO A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 85 Os contos de Marina Colasanti delineiam de forma diferente personagens masculinas e femininas ainda que se perceba a idéia de completude entre elas As figuras masculinas orientamse na maioria das narrativas por um princípio ordenador racional é Zeus quem ainda aflora A passagem para uma configuração mais emocional irrompe no contato com o feminino as amadas são as artífices da completude masculina no sentido de oferecer a experiência da emoção permitindo o desenvolvimento pleno de ser A figura feminina evidencia um perfil que também se coaduna em princípio à submissão exigida às mulheres culminando no exercício Afrodite que aponta para a construção de autonomia Para Bauman os agentes são autônomos quando formulam as regras que guiam seu comportamento e estabelecem o leque de alternativas que podem perfilar e examinar ao tomar suas grandes e pequenas decisões 2000 p85 por outro lado toda ausência de liberdade significa heteronomia isto é uma situação em que seguimos regras e comandos impostos por outros uma condição agenciada na qual a pessoa que age o faz por vontade de outra 2000 p85 Para a própria escritora que participou da luta da mulher por um espaço de igualdade em relação aos privilégios já consolidados aos homens em uma sociedade patriarcal independência é a condição de não depender de não ser tutelada de ser dona das próprias decisões de ser autônoma COLASANTI 1980 p13 o que implica poder de escolha Por outro lado é preciso um grau elevado de consciência para que a escolha reflita a verdade do ser Erich Fromm sugere que as relações humanas amorosas obedecem aos mesmos padrões utilitários que norteiam o mercado de trabalho e de consumo O homem moderno é alienado de si mesmo de seus semelhantes e da natureza Transformouse num artigo experimenta suas forças de vida como um investimento que lhe deva produzir o máximo lucro José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 86 alcançável sob as condições de mercado existentes 1986 p116 A palavra alienação do latim alienare alienus significa etimologicamente tornarse estranho a si próprio não vivenciando plena e profundamente sentimentos e ações Nessa circunstância o ser humano é reduzido à condição de autômato alienado sem desenvolver sua própria autonomia interna Como autômato não pode efetivamente amar persistindo justamente por isso o sentimento de solidão Nossa civilização oferece muitos paliativos que ajudam as pessoas a se tornarem conscientemente inconscientes dessa solidão antes de tudo a estreita rotina de trabalho mecânico burocratizado que as auxilia a permanecerem sem conhecimento de seus desejos humanos mais fundamentais da aspiração da transcendência e unidade Como a rotina por si só não o consegue o homem supera seu desespero inconsciente através da rotina da diversão do consumo passivo de sons e visões oferecidos pela indústria de divertimento e além disso pela satisfação de comprar sempre coisas novas e logo trocálas por outras A felicidade do homem hoje em dia consiste em divertirse E divertirse consiste na satisfação de consumir e obter artigo panoramas alimentos bebidas cigarros gente conferências livros filmes tudo é consumido engolido O mundo é um grande objeto de nosso apetite uma grande maçã uma grande garrafa um grande seio somos os sugadores os eternamente em expectativa os esperançosos e os eternamente decepcionados FROMM 1986 p117 Acredita Erich Fromm que a sociedade deve ser organizada de modo tal que a natureza social e amorosa do homem não se separe de sua existência social mas se unifique com ela Se o amor é a única resposta sadia e satisfatória ao pro blema da existência humana então qualquer sociedade que exclua relativamente o desenvolvimento do amor A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 87 deve no fim de contas perecer vitimada por sua pró pria contradição com as necessidades básicas da natu reza humana Ter fé na possibilidade do amor co mo fenômeno social e não apenas excepcional individual é uma fé racional baseada em penetração na própria natureza do homem 1986 p 170171 Em todos os contos vistos de Marina Colasanti há um deus que se faz simbolicamente presente e que no entanto não pertence à estruturação arquetípica formulada por Jean Bolen e retomada por Junito Brandão Eros o deus do amor Ele aparece no discurso de Sócrates em O Banquete de Platão como um daimon ser entre os mortais e os imortais força espiritual misteriosa de coesão É um mediador aproximando os seres cujo poder irradiador é tão violento que contamina erotiza todas as funções vitais Eros é percebido como uma grande força unificadora e gratificadora que preserva o viver batizando com seu nome as pulsões de vida Nos contos de Colasanti o amor é uma grande força de vida de descoberta associandose ao desvelar das verdades intrínsecas às personagens É o amor que fala mais alto na ação do Rei de intimar o amigo a se dar a conhecer retirando a máscara e na escolha da Princesa em abandonar a vida errante de guerreiro É ele que mantém unidos a esposa e o marido superando a separação e o tempo luz que ilumina as almas apesar do sopro do vento tentando apagar a chama É ele ainda que irrompe no abraço final da mulherrosa com o seu jardineiro resgatando a completude amorosa É o amor que une e confere identidade aos seres permitindo a consciência no convívio enriquecedor com o outro parceiro e não tutor É ele enfim o grande maestro dessa orquestra chamada vida de que faz parte a literatura onde mais facilmente se misturam a razão amorosa e a emoção amorosa REFERÊNCIAS José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 88 BATAILLE Georges O erotismo Porto Alegre LPM 1987 BAUMAN Zygmunt Em busca da política Rio de Janeiro Zahar 2000 BOLEN Jean As deusas e a mulher 7ed São Paulo Paulus 2005 Os deuses e o homem São Paulo Paulus 2002 BRANDÃO Junito de Souza Mitologia grega vI 17ed PetrópolisRJ Vozes 2002a Mitologia grega v II 10 ed PetrópolisRJ Vozes 1999 Mitologia grega v III 12 ed PetrópolisRJ Vozes 2002 COLASANTI Marina Entre a espada e a rosa Rio de Janeiro Sala mandra 1992 Longe como o meu querer São Paulo Ativa 1997 A nova mulher Rio de Janeiro Nórdica 1980 Doze reis e a moça no labirinto do vento São Paulo Círculo do Livro 1982 E por falar em amor 20 ed Rio de Janeiro Rocco 1987 Marina Colasanti y las metáforas del inconsciente Entrevista concedida a Sergio Andricaín y Antonio Orlando Rodríguez Cuatroga tos Revista de Literatura Infantil nº1 eneromarzo 2000 Online disponível na Internet via httpwwwcuatrogatosorgmarinahtml Arquivo consultado em 8 de junho de 2008 Entrevista Marina Colasanti 09 de junho de 2005 On line disponível na Internet via httpwwwrecordcombrentrevistaaspentrevista56 Arquivo consultado em 8 de junho de 2008 O que é poesia Entrevista a Cristiane Rogério Crescer Online Ed171 fev 2008 Online disponível na Internet via httprevistacrescerglobocomCrescer0 19125EFC1671753 567000html Arquivo consultado em 8 de junho de 2008 CHEVALIER Jean e GHEERBRANT Alain Dicionário de símbolos Rio de Janeiro José Olympio 2002 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 89 FRANZ MarieLouise Von O processo de individuação In JUNG Carl Gustav O homem e seus símbolos Rio de Janeiro Nova Fronteira 1977 FROMM Erich A arte de amar Belo Horizonte Itatiaia 1986 GIDDENS Anthony Modernidade e identidade Rio de Janeiro Jorge Zahar 2002 HARDING M Esther Os mistérios da mulher São Paulo Paulinas 1985 JUNG Carl Gustav O homem e seus símbolos Rio de Janeiro Nova Fronteira 1977 Os arquétipos e o inconsciente coletivo 5 ed PetrópolisRJ Vozes 2007 LAJOLO Marisa e ZILBERMAN Regina A literatura infantil brasileira História e histórias São Paulo Ática 1985 MICHELLI Regina Silva O masculino e o feminino em Marina Cola santi configurações encontros embates NITRINI Sandra et al A nais do XI Congresso Internacional da Associação Brasileira de Litera tura Comparada Tessituras Interações Convergências São Paulo ABRALIC 2008 ebook p111 Disponível em httpwwwabralicorgbrcong2008AnaisOnlinesimposiospdf073 REGINAMICHELLIpdf MONTEIRO Dulcinéa da Mata Ribeiro Mulher feminino plural mito logia história e psicanálise Rio de Janeiro Record Rosa dos Tem pos 1998 MOORE Robert GILLETTE Douglas Rei guerreiro mago amante Rio de Janeiro Campus 1993 PLATÃO Diálogos Menon Banquete Fedro Rio de Janeiro Ediou ro sd PROPP Wladimir Morfologia do conto Lisboa Vega 2003 RECKERT Stephen e MACEDO Helder Do cancioneiro de amigo Lis boa Assírio Alvim sd José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 90 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 MEMÓRIAS DE EMÍLIA DE MONTEIRO LOBATO UMA REFLEXÃO SOBRE A LINGUAGEM Eliane Santana Dias Debus ONDE SE FALA DA ESCOLHA DO TEMA E SE APRESENTA OS CAMINHOS DA ESCRITA A escolha de uma temática de reflexão na maioria das vezes resulta de uma interpretação prévia inspirada por nosso interesse atual STAROBISNKI 1976 p 133 a produção literária de Monteiro Lobato 18821948 tem sido foco de meus estudos nos últimos dez anos principalmente no que diz respeito a recepção de seus livros infantis através da relação estabelecida com os leitores pelas cartas A opção pelo título Memórias de Emília 1936 devese a discussão sobre os processos da cultura da escrita os meandros da construção da palavra escrita a arquitetura do texto diferentes modos de escrever imprimem formas diversas de ler Este parece ser o título que discute mais a fundo as questões referentes à utilização da língua quer seja a falada quer seja a escrita se lembrarmos que ele faz parte de um conjunto de narrativas desenvolvidas por Monteiro Lobato na década de 1930 que focalizam o ensino da Língua são eles Emília no País da Gramática 1934 que explicitamente traz discussões sobre a gramática normativa e a rigidez dos estudos sobre os fatos da língua padrão e Dom Quixote das crianças 1936 em que tece considerações sobre a leitura suporte faixa etária adaptação etc Ao ler Memórias da Emília investigase como o escritor introduz em seu texto o discurso sobre a cultura escrita em especial o Ensino da Língua Portuguesa isto é como se anuncia no discurso de Monteiro Lobato uma metodologia e uma prática de ensino da Língua na atitude professoral de Emília que exerce o papel de mestre de um 91 ser celestial o anjo Flor das Alturas na forma como o escritor estrutura a sua narrativa bem como focalizar a intenção do escritor de introduzir uma visão renovadora de escola e das coisas da Língua a um público leitor específico a criança apresentando uma concepção de infância diversa da sua época mas tão cheia de agoras A concepção de linguagem de Monteiro Lobato é muito próxima do que é desenvolvida pelo pensador Russo Mikhail Bakhtin 1895 1975 isto é a Língua é vista como interação dialógica entre interlocutores a partir do seu uso social por este viés os seus estudos estarão em profícuo diálogo na tessitura desta produção ONDE SE BUSCA APRESENTAR OS DISCURSOS DE MONTEIRO LOBATO SOBRE AS COISAS DA LÍNGUA Parece que o segredo de escrever e ser lido está em duas coisas ter talento de verda de e escrever com a maior aproximação possível da língua falada sem perder por tanto nenhum dos farelinhos ou sujeirinhas da vida pois é aí que se escondem as vita minas do misterioso e perturbador que das verdadeiras obras darte LOBATO 1951 p57 As palavras de Monteiro Lobato para analisar o discurso do outro parecemnos indicar o segredo de seu próprio fazer literário o tratamento dado à língua Língua vista como dupla a falada e a escrita Para Lobato a falada é que é a grande coisa pois que é o meio de comunicação entre todas as criaturas humanas afora as mudas A língua escrita veio depois e é coisa restritíssima LOBATO Op Cit 49 A língua falada tem cheiros sabores e cores um arco irís inteirinho segundo o autor A língua escrita ao contrário dos elogios à oral é criticada principalmente por ser produzida dum modo tão requintado tão sublimado tão empoleirado que ler a maioria das coisas existentes José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 92 se torna um perfeito traduzir e isso cansa Op Cit p44 Cansar todavia parece ser um vocábulo inexistente no dicionário de Lobato que apresenta a possibilidade do texto literário mascarar a escrita aproximandose o máximo possível da oralidade travestindo a língua escrita em língua falada com todos os seus farelinhos e vitaminas Sua preocupação constante com o estilo o vocabulário e a linguagem marcam a sua produção literária para a infância Transparente com clara de ovo ou clara como água de pote era assim que o escritor queria que fosse a sua linguagem escrita acreditando que a aproximação do seu público leitor exigia um discurso elaborado e cuidadoso sem necessidade no entanto de empoleirar a linguagem Se visitarmos os seus escritos cartas prefácios entrevistas e textos literários perceberemos um constante retomar criticamente os aspectos referentes a linguagem como pode ser observado na ironia mordaz na representação da personagem Aldrovando Cantagalo que nasceu e morreu vitimado de um erro gramatical pronomismo crônico em seu conto O colocador de pronomes LOBATO 1950 No seu discurso teórico seu embate principal é quanto à acentuação das palavras e às reformas ortográficas Em entrevista para o segundo número do jornal Voz da Infância publicação da Biblioteca Infantil Municipal de São Paulo os repórteres Benedito Mendes e Gastão Gorenstein ambos de 12 anos de idade apresentamse com a formalidade que julgavam necessárias usando termos como a subida honra ilustre amigo das crianças insigne homem de letras ao que Lobato interrompe Não fale complicado assim que eu não entendo Fale como você fala em sua casa com sua mãe ou seu pai fale sem gramáticas como se estivesse no recreio contando um caso para os companheiros VOZ DA INFÂNCIA 1936 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 93 Os dois meninos depois de colherem do entrevistado uma biografia nada padronizada solicitam sua opinião sobre a ortografia e sua preferência na época discutiase a reforma ortográfica E para surpresa ele diz que prefere a sua própria ortografia despertando a curiosidade dos pequenos em particular se a ortografia lobatiana era diferente da atual e se possuía algo de especial É e não é Não é porque é a da Academia de Letras e é especial porque suprimi os acentos Acho a maior burrice do mundo estar acentuando palavras que até aqui viveram perfeitamente sem essas bolostroquinhas irritantes dos acentos A palavra Emilia por exemplo Os acentistas escrevem Emília Mas o acento só é ad missível para evitar confusão como em e e é Ora Emilia sem acento não dá lugar a confusão nenhuma logo acentuar essa palavra que até aqui viveu muito bem sem acento é besteira VOZ DA INFÂNCIA 1936 Lobato compara a utilização do acento ao uso do lenço usar só quando se precisa A reforma da academia segundo ele é contraditória com o objetivo de simplificar a língua dando fim às letras dobradas e outras coisas acaba por inundar a língua de acentos ou bolostrocas uma das formas com que ele denominava o acento Ele relata a reação de Emília diante daquelas bolostroquinhas Naquele seu passeio pelo País da Gramática a pestinha teve um pega danado com a Velha Ortografia e escangalhoua E também varreu do tal país todos os acentos inúteis Botouos na lata de lixo Foi em vista dessa revolução emiliana que eu passei a escrever sem acentos Op Cit Para os dois meninos as informações não se processaram de forma pacificadora pois tinham diante de si o escritor admirado e ao mesmo tempo sua rebeldia diante daquilo que era ensinado na escola Ao argumentarem a posição do professor X a resposta de Lobato é mais perturbadora ainda E que tem que o professor X José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 94 diga que Ele vai dizendo e a gente vai fazendo como é sensato Op Cit Embora Lobato fosse um livre pensador sobre as coisas da língua estava comprometido como não poderia deixar de ser com a problemática editorial que uma reforma ortográfica pudesse causar Escreve então a Francisco Campos em carta de cinco de dezembro de 1937 governador de São Paulo representante político do Estado Novo refletindo sobre a nova reforma ortográfica e sua repercussão econômica em relação ao mercado editorial na medida em que a circulação pelo país de livros com a nova ortografia colocava os do período anterior no encalhe provocando um prejuízo sem monta no comércio livreiro Lobato ao mesmo tempo em que elucida o problema sugere dois caminhos ao governo indenizar os editores por meio da compra do estoque didático feito na velha ou estabelecer prazo talvez de dois anos em que seja facultativo às escolas utilizaremse desses livros LOBATO 1964 p 30 A questão referente à acentuação é abordada de forma prática Ele envia um livro infantil de sua autoria desacentuado para análise do político porque acredita que as crianças não vão sentir as pulguinhas suprimidas No caso específico das narrativas lobatianas destinadas ao público infantil percebese uma forte influência do pensamento escolanovista e sua estreita ligação com dois de seus integrantes Anísio Teixeira e Fernando Azevedo pois não podemos esquecer que o contato entre ambos foi intermediado por Monteiro Lobato E quando esse contato se realiza efetivamente pela confirmação de Fernando Azevedo Lobato reitera Quanto mais fundo o conheceres mais me agradecerás o terte revelado esse admirável irmão da grande irmandade Prevejo que do encontro de ambos bons frutos hão de surgir NUNES 1986 p10 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 95 Embora Monteiro Lobato tenha iniciado sua literatura para infância em 1920 com A menina do Narizinho Arrebitado e em 1930 já tinha 11 livros publicados acreditamos que todos passaram possivelmente por uma releitura quando da publicação de Reinações de Narizinho 1931 o que leva a crer que todos os títulos do autor estão compromissados com o que poderíamos chamar de um olhar novo sobre a Educação O desejo de romper com o ensino tradicional da língua e reavivála dentro de uma proposta que colocasse em foco as influências e as transformações oriundas das próprias mudanças cotidianas parece ser a grande sacada de Lobato nos anos 30 do século XX Como define em seu próprio texto cabe aos gramáticos estudar o comportamento da língua mas alterála somente o dono da língua isto é o povo Aos gramáticos o escritor dirige severa críticas tal fato fica latente na representação que faz deste em Emília no País da Gramática Os senhores gramáticos são uns sujeitos amigos de nomenclaturas revarbativas dessas que deixam as crianças velhas antes do tempo A cidade da língua costumava ser visitada apenas por uns velhos carrancas chamados filólogos ou então por gramáticos e dicionaristas gente que ganha a vida mexericando com as palavras levando o inventário de la etc LOBATO 1970 p 36 Essa postura acaba trazendo à tona um novo tratamento à infância pois esse leitor embora aprendendo e conhecendo a etimologia das palavras descobre as possibilidades de driblálas construindo novos significados De forma lúdica e prazerosa Lobato apresenta a possibilidade de aprendizagem da língua e de outros conteúdos escolares revestidos de colorido em especial a través dos livros destinados as crianças José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 96 Talvez a carta destinada ao amigo Oliveira Viana seja uma das que mais evidencia a sua preocupação em relação ao ensino e a crença de que a sua produção infantil era uma possibilidade de fugir a aridez com que os conteúdos escolares eram transmitidos às crianças Como se poderá perceber pelo recorte apresentado logo a seguir Lobato já havia socializado com o educador Baiano e recebido dele o aval para continuar esta produção mais do que isso as suas obras são acolhidas como uma metodologia de ensino A minha Emília está realmente um sucesso entre as cri anças e os professores Basta dizer que tirei uma edi ção inicial de 20000 e o Octales está com medo que não agüente o resto do ano Só aí no Rio 4000 vendi das no mês Mas a crítica de fato não percebeu a signi ficação da obra Vale como significação de que há ca minhos novos para o ensino da matéria abstrata Numa escola que visitei a criançada me rodeou com grandes festas e me pediram Faça a Emília do país da aritmé tica Esse pedido espontâneo esse grito dalma da cri ança não está indicando um caminho O livro como o temos tortura as pobres crianças e no entanto pode ria divertilas como a gramática da Emília o está fa zendo Todos os livros podiam tornarse uma pândega uma farra infantil A química a física a biologia a geo grafia prestam imensamente porque lidam com coisas concretas O mais difícil era a gramática e é a aritméti ca Fiz a primeira e vou tentar a segunda O resto fica canja O Anísio Teixeira acha que é toda uma nova me todologia que se abre Amém NUNES 1986 p 96 Monteiro Lobato demonstra uma inventividade transgressora em relação à elaboração da língua o que vem despertando a atenção de vários pesquisadores Entre muitos trabalhos acadêmicos podemos citar as dissertações de mestrado de Maria Teresa Gonçalves Pereira 1980 Laura Sandroni 1987 e Sueli Cagneti 1988 que de uma forma ou de outra destacam as renovações lingüísticas operadas por Lobato E é do discurso da primeira autora que colhemos a melhor definição do pensar e fazer lobatiano sobre as coisas da língua A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 97 Parecenos que Lobato quer atingir os puristas do seu e do nosso tempo os que o acusaram de poluir a língua ou lhes dar uma resposta operando num nível lingüístico totalmente incompatível com os padrões estabelecidos na época utilizando a língua para chamar a atenção para o discurso em si PEREIRA 1980 p100 Foto fragmento da carta E ousamos dizer que alguns leitores infantis perceberam as intenções de Lobato como Modesto Marques nomeado pelo escritor entre seus correspondentes como o menino número 1 dos últimos tempos O menino escreveu entre os anos de 1941 a 1945 seis cartas na primeira aos doze anos de idade e dirigida à Emília Digna Condessa de XXX considerada por ele sua Princesa Isabel que lhe alforriou da sisudez das coisas do mundo e lhe transformou em Emiliano libertado de uma rotina mental o menino diz travar um diálogo de libertado para libertador Outro fato a ser destacado nessa correspondência é a apropriação do leitor das estratégias utilizadas pela personagem Emília apresentandoa como condessa de três estrelinhas José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 98 autodenominação da boneca em suas memórias como observaremos na análise desse título OS DES A FIOS DA MEMÓRIA A proposta deste texto é analisar como o dialogismo se instaura na obra infantil Memórias da Emília de Monteiro Lobato Cientes de que não conseguiremos nos limites deste texto abarcar as várias formas de manifestação do diálogo propomonos levantar no conjunto das diferentes linguagens que compõe o texto algumas manifestações do modo pelo qual a palavra do outro é incorporada ao discurso do autor Para tal consideraremos a concepção dialógica de Mikhail Bakhtin que se consolida na idéia de que na tessitura de qualquer enunciado sobre determinado objeto já se encontram outros fios outras vozes que se fiam desfiam e desafiam a existência de um discurso neutro e singular Negase portanto a existência de palavras puras virgens de significado pois elas já estão envoltas e vivem em ressonância com outras vozes Somente o Adão mítico estava frente a frente do verbo primeiro já que todo texto está em sua origem habitado povoado por outras vozes por outros textos já escritos BAKHTIN 1993 p 88 A noção bakhtiniana de que o discurso é por natureza dialógico se fundamenta numa relação de alteridade entre o eu e o outro ou seja fazse necessário ouvir considerar e até mesmo chocarse com a voz do outro O outro assume uma essência múltipla outro enquanto voz antecedida outros textos outro enquanto voz imprevisível o leitor as várias vozes sociais que ecoam no meio em que circula o escritor e por que não a própria voz do escritor em consonância eou dissonância com estes discursos O escritor sempre expressa na sua construção literária um ponto de vista assume A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 99 posições seu discurso sempre está revestido de conteúdo ideológico Como observa Bakhtin cada gênero literário nos limites de uma época e de um movimento se caracteriza por sua concepção particular do destinatário da obra literária por uma percepção e uma compreensão particulares do leitor BAKHTIN 1992 p 324 No caso de Lobato como já foi explicitado a intenção estética e a ideológica estão visceralmente interligadas Esteticamente o autor tinha um projeto literário voltado ao público infantil que visava romper com as narrativas que circulava pelo País adaptações galegais português empoleirado respeitando um estilo e uma linguagem própria para criança contribuindo para a formação de um público leitor Ideologicamente o autor crê no papel que a leitura pode desempenhar na formação cidadã dos leitores pois depositara todas as suas cartadas nas crianças enjoado que estava de escrever para os adultos Quando ao escrever a história de Narizinho lá naquele escritório da rua Boa Vista me caiu do bico da pena uma boneca de pano muito feia e muda bem longe es tava eu de supor que iria ser o germe da encantadora Rainha Mab do meu outono LOBATO 1944 p 504 Dividido em quinze capítulos Memórias da Emília é uma narrativa que narra a si mesma ou seja desafia o processo de escrita da memória Lobato mantém alguns dos princípios da narrativa memoralística mas os rearticula de forma paródica Se pensarmos o discurso paródico como aquele em que o autor fala a linguagem do outro revestindoa de orientação oposta à orientação do outro BAKHTIN 1981 p 168 devemos ter em conta que a presença desse novo texto pressupõe a presença do texto ausente A primeira voz para servir ao fim paródico precisa fazer parte do repertório do leitor O gênero memoralístico seria conhecido dos leitores José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 100 Eliane Zagury em estudo sobre a escrita do eu respondenos ao fazer contraponto com a moda dos livros de base autobiográfica principalmente de Graça Aranha Medeiros de Albuquerque e Humberto de Campos publicados entre 1931 e 1935 e as Memórias da Emília concluídas em 10 de agosto de 1936 observando que a paródia se instala pela efervescência do gênero no período e o reconhecimento pelo leitor do discurso parodiado ZAGURY 1982 p 103 Parece admissível então dizer que o leitor daquele período ao se deparar com a leitura do livro poderia compreendêlo ativamente percebendoo como um discurso de questionamento E os leitores de hoje Em tempos de biografias autobiografias e memórias que inundam o mercado livreiro podemos dizer que o leitor contemporâneo interage com o texto e na maioria das vezes pergunta onde começa eou termina a verdadementira desses relatos O autor põe em foco a movência das fronteiras entre história e literatura real e ficcional questionamentos estes que permeiam o discurso teórico desde a Antigüidade Aristóteles já distinguia o ofício do historiador e o do poeta pertencendo o discurso do primeiro ao universo do sucedido e o do segundo ao universo do que poderia suceder a poesia pertenceria ao campo do universal e a história ao campo do particular ARISTÓTELES 1973 p 451 Nesse campo do particular ficaria circunscrito o discurso da memória enquanto registro do acontecido Nas palavras de Eduardo Portella contudo memórias são entidades literárias autônomas que se situam no meio caminho entre a autobiografia e a história PORTELLA 1958 p191 O entre lugar o meio caminho destinado ao gênero possibilita o seu deslocamento tanto no campo do verídico como no do verossímil A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 101 A tradição da escrita do gênero memoralístico é questionada pela boneca que resolve compor as suas memórias da maneira mais inusitada Frente ao discurso de que o sujeito do ato memoralístico só pode redigilo se já viveu bastante Emília solapa o tempo e finge uma possível morte eliminando a gravidade do discurso Se para a Emília a verdade é uma espécie de mentira bem pregada das que ninguém desconfia LOBATO 1994 p8 nada mais justo que ficcionalizar o seu relato A transgressão dos domínios da lógica habitual característica marcante das obras de Monteiro Lobato não se dá só no sentido da criação das personagens e de suas ações temos aqui a contestação do próprio gênero memoralístico que aparece como norteador da narrativa A dessacralização do gênero memória já é apontada no primeiro capítulo quando Emília adverte que a escrita da memória nunca é neutra Quem escreve memórias arruma as coisas de jeito que o leitor fique fazendo uma alta idéia do escrevedor Mas para isso ele não pode dizer a verdade porque senão o leitor fica vendo que era um homem igual aos outros Logo tem de mentir com muita manha para dar idéia de que está falando a verdade pura LOBATO 1994 p7 Resolvida a escrever suas memórias Emília convoca o Visconde de Sabugosa como secretário a princípio sob sua orientação Envolvida pelas dificuldades do começo a boneca ganha tempo mostrando preocupação com a materialidade do impresso exigindo tinta cor do mar papel cor do céu e pena de pato com todos os seus patinhos Exigências estas permeadas de duplicidade pois podemos entender como mais uma das irreverências da boneca por outro lado podem ser lidas como uma crítica às trivialidades que muitas vezes rodeiam o imaginário da escrita ou ainda mais uma José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 102 reflexão sobre os aspectos físicos do livro e sua contribuição para o resultado final da publicação A imprevisibilidade da narrativa já se apresenta no início dado por Emília com seis pontos de interrogação demonstrando uma perplexidade frente as dificuldades da escrita O elemento gráfico do ponto de interrogação preenche os vazios e porque não reproduz fenômenos da oralidade num entrecruzamento das duas modalidades de uso da língua é desaconselhada pelo Visconde que exemplifica o caminho tradicional das narrativas memoralísticas com a citação do livro As Aventuras de Robinson Crusoé Nasci no ano de 1632 na cidade de Iorque filho de gente arranjada etc O discurso de Daniel Defoe é apreendido e reinterpretado dinamicamente por Emília que reveste a palavra do outro de um colorido paródico ao ditar ao Visconde Nasci no ano de três estrelinhas na cidade de três estrelinhas filha de gente desarranjada LOBATO 1994 p10 Tal saída se faz com o objetivo de ludibriar os futuros historiadores gente mexeriqueira Aparece aqui a crítica à prática comum dos pesquisadores que buscam nos registros da memória maior fundamentação para sua pesquisa A transgressão se apresenta na medida em que novamente Emília desassocia a idéia de suas memórias como documento legado à posteridade isto é nega o poder à história com seus caprichos de dama elegante ASSIS 1994 p11 A desobediência ao discurso memoralístico se processa também pelo modelo escolhido Emília Ela não pertence a um grupo seleto ao mundo das celebridades das pessoas públicas Sua árvore genealógica ab ovo se restringe a uma saia velha de tia Nastácia costurada e enchida de macela Por outro viés ela tem o poder da fala Nem tanto boneca nem tanto gente nesse limiar somente ela entre as personagens do Sítio poderia assumir esse papel A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 103 distanciador de quem está fora e de quem está dentro e poder questionar subverter o discurso canônico No segundo capítulo o Visconde assume dupla função exercer a função de escriba assumindo o papel do outro Emília e ordenar as suas próprias memórias dentro de um limite imposto pela boneca as coisas que aconteceram no sítio e ainda não estão nos livros LOBATO 1994 p11 O Visconde seleciona a história do anjinho de asa quebrada e tenta dar veracidade às memórias colocandose como integrante do episódio vivido Na qualidade de registro do vivido aqui o vivido ficcional o Visconde relata ao leitor a descrição das circunstâncias do fato narrado enumerando as peripécias realizadas na Viagem ao Céu de onde trouxeram a figura celestial A estratégia comercial de propagandear seus títulos anteriores dentro das novas narrativas é uma freqüente em toda a produção de Monteiro Lobato como já destacamos em trabalho anterior DEBUS 2004 No caso específico de Memórias de Emília o diálogo com o leitor se dá por títulos que aparecem ao longo da narrativa e explicitamente em trechos como este As crianças que leram as Reinações de Narizinho com certeza também leram a Viagem ao Céu aonde vêm contadas as aventuras dos netos de Dona Benta da Emília e também as minhas no país dos astros LOBATO 1994 p12 O Visconde transporta para a escrita os fatos acontecidos colocandoos no discurso direto das personagens marcado graficamente pelo travessão contudo entre aspas para confirmálo enquanto representação de um diálogo isto é assume o papel de imitação de um discurso entre personagens Um discurso dentro do discurso A presença no Sítio de um anjo de asa quebrada que desconhece as coisas da terra propícia à Emília introduzir as aulas peripatéticas ao gosto e modelo aristotélico como método de ensino José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 104 da língua para Flor das alturas que no ar livre do pomar aprende os mistérios da língua Emília aponta para o significado lingüístico das palavras e a sua multiplicidade de sentidos como o do vocábulo cabo Cabo é uma perna só por onde a gente segura Faca tem cabo Garfo tem cabo Bule tem cabo e bico tam bém Até os países têm cabo como aquele famoso Cabo da Boa Esperança que Vasco da Gama dobrou ou aquele Cabo Roque da Guerra de Canudos um que morreu e viveu de novo Os exércitos também têm ca bos Tudo tem cabo até os telegramas Para mandar um telegrama daqui à Europa os homens usam o cabo submarino LOBATO 1994 p13 As relações entre o significado da palavra cabo objeto lugar e pessoa e a introdução de conteúdos de História que adentram na narrativa foram destacados por Janice Theodoro como possibilidade de introduzir conteúdos de História escapulindo de uma visão linear de ensino reorganizando o conteúdo ao relacionar os fatos através da palavra e constrói uma linha invisível do caráter nacional brasileiro Janice Theodoro Emília brinca com as formas e possibilidades dialógicas de transmissão da palavra do uso cotidiano ao uso literário a cobra enquanto animal odiado e a serpente como motivo de sedução o tigre cruel e o seu significado de bravura As suas informações sobre as coisas cotidianas vão se imbricando de poeticidade desautomatizando as informações de sua rotina do contexto usual Raiz é o nome das pernas tortas p12 Machado é o mudador das árvoresp12 Frutas são bolas que as árvores penduram nos ramos LOBATO 1994 p15 O anjo Flor das Alturas parece ter aprendido bem a lição num primeiro momento quando demonstra a Alice a do País das Maravilhas sua aprendizagem repete ao pé da letra os ensinamentos A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 105 de Emília mas num segundo momento apresenta a sua própria interpretação ao falar dos bolinhos de tia Nastácia Ela amassa esse pó com gema de ovo e gordura continuou o anjinho Enrola os bolinhos entre as pal mas brancas de suas mãos pretas e os põe em lata num buraco muito quente chamado forno Passado al gum tempo os bolinhos ficam no ponto e é só come LOBATO 1994 p27 Assim as palavras adquirem novos significados desprovidas de proprietário e do significado neutro do dicionário elas assumem seu papel de elemento vivo e concreto na comunicação Emília reflete também sobre a evolução histórica e social da linguagem os contextos em que as palavras são empregadas e sua pluridimensão No entanto Emília vincula as calamidades do mundo à língua Para aquele ser ingênuo que desconhece a língua e seu uso Emília adverte Você vai custar a compreender os segredos da língua LOBATO 1994 p15 A ruidosa visita de crianças do mundo real ao Sítio não é novidade na obra de Monteiro Lobato contudo temos no terceiro capítulo das memórias um grupo de criança favorecido por uma escolha democrática os inglesinhos que como as outras crianças do mundo estavam curiosos para ver o anjo de asa quebrada O escritor elenca os soberanos pelas suas titulações honoríficas o rei da Inglaterra o Presidente Roosevelt Fuehrer na Alemanha Duce na Itália o Impredaor no Japão e Negus na Etópia Por trás do episódio da escolha democrática entre os governantes de países diversos Alemanha Itália Etiópia Japão EUA e Inglaterra podemos ler a ironia do autor pois historicamente isto não poderia acontecer haja vista que a Alemanha nazista sob o comando de Hitler vivia numa ditadura bem como a Itália fascista de Mussolini que em 1936 conquista a força a Etiópia José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 106 Juntamente com as crianças inglesas e o Almirante Brown vêm Alice e Peter Pan duas personagens da literatura infantil inglesa Lobato ao citar os dois livros de Lewis Carrol Alice no país das maravilhas 1865 e Alice através do espelho 1872 dialoga com seu exercício de tradutor Não esquecer que em 1931 mesmo ano da tradução do primeiro Alice Lobato dava ao público Robinson Crusoe citado no início dAs Memórias da Emília Os autores ingleses e norteamericanos foram seus preferidos e na Coleção Terramarear deu vazão ao exercício de tradução uma constante na sua carreira ROCHA 2002 As suas palavras no prefácio de Alice no país das maravilhas demonstram a sua preocupação com os cuidados da tradução em especial aquela destinada as crianças Traduzir é sempre difícil Traduzir uma obra como a de Lewis Carroll mais que difícil é dificílimo Tratase do sonho duma menina travessa sonho em inglês de coisas inglesas com palavras referências citações alusões versos humorismo trocadilhos tudo inglês isto é especial feito exclusivamente para a mentalidade dos inglesinhos O tradutor fez o que pôde mas pede aos pequenos leitores que não julguem o original pelo arremedo Vai de diferenças a diferença das duas línguas e a diferença das duas mentalidades a inglesa e a brasileira LOBATO 1969 Quando Emília apresenta a personagem inglesa a Tia Nastácia o faz como se fosse a uma velha conhecida Esta aqui tia Nastácia é a famosa Alice do País das Maravilhas e também do País do Espelho lembrase O jogo entre o que se sabe sobre e a tradução são destacados na argumentação da Emília frente ao espanto de tia Nastácia que ao ser apresentada à menina descobre que ela se comunica na Língua Portuguesa Muito boas tardes Senhora Nastácia murmurou Ali ce cumprimentando de cabeça A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 107 Ué exclamou a preta A inglesinha então fala a nossa língua Alice já foi traduzida em português explicou Emília LOBATO 1994 p39 Peter Pan por sua vez já é uma personagem conhecida no Sítio do Picapau Amarelo ora na possibilidade de ser o Peninha ora como Peter Pan A história do eterno menino da terra do nunca criada pelo romancista e dramaturgo inglês James M Barrie foi adaptada por Lobato em 1930 na sua linha de introduzir dona Benta contando as histórias em pequenos serões para os moradores do Picapau Amarelo A chegada das crianças inglesas propicia duas inversões de papéis provocadas por Emília e pelos netos de Dona Benta A primeira consiste no mascaramento do Visconde em anjinho o divino é vulgarizado ao ser travestido com uma camisola de Emília e asas de gavião polvilhadas com farinha de trigo A segunda consiste na manutenção do Almirante Brown como refém durante a estada no sítio um adulto e responsável por uma tripulação é subordinado ao poder das crianças O celestial anjo e o poder almirante são reibaxados de suas posições Os cuidados tomados para a segurança do anjo são ameaçados por outras duas personagens do mundo maravilhoso o Capitão Gancho e o marinheiro Popeye Mas Pedrinho e Peter Pan auxiliados por Emília conseguem derrotálos Ao introduzir uma personagem da história em quadrinhos Lobato tenta dialogar com esta linguagem é claro que não através dos dois códigos de signos gráficos que compõe o sistema narrativo dos quadrinhos a imagem obtida pelo desenho e a linguagem escrita em balões GAGNIN 1975 p25 mas pela descrição da ação da luta em movimento contínuo necessidade primordial dos José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 108 quadrinhos Popeye X Capitão Gancho Popeye X Peter Pan e Pedrinho Não podemos esquecer que a primeira aparição de Popeye no Brasil se dá justamente em 1936 GOIDANICH 1990 p 320 o que nos leva a concluir que Lobato dialoga com um fenômeno novo mas conhecido do público Popeye é duplamente ridicularizado primeiro por sua descrição de bêbado e segundo por sua derrota que coincide com o desmascaramento de seu próprio artifício o uso do espinafre que Emília troca por couve amassada Do capítulo terceiro ao nono o Visconde narra sem a interferência de Emília toda a estória do anjinho a vinda das crianças inglesas a luta de Popeye com o Capitão Gancho com os marinheiros do Wonderland e depois com Pedrinho e Peter Pan p42 No capítulo X a narrativa se desenvolve com o diálogo entre Emília e o Visconde Emília aprova os capítulos escritos admitindo que agora poderá dizer que sabe escrever memórias sob esta afirmação o Visconde interroga Sabe escrever memórias Emília Repetiu o Visconde ironicamente Então isso de escrever memórias com as mãos e a cabeça dos outros é saber escrever memó rias Perfeitamente Visconde Isso é que é o importante Fazer coisas com a mão dos outros ganhar dinheiro com o trabalho dos outros pegar nome e fama com a cabeça dos outros isso é que é saber fazer as coisas Olhe Visconde eu estou no mundo dos homens há pouco tempo mas já aprendi a viver Aprendi o grande segredo da vida dos homens na terra a esperteza Ser esperto é tudo LOBATO 1994 p42 A reação do Visconde é de indignação e insinua a interrupção do processo de escrita mas mostrase resignado diante dos argumentos da boneca de que qualquer outro poderá continuála inclusive o Quindim Destacase a crítica ferrenha à escrita da A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 109 memória encomendada prática comum na década de 1930 e que persiste até hoje Quem não lembra da crítica a Fernando Sabino quando da feitura das Memórias de Zélia Cardozo então ministra da economia do Brasil Não se discute aqui o papel de escriba pois o Visconde cumpre a dupla função não só redige como cria a memória O humor de Lobato leva o leitor a refletir e perceber a verdadeira condição humana velada pela prática capitalista e individualista do ter sempre mais dar um jeitinho a esperteza emiliana pela exploração do mais fraco a possibilidade de tomar do outro o que lhe é proveitoso caracteriza personagens ontológico como Macunaíma Mário de Andrade e Pedro Malazartes popular e a eles a boneca de pano foi muitas vezes comparada Ao transgredir os códigos tanto da língua como sociais Lobato aponta para as contradições do mundo Porém seu humor é de uma leveza quase que intransponível pelo leitor e muitas vezes foi ao nosso ver contraditoriamente entendido No capítulo XI o fluxo das memórias da boneca misturase com o do Visconde provocam a descontinuidade da narrativa e coloca em contradição a escrita da memória O próprio percurso seqüencial do relato é rompido com a terceira interrupção de Emília que vem espiar suas memórias mas sempre parte com a desculpa de estar ocupada deixando ao encargo do Visconde a continuidade do relato Outro fator que auxilia como suporte de interrupção bem que ilusória é a disposição da estrutura textual em capítulos Porém os subtítulos de cada capítulo orientam o leitor sobre o episódio a seguir como que exercendo a função de sinopse do que está por vir atamse os fios da narrativa e a sua ilusória descontinuidadeinterrupção No capítulo XII o Visconde descobre o poder da escrita e resolve ir contra o mandonismo e autoritarismo de Emília do Faça o que eu mando e não discuta descrevendo como ele realmente a vê José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 110 tirana de coração criatura mais interesseira do mundo criaturinha incompreensível Tais características no entanto revelam a ambivalência de Emília que se encontra no limiar da loucura e da sensatez diz asneiras e coisas sábias Na impossibilidade de definila o Visconde busca as próprias palavras da boneca no dia em que lhe perguntou o que realmente ela era Sou a independência ou Morte LOBATO 1994 p48 Emília ao descobrir que o Visconde quer lhe impingir uma mentira exige que leia o que realmente escreveu e para espanto deste ela não se zanga O senhor me traiu Escreveu aqui uma porção de coi sas perversas e desagradáveis com o fim de me des moralizar perante o público Mas pensando bem vejo que sou assim mesmo Está certo LOBATO 1994 p282 A preocupação com o leitor condição primeira de quem escreve é aludida por outra lógica pois a imagem o testemunho de vida do memorialista é aviltado e Emília aprova esquecendo a possível desmoralização No XIII capítulo a narrativa das memórias recebe o contorno das mãos de Emília que decide redigilas sob o prisma do que poderia ter acontecido se o anjo não tivesse retornado ao céu Emília ao descrever sua fuga no navio inglês subverte o estatuto do gênero memoralístico enquanto condição de documento do real vivido no seu caso o real ficcionalizado nas aventuras do Sítio O navio Wonderland que trouxe os personagens maravilhosos da Inglaterra pode transportar para outras terras o maravilhoso uma boneca falante um anjo do céu e um sabugo científico Esta aventura adquire foro de independência pois não traz nenhum outro personagem humano nem sequer Narizinho e Pedrinho presentes sempre nas aventuras escritas por Lobato A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 111 O destino de Emília na cidade americana é Hollywood e para alcançálo tem que ludibriar o Almirante que quer lhe apresentar o Presidente Roosevelt desviando o percurso da boneca para Washington Não discuti Fingi que ia para Washington e fui parar em Hollywood de avião LOBATO 1994 p51 Assim o universo do maravilhoso inserido em sua totalidade nas memórias abre a possibilidade de interferência do impossível daquilo que não exige explicações Como isso Perguntará alguém e eu responderei Não me amolem com comos Comigo não há como Fui e acabou se LOBATO 1994 p51 A boneca reinstaura a presença do público leitor ao antecipar sua indagação respondendolhe e ao mesmo tempo puxandolhe a orelha Alerta ao leitor desavisado para a construção do jogo imaginativo da narrativa A narrativa dessa forma não esquece o leitor a que se destina presentificase aqui a afirmação de Bakhtin de que todo discurso literário sente com maior ou menor agudeza o seu ouvinte leitor crítico cujas objeções antecipadas apreciações e pontos de vista ele reflete BAKHTIN 1981 p 170 Lobato admirador incondicional dos Estados Unidos entusiasta do cinema falado americano CAVALHEIRO 1955 dialoga com esse gênero introduzindo personagens da fábrica de sonhos nas memórias de Emília A inserção desses personagens bem como do diretor da Companhia cinematográfica Paramount multiplica o espaço do maravilhoso O contato com Shirley Temple não se faz à revelia Atriz mirim do cinema norte americano dos anos de 1930 assume características de um duplo maravilhoso o mundo da infância e o mundo do cinema ambos com o poder de subverter a lógica real pelo nonsense Questionada pela menina sobre o motivo da visita Emília conta os planos de empregarse na Paramount Shirley então sugere o ensaio José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 112 de uma fita e Emília por sua vez escolhe como enredo a história de Dom Quixote de la Mancha livro conhecido também de Shirley Os elementos cinematográficos como cenografia figurino e montagem aparecem no momento de ensaiar a fitinha A desmitificação picaresca do cavaleiro da triste figura é construída parodicamente uma tampa de lata vira o elmo lata de vagõezinhos quebrados a couraça mais lata para o escudo e um cabo de vassourinha como lança Instalamse assim elementos do sério cômico da caracterização do QuixoteVisconde já acontecido quando do travestimento em anjo Por outro lado presenciase o jogo imaginativo da infância que resignifica objetos e por meio do jogo simbólico anima o estático o inanimado O termo ensaio pode ser lido numa relação intrínseca com o fazer literário do escritor Monteiro Lobato que no mesmo ano da publicação de Memórias da Emília publica Dom Quixote das crianças Ensaio para a adaptação da obra ou divulgação de seu próximo trabalho A referência das memórias de Emília é sempre um real já ficcionalizado nos episódios aventurescos do sítio do Picapau Amarelo quando foge do duplo real sítiomemória para um duplo ficcional Hollywoodmemória seu registro é contestado tanto por Dona Benta o adulto quanto pelo Visconde a ciência No capítulo XIV Emília interrompe suas aventuras em Hollywood pela presença de Dona Benta que fica perplexa quando a boneca afirma estar concluindo suas memórias que o Visconde iniciou e descreve o episódio em Hollywood Emília exclamou Dona Benta Você quer nos ta pear Em memórias a gente só conta a verdade o que houve o que se passou Você nunca esteve em Holly wood nem conhece a Shirley Como então se põe a in ventar tudo isso A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 113 Minhas Memórias explicou Emília são diferentes de todas as outras Eu conto o que houve e o que devia haver Então é romance é fantasia São memórias fantásticas LOBATO 1994 p54 A instauração da memória fantástica permite que novas aventuras sejam interpoladas ao texto acomodandose na unidade do narrado A memória tornase um texto aberto O deslocamento para fronteiras além do vivido além do espaço do sítio acaba por provocar um deslocamento da narrativa Cansada de escrever as memórias a boneca pede novamente o auxílio do Visconde que questionando o ponto da narrativa fica espantado ao ouvir a história de Hollywood e argumenta a impossibilidade de falar de fatos que não viveu e nem lhe foram contados A boneca não se aperta e diz ao Visconde E que tem isso bobo Eu também não estive lá e estou contando tudo direitinho Quem tem miolo não se aperta LOBATO 1994 p55 Confirmando a inventividade do narrado A transgressão do Visconde em dar o fim à narrativa com ponto final após o juramento de Emília que poderia terminar de qualquer maneira é corrigida com um rabinho que transforma o ponto em vírgula Ele tenta novamente imporse à boneca pela escrita entrando agora no jogo do possível e registrando que Emília não foi contratada pela empresa cinematográfica e que somente ele e o anjinho ascenderam à constelação dos astros Contudo a boneca ao ler afirma ser sabotagem e faz com que pelas próprias mãos o Visconde registre o fim das aventuras de forma inversa ficando o Visconde fora dos estúdios da Paramount Agora sim Agora a coisa está direita exatinho como se passou José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 114 Passou nada disse o Visconde num resmungo Você nunca esteve em Hollywood Estive sim em sonho E tudo quanto vi em sonho foi exatamente como acabei de ditar Eu e flor das Altu ras viramos estrelas da tela Você foi para uma lata de lixo Isso não escrevo protestou o Visconde Escreva ou não foi o que aconteceu LOBATO 1994 p57 A persistência da boneca se torna condizente na medida em que o sonho ao ser registrado transformase em parte do vivido Emília nascida na comunidade singular do sítio do Picapau Amarelo não pode tecer a sua história de forma fechada haja vista que ela só pode ser reconstruída no plural ou seja inserida nos limites do grupo a que pertence Assim Emília levanta na sua autodefesa no último capítulo a descrição e idéias sobre cada elemento do grupo Monteiro Lobato escreve as memórias da Emília inter relacionadas com as memórias do Sítio ou melhor com a memória de sua própria produção literária para crianças pois enumera ao longo da narrativa seus outros livros escritos até ali Peter Pan 1930 Reinações de Narizinho 1931 Viagem ao Céu 1932 Emília no país da gramática 1934 Aritmética da Emília 1935 Geografia de Dona Benta 1935 aquele que seria publicado no mesmo ano de 1936 Dom Quixote das Crianças e suas traduções Alice no País das Maravilhas Alice através do espelho e Robinson Crusoé O discurso autoconsciente de Emília no último capítulo é um reflexo gerado pelo discurso do outro no caso o Visconde Esta autodefesa porém pode ser compreendida também como uma autodefesa do próprio Lobato no que diz respeito a insensibilidade da boneca e o preconceito étnicoracial na representação de Tia A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 115 Nastácia O discurso bivocal do último capítulo está inscrito no denominaríamos de polêmica velada onde a idéia do outro não entra pessoalmente no discurso apenas se refletindo neste e determinandolhe o tom e a significação BALHTIN 1981 p 170 Se considerarmos as colocações a falta de sensibilidade da boneca a questão étnicoraciais Podemos inserir as Memórias da Emília no contexto das narrativas de viagens na medida em que o narrado se entrecruza com suas aventuras além do espaço do sítio no Reino das Águas Claras a fala se instala da viagem ao céu traz o anjinho Flor das Alturas na geografia de Dona Benta o conhecimento de países distantes do País das Fábulas de La Fontaine emerge o burro falante na viagem à Hollywood aprende a arte e as artimanhas do mundo cinematográfico A linguagem utilizada por Lobato é pluridiscursiva porque abarca a linguagem da vida ideológica e verbal de sua época tanto no que se refere à camada social como à idade coexistindo também línguas de épocas e períodos diversos Destacamse no texto as gírias utilizadas pelas personagens mas é peta ali na batata cambada repimpadas pílulas munhecaços turumbamba peteleco patavina Vocábulos que contribuem para o tom coloquial da narrativa Os vestígios da oralidade se instalam pelas expressões populares Quando chega o nosso dia o gancho da morte nos pesca sejamos reis ou mendigos não sobrou uma só laranja para remédio bem como a inserção de provérbios gênero produzido e popularizado também pela linguagem oral em forma de citação literal sua alma sua palma Quem vai buscar lã sai tosquiado Boa romaria faz quem em casa fica em paz E o provérbio revestido de um novo sentido Quem moinhos apetece é isso que acontece José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 116 A língua em constante transformação dá vida a novas palavras daí a introdução de neologismos como quebramento descomem escrevedor mudador encouvado comedorias depenar em outro sentido que aquele de tirar penas e sim as pernas e os braços do visconde Ao vestir o anjo de Sancho Pança instalase o verbo sanchar Destaque também para as criativas justaposições dasno antes sesse homessa elissimo O diálogo com a língua estrangeira do outro por meio de introduções de palavras em inglês no discurso em português shocking yes oranges mariners shakehand good bye driver além da famosa frase do marinheiro Popeye I am sailor man A heterogeneidade de gêneros do discurso primário e secundário na construção literária de Lobato é representada no discurso filosófico de Emília com seus conceitos e filosofia de vida a vida é um piscapisca no discurso solene do Almirante Brown pelo discurso poético das definições da boneca Discursos diversos que entram em confronto no jogo da narrativa como no discurso cerimonioso de agradecimento do Almirante em choque com a sem cerimônia de Emília que lhe pede como gratificação pelo embate vencido contra Popeye uma caixa de leite condensado ÚLTIMAS IMPRESSÕES No Sitio do Picapau Amarelo brincar e aprender são sinônimos e essa aprendizagem se dá por dois caminhos o da erudição e o das coisas práticas o primeiro representado por Dona Benta e o segundo por Tia Nastácia como destaca Emília ao final de suas memórias A aprendizagem da língua pelo anjo se dá nos contextos informais do cotidiano do Sítio no pomar entre laranjeiras jabuticabeiras e pitangueiras na cozinha de Tia Nastácia entre panelas e bolinhos de frigideiras Uma aprendizagem que assume A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 117 forma de inserção cultural e de socialização do ser celestial nos usos práticos da língua A pluralidade de vozes inseridas no texto assinala uma diversidade de concepções de mundo que apresentam ao leitor um horizonte diverso do habitual oferecendolhe outros pontos de vista A relação dicotômica estabelecida por lobato entre linguagem escrita e linguagem oral é tecida na contramão dos estudos da gramática normativa que se detêm na supremacia da escrita em detrimento da oralidade enquanto ele por seu turno enaltece a linguagem oral No entanto aproximase do pensamento contemporâneo de que as línguas se constituem a partir de usos e práticas sociais A articulação do dialogismo em Memórias da Emília manifesta se pela representação da voz das personagens da voz dos narradores pela inclusão de gêneros diversos etc Enfim Lobato não purifica seu texto das intenções e voz do outro O texto se finda na indecisão de escolha entre as sugestões da bonequinha de pano do ponto final sinal de pontuação do FINIS língua latina ou do tenho dito expressão de cunho coloquial simplesmente se coloca como um interstício uma pausa repouso para reinício posterior REFERÊNCIAS ARISTÓTELES Poética Trad Eudoro de Souza São Paulo Abril Cul tural 1973 ASSIS Machado Memórias Póstumas de Brás Cubas São Paulo Sci pione 1994 BAKHTIN Mikhail Estética da criação verbal São Paulo Martins Fon tes 1992 Marxismo e filosofia da linguagem São Paulo HUCITEC 1992 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 118 Problemas da Poética em Dostoiévski Trad Paulo Bezerra Rio de Janeiro Forense Universitária 1981 Questões de Literatura e estética a teoria do romance Trad Aurora Fornoni Bernadini et all 3 ed São Paulo HUCITEC 1993 BENJAMIN Walter O narrador considerações sobre a arte de Nikolai Leskov Trad Sérgio Paulo Rouanet 7ed São Paulo Brasiliense 1994 BRASIL Padre Sales A literatura infantil de Monteiro Lobato ou co munismo para crianças Bahia Aguiar Silva 1957 CAGNIN Antônio Luiz Os quadrinhos São Paulo Ática 1975 CAGNETI Sueli de Souza A inventividade e a transgressão nas obras de Lobato e Lygia confronto Dissertação de Mestrado Florianópolis UFSC 1988 CAVALHEIRO Edgar Monteiro Lobato vida e obra Vol2 São Paulo Companhia editora Nacional 1955 DEBUS Eliane O leitor esse conhecido Monteiro Lobato e a forma ção de leitores Santa Catarina UNISULUFSC 2004 DEBUS Eliane Diálogo com o leitor escolar Cultura Diário Catari nense Sábado 8 de abril de 2006 Entre fios meadas e tramas Emília desafia a palavra escri ta e tece suas memórias In Revista LIBEC line Revista em Lite racia e BemEstar da Criança Universidade do Minho IEC n 1 p 1 15 2007 GOIDANICH Hiron Enciclopédia dos quadrinhos Porto Alegre LPM 1990 HALBWACHS Maurice A memória coletiva Trad Laurent León Scha effer 2ed São Paulo Revista dos Tribunais 1990 LAJOLO Marisa ZILBERMAN Regina Literatura infantil brasileira histórias e histórias São Paulo Ática 1987 LE GOFF Jacques História e memória 2ed Trad Bernardo Leitão et al Campinas São Paulo UNICAMP 1992 LOBATO Monteiro Prefácios e entrevistas São Paulo Brasiliense 1951 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 119 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs A Barca de Gleyre São Paulo Brasiliense 1944 Memórias da Emília 42ed São Paulo Brasiliense 1994 Dom Quixote das crianças São Paulo Brasiliense sd Emília no país da gramática São Paulo Brasiliense sd Negrinha São Paulo Brasiliense 1950 p117134 CARROLL Lewis Alice no País das Maravilhas Tradução adaptação e introdução de Monteiro Lobato 10 ed São Paulo Brasiliense 1969 PEREIRA Maria Teresa Gonçalves Processos expressivos na Literatu ra Infantil de Monteiro Lobato Dissertação de Mestrado Rio de Janei ro PUCRJ 1980 PLATÃO A república Trad Maria Helena da Rocha Pereira 6ed Lis boa Fundação Calouste Gulbenkian 1990 PORTELLA Eduardo Problemática do memoralísmo In Dimensões crítica literária Rio de Janeiro José Olympio 1958 ROCHA Pedro Alberice Monteiro Lobato reescritor de Kipling São José do rio Preto UNESP 2002 Tese de doutorado SANDRONI Luciana Minhas memórias de Lobato contadas por Emí lia Marquesa de Rabicó e pelo Visconde de Sabugosa Ilust Laerte São Paulo Companhia das Letrinhas 1997 ZAGURY Eliane A escrita do eu Rio de Janeiro Civilização Brasilei ra Brasília INL 1982 120 ESTÉTICA DO LABIRINTO NA PRODUÇÃO PARA CRIANÇAS E JOVENS DE ESTRATÉGIAS DE LEITURA AOS DESAFIOS PARA MEDIR A ASTÚCIA DO VIAJANTE Maria Zilda da Cunha NOTA INTRODUTÓRIA Vários autores revelaram sua predileção por labirintos Tema que Kafka em sua genialidade toma como favorito para retratar o ser humano angustiado na busca da identidade Os caminhos labirinticos desse autor são construídos por medos culpas terror paranóias O labirinto de Kafka nos invade e só podemos vencêlo se vencermos a ansiedade e só assim o mundo se oferecerá para ser mascarado Kafka apud Bloom 1994429 Jorge Luiz Borges em seus magníficos ensaios arquiteta uma obra que se confunde com a imagem do labirinto Tecidos de de fios diversos e imagens sombrias os labirintos de Borges nos falam de morte mas também falam do acervo da espécie e imaginação humana que se agregam ao mundo adensandolhe a complexidade Julio Cortázar em O jogo da amarelinha faz a revelação de labirintos virtuais que se escondem na escrita Lewis Carrol em uma produção para crianças arquiteta a partir do nonsense e de paradoxos caminhos labirínticos na justaposição de mundos entre o real e a fantasia Os labirintos em Alice desestabilizam noções de tamanho tempo espaço corrompem as molduras da lógica aristotélica na esteira de Deleuse destroem paradigmas esclerosados Os labirintos são imagens que persistem na história da humanidade e revelam profundas questões do imaginário e do pensamento humano São inúmeras as definições e várias as simbologias que a ele se vinculam Os recentes trabalhos com a hipermídia também apresentam uma estrutura labirintica com uma A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 121 construção intrincada tortuosa com estratagemas que sinalizam múltiplos caminhos bifurcações e múltiplos centros Neste artigo valendonos do labirinto como metáfora para nos acercar de alguns textos entre livros e telas literários para jovens e crianças textos cujas arquiteturas projetam desafios de modo a fazer o leitor imergir em intrincado espaço textual Percurso em que o viajante pode depararse com caminhos que engendram múltiplas possibilidades numa exploração em que a regra básica não é chegar rapidamente ao final mas visitar o maior número possível de lugares para conhecer o labrinto como um todo Entendemos o viajante como aquele que busca conhecimento numa aventura em que vive o trajeto de significações e ressignificandoas substancializa sua existência Quem viaja busca respostas e se depara sempre com novas perguntas O viajante leitor assim fazse na espessura do texto e no diálogo com o contexto Ao reencontrarse com o mundo na saída sentirseá transformado As reflexões que aqui empreendemos fazem parte de um projeto maior que visa ao aprofundamento das reflexões sobre leitura e procura dimensionar a produção artística contemporânea para jovens e crianças verificando em que medida as experiências que emergem na relação com novos ambientes hipermidiáticos se tornam capazes de articular a pluralidade em enlaces complexos não se submentendo a padrões unilaterais e hegemônicos LEITURA BREVES REFLEXÕES A leitura é alvo de estudos de diferentes campos vem ocupando parte muito significativa da preocupação educacional contemporânea Em seu conjunto os estudos explicitam a complexidade do processo as estratégias cognitivas e metacognitivas José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 122 mobilizadas pelo leitor a mediação para investiduras críticas e criativas em vários gêneros e também em obras literárias Considera se a leitura envolvendo situações de produção de sentido pois permeia o imaginário do receptor estabelecendo relações voltadas para o contextohistórico uma vez ser condição de produção discursiva Práticas de leitura sob tal orientação oferecem ao leitor possibilidades de estabelecer relações com seus próprios conhecimentos e experiências prévias com outros textos já lidos com o contexto histórico em exercício do pensamento e de adequação ao meio em que vive Em se tratando do texto literário cuja finalidade primeira é a fruição de uma mente criativa via sensibilidade e imaginação é um universo que muitas vezes traz como desafio o recriar de forma relacional meandros da realidade e da ficção possibilitando chegarse ao grau de ficcionalidade do texto à trama que as linguagens orquestram na composição da obra ao grau de literalidade procedimentos estilísticos caráter lúdico e a interação que estabelece com o leitor A leitura assim processase no engendrar de sensações imagens diagramas de compreensão hipóteses experimentações e raciocínio de forma a articular um complexo sígnico que consubstancia o texto literário em sua função social ideológica e estética Ler nessa perspectiva envolve um trabalho ativo do leitor e envolve busca das marcas do enunciador para representar o mundo projetadas no texto nas relações que estabelece com outros textos outras épocas e outros lugares e com outras vozes O texto assim é sempre tessitura das condições de produção do sujeito e seu mundo e suas práticas de linguagem Tessitura que face a revoluções que vivemos adensase A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 123 LEITURAS E LEITORES Vivemos uma revolução da informação da comunicação das linguagens e do conhecimento sem precedentes basta atentarmos para a velocidade das transformações históricas Há algum tempo com a desmaterialização do texto eletrônico passamos a ter um suporte dinâmico que distribui textos on line possibilitando às mensagens circularem por dispositivos múltiplos em arquiteturas hipertextuais com a introdução da escrita nos meios hipermidiáticos surgiram novas formas de recepção Na verdade em termos de leitura há uma dinâmica que providencia em diferentes sociedades e momentos históricos em função das tecnologias de que dispõem tipos específicos de leitores Em estudo recente sobre o perfil cognitivo do leitor contemporâneo Santaella 2007 resgata propriedades do leitor contemplativo próprio do iluminismo para quem o tempo não conta e que tem diante de si textos duráveis livros e que podem ser revisitados a todo e qualquer momento ao sinalizar as diferenças entre esse e o leitor fruto da revolução industrial do desenvolvimento do capitalismo que recebe grande apelo de informações simultâneas desafiado à decifração de textos híbridos em diferentes suportes a autora chama a atenção para a inevitável convivência do leitor do livro meditativo com o leitor movente leitor de formas volumes massas movimentos leitor cujo organismo mudou de marcha sincronizando se à aceleração do mundo A era digital surge com o poder dos dígitos para tratar toda e qualquer informação com a mesma linguagem universal bites de 0 e 1 permitindo que todo e qualquer signo possa ser recebido estocado tratado e difundido via computador Essa era faz nascer o leitor imersivo aquele que diante do texto eletrônico navega programando leituras num universo de José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 124 signos evanescentes e disponíveis Um leitor que desenvolve um estado de prontidão num roteiro multilinear multisequencial e labiríntico Santaella 2007 Esse leitor que está emergindo passa a conviver com leitor do livro meditativo e com o leitor movente leitor de formas volumes massas movimentos Ao fim e ao cabo temos hoje leitores múltiplos e ao mesmo tempo um leitor híbrido A utilização cada vez mais intensiva de redes hipermidiáticas de computadores na produção artística e intelectual de nosso tempo introduz problemas novos outros elementos se interpõem à imaginação criadora ao pensamento investigativo e à indagação estética que se opera em nosso tempo Como salienta Santaella 2007 outras respostas perceptivocognitivas são dadas ao hibridismo promovido pelas novas criações Enfim há outras atividades agora implicadas no ato de leitura posto que todo esse contexto consolida condições de produção do sujeito e seu mundo e suas práticas de linguagem Num contexto como esse qual será o lugar assinalado para o leitor contemporâneo Seu ponto de vista seu local de escuta Evidentemente o desafio é sempre maior que qualquer resposta Algumas obras foram selecionadas a fim de exemplificar modos construtivos que parecem marcar nas formas expressivas contemporâneas o lugar do leitor As escolhas devemse ao fato de a própria obra oferecerse como metáfora para a leitura O LUGAR DO LEITOR NAS FORMAS EXPRESSIVAS CONTEMPORÂNEAS para dizer do novo é preciso criar o novo e na busca de novas formas de feitura do tex to a eficácia estará em romper com o este reótipo e fabricar o inédito Um dis fazimento um dizer que faz o dito e desfaz o repetido Samira Chalhub A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 125 Uma nova consciência de linguagem da materialidade do signo artístico manifestouse na literatura infantil e juvenil a partir dos anos 70 consolidando vetores muito expressivos da criação literária dentre os quais a intertextualidade metalinguagem confluência de códigos resgate de formas de problemáticas diálogos entre palavra e imagem em produções que se constroem questionando ou explicitando o próprio processo de sua construção e convocando o leitor a assumir um posicionamento menos ingênuo nos atos de leitura e fruição Coelho 1998 Propõese desmontagem ativa dos elementos da obra para detectar processos de produção isto a faz ganhar dimensão mais dinâmica uma vez que nela ficam franqueados elementos que presidem sua gênese os diálogos e transformações A recepção por sua vez também tornase mais dinâmica pois modifica de forma constante a leitura desses processos desvelando processos de linguagem de que se reveste a realidade Os recursos ficcionais dessa forma promovem uma produção textual que se faz como tecido com fios de realidade e ficção como jogo de linguagens na configuração do objeto literário a ser disponibilizado para crianças e jovens como se estivessem preparando seus leitores para as próximas metamorfoses A partir dos anos 90 vêm se delineando modos construtivos pela inserção de novas tecnologias na produção recepção e consumo pela interface das linguagens verbais visuais e sonoras pelo estreitamento do tempo e espaço ao homem contemporâneo face ao desenvolvimento das telecomunicações Estas motivações associamse a outras de caráter cultural mais amplo como a consciência de uma complexidade cada vez maior do pensamento e da vida a descoberta do comportamento instável e caótico do universo o esfacelamento dos valores tidos como morais universais e das dicotomias clássicas da divisão social e política do planeta José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 126 Tomando como ponto de partida a observação concreta dos trabalhos literários para crianças e jovens produzidos nos últimos anos temos procurado detectar algumas formas de representação e algumas formas de expressividade que abarcando essa complexidade refletem novos conceitos estéticos A multiplicidade complexidade e metamorfoses aparecem como características essenciais de muitas obras bem como a disponibilidade instantânea de possibilidades articulatórias que o texto permite para a participação do leitor Enfim as obras contemporâneas passam a ser espaço de potencialidades tanto de sujeitos que a integram leitor e autor como dos componentes materiais de significação indeterminada que entram em sua discursivização As obras admitem o instável a imaterialidade sintonizandose com a física quântica a teoria do caos das fractais da cibernética Há obras concebidas de forma não necessariamente acabadas que existem em estado potencial pressupondo assim o trabalho de finalização provisória por parte do leitor ou espectador ou usuário Arquitetadas de modo nãolinear semelhante a das memórias de computador são compostas de textos em fragmentos que estariam ligados entre si por elos móveis e probabilísticos Nestes termos a metáfora do labirinto é bastante apropriada em primeiro lugar porque a arquitetura do texto reproduz a estrutura intricada e descentrada daquele bem como a complexidade que lhe é inerente A complexidade como diz Morin 19911718 é um tecido complexus aquilo que é tecido em conjunto cujos constituintes heterogêneos e contraditórios encontramse inseparavelmente associados Por suas bifurcações e proposições múltiplas em função das ligações ambíguas entre as partes a forma labiríntica permite representar lembrando Bakhtin uma verdade que tem sempre uma expressão polifônica A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 127 O labirinto cretense em sua forma é considerado representativo da complexidade que a imaginação do homem da Antiguidade poderia atingir Ele foi concebido também como um espaço para as festas e jogos De qualquer forma o labirinto possui uma estrutura que implica em uma participação muito intensa do leitorviajante Rosenstiehl 19882523 aponta três traços que seriam definidores do labirinto o convite à exploração a fascinação do percurso está em tentar esgotar a extensão de seus locais e voltar a pontos percorridos para obter alguma segurança a exploração sem um mapa previamente elaborado uma vez que não se tem a visão global a exigência de uma inteligência astuciosa para que o viajante prossiga e progrida sem cair em armadilhas permanecendo em constantes circunvoluções A beleza e a astúcia do labirinto estão na multiplicação das possibilidades e na vivência dos tempos e espaços simultâneos Arlindo Machado 20022545 considera a metáfora do labirinto perfeita para a hipermídia respeitadas as especificidades tal imagem pode ser tomada para textos impressos e videográficos cujos traços constitutivos assemelhamse LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS E AS ESTRATÉGIAS PARA MEDIR A ASTÚCIA DO VIAJANTE Literatura uma espécie de fio de Ariadne que poderia indicar caminhos não para sairmos do labirinto mas para conseguirmos transformálo em vias comunicantes que a concepção do mundo atual exige Nelly Novaes Coelho Realizado em um momento da literatura infantil e juvenil ao qual Nelly Novaes Coelho atribui forte consciência crítica e muita energia inventiva para a configuração de novos vetores estilísticos José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 128 ao que já fizemos referência O Problema do Clóvis de Eva Furnari lançado pela Vale Livros constitui um trabalho bastante original de metalinguagem e intertextualidade A obra retoma o conto dos Irmãos Grimm O Príncipe Sapo na tradução de Monteiro Lobato Pela originalidade no resgate constitui um metatexto uma narrativa que arquitetada de forma labiríntica perfaz um caminho que é sua própria construção A narrativa de Eva Furnari revela a perícia com que cada detalhe carrega significados Só leitores atentos compreendrão as pistas enganadoras O jogo labirintico é matéria constituinte do livro Os elementos dispostos na capa colocam o leitor mesmo antes de sua entrada no espaço textual tramado por diversas linguagens diante de uma situação de combatividade interpretativa uma vez que as pistas ali dispostas bifurcamse em possibilidades Há micro informações endereçadas ao olhar do leitor mas as pistas não estão em consonância com uma memória repertorial sobre o conto retomado Assim o encontrar a chave para a entrada no texto não está facilitado por nenhum processo de identificação Desse modo dependendo da escolha a surpresa ou o encontro com o enredar da estória é diverso Seja qual for a opção do leitor o convite à exploração é irrecusável e seu percurso acaba por ser o de um explorador com vista desarmada sem mapa de orientação posto que a terceira página do livro equivalente à primeira da estória está vazia Isto provoca um deslocamento do referente para o incógnito uma vez que ainda não se tem visão global desse espaço que se vai percorrer Dotado de percepção local o agora viajante leitor avança com atenção para não cair em mais armadilhas mas adiante deparase com alguém que trêmulo de espanto aflição pergunta Ué Cadê a estória O que aconteceu Ambos narrador personagem e A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 129 leitor compartilham o espaço e as aflições a decisão no entanto será do leitor em avançar ou não Ao folhear o livro o leitor vai seguindo por trilhas do estranhamento uma estória no lúdico da página e no lúdico do olhar cruzamse campos intertextuais A atenção redobra para a decifração de pistas e tomada de decisões agora quanto a predição de sentidos Criase um campo para o leitor no espaço imaginário pois os significantes ocultos estão à disposição de uma memória repertoriada Estória de amor De um homem Estória de fadas De um redator Talvez de alguns problemas do editor melhor ainda a estória de uma estória ou dos bastidores de uma história de como se faz um livro de estórias Bem em todos os casos o leitor vai encontrando pluralidade de enfoques com ocorrências paralelas em diagramas de espaço e tempo As sinalizações acionam a memória e provocam confrontação e possibilidades de representar para chegar ao reconhecimento Em uma paródia formal e temática tal livro faz o resgate do conto borrando fronteiras entre técnica e arte magia e trabalho construtivo desnuda o percurso criativo do maquinar desenhar escrever editar até mesmo coordenar a produção de arte de um livro convocandoo a participar desse percurso trabalhoso sujeito a muitas aflições mas divertido Em última instância confrontase o trabalho de criação com as determinações e exigências do mercado editorial Mas é somente ao final que o leitor tem a visão dessas múltiplas ocorrências Em 2007 Zubair e os labirintos foi lançado pela Companhia das Letrinhas A obra tem texto verbal ilustrações e concepção gráfica de Roger Mello Tempo e espaço verbal e não verbal ganham aspecto conceitual na fusão imagética de uma ampulheta na sinopse José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 130 Bagdá abril de 2003 Mísseis sem rumo atingiam ruas e mercados Feridos e mortos em uma confusão de bombardeios Prédios públicos como a Biblioteca Nacio nal e a universidade pilhados Durante três dias o Mu seu de Bagdá foi saqueado diante dos olhos das forças americanas e britânicas que ignoravam o apelo dos funcionários do museu e dos arqueólogos do mundo to do Entre os artefatos roubados relíquias da civilização mesopotâmica de até 7 mil anos de idade levadas de maneira organizada para ser vendidas no mercado de arte clandestino Quando o menino Zubair encontra um objeto entre os destroços depara com enigmas que o conectam a antiga Mesopotâmia onde surgiram a es crita o cálculo e o conceito de tempo Por caminhos tortuosos como labirintos Zubair alcança o tempo dos sumérios acádios assírios e babilônicos antigos povos que agora têm seu legado comprometido da mesma maneira que os atuais iraquianos em meio a guerra MELLO 2007 p2 No âmbito da temática evidenciase uma perspectiva crítica a respeito da violência da guerra e o impacto dessa experiência para a destruição de legados da história e projetos humanos Roger Mello com uma visão muito aguda por meio da ficção chega a um mundo demasiado real e que carece de sentido à semelhança de Borges ele cria fantasmagorias tão coerentes que nos faz duvidar a principio do que seja linguagem e do que seja realidade O artista reveste a realidade brutal por uma complexa trama de linguagens A obra sugere a viagem pelos labirintos e o faz no deslocamento de espaços diversos colocando os locais em confronto Espaços que como locais textuais reverberam perspectivas problematizam identidades A fragmentação dos múltiplos espaços e a intervenção do passado no presente através da memória leva à consciência da instância que narra ora observador ora imerso na narrativa A obra tecese em camadas de sentidos Produzida para crianças e jovens revestese do caráter dinâmico e lúdico do labirinto A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 131 O livro precisa ser desenrolado como um antigo papiro ou como um embrulho Assim como o faz Zubair na narrativa desembrulhando uma duas três vezes o tecido espesso abraçava um livro em que se lia Os treze labirintos Verificase então neste momento o livro dentro do livro e leitura dentro da leitura Roger Mello consegue cimentar ao redor do leitor camadas labirínticas que o prendem à história por meio da escrita das imagens e do construto do próprio livro como objeto Assim como as matryoshkas o aparecimento desse livro secundário traz à tona uma intricada relação de internarratividade O narrador em Os treze labirintos anuncia a estória de um quarto emissário que precisava entregar uma mensagem ao rei e para atravessar as esquinas enganosas do labirinto contava apenas com ajuda do mencionado livro Assim como o quarto emissário e os seus antecessores Zubair se aventura pelos corredores de Os treze labirintos e com ele acompanha os leitores do livro Zubair e os labirintos que também tentam decifrar as enigmáticas ilustrações de mapas e as suas igualmente obscuras descrições O leitor ao chegar ao final de Zubair e os labirintos não o encerra a página do labirinto perdido é o livro que se encontra em nossas mãos a saída do protagonista é a entrada do leitor para essa estória Zubair o quarto emissário do rei o terceiro o segundo o primeiro e outros que vieram antes são absorvidos pelo labirinto livro tornamse personagens dele É necessário resolver o labirinto para conhecêlo o livro ele mesmo colocase como um desafio para medir a astúcia do leitorviajante Em um projeto de videoarte Arnaldo Antunes realiza uma epopéia multimídia Nome Tratase de um projeto conceitual que expõe em espaço e tempo simultâneos discussões sobre José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 132 metalinguagem filosofia ciência tecnologia história cultura em diálogo relacional por meio micro clipes A consciência de linguagem e da materialidade do signo ganha visualidade e operacionalidade O próprio autor em certo momento aparece no vídeo deslizando a mão eroticamente sobre a pele de vogais e consoantes explorando a dimensão plástica da escrita em toque apaixonado pela físicalidade da letra No abc festeja eletronicamente o nascimento do calígrafo informático Remetenos à literatura infantil via qualidades elementares lúdicas e analógicas ao selecionar como referentes terra água ar bichos o corpo humano pode deixar entrever o poetainformático ambientalistaeco urbanistamísticointerestelar Mas é na vertigem dos signos que se criam as próprias referências É aí ma auto refrencialidade que convergem as temáticas modais da complexidade sistêmica das questões éticas do ambiente da percepção da racionalidade da centralidade do corpo da criação da vida entre o natural e o artificial Aí nessa vocação especulativa geral inserese a dimensão social no interior da qual uma coletividade informacional assumese como parte de um grupo sistêmico mais amplo mais articulado e global A centralidade da obra e do artista labirinticamente substitui a centralidade desse mundo A multiplicidade e a imprevisibilidade aparecem como dados a serem decodificados O leitor deve encarar o texto permutativo como obra em movimento São fragmentos poesia visual computação gráfica minimalismo música eletroacústica coreografia e recursos cênicos luz formas som e imagens se entrechocam intercambiam sentidos desafiando as interpretações lineares Cada texto assim é tecido labirinticamente e expõe um enigma a ser decifrado É a sensibilidade a disposição lúdica e inteligência astuciosa que não fará o leitor ouvinte expectador saltar para fora dos sentidos ali potenciais A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 133 Em Agora temse um diagrama temporal um labirinto no tempo encapsulando presente passado futuro em rede vertiginosa de tempos convergentes divergentes e paralelos formando uma imagem incompleta mas não falsa do movimento do universo No mesmo clipe o tartamudeio da voz que acompanha os flashs das palavras escritas e vão remetendo ao frágil da representação face a miríade de possibilidades que o real pode apresentar O que pensávamos estar separado ali aparece num jogo urdido de linguagem e realidade nós próprios e as questões de todos os tempos que engendram o homem Cultura em feixes complexos de cores desenhos estilizados sons e brincadeiras verbais inscreve na tela em palimpsexto a história da cultura humana fazendo conviver em simultâneos nós a nossa concepção de mundo a da criança e a de nosos ancestrais reverenciandoas esteticamente Os labirintos aqui evocam a dinâmica da vida o movimento de criação e expansão do mundo por meio de formas de espirais labirinticas que comportam dois sentidos de pensamento e praxis de evolução e involução Em cada entrecruzamento adensase o caráter revelador Para concluir uma experiência em hipermídia realizada por Ângela Lago Antes de entrarmos na animação vale considerar que a hibridização permitida pela digitalização e pela linguagem hipermidiática do ponto de vista do suporte consiste em dados transcodificados numericamente num espaço a n dimensões Esse suporte físico tem sua existência em telas de luz e sons codificados No caso dos textos em hipermídia o autor não constrói propriamente a obra mas concebe seus elementos e o algoritmo combinatório ficando a cargo do leitor a realização da obra ainda que cada um o faça de forma diferente O carater nãolinear das memórias de computador permite que os vários fluxos textuais estejam ligados entre si por elos probabilísticos e móveis e possam José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 134 ser configurados pelos receptores de modo a compor possibilidades instáveis Isto permite ao autor e leitor intercambiarem pólos de atuação de modo muito operativo O leitor trabalha com alternativas dadas mas de forma a recolocálas em circulação com as possibilidades virtuais do texto por meio desse processo devolvese o texto a uma fase anterior à seleção final de seus elementos constituintes restituindolhe variantes possíveis Desse modo o leitor opera com um número elevado de interações o que exige dele interferências diante de incertezas indeterminações e de fatores aleatórios Como o texto hipermidiático também não apresenta uma linha de raciocínio ele se abre para a experiência da percepção da imaginação do raciocínio do leitor como um processo que se modifica sem cessar adaptando se em relação ao contexto e jogando com dados disponíveis A leitura aqui ganha esse caráter lúdico mas exige esforço intelectual e a decisão de querer ou não imergir nesses meandros textuais com o risco de retornar a pontos mais complicados Segundo Arlindo Machado 2002254 a forma labiríntica da hipermídia repete a forma labiríntica do chip ícone por excelência da complexidade em nosso tempo Uma dessas produções é OH Um misto de desafio mistério e humor uma narrativa que é um jogo assombrado Entrando na animação flash vêse a silhueta de um rato a ossada de um cachorro a abanar o que um dia foi rabo e um esqueleto segurando uma vela vêse também um piano de meiacauda e no canto inferior direito da tela um pedaço de papel com um rato desenhado Apenas passeando com o apontador do mouse sem clicar em qualquer das figuras o rato põese a movimentar sua coluna chega mesmo a dobrarse completamente a fim de possa estufar o peito ou melhor as costelas a caveira por sua vez entoa um A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 135 aviso e quando o cursor é arrastado para o alto da tela ou fundo da cena soam trovões Nesse clima de mensagens cifradas não há quem resista a dedilhar o piano As teclas aparecem quase ao modo do instrumento convencional intercalandose entre brancas e pretas mas há uma a mais Cada qual vai desempenhar uma função É passando o cursor sobre a cauda do piano que ela se abre e duas mãosfantasma surgem de dentro uma segura a tampa a outra dedilha de forma persistente uma tecla enquanto se ouve uma risada Nesse instante o ratinho se move indo parar sob as pernas do cãoesqueleto Se o internautaleitorautor não decide o que fazer os olhos da caveira se movem para os lados ao mesmo tempo em que suas costelas arfam uma possibilidade é 1 tocar mais um pouco de piano e veremos o ratinho se movimentando sob os possíveis pés do esqueleto ou então 2 clicar sobre o desenho do rato e o rato irá saltar sobre o esqueleto humano guinchando Apenas passando o mouse o esqueleto treme na tentativa de livrarse do pequeno animal A decisão imediata pode ser um clique os remelexos continuam sem solução Podese solicitar auxílio do cachorro clicando sobre sua imagem De fato o cão abocanha o rato e o inevitável acontece ficar engasgado com um rato nem muito vivo nem morto a entrar e sair de sua boca O esqueleto humano cruza os braços sobre o rosto recusandose a olhar a regurgitação do cão com roedor semidevorado em sua boca O internauta pode intervir e o rato é salvo pelo mouse Passeando com o mouse os trovões permitem que se veja até o esqueleto do rato Um raio caindo duas vezes sobre o mesmo rato faz com que ele recupere suas carnes Como se livrar do roedor que parece não querer mais largar o mouse do internauta A única alternativa parece ser levantar a tampa do piano e clicar para ver o que acontece Ali dentro parece morar um monstro que papa o rato José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 136 para júbilo dos dois expectadores o cachorro põe a entoar mais um prolongado OH com a pose de cantor lírico enquanto o esqueleto aplaude a decisão do internauta Então era tudo uma armação para o rato uma mouse trap o papel onde há um desenho do rato é rapidamente riscado com um X vermelho então relemos esse pedaço de papel como um mapa ou o retrato de alguém que está condenado a ser mortodevorado pelo monstro do piano ou seria o pianista ou o próprio piano Há um som como guincho de rato que persiste em soar enquanto nada se faz Os olhos da caveira se inquietam É necessário reparar bem e ver que o desenhoretrato agora é de um cão e a folha tem o número 2 Mais uma estória já podemos imaginar o que fazer servir o cachorro para o piano mas há um inconveniente ele é apenas ossada o menor deslize do cursor faz por exemplo uma revoada de morcego preencher a cena saídos do piano temos que fechar sua tampa O cão lambe a perna do esqueleto Seria um mimo Clicando no desenho do cão no papel ou na imagem do personagem podese conferir sua intenção é fazer uma refeição o próximo clique faz com que o cachorro destaque o osso da perna do esqueleto e este pega o cão pelo rabo fazendoo de sanfona enquanto segura a vela com a boca Mais um clique e o cão espatifase sobre o piano é o fim do instrumento e do animal Só resta um aplaudindose É o fim último clique sobre o esqueleto que então se aproxima da tela do internauta com seus olhos móveis Olha bem para quem o olha Registrase uma simultaneidade comunicativa através do olhar pois o internauta que olha para a cena é quem assusta a caveira que agora o espiaO esqueleto recua para a cena o cão levantase e ambos correm apressados saindo pela esquerda O piano que também cria pernas sai pelo lado oposto O espetáculo enfim termina A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 137 O enredo é construído visual e sonoramente Sendo destinado a crianças o encadeamento vai se dando na medida em que se movimenta o mouse Desse modo a narrativa montase com a intervenção de seu receptor munido de um instrumento de comando o mouse A constituição sonora dessa hipermídia é feita de samplers onde os arquivos de áudio não se encontram disponíveis Há a predominância do visual no entanto a linguagem sonora é fundamental para marcar a sintaxe e a temporalidade da narrativa O receptor é colocado no jogo da sintaxe dos corpos sonoros CONSIDERAÇÕES FINAIS Distintas marcas históricas singularizam as formas artísticas as várias migrações e reinvenções de imagens concepções e estruturas se afirmam como metáforas para formulação de conceitos estéticos Os espaços textuais retecemse em fluxos operativos entre a participação do autor e do leitor Os distintos trânsitos e diálogos observados nos textos em análise atestam uma ecologia cultural de complexas semelhanças que se traduz por via do imaginário fertilizado pela própria inventividade de que o texto artístico é portador Nas obras inscrevemse elementos como absorções diálogos e transformações Multiplicidade complexidade aparecem como dados a serem decodificados O leitor deparase com um espaço labiríntico de traços permutativos que requer disposição lúdica e inteligência aventureira para os sentidos ali potenciais Cada obra assim passa a ser espaço de travessia potencialidades tanto de sujeitos que as integram leitor e autor como dos componentes materiais de significação que entram em sua discursivização A apreciação estética é lúdica ao mesmo tempo utópica e reflexiva tornandose capaz de regenerar sentimentos e engendrar José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 138 pensamentos críticos a respeito do concreto histórico posto que entram em jogo releituras da História do concreto social da herança cultural da literatura por meio de vozes dissonantes na apresentação de uma verdade agora polifônica Se os códigos verbais e não verbais tornamse essenciais para a construção dos sentidos códigos de sistemas sociais culturais e literários também constituem estratégias discursivas Fragmentação colagem montagem conceitual e fusão presidem a composição das obras Com a desritualização e dessacralização das formas canônicas fazse a entronizacão de formas ancestrais de experiências narrativas por conseguinte mais caóticas No entanto pela consciência de linguagem com que entram em operação esses elementos engendramse pelas vias da arte em novas ordenações formas mais rebuscadas Nesta época de poderosas tecnologias comunicacionais em que a sociedade humana vem desenvolvendo formas de socialização ciberculturais Começamos a nos deslocar por paisagens híbridas desterritorializadas que estão sendo colonizadas por um capitalismo perverso e cuja extensão pode abarcar e moldar culturas sob a égide de um modelo hegemônico É exatamente diante dessas constatações e dos enigmas que dos fatos derivam que pensamos a importância de nos colocarmos perto dos artistas Esses têm sido hoje os responsáveis pela humanização das tecnologias Daí lembramos que se por um lado os artistas tomam para si a tarefa de reconfigurar a sensibilidade humana em regeneração contínua o intelectual deve tomar para si o trabalho de modelagem de novos conceitos mais aptos aos enigmas que tem de deslindar No dizer de Nelly Novaes Coelho literatura é uma espécie de fio de Ariadne que poderia indicar caminhos não para sairmos do labirinto mas para conseguirmos transformálo em vias A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 139 comunicantes que a concepção do mundo atual exige Como intelectuais das letras devemos aguçar nosso olhar crítico para rotas de sensibilidade e inteligibilidade exploradas pelo artista Essas garantem tessituras mais criativas e responsáveis para o desenvolvimento do imaginário um território de múltiplas sínteses e tendências Com a profusão de processos signicos que derivam de misturas sem fim em vertigem essa forma cifrada de manifestação humana a literatura perpassa o tempo e atravessa diferentes culturas muito à vontade abrindo a possibilidade de se reencantar o mundo a vida as relações humanas e a relações homem máquina por que não REFERÊNCIAS ANTUNES Arnaldo Nome BMG Ariola 1993 BORGES JorgeLuiz Obras completas São Paulo Globo 1995 BLOOM H O cânone ocidental Os livros e a escola do tempo Rio de Janeiro Objetiva 1994 CARROL L Alice no país das maravilhas Sâo Paulo Ática 1982 COELHO Novaes Nelly A Literatura Infantil 7 ed São Paulo Mo derna 2000 COTÁZAR J O jogo da amarelinha Rio de Janeiro Paz e Terra 1987 CUNHA Maria Zilda A literatura infantil e o nascimento de uma nova linguagem a hipermídia Anais do 29th IBBY World Congress Books for África 2005 FURNARI Eva O problema do Clovis Vale Livros 1992 MACHADO Arlindo Pré cinema poscinema São Paulo Papirus 2002 MELLO Roger Zubair e os labirintos Companhia das Letrinhas 2007 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 140 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 MORIN Edgar Introdução ao pensamento complexo Lisboa Institu to Piaget 1991 ROSENSTIEHL P Labirinto Enciclopédia Einaudi v13 Lisbo aImprensa nacional 1988 SANTAELLA Lucia Navegar no ciberespaço o perfil cognitivo do lei tor imersivo São Paulo Paulus 2007 141 POLIFONIA E PERFORMANCE O EXPERIMENTALISMO ESTÉTICO EM RETRATOS DE CAROLINA DE LYGIA BOJUNGA Marta Yumi Ando INTRODUÇÃO O experimentalismo estético no âmbito da prosa infantil e juvenil brasileira encontra maior repercussão em obras produzidas a partir da década de 1970 embora suas raízes remontem aos anos 1920 com a obra lobatiana Em meio às tendências que se delineiam no período pós70 surge uma gama de obras inovadoras que agenciam procedimentos experimentais de várias maneiras entre as quais a polifonia a fragmentação os jogos temporais a metalinguagem a intertextualidade a mistura do verbal com o não verbal a miscelânea de gêneros Constatase através da autoreferencialidade um significativo espessamento do discurso literário o que possibilita a ruptura do horizonte de expectativas do leitor juvenil conduzindoo a reflexões acerca da matéria literária Observamos que em algumas obras autor e narrador se confundem de tal modo que o autor acaba por se tornar personagem e uma vez tornado ente ficcional passa a habitar o universo criado e a interagir com as demais personagens instaurando uma inusitada comunicação entre criador e criatura Isso é o que ocorre em Retratos de Carolina 2002 de Lygia Bojunga conforme veremos a seguir RETRATOS DE UMA PERSONAGEM Na obra em estudo o leitor se depara com a história de Carolina em diferentes momentos de sua vida o que é apresentado aparentemente de forma linear seguindo a ordem cronológica dos José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 142 acontecimentos Em vários momentos no entanto essa ordem é rompida através da inserção de digressões flashbacks e pela instauração do tempo psicológico em que se inspeciona a interioridade das personagens A par disso verificamse saltos temporais ou seja da Carolina aos seis anos passase para os quinze e depois para os vinte anos de modo a configurar retratos que marcaram a infância a adolescência e a maturidade da personagem Tratase como mais tarde revelaria a própria narradora de retratos em pretoebranco nos quais prevalecem vivências permeadas por paixões intensas mas sempre seguidas de frustrações profundas provocadoras de raiva ódio desespero Rompendo com as expectativas do leitor a segunda parte se abre com um capítulo metalingüístico intitulado Pra você que me lê em que deparamos com o inusitado corte da seqüência narrativa para dar espaço à outra história que todavia mantém estreitos laços com a história contada pelos retratos Tratase da história do embate entre escritor e personagem criador e criatura o que ocorre a partir da reivindicação pela personagem de retratos mais coloridos e menos frustrantes É nesse capítulo que surge um Autoretrato aos vinte e seis anos em que a personagem escreve um diário em que relata suas expectativas tece comentários a respeito de sua criadora e revela suas fantasias amorosas com outro personagem Discípulo ainda em processo de construção pela autora Convencendo enfim a escritora a lhe fazer um retratonão frustrante delineiase o último retrato de Carolina em que esta reencontra Priscilla a amiga de infância que a traíra mas que agora por uma ironia do destino é justamente quem lhe abre as portas para a realização profissional A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 143 A CONSTRUÇÃO POLIFÔNICA Em Retratos de Carolina o caráter polifônico observado no entrecruzar de diferentes vozes no discurso mostrase evidente Logo no início da narrativa é de notar a habilidade com que a autora altera o foco do narrador em 3ª pessoa passando do narrador onisciente neutro para a visão com e o monólogo interior em que se apresenta por intermédio do discurso indireto livre o deslumbramento de Carolina diante da nova amiga Por quase todo o texto constitutivo da primeira parte há o predomínio desse procedimento estético de modo que o narrador colocase no mesmo patamar da personagem filtrando seus pensamentos sentimentos e emoções mediante a fusão de vozes propiciada pelo discurso indireto livre Priscilla Carolina se encantou era a primeira vez que ela via uma Priscilla Achou o nome lindo Se fosse só o nome Mas que cara tão de Priscilla a Priscilla tinha Assim de olho verdeescuro e de riso fa zendo covinha no queixo e na bochecha Carolina se perturbou Ficou olhando pro cabelo em frente compri do encaracolado e ainda por cima avermelhado Era a primeira vez que ela via cabelo dessa cor p 910 Mediante o emprego do monólogo interior ocorre a passagem dinâmica do exterior para o interior e encenase o processo mental das personagens o que em termos estruturais pode configurarse em alterações sintáticas de modo que o texto ao transitar do estilo indireto para o indireto livre atenua seu caráter lógicodiscursivo E só agora a cara se afastando da cômoda a testa formando uma ruga Carolina se lembra que no caminho pra festa o Pai tinha contado uma história pra ela Como é mesmo que era a história Ah um cachorro era unha e carne com um gato e aí Mas se o Pai tinha José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 144 contado uma história pra ela feito ele sempre contava então ele continuava igual ao que ele sempre era É ou não é E se ele continuava igual ao que ele sempre era então ele não estava contra ela estava p 29 Em determinados momentos do texto o narrador se desvia de Carolina para voltar sua atenção para outras personagens através da onisciência seletiva múltipla Desse modo o narrador focaliza ora uma personagem ora outra dedicandolhes trechos em que nos são transmitidos seus pensamentos e sentimentos É o caso por exemplo das passagens em que se focaliza o pai O pai nota na superfície da escrivaninha uma mancha no couro que ele não se lembrava de ter visto antes Olha as manchas que tem no braço sol idade comparando as manchas que estão na pele e as que estão no couro p 88 A escrivaninha cuja imagem fora engenhosamente elaborada como a guardiã dos pensamentos do pai p 84 nos remete aos espaços bachelardianos relativos a casa e às transposições da função de habitar Tratase de espaços que podendo sugerir intimidade proteção e aconchego mostramse esquivos à perscrutação de olhares estranhos na medida em que se configuram como espaços onde é possível abrigar a memória e os segredos nela armazenados BACHELARD 1993 No que tange ao narrador em 1ª pessoa o foco se alterna entre narrador autodiegético o monólogo interior e o que denominamos arquinarrador intruso arquinarrador por se tratar de um narrador que fugindo das tipologias convencionais extrapola o plano diegético em um singular procedimento de autoreferencialidade e intruso porque tal como o narrador machadiano interpela o leitor levandoo a não se esquecer de que o mundo que tem perante os olhos embora se ancore no real é fictício A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 145 No capítulo que dá início à Segunda Parte há uma brusca mudança de foco da 3ª para a 1ª pessoa mas não se trata da simples interposição da voz de uma das personagens que vimos transitar pelo universo diegético Tratase da simulação da voz da própria autora artifício por meio do qual se confere maior verossimilhança à instância narradora e ao mesmo tempo imprime se feição marcadamente metalingüística ao texto Em Retratos de Carolina a princípio esse eu que se dirige ao leitor desde o título Pra você que me lê consiste em uma simulação do euautoral com o qual deparamos em menor ou maior grau em Livro um encontro com Lygia Bojunga Nunes 1988 Fazendo Ana Paz 1991 Paisagem 1992 O Abraço 1995 Feito à Mão 1996 e O Rio e eu 1999 Aliás é justamente através do recurso à intertextualidade com Feito à Mão que o leitor é remetido à autora real Na segunda versão do meu livro Feito à Mão em forma de introdução eu converso com você que me lê Hoje aqui nos Retratos de Carolina eu venho conversar de novo mas já disposta a mudar um pouco o feitio do nosso papo p 163 Tal feitio moldase desta vez a um espaço diferente se antes havia sido no início agora aparece quase no final do livro e a conversa toma a forma de históriaquecontinua p 164 que alerta o leitor para o fato de que a história de Carolina ainda não chegara ao fim Ao mesmo tempo a narradoraescritora revela que assim como procedera em Feito à Mão retomaria a prática de trazer suas moradas para dentro do seu texto Modificase contudo o propósito voltado agora não para falar das moradas em si e das vivências que nelas tiveram lugar como fizera em Feito à Mão mas sim para começar a integrar minhas personagens com os meus espaços encarando o fato de que agora a gente meus personagens e eu passamos fisicamente a morar juntos p 164 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 146 Nessa medida ao remeter o leitor a uma obra conhecida a identidade da narradora é conseqüentemente revelada Desvendando assim a própria máscara Lygia cria uma narradoraescritora que espelha a si mesma mesclando de modo extremamente original realidade e ficção como se a autora implícita tal como entende Booth 1980 se tornasse explícita ou como se autora implícita e narradora coincidissem ou se confundissem numa só voz Tratase de uma fusão entre realidade e ficção uma vez que a identidade autoral é revelada mas ao mesmo tempo a autora se ficcionaliza inserindose na própria diegese e interagindo com os entes ficcionais que aí transitam Foi por causa disso que um dia desses no Catavento ouvi a porta se abrindo e fechando lá embaixo Pensei qual deles está chegan do Mas quando escutei a cadência dos passos subindo a escada eu logo senti que era a Carolina p 164 Notese a presença do espaço em branco utilizado para marcar a transição temática e de ponto de vista Embora o foco permaneça em 1ª pessoa mudase o ângulo de visão que passa do euautoral supostamente real para um euautoral fictício vale dizer observase a transição da simulação da autora empírica para uma narradora que passa a integrar a diegese e à qual estamos chamando de autora ficcionalizada narradoraescritora ou arquinarradora Como se vê tratase de um ente ficcional de uma autora criada por Lygia à sua imagem e semelhança procedimento que encontra seu germe no conto A troca e a tarefa Tchau 1984 repetindose e ao mesmo tempo intensificandose de diferentes modos em outras obras da autora É como se a escritora de carne e osso Lygia Bojunga se desprendesse do mundo real e por vias mágicas virasse personagem da própria trama A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 147 Por outro lado se a autora convertese em matéria de ficção observase movimento inverso em relação à protagonista assim Carolina antes presa ao universo diegético elevase a um plano superior investindose do poder de invadir o universo em que se situa a autora que lhe deu vida Carolina recolheu a mão e disse eu queria te pedir pra fazer mais um ou dois retratos de mim Bom pra ser bem franca eu não me conformo da gente se separar assim só deixando retratos nega tivos de mim p 164165 Carolina transita portanto de uma diegese à outra sendo que a segunda diegese constituise em uma representação mimética mais próxima do real empírico do que a primeira Observase assim um desdobramento do simulacro platônico Nesse desdobramento mimético ao mesmo tempo em que a narradora simula ser a escritora real verificase a simulação da autonomia da personagem o que é reforçado adiante pelas palavras da própria autora Não forcei nada Carolina você já nasceu assim p 168 Por meio deste recurso além de o narrador adotar uma postura liberal frente aos entes criados a personagem criando vida própria rebelase contra os retratos negativos que lhe foram imputados e como que em uma aparição fantástica desprendese da diegese à que pertence para reivindicar retratos mais coloridos junto à escritora A mencionada hierarquia praticamente desintegrase no momento em que Carolina assume a voz narrativa o que ocorre à revelia da escritora Nem deixei ela falar mais nada vim membora pro Rio 8 de setembro Ela foi sembora e me deixou aqui Melhor que tivesse me deixado na Boa Liga lá a gente olha de cada janela José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 148 e só tem verdequetequeroverde Mas aqui Eu chego na janela e o meu olho de arquiteta tropeça logo num horror qualquer de tijolo e cimento p 170 Tratase do diário escrito na ausência da escritora que deixou Carolina pendurada no Catavento para ocuparse de outro personagem Desse modo tal diário surge de fato à revelia da autora como se esta não dominasse o manejo das teias com que tece a própria ficção Em termos de recursos estéticos convém notar o artifício utilizado para alternar as vozes narrativas Embora o foco permaneça em 1ª pessoa mudase o ponto de vista passando da narradoraescritora para a personagem central que por sua vez tornase narradora Em outras palavras poderíamos dizer que ocorre uma inversão de papéis a criatura assume o papel de criador e ao mesmo tempo a autora ficcionalizada tornandose personagem da narrativa escrita por sua personagem logra tornarse o foco para o qual se dirige o olhar dessa narradora Essa transição de foco marcada graficamente por um espaço em branco e pela mudança no formato da fonte para o itálico confere caráter dramático à obra uma vez que a distinção das vozes por parte do leitor ocorre não pela narração em si mas pela notação gráfica É assim que procede a construção do foco nessa segunda parte da narrativa ou seja mediante o movimento de contraponto de vozes em que se confronta o olhar da personagem com o da autora Esse recurso estético estendese até a página 208 já que a partir daí a autora enfim convencida pela personagem a lhe traçar um novo retrato retoma a narração em 3ª pessoa e o foco visão com É nesse momento que se delineia o retratonãofrustrante como tanto queria Carolina No final do último capítulo mudase mais uma vez de foco a voz onisciente neutra responsável por filtrar os movimentos interiores de Carolina se cala e agora quem toma a palavra é a narradora A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 149 escritora que retorna ao relato para finalmente despedirse de sua personagem Como em momentos anteriores esta transição enunciativa é marcada por uma breve pausa que se encontra no papel materializada por um espaço em branco A mão da Carolina até tremeu um bocadinho quando pegou a xícara Parei de escrever olhei pra janela o sol estava se pondo lá no mar hora pra andar na areia o pé rece bendo a onda que termina o olho flanando na vastidão do céu ainda incendiado de tudo que é vermelho e a marelo que vão pintando o fim da tarde p 225 Desse modo o euescritora novamente entra em cena dramatizando o próprio narrar e como se nota no trecho abaixo volta a interagir com sua personagem convertendose em personagem do próprio mundo que criara Essa transição entretanto não ocorre de modo suprareal mas de modo natural o que se nota através da forte integração entre a arquinarradora e a própria diegese Estava já no meu caminho de volta quando vi Carolina correndo ao meu encontro Chegou rindo Me abraçou e me puxou pra sentar na areia Eu estava curiosa Então gostou do seu almoço com a Priscilla Puxa você me pegou de surpresa nunca na vida eu pensei que ia me encontrar outra vez com a Priscila É isso foi legal p 226 É interessante notar a estratégia empregada imediatamente antes do encontro e por meio da qual Carolina toma contato com o novo retrato que lhe fora delineado Mas antes de sair imitei Carolina deixei meu caderno bem aberto no Carolina aos vinte e nove anos e escrevi um bilhete pra ela dizendo Gostaria de ouvir tua opinião sobre o teu novo retrato p 225226 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 150 Assim do mesmo modo como Carolina ao escrever seu auto retrato deixara o caderno escancarado sobre a mesa da escritora em um convite explícito para que esta o lesse desta vez é a autora que mimetiza o gesto de Carolina Mais do que isso ao deixarlhe um bilhete pedindo a opinião da personagem os papéis hierárquicos que convencionalmente moldam as relações entre narrador e personagem se desfazem para dar ensejo a um espaço aberto que não se reduz ao papel do escritor como aquele que mobiliza o destino das personagens uma vez que estas são convidadas a opinar sobre o rumo dado ao seu destino Conforme dissemos tratase da simulação da autonomia da personagem ou em outros termos de um fingimento poético do eu narrativo a fim de amenizar o próprio autoritarismo Como se trata daquele que é responsável por engendrar as teias da própria ficção e conseqüentemente dar vida às personagens criadas essa hierarquia queira ou não sempre estará presente Entretanto é possível atenuála sendo que o modo por meio do qual essa dissimulação adquire contornos mais definidos envolve a polifonia e o dialogismo mediante os quais ocorre o embate de vozes entre criador e criatura embaralhando as distinções entre realidade e fantasia vida e ficção É dentro desse projeto estético que Carolina assim como procedem outras personagens de Lygia Bojunga como Raquel e Ana Paz Fazendo Ana Paz 1991 desatase mais uma vez do mundo que lhe fora criado para questionar sua criadora Bom tem uma coisa que não me caiu bem lá no al moço Eu fiquei sem saber se a Priscilla tava sendo sincera quando disse que eu tinha me magoado com ela porque ela chamou a mamãe de puta E até agora eu tô sem entender porque que ela não disse nada quando eu falei da traição do caroço da ameixa p 226 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 151 O referido caroço adquire na narrativa duplo sentido assim se no plano diegético o caroço da ameixa fora motivo da dor da traição vivida na infância e revivida na vida adulta durante o almoço com Priscilla no plano metafórico esse caroço pode ser lido como algo difícil de engolir pela personagem e que se torna ainda mais difícil em função da resposta evasiva de sua criadora É verdade É verdade o quê Foi mesmo muito desconcertante aquela atitude da Priscilla A gente fica sem saber não é E afinal Afinal o quê Ela estava fingindo Ah Carolina isso eu não sei Mas isso não pode ser Você tem que saber Me impacientei Mas que mania vocês todos têm de que a gente tem que saber tintim por tintim de vocês Desde quando al guém sabe tintim por tintim de um outro alguém p 226228 Percebese assim que a escritora embora teoricamente dotada de um poder demiúrgico sobre a vida das personagens criadas mostra desconhecer os mistérios que regem a própria criação Desse modo o poder com que a arquinarradora é capaz de penetrar nas consciências de suas personagens é relativo ou melhor criase a ilusão de que inexiste onisciência autoral como se os entes criados fossem dotados de uma tal autonomia que lhes permitissem inclusive manterse impenetráveis Instado por Carolina o retrato positivo é pintado pela autora mas ainda assim a personagem não se dá por satisfeita querendo José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 152 viver uma história de amor com o Discípulo Carolina tenta mais uma vez convencer a escritora a lhe desenhar mais retratos positivos Mas uma história de amor pra você não custa nada num instantinho você faz Olha aqui você pega a Tâ nia bota ela numa missão Carolina vê se entende filha a tua história chegou ao fim Com esse teu retrato aos vinte e nove anos eu quis deslanchar a tua profissão a tua criatividade a tua independência econômica e acima de tudo a tua confiança nessa tua mão aí O resto Carolina inclusive essa tal história de amor que você tanto quer viver is so e o mais virão como conseqüência pode ter cer teza Mas o Discípulo Ele fica na tua fantasia eu já disse o papel dele aca bou sendo esse p 230 A narradoraescritora revela que já tinha outro no lugar do Discípulo que se perdera irremediavelmente na fantasia amorosa de Carolina E entre ver o mar e ver o céu eu vi ele também p 231 A revelação suscita a curiosidade da personagem mas desta vez a autora não se deixa seduzir por seus apelos Ah minha querida esse eu não vou te contar Senão você ainda me pega ele me bota ele na tua fantasia e aí começa tudo outra vez p 231 É nesse momento então que ocorre enfim a despedida entre criador e criatura E por um momento ficamos nos olhando Intensamente nos olhando E aí eu fui me afastando pra duna Espera ela gritou Mas eu continuei me afastando Sem querer olhar pra trás Eu não vou mais olhar pra trás A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 153 Eu não vou mais olhar pra trás p 231 Interessante o modo como ocorre a mudança do tempo verbal do pretérito perfeito para o presente dêitico A autora ficcionalizada transita assim do plano do enunciado para o da enunciação como se abandonando o narrado se inserisse no próprio espaço da narração E ao virar a página o leitor deparase com nova mudança gráfica no texto antes alinhado à esquerda agora encontrase centralizado com as palavras estrategicamente dispostas de maneira a desenhar uma imagem que se afunila Mas não resisti acabei me virando Carolina continuava no mesmo lugar A fisionomia dela estava resignada Resignada não serena Muito serena Respirei aliviada Levantei o braço e acenei com a mão Esperei Sem pressa mas sem nenhuma hesitação ela respondeu ao meu aceno me dizendo também tchau p 232 Desse modo a palavra tchau assim isolada na última linha da folha é também a palavra com que se encerra o texto verbal da narrativa Há entretanto na folha oposta um texto imagético uma foto em preto e branco de Lygia em uma praia deserta Certamente não foi por acaso que essa foto tenha sido escolhida e inserida estrategicamente ao lado do segmento final do texto pois a foto além de ambientarse em uma praia isto é o mesmo cenário do José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 154 Catavento parece exercer uma função ilustrativa como se estivesse ilustrando a cena imediatamente posterior à despedida Lygia Bojunga Foto Peter1 Examinando a imagem verbal que se afunila e termina com a palavra tchau o leitor poderá associála não apenas à performatização do fim mas também ao tempo que escoa incessantemente e que na obra é traduzido pela imagem da ampulheta sempre presente na escrivaninha do Pai É a vida que escoa e nos aproxima gradativamente da morte sempre à espreita mas que por outro lado também nos traz experiência e sabedoria PERFORMANCE A POIÉSIS E A CONSTRUÇÃO DÊITICA Em Retratos de Carolina falar sobre a performance textual em que o dizer coincide com o fazer levanos a deter nosso olhar sobretudo na Segunda Parte marcadamente de teor metalingüístico A começar pelo próprio título do capítulo que a inicia Pra você que me lê temse a encenação da escritura em que o texto deixa de dirigir seu olhar às peripécias da fábula para se deter no processo de sua construção Na segunda versão do meu livro Feito à Mão em forma de introdução eu converso com você que me lê Hoje aqui 1 Fonte BOJUNGA 2002 p 233 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 155 nos Retratos de Carolina eu venho conversar de novo mas já disposta a mudar um pouco o feitio do nosso papo p 163 Além de incorporar a intertextualidade com Feito à Mão observase aqui um processo de autoreferencialidade vale dizer o inclinar da obra sobre si mesma o que se configura por intermédio de recursos dêiticos que como sabemos funcionam como indicadores referenciais da enunciação Tratase como se vê de uma conversa da autora ficcionalizada com o leitor virtual e é como se tal conversa tomasse lugar no instante mesmo em que o texto é escrito performatizando assim a interação dialógica entre texto e leitor Nessa conversa virtual que se processa entre a instância da produção e a da recepção remetese não apenas à intertextualidade com outra obra da autora mas tematizamse também os impasses da criação que teriam envolvido o processo de escrita da obra Deixa ver se eu me explico se lá no Feito Mão eu uso o espaço da nossa conversa pra te contar como é que eu desenvolvi o projeto de um livro artesanal aqui nos Retratos eu uso um espaço diferente justo quando o livro vai acabando é que eu começo o papo pra te con tar a hesitação que me perseguiu até conseguir botar um ponto final na Carolina Só que dessa vez eu con verso com você em feitio de históriaquecontinua p 163 A autora tece uma reflexão metalingüística em torno da obra que está sendo produzida mas esta reflexão não se reduz a uma simples reflexão na medida em que o que era uma hesitação para botar um ponto final na Carolina transformase em uma nova história a história do encontro de Carolina com a autora ficcionalizada Esta reflexão em torno dos embates da criação também é encenada dramaticamente na passagem em que Carolina reivindica junto à autora uma história de amor com Discípulo José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 156 Mas como é que fica Ué fica como ficou no teu autoretrato Nem mais nem menos Mas não pode Por que que não pode É claro que não pode Lá ele não tem não tem his tória Não tem começomeioefim Lá ele ele só vive na minha imaginação não é feito o meu pai feito a minha mãe feito a Bianca O Discípulo fica sendo fruto do espaço da tua imaginação dos teus sonhos É só lá que ele vai viver p 205 Percebese que a escritora se refere indiretamente aos percalços encontrados no fazer literário quando se perde uma personagem de vista mas por outro lado seu dizer não se reduz a uma reflexão mas tratase de um vivo diálogo empreendido com a própria criatura Em outras palavras tratase de um dizer que se mostra fazendo o que diz Ainda no que concerne aos impasses inerentes à criação note se que a dificuldade encontrada pela arquinarradora em botar um ponto final na Carolina é reiterada adiante mas na voz da própria Carolina Quando ela chegou ela disse que tinha vindo me buscar falou que me deixou aqui descansando antes me dar tchau p 173 Se ela não me levou é porque ainda não me desligou p 173 Foi sembora e me deixou aqui de novo em banho maria Bom pelo menos eu sei que enquanto ela me deixa a qui pendurada é porque ela ainda tá hesitando no tal tchau p 191 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 157 Particularmente no primeiro exemplo temos duas vozes que se confundem no discurso a voz de Carolina em primeiro plano e a da autora em segundo já que se trata de um discurso reportado Nesse tchau hesitante nessa despedida protelada entre criador e criatura é interessante notar as imagens usadas para metaforizar a hesitação assim os verbos descansar não desligar e pendurar bem como a expressão banhomaria traduzem literariamente os entraves que envolvem a criação poética Mais adiante quando há o retorno da voz autoral que persuadida por Carolina concorda enfim em lhe delinear um novo retrato tais impasses são convertidos na imagem do papel em branco como se este indagasse o autor E agora eu estou aqui Olhando pro papel em branco p 207 Por esta via as dificuldades que envolvem o ato da criação literária convertemse em matéria artística ao serem trazidas para o mundo da ficção Outro recurso agenciado pela consciência operante para performatizar sua escritura é a referência feita a instrumentos próprios ao fazer literário como a mesa a caneta o lápis o papel e o computador que apontam não para a figura do narrador mas a do escritor da obra Nessa ordem de idéias muitas vezes em vez de se empregarem verbos discendi próprios do ato de narrar destacase a ação de escrever Acho que já que a Carolina se habituou no Catavento é melhor fazer o retrato aqui mesmo nesta mesa Pau sando o olho na lagoa No mar Nas dunas Continuo escrevendo à mão Agora usando mais caneta que lápis Às vezes experimento o computador Mas volto pro papel e pra caneta é feito voltar pra casa ti rar o sapato e botar o short p 207 Ela parou na porta e passeou um olhar atento pela mi nha mesa de trabalho Você estava escrevendo José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 158 Na cabeça quer dizer tava pensando p 164 Notese aí o emprego do verbo fazer associado à criação literária procedimento que também aparece em Fazendo Ana Paz a partir do próprio título Com efeito a performance da linguagem permeia todo o texto sendo que uma das formas por meio da qual se instaura consiste no emprego pela arquinarradora do verbo fazer para referirse à construção das personagens e às ações por elas empreendidas Esse recurso pode aparecer explicitamente Mas uma história de amor pra você não custa nada num instantinho você faz p 230 Ou de modo implícito Mas se eu não fecho a loja como é que depois você vai se enfiar num vestido da Eduarda E criar o impacto que criou no Homem Certo p 167 A utilização do verbo fazer por sua vez relacionase com a construção dêitica que percorre principalmente a Segunda Parte em que o tempo desligandose da sucessão privilegia o próprio momento da construção do relato Conforme elucida Octavio Paz não é o que foi nem o que está sendo mas o que estáse fazendo o que está sendo gerado 1982 p 77 Temse assim uma simulação de simultaneidade como se os movimentos de escrita e leitura coincidissem ou seja como se o leitor tivesse contato com o texto ao mesmo tempo em que este está sendo escrito Agora aqui nos Retratos retomo também essa prática a de trazer minhas moradas pro meu texto Mas com um propósito um pouco diferente o de começar a integrar minhas personagens com os meus espaços pensando assim se eu sou uns e outras por que dissociar uns das outras encarando o fato de que agora a gente meus personagens e eu passamos fisicamente a morar juntos p 163164 Além de haver a performatização do ato da escrita por meio da autoreferencialidade e da construção dêitica apontando para o A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 159 processo de construção do texto que por sua vez ocorre pelo emprego do presente do indicativo e de advérbios como aqui e agora temse a recuperação do contexto de produção das obras da autora por meio da integração de espaços reais à narrativa Fundindose às criaturas engendradas a escritora faz alusão a outro espaço extradiegético a Casa Lygia Bojunga para a qual migraram seus personagens É assim embaralhando vida e obra realidade e ficção que a escritura lygiana logra tornarse um espaço a ser habitado pela imaginação do leitor CONCLUSÃO Em vista da leitura empreendida podemos constatar que no que diz respeito à polifonia há uma multiplicidade de vozes e a constante alternância de foco Em um instigante procedimento de singularização a narradora se torna personagem do próprio universo diegético e em um procedimento inverso a personagem é elevada ao status de narrador Contudo essa transição não ocorre como no universo maravilhoso ou fantástico mas como dado instalado no real Nessa troca de máscaras verificase que se há vários narradores há todavia um principal a arquinarradora ou autora ficcionalizada responsável por costurar todos os fios da trama Como referimos essa arquinarradora em um singular procedimento de autoreferencialidade consiste na projeção da imagem da própria autora no mundo ficcional Desse modo fantasia e realidade se imbricam seres reais e imaginários se confundem e se entrelaçam no jogo da ficção demandando por parte do leitor um contínuo trabalho de semantização nos termos de Iser 2002 ou seja de produção e atribuição de significados aos espaços vazios que se insinuam e se disseminam nopelo texto José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 160 Por sua vez no que tange à performatização constatamos no texto a encenaçãodramatização da linguagem em um procedimento em que a escrita direciona o foco sobre si mesma Desse modo emerge um texto em que reiteradamente o dizer coincide com o fazer ou seja à medida que se narra colocase em relevo os mecanismos da narração evidenciando o processo de construção do texto Nesse procedimento autoreferencial a narrativa é construída ao mesmo tempo em que aponta os caminhos da própria construção resultando em um texto que se erige como dramatização como escritura encenada REFERÊNCIAS BACHELARD G A poética do espaço 1 reimp Trad Antonio de Páu da Danesi São Paulo Martins Fontes 1993 BOJUNGA Lygia Feito à mão Capa de Miriam Lerner Rio de Janeiro Agir 1999 O Rio e eu Il Roberto Magalhães Rio de Janeiro Salaman dra 1999 Livro um encontro com Lygia Bojunga 4 ed Fotos de Clo tilde Santoro e Cláudia Santana Rio de Janeiro Agir 2001 Paisagem 4 ed Il Regina Yolanda Rio de Janeiro Agir 2002 Retratos de Carolina Rio de Janeiro Casa Lygia Bojunga 2002 O Abraço Il Rubem Grilo 4 ed Rio de Janeiro Agir 2004 BOOTH W A retórica da ficção Trad Maria T H Guerreiro Lisboa Arcádia 1980 ISER Wolfgang Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcio nal In LIMA Luis Costa org Teoria da literatura em suas fontes v 2 Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2002 p 955987 NUNES Lygia Bojunga Tchau Il Regina Yolanda 3 ed Rio de Ja neiro Agir 1987 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 161 Fazendo Ana Paz Il Regina Yolanda Rio de Janeiro Agir 1992 PAZ O O arco e a lira Trad Olga Savary Rio de Janeiro Nova Fron teira 1982 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 162 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 A NAU CATARINETA EM DUAS VERSÕES INFANTIS A NARRATIVA POPULAR ATRAVÉS DAS ILUSTRAÇÕES Rhea Sílvia Willmer UFRJ INTRODUÇÃO A Nau Catarineta é um dos mais famosos poemas populares em língua portuguesa um episódio trágicomarítimo recolhido pela primeira vez em Lisboa no ano de 1843 por Almeida Garrett e publicado no Romanceiro e Cancioneiro Geral Possui atualmente várias versões escritas e embora não seja possível precisar a data de sua origem supõese devido à sua temática e linguagem que seja da segunda metade do século XVI logo após o auge das navegações portuguesas As versões desse poema conhecidas hoje são fruto de transmissões orais que por sua vez perpetuam parte do imaginário lusobrasileiro a respeito do mar e das navegações estabelecendo assim como afirma Walter Benjamin uma das formas narrativas clássicas exemplificada pela figura do marinheiro o homem que viaja e retorna tendo muitas histórias para contar A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores E entre as narra tivas escritas as melhores são as que menos se distin guem das histórias orais contadas pelos inúmeros nar radores anônimos Entre esses existem dois grupos que se interpenetram de múltiplas maneiras Se quisermos concretizar esses dois grupos através dos seus representantes arcaicos podemos dizer que um é exemplificado pelo camponês sedentário e outro pelo marinheiro comerciante BENJAMIN W 1994 pp 198 199 Ou seja para além de ser uma narrativa por ser amplamente difundido como metáfora para a jornada das grandes navegações portuguesas o poema Nau Catarineta tem caráter fundamental na formação do imaginário lusobrasileiro Se levarmos em consideração 163 o fato de boa parte da população tanto de Portugal quanto do Brasil ter sido iletrada até meados do século XX poderemos inferir a extensão da importância da conservação desse poema nas culturas desses países que provavelmente alcançou grande quantidade de leitores como Os Lusíadas principal obra poética no que diz respeito à formação da cultura lusófona É relevante aqui considerarmos que a sociedade que não sabe ler também tem as suas manifestações literárias a literatura é a verdadeira dimensão das sociedades do ponto de vista da identidade ROSÁRIO 2007 p316 Portanto esse poema popular apresentase como um episódio épicomarítimo uma vez que como nos antigos poemas épicos faz com que um povo não esqueça os grandes feitos dos seus antepassados ainda que não reproduza fielmente os acontecimentos históricos A NAU CATARINETA E A TRADIÇÃO ORAL LUSOBRASILEIRA O poema Nau Catarineta apresentase como veículo na propagação de parte da nossa herança cultural No fato de ser um relato poético a respeito das navegações consiste a peculiaridade dessa ode trágicomarítima uma vez que sua estrutura esquematizada de maneira a favorecer a memorização e recitação é concisa e clara para ser compreendida pelos ouvintes Ao contrário dos relatos em prosa da História trágicomarítima a narrativa não se estende em pormenores e particularidades portanto não serve hoje de documento histórico ou seja nessa narrativa não há nomes de pessoas ou de lugares pois condensa suas ações e personagens numa ação que apresentase como metáfora da História das navegações com alguns poucos personagenschave presentes na embarcação que está em altomar a caminho de Portugal ou da José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 164 Espanha Walter Benjamin em seu ensaio O narrador aborda essa questão da seguinte maneira O historiador é obrigado a explicar de uma ou de outra maneira os episódios com que lida e não pode absolu tamente contentarse em representálos como modelo da história e do mundo É exatamente o que faz o cro nista especialmente através dos seus representantes clássicos os cronistas medievais precursores da histo riografia moderna Na base de sua historiografia está o plano da salvação de origem divina indevassável em seus desígnios e com isso desde o início se libertaram do ônus da explicação verificável Ela é substituída pela exegese que não se preocupa com o encadeamento exato dos fatos determinados mas com a maneira de sua inserção no fluxo insondável das coisas BENJA MIN W 1994 p 209 A Literatura Popular tradicional de origem oral se aproximou da Literatura Infantil por causa da sua linguagem acessível e como afirma Câmara Cascudo Assim as estórias mais populares no Brasil não são as mais regionais ou julgadamente nascidas no país mas aquelas de caráter universal antigas seculares espalhadas por quase toda a superfície da terra CASCUDO 1978 p33 A exemplo do que ocorreu com os Contos de Fadas a Nau Catarineta é editada hoje para o público infantil talvez mais do que qualquer outro género o conto oral é universal e comum a todas as culturas e continentes LEITE 1998 p24 A partir do momento em que essas culturas tornamse majoritariamente letradas têmse uma modificação nas formas de transmissão da cultura popular que passa a ser vista como algo que deve ser salvo ou melhor preservado Ao mesmo tempo em que os conhecimentos passam a ser encontrados nos livros e não nas gerações mais antigas pais mães e avós já não sabem mais transmitir histórias receitas e outros tantos conhecimentos seculares A arte de narrar está definhando porque a sabedoria o lado épico da verdade está em extinção BENJAMIN W 1994 pp A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 165 200201 Tornase necessário a partir de então guardar os conhecimentos em livros e retransmitilos através de uma voz que possua autoridade voz que pode estar nos pesquisadores folcloristas historiadores ou acadêmicos dependendo das áreas de conhecimento envolvidas Isso ocorreu principalmente por causa das teorias evolucionistas do século XVIII que passou a identificar a cultura européia e letrada como o estado mais evoluído da civilização discriminando outras formas de saber As teorias evolucionistas contribuíram muito para a dicotomia entre oral e escrito A literatura oral era encarada como uma manifestação primária simples não sujeita a trabalho reflexivo e um produto de uma comunidade enquanto a literatura escrita revelava o oposto final conclusivo de um processo de desenvolvimento complexa e resultante do trabalho de um só autor LEITE 1998 p19 A Nau Catarineta conta a aventura que é descobrir novas terras Narra portanto um evento histórico as navegações com uma estrutura simples linguagem acessível e apresenta um conceito uma moral religiosa vigente na época que se traduz em perpetuação de um conhecimento Muito do conhecimento popular principalmente quando se trata de narrativas ou músicas de tradição oral é incorporado pelo público infantil principalmente por causa das suas estruturas lingüísticas simples antes para facilitar a memorização e agora para se adequar às capacidades cognitivas dos jovens leitores Contar histórias sempre foi a arte de contálas de novo e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas BENJAMIN W 1994 p 205 Dessa forma ainda que a narrativa não se perca há uma transformação na qual ocorre a aproximação entre o popular e o infantil uma vez que os adultos não contam mais essas histórias que agora estão nos livros e as crianças ainda não as conhecem Fazse necessário ressaltar que a Nau Catarineta não é José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 166 um texto escrito especialmente para o público infantil mesmo porque a Literatura Infantil é relativamente recente e o conceito de criança não existia tal como é conhecido hoje portanto os textos a que as criaças tinham acesso eram os mesmos dos adultos Participando as crianças nos serões e saraus com trovadores e contadores de histórias por certo que lhes não é vedado o acesso às representações teatrais sejam elas de temas religiosos ou profanos Os livros de cordel com textos de Gil Vicente podem ter chegado a ser lidos por um público infantil a quem realmente se não destinavam ROCHA Natércia 1992 p 36 A Nau Catrineta ilustrada por José de Guimarães Quetzal Editores 1983 apresenta texto recolhido diretamente da tradição oral em 1981 isto é quase 140 anos depois de Garrett ter transcrito o poema pela primeira vez o que indica que essa narrativa continuou a ser transmitida de geração em geração permanecendo viva e sujeita a pequenas mudanças e interferências de seus diversos narradores Essa é uma versão do Porto da Cruz Machico Ilha da Madeira recitada por Matilde Vieira à época com 78 anos e recolhida por Pere Ferré Já a versão da Nau Catarineta editada pela editora Manatti em 2003 na qual o poema e as ilustrações são fruto de pesquisa de Roger Mello sobre arte popular apresenta um claro trabalho de reapropriação dessa ode romanceada A ambientação do poema é feita de maneira a haver a identificação de elementos brasileiros na narrativa de origem portuguesa uma vez que toda literatura oral se aclimata pela inclusão de elementos locais no enredo central do conto da anedota da ronda infantil da adivinha CASCUDO 1978 p34 Através de uma escrita que reproduz a oralidade presente no poema em sua forma popular e de suas ilustrações que possuem um claro tom de dramaticidade e fazem alusão às formas encenadas da Nau Catarineta em território brasileiro tais como o fandango e a A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 167 marujada o ilustrador apresenta novas possibilidades de leitura do poema A METÁFORA DAS NAVEGAÇÕES NAS ILUSTRAÇÕES DE JOSÉ DE GUIMARÃES A versão da Nau Catrineta observese que a pronúncia portuguesa transparece no título recolhida em 1981 possui texto conciso que dialoga de maneira metafórica com as ilustrações do pintor José de Guimarães uma vez que suas referências culturais são universalistas e não nacionais ilustrações essas que não são realistas pois aproximamse de um traçado infantil Em sua apresentação de apenas dois versos pedese a atenção para a história que será contada mantendose um certo suspense evidenciado na palavra pasmar pela narrativa iminente as páginas do livro como em muitos livros direcionados para o público infantil não são numeradas Lá vem a Nau Catarineta que tem muito que contar ouvide agora senhores uma história de pasmar A representação pictórica da embarcação é curiosa uma vez que esta possui rodinhas e está sobre o mar que é uma serpente dessa forma estabelecese que aquela nau não navega de verdade tratase de uma representação lúdica a nau além disso possui rosto olho e boca ainda que isso nos remeta às carrancas ou aos rostros e olha em direção oposta ao marinheiro que mais tarde a criança descobre ser o Capitãogeneral É interessante observar que as cores em nenhum momento pretendem ser realistas o Capitão general por exemplo nessa primeira ilustração possui um braço lilás o rosto preto e o outro braço verde assim como a sua espada tendo ainda o topo de sua cabeça pintado de vermelho no que poderia ser seu cabelo um chapéu uma coroa ou ainda uma crista As cores José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 168 utilizadas quase sempre são primárias e secundárias As personagens são figuras antropormóficas com aparência de desenhos infantis do que poderiam ser pessoas bichos ou monstros monstrinhos na verdade pois são figurinhas simpáticas e não propriamente aterrorizantes e em algumas páginas parecem estar dançando A fome é um dos pontos de tensão do poema observese o verso Deitaram sola de molho para o outro dia jantar e as personagens aparecem colocando sapatos de molho notase que elas não usam sapatos E é a partir da fome que surgem o desespero e a tentação Deitaram sortes à ventura quem haviam de matar Surge uma personagem com a cara vermelha e a boca escancarada com fome ou talvez raiva e uma outra com o rosto de uma caveira por causa da fome ou num prenúncio de morte tocando um tambor que pode ser símbolo também do suspense pelo que há de vir a personagem que toca o tambor aparece ainda com a cabeça da serpente aproximandose de seu rosto serpente que estava presente na ilustração de abertura do livro e que agora parece estar representando a tentação demoníaca a que estavam sujeitos os marinheiros E como o rufar de tambores havia anunciado logo foi cair a sorte no capitãogeneral O Capitãogeneral é representado como uma figura imponente ocupando praticamente a página inteira do livro e traz uma espada que termina em cruz em seu rosto há outra cruz da figura que foi ungida simbolizando portanto o cristão português nas cruzadas marítimas Na página oposta surge a figura do gajeiro que deve subir ao mastro e verificar se há terra à vista mas esse marujo está possuído por uma serpente azul que o envolve junto ao mastro imagem que remete às mitologias cristã e clássica pois assim como a serpente pode simbolizar a tentação a que estão submetidos todos os marinheiros simboliza também a sabedoria e o A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 169 conhecimento notese que a serpente aqui está enrolada no mastro imagem do conhecimento e símbolo da medicina essa serpente figura recorrente nessas ilustrações do artista plástico português José de Guimarães pode ser tida como a representação do mar para os portugueses o mar que guarda todos os mistérios medos e conquistas As sete espadas que ameaçam o Capitãogeneral são sete serpentes entrelaçadas lembrando um monstro de sete cabeças como a Hidra de Lerna numa referência portanto à mitologia clássica Em seguida há a negociação entre o gajeiro e o Capitão general quando o Capitãogeneral para não ser morto pelos seus marinheiros oferece todos os seus bens materiais e imateriais para que o gajeiro indique onde há um porto seguro para a Nau Catrineta O gajeiro recusa todas as ofertas do Capitãogeneral e pede a sua alma pedido que o revela tratase do próprio demônio que é representado por uma figura com chifres de pés desproporcionais e três serpentes em seu corpo Observese que esse demônio possui lábios de mulher O Capitãogeneral se recusa a aceitar tal proposta e jogase ao mar A minha alma é só de Deus o meu corpo dou ao mar Há uma fragmentação da figura do Capitãogeneral como se ele estivesse a afogarse sua cabeça não aparece colada ao corpo suas pernas estão voltadas para cima seu rosto quase como numa representação cubista está de perfil ao mesmo tempo em que sua boca aparece escancarada e com um olho redondo que faz parte do perfil e outro quadrado mais de acordo com a cara de desespero que está voltada para frente o Capitãogeneral parece estar envolto em algas e sua espada mantémse intacta e firme opondose assim José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 170 a toda a configuração da página há ainda uma outra cabeça que está mais próxima ao pé da página cujo rosto parece observar o leitor Nesse momento há a representação da angústia e do medo mas na última ilustração do livro o anjo pega o capitãogeneral nos braços salvandoo dessa forma de um destino trágico Esse anjo aparece carregandoo de uma forma maternal como se fosse um bebê impressão realçada pelo olhar do anjo e pela presença de seios um dos quais voltado para o rosto do Capitãogeneral A DRAMATICIDADE DAS ENCENAÇÕES NAS ILUSTRAÇÕES DE ROGER MELLO A edição da Nau Catarineta de Roger Mello apresenta ilustrações carregadas de brasilidade suas cores fortes e quentes preenchem traços carregados de dramaticidade pois estão inseridos nessas ilustrações elementos que caracterizam a manifestação das representações dançadas e dramatizadas da Nau Catarineta Filho de raças cantadeiras e dançarinas o brasileiro instintivamente possui simpatias naturais para essa a tividade inseparável de sua alegria Canto e dança são expressões de sua alegria plena É a forma de comuni cação mais rápida unânime e completa dentro do país CASCUDO 1978 p35 As ilustrações feitas por Roger Mello remetem à arte naïf ou primitiva brasileira relacionada à arte popular Fazse necessário esclarecer que se convencionou chamar arte primitiva a que é produzida por artistas nãoeruditos a partir de temas populares normalmente inspirados no meio rural A palavra naïf vem do latim nativus que significa natural espontâneo Apresenta cores vivas imaginação estilização e poder de síntese levados para a tela com uma técnica aparentemente rudimentar Desta forma o artista que segue essa linha inspirase na vida do campo nas atividades de A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 171 plantar e colher e nas festas populares Seus personagens são os homens simples e os camponeses Para Jacques Ardies a arte naïf é um estilo que existe há milênios desde quando o homem desenhava cenas de caça nas paredes das cavernas Os artistas naïfs são forçosamente autodidatas no sentido que eles não receberam influência ou dirigismo de um professor de Belas Artes Eles começam a pintar por impulso e procuram resolver as dificuldades técnicas com meios próprios sendo perdoados quando as suas figuras não são perfeitamente desenhadas ou quando aparecem erros de simetria e perspectiva Porém a experiência da prática ao longo dos anos pode proporcionar ao pintor naïf uma técnica apurada e certeira ARDIES 1998 p15 Para Ardies o destaque da arte primitivista reside justamente na total liberdade de criação do artista que se expressa com espontaneidade e com inocência Em geral o artista naïf oferece uma visão interior repleta de cor criando um mundo para si próprio ARDIES 1998 p17 No entanto os artistas naïfs possuem a consciência da autonomia do espaço pictórico do uso expressivo e ornamental das cores e das diferenças entre o universo criado da realidade Roger Mello portanto nos apresenta um trabalho de pesquisa inspirado na arte pictórica popular unindo o traço aparentemente espontâneo a uma riqueza de detalhes que condensam a narrativa e a dramaticidade presentes no poema e nas encenações da Nau Catarineta ele nos apresenta novas cores com a elaboração inclusive de tonalidades de difícil reprodução gráfica distanciandose nesse particular de um típico artista primitivista embora os retratos da festa popular da Nau Catarineta sejam inspirados na arte naïf O texto de Roger Mello inclui vários elementos que remetem a outras festas populares e encenações dramáticas representadas no José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 172 Brasil o livro contém subtítulos Tripulação da Nau Catarineta Chegança Tempestade Calmaria Nau Catarineta e Despedida O poema propriamente dito está mais ou menos na segunda parte do livro é justamente a que se intitula Nau Catarineta Observando com atenção a capa do livro a primeira impressão que temos é a de estarmos diante daqueles tapetes feitos de retalhos utilizados para contar histórias O livro iniciase pela apresentação das convenções de representação pictórica das personagens a tripulação da Nau Catarineta notese que algumas dessas personagens são personagens típicas da Chegança Ração o cozinheiro Vassoura o zelador do navio o Reverendo que normalmente é chamado Capelão e os guardamarinha na Nau catarineta normalmente há apenas a figura do Capitãogeneral aqui temos o Piloto o Tenente e o Mestre ou Patrão Em seguida o texto começa com a apresentação da representação teatral em versos lembrando a apresentação de festas populares como a Folia de Reis por exemplo que ocorre no interior do país onde o grupo que está se apresentando passa de casa em casa chamando o público para o seu espetáculo observese que as páginas desse livro não são numeradas Entremos nesta nobre casa com estas vozes descansadas Louvores viemos dar Ao senhor dono da casa Os versos em redondilha maior assemelhamse aos versos de um cordel curtos com rimas simples o que facilita o ato de decorar essencial nas apresentações públicas Nas primeiras estrofes há a apresentação ao público quando o narrador esclarece que o poema trata de uma obra fictícia descrevendo a própria representação que está sendo prestigiada Nossa barca e os marinheiros navegando pela rua A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 173 Os marujos vão em linha e o fandango continua Ando roto esfarrapado mas hoje sou almirante desta barca de brinquedo amarrada num barbante Aqui hoje sou marujo com pandeiro e espadim Minha nau é de brinquedo ninguém tenha dó de mim A imagem que acompanha esse texto retrata provavelmente alguma cidade histórica brasileira com suas ruas de paralelepípedo e casinhas coloniais recuperando o caráter de um Brasil que todos temos no nosso imaginário Há a representação de uma festa popular que pode ser um fandango ou uma marujada com traços primitivistas nas figuras bidimensionais A ênfase para a figura do almirante é dada pela sua desproporcionalidade uma vez que é a maior figura da cena Está representado com roupas de almirante e espada embainhada portando um cone espécie de megafone em sua mão direita e puxando um barco de brinquedo com rodinhas por um barbante Fazse um paralelo com o texto com pandeiro e espadim o pandeiro do texto assim como o cone da ilustração representa a festa popular a representação propriamente dita já o espadim é um elemento cênico importante na caracterização da personagem do almirante À sua volta na ilustração estão os músicos representados com pandeiros e violas vestidos de marinheiros em linha ou seja enfileirados Há ainda a presença do público com vestes coloridas carregando bandeirinhas prestigiando a festança É curioso observar que as pessoas são representadas em José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 174 diversas tonalidades rosa marrom vermelho preto verde e amarelo o que sem dúvida nos remete ao próprio povo brasileiro miscigenado e colorido alegre e festivo Ou seja na representação do poema de origem portuguesa Roger Mello recria a narrativa regionalizandoa e colocandoa num contexto abrasileirado O mar está representado em algumas ilustrações por uma trama que se assemelha à tapeçaria talvez em alusão àquelas que poderiam estar sendo transportadas pela Nau Catarineta ou mesmo às tapeçarias de tear feitas no Nordeste caracterizando a ambientação do poema de origem portuguesa no Brasil Vemos ainda cravosdaíndia desenhados na proa da embarcação simbolizando as preciosas especiarias que motivaram boa parte das navegações dos séculos XV e XVI Nas ilustrações em que o mar não está representado dessa forma ele é indicado por meio da metonímia peixes arraias águasvivas monstros marinhos estão no lugar onde deveria estar o mar trazendo à tona o gigantesco imaginário existente a seu respeito lembremonos do Mar português de Fernando Pessoa Deus ao mar o perigo e o abismo deu Mas nele é que espelhou o céu Cabe ressaltar ainda que quando o Capitão general jogase ao mar é salvo por um anjo Há a apresentação de alguns momentoschave do poema em páginas inteiramente vermelhocarmim com a presença apenas de alguns personagens e elementos que representam os adereços dos atores como bandeirinhas panelas e o megafone do Mestre ou Patrão que ao que parece é o narrador do livro Nesses momentos de auge da dramaticidade o narrador cede a voz às personagens que condensam a tensão em suas falas afinal o vermelho traduz toda a tensão contida nesses episódios No segundo momento do texto há a Chegança com a apresentação da história que virá a seguir a Chegança é um Auto popular caracterizado pela presença de marujos e pelo embate entre A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 175 cristãos e mouros que culminava com a derrota e conversão dos mouros foi muito popular em Portugal no século XVIII tendo sido proibida por D João V Nesse momento da narrativa apresentase a nau do reino de Lisboa os primeiros versos são também os primeiros versos do poema popular da Nau Catarineta Lá vem a nau Catarineta que tem muito o que contar Ouçam agora senhores uma história de pasmar Esta nau é de Lisboa de Lisboa é esta barca Nela afronto tempestade para ver nosso monarca As personagens carregam instrumentos musicais violão cavaquinho e pandeiros que caracterizam a orquestra da Chegança e objetos cênicos vassoura panela balde e espadas há também sombrinhas coloridas como as que caracterizam a dança do frevo Há também nessa cena um elefante colorido provavelmente indiano O poema apresenta dois momentos de grande tensão o primeiro deles quando da tempestade que atingiu a Nau Catarineta e o segundo na disputa entre o Capitão e o Diabo Durante a tempestade há o desespero da tripulação e uma disputa de poder entre os diversos tripulantes nas ilustrações as personagens aparecem recolhendo as velas da embarcação e cada uma das velas aparece como se fosse um balão daqueles que representam as falas de um diálogo de história em quadrinhos em mais de um momento do livro aparecem referências aos quadrinhos o que é um contraste interessante com as figuras representadas na maior parte das vezes inspiradas na arte popular as personagens não estão com seus pés firmes na embarcação e o único que está com fisionomia tranquila é o José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 176 gajeiro Há um momento de humor nas falas quando as personagens criticam o piloto porque este gosta de beber cachaça o que poderia ter feito com que a nau saísse de sua rota original ao que o piloto responde eu bebo minha cachaça mas nâo é com seu dinheiro O mar está representado por figuras marinhas quase monstruosas O Contramestre o Patrão e o Tenente querem mandar na Nau Catarineta mas a questão é resolvida com a intervenção do Capitão general que surje na página seguinte com sua espada desembainhada ameaçando a tripulação com severos castigos A figura do Capitãogeneral aqui surge no alto da página acima da embarcação e desproporcionalmente maior que toda a tripulação desequilibrando a configuração da ilustração simétrica O Capitão general é ainda a única personagem reconhecível nessa página do livro Depois da tempestade passamse sete anos e um dia de calmaria Ao longo desse tempo em que permaneceram à deriva os marujos fazem do contar histórias o seu passatempo histórias como a da própria Nau Catarineta a página representa a noite o fundo é preto o mar é azulmarinho e tem águasvivas as personagens carregam lampiões e apresentamse com fisionomias serenas um dos marujos conserta uma das velas da embarcação enquanto vários dos marinheiros estão sentados escutando histórias contadas por senhor de cabelos e barba brancas observese que essa personagem segura em sua mão direita um barquinho de brinquedo assim como o Mestre nas primeiras páginas do livro Roger Mello apresenta nesse momento a figura do contador de histórias tanto na ilustração quanto no texto Um marujo de primeira viagem pediu a um outro enrugado Conta de novo o ataque do navio mouro O contador de histórias referese à Moura Torta Era uma moura torta era uma princesa nua um dos mais tradicionais contos populares portugueses no qual a vilã é a uma velha moura do título A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 177 as referências aos mouros como vilões faz parte de várias festas e narrativas populares A calmaria a princípio parece ser mais proveitosa que a tempestade e é num momento de calmaria que surge o poema da Nau Catarineta propriamente dito a partir desse ponto o texto aproximase bastante do poema tradicional no entanto a comida escasseia e a fome deixa toda a tripulação desesperada Situação comum e recorrente durante as navegações principalmente durante longas calmarias e após naufrágios quando os sobreviventes encontravam alguma terra que não lhes era familiar Já não tinham o que beber nem tampouco o que manjar senão sola de sapato uma fome de amargar Botamos as solas de molho para outro dia jantar Mas a sola era tão dura que não pudemos tragar A página dupla que apresentanos a tripulação faminta é fortemente amarelada o amarelo muitas vezes é tido como a cor do desespero por causa da fome a tripulação faz um sorteio para escolher quem será comido pelos demais e é sorteado o Capitão general que desesperado pede ao Gajeiro que suba ao mastro para tentar avistar alguma terra A página apresenta o mar estático como se fosse um tapete o gajeiro no alto do mastro à esquerda da nau e o Capitãogeneral desproporcionalmente maior que as outras personagens novamente com a boca escancarada e sua espada desembainhada ameaçado por sete marinheiros com suas pequenas espadas José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 178 O Capitãogeneral tenta uma espécie de barganha com o Gajeiro oferecendolhe a filha seu cavalo e seus bens para que este lhe mostre onde há terra firme mas o Gajeiro não quer quer a Nau Catarineta ao que o Capitão responde que não pode dar pois a nau pertence ao rei de Portugal A tripulação aparece se escondendo e tapando os olhos revelando para os leitores através das ilustrações o medo Durante esse diálogo entre o Capitãogeneral e o Gajeiro há uma sequência de ilustrações que lembram histórias em quadrinhos com a repetição do cenário mas com mudanças nas ações das personagens O Gajeiro então pede a alma do Capitãogeneral revelando ser o próprio Demônio que nessas ilustrações está representado como uma figura quase marinha com a presença de guelras no lugar onde deveriam estar as orelhas Ele vai se transformando em figura demoníaca enquanto fala com o Capitão isso fica bastante claro na representação das ilustrações na primeira vez em que o Gajeiro aparece ele está vestido de marinheiro depois mostra o seu corpo vermelho e por fim o seu enorme rabo No momento em que o Gajeiro finalmente se revela as páginas tomam um tom predominantemente avermelhado com a presença de vários diabinhos e de nuvens negras em torno da embarcação e com a tripulação escondida e escondendo os seus rostos como fazem as crianças quando amedrontadas Os mastros da Nau Catarineta nessa ilustração assumem a forma de cruzes demonstrando que a nau goza de proteção divina O Capitãogeneral ao constatar a verdadeira identidade do Gajeiro não aceita fazer acordo com o Demônio e se joga ao mar aparece portanto em meio a tubarões águasvivas e arraias no fundo de um mar bem escuro enquanto seus homens o avistam de cima do barquinho agora pequenino ao longe A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 179 Um anjo imponente salva o Capitãogeneral pegandoo do fundo do mar trazendoo de volta à embarcação Desta forma depois da derrota do Diabo a tripulação é representada muito alegre numa verdadeira comemoração junto aos anjos entre os quais aparece até mesmo uma figura que nos remete à imagem de Nossa Senhora Aparecida É interessante notar que nas ilustrações que representam o embate do Capitão com o Diabo depois que este se revela ou seja no embate entre o Bem e o Mal há a representação de diversas naus nau do cão nau horrorosa nau infernal nau tenebrosa nau celestial e nau divinal numa clara alusão aos Autos das Barcas de Gil Vicente autos teatrais assim como às representações da Nau Catarineta em território brasileiro na forma de fandango e de marujada A nau é levada de volta a Portugal com todos a salvo Termina assim com uma festa o episódio da Nau Catarineta Olhem como vem brilhando esta nobre infantaria Saltemos do mar pra terra ai ai festejar este dia Saltemos todos em terra todos com muita alegria louvores viemos dar a Deus Menino este dia Paralelamente à festa que começa por causa da chegada da nau a Portugal a festa popular fandango ou marujada chega ao seu fim assim como a tripulação da nau Catarineta todos voltam à sua vida cotidiana Triste vida do marujo de todas a mais cansada Mal ele chega na praia José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 180 A barca apita apressada Todos filhos da fortuna que quiserem se embarcar a catraia está no porto a maré está baixamar Os marujos voltam a Portugal a festa termina com a alusão a novas aventuras a todos que quiserem se embarcar e a ilustração de Roger Mello retorna ao cenário onde a festa começou agora com as pessoas indo embora as bandeirinhas esquecidas pelo chão e o Almirante de costas carregando seu cone debaixo do braço e puxando seu barquinho pelo barbante CONSIDERAÇÕES FINAIS O poema popular Nau Catarineta ou Nau Catrineta possui inúmeras versões escritas que partem de incontáveis narradores tradicionais afinal o poema foi recolhido da tradição oral No Brasil apresentase também na forma de festas populares de temática marítima tais como a Barca a Chegança o Fandango e a Marujada que contam com músicas danças e encenações dramáticas Nesse trabalho foram observadas duas edições ilustradas direcionadas para o público infantil uma recolhida diretamente da tradição oral na Ilha da Madeira e ilustrada por José de Guimarães e a outra ilustrada por Roger Mello que compila textos e cenas de festas populares no Brasil A partir da observação das ilustrações de cada artista plástico percebemos a diferença de interpretações de cada um deles para o poema que faz com que hajam leituras múltiplas de cada leitor e observador da narrativa em cada uma de suas edições o que ocorre principalmente porque as ilustrações não são realistas embora utilizemse de elementos figurativos de maneira lúdica A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 181 Na versão ilustrada por José de Guimarães percebese a presença de elementos figurativos em desenhos de traçado infantil com algumas figuras facilmente identificáveis algumas outras inferidas e ainda figuras enigmáticas e quase abstratas que no entanto podem ser interpretadas de maneira pessoal por cada leitor do livro o texto simples com versos curtos e com a temática de uma aventura é um chamariz para as crianças Talvez seja justamente devido à temática da aventura e ao imaginário provocado pela idéia do descobrimento de novas terras que tenha possibilitado a perpetuação desse poema Já na versão de Roger Mello há uma grande ela boração tanto do texto quanto das ilustrações que são extremamente dramáticas com diversas personagens inspiradas nos autos populares brasileiros bastante expressivas suas expressões estão em seus rostos e corpos que muitas vezes encenam uma dança de passos marcados Roger Mello utilizase de colorido inovador foge à palheta de cores simples e chapadas normalmente utilizadas nas publicações infantis para melhor explorar a dramaticidade das cenas Cabe ainda analizar melhor a presença da personagem do gajeiro que se transforma no Diabo com referências tanto aos Autos das Barcas de Gil Vicente quanto aos Contos do Diabo Logrado fortemente disseminados na tradição oral de língua portuguesa especialmente no Brasil na Literatura de Cordel REFERÊNCIAS ARDIES J A arte naïf no Brasil São Paulo Empresa das Artes 1998 BENJAMIN Walter O narrador In Magia e técnica arte e política São Paulo Editora Brasiliense 1994 CASCUDO Luis da Câmara Literatura Oral no Brasil Rio de Janeiro Livraria José Olympio Editora 1978 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 182 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 CORTESÃO Jaime O Que o Povo Canta em Portugal Rio de Janeiro Livros de Portugal 1942 GUIMARÃES José de A Nau Catrineta Viseu Quetzal Editores 1983 LEITE Ana Mafalda Oralidades e Escritas Lisboa Edições Colibri 1998 MEIRELES Cecília Problemas da Literatura Infantil 2 ed São PauloEditorial Summus 1979 MELLO Roger Nau Catarineta Rio de Janeiro Manati 2004 PERES Damião História dos Descobrimentos Portugueses Porto Vertente 1983 PIGAFETTA Antonio A Primeira Viagem ao Redor do Mundo O diário da expedição de Fernão de Magalhães Porto Alegre LPM 1985 ROCHA Natércia Breve História da Literatura para Crianças em Portugal 2 ed Lisboa Instituto de Cultura e Língua Portuguesa 1992 ROSÁRIO Lourenço do Singularidades II Maputo Texto editores 2007 183 O APELO À IDENTIDADE NACIONAL E AO UTÓPICO NA OBRA INFANTOJUVENIL DE LAURA INGALLS WILDER Fabiana Valeria da Silva Tavares INTRODUÇÃO Houve um tempo em que narrativas eram fonte de toda fantasia para as crianças e de toda a possibilidade de memória para os velhos que na ânsia de tornarem suas histórias conhecidas e mais do que isso lembradas registravamnas através da escrita Laura Ingalls Wilder é deste tempo Nascida nos Estados Unidos no ano de 1867 vivenciou nos primeiros vinte anos a fase final do conhecido movimento pioneiro de população do território oeste norte americano Descendente de escoceses imigrantes saiu com a família do estado de Wisconsin e rodou a carroça carregada de móveis de utensílios e do sonho americano através dos territórios mais inóspitos de Kansas de Minnesota e de Dakota Do lado leste do país explodia o crescimento industrial e econômico americano e o sonho de muitos morria nos salários insuficientes pagos aos pobres muitas vezes imigrantes recémchegados de países como Irlanda e Itália e nas lutas dos sindicatos que começavam a se formar como era o caso do Knights of Labor LIMONCIC 2003 A vida da família Ingalls porém estava distante do fervor e do crescimento urbano e prendiase principalmente aos preceitos jeffersonianos de que aquele território era na verdade uma nação de agricultores Assim em meio a todas as dificuldades impostas pelas intempéries pela falta de recursos financeiros e de recursos naturais e pela falta de uma estrutura social mais organizada a família Ingalls estabeleceuse finalmente em De Smet em Dakota do Sul Ali Laura conheceu o fazendeiro Almanzo Wilder originário do estado de Nova York e casouse com ele Após 4 anos de infrutíferas José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 184 tentativas de sucesso no plantio de grãos e na criação de carneiros e gado incluindo nesse período a doença que quase paralisou as pernas de Almanzo e a morte do segundo filho mudaramse para uma região mais próspera e ali fizeram sua fazenda Rocky Ridge onde ela ativamente trabalhou na fazenda contribuiu com artigos para o jornal local The Ruralist e durante os anos da Depressão escreveu a série de nove livros que hoje conhecemos como Little House Books Mistura de romanesco romance e autobiografia a série é o resultado daquilo que Miller 1994 denomina processo de ficcionalização da história da família Ingalls sob o ponto de vista da menina Laura e sua trajetória dos 3 aos 19 anos ao lado dos pais e das três irmãs Estruturada de forma episódica a série dá conta de narrar as pequenas aventuras da família Ingalls recheandoas com todos os valores arraigados na cultura norteamericana existentes desde o seu início e fortemente marcados por uma ideologia que pregava como ponto alto da luta humana a figura do selfmade man Com base em seu talento para filtrar as passagens que mais interessavam para criar as que seriam mais atraentes e para colocar tudo no papel Laura Ingalls prendeuse a um projeto pessoal de reconstrução não só de sua história pessoal mas da identidade nacional de um povo abalado pelas conseqüências severas de uma Depressão que assolou o país Como nos explica o historiador Miller a acuracidade histórica porém era somente uma con dição necessária e não uma garantia de boa história e Wilder desejava sacrificar a acuracidade caso fosse ne cessário em prol de um fluxo narrativo Datas ou nomes poderiam ser alterados idades poderiam ser modificadas ações poderiam ser inventadas ou recons truídas e episódios poderiam ser completamente recri ados Assim embora fosse acurado em muitos as pectos os romances de Wilder não poderiam ser enca rados como História factual Eles são ficção e responde ram às leis ditadas pelo gênero Os detalhes eram freqüentemente modificados para esclarecer a história A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 185 ou simplesmente para melhorála Ela queria se prender aos fatos tanto quanto fosse possível e à medi da que pudesse lembrálos mas ela rearranjaria em modificaria aqueles fatos onde fosse preciso para en caixálos nas necessidades dramáticas da narração MILLER 1994 pp 845 88 tradução nossa Entendemos então que não somente de história e de lembranças a narrativa da coleção foi feita ela contou com um expertise literário assaz refinado para que se pudesse produzir com grande sucesso o que décadas depois viria a se tornar toda sorte de material de consumo desde seriado de TV até livros impressos em papel jornal calendários e longasmetragem produzidos já nos anos 2000 para a televisão A CONSTRUÇÃO DE UMA IDENTIDADE A PERSONAGEM E SEU ESPAÇO Embora a série retrate em sua maioria a história da família Ingalls Wilder dedicou um volume da série para narrar a infância do garoto Almanzo e de sua família numa fazenda localizada no estado de Nova York na cidade de Malone Este é o volume publicado em 1933 e intitulado Farmer Boy O Jovem Fazendeiro O expediente de elaboração literária é o mesmo dos volumes dedicados à narrativa da família Ingalls Há ainda um volume postumamente publicado que não passou pelo crivo da revisão de Rose Wilder Lane filha de Wilder e escritora que colaborou mas não escreveu a série Little House Books como nos lembra Fraser 1994 A ausência da revisão e da discussão sobre seu teor resultou muito mais num romance do que no romanesco propriamente dito no derradeiro volume intitulado The First Four Years Os Primeiros Quatro Anos publicado somente em 1972 No entanto o espírito do que é conhecido como a experiência americana e que carrega através dos séculos toda a ideologia que José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 186 une a nação numa só voz está fortemente marcado nos oito primeiro volumes e vivamente destacado em Farmer Boy Este foi o segundo volume escrito por Wilder Após ter obtido sucesso com a primeira experiência seus editores pediram algo que representassem com mais intensidade o espírito da nação algo que como explica ROMINES 1994 fizesse a nação se lembrar dos valores que as tinham construído e que as fizessem resistir nos tempos desoladores da Depressão Naquele ano Herbert Hoover saía do comando e Roosevelt assumia a nação americana para colocar em plano o New Deal ditando os preços dos produtos controlando colheitas estendendo seus braços paternalistas sobre as associações artísticas que necessitavam de patrocínio e subliminarmente precisavam ficar sob as vistas para que não estendessem suas asas de tons avermelhados sobre uma economia democrática que mais tarde ainda nos anos 1930 iniciaria ainda de dentro dos departamentos do governo o trabalho de diluição do movimento socialista SCHLESINGER Jr 1958 WEINSTEIN 1975 Frente à baixa dos preços das colheitas e da carne proveniente da matança dos animais de corte a então fazendeira Laura Ingalls Wilder testemunhou a subversão de seu mundo e o que era um hobby tornouse profissão lucrativa que viria a compor sua principal fonte de renda Foi assim então que Farmer Boy tomou corpo literário e espírito nacionalista Muitas foram as estratégias de composição literária que formaram os Little House Books Vale a pena explicar em poucas linhas que se tratava então de uma literatura de resgate dos valores e cujo teor inspirava segurança e fé para seus leitores Falava não de fome desemprego e desespero mas de um espaço quase précapitalista onde o homem dependia de um pedaço de terra cedido pelo governo de seus músculos e de sua genuína vontade de trabalhar e de vencer não importando para tal que do outro lado do país houvesse um outro quadro social e econômico e outras lutas A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 187 travadas não com machados e arados mas com mãodeobra e com salários e ações na bolsa Numa palavra o espaço construído nas narrativas de Wilder é fechado em si e as comunidades ali descritas dependem de si mesmas ou no máximo das mercadorias vindas dos trens e pelas quais pagam com as mercadorias produzidas em suas terras e vendidas localmente Em tal estrutura fundamental é o papel desempenhado pela personagem Uma vez que eram livros destinados a jovens e crianças a autora construiu sua ficção em torno das personagens centrais Laura Ingalls para a maioria dos livros e Almanzo Wilder em Farmer Boy O cuidado tomado para que isso não fugisse do controle é comprovado pela correspondência entre Wilder e Lane Dizialhe a filha Você DEVE sempre se lembrar de escrever a coisa toda a partir do ponto de vista da Laura Lane lembrava à sua mãe Arranje o material de modo que ela possa de fato ver ouvir experimentar tanto quanto possível MILLER 1994 pp 945 A saída encontrada por Wilder foi bastante eficaz senão genial em vez de fazer uso do narrador onisciente seletivo mesclouo com a possibilidade de falar do ponto de vista de quem escreve uma autobiografia e adotou o que Mendilow in STEVICK 1967 ponto de vista restrito O autor apresenta tudo através da mente de uma única personagem ou pelo menos de uma personagem por vez durante uma parte considerável do livro As outras personagens são julgadas pelo seu exterior a partir de suas ações e de seu comportamento tal como vistos pela personagem central Este método é um modo de relacionar os métodos onisciente e autobiográfico a convenção artificial do autor onisciente fica limitada a uma única pessoa no romance por outro lado a inflexibilidade e as várias desvantagens pertencentes à primeira pessoa são evitadas José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 188 O uso do ponto de vista restrito não apenas torna a identificação entre leitor e personagem mais fácil ele também promove uma apresentação direta e imediata devido ao fato de ser assim que as pessoas parecem agir na vida real Nós não nos vemos como os outros nos vêem Estamos conscientes da pressão total do passado em nosso presente Conhecemos a nós mesmos a partir de dentro somos em maior ou menor grau oniscientes de nós mesmos Com relação aos outros porém somos meros espectadores podemos apenas adivinhar os motivos de suas ações e de seu comportamento não podemos ter evidência direta de dentro de suas mentes Eis o motivo pelo qual as pessoas nos parecem tão mais simples do que nós mesmos Sabemos apenas o resultado das forças que trabalham sobre elas uma vez que se expressam em sua parte externa Em nós mesmos estamos cientes do equilíbrio complexo e inconstante de forças conflitantes ao mesmo tempo antes que alcancem sua expressão na ação Mendilow in STEVICK 1967 pp 279280 nossa tradução As narrativas de Wilder então produzem um narrador que consegue facilmente transitar do papel onisciente para o de alguém que narra convincentemente como se fosse testemunha ocular do acontecimento de forma a tornar ainda mais eficiente a identificação entre leitor e personagem Não nos esqueçamos pois do fato de que estamos tratando de personagens infantis cujo alvo primordial era crianças leitoras A estratégia dá ao leitor a ilusão de realismo porque ele não percebe que existe ali a mediação do narrador que como nos explicou Miller 1994 tinha um projeto narrativo a construir e a manter Do mesmo modo o olhar de Almanzo e de Laura cada qual a seu turno sobre seus pais os grandes heróis selfmade men era restrito e exaltava somente as qualidades e o caráter de cada um Uma vez que o olhar dos protagonistas tornase base para o recorte das personagens ele evita dramas de ordem A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 189 pessoal e psicológica que não lhes pertencem E dado que eram personagens infantis em uma realidade de família estruturada e calcada nos valores sociais econômicos e religiosos norte americanos seus dramas e suas dúvidas restringiamse a males menores e não atingiam a extensão de problemas que a falta de dinheiro ou o granizo que atingiu uma plantação poderiam acarretar a um agricultor Claramente o processo de criação da personagem e da narrativa passa pela estrutura escolhida para narrar Nesse sentido o romanesco tal como colocado pro FRYE 1957 dá conta de explicar a visão arquetípica dos adultos da narrativa que compõe o lado branco do tabuleiro do xadrez narrativo e duelam contra todos os males que os inimigos o cansaço a falta de recursos as tempestades e secas a doença trazem ao longo da série Little House Books para no final vencerem tudo e desbravarem nos horizontes do tempo e não mais do espaço os valores ali tão fortemente explorados e reafirmados Excertos que dão conta dessa construção generalizada do caráter americano versus outras nações são claros em várias passagens Vale a pena destacar duas neste artigo A primeira resgata de forma bastante evidente a sobrepujança do homem americano No final da comemoração do Dia da Independência o menino Almanzo pergunta a seu pai rico e próspero fazendeiro como é que machados e arados construíram o país Vejamos Naquela noite a caminho da casa com o leite Almanzo perguntou ao Pai Pai como foi que machados e arados fizeram esse país Não lutamos contra a Inglaterra para ganhálo Lutamos pela Independência filho disse o pai Mas toda a terra que nossos antepassados tinham era uma pequena faixa entre as montanhas e o oceano Daqui até o Oeste era região dos índios dos espa José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 190 nhóis dos franceses e dos ingleses Foram os lavrado res que tomaram toda essa região e dela fizeram a América Como perguntou Almanzo Bem filho os espanhóis eram soldados cavalheiros altivos e poderosos que somente queriam ouro Os franceses eram negociantes de peles querendo fazer dinheiro rápido E a Inglaterra estava ocupada fazendo guerras Mas nós éramos lavradores filho queríamos a terra Foram os lavradores que subiram as montanhas e limparam a terra e a trabalharam e a cultivaram e se apegaram às suas lavouras Esta região se estende agora por quatro mil quilômetros até o Oeste Vai além de Kansas e além do Grande Deserto Americano sobre montanhas maiores do que essas descendo até o Oce ano Pacífico É o maior país do mundo e foram os la vradores que tomaram toda esta região e dela fizeram a América filho Nunca esqueça isto WILDER 1933 pp 1367 Da mesma forma clara a superioridade americana de caráter e de discernimento tornase explícita na comemoração do Dia da Independência à personagem Laura então com 14 anos no sétimo volume da série Little Town on the Prairie A multidão já se dispersava mas Laura continuava i móvel De repente veiolhe um pensamento inteira mente novo para ela Lembrouse das palavras da De claração e da letra da canção ao mesmo tempo e pen sou Deus é o rei da América Os americanos não obe decerão a nenhum rei da terra Os americanos são li vres Isto quer dizer que eles devem obedecer às suas próprias consciências Nenhum rei manda em Pa ele tem que mandar em si mesmo Puxa pensou ela quando eu crescer Pa e Ma já não me dirão o que fazer e o que não fazer e não haverá ninguém com direito a me dar ordens Eu mesma é que terei de esforçarme para ser boa Sua mente iluminouse com esse pensamento Isso é que queria dizer ser livre Quer dizer ser bom Deus nosso Pai criador da Liberdade As leis naturais e as leis divinas nos garantem o direito à vida e à liberdade Então devemos obedecer às leis de Deus pois só elas é que nos dão o direito de sermos livres WILDER 1941 pp 689 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 191 O que vemos nesses dois trechos vai além da exaltação dos valores e da crença americanas tratase da ideologia presente e que resgata uma época nostálgica e de ouro num momento de crise quando as condições de figuração de tal ideologia se fazem presentes porque a História assim o dita Wilder havia escrito a história da sua infância anos antes sob a forma mais resumida e completamente autobiográfica e tentado publicála durante os anos 1920 explodiam as novidades do mercado e da tecnologia e o dinheiro era farto Em tal contexto nostalgia seria sinônimo de coisas menores e o passado ficaria latente Os anos 1930 propiciaram então a chance de recontar aquilo em que ela acreditava porém de modo reconstruído estética e ideologicamente elaborados para que o leitor sorvesse aquilo como fonte não só de distração mas de reafirmação das crenças abaladas pela crise financeira Nesse sentido ideologia é a o termo que designa a importância desse material o fato de que a estrutura de sentimento da época surgido desse contexto histórico era fator primordial para o sucesso de livros num mercado editorial que carecia de produtos altamente consumíveis Para os leitores estabelecer identidade com o que liam era fundamental e por isso a ideologia no sentido dado por Williams 1977 de um sistema de crenças ilusórias falsas idéias ou consciência que podem ser contrastadas com a verdade ou o conhecimento científico e do processo geral da produção de significados e de idéias p55 não era acaso e sim ingrediente fundamental na receita criada por Wilder para que seus livros fizessem sucesso e não parassem nas prateleiras Assim para que isso acontecesse a ideologia realizou sua função de tornar a narrativa já romanesca em grande parte e portanto exaltada pelos feitos heróicos de suas personagens e autobiográfica em outro tanto e por isso restrita à formação de personagens menos complexas e mais generalizadas para estabelecer positivamente a identificação José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 192 entre leitor e narrativa O sociólogo Terry Eagleton explica o processo pelo qual a ideologia opera este feito Um importante expediente utilizado pela ideologia para alcançar legitimidade é a universalização ou eternali zação de si mesmas Valores e interesses que são na verdade específicos de uma determinada época ou lu gar são projetados como valores e interesses de toda a humanidade Supõese que do contrário a natureza interesseira e setorizada da ideologia revelarseia em baraçosamente ampla demais o que impediria sua a ceitação geral EAGLETON 1997 p 60 Desta forma uma ideologia que interessava ao setor não só editorial mas sobretudo governamental vinha em um ótimo momento para restabelecer a crença numa identidade que reconstruísse uma nação alquebrada e tornasse a unila em torno de ideais que eram verdadeiros para muitos mas de cuja realidade de sucesso e de independência no sentido jeffersoniano poucos partilhavam A pesquisadora das obras de Wilder Ann Romines colabora com um excerto bem interessante do modo como esta ideologia operou nos anos 1930 na nação norteamericana A Depressão cortou muito fortemente as atividades que aconteciam fora do âmbito doméstico e forçou famílias a concentrar seus recursos e a encontrar conforto uns nos outros Os índices de divórcio realmente caíram du rante a Depressão e nas revistas populares uma nova ênfase familiar de camaradagem compreensão mútua afeição simpatia facilitação acomodação integração e cooperação era aparente As famílias começaram a jogar novos jogos juntas e a ouvir ao rádio ou ir ao ci nema juntas Tal como um jornal de Muncie em India na publicou Muitas famílias que perderam seu carro encontraram sua alma Mintz and Kellogg apud ROMI NES 1994 p 113 A ideologia vinha de fora e infiltravase pelos canais de comunicação fosse o cinema fosse o jornal ou o rádio ou as conversas nas ruas e era eficaz como lemos acima no que se propunha restringir as famílias unindoas positivamente em suas A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 193 casas isoladas onde homens descontentes com o desemprego e mulheres que suportavam a situação em casa não pudessem juntos conversar refletir e quiçá chegar às raias de uma temida revolução uma vez que nas ruas circulavam como nunca antes haviam circulado as bandeiras vermelhas em movimentos artísticos e sindicalistas Se a intenção era fazer a apologia de um espaço perfeito em que tudo funcionava como uma máquina engrenada num espaço utópico em que o dinheiro não era elemento essencial para a sobrevivência e sim o esforço da labuta na terra nada era melhor do que o mundo utópico construído por Wilder em sua série principalmente em Farmer Boy A fazenda dos Wilders era sem favor algum o símbolo da prosperidade e a exaltação do trabalho protestante cujo lucro agradava ao Senhor O narrador assim descreve o espaço externo da fazenda onde o trabalho era executado O teto da alta casa pintada de vermelho estava rodeado de neve e em todos os beirais havia uma franja de grandes pingentes de gelo A frente da casa estava es cura mas uma trilha de trenó ia até os grandes celeiros e um caminho fora aberto até a porta lateral Nas jane las da cozinha brilhava a luz da vela Havia três celeiros compridos e enormes em três lados do terreiro quadrado Todos juntos eram os melhores celeiros de toda a região Almanzo entrou primeiro no Curral dos Cavalos Ficava de frente para a casa e tinha trinta e cinco metros de comprimento A fileira de baias dos cavalos ficava no meio num dos extremos achava se a divisão dos bezerros e depois dela o acolhedor ga linheiro no outro extremo ficava a Casa das Carroças Era tão grande que duas carroças e o trenó podiam ser guardados nela restando ainda muito espaço para de satrelar os cavalos Daí os cavalos iam para suas baias sem tornarem a sair para o frio O Celeiro Grande começava no estremo oeste do Curral dos Cavalos e formava o lado oeste do pátio No meio do Celeiro Grande ficava o Pátio Grande Enormes por tes abriam para ele do lado da campina deixando en trar as carroças carregadas De um lado ficava a gran José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 194 de baia de feno com quinze metros de comprimento e seis de largura cheia de feno até o teto Além do Pátio Grande havia quatorze estábulos para as vacas e os bois Mais adiante ficava o abrigo das má quinas e a seguir o abrigo das ferramentas Dobrava se então à esquina chegando ao CeleiroSul Nele ficavam a sala de forragem o chiqueiro o curral dos bezerros depois o Pátio do CeleiroSul Era o pátio de debulhar Era ainda maior que o Pátio do Celeiro Grande e o moinho de vento ficava ali Além do Pátio do CeleiroSul havia um abrigo para os bezerros e depois dele o curral das ovelhas No Celei roSul só havia isto Uma cerrada cerca de madeira com três metros e meio de altura erguiase no lado leste da área Os três celei ros enormes e a cerca circundavam acolhedoramente o pátio O vento uivava e a neve batia contra eles mas não conseguiam entrar Por mais tempestuoso que fos se o inverno a neve nunca se acumulava mais de meio metro no pátio abrigado WILDER 1933 pp202 Vista de fora a estrutura da fazenda de Wilder era uma paliçada contra as intempéries contra os ladrões e malfeitores e contra tudo e todos que ousassem interferir de modo não previsto na rotina de produção artesanal da fazenda Dali os familiares saíam apenas para a escola e o culto dominical onde mais uma vez o Pai como era chamado a personagem de James Wilder era reverenciada pelo seu status e pela fortuna que possuía e que decorria da vida na fazenda As palavras que encontramos nas páginas finais do livro são a síntese dessa ideologia do selfmade man jeffersoniano Um fazendeiro depende de si mesmo e da terra e do clima Se você for um fazendeiro vai criar o que come o que veste e se manterá aquecido com a madeira que corta da floresta Você trabalhará duro mas o fará quando tiver vontade e ninguém lhe dirá para ir ou vir Você será livre e independente numa fazenda filho WILDER 1933 p 371 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 195 Ao encerrar o volume com uma lição de liberdade e independência que durante a Depressão era encontrada somente no nível simbólico Wilder corrobora para o propósito de Roosevelt de reconstruir o modelo de nação estável mas não porque acreditasse nisso na verdade ela era particularmente contra o governo vigente naquela época mas porque ela enquanto pessoa constituída e que usufruía dessa ideologia acreditava no que dizia Como nos explica Eagleton pelas palavras de Althusser A ideologia proclama Louis Althusser não tem exte rior Essa dimensão global abrange tanto o espaço quanto o tempo Uma ideologia reluta em acreditar que um dia nasceu pois isso seria o mesmo que reconhecer que pode mor rer a presença de duas ideologias também consti tui estorvo para ela uma vez que define suas fronteiras finitas delimitando assim seu domínio Ver uma ideolo gia de fora é reconhecer seus limites mas de dentro as fronteiras desaparecem no infinito deixando a ideologia curvada sobre si mesma como o espaço cósmico EA GLETON 1997 p 61 Para Wilder assim como para seus leitores o que escreve não é proposital no sentido de declarada defesa política Podemos considerar que assim pudesse ser para sua filha com quem discutia sobre o que escrevia mas não para ela e tampouco para seus leitores Inserida que estava dentro dessas condições que lhe permitiram produzir tal material aquilo em que ela acreditava era de certo modo muito mais ingênuo limitado por sua formação e por seu contexto Eu tinha visto e vivido tudo aquilo todas as sucessi vas fases da fronteira primeiro com o homem de fron teira e então com o pioneiro e depois com os fazen deiros e as cidades Então eu entendi que na minha própria vida eu tinha representado todo um período da História Americana Que a fronteira tinha ido embora e que as concessões rurais tinham tomado seu lugar Eu queria que as crianças de hoje entendessem mais sobre José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 196 o início das coisas que soubessem do que é feita a América que eles conhecem hoje Discurso da Feira do Livro 217 apud ERISMAN 1993 p 127 A declaração de Wilder explica que a ideologia americana da predestinação ao sucesso do isolamento utópico e da independência já estava desistoricizada e arraigada nela mesma antes que o estivesse em sua narrativa Esta é senão o produto daquilo em que acreditava Pensamos entretanto que as escolhas são ilusórias porquanto o indivíduo advém de um contexto que não cabe a ele escolher ou determinar como ou se muda A consciência tornase portanto falta assim como a escolha de acreditar ou não nessa crença porque ela é a única escolha que lhes vem aos olhos Ela pode até parecer autônoma mas é senão o escape de uma forma de repressão causada pelo contexto da Depressão como vimos e é isso o que pode ter contribuído de forma considerável para o apagamento dos episódios difíceis e infelizes da história real da vida de Wilder como a morte do irmão ou o fato de ter trabalhado como atendente de hotel quando ainda era uma criança Mesmo assim não deixa de ser como dissemos eternalizante generalizante e certamente eficaz no propósito de reafirmar uma nação sem deixar de controlála e de moldála de acordo com os interesses da classe dominante CONCLUSÃO A coleção Little House Books originalmente publicada entre os anos de 1932 e 1943 cumpriu o propósito da autora de reafirmar uma série de crenças e de valores bem como de um caráter de resistência que estão presentes na sociedade norteamericana desde seu início e que vem sendo reafirmadas a cada momento de abalo que ela sofre Assim foi durante os anos da Depressão Assim foi durante os anos da Guerra Fria como lemos em nossa pesquisa A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 197 Não se trata porém de uma literatura infantil inconseqüente ou de pura fantasia no sentido redutor ou limitante que se costuma atribuir à literatura do gênero Tratase na verdade de um poderoso instrumento de formação social e política que acaba por redefinir a estrutura da sociedade Embora se trate de um tempo nostálgico e de um espaço utópico a literatura de Wilder certamente escapista numa época em que a crise assolava a vida de todos encontra suas condições de produção justamente a partir dessas fissuras e vem para atar as pontas que pendem incertas na realidade propondo que a partir da trama da sua estrutura literária híbrida o leitor consiga reconstruir sua realidade Como nos explica Rosemary Jackson O fantástico é uma compensação que o homem fornece a si mesmo no nível da imaginação limaginaire para aquilo que ele perdeu no nível da fé JACKSON 1983 18 Ora a sociedade que primeiro se deparou com esta série de narrativas consumiua vorazmente num mercado insipiente para tudo mais que não os alimentasse Do mesmo modo ainda que não tenhamos realizado uma pesquisa dessa natureza cremos que seja muito provável que o índice de consumo dos Little House Books hoje esquecida por muitos tenha voltado a se elevar após os atentados de 11 de setembro de 2001 Porque ainda que seja a falsa consciência que estabeleça o forte vínculo de identidade entre obra e leitor ela é mais duradoura do que Wilder pôde viver para testemunhar REFERÊNCIAS EAGLETON Terry Ideologia São Paulo Boitempo UNESP 1997 ERISMAN Fred Farmer Boy the forgotten little House book In Western American Literature Logan UT WAL 1993 Aug 282 pp 12330 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 198 FRASER Caroline The Prairie Queen In The New York Review of Books Palm Coast FL NYRB 1994 Dec 22 4121 pp 3845 FRYE Northrop Anatomy of Criticism Princeton Princeton University Press 1957 393 p HOLTZ William Closing the Circle the American Optimism of Laura Ingalls Wilder IN Great Plains Quarterly Lincoln NE GPQ 1984 Spring 42 pp 7990 JACKSON Rosemary Jackson Fantasy the Literature of Subversion London New York Methuen 1981 vii 211p LIMONCIC Flávio Os inventores do New Deal Estado e sindicato nos Estados Unidos dos anos 1930 Rio de Janeiro mimeo tese de dou toramento 2003 MILLER John Laura Ingalls Wilders Little Town Where History and Literature Meet Lawrence UP of Kansas 1994 xii 208p ROMINES Ann Little House Books Gender Culture and Laura In galls Wilder Massachusetts The University of Massachusetts Press 1994 287 p SCHLESINGER Jr Arthur The Coming of New Deal Boston Hough ton Mifflin Company The Age of Roosevelt 1958 WEINSTEIN Michael Ambiguous Legacy the Left in American Poli tics New York View Piint 1975 STEVICK Philip The Theory of the Novel New York Free Press 1967 vii 440 p WILDER Laura Ingalls 1933 and WILLIAMS Garth illust 1953 Farmer Boy New York HarperCollins Publishers 1994 372p 1941illust 1953 Little Town on the Prairie New York HarperCollins Publishers 1994 307p WILLIAMS Raymond Ideology In Marxism and Ideology Oxford Oxford University Press 1977 pp 5571 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 199 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs ENTRE SÓTÃOS RUAS E REIS UM OLHAR SOBRE A PRODUÇÃO LITERÁRIA INFANTOJUVENIL DE RICARDO AZEVEDO Penha Lucilda de Souza Silvestre CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES Falar em literatura como sabemos significa falar em ficção e em discurso poético mas muito mais do que isso Significa abordar assuntos vistos invariavelmente do ponto de vista da subjetividade Ricardo Azevedo 2003 Conforme estudos realizados pela crítica literária sobre a literatura infantojuvenil brasileira demonstram que depois de Monteiro Lobato somente na década de setenta algumas obras voltaramse para as raízes lobatianas textos com uma linguagem inovadora poética ao abordar os problemas do homem moderno Assim em 1980 Ricardo Azevedo escritor e ilustrador iniciou sua trajetória voltado para um público diverso sobretudo infantojuvenil Nesse sentido propomos a leitura dos títulos Um homem no sótão 1982 Nossa rua tem um problema 1986 O rei das pulgas 1990 e Uma velhinha de óculos chinelos e vestido azul de bolinhas brancas 1998 por configurarem narrativas emancipadoras Ricardo Azevedo escreveu ilustrou e organizou mais de cem livros por várias editoras publicou ensaios e concedeu diversas entrevistas para revistas literárias contando com uma produção significativa do ponto de vista quantitativo ganhou prêmios literários importantes e foi traduzido para diversas línguas O conjunto de sua obra abrange um grande número de títulos que incluem narrativas em prosa e em verso que chegam ao mercado livreiro em constantes edições O escritor realiza incessantes pesquisas sobre o folclore que 200 resultam em várias antologias sobre a cultura popular A partir da intensa produção literária interessamonos pelo trabalho que vem realizando Para tanto realizamos uma crítica integradora ao abordarmos os aspectos estruturais e temáticoformais ligados à narrativa como também o seu efeito na concepção de Wolfgang Iser e sua recepção sob a ótica de Hans Robert Jauss A literatura de modo geral é a arte que rompe com o tempo e cumpre um papel peculiar ao representar a realidade a partir da construção subjetiva do personagem que participa do evento ficcional tal como a presença do leitor Assim dentre as diversas produções artísticas contemporâneas atemonos à literatura infanto juvenil Notamos que o estudo de narrativas nacionais tem encontrado espaço significativo nos ambientes acadêmicos tal como no mercado livresco perceptível pelo número crescente de livros e novos escritores como também premiações e organizações preocupadas com a qualidade do texto literário Constatamos a superação à tradição pedagogizante ligada ao gênero em questão porém há a necessidade de analisarmos cuidadosamente textos comprometidos com uma literatura de qualidade visto pelo número crescente que chegam as livrarias Nesse sentido apropriamonos de um corpus limitado da produção de Ricardo Azevedo a fim de observarmos como se dá a construção do narrador liberal nos textos citados do escritor em questão Desse modo chamamos atenção para a importância de desvelar os elementos constitutivos das narrativas sobretudo no que se refere à organização do narrador pois são como fios que se entrecruzam e geram sentidos Segundo Iser 1996 o texto narrativo apresenta algumas perspectivas importantes como a do narrador dos personagens do enredo e do leitor ficcional Constatamos que nos textos de Azevedo esses pontos perspectivísticos se entrelaçam e oferecem através dos pontos de A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 201 vista presentes neles a elaboração de diferentes visões Então a participação efetiva do leitor nesse processo comunicativo forma a constituição do sentido e os elementos de indeterminação revelam condições favoráveis para a realização da comunicação sobretudo quando o leitor experimenta outro universo apresentado no texto literário O texto Um homem no sótão 1982 narra a história de um autor de contos para crianças que morava num sótão na rua da Consolação e que raras vezes saía de casa Um dia tentando escrever a história Aventuras de três patinhos na floresta inesperadamente aparece uma raposa muito nervosa inconformada com o rumo da história reclamando de sua eterna vilania Afinal era carnívora o que justificava a sua atitude comer os patinhos da história Estes por sua vez também saem da cabeça do autor e o alertam de que sempre caçaram minhocas peixes e besouros Em seguida numa noite de lua cheia depois que o escritor se recuperara do susto teve a idéia de escrever A linda princesa do castelo E assim sucessivamente outros personagens saem de sua cabeça e contestam suas histórias como o sapo a princesa os anõezinhos e a bruxa O autor de contos procurou um médico tirou férias e ao retornar começou a escrever uma história bem diferente mas a confusão repetiuse O escritor adoeceu trancouse dentro de casa e deixou de viver Passado um longo tempo ao ver um passarinho ciscando em cima do armário perguntou qual era a história abriu a janela espantou a passarada e percebeu que a vida continuava Então retornam a vida e a vontade de escrever história de gente como ele escrever coisas de seu tempo Finalmente começa a escrever Um homem no sótão O texto é organizado em cinco capítulos numerados e não titulados e na abertura de cada um há uma vinheta representativa A estrutura da obra aparentemente é José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 202 linear Mas essa linearidade é relativizada pelas diversas histórias encaixadas e caracterizase pela metaficção A página de abertura do texto por exemplo corresponde ao número cinqüenta e sete e a última ao número um O final da história é aberto Em Um homem no sótão a criação narrativa fala sobre si mesma O escritor personagem revela ao leitor o processo de inventar histórias Nessa obra a metaficção é uma das características predominantes Era uma vez um autor de contos para crianças que passava o tempo inteirinho inclusive sábados domingos e feriados escrevendo histórias para crianças AZEVEDO 2001 p57 No decorrer da narrativa o narrador relata o fazer literário Além desse aspecto o texto trata também da angústia espiritual das impressões emocionais e sentimentais dos conflitos interiores e com veemência relativiza pontos de vista O texto intitulado Nossa rua tem um problema 1986 conta a história de Zuza e de Clarabel Ambos escrevem um diário e relatam fatos ocorridos na rua em que moram O texto organizase através de dois narradores Clarabel e Zuza e cada qual começa em uma das capas do livro isto é não há contracapa cada capa mostra o início de uma versão diferente dos fatos da narrativa As divergências e o modo de ser dos dois personagens ao invés de distanciálos aproximamnos visto que no final eles passam a fazer parte da mesma turma de amigos e trocam seus diários Essa troca é percebida através da ilustração no meio do livro no qual se dá o fim da história No que se refere à temática central observamos o relacionamento e a interação entre as crianças que registram fatos ocorridos na rua em que moram e que de alguma forma acabam por transformar os respectivos modos de vida dos personagens principalmente o modo que cada um vê o outro A obra O rei das pulgas 1990 narra a história de um mendigo escritor o Marinheiro Rasgado que vivia experiências A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 203 surpreendentes Ele morava havia muito tempo em uma praça era amigo de toda a vizinhança sobretudo das crianças Entretanto o senhor Otto também morador do mesmo bairro sentiase incomodado pela presença do mendigo culpandoo pela infestação de pulgas na igreja na praça nas casas e no Cine Bijou por isso tentava de todas as maneiras expulsálo daquele lugar resultando em constantes e frustradas reuniões na comunidade local Todavia os demais moradores não tinham a mesma opinião de seu Otto ou seja para eles o mendigo era uma pessoa limpa e amigável Paralela a essa situação as crianças elaboram um plano para unirem Sicupira uma espécie de cachorro selvagem brasileiro nadador e caçador de pacas que pertencia ao mendigo e Diana a cachorra de purosangue de seu Otto Quando seu Otto descobre tal façanha simplesmente fica enfurecido As crianças assustadas relatam ao Marinheiro o plano executado O mendigo ao contrário de seu Otto ficou muito feliz e tentou conversar com o dono da cachorra Dona Úrsula esposa de seu Otto intromete na discussão e acaba por expulsar o marido de casa além de cuidar dos filhotes de Diana No final as crianças e o mendigo vão à Doceria Holandesa onde o Marinheiro pagou sonho para todo mundo Daqueles redondos com açúcar em volta e assim de creme dentro AZEVEDO1990 p 45 O rei das pulgas compõese de treze capítulos curtos numerados e não titulados Apresenta uma organização narrativa linear porém a linearidade é relativizada Os acontecimentos são apresentados ao leitor em ordem cronológica Entretanto há interrupções repentinas pois o narrador cede a voz para o mendigo visto que ele é um escritor Isso provoca uma certa fragmentariedade no texto O mendigo escreve sobre raças de cães e os textos são encaixados no interior da narrativa Apesar de o texto apresentar caráter de informação científica e enciclopédica contradiz esta José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 204 tipologia pelas marcas pessoais do autor Dá gosto de ver um chihuahua dizendo Chega e lutando para mudar a vida mas isso leva tempo AZEVEDO 1990 p27 grifo do autor Nos encaixes posteriores são apresentados os seguintes textos A milagrosa arte das pulgas e A arte milagrosa das pulgas O tema do texto é marcado pelas relações pessoais e as suas diferenças o relacionamento entre as pessoas as impressões sociais e afetivas O mendigo metaforicamente registra essas impressões Vivendo afastadas as raças caninas não se conheciam direito Umas achavam as outras meio estranhas Ou tras achavam umas meio esquisitas Essa ignorância levou à desconfiança A desconfiança ao desprezo e este ao ódio e ao medo São conhecidas na História U niversal Canina as guerras entre cães páginas san grentas de uma história que podia ser outra AZEVE DO 1990 p 39 A reunião e a vitória das pulgas lembramnos da conquista pela democracia brasileira e da liberdade de ser na sociedade Além disso o texto aborda a hipocrisia humana as semelhanças e diferenças entre sujeitos e enfatiza que nenhum ser é igual ao outro A única semelhança entre os viralatas é que todos são diferentes uns dos outros Cada um tem sua beleza própria seu tamanho seu cheiro sua cor seu pêlo seu jeito de ser ver latir e sentir a coisas As últimas pesquisas e profecias dizem que até o final ou no mais tardar até meados do século que vem só haverá vira latas no planeta Terra Essa revolução de hábitos e cos tumes foi um passo precioso na direção de um futuro melhor e cheio de paz para toda espécie canina e acon teceu graças à arte milagrosa desses pequenos tími dos humildes e delicados seres que atendem pelo no me de pulgas AZEVEDO 1990 p40 A peculiaridade individual é uma questão fundamental presente no campo das idéias uma vez que o mendigo procura ressaltar a subjetividade da alma humana a ambiguidade que permeia o homem enquanto ser social e espiritual O Marinheiro rompe com situações A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 205 mecânicas por não viver ordens preestabelecidas e institucionalizadas pelo grupo de poder daí o relativismo e os diferentes pontos de vista O mendigo acrescenta que Homens e mulheres pulguentas em geral são pessoas que não acreditam no futuro nem na natureza e pas sam a vida resmungando de tudo Se uma pessoa não fez nada e ainda por cima gosta de cães e de repente descobre uma pulga atrás da orelha não precisa se preocupar Há casos em que o cachorro envia pulgas de estimação para fazer cafuné e outros carinhos É um sinal de amizade que deve ser recebido com orgulho e alegria AZEVEDO 1990 p 32 Nesse sentido as inquietações provocam mudanças no relacionamento entre as pessoas mas estas precisam desprenderse de preconceitos diversos sobre o outro Uma velhinha de óculos chinelos e vestido azul de bolinhas brancas 1998 conta a história de seis amigos que estão sentados na calçada no final da tarde quando surge do outro lado da rua no portão de uma casa uma velhinha de óculos chinelos e vestido azul de bolinhas brancas Não a conhecem e cada um imagina quem ela poderia ser Um dos meninos diz que ela é uma escritora de histórias infantis imagina um montão de aventuras contos de fadas reis gigantes amores e piratas que acabaram virando livros 1998 Outro diz que é uma feiticeira que lê livros de magia e tem objetos variados para fazer feitiços e seu companheiro provavelmente é um vampiro Em seguida outro comenta que a velhinha sempre foi uma dona de casa casada há anos com um velhinho de nariz torto Para outro a velhinha é professora de ginástica e deve ser formada e diplomada em educação física AZEVEDO 1998 casada com um atleta Outro menino diz que a velhinha é viúva e solitária Outra opinião sugere que a velhinha é artista de teatro dessas que sobem no palco e se transformam completamente AZEVEDO 1998 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 206 A narrativa apresenta várias histórias dentro de uma história maior enfocando e desdobrando as várias possibilidades e hipóteses de construção da identidade da velhinha As opiniões veiculadas pelos meninos desfilam sucessivamente num espaço comum no qual narram e descrevem fatos passados e presentes da vida da velhinha A independência dos episódios imaginados por eles reforça a arquitetura fragmentária da obra pois não existe uma transição entre as sugestões enunciadas Conforme Maria Alice Faria no texto intitulado A questão da literatura infantojuvenil o autor não nos dá uma história propriamente dita mas estimula o leitor a apreciar várias histórias a partir de um único ponto e por fim dar a sua versão FARIA 1999 p 99 A história está organizada em dois planos no primeiro a reunião de um grupo de amigos que estão conversando sentados na calçada Em outro plano a criação de diversas histórias imaginadas pelos meninos Uma velhinha de óculos chinelos e vestido azul de bolinhas branca aborda a questão da identidade e os diferentes pontos de vista E a partir da construção imaginada pelos personagens outros temas se destacam como a invenção de histórias a música a saudade a imaginação a fantasia a rotina a dança a relação familiar a relatividade das coisas Passemos então a leitura dos textos UMA POSSÍVEL LEITURA é imprescindível que entre a pessoa que lê e o texto se estabeleça uma espécie de comunhão baseada no prazer na identifica ção no interesse e na liberdade de interpre tação Ricardo Azevedo 2004 O narrador de Um homem no sótão usa a 3a pessoa do discurso para narrar Ele demonstra ter conhecimento de toda a A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 207 história Embora não participe do conflito dramático nem da história narrada apresenta voz tão próxima às vozes do interior da narrativa que muitas vezes parece que vive o episódio com elas Desse modo considerando o papel essencial que tem na obra literária o narrador estrutura o texto discursivo e atua como mediador no ato de produção da narrativa definindose como heterodiegético Está fora da história que conta mas conhece tudo sobre o personagem protagonista e sobre os secundários portanto é onisciente e coloca se numa posição de transcendência Foi numa sextafeira mês de agosto Fazia um frio de rachar O autor passara a noite tentando inventar uma história nova e nada Estava sem um pingo de inspiração AZEVEDO 2002 p 56 Nesse sentido a focalização corresponde à visão do narrador onisciente que faz uso de sua capacidade de conhecimento praticamente ilimitada Por meio do discurso direto e do indireto livre o narrador faz com que as cenas sejam focalizadas sob a ótica dos personagens Às vezes sua voz se confunde com a do personagem protagonista estabelecendose assim estreita sintonia com a estrutura fragmentária do texto Sentado em sua poltrona enorme passava horas pensando e meditando Lembrava dos patinhos da raposa da discussão em que se metera dos patinhos defendendo logo quem e da raposa fazendo o que fez AZEVEDO 2002 p6 Os ângulos de visão parcial vão se justapondo ao longo da história através do narrador que ora parece assumir o ponto de vista do personagem manifestandose como intruso registrando posições ideológicas ora abre espaço para o escritor de contos Assim vão se acumulando flagrantes aparentemente desconexos que registram o cotidiano dramático do escritor em plena atuação na construção de uma obra literária Lá dentro no fundo profundo do coração José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 208 continuava cheio de dúvidas Não conseguia se conformar com o sapo virando príncipe desencantado AZEVEDO 2002 p 6 O narrador deixa a impressão de que dialoga com o escritor como se fosse a sua consciência Um exemplo dessa situação acontece quando o escritor vai ao médico devido às perturbações provocadas pelos personagens que saíam de sua cabeça O senhor está é precisando de umas boas férias Ago ra com licença até logo e passar bem disse sumin do sem se despedir Mas claro Há quanto tempo o pobre escritor não tirava férias Deixa eu ver calculou ele contando nos dedos Puxa Sete anos e lá vai pancada AZEVEDO 2002 p34 Os discursos diretos são seguidos por verbos dicendi e anunciam mudança de nível discursivo Também são assinalados por indicadores grafêmicos adequados o uso de dois pontos e travessão Há várias ocorrências do discurso direto no qual os personagens manifestam o seu ponto de vista em relação aos fatos que os circundam Além desse recurso percebemos a aproximação do monólogo interior uma das técnicas utilizadas pelos escritores contemporâneos a fim de representar implicações psicológicas dos personagens Todavia há ocorrências que provocam o afastamento da forma convencional Além de descrever o tempo interior que também é uma estratégia de relato de fala Ia fazer uma história diferente de tudo o que fizera an tes As personagens seriam uma bruxa e alguns anões mas aí estava a grande diferença tanto a bruxa como os anõezinhos iam se dar bem ser amigos e viver às mil maravilhas Seu plano em resumo era escrever uma história sem bandidos nem mocinhos Chega de confusão pensou o escritor com um brilho esperto nos olhos AZEVEDO 2002 p22 grifo do autor A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 209 Se não fosse a presença do pronome possessivo seu na 3a pessoa em vez de meu seria um monólogo O narrador e o personagem se fundem numa espécie de interlocutor híbrido então a presença do discurso indireto livre Vestiu a camisa penteou o cabelo passou perfume saiu mas quando chegou na praia cadê a moça bonita Tinha ido embora Que azar AZEVEDO 2002 p33 Ou então Escreveu escreveu escreveu durante longo tempo sem ser incomodado Que bom fazer aquilo que a gente gosta sem ninguém para atrapalhar AZEVEDO 2002 p 22Vale assinalarmos que o discurso indireto livre podese fazer ouvir na voz de quem conta os ecos de outra voz Há uma mistura de vozes resultado de uma associação do discurso direto e do discurso indireto os quais permitem ao leitor visualizar as condições intrínsecas do personagem Isso porque o narrador não utiliza apenas a sua voz como canal de informação mas abre espaço para outras vozes especialmente das histórias encaixadas O texto Nossa rua tem um problema 2002 cuja história apresenta aparentemente duas perspectivas opostas abrem lacunas e contribuem para a participação do leitor no mundo ficcional Ele se depara com visões diferentes de um objeto comum Assim a modificação das posições provocada pela mudança das perspectivas não se perde ao contrário a multiplicidade das interpretações se potencializa ISER 1996 p185 v1 Cada perspectiva revela um aspecto que dá oportunidade ao leitor de construir seu próprio ponto de vista Há dois narradores protagonistas Clarabel e Zuza ambos da mesma faixa etária Cada um conta fatos que acontecem na rua em que moram A menina pontua seus julgamentos a partir daquilo que o pai e a mãe pensam dos meninos Portanto ela traduz a imagem dos garotos sustentada pela opinião dos adultos Já Zuza apresenta como problema da rua o menino Chico diz ele Nossa rua tem um José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 210 problema É o Chico O pai dele é daqueles que não deixam ninguém botar o nariz pra fora de casa Jogar bola na rua Não pode AZEVEDO 2002 p 3 Clarabel vê o grupo de Zuza como um bando de meninos mal educados que dizem palavrão sem responsabilidade e que não fazem lição de casa Zuza vê a família da menina constituída de pessoas preocupadas com a aparência pois saem de casa penteados perfumosos impressionando a vizinhança Assim a organização da narrativa está estruturada a partir de dois focos e concebe o leitor não como mero decodificador mas sim como um ponto de intersecção entre os personagens pois cada qual levanta um ponto de vista diferente O modo de narrar dos dois personagens é fortemente marcado por características subjetivas e emocionais Eles narram o que vêem observam e sentem os fatos passam pelo filtro das suas emoções e das percepções Os protagonistas revelam a posição de cada um em relação ao contexto social em que estão inseridos e à maneira como captam os acontecimentos no mundo narrado No entanto não há transferência direta do conteúdo do texto para o leitor Há um jogo de perspectiva que se movimenta continuamente e conforme Iser 1996 inclui o leitor nesse jogo No que se refere aO rei das pulgas apresenta vozes diferentes que se intercalam no decorrer da narrativa narrador observador e apresentação dramática o discurso pertence a diversas vozes ou seja das crianças e de outros personagens que vivem no mundo narrado Observemos um trecho do capítulo quatro intitulado Afgans Os afgans formam uma raça de cachorros muito distintos Altos magros e elegantes possuem um olhar frio e impenetrável AZEVEDO 1990 p 14 Nesse fragmento é a voz do escritor ou seja a voz do mendigo Já no capítulo cinco o narrador observador é quem relata Seu Otto Seu Otto Rittler Professor particular de A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 211 aritmética e ginástica rítmica AZEVEDO1990 p15 O texto é construído pela pluralidade de vozes e há uma oscilação e um jogo perspectivístico das vozes na narrativa A intercalação de diferentes narradores estimula a atividade de formação de representações no leitor Podemos reconhecer que a voz narrativa está fora dos eventos que narra ou seja o narrador não participa das situações vividas pelos personagens O narrador é onisciente e podemos perceber a proximidade dele junto ao mendigo e também das crianças As crianças encontraram o Marinheiro Contaram que tinha levado várias vezes o Sicupira para se encontrar com Diana Tudo sem seu Otto saber Disseram que a Diana estava esperando um filho Os olhos do mendigo marejaram Pegou o Sicupira Bei jou AZEVEDO 1990 p35 O narrador constantemente cede a voz aos persona gens inclusive no primeiro capítulo ocorre apenas o discurso direto O Sicupira apaixonado pela Diana Não viu a cara dele outro dia Coitados A gente podia fazer alguma coisa Tá louco Se ele souber vai dar o maior bode A gente precisa fazer alguma coisa AZEVEDO 1990 p 7 A citação dos personagens é literal próxima a linguagem teatral como não há mediação do narrador elas revelamse diretamente ao leitor Desse modo suas peculiaridades são construídas na relação entre texto e leitor Como vimos as falas restringem a um diálogo rápido mas que exteriorizam a José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 212 particularidade de cada um deles desdobrandoas em vozes que se alternam e direcionam a reflexão da condição de vida do mendigo As crianças procuram compreender a vida às vezes aliamse as opiniões dos adultos E os bundos Quase fiquei roxa de tanto rir Falei com meu avô Ele achou gozado A gente viu na enciclopédia É verdade pura Minha mãe acha melhor a gente não andar mais com o Marinheiro Meu pai também Ele é tão legal Só por causa daquela meia de jogar futebol cheia de coisa dentro que ele usa enfiada na cabeça Agora vai ser mentiroso assim lá longe Ninguém tem certeza AZEVEDO 1990 p11 Neste fragmento também podemos observar a ausência do narrador e as várias vozes que se manifestam na busca de compreender o Marinheiro De um lado percebemos a influência dos familiares nas falas das crianças outras indiferentes às observações dos adultos O narrador não bloqueia o pensamento infantil pois as crianças possuem livre arbítrio para tomarem suas decisões Por outro lado o adulto autoritário é alvo de ironia e comicidade como no caso de seu Otto Assim o narrador aliase ao mendigo e aos infantes visto que ele faz questão em manifestarse principalmente quando as crianças estavam totalmente envolvidas com as histórias do Marinheiro Vejamos a passagem em que o mendigo contava uma de suas aventuras acontecidas na África A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 213 Quê Sim É chocante Eu sei Vocês são crianças Descul pem Vou dizer mesmo assim estava prisioneiro dos bundos uns canibais malditos que vivem em Angola e o que é pior eles estavam justamente se preparando para me comer Uma ambulância passou a toda pela praça tocando si rene Tive medo Tremi feito vara verde Aquela água es quentando cada vez mais Veio um cheirinho gostoso de carne assada Era a minha própria carne Quem leu I Juca Pirama Juca o quê AZEVEDO 1990 p 22 O narrador acrescenta detalhes para enfatizar fatos que aconteciam ao redor do grupo Uma ambulância passou a toda pela praça tocando sireneAZEVEDO 1990 p 22 Os fatos que aconteciam ao redor do grupo eram indiferentes nada tirava a atenção das crianças o Marinheiro era um contador de histórias e contagiava seus ouvintes Em determinados momentos o narrador manipula os eventos em outros afastase completamente permitindo ao leitor que compartilhe como espectador da relação entre crianças e mendigo e que se adentre naquela praça e alcance uma interpretação dos fatos que acontecem Sabemos qual é a perspectiva do narrador mas a do leitor pode ser unicamente dele devido as lacunas presentes no texto No último parágrafo do texto em questão há o registro da grande vitória o Marinheiro Rasgado e as crianças dirigemse à doceria Foram para a Doceria Holandesa O Marinheiro pagou sonho para todo mundo Daqueles redondos com açúcar em volta e assim de creme dentro AZEVEDO 1990 p 45 O narrador enuncia os fatos e as palavras traduzem não o mero sabor de um doce mas sonhos que poderiam se vividos Como pudemos perceber as José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 214 crianças não aceitam os padrões impostos a partir da visão dos adultos ao contrário constroem seu mundo pessoal livre da interferência maniqueísta dos mesmos Além do mais elas tinham modelos diversos de comportamento e atitudes e coubelhes fazer suas opções O Marinheiro por sua vez recebia as crianças e correspondialhes carinhosamente espontaneamente sem implicações ou alguma exigência apenas partilhava parte de seus sonhos O narrador de Uma velhinha de óculos chinelos e vestido azul de bolinhas brancas usa a 3a pessoa do discurso para narrar O texto apresenta uma série de perspectivas como a do narrador observador e dos personagens que protagonizam a velhinha Essas perspectivas se entrelaçam e cabe ao leitor a atualização da história a partir de sua imaginação Ele demonstra ter conhecimento da história introduz e estrutura o texto discursivo não participa do conflito dramático mas atua como mediador no ato de produção da narrativa definindo se como heterodiegético isto é a voz narrativa está fora dos eventos que narra Seis amigos estão sentados na calçada A tarde vai chegando ao fim No portão de uma casa do outro lado da rua aparece uma velhinha de óculos chinelos e vestido azul de bolinhas brancas Os amigos começam a conversar Cada um diz o que pensa Surgem seis o piniões diferentes a respeito da mesma vizinha AZE VEDO 1998 Em seguida cada opinião é apresentada uma após a outra sem interrupção ou alguma observação do narrador que se afasta da história cedendo lugar aos meninos dandolhes a voz portanto privilegiando o falar das crianças Desse modo dispensa o restante da narrativa para que elas relatem e expressem suas suposições alterando a posição da focalização da narrativa Essa mudança de perspectiva não é prejudicial ao contrário provoca a multiplicidade e A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 215 a potencialização de interpretações Por conseguinte cada amigo conta ou melhor cria a imagem da velhinha a partir de seus respectivos pontos de vista uma escritora uma feiticeira disfarçada uma dona de casa uma professora de ginástica uma viúva ou uma artista de teatro Como percebemos as seis opiniões apresentam inicialmente a locução pra mim e em seguida as imaginações são relatadas sob a ótica de cada um dos garotos revelando suas suposições permitindo possíveis construções da imagem da velhinha totalmente diversas Desse modo há uma mudança na focalização Pra mim ou seja o texto passa a ser narrado em primeira pessoa De acordo com Iser Cada perspectiva não apenas permite uma determinada visão do objeto intencionado como também possibilita a visão das outras ISER 1996 p179 As seis opiniões articuladas organizam um quadro variado e as diversas perspectivas marcam um ponto em comum Todavia a identidade tanto dos meninos como da velhinha não é dada explicitamente mas imaginada Ela se atualiza portanto nos atos da imaginação do leitor Segundo Iser é nesse ponto que o papel do leitor delineado só na estrutura do texto ganha seu caráter efetivo ISER 1999 p75 Assim reconhecemos a função emancipatória do texto literário pois estabelece uma situação comunicativa com o leitor infantil instigandoo a realizar outras construções da imagem da velhinha Nesse sentido Jauss comenta que a compreensão estética leva o leitor a uma mudança de expectativas em relação a si mesmo e ao mundo que o cerca Tanto para Iser como para Jauss o leitor é o elemento responsável pelo ato da leitura porque ativa e alarga os significados do texto Se há um alargamento de expectativa por conseguinte há a emancipação do leitor De acordo com Iser a Estética da Recepção José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 216 sempre lida com leitores reais concretos por as sim dizer leitores cujas reações testemunham experi ências historicamente condicionadas das obras literá rias Uma teoria do efeito estético se funda no texto ao passo que uma estética da recepção é derivada de uma história dos juízos de leitores reais ISER 1999 p21 O leitor proposto nessa concepção é real mas vale assinalar que a recepção do texto literário não é uniforme para toda leitura realizada por diferentes receptores O resultado da interação entre o texto e o leitor depende da experiência de leituras prévias do conhecimento de tipologias textuais e de estratégias de leitura Por fim observamos que desfilam nos textos de Ricardo Azevedo narradores que podem exercer influência maior ou menor na atuação dos personagens e do leitor Há narradores que omitem informações examinam reações dos personagens identificamse com a visão do protagonista ou opõemse a eles compartilham com o espectador ou relatam fatos de forma que o espectador teça uma interpretação própria sem a intervenção dos comentários do narrador Esse processo de organização da narrativa desfaz a perspectiva unívoca do texto e resulta numa construção plurissignificativa Assim o leitor assegura o seu lugar no mundo ficcional criado pelo escritor pois sua participação ocorre naturalmente em decorrência da organização estrutural e lingüística porque há lacunas que instigam a sua presença na formulação de sentidos da história relatada O modo como as narrativas são organizadas permitemlhe estabelecer a interação comunicativa com a situação ficcional constituindose na experiência estética resultado do processo dialógico e do caráter emancipador do texto literário A interação entre texto e leitor permite que o receptor viva experiências alheias e se o texto possibilitalhe vivenciar outra realidade que não a sua A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 217 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs ele pode romper com a práxis do cotidiano experimentando uma nova visão da realidade Em síntese é um convite ao leitor REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AZEVEDO R Um homem no sótão São Paulo Cia Melhoramentos 1982 Nossa rua tem um problema São Paulo Paulinas 1986 O rei das pulgas São Paulo Moderna 1990 Uma velhinha de óculos chinelos e vestido azul de bolinhas brancas São Paulo Companhia das Letrinhas 1998 FARIA Maria Alice Parâmetros curriculares e literatura as persona gens de que os alunos realmente gostam São Paulo Contexto 1999 ISER W O ato da leitura uma teoria do efeito estético Tradução Johannes Kretscmer 2 v São Paulo Editora 34 1999 JAUSS H R A história da literatura como provocação à teoria literá ria Tradução Sérgio TellaroliSão Paulo Ática 1994 218 EXPELLIARMUS O UTÓPICO O PÓSUTÓPICO E A CAMBIÂNCIA DAS IDENTIDADES EM HARRY POTTER DE J K ROWLING Marco Medeiros INTRODUÇÃO Em texto constante de O arcoíris branco ensaios de literatura e cultura 1997 Haroldo de Campos ao refletir sobre o panorama posterior à década de 60 do século passado no qual a última tentativa vanguardista em nossa poesia o Concretismo chegava ao fim afirma que os tempos que então se iniciavam seriam definidos com mais precisão através do conceito de pósutopia Embora suas observações se detivessem especificamente no contexto da produção poética tal referencial teórico se ajusta também às produções em prosa da literatura contemporânea além de permitir que se desfaçam alguns questionamentos conceituais trazidos pela noção usual de pósmoderno Na acepção de Flávio Carneiro 2005 a designação pósutopia se imporia à noção de pósmoderno por dois motivos Primeiro porque evita certas ambigüidades por exemplo supor que se trata de um período cujo objetivo é encerrar definitivamente a modernidade o pós sugerindo a ruptura radical e não como quer Lyotard uma redefinição de caminhos Depois porque aponta para a diferença principal entre o imaginário estampado na produção estética não só a literária da primeira metade do século e um pouco além daquele que a partir pelo menos do final dos anos 60 temos vivenciado CARNEIRO 2005 p13 Para diferenciar as pósutopias das utopias Campos se vale de uma expressão cunhada por Ernst Bloch na caracterização destas o A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 219 princípio esperança uma espécie de esperança programática que permite entrever no futuro a realização adiada do presente CAMPOS 1997p265 Assim os projetos utópicos carregam intrinsecamente a si algo de missionário pois são construções coletivas de um grupo que abrindo mão da singularidade individual deseja atingir a implantação de um mundo novo Já as pósutopias substituem tal princípio pelo princípiorealidade um foco no presente produto de uma época marcada pelo estigma de perene crise na qual qualquer valor que se deseje impor como estabelecido é imediatamente questionado O contemporâneo se afirma então como um período crítico indagador por princípio Conseqüentemente a noção de identidade será permanentemente discutida afinal tempos como esses põem em xeque qualquer tentativa de definição fazendo com que a velha pergunta Quem sou eu seja revestida de possibilidades múltiplas de respostas Mas sempre múltiplas nunca definitivas Este trabalho propõese a discutir a problemática da representação das identidades pósutópicas na série de livros infanto juvenis mais bemsucedida em vendas dos últimos tempos Harry Potter da escritora inglesa JK Rowling Proporcional ao sucesso de público foi a reação da crítica acadêmica aos livros Harold Bloom por exemplo um dos mais respeitados teóricos norteamericanos em artigo ao The Boston Globe 24092003 chama o primeiro livro da série de dreadful terrível afirmando que tal obra não levaria o leitor a buscar outras obras mais canônicas como os textos de Kipling ou Lewis Carroll além de exibir uma escrita cheia de clichês e metáforas gastas Particularmente não concordo com a idéia defendida pelo crítico de que uma das características determinantes para a valorização de uma obra literária seja a capacidade de formar leitores para outros textos embora acredite que isso aconteça com muitas José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 220 obras incluindo aí a referida série Também não é objetivo deste artigo oferecer uma análise estilística da escrita de Rowling Propõe se então um olhar desarmado embora apoiado em teorias críticas respeitadas acerca do contemporâneo Explicase assim a primeira palavra do título desse escrito Expelliarmus No universo de Harry Potter esse é o feitiço de desarmamento Dito isso passemos a analisar os romances propriamente referidos HARRY POTTER E OS LIVROS CAMBIANTES Em 1997 a britânica JK Rowling lançou Harry Potter e a pedra filosofal primeiro livro de uma série de sete finalizada no ano passado com o lançamento de Harry Potter and the deathly hallows De lá para cá mais de trezentos e vinte milhões de exemplares foram vendidos cinco longasmetragens campeões de bilheteria baseados nos livros foram produzidos além de uma infinidade de produtos publicações e material acerca das aventuras do jovem bruxo Os romances narram a trajetória de um órfão inglês que aos onze anos de idade se descobre bruxo e junto com tal revelação sabe também que seus pais foram mortos pelo mais terrível feiticeiro das trevas Lord Voldemort que misteriosamente perdeu os poderes e desapareceu ao tentar matálo ainda bebê Desse embate restou uma cicatriz em forma de raio na testa do menino Admitido na escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts Potter irá se deparar com o retorno de seu grande inimigo além de lidar com os conflitos naturais da adolescência Contextualizado o enredo pensemos a questão da identidade hoje Segundo Zygmunt Bauman 2001 estaríamos vivendo tempos líquidos fluidos nos quais pensar a identidade é penetrar em um ambiente instável no qual qualquer solidez sugerida pela experiência biográfica aponta para a fragilidade e vulnerabilidade de tal conceito A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 221 lacerado constantemente por forças que expõem sua fluidez e por contracorrentes que ameaçam fazêla em pedaços e desmanchar qualquer forma que possa ter adquirido BAUMAN 2001p98 Dessa forma a identidade seria hoje uma celebração móvel HALL 2004p12 Alijado de um núcleo o sujeito contemporâneo passa a assumir variadas identidades diferentes a cada diferente momento Assim a contemporaneidade é palco para eus cambiantes MEDEIROS 2007 identidades que transitam vagam ressignificamse díspares e complementares ao mesmo tempo A série Harry Potter é lócus interessante para pensarmos no âmbito da literatura a cambiância das identidades Para João Alexandre Barbosa 1983 é impossível separar a noção de Modernidade da de insegurança Por conseguinte as artes a partir de então assumem a tensão que na literatura será consumada através da problematização e da desconfiança entre a representação e a realidade Assim a crise real passa a ganhar um rendimento literário consciente Que na obra em análise já se manifesta na configuração do herói da história UM HERÓI CAMBIANTE Harry Potter é uma personagem cuja delineação identitária é marcadamente cambiante Já no primeiro livro da série ele é confrontado com o choque de identidades atribuídas a si as quais ele não consegue em princípio assumir Assim no momento em que Rúbeo Hagrid o gigante mandado pela escola lhe revela que ele Harry é um bruxo o menino nega o papel mas Harry ao invés de se sentir contente e orgulho so teve a certeza de que tinha havido um terrível en gano Bruxo Ele Como era possível Passara a vida dominado por Duda e infernizado pela tia Petúnia e pelo tio Valter se era realmente um bruxo por que eles não tinham se transformado em sapos toda vez que tenta José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 222 ram prendêlo no armário Se uma vez derrotara o maior feiticeiro do mundo como é que Duda sempre pudera chutálo para cá e para lá como se fosse uma bola de futebol ROWLING 2000p54 Para logo depois assumilo Não é bruxo hein Nunca fez nada acontecer quando estava apavorado ou zangado Harry olhou para o fogo Pensando bem cada coisa estranha que deixara os seus tios furiosos tinha aconte cido quando ele Harry estava perturbado ou com rai vaperseguido pela turma de Duda puserase de re pente fora do seu alcancereceoso de ir para a escola com aquele corte ridículo conseguira fazer os cabelos crescerem de novoe da última vez que Duda batera nele não fora à forra sem perceber que estava fazendo isto Não mandara uma cobra atacálo ROWLING 2000p545 Uma das marcas da pósutopia é a retomada crítica da utopia Harry Potter é uma personagem que traz em sua configuração características utópicas afinal ele se sustenta na narrativa como um herói tradicional sua missão é derrotar o grande vilão e salvar não apenas a sua vida mas também a de toda comunidade bruxa e não bruxa também Dessa forma ele se insere no que Joseph Campbel 1990 chama de a saga do herói não o autoengrandecimento mas diferente da celebridade que vive para si a redenção de toda a humanidade No entanto essa visão utópica do herói perfeito que sozinho engrandece a todos é desfeita no texto Durante toda a saga Harry atinge seus objetivos amparado por seus dois melhores amigos Hermione Granger a aluna perfeita devoradora de livros e Rony Weasley o garoto atrapalhado que com senso prático e lealdade aos amigos ajuda a resolver os conflitos Nelly Novaes Coelho 2000 aliás aponta essa característica socializante do protagonista a substituição do herói infalível e individual pelo grupo como uma A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 223 marca poderosa dos valores novos na literatura infanto juvenil contemporânea Mas longe de exibir uma caracterização adocicada acerca da amizade como se esta fosse capaz de apagar qualquer frustração individual ou fazer com que as personagens abjurassem de suas frágeis individualidades em prol do grupo o texto de Rowling problematiza a questão A crise contemporânea leva a relativização total inclusive a da amizade Desse modo é revelador entre outros momentos da trama o trecho no qual Rony Weasley frente a uma horcrux objeto mágico que guarda parte da alma de Lord Voldemort encara um de seus maiores medos o de saber que fora eclipsado o tempo todo pelo amigo famoso o de ter se inserido num mundo no qual o único papel oferecido a ele foi o de coajuvante Then a voice hissed from out of the Horcrux I have seen your heart and it is mine Dont listen to it Harry said harshly Stab it I have seen your dreams Ronald Weasley and I have seen your fears All you desire is possible but all that you dread is also possible Stab shouted Harry his voice echoed off the sur rounding trees the sword point trembled and Ron gazed down into Riddles eyes Least loved always by the mother who craved a daughterLeast loved now by the girl who prefers your friendSecond best always eternally oversha dowed ROWLING 2007 p 3756 Em consonância com o cenário cambiante da contemporaneidade Potter exibe também um tom peculiar de desrespeito às regras e ao autoritarismo Consciente de que tal como as identidades tudo se relativiza hoje o herói da história encarna a dialética como caminho repudiando concepções maniqueístas do mundo e percebendo que as pessoas são muito mais complexas que José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 224 os clichês atribuídos a elas Nesse sentido o protagonista atinge algumas de suas metas a partir do momento em que questiona o poder instituído É o que se dá por exemplo já na primeira parte da saga quando Potter frustra os planos de Voldemort justamente por desobedecer a ordem que dizia que alunos não poderiam se aproximar do corredor do terceiro andar ROWLING 2000 p 112 Essa concepção libertária do indivíduo gera em consonância na narrativa uma elaboração fortalecedora das responsabilidades individuais Dessa forma o texto destoa das narrativas utópicas nas quais a moral da história era imposta ao texto e às personagens Aqui o eu é forçado a agir de maneira consciente É claro que não se pode afirmar que há um desaparecimento dos valores morais afinal a literatura é cronotópica mas podese dizer que em narrativas desse tipo surge o que Coelho 2000 chama de moral espontânea mas responsável COELHO 2000 p 22 É o que transparece por exemplo nesse fragmento de um diálogo entre Harry e o diretor da escola Alvo Dumbledore constante do segundo livro da série No trecho em questão Potter está em dúvida se realmente foi colocado na Casa certa os alunos são distribuídos em casas a partir das qualidades que o Chapéu Seletor lê em suas mentes Contudo o Chapéu Seletor colocou você na Grifinó ria E você sabe o porquê Pense Ele só me pôs na Grifinória disse Harry com voz de derrota porque pedi para não ir para a Sonserina Exatamente disse Dumbledore abrindo um grande sorriso O que o faz muito diferente de Tom Riddle São as nossas escolhas Harry que revelam o que realmente somos muito mais do que as nossas qualidades ROWLING 2000 p280 grifos meus Aliás o fator que o trecho grifado deixa transparecer em tempos de identidades múltiplas as escolhas prevalecem sobre a não A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 225 mais possível essência é preponderante para o desfecho da saga No último dos romances a batalha entre Harry e seu arquiinimigo acontece de fato Voldemort atinge Potter com um feitiço mortal Nesse momento o adolescente vai para uma espécie de limbo onde descobre através de Dumbledore que parte do vilão vivia dentro de si Nesse ponto as escolhas tornamse cruciais But you want me to go back I think said Dumbledore that if you choose to re turn there is a chance that he may be finished for good I cannot promise it But I know this Harry that you have less to fear from returning here than he does Do not pity the dead Harry Pity the living and above all those who live without love By returning you may ensure that fewer souls are maimed fewer families are torn apart If that seems to you a worthy goal then we say goodbye for the present RO WLING 2007 p 722 Um ponto merece ser destacado do trecho acima Harry tem direito de escolha Dumbledore deixa claro que a decisão deve partir dele Ele é quem deve determinar que referencial identitário tomar o de herói salvador ou o de quem evita o sofrimento e se preserva É a tal moral espontânea o conflito ético é um conflito identitário Aliás retomase nesse encerramento uma questão levantada em Harry Potter e o Cálice de Fogo 2001 a escolha entre o que é certo e o que é fácil ROWLING 2001 p 575 Aliás a escolha de Potter é uma escolha de essência hamletiana Sua identidade é plasmada a partir do trauma de ter os pais assassinados quando ainda era um bebê ou seja quando ainda não era capaz de reter memórias Note que assim o núcleo do conflito é utópico mítico até No entanto o caráter angustiado que se encerra nele é como sinaliza Slavoj Žižek 2003 marca contemporânea logo pósutópica Para o teórico esloveno hoje José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 226 somos mais assombrados pelos traumas que não estamos dispostos ou não somos capazes de relembrar pois eles nos perseguem através do que não houve daquilo que deveria ter sido feito mas não foi Desse modo a angústia da nãoação bem diferente de omissão de ter os pais mortos e nada poder fazer contra isso passa a ser um espectro contínuo que determinará as opções identitárias da personagem Mais ainda Potter será obrigado a lidar com a angústia da perda ao longo da série quando encarará outras mortes extremamente significativas a de seu padrinho Sirius Black Harry Potter e a Ordem da Fênix a de seu protetor Alvo Dumbledore Harry Potter e o enigma do Príncipe além das múltiplas mortes de Harry Potter and the deathly hallows incluindo até mesmo sua coruja de estimação Edwiges Após tecermos essas considerações acerca do protagonista da história sugiro que façamos um vôo panorâmico por outros aspectos do texto que nos ajudarão a continuar pensando as ligações entre literatura cambiância das identidades e Harry Potter Peguem suas vassouras e pousemos em Hogwarts UM MUNDO CAMBIANTE Rowling cria em seus livros um universo mágico e insólito No entanto esse mundo peculiar diferente dos espaços idílicos das narrativas tradicionais nos quais cada personagem transita em segurança é área na qual as identidades são interpeladas e ressignificadas o tempo todo assumindo assim o caráter fluido da atualidade Um item atraente nessa discussão é a divisão dos alunos de Hogwarts em Casas Retomase aqui um sinal das pósutopias a substituição do olhar unificador pelo particularizado o A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 227 individualizado Dessa maneira a escola não é representada na narrativa como uma instituição que enxerga seus alunos como uma massa unitária mas sim como indivíduos possuidores de identidades que os ligam a certas personagens e os separam de outras A própria gênese das Casas é explicada na narrativa através do conflito de identidades Os quatro fundadores da escola divergiam sobre que tipo de alunos deveria ser aceito na instituição Dessa celeuma nasceram as Casas Godrico Grifindor fundou a Grifinória casa onde habitam os corações indômitos e cujos alunos se diferem pela ousadia sanguefrio e nobreza Helga Hufflepuff a Lufalufa onde os moradores são justos e leais pacientes sinceros sem medo da dor Rowena Ravenclaw foi a mentora de Corvinal a casa dos que tem a mente sempre alerta onde os homens de grande espírito e saber sempre encontrarão seus iguais e por fim Salazar Slytherin da Sonserina Casa onde se encontram homens de astúcia que usam quaisquer meios para atingir os fins que colimaram ROWLING 2000 p 105 Outro quesito problematizador da noção da identidade é a escolha que a narrativa faz em não se valer de maniqueísmos na conformação de certas personagens É claro que estão presentes no texto os arquétipos clássicos do herói e do vilão No entanto alguns sujeitos narrativos serão abordados em uma perspectiva mais profunda É o que se dá por exemplo com Duda Dursley o primo trouxa trouxa é o nome que os bruxos dão aos nãobruxos de Harry Ao longo dos romances Harry é humilhado e abusado por ele e seus pais No último porém Duda demonstra gratidão e afeto por Potter que uma vez salvara sua vida Outras personagens como Draco Malfoy e sua família não serão capazes de substituir o orgulho pela gratidão mesmo tendo sido salvos pelo protagonista José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 228 Nenhuma dessas personagens é mais conflituosa contudo do que Severo Snape O rigoroso professor de Poções é uma figura desagradável que no passado foi seguidor de Lord Voldemort e que agora se diz arrependido Diretor de Sonserina ele protege os alunos de sua Casa e persegue os das outras especialmente Harry Potter mesmo quando aqueles estão comprovadamente errados Em Harry Potter e o enigma do príncipe 2005 Snape assassina um dos maiores protetores de Harry o diretor Dumbledore No entanto quando a série se encerra descobrese que Snape era na verdade um herói alguém capaz de dar a própria vida o que acontece de fato pela defesa do Bem e que a morte de Dumbledore havia sido traçada pelo próprio Dumbledore para defender os alunos da escola O texto porém não retrata Severo como um mocinho padrão Ele experimenta a cambiância das identidades em si quando traz em seu interior uma série de conflitos Assim o mesmo bruxo que persegue Potter por mágoas não digeridas pelas humilhações que passou nas mãos do pai do menino é o bruxo que também morrerá por Potter e pelo amor não correspondido que tinha pela mãe do rapaz Utópico e pósutópico Múltiplo Por outro lado além da multiplicidade as identidades da narrativa também são obrigadas a conviver com as limitações e fragilidades Assim nem mesmo os bruxos que em um primeiro olhar estariam a salvo das crises pelos seus poderes mágicos escapam do desamparo contemporâneo Por exemplo não podem através de sua magia trazer os mortos de volta A perda deve ser vivida Um momento interessante dessa fragilidade é o encontro do Ministro da Magia com o Primeiro Ministro da Inglaterra Grandes catástrofes estavam atingindo até o mundo trouxa e o premier inglês interpela o bruxo dizendo que eles poderiam fazer qualquer coisa afinal são bruxos A resposta de Cornélio Fudge expõe a desproteção A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 229 pósutópica O problema é que o outro lado também sabe fazer bruxarias PrimeiroMinistro ROWLING 2005 p 20 Portanto o texto de Rowling se apóia em cambiâncias Toda a configuração da narrativa aponta para o pluralismo para a fluidez Essa cambiância atinge inclusive o leitor UM LEITOR CAMBIANTE Para pensarmos a questão da recepção do leitor em Harry Potter evocase a perspectiva de Umberto Eco em Lector in fabula 1994 O pensador italiano afirma que o texto é uma espécie de estrutura preguiçosa que necessita de sentidos atribuídos a ele pelo destinatário o leitor Assim o papel do leitor é interferir na obra para trazerlhe significado Da mesma maneira Maurice Blanchot 1987 não enxerga a obra literária como uma estrutura fechada Para ele o ato da leitura faz parte da obra contribuindo inclusive para a feitura da própria obra Em sua concepção ler é fazer com que a obra se comunique BLANCHOT 1987 p 199 Essa postura se coaduna com a de Jauss 1994 que afirma que o texto se atualiza através da leitura podendo inclusive conter significações potenciais que só serão decodificadas em momentos históricos distintos e posteriores à sua primeira recepção O leitor potencial de Harry Potter assume essas características sugeridas pela estética da recepção Como aponta Therezinha Barbieri 2003 a literatura contemporânea é palco de uma relação nova entre letras e mercado Assim a cultura de massa com seus estímulos múltiplos e sensoriais toca a obra literária indelevelmente No caso da série em questão isso é elevado à potências astronômicas afinal tratase de obras que geraram lucros de bilhões José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 230 de dólares além de atingirem também outras mídias como o cinema amparada por intensa campanha de marketing O fenômeno que esses livros causaram foi interessantíssimo para se pensar os limites entre leitorprodutor e a obra O leitor foi levado à cambiância de identidades em relação à obra oscilando entre ser receptor e ter papel ativo sobre o texto Para aprofundarmos essa questão destacamse três pontos interessantes as traduções nãooficiais dos livros as chamadas fanfics e a influência de aspectos extratextuais na produção de significação dos textos Cada lançamento de um novo livro da série era sucedido por um fato peculiar Leitores de países nãofalantes de língua inglesa não suportando esperar pelas edições oficiais em suas línguas pátrias disponibilizavam na internet traduções alternativas feitas por eles Dessa forma o papelleitor é ampliado já que assim ele também assumese enquanto tradutor logo produtor de certa forma da narrativa As muitas páginas dedicadas a essas traduções na Internet exibiam inclusive discussões muito abrangentes acerca do espaço da tradução em relação ao texto original contestando até mesmo estratégias utilizadas pela tradutora oficial Lia Wyler Uma ampliação dessa questão se deu com as chamadas fanfics abreviatura do inglês fan fictions ficções produzidas por fãs Muitos leitores de Harry Potter escreviam narrativas que valendose das tramas criadas por Rowling ofereciam caminhos alternativos para o leitor atuar sobre elas Aliás alguns desses ficcionistas conseguiram inclusive amealhar um número considerável de leitores na web aumentando o alcance dos livros originais Além disso a produção de sentidos que o leitor exerce em relação à obra sofreu no caso da série uma interessante reviravolta Cercado por uma multiplicidade de mídias o leitor de Harry Potter foi adicionando à sua recepção da narrativa elementos trazidos de fora A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 231 dos textos Por exemplo o relacionamento amoroso entre Rony Weasley e Hermione Granger só começa a ser sugerido nos livros a partir do sexto volume No entanto uma cena no segundo filme da série já explicitava essa questão Assim a leitura do livro passou a ser então alterada pelas imagens dos filmes Outra ocasião polêmica acerca da influência extratextual na formação de sentidos foi a badalada declaração de JK Rowling quando em encontro com leitores norteamericanos no lançamento do último livro revelou que Albus Dumbledore era homossexual informação que ausente da narrativa oferece a ela um olhar completamente novo e aprofundado pois explica algumas ações que em princípio pareceriam inverossímeis na figura de Dumbledore mas que se tornam verossímeis quando o leitor pensa que provavelmente ele estaria apaixonado por um outro bruxo que depois se revelaria um ser das trevas Com isso o leitor se depara criativamente com a crise de identidade Quanto mais ele se assume enquanto leitor ou seja quanto mais ele se torna receptivo à obra mais ele também se assumia como produtor de significação para o texto CONCLUSÃO Harry Potter faz parte hoje do imaginário da sociedade contemporânea A controvérsia causada pelos livros e por tudo que se relaciona a eles está longe de ser e nem deve ser calada Usemos então por um segundo nossa vassoura e voemos acima dos defensores e dos detratores Olhando do alto pairando no panorama mais amplo do universo da literatura infantojuvenil uma conclusão nos assalta ainda é cedo para nós sem o conforto do distanciamento histórico em relação à produção do texto produzirmos um juízo definitivo acerca da obra de Rowling Se ela José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 232 será eterna ou se esvairá como tantas modas que vemos passar dia adia não se sabe O que nós sabemos é que por ora o bruxo adolescente se vale da magia que a literatura conhece há tempos imemoriais a de fornecer com saber e sabor material para o pensamento REFERÊNCIAS BARBIERI Therezinha Ficção impura prosa brasileira dos anos 70 80 e 90 Rio de Janeiro EdUERJ 2003 BARBOSA João Alexandre A modernidade no romance In PROENÇA FILHO org O livro do seminário São Paulo LR 1983 BAUMAN Zygmunt Modernidade líquida Trad Plínio Dentzien Rio de Janeiro Jorge Zahar 2001 BLANCHOT Maurice O espaço literário Trad Álvaro Cabral Rio de Janeiro Rocco 1987 BLOOM Harold Dumbing down American readers In The Boston Globe Boston MAsn 24092003 Disponível em httpwwwbostoncomnewsglobeeditorialopinionopedarticles 20030924dumbingdownamericanreaders acessado em junho de 2008 CAMPBEL Joseph O poder do mito Trad Carlos Felipe Moisés São Paulo Palas Athenas 1990 CAMPOS Haroldo de Poesia e Modernidade da morte da arte à constelação O poema pósutópico In O arcoíris branco ensaios de literatura e cultura Rio de Janeiro Imago 1997 CARNEIRO Flávio No país do presente Ficção brasileira no início do século XXI Rio de Janeiro Rocco 2005 COELHO Nelly Novaes Literatura infantil Teoria Análise Didática São Paulo Moderna 2000 ECO Umberto Lector in fabula a cooperação interpretativa nos tex tos narrativos Trad attílio Cancian São Paulo Perspectiva 1986 GROSSI Gabriel Pillar ed O guia completo da saga Harry Potter São Paulo Abril 2005 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 233 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs HALL Stuart A identidade cultural na pósmodernidade 9 ed Trad Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro Rio de Janeiro DPA 2004 JAUSS Hans Robert A história da literatura como provocação à teo ria literária Trad Sérgio Tellarolli São Paulo Ática 1994 MEDEIROS Marco O labirinto dos euscambiantesa questão da iden tidade In Eles eram muitos cavalos de Luiz Ruffato Dissertação de mestrado Rio de Janeiro Programa de Pósgraduação em Letras Universidade do Estado do Rio de Janeiro 2007 ROWLING JK Harry Potter and the deathly hallows New York NY Arthur A Levine Books Scholastic 2007 Harry Potter e o enigma do Príncipe Trad Lia Wyler Rio de Janeiro Rocco 2005 Harry Potter e a Ordem da Fênix Trad Lia Wyler Rio de Ja neiro Rocco 2003 Harry Potter e a o Cálice de Fogo Trad Lia Wyler Rio de Janeiro Rocco 2001 Harry Potter e o prisioneiro de Azkaban Trad Lia Wyler Rio de Janeiro Rocco 2000 Harry Potter e a câmara secreta Trad Lia Wyler Rio de Ja neiro Rocco 2000 Harry Potter e a pedra filosofal Trad Lia Wyler Rio de Ja neiro Rocco 2000 ŽIŽEK Slavoj Bemvindo ao deserto do real Cinco ensaios sobre o 11 de setembro e datas relacionadas Trad Paulo Cezar Castanheira São Paulo Boitempo 2003 234 MANOEL DE BARROS INFÂNCIA IMAGEM E CONHECIMENTO Mara Conceição Vieira de Oliveira Nada há de mais prestante em nós senão a infância O mundo começa ali Manoel de Barros INTRODUÇÃO O mundo começa na infância e será conhecido pela criança de acordo com a experiência vivida por ela Relacionando experiência humana e pobreza Benjamin fará menção à infância Lerseá Exercícios de ser criança considerando a narrativa ficcional um espaço singular para a construção do conhecimento Essa obra propicia uma conversa infinita um modo de conhecer o mundo descrito por Maurice Blanchot para o qual não há um ponto de chegada definido Um modo em que o conhecimento se dará no percurso sempre inacabado inscrevendo uma razão outra Lançando o olhar para essas teorias e percebendo a recepção do texto Exercícios de ser criança de Manoel de Barros por 30 alunos do 6ºano5ªsérie é que proponho a presente reflexão INFÂNCIA E EXPERIÊNCIA Benjamin 1994 desde o início do século XX já apontara uma forte preocupação em relação à pobreza de experiência Segundo ele o capitalismo homogeneíza a experiência humana que será substituída progressivamente por um padrão coletivo de comportamento de modo que verá a linguagem como forma de tentar escapar das discrepâncias do utilitarismo e da praticidade que caracterizam a sociedade capitalista De acordo com ele uma nova forma de miséria surgiu com o monstruoso desenvolvimento da A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 235 técnica sobrepondose ao homem 1994 p115 Convencido da pobreza da experiência humana Benjamin passa a fazer alusão à infância fase esta que também é solapada pelas terríveis histórias de experiência dos adultos pois aos poucos somos tomados pelo sentimento de que nossa juventude não passa de uma curta noite vivea plenamente com êxtase depois vem a grande experiência anos de compromisso pobreza de idéias lassidão Assim é a vida dizem os adultos eles já experimentaram isso BENJAMIN 2002 p22 Desse modo é conhecida mais uma terrível experiência a de aniquilar os sonhos da infância eou da juventude Porém para Benjamin a verdadeira experiência jamais estará privada de espírito se nós permanecermos jovensBENJAMIN 2002 p24 ou seja empreendendo o exercíco de ser criança sugerido por Barros Permanecendo jovem o homem não abandonaria o espírito O jovem vivenciará o espírito e quanto mais difícil lhe for a conquista de coisas grandiosas tanto mais encontrará o espírito por toda parte em sua caminhada e em todos os homens BENJAMIN 2002 p24 Por isso a necessidade de se admitir uma experiência que exceda a própria realidade fenomenológica uma experiência que ao esbarrar nos limites do real situase no espaço do vir a ser aceitando fundar a coragem e o sentido naquilo que não pode ser experimentado BENJAMIN 2002 p23 Ou ainda como diz o poeta uma experiência que faça compreender que as coisas que não existem são mais bonitas BARROS 2001a p 77 Olhar o mundo e buscar o conhecimento naquilo que não pode ser experimentado eou compreender que as coisas que não existem são mais bonitas seriam gestos que não apenas fundam uma outra razão a poética mas encenam atitudes próprias da infância Se entendemos que ao ouvirem ou lerem histórias as crianças relacionam seus mundos ficcionais e reais é imprescindível saber que José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 236 histórias são oferecidas a elas e como são lidas Segundo Benjamin a criança exige do adulto uma representação clara e compreensível mas não infantil 2002 p55 Porém contrariando esta expectativa da criança foramlhe oferecidos durante muitos anos de história brinquedos roupas e historinhas que antes de satisfazêla atendiam aos interesses dos adultos ou à vontade da ideologia dominante Vários contos e fábulas foram durante séculos usados como cartilha comportamental e até mesmo serviram como orientação nas aulas de catequese nesse uso elidiramse seus aspectos fabulosos e maravilhosos reconhecidos hoje pela psicopedagogia como importantes para o desenvolvimento cognitivo bem como para a formação integral da criança Tendo uma função pedagogizante e servil a uma filosofia positivista os brinquedos eou livros demasiadamente enfeitados coloridos e bem acabados tinham um valor mercadológico atendendo primeiro à sociedade de consumo pois ao contrário disto as crianças são especialmente inclinadas a buscarem todo local de trabalho onde a atuação sobre as coisas se processa de maneira visível Sentemse irresistivel mente atraídas pelos detritos Nesses produtos re siduais elas reconhecem o rosto que o mundo das coi sas volta exatamente para elas e somente para elas Com isso as crianças formam o seu próprio mundo de coisas um pequeno mundo inserido no grande Um tal produto de resíduos é o conto maravilhoso talvez o mais poderoso que se encontra na história espiritual da humanidade resíduos do processo de constituição e decadência da saga A criança consegue lidar com os conteúdos do conto maravilhoso de maneira tão sobe rana e descontraída como o faz com retalhos de tecidos e material de construção Ela constrói o seu mundo com os motivos do conto maravilhoso ou pelo menos estabelece vínculos entre os elementos do seu mundo BENJAMIN 2002 p5758 Esta maneira despretensiosa como a criança lida tanto com os conteúdos dos contos maravilhosos quanto com os resíduos é similar A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 237 à atitude revelada na poesia de Barros o poeta que aprecia aquilo que convencionalmente fora denominado inútil É pois do inútil do resíduo que a criança e Barros buscam formas para compreender o mundo que os circundam A relação com a coisa residual fará com que ela seja ressignificada tendo uma significância singular aos olhos daquele que a contempla Assim surge uma razão que compreenderá a passagem do dia para a noite pela música e deixará a lata objeto inútil se transformar em maravilhoso brinquedo O mundo meu é pequeno Senhor Tem um rio e um pouco de árvores Nossa casa foi feita de costas para o rio Formigas recortam roseiras da avó Nos fundos do quintal há um menino e suas latas ma ravilhosas Seu olho exagera o azul Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas com aves Aqui se o horizonte enrubesce um pouco os besouros pensam que estão no incêndio Quando o rio está começando um peixe Ele me coisa Ele me rã Ele me árvore De tarde um velho tocará sua flauta para inverter os ocasos BARROS 2001a p 75 O papel da imaginação é fundamental para o desenvolvimento cognitivo da criança e de sua atividade criadora Quando brinca a criança vive revive elabora e reelabora suas necessidades desejos José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 238 e conflitos organizando o mundo que aparentemente lhe parece caótico A brincadeira por mais infantil que pareça tem suas regras de modo que a criança também pode aprender eou organizarse por meio dela Pelas brincadeiras e histórias a criança realiza a experiência da linguagem e diferente do adulto arriscase na imaginação em busca de soluções que possam lhe auxiliar no conhecimento de si dos outros e do mundo Para Benjamin a infância é extremamente reveladora do homem e embora possa haver uma desfiguração das imagens da infância em função da terrificante experiência adulta o comportamento adulto está intrinsecamente ligado a sua vivência infantil pois o sujeito da história sempre é ao mesmo tempo a criança perdida o adulto preocupado de hoje e o desconhecido de amanhã GAGNEBIN 1999 p 89 Além da distância de tempo entre a criança e o adulto a qual paulatinamente passará a exigir do adulto uma postura outra há um malentendido a respeito da infância Muitos adultos entendem a infância como uma fase tola desimportante na qual os conteúdos são insignificativos e as falas inadequadas porém de acordo com a análise de Gagnebin sobre a Infância Berlinense de Benjamin as deformações e os deslocamentos lingüísticos infantis são sempre mencionados como apontando para aspectos desconhecidos negados ou recalcados que as coisas e as palavras se cessarmos de considerálas unicamente no seu contexto instrumental nos lançam à cara GAGNEBIN 1999 p82 Logo considerar as palavras e as coisas em seu sentido unicamente instrumental pode significar a negação de uma experiência ou ademais a constatação de que nossas expectativas da infância não foram realizadas à medida que o tempo passou De acordo com Benjamin o sujeito não se construiria apenas pela afirmação consciente de si mas se abre para uma dimensão A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 239 involuntária inconsciente da qual participam a vida da lembrança e do esquecimento Segundo Gagnebin a ação de Benjamin em visitar sua infância berlinense não é apenas um gesto que retrata lembranças ou esquecimentos mas é também uma atitude política ou seja uma atitude de alguém que participa de seu tempo e de sua história A infância é um momento rico na busca do conhecimento em relação à natureza animal vegetal e material do mundo e à própria linguagem Ao procurar respostas a criança não se prende ao convencionalismo do mundo adulto prático e utilitário O adulto talvez saiba que é menos possível conhecer de fato e mais possível sentir embora muitas vezes iniba as percepções do mundo chegando a se incomodar com elas Porém o excesso de racionalismo faz com que a razão humana apenas considere os acontecimentos dentro de uma relação de causa e efeito Por sua parte a criança parece não se indispor com a incerteza acerca de algumas questões Ela aceita o jogo do faz de conta e acaba experimentando aquilo que para o homem adulto é fugidio O mundo infantil cheio de falas e imagens altamente poéticas revela ao aceitar o faz de conta os aspectos fantásticos e maravilhosos da experiência Aceitar o jogo é a maneira de a criança compreender o mundo transformando pois em brincadeiras aquilo que não pode conhecer Pela brincadeira a criança aceita adiar as respostas admite o irreal mergulha no imaginário e experimenta as sensações do fabuloso Criase uma possibilidade de conhecer o mundo por meio daquilo que não é real ou por meio de uma experiência apofática uma vez que a explicação para a língua da criança pode ser entendida pelo poeta como a desexplicação José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 240 Desexplicação Língua de criança é a imagem da língua primitiva Na criança fala o índio a árvore o vento Na criança fala o passarinho O riacho por cima das pedras sole tra os meninos Na criança os musgos desfalam desfazemse Os nomes são desnomes Os sapos andam na rua de chapéu Os homens se vestem de folhas no mato A língua das crianças contam a in fância em tatibitati e gestos BARROS 2001b Haveria nisso algo que não seria conhecido realmente mas depreendido da imagem que a palavra não consegue escrever senão conjugada com outras na composição de uma imagem Talvez em conformidade com Benjamin seja assim a revelação do inexpressável A língua da criança ao ser a imagem da língua primitiva não manteria as relações semânticas préestabelecidas entre os signos lingüísticos e nem mesmo pragmáticas de modo que os sapos podem andar de chapéu pelas ruas ou os homens se vestirem de folhas no mato Ao transitar entre o real e o irreal a criança satisfaz provisoriamente seu desejo de conhecer A saída da realidade dá a ela uma outra razão uma outra lógica para a compreensão do mundo Em relação a isso os contos de fadas servem como exemplo Eles apresentam um enredo com estrutura fixa e de uma situação problema vinculada à realidade a história passa por um desequilíbrio No desenvolvimento está presente a busca de soluções A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 241 com a ajuda de personagens mágicos voltando ao equilíbrio no final da narrativa ou seja retomando uma condição mais próxima da realidade A experiência da linguagem nas narrativas e nas brincadeiras infantis é marcada pela aceitabilidade do jogo e sem que ninguém previamente a oriente a criança permite este acontecimento Uma vez que a criança recebe tão despretensiosamente o inacabado a nãoresposta o faz de conta eu diria que na infância a busca pelo conhecimento poderia ser inscrita também no contexto derridiano da promessa pois ela ao vivenciar o universo desconhecido não exige dele uma resposta definitiva Suas perguntas acabam por aceitar outras perguntas como respostas que anunciam freqüentemente o porvir delineando um discurso no qual se cria o espaço do indecidível e de acontecimentos experimentados pelos contos e brincadeiras que se revelam pela marca da nãopresença Neste contexto o termo nãopresença representaria toda a inventividade mágica e fantástica dos contos e brincadeiras aquilo que estaria presente apenas no imaginário ou na linguagem que sustentará a fantasia Benjamin discute a linguagem também a partir de uma teoria mimética A compreensão da linguagem pela capacidade mimética faria com que o homem descobrisse na natureza analogias e correspondências Historicamente supõese que a linguagem surgiu de uma mímica gestual primitiva e gradativamente o som que representava um simples acompanhamento do gesto separouse dele Segundo comenta Benjamin em A Doutrina das Semelhanças a faculdade mimética consiste em um processo engendrador das semelhanças e o homem tem a capacidade suprema de produzir semelhanças ou seja de imitar Mesmo reconhecendo que a noção de semelhança seja vasta e amplamente discutível Benjamin propõe alguns exemplos para pensála e entende que ela determina os homens de dois modos consciente e inconscientemente Na José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 242 exposição desses exemplos Benjamin diz que a brincadeira infantil constitui a escola da faculdade ontogenética Os jogos infantis são impregnados de comportamentos miméticos que não se limitam de modo algum à imitação de pessoas A criança não brinca apenas de ser comerciante ou professor mas também moinho de vento e trem BENJAMIN 1994 p 108 Além de compreender os jogos infantis como uma manifestação do comportamento mimético Benjamin verifica a influência da faculdade mimética sob a linguagem A linguagem permite uma compreensão do conceito de semelhança extrasensível ou seja da semelhança que não se define exclusivamente por um modo de aproximação baseado em fundamentos sólidos Assim a linguagem não é apenas um sistema convencional de signos e por isso as semelhanças estabelecidas por ela serão relativas isto é sensíveis dependendo é claro de um referente De modo que a leitura pode ser instrumental ou mágica mas apenas a mágica corresponderia às possibilidades de interpretações e de uma experiência extrasensível Todavia notase uma certa falta de prestígio em relação à leitura nãoinstrumental O caráter mimético da linguagem assume formas diretas e convencionais que correspondem sem qualquer reflexão aos seus significantes porém a leitura mágica submete se a um tempo necessário ou antes a um momento crítico que o leitor por nenhum preço pode esquecer se não quiser sair de mãos vazias BENJAMIN 1994 p113 Esse momento mágico parece se realizar mesmo que de modo inconsciente nos jogos infantis nos quais a experiência sensível não se deixa anular Atento a essas duas leituras a instrumental e a mágica Benjamin indaga se a capacidade mimética teria se extinguido ou se transformado na sociedade moderna Podemos supor que Benjamin se refere à infância ou à linguagem pensada pela criança porém é preciso acrescentar e A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 243 salientar aqui a ideia de uma infância da linguagem ou seja da procura por uma linguagem menos gasta contrária ao convencionalismo e à lógica instrumental mas que não se revela apenas nas falas infantis reportome pois à linguagem da narrativa em Barros da qual algumas imagens representariam essa possível maneira de voltar ao passado ou de realizálo no presente percebida por Benjamin COMO OS ALUNOS EXPERIMENTARAM O EXERCÍCIO DE SER CRIANÇA As narrativas ficcionais oferecem às crianças e jovens uma outra perspectiva para se olhar o mundo na qual o papel do professor é muitas vezes determinante Até o 5ºano a perplexidade da criança diante do texto literário é mais intensa porém a partir dessa época ela parece se encantar menos com os narrativas ficcionais Ler Exercícios de ser criança pretendia de fato exercitar o ser criança o permanecer se encantando com o jogo da linguagem na construção do fabuloso Não abordarei aqui as complicadas relações entre práticas de leitura e escola Tomarei como referência o texto Exercícios de ser criança os alunos e algumas intervenções feitas por mim em sala Resistindo em serem considerados crianças alguns alunos já se inquietaram com o título Porém ao adentrarem no texto alguns consideraramno difícil e perceberam que não se tratava de um material dirigido especificamente a criançinhas Essa foi a primeira dificuldade facilmente superada para então começarmos efetivamente a análise do texto que busca uma forma de conhecimento outra verificando sobretudo em que medida a linguagem permite a referida experiência sensível Revestidas daquilo que é ditado pelo imaginário as imagens poéticas expressam características próprias da criança e em José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 244 conformidade com Breton podemos perceber que de fato a poesia pode fazer reviver com exaltação a melhor parte da infância BRETON 2001 p56 Assim os epsódios que a princípio foram por alguns considerados absurdos foram se tornando familiares de modo que os leitores desta pesquisa diziam Ah Eu já fiz isso e reviviam partes de sua infância ainda bem presente A maior dificuldade deles foi decodificar as metáforas por isso eu ofereci algumas chaves de leitura Dentre as duas histórias O menino que carregava água na peneira e A menina avoada eles destacaram maior interesse pela primeira de modo que passarei a considerála a partir das análises desses leitores Disseramme que carregar água na peneira é como viver pois nunca conseguimos realizar tudo que queremos Na peneira não carregamos a água toda mas apenas algumas gotinhas O entendimento rigorosamente literário fez com que alguns alunos desejassem ser filhos da mãe de Manoel de Barros Essa mãe não dizia que era absurdo as ideias do filho mas esticava as imagens metafóricas dando asas à imaginação do menino Viu professora A mãe dele entende ele Surgiam assim as associações e é claro a reflexão sobre uma condição pessoal a partir da narrativa ficcional Outra aluna disse que deixou de ter medo do vento depois de escrever uma narrativa sobre vento e fantasmas segundo ela pela experiência da escrita entendera que as coisas das quais tinha medo só existem na invenção ou seja quando escritas Entender a narrativa ficcional como solução dos conflitos não é mais uma ilusão de muitos préadolescentes Alguns consideram que esse texto não resolva seu problema mas alivia sua mente tendo a função de entretenimento escrevendo podemos soltar a nossa imaginação porque na escrita você pode ser tudo Foi o que fizemos no Museu Vivo na Mostra Cultural do Colégio foi como se representássemos os personagens saindo do livros Foi maravilhoso A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 245 Isso nos fez esquecer os problemas do mundo real Porém a noção de totalidade própria da estrutura narrativa não deixa de organizar o mundo e talvez mostrar um sentido para a vida aparentemente tão precária comenta um leitor que Carregar água na peneira é impossível não teria fim mas escrever é uma coisa que tem fim A imagem da água na peneira fixouse e precisei apontar outras Os leitores pareciam encantados com a possibilidade de peraltagens virar poesia Um deles perguntoume se poderia levar uma peneira na próxima aula para fazermos testes Mas a imagem do vazio interessavame e eles não a citaram por isso perguntei Por que os vazios são maiores e até infinitos Para minha surpresa resposta imediata Porque dá para fazer mais coisas tem mais espaço espaço para escrever o que quiser inventar nós não inventamos o Pinóquio tecnológico e ainda é assim você dá espaço para nossas maluquices igual esse menino aí do pantanal E assim alguns reconheceram que pela escrita podem criar os mundos que desejarem pois No escrever o menino viu que era capaz de ser noviça monge ou mendigo ao mesmo tempo O menino aprendeu a usar as palavras BARROS 1999 Tais imagens constatariam uma forma de conhecimento que escapa dos limites de uma experiência objetiva A experiência revelada nestes versos de Barros se excede pela linguagem de modo que podemos dizer com ele que Imagens são palavras que nos faltaram BARROS sd p 296 Aproximando pois o olhar da criança do olhar do poeta eles puderam perceber que os despropósitos não são tão absurdos Assim pretendeuse aqui relatar a experiência de uma observação e de uma possibilidade de se lidar com alguns textos literários que possam favorecer leituras desconstrutoras e produtoras de um conhecimento que possa delinear uma outra lógica talvez menos preconceituosa para os jovens leitores José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 246 Em Exercício de ser criança há uma crítica implícita ao enrijecimento do qual nos revestimos e muitas vezes revestimos nossos alunos Lemos reescrevemos e falamos tão sofisticadas teorias mas como lemos e percebemos os despropósitos dos alunos Em que medida deixamos de criar espaços de leitura que favoreçam a subjetividade e valorize os perfis identitários Em que medida as crianças perdem a perplexidade pelas coisas Quando isso acontece Quando deixamos de olhar o mundo de azul Na quinta série há um discurso comum de que a brincadeira acabou de que a partir dali é para valer como se antes não fosse Pareceme que toda a leitura mágica pensada por Benjamin teria data marcada para acabar a 5ªsérie pois a partir dela a infância acabaria Mas o homem não deixaria de se encantar de se perplexibilizar realizando o exercício de ser criança uma atitude que convida o leitor a continuar atravessando rios inventados e por essas travessias entender que tambem é possível saber das coisas Tal é a aceitabilidade do conhecimento por meio de uma experiência da linguagem Barros revela a pobreza da experiência humana sim mas também aponta uma outra possibilidade para conhecermos a vida e a arte Ele cria uma série de neologismos e sinestesias usando também um vocabulário coloquial e prosopopéias vai desnomeando as coisas e alimentando sua poesia de imagens A sua proposta de poesia é se aproximar das coisas chãs e da natureza desvestindo as palavras de seus significados gastos e de seus nomes que as aprisionam num mundo de conceitos cada vez mais fechados Tal como as crianças Barros muda a função da palavra e de seus significados até chegar segundo ele ao estado de coisa de pedra de árvore Dessa forma ele chega até a coisa não pelo nome mas pela coisidade pela coisa em si mesma e renovando o mundo dos A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 247 objetos diz querer avançar para o começo a fim de chegar ao criançamento das palavras Carrego meus primórdios num an dor Minha voz tem vício de fontes Eu queria avançar para o começo Chegar ao criançamento das pala vras Lá onde elas ainda urinam na per na Antes mesmo que sejam modela das pelas mãos Quando a criança garatuja o verbo para falar o que não tem Pegar no estame do som Ser a voz de um lagarto escureci do Abrir um descortínio para o arcano BARROS 2004 p47 Notase com isso que antes de sensibilizarmonos com uma experiência permitida pela linguagem poética antes de aceitarmos a criança em nós obedecendo à desordem das falas infantis BARROS 2005 entrevista ou até mesmo de algumas atitudes antes de deixar vir o incognoscível é preciso desejar pois as palavras e as coisas estão acostumadas A poesia permitindo o resgate da palavra a visita ao passado a percepção da criança adormecida na memória do adulto talvez possa servir para que o homem encontre consigo e com os outros na busca da mais autêntica forma de existência da contemplação e é claro de uma experiência bem menos pobre José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 248 CONCLUSÃO Em Barros a poesia pode representar a critica à experiência pobre de que nos fala Benjamin Adornada pelo requinte e pela sensibilidade do espírito jovem a poesia deixa vir a voz da criança marcada por uma experiência que se expõe como revelação exatamente por acreditar em milagres e não duvidar do que é mistério Os milagres estéticos são milagres Eles hão de não ter explicação como todos os milagres Porque são mistérios BARROS 2005 entrevista A arte embora utilize técnicas desvenda o mundo e recriao em outra dimensão na qual os conhecimentos mágicos ilusórios e irreais tomam parte assim ela está sempre disposta a experimentar o novo e a se arriscar nos deslimites dos mistérios A imagem poética fugiria de qualquer tentativa formalista de interpretação total dando ao homem a condição de resgatar sua liberdade Tratase de um conhecimento que se arrisca naquilo que não se mede a sensibilidade a percepção o sentido mas que é intrínseco ao homem Num movimento de busca incessante e sempre provisória a poesia abre espaço para outras possibilidades do nosso conhecer as quais às vezes são tomadas por um gesto parecido com atitudes próprias da infância As imagens em Barros têm uma função reveladora mesmo que ficcionalizante de distintos locais de enunciação os quais permitem uma passagem pela experiência do outro e pela representação cultural identitária REFERÊNCIAS AMARILHA M Estão mortas as fadas 3 ed Petrópolis Vozes 1997 BARROS Manoel Exercícios de ser criança Rio de Janeiro Salaman dra 1999 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 249 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs O livro das ignorãças 10ª ed Rio de Janeiro Record 2001a Poeminhas pescados numa fala de João Rio de Janeiro São Paulo Record 2001b Livro sobre nada 11 ed Rio de Janeiro Record 2004 Entrevista concedida a Mara Conceição Vieira de Oliveira em 2005 durante o curso de doutoramento em Letras pela Universidade Federal Fluminense 2005 Gramática expositiva do chão poesia quase toda Rio de Janeiro Civilização Brasiliense sd BENJAMIN W Magia e Técnica arte e política ensaios sobre literatu ra e história da cultura 7 ed vI Obras escolhidas Tradução Sér gio Paulo Rouanet São Paulo Brasiliense 1994 Rua de mão única 5 ed vII Obras escolhidas Tradução Rubens Rodrigues Torres Filho José Carlos Martins Barbosa e Pierre Paul Michel Ardengo São Paulo Brasiliense 1995 Reflexões sobre a criança o brinquedo e a educação Tradu ção Marcus Vinicius Mazzari São Paulo Duas Cidades Editora 34 2002 BLANCHOT M A conversa infinita tradução Aurélio Guerra Neto São Paulo Escuta 2001 BRETON A Manifesto do Surrealismo Tradução Sergio Pachá Rio de Janeiro Nau Editora 2001 DERRIDA J Salvo o nome Tradução Nícia Adan Bonatti Campinas Papirus 1995a Khôra ensaio do nome Tradução Nícia Adan Bonatti Cam pinas Papirus 1995b GAGNEBIN J M História e Narração em Walter Benjamin 2 ed São Paulo Perspectiva 1999 250 CARA DE CORUJA A EXPERIÊNCIA DE LEITURA COMO RECURSO PARA A RENOVAÇÃO DOS CONTOS DE FADAS DE CHARLES PERRAULT NO CONTO DE MONTEIRO LOBATO Geovana Gentili Santos INTRODUÇÃO Durante a leitura dos livros infantis de Monteiro Lobato o leitor familiarizase com sua criação presente em quase todas as aventuras Emília a boneca de pano Visconde de Sabugosa o boneco de sabugo de milho Rabicó o porco Marquês as crianças Narizinho e Pedrinho e as duas senhoras Dona Benta e Tia Nastácia Além dessas personagens que moram no Sítio do Picapau Amarelo verificase a presença de outras figuras ficcionais provindas de outras obras Esse diálogo dáse com a Mitologia nas aventuras ocorridas na Grécia Antiga na Grécia de Péricles e naquelas em companhia de Hércules com a História nas peripécias vividas ao lado de Hans Staden Alexandre o Grande César com o Folclore na retomada de figuras como o Saci a Iara a Cuca e com a Literatura na relação estabelecida com outras personagens como o Dom Quixote a Branca de Neve o Príncipe Codadade o Gato de Botas o Peter Pan a Cinderela a Chapeuzinho Vermelho o Capitão Gancho a Rosa Branca e a Rosa Vermelha o Pequeno Polegar o Lobo Mau o Barba Azul o Gato Félix a Alice dentre outros Desse rol de figuras ficcionais pertencentes a outras obras literárias destacase a assídua presença das personagens de Histoires ou contes du temps passé avec des moralités Contes de ma mère loye 1697 do escritor francês Charles Perrault nos diversos contos de Lobato Com base no diálogo estabelecido entre essas duas produções o presente trabalho A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 251 pretende analisar o quanto a experiência de leitura das personagens lobatianas no conto Cara de Coruja em Reinações de Narizinho 1931 tornase um meio viabilizador para a concretização do projeto literário de Monteiro Lobato cuja prosposta central incide na renovação das histórias destinada à nossas crianças Ando com varias ideias Uma vestir á nacional as velhas fabulas de Esopo e La Fontaine tudo em prosa e mexendo nas moralidades Coisa para crianças LOBATO 1964 p104 Pretendese ainda verificar as transformações eou adaptações sofridas pelas personagens dos contos de fadas de Perrault ao serem introduzidas no universo ficcional do escritor brasileiro CARA DE CORUJA UMA FESTA NO SÍTIO DE DONA BENTA O conto Cara de Coruja iniciase com os preparativos da festa que as crianças do Sítio vão oferecer aos amigos do País das Maravilhas Que reinação vamos ter hoje Narizinho Nem é bom falar vovó Vai ser uma festa linda até não poder mais Só reis e príncipes e princesas e fadas LOBATO 1957 p175 A reinação começa e a ansiedade pela chegada dos amigos maravilhosos era grande o Visconde de Sabugosa observava da janela qualquer aproximação e o Marquês de Rabicó ocupava seu posto para recepcionar os convidados De maneira diferente do habitual ou tradicional Rabicó anuncia a chegada de uma das princesas Senhorita Cinderela a princesa das botinas de vidro LOBATO 1957 p176 O modo de o Marquês referirse à Cinderela rompe com a caracterização típica conferida a essa personagem a princesa dos sapatinhos de cristal Essa ruptura dáse por meio da troca dos termos sapatos por botinas e cristal tradução comumente empregada por vidro tradução literal da palavra francesa verre Além de conferir um José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 252 tom humorístico ao texto essa substituição realizada por Rabicó evidencia o processo de dessacralização que esse objeto fruto da mágica da fadamadrinha e que particulariza a personagem sofre ao ser retomado no universo ficcional lobatiano Narizinho por sua vez recepciona sua convidada de um modo inovador Asalam alekum Cinderela admirou aquele modo oriental de saudação que Narizinho tinha aprendido num volume das Mile UmaNoites e como também entendesse muito de coi sas orientais porque ia a muitas festas do Príncipe Co dadade e outros respondeu na mesma língua Alekun asalam LOBATO 1957 p177 Informações que não configuram no conto francês a respeito de Cinderela são apresentadas quando esta é inserida na obra lobatiana seu conhecimento dos costumes orientais e sua amizade com o Príncipe Codadade Essas duas novidades revelam o princípio da composição da produção ficcional infantil de Monteiro Lobato não há fronteiras no Mundo das Fábulas ou seja sob a óptica de Lobato o universo maravilhoso é concebido como um único Livro no qual todas as personagens se conhecem e se relacionam Essa formulação assemelhase ao imaginário infantil em que todas as personagens fazem parte do mesmo universo do fazdeconta Por meio desse procedimento literário Monteiro Lobato aproxima o universo ficcional à realidade da criança além de revelar sua concepção de literatura Ainda na citação acima é possível observar outro aspecto fundamental na construção da obra de Lobato a constituição de suas personagens como leitoras Com a leitura da obra MileUmaNoites clássico oriental amplamente difundido na tradição ocidental Narizinho aprende um cumprimento típico daquela cultura O que se pode verificar não apenas por essa passagem mas também por outras presentes no decorrer das demais aventuras é que a leitura A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 253 adquire um papel formador auxiliando de modo direto na aquisição de novos conhecimentos e contato com outras culturas Após as apresentações Emília esqueceu todas as recomendações e enfiouse debaixo da cadeira de Cinderela LOBATO 1957 p177 Com toda sua irreverência a boneca não se submete às normas e às etiquetas e age com espontaneidade de acordo com sua vontade Nesse encontro com Emília Cinderela lhe afirma Já a conheço de fama LOBATO 1957 p177 apontando o reconhecimento das personagens criadas por Lobato no universo maravilhoso Com relação a este aspecto cabe lembrar as palavras de Dona Carochinha guardiã das histórias das personagens clássicas no conto Narizinho Arrebitado a respeito da revolta de suas personagens tenho notado que muitos dos personagens das minhas histórias já andam aborrecidos de viverem toda a vida presos dentro delas Querem novidade Tudo isso continuou Dona Carochinha por causa do Pinocchio do Gato Félix e sobretudo de uma tal menina do narizinho arrebitado que todos desejam muito conhecer LOBATO 1957 p1112 Emília que também conhecia a história da princesa questiona alguns pontos que lhe causam dúvidas Também eu conheço toda a sua história Mas há um ponto que não entendo bem É a respeito dos tais sapatinhos Um livro diz que eram de cristal outro diz que eram de cetim Afinal de contas estou vendo você com sapatinhos de couro LOBATO 1957 p177 Ao indagar a respeito do verdadeiro material dos sapatos de Cinderela a boneca de pano põe em xeque as diferentes versões ou traduções de sua história e revela sua postura crítica diante dos livros sem aceitar passivamente todas as proposições apresentadas Cinderela riuse muito da questão e respondeu que na verdade fora de sapatinhos de cristal no famoso baile onde se encontrou com o Príncipe pela primeira vez José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 254 Mas que esses sapatinhos não eram nada cômodos fa ziam calos por isso só usava agora sapatinhos de ca murça LOBATO 1957 p177 Nessa passagem observase que a história da personagem dos contos de fadas ao ser retomada na aventura no Sítio do Picapau Amarelo adquire flexibilidade ou seja rompese os limites do conto na versão francesa e novos detalhes são apresentados pela a própria protagonista da história por intermédio do narrador Com a inclusão dessas curiosidades constatase portanto a continuidade e a renovação dos contos de fadas além de ser uma maneira de o escritor brasileiro brincar com o leitor empírico possível leitor e conhecedor dos clássicos Contos da Mamãe Gansa Emília que ainda tinha outra dúvida pergunta à prin cesa Há outro ponto que me causa dúvidas continuou a boneca Que é que aconteceu para sua madrasta e suas irmãs afinal de contas Um livro diz que foram conde nadas à morte pelo Príncipe outro diz que um pombi nho furou os olhos das duas Nada disso aconteceu disse Cinderela Perdoeilhes o mal que me fizeram e hoje já estão curadas da maldade e vivem contentes numa casinha que lhes dei bem atrás do meu castelo LOBATO 1957 p178 Cinderela nega as diferentes versões de sua história e apresenta os acontecimentos na sua própria perspectiva Apesar da semelhança com o final presente no conto Cinderela Cendrillon de Charles Perrault no qual Cinderela perdoa sua madrasta e suas irmãs e as casa com dois nobres Senhores notase uma modificação no que diz respeito à casa atrás do castelo Na continuidade da narrativa mais um convidado é anunciado pelo Visconde de Sabugosa Estou vendo outra poeirinha lá longe A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 255 Deve ser a minha amiga BrancadeNeve disse a Princesa Cinderela Branca mora perto de mim e quan do passei por lá vi que sua carruagem já estava na por ta do castelo LOBATO 1957 p178 No trecho acima fica evidente a concretude do Reino Encanto espaço ficcional em que as mais diversas personagens habitam em suas casas ou castelos mantendo relações de amizade e tornandose vizinhas Observase assim que Monteiro Lobato reúne essas personagens clássicas da literatura infantil em um único espaço rompendo com a idéia de que cada uma delas pertence a um livro e a um autor específico Outro caso de amizade na narrativa ocorre entre Rosa Branca e Bela Adormecida que envia por sua amiga um comunicado para as crianças do Sítio A Bela Adormecida manda comunicar que não pode vir LOBATO 1957 p180 Mais um convidado chega e o Visconde anuncia Vem vindo uma poeirinha tão pequenininha que até parece poeira de camundongo Quem poderá ser exclamaram as princesas inter rompendo a conversa Logo depois ouviuse um tique tique tique na porta e Rabicó anunciou Um senhor pingo de gente com umas botas maiores do que ele O Pequeno Polegar gritaram as princesas e acerta ram Esquecidas de que eram famosas princesas foram cor rendo receber o pequenino herói Era ele o chefe da conspiração dos heróis maravilhosos para fugirem dos embolorados livros de Dona Carocha e virem viver no vas aventuras no sítio de Dona Benta Polegar já havia fugido uma vez e apesar de capturado estava prepa rando nova fuga dele e de vários outros Emília ficou num assanhamento jamais visto LOBATO 1957 p181182 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 256 Novamente é perceptível a ruptura na apresentação do Pequeno Polegar feita por Rabicó ao referirse a ele como senhor pingo de gente com umas botas maiores do que ele Valendose de uma personagem atrapalhada e que só pensa em comida Monteiro Lobato subverter o tradicionalismo com que essa figura tradicional é abordada e confere um tom humorístico ao seu texto tornandoo leve em relação à linguagem e divertido Ainda nessa passagem fica nítida a veiculação da idéia do Sítio como um espaço aberto onde reina a liberdade de ação visto que as princesas do Mundo Maravilhoso ao verem Polegar rompem com certo padrão de comportamento e agem com espontaneidade Esquecidas de que eram famosas princesas foram correndo receber o pequenino herói De forma similar às passagens anteriores a conduta das princesas ganha uma conotação significativa no fazer literário de Lobato pois apesar de ser à primeira vista algo simplório esse comportamento pode ser lido também como a ruptura com a tradição e com o conservadorismo na caracterização dessas personagens que compõem o acervo literário infantil Outro aspecto a ser observado referese à capacidade de liderança do Pequeno Polegar No conto de Perrault o pequeno herói desempenha o papel de líder dos seus irmãos na floresta tomando as decisões necessárias para retornarem à casa de seus pais Na narrativa de Lobato Polegar também desempenha essa função entretanto tornase o chefe das demais personagens do Mundo das Fábulas na conspiração contra Dona Carochinha o que resultará na fuga para outro espaço literário Novamente a propagação da idéia da fuga dos livros embolorados e do desejo das personagens dos contos de fadas de viverem novos acontecimentos no Sítio de Dona Benta tornase explícita A constante presença desse tema nas histórias lobatianas pode ser vista não só como uma forma de anunciar um episódio que se efetivaria posteriormente no livro O A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 257 Picapau Amarelo 1939 mas também como uma maneira de cultivar no leitor a curiosidade e até mesmo o desejo da fuga dessas famosas figuras para o Picapau Amarelo Emília quando vê que o pequeno herói está no Sítio fi ca num assanhamento jamais visto e demonstra fa miliaridade com a personagem Ela agarrao botao no colo e o faz contar toda a sua vida além disso ela lhe mostra seus brinquedos Das botas passou aos seus brinquedos Mostroulhe uma coleção de feijões pintadinhos que Tia Nastácia lhe dera o pincel de gomaarábica que lhe servia de vas soura e mil coisas Polegar gostou de tudo principal mente dum pito velho que tinha sido de Tia Nastácia um pito sem canudo Gostou tanto que a boneca lhe disse Pois se gosta leve que arranjo outro Mas com per dão da curiosidade para que é que o senhor quer esse pito Para brincar de esconder respondeu o pingo de gente dando um pulo para dentro do pito e ficando tão bem escondidinho que ninguém seria capaz de o des cobrir LOBATO 1957 p183 A atitude de Emília e a de Polegar descritas no fragmento acima as caracteriza como típicas representantes do universo infantil fato este que evidencia a mudança na perspectiva da personagem Em outras palavras podese afirmar que sob o olhar de Lobato as atitudes tomadas por Polegar colocamno mais próximo do mundo infantil diferentemente do que ocorre no conto francês no qual Polegar tem um comportamento mais próximo do mundo adulto ao tomar para si a responsabilidade de conduzir seus irmãos de volta para casa Esse comportamento mais infantilizado revelase na escolha do pito feita pelo herói e pela utilidade dada ao objeto brincar de esconder Emília que também representa esse universo logo sugere uma nova função para as botas de sete léguas Eu se fosse o senhor deixavaas aqui no sítio por uma semana Que bom José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 258 Poderíamos brincar o dia inteiro de estar aqui e estar lá no mesmo instante LOBATO 1957 p182 Constatase portanto que a brincadeira e a diversão são fatores centrais no projeto literário de Monteiro Lobato no qual se processa a valorização da inteligência da criança e a riqueza do seu mundo imaginário Além disso verificase a aproximação entre o universo da personagem e o do leitor propiciando uma maior interação entre a obra e o leitor Emília demonstra grande afetividade por Polegar haja vista ele ser o único a ganhar um presente da boneca de pano Emília era interesseira Gostava de receber presentes mas não de dar O único presente que deu em toda sua vida foi aquele pito LOBATO 1957 p183 Observase ainda que a presença de Polegar nessa parte da narrativa lobatiana tornase significativa para revelar algumas características da própria criação de Lobato como no caso o egoísmo de Emília Nesse encontro com a boneca Polegar reconhece a sua fragilidade e a sua dependência do objeto maravilhoso Antes de mais nada tire as botas Não sei como o senhor tem coragem de andar com tamanho peso nos pés É que sem elas eu não valho nada Sou pequenino demais e fraco mas com estas botas não tenho medo nem de gigante LOBATO 1957 p182 Inserido no universo lobatiano Polegar fala de si mesmo e de suas limitações diferentemente do que se passa no conto francês no qual é o narrador quem se incumbe de descrever as suas características e seus sentimentos Dessa maneira concluise que pela mudança de técnica narrativa na abordagem da pequena personagem Monteiro Lobato confere às personagens liberdade concedendolhes a oportunidade de se expressarem diretamente sem a necessidade de uma voz intermediadora A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 259 Logo após a chegada de Polegar ouvese um grande rumor e BrancadeNeve diz Não abra É o malvado que matou seis mulheres LOBATO 1957 p183 Por curiosidade Narizinho também havia convidado para a festa o Barba Azul fato que deixa as princesas bastante furiosas É azul mesmo exclamou Azul como um céu Que horrendo monstro Imaginem que traz na cintura um colar de seis cabeças humanas LOBATO1957 p183 Confrontando essa descrição feita por Narizinho do Barba Azul com aquelas presentes no conto O Barba Azul La Barbe Bleue de Charles Perrault constatase que neste não há qualquer referência à quantidade de mulheres com as quais o rico homem das barbas azuis havia se casado além disso os corpos dessas mulheres são encontrados em um quarto na parte inferior da casa Dessa maneira verificase que tanto a personagem quanto a sua história sofrem alterações no universo ficcional lobatiano A primeira alteração seria portanto a precisão na quantidade de mulheres mortas por Barba Azul e a segunda a incorporação de um adereço na caracterização da protagonista um cinto com seis cabeças humanas objeto que lhe confere uma aparência mais aterrorizante Na continuidade da narrativa Cinderela demonstra conhecer bem a história da indesejada personagem ao questionar É esquisito isto Sempre supus que o irmão da sétima mulher de Barba Azul o houvesse matado LOBATO 1957 p184 Evocando o final presente no conto O Barba Azul La Barbe Bleue em que os irmãos da última mulher o matam Cinderela não compreende como tal figura ainda encontravase viva Para justificar essa aparente incongruência a boneca de pano lança sua resposta É que não matou bem matado Explicou Emília Outro dia aconteceu um caso assim aqui no sítio Tia Nastácia matou um frango mas não o matou bem matado e de repente ele fugiu para o terreiro LOBATO 1957 184 A partir da associação com um caso ocorrido no diaadia do José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 260 Sítio a boneca logo apresenta uma explicação para o reaparecimento do Barba Azul Furioso por não permitirem sua entrada Barba Azul faz suas ameaças e é a boneca de pano quem o enfrenta Emília perdeu a paciência botou a boquinha no buraco da fechadura e berrou Pois case se for capaz Mando PédeVento te ventar pra os confins do Judas Vá pintar essa barba de preto que é o melhor seu carade coruja LOBATO 1957 p184 Constatase que a participação de Barba Azul na festa tornase um meio viabilizador para conhecer um pouco mais a própria criação literária de Lobato no caso Emília uma boneca de pano que com seu jeito birrento e nada educado desconsidera as ameaças de Barba Azul e o põe para correr É desse modo que Emília vai constituindose criando sua própria identidade e gritando sua independência Logo que o Gato de Botas chega à festa ele é informado da história do falso Gato Félix que afirmava ser seu cinqüentaneto Nessa parte da narrativa há a retomada de um episódio passado narrado no conto O Gato Félix em Reinações de Narizinho 1931 E o gato Félix começou Houve na França um gato muitíssimo ilustre que era escudeiro do Marquês de Carabas tão ilustre que não há no mundo inteiro criança que não o conheça Até eu gritou Emília Era o tal GatodeBotas Justamente menina Esse famoso gato era o escu deiro do Marquês de Carabas Fez coisas do arcoda velha como se sabe até que se casou com uma linda gata amarela e teve muitos filhos Esses filhos tiveram outros filhos Estes outros filhos tiveram novos filhos e veio vindo aquela gataria que não acabava mais até que nasci eu Que bom exclamou Narizinho Então você é bisneto ou tataraneto do Gatodebotas A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 261 Sou cinqüentaneto dele disse o gato Félix Mas não nasci na Europa Meu avô veio para a América no navio de Cristóvão Colombo e naturalizouse americano Eu ainda alcancei meu avô Era um velhinho muito velho que gostava de contar histórias da sua viagem LOBA TO 1957 p150 Para enganar a turma do Sítio o falso Gato Félix cria uma história absurda a respeito do Gato de Botas conferindolhe um novo estado civil de solteiro para casado e uma enorme descendência A estrutura dada a essa narrativa faz com que tanto as personagens quanto o leitor permaneçam enredados nas falsas informações dadas pelo mentiroso Félix de modo que a história do famoso gato do Senhor Marquês de Carabás seja atualizada com a apresentação de novos aspectos até então totalmente desconhecidos Todas essas novas informações são recuperadas e contraditas pelo próprio Gato de Botas no conto Cara de Coruja Mentira cínica disse o GatodeBotas Nunca me casei Não tive nem filho quanto mais cinqüentaneto LOBATO 1957 p184 Nesse ponto da história um aspecto comum e constante na obra infantil de Monteiro Lobato fica evidente a contínua retomada de episódios já vividos pela turma do Sítio A esse respeito Marisa Lajolo em Monteiro Lobato um brasileiro sob medida afirma que uma história faz referência a outra sublinhando com isso o caráter circular de sua obra conjunto de livros cuja leitura pode recomeçar infinitamente de qualquer ponto LAJOLO 2000 p63 Além dessa possibilidade de começar a leitura de qualquer ponto da obra verificase que esse procedimento literário evidencia outro aspecto significativo da produção infantil lobatina sua composição é contínua Ou seja as aventuras do Sítio estão em permanente processo de construção e extrapolam os limites dos seus contos pois cada retomada evoca uma reinação já anteriormente narrada e acrescentalhe novas informações que vão complementando e vinculando uma história à José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 262 outra Esse modo de organizar e de vincular os fatos revela a coerência interna que a obra adquire ao longo de sua constituição compondo ao fim uma extensa narrativa a saga do Picapau Amarelo formada por outras narrativas menores cada conto Somase a esse aspecto um outro que também contribui para a manutenção da coerência interna da produção literária infantil lobatiana a incessante retomada do desejo de renovar as histórias emboloradas e trazer as personagens do Mundo das Fábulas para viverem novas aventuras no Sítio do Picapau Amarelo Em Cara de Coruja este assunto reaparece em dois momentos na chegada do Gato de Botas e na hora da despedida O Pequeno Polegar veio cochicharlhe ao ouvido alguma coisa com certeza a respeito da tal conspiração contra Dona Carocha LOBATO 1957 p184 Quando chegou o momento de despedirse do Pequeno Polegar Emília cochichoulhe ao ouvido uma porção de coisas sobre Dona Carocha e aconselhouo a fugir novamente e vir morar com eles ali no sítio LOBATO 1957 p196 Observase pelos trechos recuperados que essa constante referência à insatisfação das personagens em relação à mesmice de suas histórias apresentase como uma estratégia de Monteiro Lobato para efetuar qualquer alteração nas narrativas clássicas da literatura infantilem outras palavras podese dizer que toda modificação ocorre de acordo com a vontade das próprias personagens Inseridos no episódio da festa no Sítio o Pequeno Polegar e o Gato de Botas têm a oportunidade de desenvolver uma nova ação Os dois heróis vão ao castelo de Cinderela buscar a varinha de condão que a princesa havia esquecido em cima do criadomudo Minutos depois voltavam os dois cada qual segurando a vara por uma ponta LOBATO 1957 p185 O Gato de Botas ainda tem o ensejo de dançar com Rosa Branca além de disputar valentias com Pedrinho e Aladino Quero ver o que vale mais se esse bodoque e essa A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 263 lâmpada ou as minhas botasdeseteléguas LOBATO 1957 p191 Nessa afirmação o fato de as botas serem de sete léguas tornase instigante pois no conto O Gato de Botas Le Maître Chat ou Le Chat de Bottée não há qualquer referência a essa excepcionalidade do calçado Na narrativa francesa o Gato pede ao seu dono que lhe mande fazer um par de botas Ne vous affligez point mon maître vous navez quà me donner un Sac et me faire faire une paire de Bottes pour aller dans les broussailles PERRAULT 1990 p221222 Pelo trecho recuperado as botas parecem ser comuns sem qualquer recurso mágico entretanto vemos que no Sítio de Dona Benta o próprio Gato afirma excepcionalidade de suas botas Verificase novamente que Monteiro Lobato além de se valer da famosa personagem se sente na liberdade de alterar alguns de seus aspectos servindose estrategicamente do próprio Gato de Botas como uma forma de conferir maior veracidade à nova característica apresentada Chapeuzinho Vermelho também comparece na festa e é recebida por todos com muita alegria Boatarde para todos os presentes ausentes e parentes LOBATO 1957 p188 Emília como leitora e conhecedora da história da menina do capuz vermelho questiona Antes de mais nada foi dizendo Emília quero saber o seu verdadeiro nome porque uns dizem Capinha Vermelha e outros Capuzinho Vermelho Qual é o cer to Meu verdadeiro nome é Capinha Vermelha porque depois que vovó me fez esta capinha todos que me vi am ir para a casa dela diziam Lá vai indo a menina da capinha vermelha Mas como vocês podem ver esta capinha tem um capuz que eu às vezes uso De modo que tanto podem chamarme Capinha como Capuzi nho ou mesmo Chapeuzinho Vermelho LOBATO 1957 p189 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 264 Pelo fragmento acima fica novamente explícito que as personagens de Lobato são leitoras e conhecedoras do acervo literário Esse repertório de leitura e a postura crítica perante os textos que lêem ou ouvem permitelhes questionar aspectos que lhes parecem contraditórios No caso Emília problematiza as diferentes traduções dadas ao nome da personagem dos contos de fadas e para sanar sua dúvida aproveita o oportuno encontro com a própria Chapeuzinho A resposta dada pela menina à questão de Emília é bem similar àquela dada pelo narrador no conto Chapeuzinho Vermelho Le Petit Chaperon Rouge Cette bonne femme lui fit faire un petit chaperon rouge qui lui seyait si bien que partout on lappelait le Petit chaperon rouge PERRAULT 1990 p195 Com essa similaridade verificase que Monteiro Lobato ao valerse dessas personagens e ao incorporálas em seu universo sentese na liberdade de ora retomar uma das versões já existente e de ora acrescentar ou modificar alguns aspectos Com toda sua irreverência Emília faz outra pergunta Digame sua avó era muito magra Capinha estranhou a pergunta mas respondeu que sim Muito magra ou meio magra Bem magra Então não entendo aquele lobo disse Emília por que uma velha muito magra não é alimento Só osso LOBATO 1957 p189 Com espontaneidade em suas ações Emília transgride as normas e fala o que sente vontade criando assim por várias vezes uma dimensão cômica nos textos No trecho a comicidade surge da natureza da questão feita pela boneca visto que inicialmente não se compreende no que a magreza ou não da avó de Chapeuzinho A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 265 interessaria Pautandose na resposta dada pela menina Emília desconstrói a imagem da figura da vovó da maneira como se refere a ela uma velha muito magra não é alimento Só osso Essa caracterização da figura da vovó feita por Emília somase àquelas feitas anteriormente pelo Marquês de Rabicó em que ele também assinala de forma mais despojada ou dessacralizadora os aspectos particularizadores de cada personagem dos contos de fadas Outros convidados aparecem no Sítio tais como Ali Babá Patinho Feio Peter Pan Soldadinho de Chumbo Hansel e Gretel heróis das MileUmaNoites Sindbade os heróis gregos Perseu Teseu Minotauro Tantos personagens maravilhosos vieram que o terreiro de Dona Benta ficou de não caber um alfinete LOBATO 1957 p187 Na hora do lanche mais uma novidade Todos tomaram café menos Cinderela Só tomo leite explicou a linda princesa Tenho me do de que o café me deixe morena Faz muito bem disse Emília Foi de tanto tomar café que tia Nastácia ficou preta assim LOBATO 1957 p190 Curiosamente Cinderela não toma uma bebida tipicamente brasileira com medo de sua pele escurecer A retomada dessa superstição mostra que as crendices populares também são incorporadas no espaço ficcional do Sítio do Picapau Amarelo Brincando com essas especificidades Monteiro Lobato alimenta a imaginação de seus leitores dando continuidade à caracterização dessas famosas personagens dos contos de fadas Após brincarem de transformar e destransformar com a varinha de condão da Cinderela uma situação inesperada acontece E estavam ainda nessa brincadeira quando ouviram na porta uma batida esquisita muito diferente das demais As princesas assustaramse LOBATO 1957 p192 eram batidas do Lobo José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 266 É a própria Chapeuzinho Vermelho quem confirma a chegada do Lobo É o lobo mesmo exclamou de lá da fechadura da porta arregalando os olhos de pavor Justamente o malvado que comeu a vovó LOBATO 1957 p192 Nesse ponto da narrativa instaura se certa tensão Narizinho tenta acalmar as princesas mas ela mesma não entendia o reaparecimento daquele Lobo Não pode ser disse ela O lobo que comeu a avó de Capinha foi morto a machadadas por aquele homem que entrou É o que dizem os livros LOBATO 1957 p192 Como leitora dos contos de fadas a menina Lúcia retoma em sua fala a versão presente nos contos recolhidos e publicados pelos Irmãos Grimm na qual um Lenhador aparece e mata o Lobo salvando a vovó e a Chapeuzinho A boneca que sempre acha respostas para essas questões difíceis afirma Deve ser erro tipográfico sugeriu anasticamente Emília que também fora espiar o lobo É lobo sim e magríssimo Bem se vê que só se alimenta de velhas bem velhas Com certeza soube que Dona Benta morava aqui e LOBATO 1957 p192 Com sua agudeza de espírito Emília dá uma resposta inapropriada à situação de temor ao reparar na magreza do Lobo e associála a da Avó conforme lhe havia informado Chapeuzinho gerando por meio dessa inadequação comicidade De tanto pavor Narizinho e as princesas desmaiam restando apenas Emília e o Visconde na sala O Lobo já estava com meio corpo para dentro da casa quando a boneca grita por Tia Nastácia que coloca imediatamente o Lobo para correr Lobo sem vergonha Vá prear no mato que é o melhor Dona Benta nunca foi quitute pra teu bico seu cão sarnento LOBATO 1957 p194 Apesar do Lobo mau ter suas características conservadas ao ser incorporado no universo ficcional lobatiano notase que este é posto a serviço de uma nova proposta literária e que desempenha outra ação apesar de A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 267 similar a do conto Chapeuzinho Vermelho Le Petit Chaperon Rouge tenta comer a avó Dona Benta Quando o relógio bate seis horas as personagens começam a ir embora foi um rodopio de abraços e beijos e palavras de despedidas tudo num grande atropelo LOBATO 1957 p195 Na pressa Aladino Cinderela e o Gato de Botas esquecem seus objetos mágicos e Narizinho Pedrinho e Emília já imaginavam as diversas brincadeiras que fariam com a lâmpada a varinha de condão e as botas de sete léguas quando ouvem bater na porta Boa tarde disse a velha fingindo não reconhecer a boneca e sentandose para descansar Sou Dona Carocha a que toma conta de todos esses personagens do mundo maravilhoso Vim buscar a lâmpada do Aladino a vara de condão de Cinderela e as botas do Gato de Botas LOBATO 1957 p197 A velha baratinha põe fim à alegria dos meninos e leva consigo os objetos esquecidos até mesmo o espelho mágico que Branca de Neve havia dado à boneca Muito insatisfeita com a situação Emília não deixa a saída da velha por menos e lhe diz Caradecoruja seca Cara de jacarepaguá cozinhada com morcego e misturada com farinha de bicho cabeludo ahn e botoulhe uma língua tão comprida que Dona Carochinha foi arregaçando a saia e apressando o passo LOBATO 1957 p197 Essa atitude de Emília além de revelar um pouco mais do seu caráter e temperamento pode ser lida também como o choque entre a tradição e a renovação pois ao ir buscar os objetos maravilhosos esquecidos no Sítio Dona Carocha procura evitar qualquer alteração nessas histórias consagradas ao contrário de Emília que sempre incentiva a fuga das personagens para o Sítio Quase que uma antecipação da aventura vivida em O Picapau Amarelo 1939 no qual as personagens do País das Maravilhas mudamse definitivamente para as terras vizinhas das do Sítio de José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 268 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 Dona Benta o conto Cara de Coruja já conta com a participação das mais diversas figuras dos contos de fadas CONCLUSÃO Com o desenvolvimento deste trabalho verificouse que a experiência de leitura tornase um meio viabilizador para a renovação das histórias clássicas da literatura infantil Assim conhecedoras dos contos de fadas as personagens lobatianas são capazes de questionar as diferentes versões ou traduções dessas narrativas buscando nas próprias protagonistas as respostas para suas dúvidas Notouse também que a experiência de leitura do leitor de Lobato é fundamental para que este possa perceber as alterações realizadas pelo escritor brasileiro ao incorporar as personagens clássicas em sua obra Além disso constatouse que a presença das personagens estrangeiras nos contos de Monteiro Lobato contribui no processo de caracterização e construção de suas figuras ficcionais REFERÊNCIAS GRIMM Irmãos Contos de fadas 5 ed 1 reimpressão Tradução Celso M Paciornick São Paulo Iluminuras 2006 LAJOLO Marisa Monteiro Lobato um brasileiro sob medida São Paulo Moderna 2000 LOBATO Monteiro Reinações de Narizinho São Paulo Brasiliense 1957 Caçadas de Pedrinho São Paulo Brasiliense 1986 Barca de Gleyre São Paulo Brasiliense 1964 PERRAULT Charles Contes Paris Librairie Générale Française 1990 Histórias ou contos de outrora Tradução Renata Maria Par reira Cordeiro São Paulo Landy 2004 269 UM PAPO DE ARANHA SOBRE TEXTOS E LEITURAS A ESCOLA BRASILEIRA ENSINA A LÍNGUA DA INTERTEXTUALIDADE Regina Chamlian INTRODUÇÃO No intuito de senão responder pelo menos ensaiar algumas possíveis respostas à perguntatítulo deste trabalho julgo necessário primeiro definir brevemente através da bibliografia consultada ou de uma compreensão própria do tema certos conceitos como texto leitura leitor mediador de leituras e intertextualidade BUSCANDO DEFINIÇÕES Texto O nosso mais famoso dicionário define texto como conjunto de palavras de frases escritas ou obra escrita ou qualquer texto a ser dito ou lido em voz alta ou toda e qualquer expressão ou conjunto de expressões que a escrita fixou como ainda em sentido restrito palavras bíblicas que o orador sacro cita fazendoas tema de sermão e também manuscrito ou impresso por oposição a ilustração Fora do texto nos explica o verbete seria qualquer material ilustrativo impresso à parte ger em papel especial e em folhas não numeradas ou com numeração própria que se intercalam entre os cadernos de um livro Dicionário Aurélio século XXI Destaquese a orientação completa e conclusivamente verbal logocêntrica que o citado dicionário confere ao conceito que embora inclua o texto falado exclui o texto visual e ainda tem uma conotação de sagrado José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 270 Não muito diferente da orientação do dicionário acima citado é o que lemos a seguir texto é o produto da atividade discursiva oral ou escrita que forma um todo significativo e acabado qualquer que seja sua extensão É uma seqüência verbal constituída por um conjunto de relações que se estabelecem a partir da coesão e da coerência Esse conjunto de relações tem sido chamado de textualidade Dessa forma um texto só é um texto quando pode ser compreendido como unidade significativa global quando possui textualidade Caso contrário não passa de um amontoado aleatório de enunciadosParâmetros Curriculares Nacionais p 25 26 A noção contemporânea de texto no entanto não se restringe à sua configuração verbal Segundo Barthes Texto quer dizer Tecido mas enquanto até aqui esse tecido foi sempre tomado por um produto por um véu todo acabado por trás do qual se mantém mais ou menos oculto o sentido a verdade nós acentuamos agora no tecido a idéia gerativa de que o texto se faz se trabalha através de um entrelaçamento perpétuo perdido neste tecido nessa textura o sujeito se desfaz nele qual uma aranha que se dissolve ela mesma nas secreções construtivas de sua teia CardosoSilva 2006 p 19 O inacabamento e o ir se entrelaçando perpetuamente do texto na definição do crítico francês já prefiguram a idéia de intertextualidade e de rede cultural presentes a primeira nos estudos literários em geral e a segunda na Semiótica da Cultura entre outras correntes Laurent Jenny credita à Julia Kristeva o alargamento da noção de texto que seria sinônimo de sistema de signos quer se trate de obras literárias de linguagens orais de sistemas simbólicos sociais ou inconscientes JENNY 1979 p 13 Com o conceito assim redimensionado à compreensão e práticas contemporâneas podemos dizer que são textos assim no A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 271 plural os poemas os espetáculos de dança as peças teatrais filmes pinturas o traçado das cidades urbanismo música moda romances histórias em quadrinhos livros de imagem ilustrações programas de rádio e televisão notícia de jornal páginas da Internet performances relatos orais fotografias Leitura No Dicionário Aurélio Eletrônico para ficarmos só com a primeira acepção leitura é o ato ou efeito de ler E para o mesmo dicionário ler não só seria percorrer com a vista o que está escrito proferindo ou não as palavras mas conhecendoas pronunciar em voz alta recitar o que está escrito e ver e estudar coisa escrita como também perceber sinais signos mensagem com a vista ou com o tato compreendendolhes o significado observar algo ou certos sinais características etc percebendo intuindo ou deduzindo a significação decifrar ou interpretar o sentido de reconhecer perceber sentir adivinhar predizer dessa maneira Dicionário Aurélio século XXI Se somarmos as diversas acepções do verbete creio que nos aproximaríamos de uma compreensão inicial de leitura Entre as diversas acepções mencionadas acima destaco a que nos diz que ler é adivinhar predizer dessa maneira Ela nos leva ao texto onde Paulo Freire nos diz que a leitura do mundo precede a leitura da palavra FREIRE 2006 p 11 Da frase de Paulo Freire se depreendem pelo menos duas idéias centrais para a compreensão de questões relativas à leitura 1 a necessidade de conhecimentos prévios para se efetuar leituras penso que só assim adivinharíamos porque tivemos antes experiências que agora podem orientar nossa intuição 2 a capacidade leitora ser inerente à condição humana que se lançaria em busca pelo José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 272 significado mesmo antes de ser letrada o que ampliaria a noção de leitor leitura e texto incluindo idéias e práticas anteriormente não consideradas como leitoras Segundo Maria Helena Martins as inúmeras concepções sobre leitura resumemse a duas posições como decodificação mecânica de signos lingüísticos por meio de aprendizado estabelecido a partir do condicionamento estímuloresposta 2 como processo de compreensão abrangente cuja dinâmica envolve componentes sensoriais emocionais intelectuais fisiológicos neurológicos tanto quanto culturais econômicos e políticos perspectiva cognitivosociológica esta última concepção dá condições de uma abordagem mais ampla e mesmo mais aprofundada do assunto mas o debate decodificação versus compreensão parece estar se esvaziando Ambas são necessárias à leitura Decodificar sem compreender é inútil compreender sem decodificar impossível Há que se pensar a questão dialeticamenteMARTINS 1994 p 3132 Convém citar aqui que a autora acima mencionada considera leitura como um processo de compreensão de expressões formais e simbólicas não importando por meio de que linguagem MARTINS 1994 p 30 o que sem dúvida condiz com a noção ampliada de texto que aqui nos interessa Voltando no entanto à questão da necessidade de conhecimentos prévios para se efetuar a leitura hoje se sabe que ensinar leitura e aqui falamos da leitura do texto verbal significa não só iniciar os aprendizes no código lingüístico mas também e principalmente e mesmo até anteriormente levar em conta os conhecimentos que eles já trazem de sua vivência extraescolar o que incluiria aqueles que são específicos de seu contexto sócio cultural os textos que eles já dominam ou têm contato mais freqüente como os da oralidade os da linguagem visual os da linguagem musical os da linguagem corporal os da televisão que A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 273 parece ser em nosso país a língua geral e de outras linguagens as quais porventura eles tenham acesso A partir dessa diversidade textual que circularia fora da escola e que os alunos trazem consigo ou dizendo de outro modo a partir destes seus conhecimentos prévios se estabeleceriam pontes com os textos que nela circulam tornando a leitura algo a que se tem acesso porque menos distanciada do universo destes alunos e menos artificial notadamente às camadas oriundas de meios com baixo letramento Entender a leitura como um processo no qual o leitor participa com uma aptidão que não depende basicamente de sua capacidade de decifrar sinais mas sim de sua capacidade de dar sentido a eles compreendêlos Mesmo em se tratando da escrita o procedimento está mais ligado à experiência pessoal à vivência de cada um do que ao conhecimento sistemático da língua A leitura vai portanto além do texto seja ele qual for e começa antes do contato com ele MARTINS 1994 p 32 parece ser o modo de senão formar pelo menos atrair potenciais leitores Leitor O leitor não é uma instância de recepção passiva dos textos mas interage com eles produtivamente A obra precisa em sua constituição da participação do destinatário JOUVE 2002 p 61 Para Jauss o leitor se relaciona com o texto sempre e ao mesmo tempo receptiva e ativamente O leitor só pode fazer falar um texto isto é concretizar numa significação atual o sentido potencial da obra desde que insira seu préentendimento do mundo e da vida no espaço de referência literária envolvido pelo texto Esse préentendimento do leitor inclui as expectativas concretas que correspondem ao horizonte de seus interesses desejos necessidades e José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 274 experiências tais quais são determinadas pela sociedade e classe à qual pertence como também por sua história individual e também por experiências literárias anteriores JOUVE 2002 p 139 Se ler é buscar significado CARDOSOSILVA 2006 p 30 o leitor é um buscador E aquele que busca se movimenta investiga se esforça trata de descobrir se empenha a fundo aciona todo o seu íntimo para atingir um fim tentando superar as muitas dificuldades que o buscar pressupõe Tamanho investimento psíquico só pode acontecer quando motivado por um profundo desejo por um continuado entusiasmo por uma viva paixão Porque o ato de ler o ser leitor é impulsionado pelo desejo pelo entusiasmo pela paixão Desejo de saber Desejo de viver intensamente De conhecer a si mesmo De conhecer o outro De se sentir um outro De dar prazer ao cérebro De sentir emoções De compreender de se inserir na sociedade de forma autêntica De criticar a sociedade De escapar de uma vida medíocre e prédeterminada por ideologias espúrias De experimentar a beleza Para se formar leitores é necessário transmitir então o desejo o entusiasmo a paixão pela leitura Este papel é desempenhado na maioria dos casos dessa transmissão bem sucedida pelo mediador de leituras O mediador de leituras Mediador de leituras seria antes de tudo alguém que goste de ler e que leia muito e tenha interesse em compartilhar suas experiências leitoras seu repertório cultural A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 275 Qualquer um que se encaixe no perfil acima poderia ser este mediador um tio uma vizinha uma mãe um avô uma amiga um bibliotecário No entanto levandose em conta a situação sócioeconômica dominante no Brasil a escola é para a maioria das pessoas a única oportunidade de uma inserção ainda que mínima na cultura letrada Devido a estas circunstâncias mediador de leituras efetivamente em nosso país é o professor Cabe lembrar pelo exposto até aqui a necessidade deste mediador levar em conta os conhecimentos prévios de seus alunos Misto de leitor apaixonado pesquisador e agitador cultural sua função seria nãoprecisamente de ensinar a ler mas a de criar condições para o educando realizar a sua própria aprendizagem conforme seus próprios interesses necessidades fantasias segundo as dúvidas e exigências que a realidade lhe apresenta Assim criar condições de leitura não implica apenas alfabetizar ou propiciar acesso aos livros Tratase antes de dialogar com o leitor sobre sua leitura isto é sobre o sentido que ele dá repito a algo escrito um quadro uma paisagem a sons imagens coisas idéias situações reais ou imaginárias Enquanto permanecermos isolados na cultura letrada não poderemos encarar a leitura senão como instrumento de poder dominação dos que sabem ler e escrever sobre os analfabetos ou iletrados MARTINS 1994 p 3435 Este mediador de leituras ideal que por falar nisso existiria numa escola também ideal seria aquele que além de acolher os objetos culturais trazidos à escola pelos próprios alunos seus relatos orais inquietações conhecimentos e obras se investisse de espírito pesquisador inquieto e independente não se restringindo ao selecionar textos de qualquer natureza para a atividade de leitura José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 276 quer ao cânone quer apenas a seu gosto pessoal ou ao de seus alunos mas somando todas estas possibilidades dialeticamente Tal mediador que antes de tudo como anteriormente dissemos é alguém que gosta muito de ler e lê grande diversidade de textos livros quadros filmes peças teatrais poesia fotos canções por sua própria prática leitora consistente e inquieta teria condições de ensinar a língua da intertextualidade Intertextualidade A noção de intertextualidade diz respeito ao conjunto de relações que os textos mantêm entre si A intertextualidade envia tanto a uma propriedade constitutiva de todo texto como ao conjunto das relações explícitas ou implícitas que um texto mantém com outros textos MAINGUENEAU 1998 Por conseguinte deve ser entendida em sentido amplo e num sentido estrito Em sentido amplo a intertextualidade está presente de modo implícito em todo e qualquer texto pois na verdade o processo discursivo se estabelece sempre sobre um discurso prévio No dizer de Maingueneau retomando Gerard Genette todo texto hipertexto está implantado pela marca de seu gênero Já em sentido estrito a intertextualidade pode darse explicitamente através de citações referências resenhas paráfrases ou implicitamente através de certos operadores lingüísticos que permitem uma identificação sócio historicamente situada CARDOSOSILVA 2006 p 50 A intertextualidade no sentido amplo é o que garantiria a própria legibilidade dos textos Porque já li poemas anteriormente reconheço um poema quando me vejo diante de um e leioo como se lê um poema e não como leria por exemplo um manual de instruções para instalar uma impressora num computador um livro de receitas culinárias a coluna de horóscopos de uma revista ou um romance policial Cada um desses tipos de texto se organiza mais ou A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 277 menos conforme o seu gênero o que acaba por orientarlhes sua configuração e também a nossa compreensão Já no sentido estrito diz respeito às relações sejam elas explícitas ou implícitas como vimos nas citações acima que os textos mantêm com outros textos de qualquer natureza e que permitiriam sua identificação Tanto num caso como no outro para se poder exercer a leitura intertextual percebese a necessidade de leituras anteriores e de leitura constante A intertextualidade diz respeito aos fatores que tornam a utilização de um texto dependente do conhecimento de um ou mais textos previamente existentes compreendendo as diversas maneiras pelas quais a produção e a recepção de dado texto depende do conhecimento de outros textos CARDOSOSILVA 2006 p 48 A leitura intertextual por conseguinte pressupõe um leitor familiarizado com uma grande diversidade de textos Como diz Laurent Jenny A intertextualidade introduz um novo modo de leitura que solapa a linearidade do texto Cada referência textual é o lugar que oferece uma alternativa seguir a leitura encarandoa como um fragmento qualquer que faz parte da sintagmática do texto ou então voltar ao texto de origem operando uma espécie de anamnésia isto é uma invocação voluntária do passado em que a referência intertextual aparece como elemento paradigmático deslocado e provindo de uma sintagmática esquecida Esses dois processos operando simultaneamente semeiam o texto com bifurcações que ampliam o seu espaço semântico NITRINI1997164 165 Para que ocorra esta ampliação do espaço semântico este enriquecimento cultural proporcionado pela leitura intertextual a escola que como vimos anteriormente é para a maioria o único local onde seria possível se ter contato com uma grande diversidade José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 278 de textos deveria ser um espaço de ação cultural intensa local de acesso a livros a filmes a obras de arte das mais diversas linguagens local de discussão das obras local onde a expressão dos alunos é respeitada e estimulada local não apenas aonde se chega mas de onde se parte Mas para que tal ocorra seria necessário remover as pedras do meio do caminho As pedras do meio do caminho Como se sabe um dos objetivos mais importantes senão de todas pelo menos de grande parte das escolas particulares brasileiras é o treinamento de crianças e jovens para o competitivo mercado de trabalho tendo como alvos desse investimento o vestibular e consequentemente a futura faculdade que prometa uma colocação profissional rendosa A escola pública em sua grande maioria ainda se pauta por motivações alheias aos verdadeiros interesses de seus usuários Sendo assim não é de se estranhar a pouca importância que se dá nestas instituições à formação de leitores permanentes críticos reflexivos intertextuais e criativos afeitos às questões culturais de grande alcance Certamente no entanto a escola que temos não nasce por geração espontânea ela é uma construção social Imputarlhe todo o ônus do processo pode ser confortável mas inoperante Instituição da sociedade ela é seu retrato fiel Seria necessário para falar de promoção de leitura em nossa sociedade pensar a relação que esta mantém com o conhecimento como um todo Como escreveu Edmir Perrotti Separar a promoção da leitura dos processos gerais do saber como se os caminhos pudessem não se cruzar como se leitura e conhecimento não fizessem parte de A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 279 um mesmo quadro global de operações simbólicas de uma mesma trama de sentidos corresponde a uma visão compartimentada da cultura que parece não conseguirá ir muito longe enquanto fonte inspiradora de práticas promocionais qualquer tentativa de mudança nos rumos atuais deve perguntar em que medida o conhecimento o desejo de saber de descobrir é valorizado nas instituições de educação e cultura e na sociedade e entendido como desafio capaz de arrebatar o espírito conduzindo naturalmente crianças e jovens à pesquisa ao conhecimento logo à leitura PERROTTI 1990 p 74 Fazse necessário como continua o prof Perrotti a discussão aprofundada dessas questões para que não só se altere a representação social da leitura como se questione o descaso e a desconfiança com que se tratam em nossa sociedade o conhecimento o desejo de saber PERROTTI 1990 p 74 CONCLUSÃO Se conforme se lê na epígrafe deste trabalho a intertextualidade fala uma língua cujo vocabulário é a soma de textos existentes ensinar a língua da intertextualidade pressupõe como vimos até aqui o convívio intenso com grande variedade de textos de natureza variada Conforme dissemos anteriormente o local privilegiado para a prática desse convívio é a escola e o grande personagem desta aventura é o professor transformado aqui em mediador de leituras O mediador de leituras ideal como já mencionado seria aquele que lê muito e variadamente tendo por isso condições de relacionar textos entre si e de fazêlos falar aos novos leitores Seria aquele também capaz de acolher e respeitar o conhecimento prévio de seus alunos e de não só discutir como garantir e promover espaços de discussão das variadas leituras dos textos do mundo que seus alunos realizam José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 280 Esse mediador por sua vez só poderia existir numa escola que se concebesse como espaço de ação cultural intensa O que vale dizer só poderia existir numa escola inserida numa sociedade que valorizasse o conhecimento Não que não existam professores ou mediadores de leitura trabalhando com propósitos elevados em ambientes adversos como é a nossa sociedade Mas nesta como em outras questões uma andorinha só não faz verão ela se sai melhor voando em rede Por outro lado uma escola que se compreendesse como um autêntico centro de cultura como o local privilegiado de ação cultural intensa com objetivos para além de um pragmatismo redutor reeducaria transformaria a sociedade E é com uma escola assim que alguns de nós muitos de nós sonhamos REFERÊNCIAS CARDOSOSILVA Emanuel Prática de leitura sentido e intertextualidade São Paulo Associação Editorial Humanitas 2006 FERREIRA Aurélio Buarque de Holanda Dicionário Aurélio século XXI Versão 3 CDROM Rio de Janeiro Nova Fronteira Lexicon1999 FREIRE Paulo A importância do ato de ler em três artigos que se completam São Paulo Cortez 2006 JENNY Laurent A estratégia da forma In Intertextualidades Poétique nº 27 Coimbra Livraria Almedina 1979 JOUVE Vincent A leitura São Paulo Editora Unesp 2002 MAINGUENEAU D Termoschave da análise do discurso Belo Horizonte Editora da UFMG 1998 MARTINS Maria Helena O que é leitura São Paulo Brasiliense 1994 NITRINI Sandra Literatura Comparada história teoria e crítica São Paulo Editora da Universidade de São Paulo 1997 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 281 SECRETARIA de Educação Fundamental Parâmetros Curriculares Nacionais língua portuguesa Brasília MECSEF1997 PERROTTI Edmir Confinamento cultural infância e leitura São Paulo Summus editorial 1990 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 282 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 A ADAPTAÇÃO NA TRADUÇÃO DE LITERATURA INFANTOJUVENIL NECESSIDADE OU MANIPULAÇÃO Renata de Souza Dias Mundt INTRODUÇÃO Meu trabalho como tradutora de literatura infantojuvenil LIJ e a reflexão sobre essa atividade me levaram a rever alguns conceitos entre eles o de adaptação em tradução A distinção entre tradução e adaptação é controversa e tem sido discutida por vários autores No Brasil a prática editorial contudo já se antecipou ao desfecho desta discussão teórica a Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil FNLIJ por exemplo fundiu numa só categoria em 2005 as premiações de tradução e adaptação entendendo que não se pode estabelecer a priori fronteiras rígidas entre uma e outra Não é objetivo deste trabalho entrar no mérito dessa discussão Aqui o conceito de adaptação não é aquele adotado pelo mercado editorial em que uma obra adaptada traz expressamente essa indicação em sua folha de rosto e com isso se exime de qualquer compromisso que se possa estabelecer com um conceito de tradução de uma obra original Neste trabalho o termo adaptação referese exclusivamente a um procedimento de tradução que será detalhado a seguir mas que se poderia resumidamente definir como aquele em que a opção pela literalidade na tradução cede lugar a uma interferência e a uma alteração mais profundas Em se tratando da tradução de LIJ tais interferências não têm sua origem contudo exclusivamente em aspectos lingüísticos do par de línguas em questão qualquer que seja ele Como ocorre também com qualquer outra tradução há na tradução de LIJ várias instâncias participantes desse processo e nele interferentes leitores 283 críticos editores revisores ilustradores distribuidores educadores pais professores etc Cada uma dessas instâncias e não apenas o tradutor realiza adaptações na obra de LIJ traduzida de acordo com seus interesses sua visão da criança e da cultura de partida Um tematabu por exemplo pode ser eliminado ou alterado dentro de uma obra Jogos de palavras e brincadeiras com a língua também obrigam freqüentemente o tradutor a realizar adaptações Questões culturais costumam sofrer adaptações seja porque as instâncias acima citadas consideram que o leitor não vai compreendêlas seja porque elas diferem da visão que as mesmas têm da cultura de partida ou porque as próprias instâncias não as compreenderam Outro importante elemento da LIJ que costuma sofrer adaptações são as ilustrações muitas vezes refeitas de forma a refletir a visão que se tem da cultura de partida reforçando clichês e preconceitos além dos títulos quase sempre alterados por questões de mercado O presente texto não pretende esgotar a discussão de tema tão polêmico e extenso mas apenas apresentar alguns exemplos extraídos da prática incitando a reflexão crítica sobre o assunto CONCEITO DE ADAPTAÇÃO A adaptação é um procedimento adotado por tradutores quando surgem alguns elementos do texto original que seriam intraduzíveis literalmente e precisam ser então adaptados Schreiber 1998 define a adaptação como adequação à cultura de chegada com manutenção de equivalência situativa Na enciclopédia de Mona Baker o procedimento aparece definido como a seguir adaptation is a procedure which can be used whenever the context referred to in the original text does not exist in the culture of the target text thereby necessitating some form of recreation BAKER 2005 p 6 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 284 Alguns exemplos de elementos que podem exigir a adaptação por parte do tradutor são dados específicos de uma cultura como nomes títulos comidas costumes e hábitos jogos versos mitologia e folclore referências históricas e literárias Além disso podem exigir adaptação título aspectos estilísticos ritmo estilo e comprimento da frase dialetos socioletos e linguagem corrente jogos de palavras Algumas formas de adaptação possíveis são quando se trata apenas de um termo ou expressão a utilização do termo acrescentando uma explicação no próprio texto a substituição do termo expressão por um conteúdo explicativo tradução explicativa a omissão do termoexpressão o que pode ser problemático e obrigar à reformulação do conteúdo no qual ele está contido a utilização de uma explicação externa ao texto o uso de um termo equivalente o uso de um termo semelhante a simplificação ou seja o uso de um conceito mais geral no lugar de um específico a localização ou domesticação processo em que todo o conteúdo é aproximado do ambiente cultural do leitor da tradução Quanto a esse último método ele implica em um conceito mais geral que inclui a postura geral do tradutor eou de outras instâncias frente à tradução Ele pode optar por domesticála ou estrangeirizála when a reader is taken to the foreign text the translation strategy in question is called foreignization whereas when the text is accommodated to the reader it is domesticated PALOPSKI e OITTINEN apud COILLIE 2006 p 42 Umberto Eco 2007 por sua vez afirma logo na introdução ao seu livro na verdade já no título Quase a mesma coisa que praticamente não há tradução sem adaptação no sentido aqui adotado Eis o sentido dos capítulos que se seguem tentar compreender como mesmo sabendo que nunca se diz a mesma coisa se pode dizer quase a mesma coisa A essa altura o problema já não é tanto A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 285 a idéia de mesma coisa nem a da própria coisa mas a idéia de quase Quanto deve ser elástico esse quase Estabelecer a flexibilidade a extensão do quase depende de alguns critérios que são negociados preliminarmente Dizer quase a mesma coisa é um procedimento que se coloca como veremos sob o signo da negociação ECO 2007 p 1011 A definição dessa flexibilidade e da extensão do quase resultado da negociação do tradutor consigo mesmo e com as instâncias participantes do processo tradutológico dará o limite entre adaptação e manipulação A adaptação tem variações porém seu princípio máximo é ou deveria ser a manutenção de um aspecto essencial do original o seu conteúdo o seu aspecto lúdico informativo ancoragem em elementos conhecidos etc Uma das tarefas de um tradutor de LIJ é decidir quando fazer adaptações em respeito e consideração pelas limitações impostas pela faixa etária de seu leitor sem deixar de ser fiel ao original A fidelidade ao original é pressuposto imprescindível de qualquer tradução Fidelidade neste caso poderia ser traduzida por respeito e não deve ser confundida com a literaridade fidelidade à letra apud AUBERT 1993 A partir das definições acima podemos delimitar mais facilmente o que seria manipulação ou adaptação manipuladora aquela que se descola do original não é fiel a ele mas sim determinada por interesses preconceitos e muitas vezes desconhecimento das instâncias participantes do processo tradutológico ALGUMAS CARACTERÍSTICAS ESPECÍFICAS DA LITERATURA INFANTO JUVENIL E DE SUA TRADUÇÃO Antes de iniciar uma conceituação teórica do que seja literatura infantojuvenil gostaria de salientar que para a presente comunicação por questões práticas considero literatura infanto José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 286 juvenil aquela que foi escrita publicada para eou lida por crianças e jovens Como tratamos aqui da tradução de LIJ ela só pode ser analisada e discutida com base em livros que já estão no mercado mesmo que no estrangeiro e já foram firmados como LIJ mesmo que não tenham sido publicados como tal Público Como já constataram citaram e definiram vários teóricos a primeira e mais básica diferença entre a literatura adulta e a infanto juvenil é o público ao qual elas se dirigem Assim o produtor do texto seja o autor ou o tradutor deve conhecer as peculiaridades de seu leitor seu nível de desenvolvimento cognitivo sua bagagem cultural suas características dentro de sua cultura e a visão que a própria cultura e sociedade nela inserida têm dessa criança no caso do tradutor é preciso conhecer a visão das duas culturas Devido ao caráter de seu público podese dizer que a adaptação é mais freqüente na tradução de LIJ o nível cognitivo e a bagagem de conhecimento do leitor muitas vezes obrigam o tradutor a realizar adaptações do texto original que não seriam necessárias na literatura adulta pois freqüentemente um elemento de outra cultura não é conhecido nem compreendido pela criança Frank comenta essa dificuldade The affective and intellectual effort required to understand cultural difference is often beyond the capabilities of young readers necessitating interventions that focus on making the narrative transparent FRANK 2007 p 20 A fim de realizar essas adaptações quando necessário e ainda manter o seu caráter lúdico o tradutor de LIJ muitas vezes tem de usar de grande criatividade para adaptando um aspecto do texto conseguir ainda se manter fiel a outro Por outro lado freqüentemente os adultos participantes do processo tradutológico e A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 287 não apenas o tradutor tendem a ver a criança como um ser mais incapaz do que realmente é tomando a liberdade de realizar adaptações talvez desnecessárias que podem mesmo involuntariamente ser manipuladoras Fernando de Azevedo comenta um boom de LIJ medíocre nos anos 1950 como o surto de uma literatura banal vulgar e insuportável quer pela escassez de escritores de verdade que se dediquem a esse gênero quer pela suposição ilusória de ser fácil escrever para crianças AZEVEDO 1988 p 338 No livro de RiekenGerwing percebemos que essa postura não é exclusiva do mercado editorial brasileiro eocorre também na Europa Die niedrigere Bezahlung von KJl Übersetzungen resultiert vermutlich aus de Auffassung der Verlage dass zwischen KJl und EWl nicht unbedingt Kongenialität vorliege und dass es einfacher sei KJBücher zu übersetzen RIEKENGERWING 1995 p 165 Assimetria Pelo fato de seu público ser de faixa etária diferente de seus produtores a tradução de LIJ é um processo assimétrico do qual participam diversas instâncias Um adulto escreve um livro para crianças jovens o qual é selecionado e editado por adultos traduzido por um ou mais adultos revisado por adultos e por fim comprado também por adultos São sempre adultos produzindo para crianças Essa assimetria do processo tradutológico tem conseqüências para o trabalho do tradutor na medida em que ele tem de negociar com todas as instâncias participantes desse processo cada qual com sua visão da criança tentando sempre respeitar o princípio máximo de qualquer tradução que é o respeito ao original Além disso naturalmente a tradução também inclui a imagem que o tradutor José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 288 adulto tem da criança de sua cultura e da cultura de partida pois esta vai influenciar várias de suas decisões tradutológicas Além da imagem que cada instância tem da criança é preciso lembrar que a LIJ é publicada e traduzida apenas indiretamente para a criança os adultos que compram e recomendam os livros para as crianças funcionam como um filtro sendo que o que chega ao público final em princípio não são os livros escolhidos pelas crianças mas aqueles que os adultos consideram bons para elas KJBücher werden nur indirekt für Kinder und Jugen dliche übersetzt Vermittlergruppen wie Bibliothekare Eltern Lehrer etc üben indirekt oder direkt einen enormen Druck auf den Übersetzer hinsichtlich der Beachtung pädagogischer Prinzipien sowie Tabus aus so dass er sich in einigen Fällen zu Adaptionen und Auslassungen gezwungen sieht RIEKENGERWING 1995 p 88 Todos esses fatores fazem com que editores e outras instâncias desse processo muitas vezes atentem mais aos desejos e visão de mundo das escolas e pais do que aos das crianças seu público propriamente dito Realizando cortes mudanças omissões e outros tipos de adaptações manipuladoras apenas para satisfazêlos esquecendo a fidelidade ao original e conceitos de tradução Vejase o exemplo citado abaixo no item sobre ilustração da tradução do livro de Ricardo Azevedo Pobre Corinthiano Careca Função A função é um importante diferencial da LIJ Como em toda literatura sua função primordial é entreter informar provocar prazer estético A LIJ tem ainda a função de iniciar e socializar a criança leitora em uma cultura apud FRANK 2007 A fim de cumprir todas as suas funções a LIJ precisa antes de mais nada cativar o interesse do leitor infantil e para tanto deve ter sempre presente o A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 289 elemento lúdico Este muitas vezes está calcado em fatores culturais já conhecidos da criança pois para ela é mais fácil partir do conhecido para então chegar ao desconhecido novas informações o riso a crítica etc e como já comentado acima freqüentemente dados culturais específicos precisam ser adaptados O lúdico pode se dar também por meio de um jogo lingüístico como um jogo de palavras rimas deslocamento de significados significantes Um exemplo interessante e bastante ilustrativo é o da tradução feita por mim do livro de Paul Maar para o português Uma semana cheia de sábados 2001 2004 O autor desconstrói a linguagem em seu livro para que a criança possa entender os seus mecanismos de funcionamento Esse é o caso por exemplo do fio condutor do livro uma brincadeira com os dias da semana Para que Ábado personagem central do livro apareça em um sábado é preciso que haja uma série de coincidências no decorrer de uma semana Estas referemse aos nomes dos dias da semana os quais em alemão podem ser secionados em partes significativas Ábado só aparece em uma semana especial na qual cada dia da semana transcorre de acordo com o que seu nome sugere Paul Maar desmonta os substantivos referentes a cada dia da semana criando um novo significado para cada um explicando ao leitor que tais vocábulos são compostos por morfemas que têm significado próprio isoladamente Ele não se reporta em seu jogo ao significado etimológico de cada parte componente dos nomes dos dias da semana mas se põe no lugar da criança e alude ao significado aparente e imediato das palavras que nem sempre coincide com o seu significado histórico Por exemplo Sonntag seria dia de sol Dienstag dia de trabalho Donnerstag dia de trovão e assim por diante Como seria impossível se reproduzir este jogo em português optei pela rima com a anuência do autor recurso recorrente e traço marcante da narrativa José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 290 Original Tradução literal Tradução final Jetzt sagte sich Herr Taschenbier konnte es kein Zufall mehr sein Am Sonntag Sonne Am Montag Herr Mon mit Mohnblumen Am Dienstag Dienst Am Mittwoch Mitte der Woche Am Donnerstag Donner und am Freitag Frei Deshalb saß Herr Taschenbier am Samstag erwartungsvoll in seinem Zimmer und fragte sich was der Tag bringen würde MA AR 1994 pg 11 Agora disse seu Ce reja para si mesmo não podia mais ser coincidência no domingo sol Na segunda seu Mon com papoulas Na terça trabalho Na quarta meio da semana Na quinta trovão e na sexta dia livre Por isso no sábado seu Cere ja estava sentado ansioso em seu quarto e se perguntava o que aconteceria naquele dia Agora não podia mais ser coincidência domingo estava um dia lindo sem nem um pingo e ele encontrou seu cachimbo segunda seu Ca tunda vem lhe fazer uma visi ta e cai de bunda na terça foi tomar a fresca teve dor de cabeça e pulou a cerca na quarta recebeu uma carta e encontrou uma lagarta na quinta ficou cheio de pintas que eram manchas de tinta na sexta foi picado por uma vespa e seu chefe estava com cara de besta Por isso seu estava sentado em seu quarto no sábado cheio de expecta tivas tentando imaginar o que o aguardava naquele dia MAAR 2004 pg 9 Outro exemplo de um livro ainda não traduzido mas que representaria um grande desafio ao tradutor é Chiquinho quinta feira IACOCCA 2004 de Liliana Iacocca A autora baseia toda a narrativa num jogo de palavras que exigiria grande criatividade de seu tradutor a fim de manter a intenção da autora É interessante observar que o livro foi republicado em 2004 mas originalmente escrito em 1985 numa época em que sua autora trabalhava como jornalista especializada em criar enigmas charadas palavras cruzadas e passatempos Sem me ater a todas as situações e trechos do livro que poderiam representar problemas em uma tradução gostaria de citar um trecho bastante significativo para reflexão Entre todas as metáforas e simbolismos presentes no livro destaco o capítulo chamado A mulher descarada Aqui entra voando pela janela do A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 291 quarto de Chiquinho uma mulher com uma panela cheia de sopa na mão que fala sem parar Fiquei pensando a mulher não tinha cara e não tendo cara não poderia ter boca e se é da boca que saem as palavras por onde saíam as palavras da mulher Fiquei tão encucado com isso que nem ouvia mais o que a mulher estava falando E ela falava pelos cotove los Era isso mesmo Que incrível A mulher falava pelos co tovelos A descoberta me deixou curioso e como eu nunca tinha visto alguém falar pelos cotovelos comecei a prestar atenção As palavras iam saindo dos dois cotovelos da mulher como se eles fossem os altofalantes de um aparelho de som e eu fiquei ouvindo muitas receitas de sopa Até que comecei a ficar enjoado era sopa demais e decidi acabar com aquela conversa Perguntei de re pente Cadê a sua cara Acho que ela não escutou pois continuou falando como se nada tivesse acontecido contando sobre uma sopa que tinha inventado com restos de outras sopas Então gritei bem forte na frente da cara que ela não ti nha Cadê a sua cara O que é que tem a minha cara perguntou ela Apoiou a panela em cima da cadeira da minha escriva ninha levantou os braços passou as duas mãos pelo rosto pelado e quase teve um ataque Cadê a minha cara Onde foi que deixei a minha cara Ah Eu sei eu sei foi a minha filha Eu sei que foi ela quem pegou a minha cara só para ficar parecida comi go Ela sempre quis ter a cara que eu tenho Enquanto a mulher falava da filha eu de curioso fui espiar e investigar a panela para ver a cara da sopa José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 292 Foi incrível Eu não fazia idéia de como era a cara da mulher antes de ela perder a cara na panela de sopa mas achei que a nova cara era a cara dela IACOCCA 2004 p 57 ss Todo o trecho aqui apresentado é baseado na interpretação literal de expressões convencionais e idiomáticas Seria impossível traduzilo para qualquer outra língua sem realizar adaptações Provavelmente todo o conteúdo teria de ser mudado a fim de se manter o jogo entre significado literal e idiomático das expressões pois caso contrário seria perdido todo o caráter lúdico surreal e crítico da narrativa Gostaria de salientar ainda que as ilustrações do livro acompanham a narrativa portanto a adaptação de seu conteúdo obrigaria também a adaptação refação das mesmas Ilustração Um outro elemento bastante característico da LIJ é a ilustração Ela não apenas enfeita a obra infantil mas facilita a sua leitura e é parte integrante da obra Algumas vezes a ilustração espelha o conteúdo do livro outras completao e complementao trazendo novas informações e novos níveis de leitura e interpretação ao leitor Seu papel é essencial nesse tipo de literatura e portanto não pode ser ignorado pelo tradutor Algumas vezes o tradutor precisa apenas atentar a ilustrações em que há inscrições na língua estrangeira outras vezes a alteração do conteúdo de uma obra pode entrar em conflito com a ilustração vide comentário acima sobre o livro de IACOOCA Há também o caso dos chamados livros ilustrados nos quais a ilustração tem mais força que o texto Um exemplo interessante de tradução é o livro de Brigitte Minne e An Candaele Bons sonhos Rosa 2003 um A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 293 típico livro ilustrado traduzido do holandês e no qual a lua personagem central é um homem pois em holandês essa palavra pode ser tanto masculina quanto feminina Figura Senhor Lua Como a ilustração é elemento essencial do livro optouse por mantêla o que obrigou a tradutora a transformar a lua2 em senhor lua o que causou grande estranhamento entre o público leitor Não pretendo aqui discutir se a decisão da editora foi acertada ou não mas apenas chamar a atenção para a importância e as conseqüências que podem advir da adaptação ou não de um elemento da obra e de como ela é feita A solução encontrada foi inserir uma explicação da tradutora na contracapa do livro Há casos em que a alteração da ilustração pode acarretar mudanças em uma tradução ou em sua interpretação Este é o caso do livro de AZEVEDO 1998 Pobre Corinthiano Careca premiado pela APCA e traduzido na Alemanha AZEVEDO 2000 A editora alemã Elefanten Press por uma decisão do ilustrador Silvio Neuendorf e da 2 NOTA DA TRADUTORA A palavra Lua na língua holandesa original do livro pode ser considerada tanto do gênero masculino quanto do feminino Nesta obra foi opção do ilustrador caracterizála como masculino MINNE e CANDAELE 2003 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 294 editora Marion Schweizer como ela mesma me informou por email transformou José Pedro a personagem central do livro num menino mulato Todas as ilustrações do livro foram refeitas todas as personagens se tornaram mulatas Além disso foram feitas também outras pequenas alterações e omissões no texto que corroboram a mesma visão clichê do Brasil transmitida pelas novas ilustrações Tais interferências acarretaram uma interpretação bastante diferente do texto pelo leitor alemão Este é um caso típico em que editores ao invés de utilizarem o livro como transmissor de dados a respeito de uma nova cultura interpretaramno segundo a sua própria visãoclichê da cultura brasileira apresentandoa ao seu leitor sem respeitar a visão certamente mais rica e multifacetada do autor e ilustrador da obra original Aqui não há nenhuma justificativa tradutológica para essa alteração mas apenas manipuladora Seguem as ilustrações de capa do original e da tradução Figuras capas do livro de Azevedo publicadas na Alemanha e no Brasil A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 295 CONCLUSÃO Devido ao perfil de seu público que torna o lúdico as brincadeiras os jogos e as referências a dados culturais quase sempre presentes na LIJ o conceito de tradução para a criança e o jovem engloba necessariamente a adaptação Além disso esse mesmo público muda a relação das instâncias interferentes com a obra e acrescenta novas inexistentes no caso da literatura publicada para adultos por exemplo Refirome aqui aos intermediadores como escola pais mentores etc que levam a obra até a criança Ou seja raramente esse leitor escolhe o que vai ler Sendo assim o mercado editorial ao publicar um livro para crianças considera não só o seu público leitor mas também o público intermediador Essas duas características podem criar duas distorções no processo tradutológico com a mesma conseqüência a manipulação de seu conteúdo Por considerar a criança um ser menos sabedor em fase de aprendizagem muitos adultos consideram a literatura dirigida a ela mais fácil e menos importante ou de menor valor Isso leva a que sejam menos cuidadosos ao escrevêla ao traduzila revisála ao escolhêla e mesmo ao escolher seus tradutores por exemplo Muitas vezes a escolha de um excelente tradutor de literatura adulta não é a mais acertada para um livro infantil pois ele não obrigatoriamente conhecerá as fases de desenvolvimento e o universo da criança a ponto de saber julgar por exemplo quando e como adaptar Da mesma forma a assimetria do processo faz com que os adultos participantes do mesmo quando partilham da visão acima mencionada se sintam à vontade para interferir no texto traduzido manipulandoo a fim de transmitir às crianças sua visão de mundo ou eliminando conceitos que considerem tabu com os quais não José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 296 concordem ou mesmo alterandoos em função dos seus compradores pais educadores mentores etc e não de seus leitores Assim a discussão e os exemplos aqui apresentados de adaptações necessárias desnecessárias nãoadaptações e suas conseqüências pretende apenas lançar uma primeira semente para a reflexão sobre a ética na tradução de LIJ que deve ser conseqüência do respeito pelo seu leitor um ser em formação mas nem por isso desprovido de perspicácia e capacidade de discernimento e pelos seus tradutores que a fim de realizar bem seu trabalho têm de conhecer os fundamentos da tradução e o universo infantil Esse tradutor certamente ao negociar com todas as instâncias envolvidas no processo tradutológico terá como base o respeito e a fidelidade ao original e ao público leitor gerando uma obra final que realmente seja quase a mesma coisa na acepção de Eco que a original REFERÊNCIAS AMORIM L M Tradução e adaptação Entre a Identidade e a Diferen ça os Limites da Transgressão São Paulo Ed UNESP 2006 AUBERT F H As InFidelidades da Tradução Servidões e Autonomia do Tradutor Campinas Editora da UNICAMP 1993 AZENHA Jr J A tradução para a criança e para o jovem a prática como base da reflexão e da relação profissional Pandaemonium Germanicum Revista de Estudos Germânicos São Paulo Humanitas 2005 p 367392 AZEVEDO F de A formação e a conquista do público infantil In LA JOLO M e ZILBERMAN R Literatura infantil brasileira história e his tórias 2 ed São Paulo Ed Ática 1988 p 334341 AZEVEDO R Pedro träumt vom großen Spiel Trad Nicolai von SchwederSchreiner ilustr Silvio Neuendorf 2ª ed SL Elefanten Press 2000 Pobre Corintiano Careca São Paulo Ática 1998 BAKER M ed Routledge Encyclopedia of Translation Studies Lon don New York Routledge 2005 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 297 BELL R T Translation and Translating Theory and Practice London New York Longman 1991 CANDAELE A e MINNE B Bons sonhos Rosa TradVania Maria Ara újo de Lange 3ª reimpres São Paulo Brinquebook 2006 COELHO N N A Tradução Núcleo Geratriz da Literatura Infan tilJuvenil Ilha do Desterro Florianópolissn n17 1 sem 1987 p 2132 Literatura Infantil Teoria análise didática 6 ed revista São Paulo Ática 1993 COILLIE J V e VERSCHUEREN W P ed Childrens Literature in Translation challenges and strategies Manchester St Jerome 2006 COLOMER T A formação do leitor literário narrativa infantil e juvenil atual Trad Laura Sandroni São Paulo Global 2003 ECO U Quase a mesma coisa Trad Eliana Aguiar Rio de Janeiro Record 2007 IACOCCA L Chiquinho quintafeira Ilustr Michele Iacocca São Pau lo Edições SM 2004 LAJOLO M e ZILBERMAN R Literatura infantil brasileira história e histórias 2 ed São Paulo Ed Ática 1988 MAAR P Eine Woche voller Samstage Hamburg Friedrich Oetinger 2001 MAAR P Uma semana cheia de sábados Trad Renata Dias Mundt São Paulo Ed 34 2004 NORD C Ausrichtung an der zielkulturellen Situation In SNELL HORNBY M et al Handbuch Translation Tübingen Stauffenburg Verlag 1998 p 144146 OSULLIVAN E Kinderliterarische Komparatistik Heidelberg Winter 2000 OITTINEN R No Innocent Act On the Ethics of translating for Child ren In COILLIE J V e VERSCHUEREN W P ed Childrens Litera ture in Translation Challenges and Strategies Manchester St Jero me Publishing 2006 p 3545 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 298 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 PIAGET J A formação do símbolo na criança Imitação jogo e sonho imagem e representação 2 ed trad Álvaro Cabral Rio de Janei roZahar Editores 1975 REISS K e VERMEER H Grundlegung einer allgemeinen Translationstheorie 2 ed TübingenMax Niemeyer Verlag 1991 RIEKENGERWING I Gibt es eine Spezifik kinderliterarischen Übersetzens Frankfurt am Main Berlim Bern Nova York Paris Wien Peter Lang 1995 SCHREIBER M Übersetzungstypen und Übersetzungsverfahren In SNELLHORNBY M et al Handbuch Translation Tübingen Stauffen burgVerlag 1998 p 151154 SNELLHORNBY M et al Handbuch Translation Tübingen StauffenburgVerlag 1998 299 O ATRATIVO E O NUTRITIVO A IMAGEM DO ALIMENTO NA LITERATURA PARA CRIANÇAS Daniela Bunn INTRODUÇÃO Numa sociedade de consumo que se alimenta pouco de literatura podemos pensar no valor nutritivo do alimento em relação ao texto literário Precisamos primeiramente acordar os sentidos para a boa degustação Como levar o texto para ser saboreado pela criança é um grande desafio função na maioria das vezes desempenhada somente pelo professor Escolhemos alguns textos que de forma lúdica e muitas vezes surreal contribuem para o processo de sedução do leitor principalmente pelo foco de suas narrativas o campo semântico do alimento Procuramos ao pesquisar a imagem do alimento na literatura analisar a interface entre o atrativo o livro e o nutritivo o ato de ler e mostrar como esta se processa por meio dos jogos de linguagens A idéia de trabalhar com a temática do alimento surgiu de uma metáfora utilizada por Cyana LeahyDios A autora utilizou uma imagem alimentar para mostrar a situação de professores de literatura que na maioria das vezes oferecem aos alunos uma alimentação pouco nutritiva O quadro atual mostra professores de literatura simplesmente arrumando em uma bandeja didática a refeição pouco nutritiva imposta em sua formação e preparada pelos livros didáticosi A partir dessa metáfora usada por LeahyDios e do interesse prévio em pesquisar a produção brasileira contemporânea voltada para a infância passamos a recolher textos literários e críticas que usassem tal imagem Vejamos uma pequena fatia dessa pesquisa diluída nos dois itens subseqüentes um faz uma breve José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 300 análise da ocorrência e do uso da metáfora alimentar e o outro costura fragmentos de críticas e de textos literários O USO DA METÁFORA ALIMENTAR Vários dos sermões analisados no Brasil entre os séculos XVII e XVIII eram baseados fundamentalmente em metáforas alimentares Em uma sociedade na qual a oralidade era a principal forma de difusão do conhecimento tais metáforas eram muito recorrentes Pe Antônio Vieira no Sermão de Nossa Senhora do Rosário no ano de 1654 fundamenta seu sermão numa analogia do corpo o corpo de Cristo que é alimento para alma chamando a atenção para o ato de ruminar ao modo de alguns animais comer remoer muito devagar o que comeram A analogia entre o ato de comer e o ato de pregar remonta à tradição medieval que oferece a palavra do pregador como alimento espiritual para as almas necessitadas e famintas São Bernardo 10901153 Abade de Claraval afirma que um alimento indigesto mal cozinhado produz maus humores e em vez de nutrir o corpo corrompeo assim também pode darse o caso de o estômago da alma que é a memória ao ingerir muitos conhecimentos que não foram cozinhados pelo fogo do amor e nem passaram pelo aparelho digestivo da alma apud MASSIMI 2006 p 259 Marina Massimi 2006 afirma que o uso dessas metáforas baseavase em dois pilares fundamentais Aristóteles e Platão Desse modo segundo a autora os sermões constituíramse numa modelagem dos comportamentos sociais e adquiriram grande significação em relação à história do uso de metáforas alimentares com função antropológica pois comparam o processo de conhecer ao de ingerir alimentos Neste sentido essas metáforas ajudavam a fundamentar o ciclo pedagógico dos sermões Na hierarquia da primeira Idade Moderna a comida era destinada e classificada A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 301 segundo o grau de nobreza do consumidor pois se acreditava que cada um deveria consumir o alimento adequado à sua natureza Assim alimentos próximos da terra eram considerados inferiores e destinados às classes sociais mais pobres em oposição aos alimentos elevados na direção do céu que eram considerados superiores Os voláteis por exemplo eram considerados comida adequada para príncipes e reis os nobres consumiam mais perdizes e carnes delicadas pois acreditavase que isso conferia mais inteligência e sensibilidade em comparação aos que comiam porco por exemploii Para Flandrin Montanari em História da alimentação 1996 a função religiosa da alimentação remonta ao terceiro milênio antes de Cristo na Mesopotâmia onde a homenagem aos deuses era feita por meio de oferendas alimentares carnes pão leite cerveja e vinho Segundo os autores a função social do banquete muito ressaltada no mundo grego e romano girava em torno do convívio e da troca de cortesias ocasionando um importante elemento de distinção entre o homem civilizado o bárbaro e os animais O homem civilizado come não somente e menos por fome para satisfazer uma necessidade elementar do corpo mas também e sobretudo para transformar esta ocasião em um ato de sociabilidade em um ato carregado de forte conteúdo social e de grande poder de comunicação nós não nos sentamos à mesa para comer lemos em Plutarco mas para comer jun tos Segundo certa etimologia o termo cena deriva da idéia de comer em comum O convivium é a própria imagem da vida em comum cum vivere FLANDRIN MONTANARI 1996 p 108 Nesse contexto o Banquete ou Simposium de Platão como lembra Massimi 2006 é caracterizado como expressão da função social e cultural do convívio à mesa Alberto Magno em De nutrimento et nutribili enfatiza que a questão mais importante em relação à alimentação é a qualidade do alimento para tanto fazse necessário conhecer o processo alimentar e seus efeitos Se José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 302 pensarmos na literatura não é muito diferente somos este homem civilizado que come ou lê não somente por necessiade Quando comemos pensamos sim na qualidade do alimento mas a pergunta é e quando damos de comer aos nossos alunos somos também criteriosos No primeiro e segundo tomo de História da alimentação no Brasil 1967 1968 Câmara Cascudo expõe o percurso da sociologia do alimento no cardápio tradicional indígena africano e português em relação à constituição do comum na comida nacional porém referese sempre à alimentação e não à nutrição Na Antologia da alimentação no Brasil publicado em 1977 os textos recolhidos dão ênfase desde a higiene da mesa às iguarias regionais do Brasil e falam da digestibilidade dos alimentos dos regimes alimentares mistos dos condimentos das cantigas entoadas na feitura da comida das descrições de Frei Manuel de Santa Maria Itaparica 17041768 sobre os limões melões araçás e ananás dos comentários de Debret da Viagem em redor do almoço de João Chagas 1863 1925 Os trabalhos de Câmara Cascudo e de Flandrin e Montanari nos ajudaram a montar um panorama da história e da sociologia alimentar e servem como aporte teórico para adentrar no estudo da imagem do alimento na literatura e na sua relação com a infância Para tanto optamos por privilegiar textos curtos de autores brasileiros que não escreveram somente para crianças mas que podem ser lidos por crianças A metáfora do alimento parecenos apropriada sendo que nos alimentamos também da leitura devoramos livros quando estamos com fome salivamos ao ler a descrição de uma cena podemos até sentir o cheiro das gostosuras da Dona Benta No emaranhado de emoções e lembranças de uma infância que não nos abandona é que se mistura o alimento como ingrediente de muitas histórias a cesta levada à vovó por A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 303 Chapeuzinho Vermelho a casa comestível em João e Maria o banquete servido pelo Rei ao sapo em Henrique de Ferro mais conhecido como A princesa e o sapo as ceias de Ano Novo vistas pelas janelas pela Pequena vendedora de fósforos dentre outras Assim a imagem do alimento permeia não só as antigas histórias da tradição oral que segundo Cecília Meireles são os primeiros livros da criança e os contos contemporâneos como também a própria crítica literária OS HÁBITOS ALIMENTARES DOS PEQUENOS Cecília Meireles em Problemas da literatura infantil livro que reúne três conferências proferidas em Belo Horizonte em 1949 usa se de metáforas alimentares em suas considerações a literatura não é como tantos supõem um passatempo É uma nutrição grifo da autora Ao falar da literatura de tradição oral Meireles afirma que era dela que se nutria a criança antes do livro recebendoa como um alimento natural nos primeiros anos da vida grifo nossoiii Usando termos como nutrição receita e alimento a autora aproxima do leitor suas idéias como os sermões tentavam se aproximar do quotidiano de seus expectadores Como já apontava a escritora nos fins da década de quarenta o problema não era muito menos hoje de carência e sim de abundância de livros o que em nosso texto chamamos de atrativos Títulos multiplicamse nas prateleiras mas a nossa preocupação é se eles chegam efetivamente à mesa do leitor e se tornam nutritivos por meio da leitura Werner Zotz em Livro que te quero livre escreve sobre a preferência do pequeno leitor pois tão importante quanto desenvolver e melhorar o paladar literário no jovem leitor é entregar lhe um livro do qual goste 2005 p 25 e completa sobre o prazer da leitura não existe uma receita pronta pelo menos eu não a José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 304 conheço O educador vai precisar usar toda sua sensibilidade tendo em mente que cada situação e ocasião têm aspectos muito particulares p 31 Bordini e Aguiar em Literatura a formação do leitor 1988 trabalham os interesses do leitor na escolha do texto literário como ponto fundamental para a aquisição do gosto pela leitura Além disso é necessária a provocação de novos interesses a fim de aguçar o senso crítico e a preservação do caráter lúdico do jogo literário O lúdico é indispensável na relação entre leitor e obra literária pois precede e facilita a desconstrução do conhecimento estimula a percepção e atua nas descobertas nas relações a serem estabelecidas e nas funções a serem conhecidas Benjamim lembranos nos textos recolhidos em Reflexões sobre a criança o brinquedo e a educação 2004 que as crianças sabem jogar e brincar e atribui aos adultos convencido sobre a pobreza da experiência uma certa incapacidade de magia O escritor ainda adverte sobre a polissemia do jogo o duplo sentido tanto jogo como brincadeira a essência do brincar não é um fazer como se mas um fazer sempre de novo transformação da experiência mais comovente em hábito assim comer dormir vestirse lavarse devem ser inculcados no pequeno irrequieto de maneira lúdica com o acompanhamento do ritmo de versinhos 2004 p 102 Compactuando com essa idéia Gianni Rodari escritor italiano discute sobre o jogo que se põe à mesa na hora das refeições e os personagens criados pelos pais o que dá ao ato de comer um significado simbólico comer tornase um ato estético Com os capítulos Comer e brincar de comer e Histórias à mesa do livro Gramática da Fantasia 1985 Rodari sugere o híbrido de fábulas que podem ser criadas à mesa como a Madame colher e suas aventuras românticas com um garfo e sua terrível rival a faca Nessa nova situação a fábula se duplica de um lado sugere ou provoca os movimentos reais da colher A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 305 objeto de outro cria a madame colher na qual o ob jeto é reduzido a um outro nome apenas com uma vir tude evocadora Madame Colher era bem alta e muito magra e tinha uma cabeça tão grande e tão pesada que não parava em pé e achava mais cômodo andar de pontacabeça Assim via todo mundo ao contrário e só tinha idéias do avesso 1982 p 96 Rodari escritor que sofreu um certo reducionismo no âmbito escolar por ser estudado apenas pelos seus textos de cunho pedagógico assinala a fome como uma das grandes tragédias do século XX fome tanto do corpo como da alma O escritor afirma que ambos corpo e alma precisam ser nutridos talvez por isso seus textos reflitam essa profunda ligação com o alimento Rodari envolve o leitor no saboroso mundo da leitura por intermédio de uma escrita lúdica e surreal Prosa e verso unemse aos textos críticos e contribuem para tornar o ato da leitura uma degustação nos termos do escritor fantástica O livro Fábulas por telefone com uma edição brasileira em 2006 apresenta histórias curtas porque são contadas por um caixeiro viajante pelo telefone à sua filha antes de dormir No livro temos a ocorrência de uma mansão de sorvete uma cozinha espacial os homens de manteiga a febre comilóide a senhora Apolônia de geléia a rua de chocolate a história do reino da comilança o caramelo instrutivo No conto Os homens de manteiga Rodari conta a história de um grande viajante que explorou um país no qual todos os homens eram de manteiga esses homens derretiam ao se expor ao sol eram obrigados a viver sempre na sombra e moravam numa cidade em que no lugar de casa havia um monte de geladeiras 2006 p 38 Em A mansão de sorvete o teto era de chantili a fumaça das chaminés de algodãodoce as portas as paredes e os móveis de sorvete Um menino bem pequenininho agarrouse aos pés de uma mesa e lambeu um de cada José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 306 vez até que a mesa caiu em cima dele com todos os pratos RODARI 2006 p 21 Ferreira Gullar no poema A Jia e a Jibóia em Dr Urubu e outras fábulas 2005 p 42 conta a história de um sapo ou uma sapa que se vendo a ponto de ser devorada pela jibóia decide convencêla do contrário Responde a cobra Tolice Tou nem aí pra crendice Matar a fome é um direito de todo e qualquer ser vivo Tudo o mais é preconceito Passar fome é que é afronta Eu de comer não me privo E você que come inseto Acha que isto é correto Outra sugestão apetitosa é o livro de Jonas Ribeiro Poesias de dar água na boca com ilustrações de André Neves que nos oferece um cardápio poético para a semana inteira desde comida japonesa até uma sobremesa mineira passando pela Vila da comilança e pela Escola Água na Boca Pensando nas relações familiares temos o livro de Simone Schapira Wajman intitulado O ovo e o vovô 2001 com ilustrações de André Neves que compara o vovô à frágil vida de um ovo por fora parecia duro como a casca do ovo mas por dentro era mole mole como a clara e a gema o vovô brilhava como a gema dava beijo estrelado como ovo Já no poema Hortifrutigranjeiros Sérgio Capparelli 2007 p 96 lembra principalmente da alface Ajuntar alface com jaca Dá pepino por aqui A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 307 Não somos bananas Ou conversamos abobrinha E se quiser saber plantamos bata ta sim mas pra quebrar um galho ou descascar abacaxi Ajuntar alface com jaca dá pepino por aqui Murilo Mendes em Amostra da poesia local 1994 p 185 também nos fala da alface Tenho duas rosas na face Nenhuma no coração No lado esquerdo da face Costuma também dar alface No lado direito não Em outro poema A alface aérea Ricardo da Cunha Lima 2007 p 37 narra um fato amalucado Este fato amalucado Ocorreu no mês passado Uma alface bem verdinha Já lavada pra salada E que estava repousada Sobre a mesa da cozinha De repente se mexeu Suas folhas agitou E a seguir se debateu Bateu folhas e voou Sabor de Sonho 1997 de Cláudio Feldman conta a história de um sonho que conto neste momento Sonhei que estava na terra em que tudo era alimento José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 308 O chão com trechos de paço quinha tinha buracos de queijo e pedras de batatinha Os sítios eram cercados Por muros de pirulitos E os galos dos cataventos Que delícia estavam fritos Em Traças de regime poema de Sérgio Capparelli do livro 111 poemas para crianças 2007 p 34 As traças gostam de suspense Lêem com cuidado E de olhos fechados Se estão com pressa Comem sanduíches de escritores importantes Cecília Meireles Lygia Bojunga Hesíodo e os deuses gregos Elas dão conselhos as histórias lacrimejantes são me lhores Porque facilitam a digestão E estamos conversados Traças iletradas são sem cerimô nia Comem heróis heroínas enredos E no fim devoram o autor Ah as traças como evitálas Comem Mario Quintana devoram os dois A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 309 Verissimos Pai e filho E de sobremesa encomendam es critores bem Românticos Olha lá vai uma arrotando Lobato A partir dessa pequena amostragem de textos que se relacionam com a questão alimentar identificamos algumas categorias o alimento como personagem que ganha vida bate asas e voa como no poema A alface voadora de Ricardo da Cunha Lima o alimento sendo comparado a um personagem como no livro de Wajman O vovô e o ovo ou no poema Hortifrutigranjeiro de Sérgio Capparelli no qual o escritor usase dos jogos de linguagens e dos ditos populares para montar o poema o alimento compondo objetos como em Sabor de Sonho de Cláudio Feldman que fala de um delicioso sonho num lugar em que tudo era comestível assim como no conto A mansão de sorvete de Rodari o alimento implícito no próprio ato de devoração animal no ato de comer no poema de Ferreira Gullar Podemos individuar ainda pensando num prato bem nutritivo personagens vegetarianos como em Pequenos Assassinatos de Affonso Romano de SantAnna os gostos da terra da batata e do mingau de cará em Eloí Bocheco o almoço no Tchau de Lygia Bojunga o pato na panela ou a Feijoada à minha moda de Vinicius de Moraes a vontade da faminta princesa Tiana de comer pizza de maçã no livro de Márcio Vassallo as frutas do pomar de palavras de Werner Zotz o prato de macarrão em Elias José uma limonada em Ana Maria Machado ou ainda as saudades em Ruth Rocha que na aurora da vida não gostava da comida mas tinha que comer mais O ato de comer nessas histórias poderia ser dividido em dois momentos personagens que comem e que são comidos neste ponto cabe revisitar os clássicos e também fazer tal distinção José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 310 Pensando na relação nutritivoatrativo não podemos deixar de mencionar o papel do professor Segundo Di Santo 2007 p 4 Falando em aprendizagem como alimentação podemos traçar um paralelo com a famosa história da Branca de Neve e os sete anões onde a maçã embora com uma aparência apetitosa estava envenenada e deixou a he roína num sono profundo por muito tempo Da mesma forma se for oferecido ao aluno um conhecimento des contextualizado que não desperte sua curiosidade e vontade de aprender ele permanecerá desligado No entanto se a aprendizagem for como uma maçã re almente saborosa e sadia o aluno a comerá com prazer e sua digestão será leve e rápida Ele sempre se lem brará com satisfação desse momento prazeroso e pro curará aplicar o que aprendeu em outras circunstâncias de sua vida E isso tem a ver com a didática do profes sor Se aprender é como se alimentar tanto o educan do quanto o educador se alimentamaprendem O professor segundo Di Santo deve estimular o apetite do aluno pois mesmo quando não estamos com fome sentimos vontade de comer ao vermos algo que nos estimula Realmente para cada aluno que o professor ofertar o seu conhecimentomaçã a forma de mastigar e engolir será diferente única Para um aluno a maçã dará dor de barriga para outros provocará alguns quilos a mais para alguns a quantidade de maçã será pouca e para outros suficiente Há os que vão considerar a quantidade excessiva não conseguindo engo lirabsorver tudo Os conhecimentos precisam ser mastigados engolidos e digeridos 2007 p4 PerroneMoisés lembra que a leitura exige tempo e esforço que não condizem com a vida cotidiana atual os novos escritores afinados com os hábitos alimentares deste fim de século publicam livros light para serem consumidos rapidamente 1998 p 178 e com isso muitos livros tornamse meramente atrativos Na relação do alimento com o ensino Rubem Alves em Conversas sobre Educação 2003 utilizase da cebola do queijo da pipoca para falar de escolas alunos pais e professores Em Sobre cebolas e escolas p A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 311 6367 o escritor afirma ocupar a cebola um lugar de destaque no seu pensamento tanto de forma científica culinária entidades acidentalmente lacrimogêneas de tamanhos variados cheiro característico e gosto saboroso que se prestam a ser usadas em molhos saladas conservas e sopas como poética a cebola o faz pensar filosófica e pedagogicamente Rubem Alves equipara a cebola ao pensamento de Piaget e seus ciclos de desenvolvimento como os círculos das cebolas as escolas e a sociedade que formam camadas sobrepostas que por vezes isolam o aluno Para ele a cebola é metáfora da aprendizagem aquele círculo mínimo central é o corpo do aluno O corpo a que Nietzsche dava o nome de grande razão procura entender o mundo que o cerca a fim de poder apreendêlo o meio ambiente deve se tornar comida Para que o corpo viva O que não vira comida o que não é vital para o corpo não é aprendido 2003 p 64 Bakhtin em O banquete em Rabelais 1996 p 245 afirma que o homem degusta o mundo sente o gosto do mundo o introduz no seu corpo faz dele uma parte de si O banquete como já visto não se trata do beber e comer quotidiano mas sim da boa mesa da abundância o papel das imagens de banquete no livro de Rabelais é enorme Quase não há página onde essas imagens não figurem pelo menos no estado de metáforas e de epítetos tomados do domínio do beber e do comer BAKHTIN 1996 p 243 Ao falar do corpo grotesco do qual as imagens dos banquetes estão estreitamente mescladas Bakhtin caracterizao como um corpo aberto inacabado em interação com o mundo o corpo escapa às suas fronteiras ele engole devora despedaça o mundo fálo entrar dentro de si enriquecese e cresce às suas custas O homem degusta o mundo sente o gosto do mundo o introduz no seu corpo faz dele uma parte de si 1996 p 245 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 312 Benjamin usa uma imagem muito interessante que é da criança lambiscando pela fresta do guardacomida entreaberto sua mão avança como um amante pela noite como o amante abraça a sua amada da mesma forma o tato tem um encontro preliminar com as guloseimas antes que a boca as saboreie 2004 p 105106 Esse encontro entre a criançaleitora e o alimento ou seja o livro parece cada vez menos apaixonado com o passar dos anos escolares é preciso como dito antes acordar os sentidos para a boa degustação o tato ao pegar um livro a visão ao apreciálo a audição ao ouvir uma história o paladar ao saborear um texto literário é preciso lambiscar mais devorar mais Quem sabe dar voz ao livro pelas palavras de Quintana deciframe ou te devoro CONCLUSÃO Entendemos ser o uso da imagem alimentar no texto literário um elemento que seduz independente da faixa etária e contribui para estimular o gosto pela leitura por ser algo que gera facilmente uma identificação do leitor com seus gostos ou desgostos alimentares Estes gostos ou desgostos se resignificam no campo da experiência mesmo que com características surreais alfaces que batem asas sanduíches de escritores ou ruas de chocolate que despertam a imaginação ardente da criança e da criança em cada adulto Embora tenhamos visto exemplos de narrativas contemporâneas cabe lembrar que tal imagem sempre percorreu as narrativas da tradição oral mesmo que em um papel secundário Atualmente os jogos de linguagens propostos pelos escritores atualizam cada vez mais a inserção do alimento no texto é algo muito próximo da criança e do adulto pois faz parte de nosso quotidiano Procuramos assim perante o livro infantil atrativo mostrar como seria nutritivo estimular o ato de ler de saborear um A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 313 texto que trabalhe com tais imagens Enquanto na crítica literária ou educacional a imagem do alimento aparece como metáfora nas narrativas ou nos poemas para crianças destacamos algumas categorias O alimento serve como isca para o leitor Podemos ainda falar de outra categoria de leitor o adulto que não procura mais livros somente para a sala de aula ou somente para os filhos mas que se deleita e consome da literatura por um bom tempo chamada de infantil Para sua próxima leitura sem pretensões didáticas uma boa degustação REFERÊNCIAS ABRAMOVICH Fanny Literatura Infantil gostosuras e bobices São Paulo Scipione 1997 ALVES Rubem Conversas sobre Educação São Paulo Versus 2003 BAKHTIN Mikhail O banquete em Rabelais In A cultura popular na idade média e no Renascimento SP HUCITEC 1993 BENJAMIN W Reflexões sobre a criança o brinquedo e a educação Trad Marcus Vinicius Mazzari São Paulo Duas Cidades Editora 34 2002 Rua de mão única 5 ed Trad Rubens Rodrigues Torres Fi lho José Carlos Martins Barbosa e Pierre Paul Michel Ardengo São Paulo Brasiliense 1995 BORDINI Maria da Glória AGUIAR Vera Teixeira Literatura a forma ção do leitor alternativas metodológicas Porto Alegre Mercado A berto 1988 CAPPARELLI Sérgio 111 poemas para crianças 7 ed Il Ana Gruszynski Porto Alegre LPM 2007 CASCUDO Luís Câmara Org Antologia da alimentação no Brasil Rio de Janeiro Livros Técnicos e Científicos Ed SA 1977 História da alimentação no Brasil Belo HorizonteSão Paulo Editora Itatiaia Editora da Universidade de São Paulo 1983 COELHO Nelly Novaes A Literatura Infantil História Teoria e Análi se 2 ed São Paulo Quiron 1982 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 314 DI SANTO Joana Maria R A metáfora da maçã alimen toconhecimento e a avaliação da aprendizagem Disponível em httpwwwcentrorefeducacionalprobrmetaprdzhtm Acessado em set2007 FELDMAN Cláudio Sabor de Sonho II Ilustração Claudia Scata macchia São Paulo Moderna 1997 FLANDRIN J MONTANARI M Org História da alimentação São Paulo Estação Liberdade 1996 GULLAR Ferreira Dr Urubu e outras fábulas Rio de Janeiro José Olympio 2005 LEAHYDIOS Cyana Signos Brasileiros de Educação Literária In E ducação Literária como metáfora social EdUFF 2000 LIMA Ricardo da Cunha De cabeça para baixo 5 reimpressão São Paulo Cia das Letrinhas 2007 MASSIMI M Alimentos palavras e saúde da alma e do corpo em sermões de pregadores brasileiros do século XVII In Revista Histó ria Ciências Saúde Manguinhos v 13 n 2 p 25370 abrjun 2006 Capítulo da Tese de Doutorado MEIRELES Cecília Problemas da literatura infantil 4 ed Rio de Ja neiro Nova Fronteira1984 MENDES Murilo Amostra da poesia local In Poesia completa e pro sa Rio de Janeiro Nova Aguilar 1994 PERRONEMOISÉS Leyla Altas literaturas São Paulo Companhia da Letras 1998 RIBEIRO Jonas Poesias de dar água na boca Il André Neves São Paulo AveMaria sd RODARI Gianni Gramática da Fantasia Trad Antonio Negrini São Paulo Summus 1982 Fábulas por telefone Trad Silvana Cobucci Leite São Paulo Martins Fontes 2006 WAJMAN Simone Schapira O ovo e o vovô Il André Neves São Paulo Paulinas 2001 ZOTZ Werner CAGNETTI Sueli de Souza Livro que te quero livre 3 ed Florianópolis Letras brasileiras 2005 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 315 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs OLHARES PARA A INFÂNCIA E PARA A EDUCAÇÃO NO CONTO NEGRINHA E EM OUTRAS HISTÓRIAS DE MONTEIRO LOBATO Eloísa Porto Corrêa Monteiro Lobato é considerado por alguns estudiosos como uma figura ambivalente dentro do PréModernismo brasileiro ora demolidor de tabus ora crítico das correntes irracionalistas que integraram a primeira geração modernista ora o escritor de uma prosa que não rompe no fundo nenhum molde convencional ou como o modelo não atingido de Eça de Queirós pela carga irônica e o gosto da palavra pitoresca BOSI 2006 p 216 Mas no que tange à obra infantil e juvenil a crítica costuma aclamar Monteiro Lobato Bosi reconhece a inovação e o valor da parte infantojuvenil da obra de Lobato que não comenta muito mas na qual observa originalíssima fusão de fantasia e pedagogia BOSI p 216 Nelly Novaes Coelho em Monteiro Lobato O Inovador 1987 e em Lobato e a fusão do real com o maravilhoso 2000 considera a produção artística para crianças e jovens de Lobato como um salto qualitativo comparada aos autores que o precederam COELHO 1987 p 48 Fanny Abrimovich lembra que foi Lobato o primeiro a criar em muitas obras como no Sítio do PicaPau Amarelo uma lógica que não é a do adulto mas onde o adulto entra no jogo da criança 2005 p 61 como se observa no Sítio do PicaPau Amarelo O conto Negrinha que não se dirige preferencialmente às crianças logo não integra a produção infantojuvenil de Lobato mas que foi escolhido por Ítalo Moriconi como um dos Cem Melhores Contos Brasileiros do Século XX 2001 p 7884 condena justamente a incapacidade de alguns adultos entrarem no jogo da 316 criança impondo a elas uma lógica materialista e perversa que sufoca suas fantasias e sonhos causando a degradação do infante e da infância Com isso mesmo nesse conto produzido para adultos o criador da boneca de pano Emília inovou na maneira de focalizar a infância na postura infantil nas concepções de educação de pedagogia de arte para as crianças e na crítica ao autoritarismo do adulto no processo de educação das crianças Deste modo dentro de sua proposta estética é claro Lobato foi sim um dos mais inovadores e ousados escritores prémodernistas não apenas em busca de progresso social e mental como de mais autonomia e voz para as crianças bem como de liberdade direito ao deleite estético e à imaginação para os infantes Neste sentido o conto Negrinha funciona como um contraponto das aventuras do Sítio do PicaPau Amarelo Dona Inácia patroa da falecida mãe de Negrinha e responsável pela educação da órfã pratica uma espécie de pedagogia noturna opressora e perversa que se contrapõe à pedagogia luminosa libertadora e democrática praticada por Dona Benta e Tia Nastácia responsáveis pela educação dos personagens infantis do Sítio do PicaPau Amarelo Muitos dos saberes apontados por Paulo Freire como imprescindíveis para a prática educativa são denunciados como ausentes na educação dispensada aos infantes no conto Negrinha Por outro lado esses mesmos saberes são focalizados nas posturas das personagens do Sítio do PicaPau Amarelo adultos e crianças educadores e educandos em situações educativas que são verdadeiros exemplos da pedagogia da autonomia posta em prática ficcionalmente anos antes de o mestre Paulo Freire a conceber Segundo Freire ensinar exige respeito aos saberes dos educandos 2001 p 33 No conto Negrinha o narrador entre comovido e indignado denuncia que a menina é a todo tempo A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 317 silenciada humilhada e desprezada pelos adultos Cala a boca diabo LOBATO 2001 p 78 O que ela tem a dizer não interessa aos responsáveis por sua educação A criticidade FREIRE 2001 p 34 portanto que também é um dos saberes necessários à prática pedagógica encontrase ausente do processo educativo opressor imposto a Negrinha já que seu senso crítico não é desenvolvido no conto mas reprimido Como ensinou Paulo Freire não há docência sem discência a postura assumida pelo educador implicará automaticamente numa postura de discente que pode conservar em si o gosto pela rebeldia a curiosidade a capacidade de arriscarse de aventurarse FREIRE 2001 p 28 grifos nossos como ocorre com os personagens do Sítio do PicaPau Amaelo ou uma inclinação para a repetição bancária como desejava D Inácia Desta forma a pedagogia da autonomia executada por Dona Benta contrasta com a educação bancária e opressora aplicada pela D Inácia senhora de escravos e mestra na arte de judiar de crianças Enquanto isso a avó e a empregada idosa oferecem liberdade e até se identificam com os comportamentos e posturas infantis rompendo com muitas regras e paradigmas sociais em parte pelo afastamento que o Sítio espécie de refúgio oferece O final das fábulas e a costumeira moral da história são sempre discutidos e problematizados por Pedrinho Narizinho Emília Visconde e os outros personagens do Sítio do PicaPau Amarelo de forma que a criança reflita pense e critique sempre tudo o que lhe é proposto nunca acatando nada passiva e acriticamente No Sítio Dona Benta não apenas escuta o que as crianças têm a dizer como estimula a autonomia a criatividade dos infantes e permite que discordem dos finais das histórias desenvolvendo uma educação libertadora estimulando a leitura a pesquisa a experimentação e o olhar crítico É o que se percebe neste fragmento José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 318 em que Narizinho e Emília protestam contra o final da fábula A cigarra e as formigas Esta fábula está errada gritou Narizinho Isso não protestou Emília e Dona Benta aceitou a objeção LO BATO 1964 p 14 Mas se há por vezes um relativo caráter didático em várias obras de Monteiro Lobato devido muito ao fato de resgatar e trabalhar com a fábula texto irremediavelmente moralizante também são sempre reconhecidos o direito ao prazer a necessidade do deleite estético e a importância do desenvolvimento da imaginação para a formação de indivíduos inteiros e íntegros como se observa na opinião da Emília sobre qual seria melhor o útil ou o belo Acho melhor os dois encangados assim como uma espécie de banana inconha Útil e belo ao mesmo tempo Não só na fala da boneca como também no título da fábula O Útil e o Belo a dupla articulação dos seres e das obras humanas ou da própria obra de arte fica reconhecida como inerente à existência material presente na natureza e na condição humana e em tudo o que o homem faz As coisas se dividem entre úteis eou belas nesse conto como observa o veado personagem da fábula que se divide entre o orgulho de seus formosos chifres e a utilidade de suas pernas finas velocíssimas LOBATO 1964 p 64 grifos nossos O direito à fruição estética e ao brinquedo bem como a necessidade de desenvolver a imaginação são defendidos em muitas obras de Monteiro Lobato apontando a importância do caráter lúdico da literatura e da arte infantil Prova disso é que no Sítio do PicaPau Amarelo brinquedos e brincadeiras fazem parte do cotidiano personagens são animais Rabicó e Quindim e bonecos de pano e de sabugo de milho confeccionados pelos adultos Emília e Visconde de Sabugosa com quem adultos e crianças conversam e convivem de forma fantasiosa e democrática Os adultos libertam a imaginação portanto para que se desenvolva melhor a criatividade dos infantes A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 319 É reconhecido na obra de Lobato que não apenas o objetivo pedagógico deve nortear a arte destinada às crianças e adolescentes que carecem de deleite estético também ou sobretudo Exemplo disso é a defesa da música da cigarra e o combate à avareza feito pelo narrador e pelos personagens do Sítio do PicaPau Amarelo após a audição da fábula A cigarra e as formigas quando voltou a primavera o mundo apresentava um aspecto mais triste É que faltava na música do mundo o som estridente daquela cigarra morta por causa da avareza da formiga e depois gritou Narizinho Formiga má como essa nunca houve LOBATO 1964 p 14 No conto Negrinha também é reconhecida a necessidade do brinquedo da brincadeira e do desenvolvimento da imaginação e da criatividade já que diferentemente do que ocorre no Sítio a carência de recursos e de atividades lúdicas não só prejudicam o desenvolvimento da personagem título como deprimemna levando a à morte depois do definhamento como se observa nos fragmentos a triste criança encorujouse no cantinho de sempre e Como seria bom brincar refletiu com suas lágrimas num canto a dolorosa martirzinha que até ali só brincara em imaginação com o cuco mas percebeu nesse dia da boneca que tinha uma alma Divina eclosão Surpresa maravilhosa do mundo que trazia em si e que desabrochava afinal como fulgurante flor de luz LOBATO 2001 p 8183 Por outro lado o contato com o brinquedo a brincadeira proibida e o exercício da imaginação antes reprimida favorecem o desenvolvimento das potencialidades da menina fazem desabrochar nela potencialidades imaginativas e o sorriso esperançoso tão ressaltados por Paulo Freire como necessários à formação integral do indivíduo FREIRE 2001 p 80 Era de êxtase o olhar de Negrinha Nunca vira uma boneca e nem sequer sabia o nome desse brinquedo José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 320 Mas compreendeu que era uma criança artificial LOBATO 2001 p 82 Mas a nova proibição que interrompe o processo de desenvolvimento iniciado levaa não apenas à retomada do processo de atrofia mas a um severo e novo processo de definhamento causado pela depressão pelo desencanto pela desesperança e pela frustração de ter conhecido o prazer e de têlo perdido Aquele dezembo de férias luminosa rajada de céu tre vas adentro do seu doloroso inferno invenenaraa Brincara ao sol no jardim BrincaraAcalentara dias seguidos a linda boneca loura tão boa tão quieta a dizer mamã a cerrar os olhos para dormir Vivera rea lizando sonhos da imaginação Desabrocharase da alma Morreu na esteirinha rota abandonada de todos como um gato sem dono Jamais entretanto alguém morreu com maior beleza O delírio rodeoua de bo necas E de anjosE bonecas e anjos remoinha vamlhe em torno numa farândola do céu Sentiase agarrada por aquelas mãozinhas de louça abraçada rodopiada LOBATO 2001 p 83 grifos nossos Negrinha sofre de mal semelhante ao que Inês nas Trovas à morte de Dona Inês de Castro de Garcia de Resende definiu como A minha desaventura não contente de acabarme por me dar maior tristura me foi pôr em tanta altura para dalto derribarme ou como no poema lírico de Camões Perdigão perdeu a pena em que o pássaro subiu a um alto lugar mas achouse desasado e de puro penado morre mais ou menos como morrerá Negrinha depois de sentir o doce sabor da brincadeira e ser novamente proibida de brincar percebeu nesse dia da boneca que tinha uma alma Sentiuse elevada à altura de ente humano Cessara de ser coisa e doravante serlheia impossível viver a vida de coisa LOBATO 2001 p 83 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 321 A necessidade de imaginação e da brincadeira no processo de construção de conhecimentos bem como a carência de afeto de companhia e de convívio social ficam explícitos como principais motivos da depressão e do definhamento da criança abandonada A obra de Lobato se ocupa de libertar a criatividade sem esquecer de aguçar o senso crítico e de conduzir à reflexão sobre os valores por trás dos textos lidos criticados a todo tempo pelos personagens do sítio Deste modo concretiza o que o mestre Paulo Freire pregaria mais tarde A necessária promoção da ingenuidade à criticidade não pode ou não deve ser feita à distância de uma rigorosa formação ética ao lado sempre da estética FREIRE 2001 p 36 D Benta estimula o senso crítico dos infantes sem abrir mão da criatividade e da fruição estética e sem deixar de buscar o desenvolvimento de valores éticos A liberdade gozada pelos educandos do Sítio contrasta com a prisão em que Dona Inácia encerra Negrinha e as torturas que pratica contra a pequena órfã Negrinha imobilizavase no canto horas e horas Cruzava os bracinhos a tremer sempre o susto nos olhos E o tempo corria LOBATO 2001 p 79 Desamorosa e autoritária a educadora oprime e castiga não colaborando em nada para o desenvolvimento das potencialidades da educanda mas pelo contrário imobilizaa impedindoa de desenvolver sadiamente todos os seus potenciais físico psicomotor emocional social e intelectual Com isso contraria o que Paulo Freire concebeu como recomendável e que D Benta põe em prática no Sítio do PicaPau Amarelo Ao invés de dialogar com a criança e os demais personagens para tentar resolver problemas e impasses surgidos durante o diaa dia Dona Inácia prefere apelar para a tortura física e psicológica aplicando terríveis castigos para reprimir qualquer manifestação de descontentamento por menor que seja É o que se percebe nesta José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 322 passagem em que a patroa deleitase durante uma sessão de tortura à pequena órfã imobilizada só porque a menina chama de peste menos ofensivo dentre os xingamentos que constantemente usam contra a criança uma empregada que lhe rouba a carne do prato durante uma refeição Quando o ovo chegou a ponto a patroa chamou Venha cá Negrinha aproximouse Abra a boca Negrinha abriu a boca como o cuco e fechou os olhos A patroa então com uma colher tirou da água pulan do o ovo e zás na boca da pequena E antes que o ur ro de dor saísse suas mãos amordaçaramna até que o ovo arrefecesse Negrinha urrou surdamente pelo nariz Esperneou Mas só Nem os vizinhos chegaram a per ceber aquilo LOBATO 2001 p 81 É evidente o prazer e o deleite que a tortura calculada planejada e preparada minuciosa e friamente traz a essa personagem como exercício e confirmação de um poder ilimitado incontestável e irrefreável Veio o ovo Dona Inácia mesma pôlo na água a ferver e de mãos à cinta gozandose na prelibação da tortura ficou de pé uns minutos à espera Seus olhos conten tes envolviam a mísera criança que encolhidinha a um canto aguardava trêmula alguma coisa de nunca visto LOBATO 2001 p 81 Para asseverar a covardia da tortura as características físicas psicológicas e sócioeconômicas da menina contrastam radicalmente com as da patroa poderosa no porte na condição financeira e no status contando com a conivência de autoridades inclusive religiosas e com a vista grossa da sociedade Enquanto a patroa é gorda rica dona do mundo amimada dos padres com lugar certo na igreja e camarote de luxo reservado no céu a menina é magra A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 323 atrofiada com olhos eternamente assustados órfã aos quatro anos como gato sem dono levada a pontapés chorando de fome quase sempre ou de frio desses que entanguem pés e mãos e fazemnos doer LOBATO 2001 p 7879 Para o narrador parte da intolerância da patroa e da sua revolta contra a menina se devem ao recalque por não ter filhos como se pode notar no seguinte fragmento Ótima a Dona Inácia Mas não admitia choro de criança Ai Punhalhe os nervos em carne viva Viúva sem filhos não a calejara o choro da carne da sua carne e por isso não suportava o choro da carne alheia LOBATO 2001 p 7879 Não se trata apenas de falta de prática ou de falta de admiração por crianças nem de indisposição para a maternidade mas de um somatório de tudo isso à uma frustração já que com suas sobrinhas da sua genealogia demonstra admiração maternal paciência e alegria a sinhá riase também LOBATO 2001 p 81 No entanto ainda que esse recalque intensifique a repulsa e a ação da patroa contra a menina não se resumem ao recalque os motivos da violência de Dona Inácia já que antes da menina muitos outros são torturados e mortos pela dama de grandes virtudes apostólicas como é chamada Dona Inácia pelos padres e ironicamente pelo narrador A excelente Dona Inácia era mestra na arte de judiar de crianças Vinha da escravidão fora senhora de es cravos e daqueles ferozes amiga de ouvir cantar o bolo e estalar o bacalhau Nunca se afizera ao regime novo essa indecência de negro igual ao branco e qualquer coisinha a polícia Qualquer coisinha uma mucama assada ao forno porque se engraçou dela o senhor uma novena de relho porque disse Como é ruim a sinhá LOBATO 2001 p 81 As únicas ocupações de Dona Inácia são a tortura e o exercício do poder que impedemna de mergulhar na abulia e na acídia seu José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 324 único remédio contra o tédio Prova disso é que essa senhora que possui uma tropa de servas em todo o conto só se levanta do seu trono para presidir sessões de tortura normalmente contra a menina Nem para receber visitas levanta Entaladas as banhas no trono uma cadeira de balanço na sala de jantar ali bordava recebia amigos e o vigário dando audiências e discutindo o tempo LOBATO 2001 p 78 Tudo isso torna Dona Inácia incapaz de ser uma educadora afetuosa incapaz de exercer uma pedagogia da esperança e para a autonomia dos educandos como pregou Freire e antes dele pregava já Lobato e sua obra infantojuvenil através das figuras de Dona Benta e Tia Nastácia Diferentemente da exsenhora de escravos mas sem perder sua autoridade de mediadora do processo educacional Dona Benta ensina o valor da liberdade dando liberdade aos educandos Vocês sabem tão bem o que é liberdade que nunca me lembro de falar disso LOBATO 1964 p 87 Desta forma demonstra que a competência e o rigor de que o professor não deve abrir mão no desenvolvimento do seu trabalho não são incompatíveis com a amorosidade necessária às relações educativas FREIRE 2001 p 11 A maneira democrática e igualitária com que Dona Benta trata os personagens do Sítio crianças bonecos animais funcionários e convidados contrasta com o autoritarismo e a desigualdade de tratamentos dispensados aos demais personagens do conto Negrinha Enquanto as sobrinhas da patroa são tratadas como princesinhas e são mimadas Negrinha é humilhada e desprezada assim como os empregados que ajudam a torturar a pequena órfã ao mesmo tempo em que sofrem também os maus tratos da patroa A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 325 Certo dezembro vieram passar férias com Santa Inácia duas sobrinhas suas pequenotas lindas meninas lou ras ricas nascidas e criadas em ninho de plumas Do seu canto na sala do trono Negrinha viuas irrom perem pela casa como dois anjos do céu alegres pu lando e rindo com a vivacidade de cachorrinhos novos Negrinha olhou imediatamente para a senhora certa de vêla armada para desferir contra os anjos invasores o raio dum castigo tremendo Mas abriu a boca a sinhá riase também Quê Pois não era crime brincar Estaria tudo mudado e findo o seu inferno e aberto o céu No enlevo da doce ilusão Negrinha levantouse e veio para a festa infantil fasci nada pela alegria dos anjos Mas a dura lição da desigualdade humana lhe chicoteou a alma Beliscão no umbigo e nos ouvidos ao som cruel de todos os dias Já para o seu lugar pestinha Não se enxerga LOBATO 2001 p 81 No conto Negrinha classificado por Bosi como um exemplo do pendor para a militância de um intelectual que empunhou a bandeira do progresso onde reponta com maior insistência o documento social e a vontade de doutrinar e reformar 2006 p 215217 notase forte comoção para com os dramas dos menos favorecidos mas também é clara a crítica ao tratamento dispensado aos infantes pobres ou ricos que nas duas situações é contestável e desqualificado Com maus tratos às crianças pobres e mimos excessivos às ricas a educação não apenas reflete e duplica uma hierarquia social injusta como também trabalha pela sua perpetuação legitimando o direito do dominador à exploração e à perversidade e também endossando e estimulando uma postura passiva e resignada no oprimido No conto Negrinha aos filhos e filhas das camadas menos favorecidas representados pela personagem título é destinada uma educação opressora para a subserviência mansa O corpo de Negrinha era tatuado de sinais cicatrizes vergões Batiamlhe os da José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 326 casa todos os dias houvesse ou não houvesse motivo LOBATO 2001 p 79 Dela é exigida passividade e conformação sempre pela excelente dona Inácia Braços cruzados já diabo LOBATO 2001 p 79 À criança pobre é negado o inquietante direito à imaginação ao lazer ao deleite estético e ao desenvolvimento do senso crítico que depois poderiam resultar em inconformação e atentado contra o poder ou o poderoso e a hierarquia social Assim o potencial transformador e revolucionário da menina das classes menos favorecidas é extinto O potencial revolucionário por trás de uma educação libertadora como a de Dona Benta é evitado por Dona Inácia O drama de Negrinha representa uma situação indesejável na educação não apenas para muitos narradores de contos de Lobato mas também para Paulo Freire que mais tarde combaterá a pedagogia tradicional educação exige curiosidade alegria esperança e a compreensão de que a educação é uma forma de intervenção no mundo FREIRE 2001 p 110 Negrinha por culpa de seus educadores acaba se tornando passiva e abúlica A criança antes vivaz e alegre uma vez violentada física emocional e psicologicamente é assassinada não somente no sentido literal da palavra mas também assassinada em seus potenciais criativos e intelectuais encarnando uma das configurações indesejáveis de cidadão para Freire O definhamento e a morte da menina simbolizam a morte dos seus potenciais revolucionários e a perpetuação do mesmo cenário social no conto Narizinho Pedrinho Visconde e Emília mesmo estes últimos sendo bonecos reforçam uma postura possível e desejável da criança contestadora transgressora inquieta e revolucionária inconformandose com a moral de muitas fábulas recriando os finais de muitas histórias defendendo até as últimas conseqüências seu direito de escolha seguindo suas opiniões e convicções discordando A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 327 francamente e enfrentando os adultos em defesa de seus pontos de vista A boneca livre das sanções e regras impostas às crianças criada num ambiente afetuoso e libertador exerce direitos que são tirados da personagem título do conto Negrinha As crianças protegidas por um ambiente familiar amistoso e provocador ao contrário do ambiente hostil em que vai crescendo Negrinha Entretanto mesmo submetida a um processo educativo opressor e violento Negrinha encontra mecanismos por algum tempo para preservar sua integridade cultivar sua criatividade e providenciar o lazer que lhe são negados no íntimo ou aproveitando as poucas oportunidades que se lhe apresentam É o que se percebe neste fragmento em que a menina usa a imaginação e se diverte como pode dentro do cativeiro apreciando o cuco do relógio o relógio batia uma duas três quatro cinco horas um cuco tão engraçadinho Era seu divertimento vêlo abrir a janela e cantar as horas com a bocarra vermelha arrufando as asas Sorriase então por dentro feliz um instante LOBATO 2001 p 79 A imobilização de mais de cinco horas não é capaz de imobilizar a mente de Negrinha nem de esterilizar sua criatividade por enquanto Essa postura demonstra a possibilidade que sempre há de um educando desenvolverse e libertarse contrariando um processo educativo bancário e opressor que lhe é imposto Mas no conto os mecanismos de tortura de silenciamento de esterilização e de eliminação dos potenciais transformadores atingirão requintes crescentes de crueldade até que Negrinha não resiste mais e deprimida entregase à abulia e sucumbe à tristeza Isso demonstra a dificuldade de um educando resistir a uma educação opressora ainda que haja a possibilidade As figuras adultas do sítio são transgressoras e escapam dos padrões de comportamento tradicionais para o adulto enquanto as do conto Negrinha encarnam paradigmas tradicionais de José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 328 comportamento social Se ensinar exige a corporeificação das palavras pelo exemplo FREIRE 2001 p 28 tanto num caso como noutro o exemplo endossa as ações No Sítio os adultos também embarcam nas aventuras aceitam as opiniões e divergências das crianças são tolerantes Dona Benta explicou que a sabedoria popular é uma sabedoria de dois bicos Muitos ditados são contraditórios LOBATO 1964 p 116 Assim dando mais um exemplo de saber necessário à prática da pedagogia da autonomia os educadores do sítio conscientes do inacabamento do mundo e de si mesmos aceitam o saudável risco o novo e rejeitam qualquer forma de discriminação FREIRE p 39 tratando bonecos e netos sem distinção e tratando empregados com respeito Bem como pregará mais tarde o educador e pedagogo da autonomia e da esperança Paulo Freire Dona Benta olha carinhosamente a entrada e saída de personagens de diferentes épocas idades meios culturas raças nacionalidades e credos promovendo aquilo que Abrimovich chamou de misturança despreconceituosa de adultos crianças bichos gangsters professores padres etc 2005 p 58 Ao contrário a preconceituosa D Inácia do conto Negrinha diminui e humilha empregados e aqueles que são diferentes de sua raça e de sua condição social dando o exemplo de dominação dona do mundo amimada dos padres de discriminação social e racial Aliás o exemplo geral dado pela sociedade na ficção é o da paparicação ao rico e humilhação ao pobre legitimando o poder e a perversidade do rico e a passividade e subserviência mansa do pobre como se observa no tratamento que os padres dispensam a D Inácia Muitos representantes da igreja aparecem inclusive como legitimadores e perpetuadores duma hierarquia social injusta gozando das benesses que o rico pode lhe oferecer em troca de fazer vista grossa para seus desmandos e explorações dama de grandes virtudes apostólicas esteio da religião e da moral dizia o reverendo A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 329 O reverendo reverencia assim ao dinheiro e ao rico e não a Deus negligenciando os pobres oprimidos ao invés de defendêlos como pedem os ensinamentos bíblicos Quem dá aos pobres empresta a Deus LOBATO 2001 p 81 clichê que repetem de forma hipócrita enquanto espancam a criança pobre e exploram os empregados Por outro lado D Benta não só respeita os empregados e exaltálhes os gestos e saberes como também reconhece o tão pregados por Freire valor da cultura popular e da assunção da identidade cultural 2001 p 46 Mas sempre de forma crítica e nunca ingenuamente ou de forma ufanista levando as crianças a não se envergonharem de suas raízes mas refletirem sobre ela e vivenciaremna D Benta explicou um diz Quem espera sempre alcança e outro Quem espera desespera Conforme o caso a gente escolhe um ou outro e quem ouve elogia a sabedoria da sabedoria popular LOBATO p 116 grifos nossos Além disso na passagem D Benta usa seu bom senso e ensina que a vida e as decisões humanas exigem bom senso exatamente como Paulo Freire 2001 p 67 pregará mais tarde e como se pode observar em diferentes passagens espalhadas pela obra de Lobato como esta outra Devemos fazer o que nos parece mais certo mais justo mais conveniente E para nos guiar temos a nossa razão e a nossa consciência LOBATO 1964 p 30 Como se observa no fragmento acima e nos anteriores a vovó de Narizinho crê bem antes de Freire formular suas teorias que ensinar não é transferir conhecimento mas criar possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção FREIRE 2001 p 52 grifos nossos por isso estimula o diálogo crítico e insubordinado com a tradição e não a impõe de maneira arbitrária como faz a patroa opressora de Negrinha D Benta não apenas ensina como também aprende com as reflexões dos personagens infantis do sítio como numa José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 330 passagem em que depois de umas reflexões da Emília sobre a brutalidade do mundo Dona Benta calouse pensativa LOBATO 1964 p 195 A educação mediada por D Benta é altruísta inclusiva esperançosa e alegre apostando sempre na democracia na libertação na ação no crescimento individual e social através da participação ativa de todos em todas as decisões e projetos empreendidos no Sítio incluindo infantes ou adultos pobres ou ricos todos ativos esperançosos e alegres como a educação e as relações travadas Essa educadora aposta na diferença e na diversidade como engrandecedores e enriquecedores não apenas do processo ensino aprendizagem como também de toda a sociedade e da nação brasileira Por outro lado no conto Negrinha não apenas a dominadora Dona Inácia oprime como muitos dos próprios oprimidos ignorantes deseserançosos e ressentidos maltratamse uns aos outros Conformados com sua condição e sem perspectivas mínimas de transformação do quadro de dominação endossam o processo de exploração e operam pela opressão de outros subalternos torturando a menina e corroborando as atitudes da déspota exploradora Exemplos como esse aliás de empregados torturando ou denunciando a menina para a Dona Inácia são fartos no conto Ao invés de protegeremse uns aos outros e uniremse contra o opressor auxiliamno legitimandolhe o poder e comprovando que suas técnicas de opressão de tortura e de exploração são terrivelmente eficientes A menina Negrinha assim parece condenada não apenas a viver para sempre oprimida e humilhada pela patroa como também condenada a repetir o perverso círculo de relações destrutivas entre os personagens subalternizados por Dona Inácia no conto inclusive xingando uma empregada que lhe agride e humilha de peste A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 331 LOBATO 2001 p 80 menor dos xingamentos dirigidos a ela Esse gesto representaria bem a probabilidade ou a possibilidade da repetição eterna do ciclo de dominação se a personagem não tivesse optado pela morte como saída para dar fim à vida oprimida e triste que levava Deixandose morrer a menina manifesta sua escolha prefere morrer a existir num meio perverso em que às crianças pobres são negados os mínimos direitos de brincar de imaginar de se expressar e de se alegrar onde existir já parece um favor feito pelos dominadores O gesto desesperado da menina mas também insubordinado aponta senão para uma possibilidade de combate pelo menos para o desejo da menina e do narrador comovido de eliminação dessa pedagogia perversa e dessa educação amansadora imposta à criança sobretudo à das classes pobres Além disso esse gesto demonstra já uma possibilidade de resistência por menor que seja portanto mais do que um simples desejo de mudança dessa pedagogia tradicionalista e da hierarquia social rígida pautada na exploração e na opressão que ela ajuda a perpetuar Um pequeno gesto mas um passo rumo à transformação dado por uma criança que representa o novo Assim a sua morte da menina demonstra não apenas a possibilidade da transformação mas a dificuldade assustadora e os inúmeros sacrifícios exigidos para que um desejo de transformação social se concretize bem como a impossibilidade de um indivíduo sozinho vencer essas dificuldades e barreiras Por outro lado a união e o trabalho em equipe observados no Sítio do PicaPau Amarelo promovem a transformação que Negrinha não poderia conseguir sozinha e representam a materialização de seu sonho de comunidade solidária democrática e alegre confirmando a possibilidade da mudança José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 332 Metaforicamente Dona Inácia e a educação tradicional pautada em castigos físicos estão condenadas felizmente já que ela não tem filhos e ninguém que lhe perpetue o legado de terror e tortura Mas as sobrinhas de Dona Inácia que não são diretamente educadas por ela para a tortura já que aparecem só em férias notam diferenças na aparência e no comportamento da menina pobre e também tratamna como uma coisa um brinquedo a bobinha da titia LOBATO 2001 p 84 como faz a tia porém mais sutil e menos violentamente Isso demonstra que provavelmente as duas duplicarão o papel de Dona Inácia de forma menos sangrenta desfrutando de benesses entretanto não criadas como a tia em um regime escravocrata e para a prática de torturas Em outras palavras seus mecanismos de dominação serão mais sutis e menos sangrentos Enquanto isso Dona Benta é multiplicadora da pedagogia da autonomia e de cidadãos livres e atuantes tendo netos muitos discípulos e assistentes que lhe perpetuem a pedagogia da autonomia e também pratiquem depois dela uma educação amorosa e libertadora em prol do progresso do engajamento e da democracia REFERÊNCIAS BOSI Alfredo História Concisa da Literatura Brasileira 43ª Edição São Paulo Cultrix 2006 COELHO Nelly Novaes Literatura Infantil teoria análise didática São Paulo Moderna 2000 FREIRE Paulo Pedagogia da Autonomia Rio de Janeiro Paz e Terra 2001 LOBATO José Bento Monteiro Fábulas São Paulo Brasiliense 1964 Negrinha In MORICONI Ítalo Os Cem Melhores Contos Bra sileiros do Século XX Rio de Janeiro Objetiva 2001 p 7884 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 333 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs MICHELLI Regina Silva A Fábula e suas Armadilhas In 16º COLE Congresso de Leitura do Brasil CampinasSão Paulo Unicamp 2007 SILVA Vitor Manuel de Aguiar e Teoria da Literatura 3 ed Portu guesa Coimbra Martins Fontes 1976 SOARES Angélica Gêneros Literários 3 ed São Paulo Ática 2001 ZILBERMAN Regina et alii Literatura Infantil autoritarismo e eman cipação São Paulo Ática 1987 ABRAMOVICH Fanny Literatura infantil gostosuras e bobices São Paulo Scipione 2005 LAJOLO M e ZILBERMAN R Literatura infantil brasileira história e histórias São Paulo Ática 1988 MARIN Alda Junqueira Educação Arte e Criatividadesl Pioneira 1976 PONDÉ Glória A arte de fazer artes Rio de Janeiro Editorial Nórdi ca 1985 334 A ESCOLA NA LITERATURA INFANTOJUVENIL PNBE1999 Fátima de Oliveira Ferlete Célia Regina Delácio Fernandes INTRODUÇÃO O presente trabalho tem como pergunta norteadora a questão como é construída a imagem de escola nas obras de literatura infantojuvenil que compõem o acervo do Programa Nacional Biblioteca da Escola de 1999 Propomos a análise de tal tema porque notamos uma grande quantidade de obras de literatura infantojuvenil do Programa Nacional Biblioteca da Escola PNBE que tematiza ou retrata situações e cenários vividos na escola Diante da recorrência e importância do tema escolar esta pesquisa pretende contribuir em dois aspectos social e acadêmico No caráter social pretendemos estudar como a escola é representada pela literatura infantojuvenil procurando possíveis imagens desta instituição se positiva ou negativa para compreender as relações entre a produção literária destinada ao público de menor idade e a escola Em relação à relevância acadêmica temos como objetivo contribuir com o avanço das pesquisas nessa área pois de acordo com Fernandes 2007 ainda existe um número pequeno de estudos que mostram como a literatura vê a escola Dadas a complexidade e a amplitude do tema na literatura infantojuvenil foi necessário um recorte a partir da escolha de um corpus significativo de obras Em vista disso as obras selecionadas para esta pesquisa pertencem ao Programa Nacional Biblioteca da Escola PNBE1999 adquiridas com as ações do governo federal A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 335 cujo objetivo é a distribuição de acervos em escolas públicas do Brasil e a promoção de políticas de incentivo à leitura Para receber as coleções de obras de literatura infantojuvenil no entanto um dos requisitos era atender escolas com 150 ou mais alunos de 1a a 4a séries ou no caso de algum município não atender a este requisito contemplouse aquelas com maior número de estudantes Fernandes 2007 p65 comenta Tornase necessário esclarecer que enquanto as pro pagandas e os documentos oficiais anunciam que ne nhum município foi excluído pelos critérios de atendi mento as escolas com um número menor do que o e xigido acabam sendo Ainda passa despercebido um importante critério presente na resolução do MECFNDE no 008 de 23 de março de 1999 que exclui do aten dimento as escolas já contempladas com acervos compostos pelos títulos relacionados na Portaria no 652 de 16 de maio de 1997 Ou seja embora os a cervos sejam diferentes não são cumulativos na mes ma escola O acervo do PNBE1999 é formado por cento e dez títulos sendo 106 selecionados pela Fundação Nacional do Livro Infanto juvenil FNLIJ e 4 indicados pela Secretaria de Educação Especial do MEC SEESP comprados pelo Ministério da Educação com recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação FNDE para formar o acervo básico das bibliotecas de 36 mil escolas públicas brasileiras de 1a a 4a série FERNANDES 2007 p65 Ao compor o acervo houve a preocupação de reunir obras dos mais diversos gêneros literários A seleção do PNBE1999 engloba gêneros como poesias contos e crônicas novelas peças teatrais textos de tradição popular ficção e não ficção fábulas contos de fadas livros de imagens literatura policial e romance Fernandes e outros 2001 p19 afirmam Esses livros falam de diferentes coisas têm tamanhos diferentes são escritos em diferentes estilos Uns têm séculos de idade outros foram publicados recentemen José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 336 te A maior parte é brasileira mas alguns provêm de diferentes partes do mundo Em suas centenas de pá ginas delineiase uma amostra bem ampla do que hoje há de melhor para a leitura no acervo encontramse biografias livros de poema clássicos lendas histórias para rir e histórias para chorar para brincar e para a prender São histórias dos muitos brasis que vivem no Brasil histórias de índio e de caipora de branco e de negro de bicho e de planta histórias de pai de mãe de pai novo e de mãe nova de avô e de avó e até de bisavó histórias de letras e de números de reis e de fadas de meninas e meninos de professores e de alu nos Enfim há de tudo Esta preocupação em abordar obras dos mais diferentes gêneros literários se deve segundo Serra 2003 p 73 a preocupação de que o currículo em geral está desprovido de oportunidades de leituras variadas que possibilitem desenvolver o exercício intelectual que promovam perguntas relacionem fatos e agucem a curiosidade Cunha 1995 p6 afirma que o fundamental é que o acervo apresente a maior diversidade possível de tendências dificuldades formas tamanhos gêneros Também a Fundação Nacional do Livro Infantojuvenil 2007 comenta A variedade do acervo se expressa por meio dos vários temas tratados pelas linguagens e estilos característicos de cada autor pelos tipos de técnicas das ilustrações dos diferentes projetos gráficos do formato de cada livro das várias expressões culturais nacionais e internacionais pela variedade de escritores e ilustradores abarcando os clássicos e contemporâneos brasileiros e estrangeiros além de várias editoras especializadas Na presente seleção foram contempladas 41 editoras 87 escritores nacionais 19 estrangeiros 64 ilustradores nacionais 16 ilustradores estrangeiros e 15 tradutores Assim tanto crianças e jovens quanto adultos em contato com esta diversidade tem maiores possibilidades de escolhas e direito à opinião pois se tiver pouca opção menor será a a possibilidade de descoberta e de crescimento CUNHA 1995 p7 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 337 Para a escolha das obras selecionadas pelo PNBE segundo Fernandes 2007 p66 a FNLIJ mostra que existe a necessidade de se levar em consideração que estas devem oferecer e despertar nos alunos o prazer e o interesse pela leitura por meio da qualidade literária e gráfica valorizando o livro que possua a edição texto e imagem articulados A escolha do acervo além de se basear na qualidade das obras também considera as diretrizes expostas nos documentos oficiais tais como os Parâmetros Curriculares Nacionais a Declaração Universal dos Direitos Humanos a Declaração dos Direitos da Criança a Constituição Brasileira e o Estatuto da Criança e do Adolescente FERNANDES 2007 p 67 Com a conclusão do levantamento de dados e dos critérios utilizados para a escolha de obras selecionamos dezessete títulos em que o principal objetivo é analisar como a escola é construída nessas obras O corpus selecionado para esta pesquisa é constituído pelos seguintes títulos A casa da madrinha de Lygia Bojunga Nunes Alice no país das maravilhas de Lewis Carroll A senha do mundo de Carlos Drummond de Andrade A televisão da bicharada de Sidónio Muralha Atrás da porta de Ruth Rocha Bisa Bia Bisa Bel de Ana Maria Machado CartãoPostal de Luis Raul Machado Coisas de menino de Eliane Ganem De surpresa em surpresa de Fanny Abramovich Lucas de Luís Augusto Gouveia Minhas memórias de Lobato de Luciana Sandroni O escaravelho do diabo de Lúcia Machado de Almeida O gênio do crime de João Carlos Marinho O homem que calculava de Malba Tahan O menino poeta de Henriqueta Lisboa O rei da fome de Marilda Castanha e Serafina e a criança que trabalhava de Jô Azevedo Iolanda Huzak e Cristina Porto José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 338 É importante notar que o acervo do PNBE de 1999 é dotado de uma particularidade Enquanto os acervos de outros anos são marcados por uma padronização do projeto gráfico e pela mesma data de impressão este acervo foi adquirido pelo governo da maneira como as editoras lançaram esses livros no mercado por isso as datas de publicação não são necessariamente de 1999 Algumas obras analisadas no entanto são de data posterior a 1999 pois obtivemos a informação em algumas das escolas pesquisadas de que pelo estado precário muitas destas foram descartadas ou não foram recebidas Desse modo para não prejudicar a pesquisa optamos por englobálas juntamente com as outras Neste estudo temos como objetivo estudar a representação da escola nas obras do PNBE1999 analisando as seguintes categorias escola pública ensino fundamental localização das escolas classe social espaço físico e estrutura biblioteca escolar importância do estudo e perfil das escolas A ESCOLA PÚBLICA A escola enquanto instituição onde se espera que toda a população tenha acesso além de ser um meio social presente na dia adia desta também veicula valores que podem convergir ou conflitar com os dos educandos Como já afirmado em Fernandes e outros 2001 a diversidade presente nas obras explicita o compromisso de formar os seus leitores dentro dos princípios democráticos BRASIL 1998 p63 O espaço escolar caracterizase como um espaço de di versidade por princípio O caráter universal do ensino fundamental definido em lei torna a escola um ponto de convergência de diversos meios sociais traz para seu seio os mais variados valores expressos na diversi A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 339 dade de atitudes e comportamentos das pessoas que a integram BRASIL 1998 p75 A imagem predominante no acervo do PNBE1999 é da escola pública como podemos constatar em Azevedo Huzak Porto 2000 Ganem 1999 Marinho 2000 e Nunes 1999 Em alguns casos esta informação aparece de forma implícita no texto sendo o leitor responsável pela dedução como por exemplo em Serafina e a criança que trabalhava Hoje eu cheguei em casa às oito da manhã e dormi só até meiodia pois antes de almoçar e ir para a escola eu ainda tinha de fazer a lição de casa AZEVEDO HUZAK PORTO 2000 p29 Nessa obra as autoras não especificam a qual tipo pública ou particular a escola se enquadra Contudo pelo fato de a personagem ter de trabalhar vendendo alguns artigos nas ruas entendemos que ela não teria condições financeiras adequadas para pagar uma escola particular O mesmo se passa no âmbito da história narrada em A casa da madrinha Esta obra mostra a realidade de Alexandre um menino pobre morador de favela e trabalhador que freqüenta a escola por um curto período O menino é obrigado a ajudar na renda familiar vendendo sorvete e amendoim na praia Alexandre saiu da escola Foi vender sorvete em vez de amendoim Era mais pesado de carregar mas pagava mais De noite ficava pensando nos colegas na Professora acabava perdendo o sono NUNES 1999 p41 Percebemos nesta obra que a escola marca profundamente o personagem Alexandre e mesmo quando vai embora e não a freqüenta mais tem seu pensamento fixo nas lembranças por ela produzidas É neste local onde o garoto encontra apoio de uma professora que acredita no potencial de cada aluno e foge do currículo tradicional proporcionando aprendizagem com alegria FERNANDES 2007b p49 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 340 O apreço do personagem pela escola pública também está relacionado à questão da escola como fornecedora de alimentos Pronto garoto agora bota a cuca pra funcionar E Alexandre botou Gostava da escola Davam merenda NUNES 1999 p36 Em Coisas de Menino Ganem 1999 p118 comenta sobre a obrigatoriedade das escolas públicas e da merenda escolar Ah mas já tem tanta escola pública Só não estuda quem não quer E dizer que o pessoal não estuda porque tá de barriga vazia é mentira E escola dá comida não dá Dá me renda escolar não é É obrigatória Pois então O narrador reforça a idéia de um ensino público e gratuito já assegurado na Constituição Federal Desta forma Babette 1980 p32 afirma o ensino público gratuito e obrigatório é visto como a melhor maneira de alcançar uma verdadeira democratização dos estudos Assim a escola deve ajudar o aluno a ser capaz de crescer e produzir A escola em O gênio do crime MARINHO 2000 tem uma representação dual Os personagens Bolacha Pituca e Edmundo têm um poder aquisitivo razoáveis tendo condições durante a investigação sobre a clonagem das figurinhas de pagar o transporte e manter um pequeno acampamento Em vista disso é difícil dizer se a escola que eles freqüentam é pública ou particular Porém grande parte da história se passa em uma favela no colégio fictício chamado de Ateneu Nosso Brasil Às sete horas o filho menor saiu do barraco com uni forme de escola A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 341 Foi para a escola mesmo estuda no Ateneu Nosso Bra sil na Casa Verde Parece que no segundo ano MARI NHO 2000 p52 Em geral ao investigar a representação da escola nas obras verificamos que o acervo dialoga com as diretrizes educacionais da Constituição Federal e dos Parâmetros Curriculares Nacionais mostrando a necessidade de um ensino público gratuito obrigatório e de qualidade em um espaço escolar caracterizado como um espaço que engloba uma grande diversidade cultural e social ENSINO FUNDAMENTAL Em grande parcela das obras analisadas a escola é de ensino fundamental assim como as séries atendidas pelo PNBE Com exceção da obra O escaravelho do diabo de Lúcia Machado de Almeida 1999 p6 que trata da representação do ensino superior Pouco depois do meiodia Alberto chegou da Faculdade de Medicina e foi diretamente para o quarto do irmão a fim de comentar com ele a prova que acabara de fazer Em Castanha 1999 Gouveia 1999 Marinho 2000 Muralha 1997 Rocha 1997 e Sandroni 1997 percebemos com clareza a opção pela tematização do ensino fundamental A narrativa de O rei da fome CASTANHA1999 evidencia que a escola do Reino é de ensino fundamental porque o protagonista precisa ser alfabetizado Desmascarado o rei não teve outra saída ou melhor naquele mesmo dia teve entrada na escola do Reino com direito a matrícula caderno lápis e dever de casa Quanto a Fiel quando soube da boanova sarou rapi dinho pois estava doente era de tanto ver estrago E Vocabulário Está rindo à toa feliz da vida CASTA NHA 1999 sp José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 342 A autora reforça a questão do direito e da obrigatoriedade do ensino para todas as pessoas independente da idade ou condição financeira pois o personagem da obra é o rei que comia livros por não saber ler Em A televisão da bicharada Muralha 1997 torna lúdico o cotidiano escolar Neste poema o autor mostra uma criança realizando suas atividades escolares e com o auxílio do vocábulo menino revela que se trata de um estudante da educação básica E a borboleta para agradecer abriu a sacola e ajudou o menino a fazer os exercícios da escola MURALHA 1997 p30 A obra Lucas de Luis Augusto Gouveia 1999 sp também retrata o ensino fundamental Mateus tem cinco anos e até o ano passado estudava numa escola especial Agora está numa classe aqui mesmo junto de outras crianças e pode aprender com elas Nesta obra notamos ainda a questão da inclusão de alunos portadores de necessidade especial Convém lembrar que conforme mencionamos na introdução o acervo do PNBE1999 possui quatro obras voltadas às crianças portadoras de necessidades especiais que abordam essa temática Atrás da porta ROCHA 1997 p4 descreve mas de forma implícita a escola do ensino fundamental e a importância de contar histórias para a formação do leitor Dona Carlotinha era aquele tipo de avó que todo mundo quer ter Brincava com os netos de teatrinho de acampamento no quintal de amarelinha tocava vio lão cantava e contava histórias E que histórias Dava A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 343 impressão de que ela sabia todas as histórias do mun do Sabese que o personagem Carlinhos estuda em uma escola onde sua avó fora professora por muitos anos e por ela realizar diversas brincadeiras dinâmicas e a contação de história o estudo se torna uma atividade marcante na infância do garoto conduzindoo por um caminho que o levará a um crescimento intelectual Podemos observar que nesta obra a representação de escola é aquela cujas ações pedagógicas são balanceadas não forçando a criança a ser um adulto antes da hora Cabe a escola encontrar um ponto de equilíbrio entre a criança como futuro adulto e a criança como atualmente criança SNYDERS 1993 p 29 Por tudo isso Snyders afirma A convivência com a cultura cultivada que culmina na relação entre o aluno e os mais belos resultados atingi dos pela cultura as grandes conquistas da humanidade em todos os campos desde poemas até descobertas prodigiosas e tecnologias inacreditáveis Alegria cultu ral alegria cultural escolar SNYDERS 1993 p 32 Sandroni 1997 p5 ao descrever Emília e a turma do Sítio do Picapau Amarelo faz alusão à escola de ensino fundamental já que Narizinho e Pedrinho são crianças Por incrível que pareça Emília andava muito quieta Pensava o dia inteiro em que aventura ia se meter desta vez Pedrinho e Narizinho estavam na escola e ela não poderia esperar para aprontar alguma Contudo Marinho 2000 p7 é o autor que mais explicitamente representa o ensino fundamental nas obras analisadas Na Escola Primária Inês Bandeiras o sino anunciou o recreio e o Edmundo saiu voando da classe para encontrar o Pituca no pátio Dessa maneira podemos dizer que o nível de ensino enfocado é o fundamental com a clientela da mesma faixa etária atendida pelo José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 344 PNBE 1999 Nas obras vemos certa recorrência de um ensino diferenciado inovador com professores que buscam colocar os alunos em contato com uma cultura letrada cujos conhecimentos façam sentido no cotidiano destes LOCALIZAÇÃO DAS ESCOLAS Todas as obras do PNBE1999 localizam suas escolas no meio urbano Dentro desse espaço urbano duas obras mencionam a localização de escolas em favelas Ganem 1999 e Marinho 2000 Ganem 1999 p120 mostra o preconceito da sociedade em relação à favela Lembrou de Vera Já tinha até trabalhado em favela uma vez como professora primária O uso da preposição até parece querer dizer que a favela seria o último local onde se pensaria em lecionar Em outro trecho o narrador vai além Passaram por uma escola Ela não sabia que no morro tinha escola GANEM 1999 p127 A favela parece ser o tipo de local onde as pessoas não conseguem encontrar aspectos positivos Observase apenas a violência a venda de drogas mas não vêem que há certas iniciativas geradoras de estímulos positivos como por exemplo desenvolvimento de projetos sociais educacionais e econômicos Marinho 2000 p52 também situa uma das escolas na favela Às sete horas o filho menor saiu do barraco com uniforme de escola Porém aqui não há o ceticismo revelado por Ganem 1999 com relação à localização da escola na favela Mas a instituição descrita por Marinho é o cenário de uma prática ilegal porque é o lugar em que o filho de um homem repassa a lista com as figurinhas a serem clonadas No que tange às escolas rurais em apenas uma obra há menção à vida escolar das crianças ligadas ao trabalho infantil e às A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 345 dificuldades de elas freqüentarem a escola Serafina e a criança que trabalhava Na roça desde cedo as crianças ajudam os pais a plan tar e colher Como os pais não estudaram muitas delas encontram uma dificuldade a mais para ir à escola pois os pais nem sempre acham importante ter estudo E quando acham a escola fica longe Ou então nem exis te escola na região como as crianças de nossas histórias de verdade também ajudam os pais a cuidar das galinhas dos pa tos De vez em quando também ajudam na colheita do café milho Mas eles estudam na escola da ci dade AZEVEDO HUZAK PORTO 2000 p22 Desta forma parece ser possível dizer que é praticamente nulo o número de escolas ficcionais no espaço rural As crianças que moram em zonas rurais quando conseguem estudar estudam na escola da cidade Ou seja não há representação de escola rural no acervo analisado A CLIENTELA ESCOLAR CLASSE SOCIAL Com relação à condição financeira da clientela atendida pelas escolas ficcionais podemos afirmar que de certa maneira oscila entre uma classe baixa e média até pelo fato de estes alunos freqüentarem uma instituição pública Apesar dessa oscilação a descrição de uma classe baixa predomina nos textos analisados No conjunto a classe social dos alunos pobres está problematizada em Abramovich 1998 Azevedo Huzak e Porto 2000 Ganem 1999 Marinho 2000 e Nunes 1999 Jô Azevedo Iolanda Huzak Cristina Porto 2000 p29 retratam a situação de muitas crianças e adolescentes brasileiras o trabalho informal que colabora com o orçamento familiar Daí é só José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 346 canseira o resto do dia Não dá nem pra prestar atenção direito na explicação da professora Nesse fragmento notamos que o trabalho influencia negativamente o desenvolvimento intelectual dos alunos e estes não têm disposição para prestar atenção nas explicações da professora Nunes 1999 assim como Azevedo Huzak Porto 2000 também tematiza o trabalho infantil e a evasão escolar O protagonista Alexandre é obrigado a sair da escola para trabalhar vendendo amendoim e sorvete na praia e depois o personagem vai trabalhar na Avenida Rio Branco parando os táxis para os fregueses Em uma das atividades realizadas pela professora da maleta os alunos deveriam dar uma aula e Alexandre quando escolhido comenta sobre seu trabalho Contudo os pais das outras crianças não entendem esse tipo de aula e reclamam com a direção A Professora explicou que Alexandre só estava contando pros colegas como era o trabalho dele pra todos ficarem sabendo como é que ele vivia NUNES 1999 p 38 A recusa desse tipo de prática na escola é explicada por Babette 1980 Ao mesmo tempo outras experiências e vivencias adquiridas por exemplo por crianças que são obrigadas a trabalhar desde pequenas embora possam conter uma extraordinária riqueza não são levadas em conta pela escola BABETTE 1980 p77 Também Ganem 1999 mostra os alunos pertencentes a uma classe econômica desfavorecida O personagem Olho de Boi menino de rua parece ter mais medo de ir à escola que para a prisão Sei não Olho de Boi ficou pensando Embaralhado Tô cum medo do juiz me mandar pro colégio GANEM 1999 p67 Abramovich 1998 delineia uma família provavelmente de classe baixa Na obra a autora descreve a personagem Camila que ganha um convite de Silvia sua amiga para uma peça teatral com A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 347 fantoches no Teatro Municipal A personagem fica extasiada quando chega ao teatro pois aquilo tudo para ela é novidade mesmo que a mãe tenha tentado lhe explicar como era uma peça com fantoches A coisa mais imponente que já tinha visto na sua vida Daí olhou pra cima Um lustre imenso preso no teto iluminando de levinho o teatro Todo brilhante faiscan te radiante Parecia cristal Um milhão de vezes maior que o globo terrestre que tinha na escola ABRAMOVI CH 1998 sp Mas ao terminar a apresentação Camila faz o seguinte comentário Tadinha da mãe que achava que era parecido com o teatro de fantoches da escola Ela não sabia de nada ABRAMOVICH 1998 sp A representação da clientela escolar em O gênio do crime MARINHO 2000 como já comentado na categoria sobre a escola pública é dual Os protagonistas possuem condições econômicas razoáveis entretanto os filhos do cambista que clona as figurinhas de seu Tomé são pobres e estudam em um colégio na favela onde moram No que se refere à classe social dos alunos há grande recorrência de uma classe baixa e média Porém este fato nos mostra que a condição social influencia em alguns casos na saída destes alunos da escola para contribuírem na renda familiar Mas em geral os estudantes acreditam na escola como forma de ascensão social e se esforçam para vencer na vida A ESCOLA ESPAÇO FÍSICO E ESTRUTURA Um aspecto que merece ser destacado é o fato de que são poucas as descrições do espaço físico e da estrutura das escolas ficcionais presentes no PNBE1999 Encontramos apenas algumas José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 348 alusões em Lisboa 1999 Andrade 1999 Marinho 2000 e Ganem 1999 Em Colégio LISBOA 1999 há uma descrição poética da escola a partir do movimento da fila dos alunos que vai desenhando a arquitetura escolar Colégio Dois a dois dois a dois E a fila serpentina escorrega nas escadas esticase nos corredores projetase nos pátios LISBOA 1999 p39 Outro exemplo é o poema Fruta Furto ANDRADE 1999 que desvia o interesse do prédio escolar para o interesse dos alunos ou seja o que está do lado de fora O poeta rompe com o discurso pedagógico a ação de estudar parece ser recompensada com o convite para furtar jabuticabas Fruta Furto Atrás do grupo escolar ficam as jabuticabeiras Estudar a gente estuda Mas depois ei pessoal furtar jabuticaba ANDRADE 1999 p36 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 349 Também Marinho 2000 insere em sua narrativa a presença do pátio escolar local mais preferido pelas crianças que funciona como um ponto de encontro de alunos das diferentes séries Na Escola Primária Três Bandeiras o sino anunciou o recreio e o Eduardo saiu voando da classe para encon trar o Pituca no pátio p 7 Encontrou o Pituca risonho embaixo do abacateiro do pátio MARINHO 2000 p8 Ganem 1999 mostra em sua obra como o espaço da escola pode ser bem aproveitado em atividades incentivadoras aos alunos No trecho abaixo percebemos um colégio amplo onde professores e direção trabalham em conjunto promovendo a integração e a interdisciplinaridade O filme era pra ser passado na escola na Feira de Arte O colégio dividido em grupos com um trabalho diferen te teatro de fantoche exposição de pintura livro escri to e desenhado conjunto de música com piano bateri a violão e o filme surpresa que o pessoal estava pre parando GANEM 1999 p131 No que diz respeito à biblioteca algumas obras analisadas mostram imagens de biblioteca não escolar Almeida 1999 Marinho 2000 Sandroni 1997 e Tahan 1999 E das cento e dez obras lidas do acervo do PNBE1999 apenas duas enfocam a biblioteca escolar Minhas memórias de Lobato de Luciana Sandroni 1997 e Atrás da porta de Ruth Rocha 1997 Em Minhas Memórias de Lobato 1997 Sandroni relata um episódio que parece ter a mesma preocupação do PNBE Só que o Doutor Washington Luís então governador de São Paulo tendo ido visitar um dia as escolas notou que em todas as bibliotecas havia um livro bem gasto já bem acabado era A Menina do Narizinho Arrebitado que o Lobato tinha ofertado as escolas O Doutor Wa shington Luís pensou que aquele livro devia ser muito José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 350 querido pelas crianças e resolveu mandar comprar no vos exemplares para todas as escolas de São Paulo SANDRONI 1997 p66 Destacase o interesse do governo estadual da época em realizar compras de obras literárias para as bibliotecas e por meio do desgaste de um livro de Monteiro Lobato entendeu que a leitura daquele livro era freqüente e intensa merecendo adquirir novas obras para todas as escolas de São Paulo Já a narrativa de Atrás da porta ROCHA 1997 única obra a tematizar exclusivamente a questão da biblioteca escolar mostra que este espaço muitas vezes é negado ao convívio dos alunos Na história a biblioteca vive trancada e os alunos ignoram sua existência na escola Uma porção de crianças estavam sentadas às mesas deitadas nos tapetes recostadas nas poltronas com pequenas velas acesas lendo Ora essa O Antonio exclamou Que ótima surpresa essa criançada toda lendo Mas Joana não estava entendendo Ué Por que é que vocês não vêm ler todo dia Carlinhos respondeu por todos A gente pode Claro que pode Joana respondeu Para isso são as bibliotecas Ainda mais as bibliotecas das escolas Mas aqui não é a biblioteca da escola o João falou É sim disse Joana Ninguém sabia desta passagem mas aqui é a biblioteca da escola Vocês não conheci am ROCHA 1997 p23 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 351 Rocha leva o leitor a pensar como pode ser uma biblioteca escolar por meio do personagem Carlinhos que inicialmente se nega a acreditar que aquele espaço é parte da escola Assim percebemos que a biblioteca escolar vem sendo deixada de lado ou a ela está sendo atribuídas falsas finalidades Silva 1991 p111 afirma Por vezes o espaço da biblioteca escolar vem servir de local de castigo aos alunos indisciplinados transformandose em verdadeira sala de tortura ou de inculcação das normas da instituição Ao contrário de tudo isso a biblioteca tem de ser o cérebro da escola e construir o conhecimento a fim de se tornar um recurso básico para as decisões curriculares permitindo a atualização pedagógica dos professores a aprendizagem significativa dos estudantes e a participação da comunidade em termos de indagações SILVA 1991 p112 Por isso Serra 2003 p79 afirma Negar à escola das crianças brasileiras o direito à biblioteca é negar o direito ao caminho democrático que leva ao conhecimento ESCOLA E A IMPORTÂNCIA DO ESTUDO Um ponto interessante a ser discutido é como a importância do estudo é retratada nas obras literárias do acervo do PNBE Em duas obras podemos notar esse tema Azevedo Huzak Porto 2000 e Ganem 1999 Em outras aparecem algumas alusões a essa temática tais como Nunes 1999 Sandroni 1997 e Tahan 1999 Em Serafina e a criança que trabalhava as autoras dialogam diretamente com os alunos falando da importância do estudo Você e todas as outras crianças que estão podendo fre qüentar uma escola não devem esquecer jamais que o estudo é um trabalho que prepara para o futuro Mas o trabalho que impede as crianças de irem para a escola José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 352 só está tirando delas a possibilidade de um futuro me lhor AZEVEDO HUZAK PORTO 2000 p37 Comparam a aprendizagem ao trabalho indicando que o estudo ao contrário do trabalho que provoca a evasão escolar prepara para um futuro mais tranqüilo Isso vai de encontro a Snyders 1993 p27 ao comentar algumas das funções da escola Afirmo que a escola preenche duas funções preparar o futuro e assegurar ao aluno as alegrias presentes durante esses longuíssimos anos de escolaridade que a nossa civilização conquistou para ele Ganem 2000 p118 vai além Produz a seguinte crítica Eu acho que o maior problema do Brasil é a falta de educação O sujeito às vezes não arruma emprego porque é analfabeto A educação é importante deviam dar educação pro povo Nesta obra o estudo é visto como algo que pode promover uma mobilidade social pois mesmo com tantos outros problemas a educação é apontada como um dos primeiros a serem sanados Neste mesmo sentido Sandroni 1997 escreve Lobato achava que o caboclo resumia tudo de ruim que possa ter o ser humano só depois ele foi perceber que o caboclo era ignorante porque o governo não oferecia educação e saúde SANDRONI 1997 p51 Convém ressaltar nessa passagem como a falta de educação afeta a imagem pessoal do homem que corre o risco de perder seu valor enquanto ser humano NUNES 1999 trata da escola como promotora da mobilidade social na visão do protagonista Alexandre Num instante aprendeu um monte de coisas E se o Augusto não chegava em casa muito cansado ele cismava de ensinar pro irmão tudo que tinha aprendido E contava que ia estudar muitos anos que nem o pes soal lá debaixo estava numa dúvida danada se ia ser médico do coração ou dos dentes também ainda não sabia direito onde é que ia comprar apartamentos se Ipanema ou Leblon NUNES 1999 p36 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 353 Como se vê a autora explicita a importância do estudo mostrando os sonhos do personagem Alexandre morador da favela que acredita na capacidade de mudança produzida pela educação Tahan 1999 p71 demonstra o valor do conhecimento O homem só vale pelo que sabe Aqui como em Sandroni 1997 fica claro o valor atribuído ao homem por seu conhecimento Em suma observase o apreço das obras literárias analisadas em relação à importância do estudo Nelas fica claro que com estudo é possível uma mudança tanto econômica e social quanto cultural PERFIL DAS ESCOLAS Neste acervo do PNBE1999 percebemos que o perfil da escola oscila entre uma representação ora positiva ora negativa No balanço geral predomina a representação positiva da instituição escolar porque mesmo nas obras em que ocorrem uma imagem negativa Machado 1999 Machado 1996 Carroll 2000 e Bojunga 2002 é possível vislumbrar uma proposta de mudança Em Bisa Bia Bisa Bel MACHADO 1999 p 61 é visível a crítica à escola apegada exclusivamente aos conhecimentos do passado o que não quer dizer que o estudo deste não seja importante Estudar o futuro já imaginou Muito melhor do que ficar sempre amarrada no passado feito a escola está sempre fazendo CartãoPostal MACHADO 1996 p15 fala da escola como um lugar que parece um local sem alegria E se você fugisse de casa não fosse mais para a escola saísse pelo mundo Será que você encontrava a alegria Alice no país das maravilhas CARROLL 2000 p106 aponta o lado autoritário da escola Como esses bichos gostam de dar ordens e mandar a gente recitar por aqui pensou Alice Até parece que José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 354 estou na escola p106 Nesta passagem observase a representação da escola atrelada as práticas de ensino conservadoras e autoritárias A narrativa de A casa da madrinha NUNES 1999 p23 também expõe esse lado obscuro da escola aí perderam a paciência e resolveram Vamos acabar de uma vez com essa mania desse cara se soltar E então levaram o Pavão pra uma escola que tinha lá perto e que era uma escola feita de propósito pra atrasar o pensamento dos alunos Em contrapartida há a representação de uma escola solidária capaz de fazer o aluno interagir com o conhecimento construindo saberes que façam sentido em sua vida Em Machado 1999 p 62 63 as práticas escolares ultrapassadas passam por transformações positivas Dessa vez a pesquisa do colégio não é só em livro nem fora de mim É também na minha vida mesmo dentro de mim Em Lucas GOUVEIA 1999 sp podemos perceber como o aluno pode gostar da escola Adoro a escola Na visão de Lucas escola é lugar de alegria As práticas de ensino realizadas na escola OSARTA a traso escrito de trás para frente onde atrasaram o pensamento do Pavão podem ser contrapostas às de outra escola que marca o personagem Alexandre tan to pelas aulas criativas da professora da maleta quanto pela merenda ofertada NUNES 1999 No conjunto ressaltase a dualidade de imagem da escola Se por um ângulo a vemos de maneira negativa por outro a face positiva também se revela A representação autoritária da escola é sempre mostrada de maneira negativa como algo que precisa ser mudado enquanto a representação democrática é positiva cuja vivência faz com que o aluno seja capaz de dar significado e aplicabilidade aos conhecimentos adquiridos A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 355 Enfim nas obras do PNBE parece predominar uma representação positiva da escola Conforme averiguamos em outros exemplos as narrativas assinalam que a escola traz alegria aos alunos tanto pelas atividades desenvolvidas quanto pelos acontecimentos em seu pátio ou arredores onde os estudantes podem andar se encontrar conversar ou simplesmente como em Andrade 1999 colher fruta no pé CONSIDERAÇÕES FINAIS Tendo em vista os dados expostos a seleção e descrição dos fatos mais significativos ao objeto da pesquisa podemos constatar que a imagem de escola na maioria das obras do Programa Nacional Biblioteca da Escola de 1999 representa a escola pública brasileira ou seja o local onde estas obras foram distribuídas Estas obras deixam clara a grande diversidade encontrada na instituição escolar em consonância com o exposto nos PCNs Na escola temse oportunidade de conviver com pes soas diferentes Uns são brancos outros negros outros mestiços há meninos e meninas alguns com limitações no desempenho outros talentosos em algumas habili dades pessoas de renda familiar desigual oriundas de famílias de diversas regiões e opiniões políticas etc To dos os alunos estão na sala de aula usufruindo do mesmo direito à educação BRASIL 1998 p97 Conviver com o diferente na escola é um desafio enriquecedor A pluralidade está presente no cotidiano escolar assim como na produção cultural que o governo federal disponibiliza por meio do PNBE De modo geral os alunos descritos no acervo pertencem à parte da população que se encontra entre a classe média e baixa sendo esta a clientela que as escolas públicas normalmente atende Nesse sentido as obras dialogam com uma realidade já conhecida José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 356 pelos alunos brasileiros as dificuldades encontradas para aprender o trabalho para ajudar a família a evasão escolar entre outros problemas Na escola pública tanto real quanto ficcional muitos alunos são dela retirados porque os pais não têm consciência sobre as possibilidades que a educação pode trazer às crianças e aos adolescentes Eles não sabem como a educação pode e faz a diferença na vida de milhares de estudantes Para notar isso bastar lermos o trecho da obra de Azevedo Huzak e Porto 2000 Como os pais não estudaram muitas delas crianças encontram uma dificuldade a mais para ir à escola pois os pais nem sempre acham importante ter estudo AZEVEDO HUZAK E PORTO 2000 p 29 Outra observação digna de atenção é que a representação da biblioteca escolar aparece apenas em duas obras fato que estranhamos em função de haver muitas obras retratando a escola mas poucas falando de um espaço de suma importância onde o professor pode desenvolver as mais diversas atividades Para finalizar observando a relação entre literatura infanto juvenil e escola principal preocupação deste trabalho podemos dizer que a escola representada neste acervo do Programa Nacional Biblioteca da Escola de 1999 em linhas gerais revela uma imagem positiva Mesmo com a visualização de aspectos negativos percebemos que a escola é um local onde os alunos encontram alegria e estímulos para a aquisição de conhecimento de crescimento cultural e intelectual A escola é vista portanto como local onde os alunos podem adquirir ferramentas e conhecimentos para a mobilidade social promovendo uma socialização dos saberes produzidos pelo homem e a construção de novos saberes A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 357 REFERÊNCIAS BABETTE Happer et al Cuidado escola Desigualdade domesticação e algumas saídas São Paulo Brasiliense 1980 BRASIL Secretaria de Educação Fundamental Parâmetros curricula res nacionais terceiro e quarto ciclos apresentação dos temas transversais Secretaria de Educação Fundamental Brasília MECSEF 1998 CUNHA Maria Antonieta Antunes Cunha consultoria e elaboração Critérios de seleção e composição de acervo Minas Gerais Diart 1995 caderno 3 FERNANDES Célia Regina Delácio Leitura literatura infantojuvenil e educação Londrina EDUEL 2007 et al História e histórias guia do usuário do Programa Na cional Biblioteca da Escola PNBE 99 literatura infantojuvenil Se cretaria de Educação Fundamental Brasília MEC 2001 Quem é a professora na literatura infantojuvenil In Raído Revista do Programa de PósGraduação em Letras da UFGD n1 Janjul 2007 Dourados MS UFGD 2007b p 4353 FUNDAÇÃO NACIONAL DO LIVRO INFANTIL E JUVENIL Programa Na cional Biblioteca da Escola PNBE 1999 Disponível em httpwwwfnlijorgbr Acesso em 15 nov 2007 SERRA Elizabeth DAngelo Políticas de promoção da leitura In RI BEIRO Vera Masagão Org Letramento no Brasil São Paulo Glo bal 2003 p 6585 SILVA Ezequiel Theodoro da De olhos abertos reflexões sobre o de senvolvimento da leitura no Brasil Série Educação em ação São Paulo Ática 1991 SNYDERS Georges Alunos felizes reflexão sobre a alegria na escola a partir de textos literários Tradução de Cátia Ainda Pereira da Silva Rio de Janeiro Paz e terra 1993 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 358 CORPUS PNBE1999 ABRAMOVICH Fanny De surpresa em surpresa Ilustrador Salmo Dansa 2 ed Curitiba Editora Braga 1998 ALMEIDA Lúcia Machado de O escaravelho do diabo Ilustrações Mário Cafiero 24 ed Vagalume São Paulo Ática 1999 ANDRADE Carlos Drummond de A senha do mundo Rio de Janeiro Record 1999 Coleção Verso na prosa prosa no verso 3 Ilustra ções incluídas nesta obra foram publicadas nos periódicos ingleses Chatterbox 188499 e British Workwoman 1874 AZEVEDO Jô HUZAK Iolanda PORTO Cristina Serafina e a criança que trabalhava Ilustrações de Michele Fotos Iolanda Huzak 12 ed São Paulo Ática 2000 CARROLL Lewis Alice no país das maravilhas Ilustrações de Jô de Oliveira Tradução de Ana Maria Machado 3 ed coleção Eu Leio São Paulo Ática 2000 CASTANHA Marilda O rei da fome Ilustrações de Marilda Castanha 6 ed Rio de Janeiro Ediouro 1999 GANEM Eliane Coisas de menino Ilustrações Jaime Leão 8ed Rio de Janeiro José Olympio 1999 GOUVEIA Luís Augusto Lucas Ilustração Luís Augusto Gouveia Coleção Fala Menino Salvador Press Color 1999 LISBOA Henriqueta O menino poeta Capa e ilustrações Leonardo Menna Barreto Gomes 13 ed série o menino poeta Porto Alegre Edelbra 1999 MACHADO Ana Maria Bisa Bia Bisa Bel Ilustrações de Regina Yo landa 8 ed Rio de Janeiro Salamandra 1999 MACHADO Luis Raul CartãoPostal Ilustrações Anna Göbel Belo Horizonte Formato Editorial 1996 MARINHO João Carlos O gênio do crime 51 ed São Paulo Global 2000 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 359 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs MURALHA Sidónio A televisão da Bicharada Ilustrações de Cláudia Scatamachia 9 ed coleção Sidónio Muralha São Paulo Global 1997 NUNES Lygia Bojunga A casa da madrinha Ilustrações de Regina Yolanda Capa de Elifas Andreato 18 ed Rio de Janeiro Agir 1999 ROCHA Ruth Atrás da Porta Ilustração Elisabeth Teixeira Rio de janeiro Salamandra 1997 SANDRONI Luciana Minhas memórias de Lobato São Paulo Com panhia das Letrinhas 1997 TAHAN Malba O homem que calculava Rio de Janeiro Record 1999 360 QUEM SOMOS NÓS JOSÉ NICOLAU GREGORIN FILHO possui graduação em Português e Inglês pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras Barão de Mauá 1987 Mestrado em Linguística e Língua Portuguesa pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho 1996 e Doutorado em Linguística e Língua Portuguesa pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho 2002 Atualmente é professor doutor da Universidade de São Paulo Tem experiência na área de Letras com ênfase em LITERATURA INFANTIL Atua nas áreas de literatura infantil estudos comparados de literatura leitura cultura e sociedade PATRÍCIA KÁTIA DA COSTA PINA é graduada em Letras pela Universidade Santa Úrsula 1982 é Mestra em Literatura Brasileira pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro 1995 e Doutora em Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro 2000 Foi professora adjunta de Literatura Brasileira da Universidade Estadual de Santa Cruz em Ilhéus onde desenvolveu projeto de pesquisa relacionado às questões sobre leitor e leitura bem como à literatura sul baiana Atualmente é professora adjunta de Literatura Brasileira da UNEB Campus XX BrumadoBA onde desenvolve projeto de pesquisa ligado às adaptações de obras literárias para HQ e a formação do gosto pela leitura literária Tem experiência na área de Letras com ênfase em Literaturas de Língua Portuguesa atuando principalmente nos seguintes temas literatura oitocentista e novecentista formação do público leitor história da leitura HQ literatura infantil e juvenil história cultural e jornalismo REGINA SILVA MICHELLI é graduada e licenciada em Letras pela Faculdade de Humanidades Pedro II 1977 psicóloga com 361 graduação e licenciatura pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro 1979 mestre em Letras Letras Vernáculas Literatura Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro 1994 e doutora em Letras Letras Vernáculas Literatura Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro 2001 Atualmente é professora adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro UERJ e do Centro Universitário Augusto Motta UNISUAM Tem experiência na área de Letras com ênfase em Literatura Portuguesa e Literatura InfantoJuvenil ELIANE SANTANA DIAS DEBUS possui graduação em Letras Licenciatura Português e Inglês pela Fundação Educacional de Criciúma 1991 mestrado em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina 1996 e doutorado em Lingüística e Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul 2001 Professora do Programa de PósGraduação em Ciências da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina Tem experiência na área de Letras com ênfase em Literatura Brasileira atuando principalmente nos seguintes temas literatura infantil e juvenil literatura e ensino mediadores de leitura leitura literária e formação de professores MARIA ZILDA DA CUNHA possui graduação em Pedagogia pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras Nossa Sra do Patrocínio 1977 graduação em Letras pela Faculdade de Ciências e Letras de Bragança Paulista 1973 em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo 1972 pós graduação em Psicopedagogia pelo Instituto Sedes Sapiense 1989 especialização em Psicomotricidade pelo Instituto GAE 1991 mestrado em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo 1997 e doutorado em Letras EstComp de Liter de Língua Portuguesa pela 362 Universidade de São Paulo 2002 Atualmente é professor doutor da Universidade de São Paulo MARTA YUMI ANDO Doutoranda em Letras pela Universidade Estadual Paulista possui graduação e mestrado em Letras pela Universidade Estadual de Maringá Tem experiência na área de Letras com ênfase em Literatura atuando principalmente com Prosa experimental Literatura Infantojuvenil e Leitura RHEA SÍLVIA WILLMER possui mestrado em Letras Letras Vernáculas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro 2009 Especialização em Literatura Infantojuvenil 2005 pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e graduação em Licenciatura e Bacharelado em Letras pela Universidade Estadual de Campinas 1999 FABIANA VALÉRIA DA SILVA TAVARES possui duas graduações e mestrado em Letras pela Universidade de São Paulo 1998 2003 2007 Atualmente desenvolve seu projeto de doutorado pela Universidade de São Paulo Tem experiência na área de Letras com ênfase em Estudos de Cultura Literaturas de Língua Inglesa e Literatura Infantil e Juvenil atuando principalmente nos seguintes temas história dos Estados Unidos estudos de cultura e literatura infantil e juvenil PENHA LUCILDA DE SOUZA SILVESTRE possui graduação em Letras pela Faculdade Estadual de Filosofia Ciências e Letras de Jacarezinho PR 1989 graduação em Pedagogia pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Piraju 1998 mestrado em Letras pela Universidade Estadual de Maringá PR 2005 doutoranda em Letras pela Universidade Estadual Paulista UNESP Assis SP 2007 e cursando graduação em Psicologia Clínica na Fio Faculdades 363 Integradas de Ourinhos 2007 Atualmente é professora de Educação Básica II da Escola Estadual Nicola Martins Romeira orientadora no curso de Especialização em Estudos lingüísticos e literários FAFIJA Tem experiência na área de Letras com ênfase em Letras atuando principalmente nos seguintes temas Ricardo Azevedo literatura literatura infantojuvenil e leitura MARCO MEDEIROS Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro UERJ e atua na docência na Faculdade de Formação de Professores FFP MARA CONCEIÇÃO VIEIRA DE OLIVEIRA possui graduação em Letras pela Universidade Federal de Juiz de Fora 1995 mestrado em Letras pela Universidade Federal de Juiz de Fora 2000 doutorado em Letras pela Universidade Federal Fluminense 2003 Tem experiência na área de Letras com ênfase em pesquisas sobre Teoria Literária e Literatura Comparada atuando principalmente nos seguintes temas análise crítica de poesia e análise crítica teórica comparativa entre os discursos literários e filosóficos e no ensino de Língua Portuguesa como docente em cursos de graduação GEOVANA GENTILI SANTOS é doutoranda pela Universidade de Santiago de Compostela USC Espanha junto ao Programa Literatura y construcción de la identidad en Galicia e pela Universidade Estadual Paulista UNESPAssis junto ao Programa de PósGraduação em Letras Literatura e Vida Social Mestre 2009 e Graduada por essa mesma Instituição em Letras PortuguêsFrancês 2005 e em PortuguêsEspanhol 2007 Tem experiência na área de Letras com ênfase em literatura comparada e literatura infanto juvenil brasileira 364 LUCI REGINA CHAMLIAN é mestranda na Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo FFLCH USP na área de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa RENATA DE SOUZA DIAS MUNDT possui graduação em Português e Alemão pela Universidade de São Paulo 1990 graduação em Licenciatura em alemão pela Universidade de São Paulo 1994 e mestrado em Letras Língua e Literatura Alemã pela Universidade de São Paulo 2001 Atualmente é doutoranda da Universidade de São Paulo atuando principalmente nos seguintes temas tradução de literatura alemã infantojuvenil e adulta tradução de artigos jornalísticos DANIELA BUNN atualmente desenvolve pesquisa de Doutorado na área de Literatura Literatura e Artes Leitura Literatura e Infância Literatura e Ensino Literatura Italiana realiza oficinas e minicursos Possui graduação em Letras PortuguêsItaliano 2001 e Mestrado em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina 2003 onde trabalhou como professora de Metodologia e Prática do Ensino de Português 20042006 professora de italiano no Curso Extracurricular 20012009 e tutora no EadLetrasEspanhol Atualmente é professora substituta do Centro de Ciências da Educação da UFSC trabalhando nos cursos de Letras e Pedagogia ELOÍSA PORTO CORREIA concluiu o Doutorado em Letras Vernáculas Literatura Portuguesa em 2008 na UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro onde cursou também o Mestrado na mesma área entre 2003 e 2005 Possui graduação em Letras pela UERJ Universidade do Estado do Rio de Janeiro concluída em 2003 Atualmente é Professora Substituta da UERJ Universidade do Estado 365 do Rio de Janeiro Coordenadora do Curso de Letras da USS Universidade Severino Sombra Professora de Português Literatura e Produção Textual da Prefeitura Municipal de Itaboraí e do Governo do Estado do Rio de Janeiro Tem experiência nas áreas de Letras com ênfase em Literaturas Portuguesa Brasileira e Africanas e de Artes com ênfase em Teatro CÉLIA REGINA DELÁCIO FERNANDES possui graduação em Filosofia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho 1990 mestrado em TEORIA LITERÁRIA E LITERATURA COMPARADA pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho 1996 e doutorado em TEORIA e HISTÓRIA LITERÁRIA pela Universidade Estadual de Campinas 2004 Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal da Grande Dourados Tem experiência na área de Letras com ênfase em Literatura e Ensino atuando principalmente nos seguintes temas história da leitura formação de leitores letramento literário literatura infantojuvenil representações de leitura e de escola na literatura brasileira e políticas públicas de leitura FÁTIMA DE OLIVEIRA FERLETE possui graduação em Letras pela Universidade Federal da Grande Dourados 2007 galeria de fotos Foto 1 Patrícia Pina José Nicolau Gregorin Filho e Regina Michelli Orgs Foto 2 Mara Conceição Vieira de Oliveira Patrícia Pina Eliane Debus Regina MIchelli Regina Chamliam Daniela Bunn Célia Regina Delácio Fernandes e Renata Mundt Foto 3 Regina MIchelli Rhea Wilmer Marco Medeiros Fabiana V da S Tavares Eliane Debus Patrícia Pina Malumonitora e José Nicolau Gregorin Filho Conheça os autores da esquerda para a direita httpgroupsgooglecomgroupdigitalsource Jason Prado e Paulo Condini Organizadores A FORMAÇÃO DO LEITOR Pontos de Vista Rio de Janeiro Argus 1999 Projeto Gráfico Eduardo Machado e Renata Vidal Composição Argus Revisão Paulo Corga Copyright 1999 ARGUS Todos os direitos de reprodução divulgação e tradução são reservados Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida por fotocópia microfilme ou qualquer outro processo As opiniões expressas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade dos autores não expressando necessariamente a opinião dos editores PRADO Jason Org CONDINI Paulo Org A formação do leitor pontos de vista Rio de Janeiro Argus 1999 320 p LEITOR LEITURA CONHECIMENTO COMUNICAÇÃO CULTURA ISBN n 85874560106 CDD 0281 P882 f Edição 1999 Todos os direitos reservados pela ARGUS PARTICIPAÇÕES COMERCIAIS LTDA Rua Santo Cristo 148150 22220300 RIO DE JANEIRO RJ Fone 212637449 wwwleiabrasilcombr argusleiabrasilcombr CONTRA CAPA Criado especialmente para o 12º COLE pelo Leia Brasil Programa de Leitura da Petrobras A FORMAÇÃO DO LEITOR PONTOS DE VISTA reúne as reflexões de trinta personalidades entre elas os Ministro de Estado da Cultura e o da Educação que têm dedicado seus melhores esforços além de outras atividades intelectuais à questão da leitura em todas as suas instâncias Sua publicação portanto representa importante contribuição para todos os interessados nesta área quer pela conhecida experiência de seus participantes quer pela diversidade de visões do problema o que por si só a justifica que abre caminho para a percepção de que a leitura e a formação do leitor não são questões oriundas de uma única vertente mas frutos de inúmeros fatores que as determinam Para os professores e bibliotecários em cujas mãos repousa a enorme responsabilidade de contagiar nossas crianças com o amor aos livros Sumário Apresentação Affonso Romano de SantAnna Arnaldo Niskier Bartolomeu Campos Queirós Carlos Jacchieri Edmir Perrotti Eliana Yunes Elizabeth Dangelo Serra Elza Lucia Dufrayer de Medeiros Ezequiel Theodoro da Silva Fanny Abramovich Francisco Weffort Guiomar de Grammont Guiomar Namo de Mello Iara Glória Areias Prado Jason Prado Joel Rufino dos Santos Jorge Werthein Luiz Percival Leme Britto Maria Alice Barroso Maria Thereza Fraga Rocco Ottaviano De Fiore Paulo Condini Paulo Renato Souza Pedro Bandeira Regina Zilberman Rui de Oliveira Ruth Rocha Sônia Rodrigues Tânia Dauster Walda de Andrade Antunes PREFÁCIO À 1a EDIÇÃO Obra inicial do projeto Cadernos do Leia Brasil A Formação do Leitor Pontos de Vista foi planejada para ser lançada em Campinas por ocasião do 12 COLE que ocorreu entre 20 e 23 de julho de 1999 reunindo ensaios de trinta profissionais que têm dedicado os melhores esforços entre outras atividades intelectuais à questão da leitura em todas as suas instâncias nos dando suas particulares percepções do que o leitor e a sua formação significam bem como os caminhos possíveis para tornar as ações voltadas a esta atuação cada vez mais eficientes Entretanto para articular e reunir os textos dessas personalidades e mais ainda para realizar o trabalho editorial com a qualidade que a obra exigia foi necessário mais tempo do que o inicialmente previsto obrigandonos a transferir o lançamento para a data de realização da terceira reunião do Comitê Estratégico do Leia Brasil Programa de Leitura da Petrobras dia 9 de agosto do corrente Acreditamos que com o lançamento desta obra estamos dando o primeiro passo no sentido de cumprir um dos mais importantes papéis para o qual o Comitê foi criado o de produzir textos didáticopedagógicos a serem adotados não só pelo Programa em suas atividades como também por todos quantos estejam interessados em suas práticas acumulando com isto à função de propagador da produção intelectual já criada a de um programa também voltado para a pesquisa e criação do saber Os organizadores 9 APRESENTAÇÃO Quando imaginamos essa coletânea de pontos de vista como marco de nossa passagem pelo 12 COLE estávamos pensando em oferecer aos pesquisadores da leitura e aos brasileiros de um modo geral um documento que reunisse a visão dos nossos mais ilustres contemporâneos ligados ao chamado mundo do livro no que toca à questão da formação de leitores dentro da nossa sociedade Não nos preocupamos em reproduzir teorias ou informações acadêmicas do mesmo modo que não procuramos receitas prontas de transformação de nãoleitores em aficionados devoradores de livros Simplesmente procuramos reunir pessoas cujas vidas estivessem marcadas pelo trabalho com os livros ou com a educação Mobilizamos escritores editores dirigentes das mais renomadas instituições de ensino e pesquisa e os reunimos numa obra comprometida exclusivamente com o tema A Formação do Leitor Pontos de Vista O resultado foi uma obra interessante pela multiplicidade de estilos pela diversidade de olhares e de abordagens e pela envergadura de cada autor Esse foi o papel que julgamos oportuno para o Leia Brasil o Programa de Leitura da Petrobras neste momento em que chegamos ao COLE pela terceira vez em oito anos de atividades agora com nossas responsabilidades ampliadas pelas múltiplas ações que desenvolveremos durante o Congresso Este livro traz muitas semelhanças com o Leia Brasil Uma das mais importantes no nosso entender é a reunião e mobilização de pessoas e entidades em torno da idéia comum de que sem leitores de fato não haverá um estado de direito Outra semelhança está na sua própria natureza enquanto objeto ele não faz parte de um projeto editorial comercial mas de um projeto de democratização da informação e neste caso específico de saberes constituídos visando não somente à instrumentação das nossas escolas públicas como também os cursos de formação de professores 11 Por isso A Formação do Leitor Pontos de Vista já transcende seus propósitos iniciais de distribuição comemorativa à passagem do Leia Brasil pelo Congresso Brasileiro de Leitura tomando caminho certo para os acervos de Secretarias de Educação de Universidades e de outras entidades de ensino comprometidas com livros e sua leitura O que une a todos nós organizadores e autores desta coletânea gestores do Leia Brasil Petrobras participantes do COLE professores pesquisadores e estudantes é a certeza de que livros não existem apenas enquanto objetos mas essencialmente como veículos de idéias e de pensamentos compartilhados Portanto leia Brasil Os organizadores 12 1 AFFONSO ROMANO DE SANTANNA Leitura das armadilhas do óbvio ao discurso duplo Mineiro poeta cronista professor universitário Doutor pela Universidade Federal de Minas Gerais foi presidente da Biblioteca Nacional de 1990 a 1996 onde criou o Sistema Nacional de Bibliotecas e o PROLER Foi Secretário das Bibliotecas Nacionais IberoAmericanas e Presidente do Conselho do Centro Regional para o Fomento do Livro na América Latina e no Caribe CERLALC Sintome como o menino que tem que fazer uma composição sobre Minhas férias Nada mais simples E no entanto bastante arriscado pois há o perigo de se cair no previsível na banalidade Escrever sobre leitura e sobre a formação do leitor é algo que lembra também aqueles filmes com títulos tipo O crime no castelo A última vítima Morte no entardecer O expectador já entra sabendo o que vai encontrar Quem jamais esperaria encontrar num artigo sobre formação do leitor ou sobre leitura alguma palavra contra a leitura ou uma tese de que não se deve formar o leitor Assim um tema como este deflagra logo uma questão que chamaria de a armadilha do óbvio Quem vai escrever sobre esses temas vai também naturalmente dizer que é importante formar leitores vai enfatizar que ler é um prazer que a leitura desencadeia processos conscientizadores e produtivos na comunidade etc Portanto os encontros 13 em tomo deste tema correm o risco de converteremse em fervorosas assembléias de autoconsolação Preferiria como o fiz em outras ocasiões em que tive que abrir seminários congressos ou discussões sobre este tema encaminhar algumas questões subjacentes ocultas reprimidas mas que representam uma radiografia uma análise do terreno onde pisamos e sobre o qual queremos construir algo Portanto estou discorrendo sobre as armadilhas do óbvio que nos afastam do verdadeiro diagnóstico da doença ou do doente E para tornar mais explícito o que aqui está latente quero levantar uma questão básica a necessidade de se proceder a uma leitura crítica dos discursos sobre leitura Isto é um vasto e intrincado assunto Tem inúmeras faces e disfarces ou como eu disse antes armadilhas Uma coisa seria academicamente selecionar um corpus de textos teóricos sobre a leitura analisar propostas de programas de leitura e conferir tudo isto com a prática Ou seja verificar se a esses textos se seguiu alguma ação pragmática que tipo de ação foi essa e se ela desmente a teoria ou que tipo de obstáculos surgiram para sua realização Mas um dos aspectos mais sutis e desnorteantes a respeito da armadilha do óbvio está na banalidade da própria palavra leitura Se em vez de leitura estivéssemos usando uma palavra nova de preferência importada de outra língua talvez fosse mais fácil fazer saber do que estamos falando Por isto para espanto de muitos editores escritores e professores eu tenho repetido é preciso que se esclareça que quando falo de leitura não estou falando de leitura mas sim de leitura Isto advirto não é uma charada nem um simples jogo de palavras Quem tem ouvidos ouça diz o profeta Ou melhor quem sabe ler que leia A segunda razão pela qual o discurso a favor da leitura não gera a ação concreta e específica que gostaríamos devese ao que chamo de duplo discurso Depois da armadilha do óbvio essa é a segunda questão que tem que ser esclarecida e denunciada 14 Uma coisa são os pronunciamentos entrevistas conversas da boca para fora outra coisa é realmente acreditar e levar adiante projetos conseqüentes Neste sentido seria um não acabar coletar aqui e ali exemplos de práticas que não batem com as teorias e intenções Poderia por exemplo dizer sumariamente que durante os seis anos 19911996 em que liderei com uma equipe fantástica a questão da promoção da leitura e do livro no país colhi exemplos fartos do duplo discurso Dos seis ministros da Cultura com quem convivi um disse claramente numa reunião dentro do Ministério para que todos ouvissem que leitura não é um assunto prioritário no meu ministério esse é um assunto para o Ministério da Educação Imaginem o meu constrangimento de ter que explicar a um ministro da Cultura que era membro da Academia Brasileira de Letras que não estava falando de alfabetização e sim de leitura Ou melhor que estava falando de leitura e não de leitura Imaginem o constrangimento de ter que lhe explicar o que era um analfabeto funcional ter que lhe mostrar projetos de implementação da leitura tanto na França quanto na Colômbia ter que lhe explicar o que é desescolarização da leitura e além disto como se estivesse cometendo uma falta mostrar que estávamos já realizando programas de leitura em hospitais quartéis parques e sindicatos que tínhamos projetos de trem biblioteca no sul do país de bibliobarcos na Amazônia e no Rio São Francisco e que as vidas de milhares de pessoas estavam se modificando por causa disto Dos seis ministros da Cultura com quem convivi só dois tomaram conhecimento do programa de leitura que desenvolvíamos em 300 municípios utilizando 33 mil voluntários Um deles o último esforçouse e conseguiu desmobilizar o programa e desfazer a equipe Batendo nesta mesma tecla do discurso duplo onde a prática não fecha com o que é dito diria que durante todo esse tempo embora tenha encontrado um crítico e um ficcionista que diziam tolices sobre contadores de história não encontrei um só prefeito ou governador que me dissesse que as bibliotecas eram inúteis No entanto só encontrei entre as dezenas desses apenas dois que haviam destinado verbas para 15 compra de livros Os demais davam a sensação de que pensavam que os livros tinham pernas e saíam caminhando das editoras para as estantes por livre e espontânea vontade Dito isto e como prova ainda do duplo discurso assinalese que a Colômbia copiou e implementou um projeto brasileiro de promoção de leitura que teria a participação da Câmara Brasileira do Livro e outros órgãos do governo Isto não tem nada demais Pessoas entidades e países devem se beneficiar com as boas idéias Mas o grave é que enquanto o projeto baseado nas propostas brasileiras era posto em marcha lá na Colômbia pela Fundalectura aqui o projeto foi sabotado e abandonado por quem devia viabilizálo Finalizando eu diria que nessa passagem de século o Brasil em relação à questão da leitura tem que batalhar ferozmente em três frentes ao mesmo tempo 1 a primeira é mais óbvia e diz respeito ao analfabetismo Ainda que algum ministro ou presidente possa pensar assim esta questão não diz respeito apenas ao Ministério da Educação Nos países onde o analfabetismo foi praticamente erradicado isto resultou de um projeto sistêmico nacional 2 a segunda frente de ação diz respeito aos analfabetos funcionais os que têm rudimentos de educação mas não conseguem decompor o significado dos signos Na Itália existem 15 milhões de analfabetos funcionais Na França são 20 dos franceses Quem quiser que estime quantos são no Brasil qualquer cifra entre 100 e 140 milhões será possível 3 a terceira frente em que há que batalhar diz respeito ao analfabetismo tecnológico As mudanças rápidas transformam o cidadão mesmo de nível universitário num analfabeto diante das novas máquinas e a atualização é dispendiosa competitiva e urgente Enfim numa sociedade em que se fala tanto de hipertexto em que o leitor lê em diversas direções e em profundidade nosso país está povoado de hipoleitores aqueles que estão entre o analfabetismo e o analfabetismo funcional Como sair disto é fácil Basta desarmar as armadilhas do óbvio e parar com o discurso duplo 16 2 ARNALDO NISKIER Um país se faz com homens e livros Doutor em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro foi Presidente dos Conselhos Estadual Federal e Nacional de Educação e Secretário de Educação e Cultura do Rio de Janeiro Autor de mais de cem títulos ocupa a cadeira 18 da Academia Brasileira de Letras e desde dezembro de 1997 é seu Presidente Membro do Comitê Estratégico do Leia Brasil Programa de Leitura da Petrobras Mesmo que se trabalhe sobre uma herança comum como a que caracteriza a comunidade lusófona hoje de 200 milhões de habitantes não há como avançar adequadamente na busca do homem novo se mantidas as atuais condições de miséria e pouco apreço pelas questões culturais No caso do Brasil temos obstáculos de expressão à nossa frente como a existência de 19 milhões de analfabetos e um magistério de 12 milhão de profissionais em geral desmotivados e recebendo salários incompatíveis com a dignidade da formação do leitor brasileiro em que estamos empenhados Enquanto países desenvolvidos exibem o índice de leitura de 10 livros por habitante média anual o nosso atraso pode ser facilmente 17 medido pelo per capita de 2 livros por habitante nesse índice computandose também os livros didáticos distribuídos gratuitamente pelo Ministério da Educação e do Desporto Muito pouco se o objetivo for a valorização do hábito de leitura entre nós Na verdade não é o hábito de leitura que se busca pois hábitos tendem a ser impostos e a imposição na educação caminha em geral para a rejeição O que se pretende é a formulação adequada de um gosto pela leitura e isso na idade devida Sendo mais claro é muito difícil estabelecer esse gosto a partir dos 16 ou 17 anos quando o jovem em geral tem o seu interesse voltado pragmaticamente para o exame de habilitação ao curso superior com a configuração que hoje ostente O ideal é que a criança mesmo antes de ler trave contato com os livros manipuleos aprecie as ilustrações interprete o que está vendo à sua maneira Isso é uma forma inteligente de despertarlhe o gosto que depois se traduzirá pelas primeiras e definitivas leituras Pensar que isso possa acontecer em idade mais avançada apresenta pouca probabilidade de sucesso embora casos se registrem Numa reunião do Comitê Executivo do Programa Leia Brasil no Rio que é uma iniciativa de primeiríssima qualidade com apoio da Petrobras chamei a atenção para uma realidade incontrastável O MEC distribui gratuitamente 60 milhões de livros didáticos para alunos carentes num determinado ano mas não repete a dose no ano seguinte É o primeiro problema O segundo ainda mais grave na linha da formação do leitor é a discrepância aritmética em relação aos livros paradidáticos Ou seja o mesmo canal que libera os livros didáticos praticamente desconhece os paradidáticos que seriam a riqueza com a qual se manteria o interesse pela leitura nas classes abastecidas pela primeira remessa Aqui se assinala para tristeza nossa a descontinuidade dos projetos pedagógicos Vai o livro de Língua Portuguesa por exemplo mas não segue nenhum outro de literatura infanto juvenil Cessados os efeitos da inserção do primeiro no processo não há material para sustentar a motivação estimulada voltase praticamente ao estágio anterior de ignorância o que configura enorme e lamentável desperdício Esta continuidade precisa ser assegurada 18 LÍNGUA PORTUGUESA Do ponto de vista geopolítico temos redobrado empenho na valorização da Língua Portuguesa É um patrimônio a defender e a preservar como se disse na reunião da comunidade dos Países de Língua Portuguesa realizada em novembro de 1997 em Lisboa Com a convicção de que a aprendizagem é para toda a vida e que a educação deve ser dada para todos como recomenda a Unesco devemos atentar para o avanço das tecnologias da informação e da comunicação lançando iniciativas de largo alcance e não limitadas a pequenos centros privilegiados É exatamente aí que se recomenda o bom enlace multimídia aproveitandose o rádio e a televisão para o trabalho conjunto com a mídia impressa representada pelo livro de valor insubstituível em termos culturais É certo que vivemos com tiragens ridículas e com isso o preço da capa se torna excessivamente caro Com a crescente mundialização e em especial com o empenho recente de alargarmos o nosso campo de atuação para outros continentes onde há manifestações concretas de apreço à língua portuguesa poderseá estabelecer um programa de edição e comercialização de livros sui generis A decisão é política e não se pode conceber o silêncio em matéria de tamanha relevância quando ninguém tem mais dúvida sobre a sua relevância A formação do leitor não é um fenômeno para se limitar ao nosso território mas uma questão que se liga igualmente a Portugal Angola Moçambique onde perdemos nítido terreno para o inglês GuinéBissau Cabo Verde São Tomé e Príncipe Goa Macau e TimorLeste para só citar esses países HORA DA LEITURA A releitura da Carta de Pero Vaz de Caminha como fizemos na Academia Brasileira de Letras a propósito do lançamento do programa Hora da Leitura uma iniciativa do Governador Anthony Garotinho e dos Secretários Hésio Cordeiro Angelo de Aquino e Wanderley de Souza enseja uma série de considerações no mínimo curiosas A primeira delas 19 na apresentação do ator Luís de Lima foi o trecho em que há uma referência emblemática É preciso salvar essa gente Naquela época há 500 anos o Brasil tinha 5 milhões de índios número que hoje se reduziu a 325 mil Foram dizimados pelo branco impiedoso e voraz Nossa lembrança ao falar na solenidade foi a valorização da educação É a forma adequada de salvar um povo sem desfigurar as suas raízes O Governador do Rio de Janeiro ao ouvir a argumentação balançou afirmativamente a cabeça concordando com a fala pois depois confessaria que não tem sido outra a sua principal preocupação Deseja terminar o período de Governo com uma outra feição dada à educação fluminense hoje sem cara e sem projeto Uma das suas mais felizes iniciativas foi a criação do projeto Hora da Leitura em parceria com a Academia Brasileira de Letras que irá colaborar na escolha dos livros adequados às respectivas faixas etárias da clientela pública mais de 12 milhão de estudantes Diariamente sob a orientação de professores e especialistas serão lidos nas escolas trechos de obras de autores nacionais para criar o indispensável gosto pela leitura O próprio Governador confessou que adquiriu esse hábito um pouco à força Era um aluno inquieto na cidade de Campos travesso mesmo e lembra sempre que depois de alguma estripulia costumava ser deixado de castigo pela professora Ledinha de saudosa memória Eu ficava com ódio dela Hoje soulhe grato por ser amante do livro fundamental na minha formação Depois de contar essa passagem Garotinho aproveitou a presença de 300 pessoas no Teatro R Magalhães Jr e declamou um poema de sua autoria em homenagem à mulher Rosinha Foi aplaudido demoradamente pela inspiração Logo depois já na platéia foi a vez dele aplaudir o artista Tom da Bahia que cantou a música baseada em versos de Castro Alves intitulada A Queimada um grito em defesa do meio ambiente E também os versos de Machado de Assis muito bem declamados pelo ator Othon Bastos no CD da série Os Imortais além de trechos de obras de Machado de Assis entre as quais Dom Casmurro que será representado no palco da ABL com um elenco de que faz parte a atriz Bel Kutner filha da nossa inesquecível Dina Sfat 20 O que se tira de mais positivo numa solenidade assim rica e diversificada é o cuidado do Governo do Estado do Rio de Janeiro com a cultura e a educação dos seus filhos Começa com a leitura recomendada por especialistas na matéria chegando logo em seguida como ouvimos promessa a programas de redação Virão concursos em toda a rede com estímulos variados para que lendo e escrevendo nossas crianças e jovens possam enfrentar com mais chance de êxito o que vem por aí em matéria de Sociedade da Informação O Rio mais uma vez pulou na frente SEGREDOS DA LÍNGUA PORTUGUESA Quando se está diante do resultado de um vestibular sempre é possível estabelecer inferência Os 26 mil candidatos da UFRJ mostraram na prova de redação que aguçaram o senso crítico e estão aperfeiçoando o trato da Língua Portuguesa em relação aos exames anteriores O tema foi instigante Que geração é esta que não lê e disto nem se envergonha Um aluno escreveu na prova inteira a palavra leitura Tirou zero Em compensação a redação nota dez provou a capacidade crítica do seu jovem autor que citou o mundo apressado e impaciente dos nossos dias Ele entende embora não concorde que saber das coisas pela TV é mais rápido e mais cômodo O jovem sabe disso mas não se importa porque foi educado desde a tenra infância a confiar nessa fonte Sou testemunha da ampliação do interesse em nosso país pelas questões vernaculares Não só através da experiência acadêmica mas ao acompanhar o sucesso da obra 70 Segredos da Língua Portuguesa onde o professor Salomão Serebrenick registrou o anseio de largas camadas da nossa população pelo conhecimento do idioma depois de um período bastante expressivo de desapreço por tudo o que se referisse à norma culta Entendo até que a televisão pode ser incriminada nesse processo com a valorização do linguajar chulo e pobre característico de programas humorísticos ou até mesmo via novelas de baixo teor cultural Sem ser puritano podese acusar a utilização frenética de palavrões através do 21 vídeo como um modismo exagerado criando uma dicotomia no espírito das crianças Elas são contidas em casa pela educação mais rígida dos pais mas têm a sua atenção despertada para a valorização dessas palavras na TV ou mesmo nas escolas onde os professores moderninhos incorporam palavras antes proibidas no seu cotidiano Isso leva a alguma coisa No livro citado que já se encontra na terceira edição Serebrenick mostra o emprego correto do pronome cujo mostra a confusão entre infligir inflingir e infringir explica a utilização de haja vista e insiste na grafia correta da palavra tampouco O livro é de extrema serventia pois assinala a diferença entre os verbos destorcer tornar direito desfazer torcedura e distorcer mudar o sentido desvirtuar Li a obra com indizível prazer pois os erros assinalados são muito comuns até em gente fina que usa profissionalmente o verbo mas não sabe como varia a regência do verbo assistir por exemplo Crase vírgula ponto e vírgula são elementos indispensáveis da língua portuguesa mesmo nessa fase de unificação em que se vai abandonar o trema e em certos casos também o acento circunflexo São muitas regras é verdade mas não há como fugir da sua aplicação Os jornais estranharam o fato de aparecerem palavras mal grafadas nos exames vestibulares horgulho e insentivo Nossa convicção é muito clara escrevese mal porque se lê pouco o que também leva a uma pobreza vocabular mais que evidente Como é possível enriquecer a linguagem dos nossos jovens se os índices de leitura assinalam recordes negativos O livro é gênero de primeira necessidade e por isso mesmo merece o mais completo apoio a partir da idéia de formar o hábito de ler 22 3 BARTOLOMEU CAMPOS QUEIRÓS O livro é passaporte é bilhete de partida Mineiro graduado em Filosofia com especialidade em arteeducação pelo Instituto Pedagógico Nacional de Paris escritor e poeta premiado nacional e internacionalmente conferencista e autor de publicações sobre educação e leitura Membro do Comitê Estratégico do Leia Brasil Programa de Leitura da Petrobras Desconheço liberdade maior e mais duradoura do que esta do leitor cederse à escrita do outro inscrevendose entre as suas palavras e os seus silêncios Texto e leitor ultrapassam a solidão individual para se enlaçarem pelas interações Esse abraço a partir do texto é soma das diferenças movida pela emoção estabelecendo um encontro fraterno e possível entre leitor e escritor Cabe ao escritor estirar sua fantasia para assim o leitor projetar seus sonhos As palavras são portas e janelas Se debruçamos e reparamos nos inscrevemos na paisagem Se destrancamos as portas o enredo do universo nos visita Ler é somarse ao mundo é iluminarse com a claridade do já decifrado Escrever é dividir se Cada palavra descortina um horizonte cada frase anuncia outra 23 estação E os olhos tomando das rédeas abrem caminhos entre linhas para as viagens do pensamento O livro é passaporte é bilhete de partida A leitura guarda espaço para o leitor imaginar sua própria humanidade e apropriarse de sua fragilidade com seus sonhos seus devaneios e sua experiência A leitura acorda no sujeito dizeres insuspeitados enquanto redimensiona seus entendimentos Há trabalho mais definitivo há ação mais absoluta do que essa de aproximar o homem do livro Experimento a impossibilidade de trancar os sentidos para um repouso O corpo vivo vive em permanente e vários níveis de leitura Não há como ausentarse definitivamente deste enunciado enquanto somos no mundo O corpo sabe e duvida A dúvida gera criações enquanto a certeza traça fanatismos Reconheço porém um momento em que se dá o definitivo acontecimento a certeza de que o mundo pessoal é insuficiente Há que buscar a si mesmo na experiência do outro e inteirarse dela Tal movimento atenua as fronteiras e a palavra fertiliza o encontro Acredito que ler é configurar uma terceira história construída parceiramente a partir do impulso movedor contido na fragilidade humana quando dela se toma posse A fragilidade que funda o homem é a mesma que o inaugura mas só a palavra anuncia A iniciação à leitura transcende o ato simples de apresentar ao sujeito as letras que aí estão já escritas É mais que preparar o leitor para a decifração das artimanhas de uma sociedade que pretende também consumilo É mais do que a incorporação de um saber frio astutamente construído Fundamental ao pretender ensinar a leitura é convocar o homem para tomar da sua palavra Ter a palavra é antes de tudo munirse para fazerse menos indecifrável Ler é cuidarse rompendo com as grades do isolamento Ler é evadirse com o outro sem contudo perderse nas várias faces da palavra Ler é encantarse com as diferenças 24 4 CARLOS JACCHIERI A criança é um leitor por acaso analfabeto Nascido na cidade de São Paulo artista plástico escritor Entre suas obras estão O Honlenz e o Labirinto Os Deuses não eram Astronautas Porominare O Evangelho segundo Jesus Cristo das Vinhas da Ira uma releitura do mito cristão A Infância da Arte uma teoria da ontogênese e da antropogênese da religião e da arte Oráculo do candomblé das lyami Desenhar as letras no jeito da mão e da forma no feitio bem comportado da bonita caligrafia ou nos garranchos mal educados das escrevinhações da gente grande não foi nada difícil foi até muito fácil Copiar as figuras das coisas representadas na Cartilha do Tomaz Galhardo com seus nomes escritos em letras maiúsculas e minúsculas do A B C foi canja Afinal o artista infantil imitador e garatujador já nasce feito Desenhado a giz no quadro negro na figura lembrada pelos olhos ao lado da palavra pato o patinho na lagoa o patinho soletrado no A B C e o patinho silabado no bêábá eram maneiras de memorizar desenhando escrevendo e lendo o que era o objeto pato do mundo real e o do imaginado na cabeça da gente Afinal nas cartilhas de alfabetização 25 do meu tempo a didática orientada para o conhecimento dos objetos reais por meio de suas definições formais vinha do Pestalozzi Não nascemos já de pronto com os olhos das memórias gráficas nem com o polegar opositor já habilitado para pinçar as ferramentas que vão sendo reclamadas pelos voluntários motores da manifestação infantil Isso vai acontecendo naturalmente e nesse mesmo compasso vamos fazendo com que as coisas que percebemos no mundo de Deus convertamse em coisas pensadas na cabeça da gente e daí se tornem coisas representáveis em pinturas desenhos sons palavras etc Só muito depois da infância podemos nos dar conta que é assim desde sempre que o bicho gente já por seus inatos meios de expressão se tem feito no escritor e leitor das histórias da História Escritor antes e leitor depois Por quê Porque enquanto não completamos em nossas cabeças o mundo de representações de nossa própria imaginação comparandoo ponto a ponto com o mundo da realidade de fato que ao nascer já encontramos feita não podemos de todo ler o mundo da nossa imaginação porque ainda não o terminamos de escrever e nem mesmo o da realidade já feita porque ainda ponto a ponto não terminamos de lêlo Cada um de nós em nossa formação mental havemos de reflexionar a condição humana na qual nascemos e de reimaginar a realidade humana que nos assiste já feita Assim somente conseguiremos assimilar uma no quanto alcançamos reflexioná la e nos adaptarmos à outra no quanto alcançarmos reimaginá la Eis porque podemos dizer que somos por natureza assimilativos e adaptativos escritores e leitores natos por acaso analfabetos enquanto também não aprendermos a sêlos no modo alfabetizado Desde o nascimento a cada instante da nossa vivência somos um ente completo e perfeito As crianças não sabem o que quer dizer ser criança nem carecem dessa consciência formal para desenvolveremse pois nas suas vivências contam com naturais aptidões para autoeducaremse e autoadestraremse vencendo com essa autosuficiência suas provisórias limitações etárias Assim nos meus sete anos já falante rabiscador barulhento 26 manipulador senhor e autor do meu egocêntrico mundo incluindo os altruísticos tratos afetivos ora tranqüilos ora birrentos com mãe pai e irmãos parentes e afins amigos e inimigos lá fui eu Com sete anos já me imaginando por conta das histórias sempre repetidas pelos adultos diante das crianças santo e pecador anjo e diabo em purgatórios e infernos em reino do céu e da terra feitiço e feiticeiro em fantasmagóricas correntes brancas e negras de arrepiantes exorcismos personagem lendário em castelos de fabulosos príncipes e princesas fadas e bruxas ogros e gigantes destemido aventureiro galante e perverso em memoráveis façanhas por terramarear lá fui eu Lá fui eu com meus sete longos anos de vivências em lições de vida e em lições de coisas mas ainda analfabeto entrando no primário de mala e cuia com a mochila do material escolar e a lancheira com pão ovo e banana para o recreio Nas minhas ingênuas imprudências e confusas perplexidades próprias da infância vi festeiros e festejos deslumbrantes procissões carnavais e paradas patrióticas vi gente fardada e paisana se matando em barricadas vi operários e secretas grevistas e pelegos agredindose nos portões das fábricas vi guardas civis e gente pacata fazendo a cidade vi mulheres da vida e vagabundos excomungados pelas boas famílias vi pobres e doentes públicos e os de bom coração fazendo caridade Mas não tinha explicações para essas realidades Eu até supunha que elas estivessem escritas nos jornais revistas e livros mas fora do alcance da minha infantil curiosidade Deslumbrado com o novo cenário social que se abria para mim no bulício da criançada no primeiro dia de escola entrei na sala de aula e me postei perfilado de escoteiro no meu lugar Diante da professora que me pareceu majestosa dando início à sua aula com a primeira ordem Crianças Atenção Silêncio me senti mudado em gente grande Me senti um trabalhador aprendendo uma nova profissão a de saber ler e escrever Me senti um soldado se armando para a conquista da sabedoria escrita que a mais daquela que se aprende vivendo somente se adquire nos livros Anos depois me dei conta de que não havia ido à escola para aprender a viver os fatos da vida mas para me fazer um cidadão civilizado 27 Lá fui eu criança curioso em descobrir como é que se escreve nos livros tudo o que acontece no mundo e daí com eles como é que se aprende a reler o acervo do universo literário que demandou milênios e milênios para se acumular As dimensões do fabuloso e do plausível do ideal e do real não guardam fronteiras bem demarcadas na imaginação infantil Quando crianças temos noções inteligentes das verdades relativas a isto ou àquilo Mas aí preferimos não nos deixar guiar por elas porque na verdade pouco importa ao simbolismo infantil limitar se a acanhadas veredas formais a trilhos de bitolas estreitas Afinal de contas a África do Tarzan a China do Marco Polo as léguas de Júlio Verne as serras do Peri da Ceci e do Saci Pererê etc sem esquecer dos montes Cárpatos com os nevoentos castelos do Conde Drácula se encontram de fato nos mapas da Geografia Física lhes conferindo imaginosas significações que favorecem memorizálas As aventuras dos cangaceiros do Lampião o Navio Negreiro do Castro Alves e as Reinações do Narizinho e do pobre Jeca Tatu com brasileiríssimas liçõesde vida entusiasmavam a leitura da História do Brasil do Rocha Pombo Guardo lembrança de uma escola prestigiando antes de tudo mais a inteligência dos alunos ensinandoos a não a deixarem prisioneira de informações provisoriamente objetivas e tampouco soltála em deslumbramentos subjetivos nem tanto ao mar nem tanto à terra lembro de uma escola criadora de leitores abertos e curiosos para conhecer de tudo um pouco e melhor se situarem nos tesouros de suas preferências espirituais Em suma de uma escola formando conscientes leitores sociais exigentes de que os textos preservem entre outros méritos uma relação evidente entre as definições verbais e as significações sensíveis Bertrand Russell1 falou disso É verdade que a educação procura despersonalizar a linguagem e o faz com certa medida de êxito A chuva já não é mais esse fenômeno familiar mas sim gotas de água que caem das nuvens em direção à terra e a água já não é mais o que nos molha mas sim H2O Quanto ao hidrogênio e oxigênio ambos tem definições verbais que precisam ser apreendidas de cor não vem ao caso que a pessoa as entenda ou não E assim à medida que a 28 instrução prossegue o mundo das palavras vai se tornando cada vez mais separado do mundo dos sentidos por fim tornamonos tão exímios manipuladores das frases que quase não precisamos lembrar que as palavras têm significados No entanto não podemos mais ter a esperança de ser poetas se tentarmos ser amantes veremos que a nossa linguagem despersonalizada não surtirá muito efeito para gerar as emoções que desejamos Sacrificamos a expressão pelo que comunicamos e o que podemos comunicar resulta ser abstrato e seco A propósito de Russell contam que tirando umas férias no campo foi abordado por um camponês que lhe pediu um livro emprestado Ele gostava de ler mas não havia livrarias na região Bertrand então emprestoulhe os Diálogos de Platão No final das férias ao devolverlhe a obra o homem disse que o havia lido três vezes E o senhor gostou do que leu Russell lhe perguntou Gostei muito Muito mesmo O camponês respondeu Esse tal de Platão tem umas idéias muito parecidas com as minhas Superestimar as idéias do filósofo vai muito bem tanto quanto subestimar a priori por preconceito as idéias do homem comum vai muito mal Um e o outro no que de fato são pensadores necessariamente pensam as mesmas verdades da condição humana Daí sabendo disso e levandose na devida conta as diferenças vivenciais de cada um podemos dizer o mesmo sobre as idéias que passam pelas cabeças dos adultos e das crianças Uma criança esperta não deixa por menos adulto sabido de fato só pode ser aquele que tenha idéias muito parecidas com as dela Por isso livros apropriados para crianças tornandoas desde logo conscientes leitores sociais hão de ser os de autores que antes de outros méritos não esquecem que ser criança também quer dizer ter nascido um sábio leitor por acaso provisoriamente analfabeto 1 Bertrand Russell O conhecimento humano Vol 1o p 15 Cia Ed Nacional 1958 29 5 EDMIR PERROTTI Leitores ledores e outros afins apontamentos sobre a formação ao leitor Professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo autor de Bordado Encantado O Texto Sedutor na Literatura Infantil Confinamento Cultural Infância e Leitura Ao tentar elaborar uma súmula que me orientasse na redação deste trabalho veiome à mente um escrito de Sartre sobre a literatura Se me lembro bem a publicação era na origem uma conferência em que o filósofo estabelecia uma distinção entre fazedores de livros e escritores Fugindo do velho chavão da inspiração afinal quem é inspirado quem não é Sartre centra seus argumentos no terreno mais palpável das opções humanas Segundo ele as páginas apressadas e superficiais dos fazedores de livros não estariam interessadas em enfrentar a complexidade e a opacidade dos vínculos que nos ligam ao mundo O compromisso e o engajamento com a causa da existência humana seriam atributos somente de artistas autênticos que tomam a linguagem não enquanto instrumento de decifração rasteira do mundo 31 mas enquanto fonte de prospecção e indagação radicais As colocações de Sartre apontam para um caminho que me parece essencial compreender ao se abordar a questão da leitura Desse modo em que pese todos os condicionantes de diferentes ordens ler é uma atividade que envolve essencialmente um modo de relação com a linguagem e as significações Face a isso talvez seja possível estabelecer uma correlação com o autor de As palavras e dizer há uma distinção fundamental a ser feita entre ledores e leitores Os primeiros seriam sujeitos que se relacionam apenas mecanicamente com a linguagem não se preocupando em atuar efetivamente sobre as significações e recriálas O texto é tábula rasa exposição sem mistérios das poeiras do mundo Os leitores ao contrário seriam seres em permanente busca de sentidos e saberes já que reconhecem a linguagem como possibilidade e precariedade como presença e ausência ao mesmo tempo ambigüidade irredutível face aos objetos que nomeia Lutar com palavras é a luta mais vã entanto lutamos mal rompe a manhã sintetiza Drummond É possível que o leitor pergunte com razão se a distinção inspirada em Sartre faz sentido se não peca pelo reducionismo A melhor resposta talvez seja sim e não Sim porque ao envolver conceitos ela tende à redução Não porque os conceitos expressam pontos de vista e valores a respeito de uma realidade e não são a própria realidade a que se referem E no caso estáse querendo distinguir uma atitude meramente exterior ligeira face à linguagem de uma atitude empenhada compromissada para usarmos terminologia sartreana Estáse tentando distinguir uma atitude reprodutora consumista face à linguagem de atitude criadora e crítica uma vez que no mundo contemporâneo tudo tende ao mercado e ao consumo inclusive a leitura Como sabemos o comércio da escrita não atua apenas sobre os autores sobre aqueles que escrevem mas sobre todos os envolvidos no seu circuito Não são portanto apenas os escritores que estão em risco nas sociedades de consumo Os leitores também estão A lógica de nossas sociedades tende a conferir atenção especial aos ledores deixando margem mínima para os leitores e suas dificuldades Um só exemplo se há cada vez mais livros no mercado de outro lado há cada vez menos condições de exercitarmos leituras reflexivas aquelas que exigem forte 32 concentração que demandam tempo anotações perguntas a outros autores a outros leitores que conduzem a releituras ao estudo de pequenos trechos a embates profundos e intensos entre texto e leitor Se como coloca um autor alemão é verdade que a leitura extensiva é cada vez mais praticada em nosso mundo vale perguntar se o mesmo ocorre com a leitura intensiva aquela que nos lança adiante que permite o salto que nos assalta e é medida muito mais pela qualidade de seus efeitos que pelo número de páginas lidas Nesse sentido ao se atuar no campo da formação de leitores acredito que seja preciso a explicitação de uma concepção de leitura e de leitores que faça distinção entre os conceitos apontados Se as concepções sozinhas não alteram a realidade ações desorientadas também dificilmente obterão resultados em campo tão complexo como o da educação e da cultura Atirar a esmo pode ser fácil mas dificilmente nos fará atingir o alvo desejado Entretanto dadas as condições contemporâneas e em especial as brasileiras não acredito que todas as ações tenham o mesmo valor E é o que se está dizendo quando se afirma que toda e qualquer concepção bem como toda e qualquer forma de ação são válidas Claro que no abstrato poderão ser Mas como o que se deseja é a atuação na ordem históricocultural é a formação de leitores e não de ledores tornase necessário desenvolver práticas afinadas com princípios implicados na distinção Na mesma trilha de Sartre Paulo Freire mostrounos por exemplo a diferença entre promover hábitos de leitura e promover o ato de ler Mostrou nos que a decifração mecânica de sinais é atividade totalmente diversa da ação voluntária sobre a linguagem implicada no ato de ler Hábitos estão ancorados na repetição mecânica de gestos atos na opção no exercício da possibilidade humana de articular o agir ao pensar ao definir ao escolher Desse modo é fundamental deixar claras as concepções implicadas nos programas de promoção da leitura em curso no país É preciso saber se o objetivo é formar consumidores da escrita meros usuários do código verbal ou seres capazes de imprimir suas marcas aos textos que lêem estabelecendo com eles um diálogo vivo e único cujo horizonte não é apenas a busca de respostas mas também a formulação 33 de novas indagações Parodiando Eco é preciso distinguir leitura fechada de leitura aberta já que o horizonte dos ledores é o fechamento e o dos leitores a abertura Antes de continuar é bom explicitar aqui uma questão o nosso encaminhamento poderá levar a crer que aquela leitura descompromissada gostosa que fazemos na sala de espera do dentista na praia no ônibus estaria aqui incluída no rol da leitura extensiva de ledores Não é disso que estamos tratando Podemos sim ter atos descomprometidos de leitura Afinal não estamos permanentemente nas barricadas do desejo A questão está em outra parte Ser ledor quando se é leitor é condição completamente distinta de ser ledor por falta de opções Se a formação de leitores implica necessariamente a definição e o ajustamento de concepções implica também a criação de instituições gestos modos de atuação compatíveis com as opções definidas Assim se as grandes festas editoriais como as feiras de livros são elementos que devidamente utilizados podem colaborar com políticas de formação não se pode deixar de considerar que isoladas elas se dirigem mais aos ledores que aos leitores Da mesma forma pesquisas ou práticas que se preocupam apenas com o número de títulos que um aluno lê por semana por mês ou por ano Ora se a matemática financeira ou não é uma variável que atua sobre a leitura ela está longe de indicar o que quer que seja ao aparecer desvinculada da problemática da formação de leitores e das implicações de ordem simbólica envolvidas nos atos lingüísticos Nesse sentido a formação de uma sociedade leitora envolve não apenas a criação de instituições indispensáveis à sua constituição escolas bibliotecas editoras livrarias entre outras como também uma reflexão aprofundada sobre a natureza dessas instituições o sentido de suas orientações e de suas práticas Tendo em vista os objetivos deste trabalho destaco neste ponto um aspecto da questão que me preocupa bastante atualmente os espaços de leitura Sabedor da importância que eles desempenham na formação de leitores venho dirigindo meu trabalho de pesquisa para esse objeto já que estou certo de que a apropriação da leitura pelo país demanda uma transformação radical nas condições institucionais vigentes nesse 34 âmbito entre nós Em primeiro lugar é preciso lembrar que na sociedade brasileira em seu todo a leitura não é ainda nem hábito nem ato Ao contrário ela é vista como comportamento diferenciador a que somente seres privilegiados bem dotados intelectual cultural e economicamente podem ter acesso As exceções não fazem senão confirmar a regra Em decorrência o que se reserva às maiorias quando muito é o exercício de reconhecimento de signos para atividades imediatas ligadas à sobrevivência ou pouco mais que isso Assim face à falta de intimidade da sociedade em geral com a escrita não espanta que o espaço familiar não se constitua em território de introdução das crianças no mundo da cultura impressa como ocorre em algumas sociedades em que a leitura é um instrumento fundamental de mediação das relações domésticas Nas casas brasileiras a televisão com seus apelos de consumo que continuam reinando absolutos enquanto vivência simbólica comum Em decorrência a criança chega à escola sem essa experiência única da escrita em situação doméstica e que serviria para embasar e facilitar extraordinariamente sua formação de leitor Porém o que faz a escola com essa falta eis o outro nó do problema Ao invés de atuar sobre a ausência ela passa em geral a recriminar a família a responsabilizála por ações que quase nunca tem condições de cumprir Desse modo se a criança apresenta dificuldades para apropriarse da língua escrita tal fato devese à falta de estímulos domésticos à falta de incentivos à omissão dos pais na educação dos seus filhos Ora seguir tal caminho não parece levar a grandes resultados já que a busca de culpados nunca foi a melhor solução onde cabem ações pedagógicas Entendo pois que seja necessário deixar de lado as estratégias de culpabilização e antes procurar meios capazes de incluir as famílias nos projetos pedagógicos seja por meio de ações diretas ou indiretas Talvez valha a pena um exemplo de inclusão bem sucedida que adotamos num projeto de pesquisa que coordeno no Departamento de Biblioteconomia da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo Assim em 1994 criamos em cooperação com a Divisão de Creches da Coordenação de Serviço Social da universidade uma 35 bibliotecalaboratório numa creche do campus que atende crianças de zero a seis anos a Creche Oeste A Oficina de Informação esse o nome do serviço criado estruturouse a partir de um conceito de criança enquanto ser cultural que se constrói em relação Assim se as atividades visam sempre cada criança ou grupo de crianças em sua irredutibilidade irrestrita não são todavia dirigidas apenas a elas Há também momentos para as rodas de histórias que agrupam pais e filhos para as escolhas conjuntas de livros para o empréstimo domiciliar os horários procuram aproveitar o momento em que os pais vêm buscar os filhos para ações informais de troca de informações entre os mediadores da Oficina e os responsáveis pelas crianças Discutese nesses momentos os usos do livro em situações familiares comentase orientase colhemse dados essenciais à estruturação e ao funcionamento do serviço Os pais não vão à creche portanto para simplesmente deixar ou buscar os filhos ou para reuniões pedagógicas Vão também para viver experiências culturais para apropriarse de instrumentos e participar de atividades que até o momento de intervenção da Oficina não faziam parte do repertório da maioria das casas e que pouco a pouco começaram a fazer Criar vínculos com a família parece ser portanto um caminho promissor afirmativo ao contrário da culpabilização paralisante do estado de lastimação reativo e que não leva senão a becos sem saída Claro tal percurso coloca exigências nem sempre fáceis de serem cumpridas Em todo caso a experiência da Oficina de Informação da Creche Oeste vem mostrando que apesar dessas dificuldades é recomendável enfrentar desafios e apostar na invenção As possibilidades de ganhos são altas Assim acredito que especialmente em país como o nosso em que a cultura do livro e da escrita está ainda distante de ser uma realidade viva disseminada por todos os territórios sociais o caminho do estreitamento dos vínculos entre os diferentes espaços de leitura é fundamental escola família biblioteca têm que achar pontos de contato e articulações indispensáveis à formação de leitores Contudo dado o quadro sociocultural do país a iniciativa na maioria das vezes deve caber à escola já que como diz Samir Meserani ela é a agência privilegiada 36 do escrito em nossa cultura Caso existam o papel poderá caber também às bibliotecas como foi o caso relatado da Oficina que de resto encontrase em uma instituição de educação infantil Para exercer tal trabalho é evidente que a escola terá que mudar suas concepções suas relações tradicionais com a leitura e com a atividade pedagógica em geral Em primeiro lugar como já foi expresso antes será preciso redefinir orientações teóricas objetivos metodologias Hoje se muitas ações já são feitas de forma consciente e criteriosa por educadores empenhados e afinados com projetos transformadores muitas são também desenvolvidas de formas inconscientes inconsistentes e burocráticas por profissionais desestimulados sem vontade de mudar de inventar que abdicaram do desejo de se expressar em suas práticas cotidianas Se em boa parte o desestímulo resulta de condições aviltantes impostas à educação no país resulta também da desmobilização pessoal e da ausência de comprometimento político educacional e cultural Em tal contexto a profissão se reduz à sua mera e parca função econômica e seu exercício em tempo de espera da aposentadoria Um terror Evidentemente com tais considerações não desejo deixar de lado a importância das políticas educacionais enquanto motor essencial das transformações pedagógicas Sem isso as ações tendem a ser localizadas pontuais e parciais Logo a democratização da educação e da cultura passa necessariamente por tal questão O reconhecimento da importância dessas políticas e das omissões históricas observadas entre nós nesse aspecto não pode contudo servir para justificar o imobilismo pedagógico Adotar tal ponto de vista seria renderse às forças da morte em detrimento da crença na força explosiva da criação e da imaginação Se está na moda portanto reivindicar luxo para todos não se pode perder de vista que o luxo não significa necessariamente invenção criatividade Ao contrário pode representar o lugar comum o pasteurizado a falta de vida pulsante Se ter condições favoráveis é ponto facilitador das transformações saber conquistálas e mantêlas é tarefa estimulante que deve merecer especial atenção dos educadores comprometidos com a renovação Neste momento cabe mesmo se breve uma palavra sobre outro ponto essencial referente à necessidade de preparação dos mediadores 37 para as novas concepções e práticas Assim acredito que será preciso em primeiro lugar que os mediadores descubram a leitura experimentem eles próprios a condição de leitores já que boa parte infelizmente é forçoso admitir são quando muito ledores Antes de mais nada será preciso que se apropriem do ato de ler e das estratégias pedagógicas ajustadas a tal perspectiva Fazer do mediador leitor e ao mesmo tempo profissional competente na área é condição que se impõe a qualquer programa sério de formação de leitores Como lembra Barthes a leitura não é um conceito abstrato É antes uma prática concreta um jogo um exercício lingüístico Desse modo sem que se pratique será difícil o domínio do processo o reconhecimento de suas dificuldades limites e possibilidades pelo mediador A estratégia do faça o que eu mando e não faça o que eu faço não parece ter muitas chances de vingar no campo de que nos ocupamos Se o papel da família e da escola necessita ser revisto é preciso também que a biblioteca siga novas orientações a fim de ser descoberta pelo país ao mesmo tempo que o descobre É incrível que tenhamos chegado ao final do século XX na situação de penúria em que nos encontramos neste campo É como se em plena era das telecomunicações estivéssemos usando apenas sinais de fumaça para entrar em contato com pessoas de nosso interesse Assim por exemplo uma mãe foi à biblioteca laboratório que implantamos numa escola municipal de ensino fundamental da periferia de São Paulo Queria ver o que era aquele objeto estranho de que seu filho tanto falava e que ela não tinha a noção do que fosse Queria saber o que era o lugar que interessava o filho pois temia que pudesse ser alguma coisa muito perigosa Afinal pensava ela em sua simplicidade e com exatidão são tantas ameaças aos jovens que sem dúvida nenhuma é preciso estar atento O exemplo da sincera e aflita mãe nos dá a dimensão do problema que nos atinge ou seja da distância existente entre biblioteca e sociedade no Brasil Desse modo se o país não é capaz ainda de reconhecer a importância fundamental das bibliotecas as bibliotecas existentes não são capazes de dialogar com o país de se mostrarem e se fazerem essenciais à vida brasileira Com isso retornamos ao ponto de partida é preciso não apenas 38 criar bibliotecas mas também desenvolver novas concepções e práticas articuladas com nossa experiência de mundo nossos traços culturais fundamentais nossos graves problemas socioculturais fome violência analfabetismo pobreza massificação discriminações sociais raciais entre outras questões de igual importância e que atingem a maior parte de nossa população Diante de tal contexto venho trabalhando na ECAUSP na coordenação de equipe de pesquisadores brasileiros e estrangeiros alunos de graduação e pósgraduação educadores de diferentes níveis e procedências na sistematização do conceito de Biblioteca Interativa ou seja na constituição de uma concepção de serviço de informação e cultura capaz de atuar na mudança das relações atuais existentes entre biblioteca e sociedade no Brasil É a partir dessas premissas que foram construídos os espaços laboratoriais a que me referi anteriormente bem como a Estação Memória outro espaço que criamos e desenvolvemos na Biblioteca Infantojuvenil Álvaro Guerra em cooperação com a Secretaria Municipal de Cultura da cidade de São Paulo A construção desses espaços pautouse por uma concepção de biblioteca enquanto espaço transitivo em relação dialógica com a sociedade em que se acha inserida Mas obedeceu a necessidades de sistematização de procedimentos e ferramentas de trabalho indispensáveis à consecução de tais ideais Os resultados já obtidos indicam que estamos no caminho correto e que é possível reverter o fosso existente atualmente entre biblioteca e sociedade no Brasil As crianças da Oficina os alunos que freqüentam a Biblioteca Escolar Interativa da Escola Municipal de Ensino Fundamental Prof Roberto Mange os freqüentadores da Estação Memória indicam que há avidez de conhecimento e de comprometimento com a aprendizagem a cultura e a leitura mesmo em locais com condições socioculturais difíceis e que à primeira vista não se interessariam por livros leitura e outros afins Há crianças da Escola Roberto Mange que fogem do recreio para ir à Biblioteca Interativa como eles próprios a chamam O mesmo já ocorreu várias vezes na creche com crianças pequenas de 4 5 6 anos As novas propostas mostramse assim eficazes e necessárias aos projetos de formação de leitores Os pressupostos interacionistas 39 adotados na configuração dos espaços criados vêmse mostrando adequados e capazes de quebrar resistências nas relações leitura e sociedade Ao se tornar espaço de expressão a biblioteca interativa abre espaço para a efetiva democratização e não apenas para o acesso à cultura É nesse aspecto que o cidadão se distingue do consumidor o leitor se diferencia do ledor Se este tem olhos e ouvidos ávidos aquele tem além disso boca e um desejo urgente de expressão já que se posiciona julga comprometese intensamente com o que lê Diferentemente do ledor o leitor não tem vocação para o consumo sígnico Seu horizonte é a expressão a existência cultural a reintrodução da vida nos registros aprisionados no papel Como diz Michel de Certeau em sua bela metáfora o leitor é caçador que efetua saques em campos alheios tentando assim acalmar sua fome de sentidos e significações A errância é seu destino já que onde vislumbra novos sentidos lá está ele pronto para um novo saque Nesse sentido as bibliotecas assim como os demais espaços de leitura devem oferecerse como campo possível às errâncias e não enquanto territórios inibidores da livre circulação propriedades demarcadas ferreamente vigiadas por pequenas autoridades e seu zelo desmedido pelas regras Jamais tentar portanto aprisionar a leitura eis regra de ouro para os espaços de leitura que desejarem desenvolver ações positivas na formação de leitores A natureza errante destes em contraposição à natureza condicionada dos ledores somente poderá florescer completamente se encontrar campos abertos espaços capazes de permitir as mais belas cavalgadas os mais impressionantes saltos a cavaleiros ávidos e espantados com a riqueza da aventura humana 40 6 ELIANA YUNES Vista de um ponto Eliana Yunes que concorda com Borges e se orgulha mais das páginas que leu do que das que escreveu é professora de Letras e aprendeu que elas são mortas se o homem não as vivifica Pesquisadora criadora do PROLER professora de Teoria na PUCRio com atuação em universidades públicas de vários Estados tem extensa bibliografia teórica e metodológica sobre leitura É também consultora de organismos internacionais O que mais tenho a dizer sobre a formação do leitor depois de ter passado quinze anos vivendo e pesquisando o percurso de ter proposto uma teoria e uma pedagogia que ao que parece ainda não foi refutada nem revista e ampliada por pares e ímpares daqui e dalém mar Uma e outra correm o país e já estão recolhidas em teses e dissertações eximindome da obrigação de concluílas elas caminham com os próprios interlocutores Não não se trata de presunção ou arrogância Tratase de uma evidência invisível como o claro enigma drummondiano que só conhece quem experimenta E disto podem dar testemunho milhares de neoleitores que se vêm constituindo no Brasil com todo o rigor teórico mas sem efeitos especiais de intelectualismo com toda a metodologia preconizada mas sem os malabarismos das receitas técnicas que se 41 tornam obsoletas tão logo mudem os contextos e os sujeitos Mas no mesmo dia em que recebi a convite de Paulo Condini para escrever quatro laudas sobre o tema deste livro e que vacilava em fazêlo chegoume um correio eletrônico de Maria Angela Campeio de Melo com uma mensagem destas que de tanto gostar ela distribuía pela Internet em fragmento Eilo O paradoxo de nosso tempo na história é que temos edifícios mais altos mas pavios mais curtos autoestradas mais largas mas pontos de vistas mais estreitos gastamos mais mas temos menos compramos mais mas desfrutamos menos variedade de cardápios mas menos nutrição São dias de duas fontes de renda mas de mais divórcios de residências mais belas mas lares quebrados São dias de viagens rápidas fraldas descartáveis moralidade também descartável ficadas de uma só noite corpos acima do peso e pílulas que fazem de tudo alegrar aquietar matar É um tempo em que há muito na vitrine e nada no estoque um tempo em que a tecnologia pode levarlhe essas palavras e você pode escolher entre fazer alguma diferença ou simplesmente apertar a tecla Del P Fabro A aproximação meramente casual dos papéis na impressora ofereceume a justificativa e o pretexto Quem me lê deve estar pensando o que tem este texto a ver com o que me foi pedido dizer em exíguas linhas que pareço desperdiçar Nesta escrita sem sofisticações lingüísticas coloquial quase com uma economia de recursos expressivos feitos de pontuações antitéticas em estruturas paralelísticas que leio Para além do dito o implícito e o subentendido uma leitura crítica de mundo Para escrever essa leitura porque ela o é não sendo necessário lembrar Paulo Freire grafandoa em um instantâneo de frases curtas o autorleitor de mundo deve ter se debruçado atentamente sobre a vida dos homens neste final de milênio com os valores e expectativas de seu repertório pessoal recolhidos de um amplo acervo de memórias atuais sobre a condição humana em hora de profundas contradições Sabendo que na linguagem os discursos tanto flagram a natureza 42 dada das coisas em seu recorte cultural quanto fazem surgir nos desvãos do consenso e da linearidade a palavra inaugural que surpreende outras versões de mundo podemos dizer que um leitor se vai constituindo também por ela Enquanto pronunciase como um pronome eu sujeito conscientizado de seu lugar histórico e responsável pelas conseqüências de seu dizerpensarfazer o leitor alcança uma singularidade própria e comunicável passível de ter assinatura Ela a singularidade se dá como expressão de uma compreensão súbita que não ignora o contexto os interlocutores e suas outras motivações ela propõe sentido para o vácuo que há entre o mundo e o anseio de plenitude e transparência do homem na visão desse leitor e se oferece como escrita Ela a linguagem é denúncia de nossa doença de nossa falta e ao mesmo tempo nosso remédio e cura ponte sobre o vazio A leitura singular é resposta e recusa à passividade leitura é mais que recepção O leitor que percebe as fraturas de nossas práticas quer acusálas na criação o que nem sempre se dá sem conflitos E lá está a palavra que convida a sair da casca que provoca incita o próprio desejo de ser outro e não o mesmo Galos sozinhos não tecem manhãs Recorrer à literatura realiza isto porque não diz antes pede a seu leitor que o diga que se pronuncie e tendo lido escreva Isto fez Fabro e faço eu fisgo pela palavra a não palavra só se é escritor porque antes se é leitor Mais ainda vejo no texto quantas observações atentas em marcas da língua aparecem singularmente articuladas reunidas para insinuar a dissonância que afinal expressam faço a leitura da palavra Nela subitamente o novo a outra coisa a terceira margem e nós seus leitores que nos inscrevemos no texto apertando a tecla ENTER pronto aqui estamos parceiros das subjetividades com que construímos o mundo não apenas porque endossamos rejeitamos ou polimos o texto e as idéias Mas sobretudo porque ouvindo nossa voz no comentário criamos e sabemos então o que é ser humano 43 7 ELIZABETH DANGELO SERRA O direito à leitura literária Pedagoga assumiu a Secretaria Geral da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil em 1989 e desde 1996 é membro da Comissão Coordenadora do Programa Nacional de Incentivo à Leitura da Fundação Biblioteca Nacional PROLFR Os Congressos de Leitura COLE promovidos pela Associação de Leitura do Brasil ALB reúnem de dois em dois anos um número cada vez maior de pessoas vindas de todas as regiões do País que esperam ouvir falar conversar aprender trocar experiências e refletir sobre questões de leitura e de escrita O crescente interesse pelo tema do congresso como área de estudo e como prioridade na ação educativa traz algo novo com grande força política além de aprimoramento profissional conferindo aos participantes um papel de vanguarda na educação e na cultura Tratase da conscientização da função social da leitura e da escrita como resultado de um compromisso com a melhoria da qualidade de vida da população Embora esta conscientização ainda seja muitas vezes afetiva e 45 emocional é objetiva quanto à meta a alcançar Essa determinação merece ser ressaltada pois seu efeito multiplicador é fortalecido nesses congressos ampliando assim o potencial revolucionário da leitura na ação individual de cada professor leitor Sabemos que a transformação de nossa realidade educacional é muito mais complexa que o desejo de transformar Mas é o desejo e a paixão que impulsionam o início de uma possível mudança Entendemos a formação do leitor como um processo histórico dinâmico e dialético de reconhecimento de signos escritos pertencentes a uma determinada estrutura lógica cujos significados somente se expandem e se multiplicam através de uma alimentação permanente e variada de textos escritos e de entornos e contextos culturais motivadores da leitura processo onde apesar de silenciosa se trava uma disputa de poderes A ausência de bibliotecas públicas modernas no País com bons acervos e bibliotecários preparados para atender à necessidade de leitura e de informação da população é a expressão dessa disputa como reflexo da concentração de poder sobre o conhecimento Os programas de alfabetização de adultos por exemplo para abrir de fato a eles as portas do mundo da escrita não deveriam ficar restritos aos bancos escolares mas acontecer nas Bibliotecas Públicas Somente através delas a emoção de ler pela primeira vez poderá ser alimentada da mesma forma como fazem aqueles que já são leitores porque podem comprar livros ou freqüentar bibliotecas Não basta ensinar um adulto a ler É necessário garantirlhe o direito à convivência com livros revistas e jornais para que seja um leitor As crianças e jovens brasileiros cujas famílias também não podem formar suas bibliotecas particulares devem desde cedo conviver com a leitura e os livros nas bibliotecas das escolas para se familiarizarem com o espaço e quando adultos irem ao encontro delas com naturalidade porque conhecem a importância social dos seus serviços Espantanos o silêncio sobre a importância social das Bibliotecas Públicas por parte dos intelectuais Ao reivindicarem igualdade de oportunidades na educação ou no acesso à cultura raramente falam das funções da Biblioteca Pública para a democratização permanente do conhecimento A omissão dos intelectuais é grave e reflete uma visão 46 elitista e egoísta pois parecem esquecer suas próprias histórias de leitura Sem livros não é possível ser leitor A escola desempenha a função da educação formal contudo é a Biblioteca Pública a instituição do conhecimento que está aberta aos interesses das pessoas por toda a vida e é através dela que a maioria da população tem condições materiais para se formar leitora O prérequisito para escritores criadores artistas cientistas e mesmo jornalistas para exercerem suas funções é ser leitor Também têm que ser leitores os que podem desfrutar plenamente das artes e das ciências para apreciálas estudálas ou reinventálas Isto é uma forma de poder A leitura que os une e forma a base cultural que os qualifica não é a leitura técnica mas a literária A formação de leitores tem sido assim fruto de uma situação histórica determinada por condições econômicas emocionais e culturais O poder abstrato da leitura literária sempre esteve ligado a um poder concreto que é o econômico Contraditoriamente os livros são produtos comerciais o que os coloca numa relação de produção que por sua vez é o que possibilita a sua multiplicação e conseqüente deselitização A leitura apresentada com uma função social maior do que o reconhecimento do código escrito é uma conquista recente Com o advento da industrialização nos anos 20 o mercado exigiu uma mãodeobra que soubesse reconhecer as letras e os números A sofisticação desse mercado passou a exigir mais recentemente trabalhadores com maior capacidade para apreender e absorver tecnologias complexas que exigem leitura de textos mais longos redação de relatórios manuais e conhecimento de inglês Outro aspecto é a mobilidade das classes sociais brasileiras na busca de melhor posição na pirâmide social um dos efeitos do processo de democratização A escolaridade é considerada por grupos sociais mais pobres como fator decisivo para ampliar as suas chances de trabalho e conseqüentemente facilitadora da ascensão social E boa escolaridade é sinônimo de uma boa habilidade de leitura Nos últimos anos a escola pública brasileira tem buscado melhorar as suas condições de trabalho discutindo o seu papel social e valorizando a sua função como entrada principal para a maioria de crianças e jovens no mundo da escrita A compra de livros de literatura pelo Governo 47 Federal vem crescendo e ganhando espaço importante nas escolas A publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais e dos guias críticos dos Livros Didáticos a criação do Programa Nacional Biblioteca na Escola o movimento de valorização salarial do professor a avaliação nacional da qualidade dos vários níveis de ensino a introdução de televisões e computadores no espaço da escola estão colocando finalmente a educação fundamental como prioridade nacional O Ministério da Cultura com os programas Uma Biblioteca por Município e o Programa Nacional de Incentivo à Leitura PROLER que agem de maneira integrada tem divulgado e fortalecido a relação entre a leitura e as bibliotecas Como resultado estados e municípios demonstram interesse pelo assunto através da demanda por bibliotecas situação inexistente até 3 anos atrás Para formar leitores não basta portanto ensinar a ler como fez a escola da maioria da população durante muito tempo e que hoje por ação da sociedade dos professores e dos governos começa a mudar Alfabetizar é uma tarefa simples de ser realizada quando há uma decisão política da sociedade e do governo Mas não basta alfabetizar para formar leitores O Mobral nos ensinou isso e se o programa Alfabetização Solidária não criar as condições para os seus alfabetizados de acesso permanente ao livro o processo de leiturização não ocorrerá por falta de uso da habilidade adquirida É o chamado iletrismo É preciso portanto criar uma estratégia integrada que contemple 1 oportunidades de contato com os textos de qualidade através de muitas muitas bibliotecas escolares e públicas incentivando com apoio da mídia televisão rádio jornal a população brasileira a freqüentar bibliotecas como direito do cidadão criando espaço para o desenvolvimento de uma cultura de bibliotecas 2 valorizar socialmente a leitura e a escrita informando sobre a sua importância e ampla dimensão social desvelando a sua presença em produtos de cultura de massa onde não é percebida como na criação das telenovelas ou na atuação de artistas famosos através da TV teatro cinema música a fim de tornálas a leitura e a escrita desejáveis e necessárias à vida 48 3 investir maciçamente na formação leitora e escritora dos professores principalmente os do ensino fundamental colocando o tema da leitura e da escrita como básico na formação do magistério É necessário que o professor resgate a sua identidade como uma identidade leitora No Seminário que a Fundação Nacional do Livro Infantil e JuvenilFNLIJ organiza e coordena neste 12o COLE o tema da formação do leitor se une à reflexão sobre os projetos da sociedade que nós adultos queiramos ou não deixamos registrados através das leituras dos livros que oferecemos às crianças e jovens A partir desse foco propusemos a reflexão sobre três pontos estruturais na formação do indivíduo ética estética e afeto que servem de alicerce para os sentimentos de liberdade solidariedade e para os processos de criação Ao escolhermos o livro de literatura como representação dessa interferência entendemos que como já foi dito a leitura literária contribui fortemente para a formação integral da pessoa Estabelecendo o livro a leitura a escrita e a ilustração como pontos de contato entre crianças jovens e adultos queremos dizer que formar ou não leitores é responsabilidade de todos os adultos leitores onde quer que eles estejam ou em que função trabalhem numa demonstração prática e não só teórica sobre o que é partilhar bens culturais O leitor em potencial é único e por isso só pode ser formado um a um Não se formam leitores em série E só um leitor forma um leitor Ler no livro o texto literário para o outro criança jovem ou adulto partilhando a emoção de cada palavra através da voz e do movimento desperta o interesse pela leitura e demonstra afeto e atenção explicitando a forte relação entre literatura e emoção entre um leitor e outro leitor Na última Feira de Livros para crianças e jovens de Bolonha em abril de 99 tivemos a oportunidade de ouvir e conhecer Daniel Pennac professor francês e escritor durante uma palestra para professores italianos promovida por sua editora na Itália sob o título o Direito de Ler Em seu livro Como um romance Pennac defende uma pedagogia de leitura através da leitura partilhada em voz alta No entanto sua principal mensagem para os professores foi que esquecessem as mensagens não formulassem perguntas sobre um texto 49 literário dando a oportunidade ao aluno de perguntar falar conversar o que quiser pois a literatura é provocadora do pensamento Disse também que o professor deve controlarse reprimir sua ansiedade e acreditar no potencial da criança e da literatura dando ouvidos ao pequeno leitor Ao terminar a palestra Pennac leu um texto que criou para o evento cujo título é o nome do seu novo livro Excelentíssimas crianças não publicado no Brasil e que transcrevo para vocês encerrando o nosso ponto de vista sobre a formação do leitor Excelentíssimas crianças Se eu fosse vocês a primeira coisa que pediria à professora ao entrar na sala de aula pela manhã seria Professora leia uma história para nós Não existe melhor maneira de começar um dia de trabalho E no final do dia quando a noite chega meu pedido ao adulto mais próximo seria Por favor conte uma história para mim Não existe melhor maneira para escorregar nos lençóis da noite Mais tarde quando vocês já forem grandes lerão para outras crianças aquelas mesmas histórias Desde que o mundo é mundo e que as crianças crescem todas estas histórias escritas e lidas têm um nome muito bonito literatura Bibliografia LAJOLO Marisa ZILBERMAN Regina A formação da leitura no Brasil São Paulo Ática 1996 LEITE Paulo Moreira DE MARI Juliana Andando para cima Revista Veja São Paulo Abril 1602 6871 jun 1999 50 8 ELZA LUCIA DUFRAYER DE MEDEIROS Não tenho um caminho novo O que tenho de novo é o jeito de caminhar Thiago de Mello Carioca professora assistente social e pedagoga Membro da Equipe pedagógica do Programa Leia Brasil desde março de 1995 atualmente coordena a Assessoria Pedagógica dos seis estados em que o programa se faz presente Contos poesias músicas reportagens retratos causos receitas ilustrações pinturas esculturas histórias contadas romances novelas programas de TV filmes de curta e longa metragem desenhos animados quadrinhos livros de imagem propagandas Oferecer numa reunião descontraída um banquete de leituras sem préconceito sem o estigma de boa ou má literatura Para isso incentivar a procura de um lugar agradável onde todos se sintam à vontade longe dos ritos pedagógicos um lugar onde não se fale em planejar avaliar objetivar etc De preferência um local onde os encontros não sejam habituais a biblioteca o refeitório um canto do pátio ou embaixo de uma árvore no quintal Que esses encontros aconteçam de quinze em quinze dias uma 51 vez por mês aos sábados no horário complementar Não importa O importante é que sejam sistemáticos que estabeleçam uma rotina prazerosa e não se tornem um evento um tapaburaco nas reuniões pedagógicas ou um espaço de reflexão no início de qualquer atividade Que haja um tempo no qual a leitura seja compartilhada no qual se possa refletir discutir estar contra ou a favor comentar dar e trocar opinião descobrir e revelar talentos não aflorados ou desconhecidos por falta de oportunidade Que possibilite o conhecimento entre os participantes quase sempre estranhos apesar do convívio de longos anos e que permita que eles se identifiquem e se emocionem com as leituras partilhadas com os colegas O suporte técnico e metodológico desses encontros vem através de oficinas sistemáticas de leitura realizadas por especialistas cuja área de excelência deve estar de acordo com uma temática previamente estabelecida fio condutor do trabalho e estímulo à criação de um repertório de leitura Contos de fada viagens e utopias mitos e monstros espaços maravilhosos viagens interiores monstruosidades modelo feminino o herói imagens os diferentes modos de ver e ler o mundo foram algumas dessas temáticas lidas e compartilhadas com toda uma gama de memórias vivências conhecimento do mundo experiências inquietações evidenciando o trabalho com o indivíduo ali presente esperando que essas vivências despertem no profissional uma nova postura frente às práticas utilizadas no trabalho com a leitura Estas estratégias vêm sendo oferecidas e estimuladas pelo Leia Brasil ao longo dos seus oito anos de existência enquanto programa de leitura e dos quais participo há cinco anos como membro da equipe pedagógica Os relatos referemse ao trabalho dirigido aos profissionais de ensino das escolas públicas por ele atendidas e que constituem a força do programa e o ponto de partida para a formação do aluno leitor Estimulamos também o uso e a leitura de diferentes linguagens através da itinerância de exposições vídeos educativos e atividades especiais Existem resistências à promoção da leitura Elas se mostram nas célebres desculpas como falta de pessoal disponível para o trabalho 52 falta de tempo para ler e na real falta de dinheiro para comprar livro A essas situações respondemos não só com a presença do caminhãobiblioteca e seu acervo de livros de literatura mas também com o tempo conquistado para a leitura compartilhada As respostas à ação do Leia Brasil são muitas bibliotecas sendo abertas salas de leitura inauguradas ou reativadas bibliotecas repletas de alunos na hora do recreio alunos matando aula na biblioteca hora do chá literário promoção de café da manhã da leitura criação de clubes de trocas de livros reuniões para leitura nos finais de semana grupos formados para realizar visitas a museus e exposições e para assistir a peças teatrais organização de grupos de contadores de histórias saraus de poesias surgimento de escritores e poetas O trabalho é de conquista e sensibilização Ele necessita de tempo e da crença das instituições de ensino de que o exercício pleno da leitura contribui para a formação de indivíduos capazes de realizar uma análise crítica do seu cotidiano levandoos a uma participação social mais coerente com a consciência dos seus direitos e deveres Como Fernando Sabino temos A certeza de que estamos sempre começando a certeza de que é preciso continuar e a certeza de que podemos ser interrompidos antes de continuarmos E também como nos ensina Fernando Sabino pretendemos Fazer da interrupção um caminho novo da queda um passo de dança do medo uma escada do sonho uma ponte da procura um encontro 53 9 EZEQUIEL THEODORO DA SILVA A formação do leitor no Brasil o novovelho desafio Formado em Língua e Literatura Inglesa pela PUCSP Doutor em Psicologia da Educação e ProfessorAdjunto pela UNICAMP Foi fundador da Associação de Leitura do Brasil ALB e Secretário Municipal de Educação de Campinas Membro do Comitê Estratégico do Leia Brasil Programa de Leitura da Petrobras Ainda que as diferentes motivações para as práticas de leitura estejam vinculadas a condições super e infraestruturais de uma sociedade não há como negar que a escola enquanto instituição encarregada pela formação educacional das novas gerações exerce um papel de máxima importância no processo de preparação de leitores Nestes termos pode ser afirmado que a um ensino de qualidade atendendo a critérios de excelência seguese a formação de leitores maduros com competência suficiente para caminhar livremente pelos múltiplos quadrantes do mundo da escrita No Brasil a leitura vai mal porque a escola está muito mal vivendo carências ambientais e pedagógicas há bastante tempo Tais carências por sinal já reveladas e amplamente conhecidas não vêm sendo 55 enfrentadas com o devido grau de seriedade e responsabilidade pelos governos o resultado no agora é um cenário desolador cuja transformação depende de volumosos investimentos no sentido de recuperar o tempo perdido Sabese por exemplo que a biblioteca escolar é uma estrutura imprescindível para a produção da leitura e formação do leitor entretanto a sua viabilização concreta sempre fica para depois fazendo com que o provisório ou pior o inexistente seja reproduzido ao longo dos anos As boas intenções e as grandes metas visíveis em todas as políticas de leitura de início de governo terminam em pizza e aumentam o tamanho do desafio na corrente da história A contradição maior é esta o ensino brasileiro é livresco dentro de uma escola sem livros1 De fato a pedagogia que orienta o trabalho docente nas escolas tem no livro didático o seu sustentáculo maior senão exclusivo A voz e a autoridade do professor são sublimadas em decorrência de uma tradição que estabelece a escolha e a adoção de pacotes impressos ou audiovisuais a partir da mecânica do simples repasse de informações Nestes termos a convivência prazerosa e produtiva com uma diversidade de obras é na maior parte das vezes substituída por um esquema redutor de leitura e por isso mesmo destruidor das possíveis vontades ou curiosidades dos leitores durante a fase da escolarização No que se refere ao condutor do processo de ensino o professor falase em baixa quantidade de leitura E poderia ser de outra maneira A corrosão da dignidade desse profissional revelada principalmente por salários vergonhosos vem acontecendo no país desde o início da década de 70 A sobrevivência dos abnegados do magistério depende de múltiplos empregos eou várias funções concomitantes Não lhes sobra tempo e muito menos energia para ler Não há dinheiro para aquisições freqüentes de livros Não existem programas regulares de atualização via leitura e estudo de obras escritas Dessa forma ou seja imerso num oceano de condições adversas o professor esse espectro do espelho quebrado raramente pode dar o seu testemunho de leitura aos múltiplos grupos de alunos que tem pela frente Daí a improvisação a fragmentação a rarefação do ensino da leitura na escola o que engendra práticas de leitura em moldes mecanicistas e no mais das vezes sem nenhuma significação para os estudantes 56 Quando um desafio social permanece no tempo e se esclerosa por falta de ações superadoras ele aumenta em volume e em potência tornando a necessidade de base ainda maior A crise da leitura no seio da sociedade brasileira assinala um quadro de necessidades diversificadas que vem se repetindo e se avolumando há bastante tempo As políticas de enfrentamento visando a minimização eou superação das necessidades da leitura no âmbito das escolas revelaramse até aqui totalmente inócuas porque operaram apenas no nível do discurso porque foram descontínuas eou porque não receberam verbas suficientes para a sua implementação Dessa forma as velhas tradições relacionadas ao encaminhamento pedagógico no contexto escolar continuam inabaladas configurando um círculo vicioso de difícil combate O provisório se eterniza2 o inexistente se cristaliza ao longo dos anos No quadro das velhas e perniciosas tradições deve ser também colocada a esfera da indústria editorial de onde nascem os livros didáticos privilegiando muito mais os critérios mercadológicos ou comerciais do que as demandas culturais reais do mundo educacional Boa parte das editoras brasileiras fatura em cima das desgraças escolares entre elas a ignorância e as opressões vividas pelos professores Os sofisticados aparatos para o jogo contínuo do marketing os lobbies para pressionar a aquisição anual de livros pelas agências governamentais as manobras exercidas em direção ao livro didático descartável a disneylândia pedagógica etc tudo isso revela uma ação vesga ou caolha ainda que extremamente lucrativa frente a uma escola com baixa qualidade de ensino Se os livros didáticos por si só resolvessem as complexas relações do ensinoaprendizagem o Brasil teria sem dúvida o melhor sistema educacional do mundo Triste panorama de contrastes indústria editorial viçosa dentro de um terreno escolar bombardeado Tão bombardeado tão carregado de necessidades que se torna difícil neste momento saber por onde começar os projetos e programas de transformação Por exemplo se é verdadeira a afirmação de que a formação do leitor depende da escolarização do indivíduo cabe pensar nos altos contingentes populacionais que nem sequer chegam às portas da escola permanecendo na escuridão do analfabetismo da palavra 57 escrita Cabe pensar nos altos índices de evasão e repetência escolar levando os jovens a abandonarem a escola Se é verdadeiro o pressuposto de que a formação do leitor depende de uma convivência constante com uma diversidade de obras cabe pensar na ausência de infra estrutura biblioteca bibliotecário sistema regular para o abastecimento de livros etc nas escolas Se é verdadeiro o fato de que a formação do leitor depende de professoresleitores cabe pensar na débil dignidade salarial desses profissionais Cabe pensar também os aspectos de sua formação e atualização profissional E ainda cabe saber quando afinal o Ministério da Educação e o Ministério da Cultura juntos e unidos vão começar um diálogo concreto para traçar diretrizes e estratégias a longo prazo para contemplar criticamente essa amplitude de problemas A leitura vai mal porque a escola está indo muito mal e a sociedade está pior ainda desemprego dependência criminalidade crescente corrupção miséria e fome Nestes termos a promoção da leitura com infraestrutura coerente e a formação de leitores com pedagogias adequadas são apenas grãos de areia dentro de um vasto deserto que aumenta em expansão a cada ano que passa O redemoinho da esperança de alguns continua a varrer esse deserto porém apenas deslocando a areia sem alterações significativas ou duradouras do árido cenário O sofrimento maior para aqueles que refletem sobre as práticas de leitura no território nacional é ter que gritar nesse deserto Continuamente Dolorosamente E ter consciência por exemplo de que Pensar a leitura como formação implica pensá la como uma atividade que tem a ver com a subjetividade do leitor não somente com aquilo que o leitor sabe mas também com aquilo que ele é Tratase de pensar a leitura como algo que nos forma ou nos deforma ou nos transforma como algo que nos constitui ou nos põe em questão frente àquilo que somos como algo que tem a ver com aquilo que nos faz ser o que somos 3 NOTAS 1 A expressão O livro é livresco mas sem livros é de João 58 Wanderley Geraldi servindo como título do prefácio do meu livro Elementos de Pedagogia da Leitura SP Martins Fontes 1988 p IXXIII Ele assim a caracteriza Sem livros praticase no Brasil um ensino livresco o ensino livresco é autoritário mistificador da palavra escrita a que se atribui uma só leitura obedecendo cegamente aos referenciais dos autores e reproduzindo mecanicamente as idéias capitadas nos textos tomados como fins em si mesmos A ausência do livro é compensada pelas máquinas de xerox pelos mimeógrafos pelas apostilas e pelos livros didáticos Produtos de consumo rápido disponíveis descartáveis nunca o livro por inteiro porque seria trabalho estudálo para extrair dele o que se busca não há busca engolemse informações pré fixadas como conteúdos não se degustam conquistas as sopas présilábicas das respostas a repetir não exigem o trabalho de cortar mastigar degustar a papa está pronta 2 A questão relacionada aos aspectos provisórios não permanentes para a promoção da leitura nas escolas foi amplamente discutida por Edson Gabriel Garcia no livro Biblioteca Escolar Estrutura e Funcionamento Pelo fim do provisório eterno RJ Paulinas 1991 Luis Augusto Milanesi através de vários estudos também revela as nossas carências de infraestrutura para a promoção da leitura em sociedade incluindo a escola 3 cf Jorge LARROSA La Experiência de La Lectura Studios sobre Literatura y Formación Barcelona Editora Laertes 1996 p 16 59 10 FANNY ABRAMOVICH Escritora e educadora formada em Pedagogia pela USP Como escritora lançou mais de 40 livros dirigidos a professores adolescentes e crianças Foi crítica de produção cultural para crianças no Jornal da Tarde Folha de São Paulo Rede Globo publicando mais de 500 artigos Membro do Comitê Estratégico do Leia Brasil Programa de Leitura da Petrobras A iniciação com as maravilhanças de uma história acontece em geral adentrando pelos ouvidos da criancinha É a voz da mãe do avô do tio visitante da primeira professora que chama sussurrante para a gostosura de se embalar na lindura dum conto de fadas num episódio da Bíblia ou na magia duma lenda dum poema brincante na aventura de outra criança parecida com ela Se a história for acalentadamente contada o encantamento envolve abraçante e o gostinho de quero mais e mais permanece marcante e marcado Mais tarde é o momento de olhar as histórias seguindo apenas os desenhos ainda tão distantes do indecifrável texto escrito Olhos num vaivém contínuo fissurados nas ilustrações mágicas poéticas desafiantes para decodificar os enigmas escritos debaixo ou do lado 61 Muitas e muitas vezes estes desenhos são feios pesados sem graça apertados e socados nas páginas e a vontade imperiosa é abandonar rápida e definitivamente aquela feiúra pouco imaginativa Mas se atraentes e convidativos chamam pra gostosura de se debruçar nas histórias visuais e formar verbalmente a narrativa Saborear cada página cada traço cada cor cada detalhe Ou se tiverem texto que alguém conte leia devagarinho e a criança retorna sozinha de novo e de novo até se assegurar que conhece aquela coceirenta e divertida historieta E até finge que lê Chega um momento em que a criança adentra pelas histórias lidas por ela mesma Independência exibida Vitória absoluta outra bússola para caminhar pelo mundo Momentos de descoberta surpreendente de mergulho em águas desconhecidas de curiosidade em saber como se resolverão as acontecências anunciadas de arrepios com a tristezura ou a beleza de puro deleite Ou se a história for fraca boba requentada arrastada vive os sentimentos de profunda chateação de irritação de canseira desistente de decepção com o prometido e não sucedido Um pouquinho depois a parada nas estantes das bibliotecas da Escola de casa ou de outras casas onde se lê com alegre desfrute da Igreja do Centro Comunitário do Caminhão do Leia Brasil de onde for A olhadela nas estantes prometendo maravilhanças aventurosas ou garantindo o tédio As dúvidas diante das possibilidades pequenas ou grandes de escolha dos aparentemente promissores Com qual livro ficar Com qual autor passar as próximas horas dias semanas Em que gênero mergulhar O que parece mais cutucante mais irresistivelmente diferente Separações provisórias perguntas pedidos de opiniões de quem já leu volteios e escolha Que pode ser deleitosa ou provocar um baita dum arrependimento ao virar páginas e páginas de pura bobeira de lições ensinantes de sermões implicantes de total falta de humor sem mistérios assustadores sem belezas suspirantes E ter que esperar o outro dia de voltar na biblioteca pra escolher melhor escolhido E ficar na torcida para encontrar a gostosura a febricitação a nova resposta pra pergunta engasgada a gargalhada ou a lágrima que uma história bem escrita traz E aí se embalar no bembom Mais tarde a descoberta das livrarias dos sebos com tesouros 62 empoeirados das feiras de trocas E ficar horas fuçando mexendo mudando de idéia separando fazendo contas se a grana dá pra tudo aquilo reagrupando hesitando até conseguir escolher o que quer mesmo ler naquele dia naquela semana naquele mês Pode ser tão bom como ir numa loja de brinquedos de videogames numa papelaria transada numa lanchonete apetitosa Desfrutantemente saboroso Questão de quem leva pra passear parente ou professor também pensar em livrarias Importante é escolher o lugar pra se ficar com o livro trazido Esparramado no chão deitado na cama encostado nas almofadas apertado na cadeira balançando na rede Cada leitor sabe onde é mais gostoso mais sossegado mais abraçante se largar com as suas páginas cobiçadas ou tratar de ser rápido para engolir as infinitas páginas obrigadas e dar uma paradinha pra pensar no acontecente na belezura duma frase na vontade de copiar uma lindeza no caderno na decepção com o jeito como tudo terminou na brabeza de ter que agüentar aquela chatura sem fim em se perguntar se a professora leu mesmo aquele livro antes de avisar e sem discussão que aquela seria a história daquele bimestre O melhor do ler é que é um jogo que se faz sozinho no tempo da própria curiosidade intervalando quando quer relendo sem pressa o mais mexente ou incompreensível voltando atrás recomeçando desde o comecinho pulando parágrafos copiando outros desistindo na metade prendendo a respiração até chegar na última linha da última página adiando prum outro momento emprestando pra alguém pra poder trocar as impressões do provocantemente vivido passando adiante como presente relendo inteirinho Leitura é embriaguez volúpia fissuração mergulho vital e empurrante queixo caído com o inesperado surpresa da descoberta de um jeito de ser que nem sabia que podia se ter emoção escorregando pelos poros suspiros com a poetura Sem nenhuma cobrança que não as próprias Sem fichas pra responder sem prova pra checar se cada detalhe desimportante foi atentamente observado sem mês determinado para ficar acompanhado daquele volume e não de outro muito mais cobiçado e desejado 63 Leitura é paixão é entrega tem que ser feita com tesão com ímpeto com garra De quem lê e de quem indica Com trocas saboreadas e não com perguntas fechadas e sem espaço pra opinião própria pensada sentida vivida Senão é só pura obrigação E aí como tudo o mais na vida não vale a pena Mesmo 64 11 FRANCISCO WEFFORT Governo cultura leitura e identidade Francisco Weffort é sociólogo e professor da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade de São Paulo Foi professor convidado da Universidade de Stanford nos Estados Unidos Atualmente é o Ministro da Cultura A questão da formação do leitor bem como dos programas de leitura em desenvolvimento e os ainda a serem criados da perspectiva deste Ministério só poderão ser examinados como parte integrante das políticas públicas voltadas para o setor cultural como um todo tendo em vista as nossas estratégias para o setor Desta forma como decorrência da determinação do presidente Fernando Henrique Cardoso no sentido de fortalecer amplamente todas as atividades culturais podemos perceber em primeiro lugar um substancial aumento de recursos do Ministério da Cultura de 1995 a 1998 Ao crescimento do orçamento se deve somar a extraordinária colaboração também por determinação presidencial das empresas públicas especialmente as dos Ministérios da Fazenda das 65 Comunicações e de Minas e Energia O crescimento como decorrência do proposto foi um traço dominante da cultura brasileira nos anos 19951998 É certo que embora também tenham sofrido pesados desgastes em inícios dos anos 90 a difusão do livro e da leitura o patrimônio as artes cênicas os museus a construção de novos espaços culturais o apoio à cultura popular e ao folclore nunca foram obrigados a uma parada tão drástica quanto a do cinema Não se pode porém deixar de assinalar que as áreas culturais mencionadas passaram a partir de 1995 por uma notável aceleração de ritmo e uma extraordinária ampliação de escala É evidente que a administração da cultura tem ainda um bom pedaço de estrada a caminhar Mas a caminhada daqui para diante só se fará com êxito por quem for capaz de reconhecer o quanto se caminhou até aqui Os anos 19951998 foram neste sentido decisivos Nos mais diversos setores de atividades pudemos criar programas outros sem prejuízo da ampliação dos já existentes Um exemplo de programa novo é o das bolsas de estudo para o aprimoramento da formação de artistas no país ou no exterior já definido em lei desde 1991 mas que só agora tornouse realidade Até 1995 o Ministério da Cultura não tivera condições de oferecer nenhuma bolsa mas em 1997 e 1998 concedeu 86 A estes programas se junta o de intercâmbio analisado por Eric Nepomuceno que inclui dezenas de visitas de escritores e artistas ao exterior e centenas de projetos de apoio para apresentações de grupos brasileiros na América Latina Estados Unidos e Europa É ainda digno de nota o programa das bandas de música criado em 1976 e que se ampliou consideravelmente nos últimos anos Seguindo tradição firmada desde há algum tempo a da difusão da leitura ampliamos o Proler programa da Fundação Biblioteca Nacional e estendemos a outras capitais do país o Paixão de Ler inspirado no Fureur de Lire de origem francesa e já aplicado com êxito na cidade do Rio de Janeiro Recémcriado o programa Uma Biblioteca em Cada Município atendeu a cerca de 315 municípios de 1996 a 1998 Um ponto a merecer maior atenção é o da concentração dos recursos do mecenato captados nos termos da Lei Federal da Cultura na 66 região Sudeste do país com peso maior no eixo RioSão Paulo Um dos principais objetivos destes recursos tem sido o de favorecer programas como Leia Brasil da Petrobras cuja eficiência é cada vez mais evidente tal o número de solicitação de sua ampliação nos vários estados do país É verdade que a tendência à concentração de recursos no eixo RioSão Paulo ainda permanece não obstante os esforços para ampliar os benefícios para outras regiões contrariando uma visível propensão da cultura brasileira a uma diversidade que se expande para todo o país Parte essencial do nosso desenvolvimento a cultura não poderia deixar de expressar alguns dos nossos desequilíbrios sociais e econômicos Temos por exemplo uma grande indústria do livro e contudo um precário sistema de distribuição através de livrarias Além disso temos um livro que nas livrarias é ainda muito caro Não se pretende dizer que as coisas estejam paradas mas ainda falta muito para que se possa falar de um relativo equilíbrio entre produção distribuição e preços no setor Típico dos nossos desequilíbrios é que o Brasil das grandes cidades cria novas demandas culturais num ritmo muito mais rápido do que o da ampliação das nossas pequenas estruturas de produção e sobretudo de distribuição Em todo caso nem tudo são problemas pois algumas soluções também se apresentam E a distribuição de livros acompanhando a venda de jornais e revistas do Rio e de São Paulo mostra que temos na área uma extraordinária demanda potencial O Brasil é de fato um imenso mercado para os produtos da cultura e temos que passar a enfrentar na escala necessária a questão importante de descobrir os meios de chegar a ele Assim como na área do livro surgiram as megalivrarias Difusão cultural Num pais de dimensões continentais os programas de difusão terão que vir a ocupar um lugar mais relevante talvez prioritário no futuro próximo Muito se tem feito através do Proler programa da Biblioteca Nacional e das edições e projetos de circulação de música e de artes cênicas da Funarte bem como através da Casa Rui Barbosa por 67 meio de suas edições e vínculos com os museuscasas e da Fundação Palmares no campo da tradição afrobrasileira Muito se tem feito também através de filmes e vídeos produzidos pela Funarte e pela Secretaria do Audiovisual os quais buscam registrar e difundir conhecimentos sobre nossos artistas festas e tradições Caminhamos nestes anos além dos livros vídeos filmes música e artes cênicas também na circulação de exposições de artes plásticas quase sempre a partir de iniciativas localizadas no eixo RioSão Paulo A valorização da diversidade cultural diz respeito tanto ao reconhecimento das faces da nossa identidade quanto à critica das nossas desigualdades sociais e regionais Já observou o presidente Fernando Henrique Cardoso falando da economia que se já não somos um país subdesenvolvido continuamos a ser um pais socialmente injusto Algo de semelhante se pode dizer da cultura generosamente diversa e abrangente contrastando com uma estrutura social muitas vezes desigual e excludente Nestas circunstâncias a capacidade da nossa cultura fundamentalmente a leitura de incluir a todos qualquer que seja a sua origem região ou condição social é um trunfo decisivo do processo de consolidação entre nós de uma cidadania democrática Muitos brasileiros se reconhecem como brasileiros e neste sentido iguais no plano da cultura antes que se pudessem reconhecer como iguais no plano da cidadania política É que nós nos formamos como uma comunidade cultural antes de sermos uma democracia política Deste modo a difusão cultural além dos caminhos que abre ao reconhecimento da nossa identidade como nação vale também para reforçar os caminhos do nosso processo de democratização Assim como não pode ser vista à parte da democratização política a leitura verdadeiro passaporte para a fruição cultural não pode ser vista também à parte do nosso desenvolvimento econômico No governo Fernando Henrique Cardoso os recursos que o Estado lhe tem dedicado como de resto a toda a cultura têm que ser entendidos menos como gasto e mais como investimento Somados os recursos públicos das esferas federal estadual e municipal eles são apenas uma pequena parcela cerca de 10 dos recursos globais do setor estimados em cerca de 8 bilhões de reais em 1998 Estes recursos públicos são contudo 68 essenciais porque atuam como fermento para fazer o bolo crescer A finalidade da leitura neste sentido como de resto o da cultura não é o mercado mas a formação plena da identidade das pessoas e o enriquecimento da sensibilidade humana Ela vale em si mesma Eis um princípio nunca esquecido no governo Fernando Henrique E isso quer dizer entre outras coisas que o acesso pleno à leitura é como à educação um dever do Estado Há que reconhecer apesar disso e talvez por isso mesmo que nós somos um amplo mercado consumidor de cultura e que a cultura que necessitarmos e que não pudermos produzir nós teremos que importar O cinema é o exemplo mais evidente disso Outro exemplo é o do turismo que em boa parte se apóia em razões culturais e que leva quantidades de dinheiro brasileiro para o exterior Como disse Fernando Henrique Cardoso estamos em uma época de afirmação da nossa autoestima como nação Afirmação diante de nós mesmos e diante do mundo Não temos por que temer o mundo moderno cada vez mais globalizado com as suas fronteiras sempre mais abertas Também nós vamos caminhando na rota da modernização parte que somos de um povo dotado de enorme vitalidade cultural e que vai conquistando passo a passo os sentidos da sua identidade 69 12 GUIOMAR DE GRAMMONT Escritora professora de Filosofia no Instituto de Filosofia Artes e Cultura da Universidade Federal de Ouro Preto Publicou o livro Corpo e Sangue pela Editora DesEscritos em Belo HorizonteMG199I Prêmio Casa de las Americas em 1993 com o livro de contos O fruto de Vosso Ventre publicado em Cuba Atualmente cursa doutorado na USP A pensar a fundo na questão eu diria que ler devia ser proibido Afinal de contas ler faz muito mal às pessoas acorda os homens para realidades impossíveis tornandoos incapazes de suportar o mundo insosso e ordinário em que vivem A leitura induz à loucura desloca o homem do humilde lugar que lhe fora destinado no corpo social Não me deixam mentir os exemplos de Don Quixote e Madamme Bovary O primeiro coitado de tanto ler aventuras de cavalheiros que jamais existiram meteuse pelo mundo afora a crerse capaz de reformar o mundo quilha de ossos que mal sustinha a si e ao pobre Rocinante Quanto à pobre Emma Bovary tornouse esposa inútil para fofocas e bordados perdendose em delírios sobre bailes e amores cortesãos Ler realmente não faz bem A criança que lê pode se tornar um 71 adulto perigoso inconformado com os problemas do mundo induzido a crer que tudo pode ser de outra forma Afinal de contas a leitura desenvolve um poder incontrolável Liberta o homem excessivamente Sem a leitura ele morreria feliz ignorante dos grilhões que o encerram Sem a leitura ainda estaria mais afeito à realidade quotidiana se dedicaria ao trabalho com afinco sem procurar enriquecêlo com cabriolas da imaginação Sem ler o homem jamais saberia a extensão do prazer Não experimentaria nunca o sumo Bem de Aristóteles o conhecer Mas pra que conhecer se na maior parte dos casos o que necessita é apenas executar ordens Se o que deve enfim é fazer o que dele esperam e nada mais Ler pode provocar o inesperado Pode fazer com que o homem crie atalhos para caminhos que devem necessariamente ser longos Ler pode gerar a invenção Pode estimular a imaginação de forma a levar o ser humano além do que lhe é devido Além disso os livros estimulam o sonho a imaginação a fantasia Nos transportam a paraísos misteriosos nos fazem enxergar unicórnios azuis e palácios de cristal Nos fazem acreditar que a vida é mais do que um punhado de pó em movimento Que há algo a descobrir Há horizontes para além das montanhas há estrelas por trás das nuvens Estrelas jamais percebidas É preciso desconfiar desse pendor para o absurdo que nos impede de aceitar nossas realidades cruas Não não dêem mais livros às escolas Pais não leiam para os seus filhos podem leválos a desenvolver esse gosto pela aventura e pela descoberta que fez do homem um animal diferente Antes estivesse ainda a passear de quatro patas sem noção de progresso e civilização mas tampouco sem conhecer guerras destruição violência Professores não contem histórias podem estimular uma curiosidade indesejável em seres que a vida destinou para a repetição e para o trabalho duro Ler pode ser um problema pode gerar seres humanos conscientes demais dos seus direitos políticos em um mundo administrado onde ser livre não passa de uma ficção sem nenhuma verossimilhança Seria impossível controlar e organizar a sociedade se todos os seres humanos 72 soubessem o que desejam Se todos se pusessem a articular bem suas demandas a fincar sua posição no mundo a fazer dos discursos os instrumentos de conquista da sua liberdade O mundo já vai por um bom caminho Cada vez mais as pessoas lêem por razões utilitárias para compreender formulários contratos bulas de remédio projetos manuais etc Observem as filas um dos pequenos cancros da civilização contemporânea Bastaria um livro para que todos se vissem magicamente transportados para outras dimensões menos incômodas É esse o tapete mágico o pó de pirlimpimpim a máquina do tempo Para o homem que lê não há fronteiras não há correntes prisões tampouco O que pode ser mais subversivo do que a leitura É preciso compreender que ler para se enriquecer culturalmente ou para se divertir deve ser um privilégio concedido apenas a alguns Jamais àqueles que desenvolvem trabalhos práticos ou manuais Seja em filas em metrôs ou no silêncio da alcova Ler deve ser coisa rara não pra qualquer um Afinal de contas a leitura é um poder e o poder é para poucos Para obedecer não é preciso enxergar o silêncio é a linguagem da submissão Para executar ordens a palavra é inútil Além disso a leitura promove a comunicação de dores alegrias tantos outros sentimentos A leitura é obscena Expõe o íntimo torna coletivo o individual e público o secreto o próprio A leitura ameaça os indivíduos porque os faz identificar sua história a outras histórias Tornaos capazes de compreender e aceitar o mundo do Outro Sim a leitura devia ser proibida Ler pode tornar o homem perigosamente humano 73 13 GUIOMAR NAMO DE MELLO A escola do futuro uma ponte de significados sobre a estrada da informação Guiomar Namo de Mello é Pedagoga com Especialização em Orientação Educacional Mestra em Psicologia da Educação Doutora em Educação e PósDoutorado em Sistemas Comparados de Educação Atualmente é Membro do Conselho Nacional de Educação e Diretora Executiva da Fundação Victor Civita Nas sociedades contemporâneas a informação e o conhecimento estão se tornando disponíveis a um número cada vez maior e mais diversificado de pessoas A internet rede mundial de informação que torna o hipertexto acessível a um simples toque dos dedos é a expressão tecnologicamente mais avançada de um processo que há mais de 50 anos vem se instalando na nossa cultura Uma consulta à banca de revistas e jornais existente em cada esquina das grandes cidades mostra que o hipertexto há muito faz parte do cotidiano urbano Aí se encontra um mundo às vezes caótico mas sempre divertido de acesso à informação dicionários e jogos instrutivos obras que vão da jardinagem à filosofia passando por esportes decorações atualidades políticas e científicas saúde ecologia e outras 75 Todas a um custo bastante aproximado Acrescentese a isso o enorme poder informativo e formativo da televisão e a possibilidade recente de interação entre os diferentes meios de comunicação para dimensionar o caminho aberto pela autoestrada da informação que só tenderá a ampliarse e a aumentar o número dos que nela navegam O avanço da tecnologia da informação vai propiciar uma mudança no paradigma da produção e divulgação do conhecimento Não é fácil desenhar com precisão o cenário do futuro mas uma coisa parece clara o conhecimento deixará de ser monopólio das instituições que tradicionalmente têm sido suas zelosas depositárias Vale a pena portanto fazer um esforço para resignificar o papel do professor e da escola nesse futuro próximo É preciso reconhecer que para muitas crianças que estão nascendo neste final de milênio a escola não será a única e talvez nem a mais legítima fonte de informações Conseqüentemente o papel do professor sofrerá mudanças profundas A maioria dos professores ainda opera como guardiã de conhecimentos aos quais dá acesso segundo um ordenamento prédefinido e de acordo com metodologias que considera adequadas No futuro próximo no entanto ele terá que assumir também a função de incorporar e significar no contexto do ensino conhecimentos que vêm de diferentes fontes externas à escola quase sempre numa seqüência e lógica que escaparão a seu controle Se quiser que seus alunos gostem de aprender o professor não pode continuar isolado em sua disciplina Além de especialista em determinada área do conhecimento ele terá de desenvolver habilidades para identificar as relações de sua especialidade com outras áreas de conhecimento Essa mudança de papéis vai muito além da mudança na posição física do professor em sala de aula na frente ou junto aos alunos Ela atinge o núcleo mesmo da missão da escola reconhecer que não é possível transmitir conhecimentos com a mesma velocidade e atratividade da multimídia E privilegiar a constituição de um quadro de referência científico cultural e ético para selecionar organizar dar sentido e levar à prática a informação e o conhecimento 76 Construir sentidos com base na informação e no conhecimento poderá ser a tarefa mais nobre da escola na sociedade da informação se a autoestrada da informação estará cada vez mais presente na sociedade às instituições educativas caberá construir sobre essa autoestrada uma ponte de significados que permita aos alunos navegar sem serem atropelados pela quantidade e diversidade de informações que já estão congestionando a nossa visão de mundo Que outra coisa propunham mestres como Dewey Piaget Vigotsky ou Freinet para citar apenas alguns apesar de suas diferenças Esse é portanto um sonho antigo dos educadores mas até hoje não conseguimos que a educação escolar como um todo vá além da transmissão de conhecimentos Será que a tecnologia da informação poderá ser o elemento que faltava A resposta a essas perguntas dependerá de enfrentarmos entre outros desafios o de resignificar os instrumentos do trabalho pedagógico currículos métodos e programas de ensino e perfis de competência dos professores A construção de sentidos na escola terá que ser cada vez mais interdisciplinar ou mesmo transdisciplinar O conhecimento contemporâneo está ultrapassando as fronteiras rígidas do paradigma científico do século passado A estrutura do hipertexto expressa bem essa noção nele muitos links podem ser estabelecidos entre fatos de natureza diferente conceitos que os representam e linguagens que dão suporte à representação conceitual Projetos de investigação de produção ou intervenção real ou simulada na realidade quase sempre considerados extracurriculares terão que ser resignificados como mais do que nunca curriculares Para produzirem conhecimentos significativos as situações de aprendizagem precisam induzir o aluno a referir o aprendido na escola ao vivido e observado de modo espontâneo Daí a necessidade da abertura do currículo para a experiência do aluno e o conhecimento ao qual ele tem acesso fora do contexto escolar Motivar o aluno a aprender requer superar as limitações da transposição didática essa é uma regra pedagógica antiga Mas daqui em diante essa tarefa terá que levar em conta que a experiência dos alunos estará cada vez mais carregada de 77 informações e conhecimentos que não consideram fronteiras nacionais culturais ou etárias Acessar e adquirir conhecimento pode ser um ato solitário A construção de sentidos implica necessariamente na interação pela qual eles são negociados com o outro familiares amigos professores ou interlocutores anônimos dos textos e dos meios de comunicação Toda negociação de significados envolve valores Mas é da educação escolar que a sociedade cobra os valores que considera positivos para as novas gerações Por essa razão mesmo interativas e formadoras de mentalidades as tecnologias da informação e da comunicação não dispensam a educação escolar Desta se espera que prepare os alunos a renegociar os significados veiculados pela mídia por meio da análise crítica Os conteúdos de ensino terão que ser resignificados como meios e não mais como fins em si mesmos Deverão visar menos a memorização e mais as capacidades necessárias ao exercício de dar sentido ao mundo analisar inferir prever resolver problemas continuar a aprender adaptarse às mudanças trabalhar em equipe intervir solidariamente na realidade Não é por acaso que tais competências são as que agregam maior valor ao trabalho e ao exercício da cidadania nas sociedades contemporâneas a organização dos processos produtivos e das práticas sociais também está sendo afetada pela revolução da informação Finalmente é necessário reafirmar a importância da educação escolar na constituição de significados deliberados Ela parte da experiência espontânea para chegar à sistematização e abstração que libertam do espontaneísmo Significados deliberados identificam o objeto do conhecimento sabem como se aprende atribuem valores à aplicação do saber e estimulam sua expressão Só eles têm a universalidade dos significados socialmente reconhecidos como verdadeiros as ciências os valores da diversidade igualdade solidariedade e responsabilidade e a importância das linguagens que os expressam Esses objetivos base da identidade ética e não excludente são perseguidos pela educação escolar desde que Sócrates associou a sabedoria à virtude A incapacidade de alcançálos legitimou condenações ferozes da escola e dos educadores A tecnologia da informação pode 78 ser uma nova oportunidade de cumprirmos com êxito a missão que nos legaram os grandes pedagogos do passado expressando o anseio social de uma vida melhor e mais feliz 79 14 IARA GLÓRIA AREIAS PRADO Para formar leitores na escola Iara Prado é Licenciada em História pela Universidade de São Paulo com Pósgraduação na área de História Social Professora universitária e do Ensino Fundamental e Membro Efetivo do Conselho Estadual de Educação do Estado de São Paulo Membro Efetivo do Conselho da Condição Feminina de São Paulo e Secretária de Educação Fundamental do Ministério da Educação A história escolar vem mostrando que não apenas no Brasil mas em diferentes países do mundo o acesso ao ensino da língua alfabetização e estudos posteriores não tem garantido a competência dos alunos para utilizar adequadamente a escrita Há um enorme contingente de pessoas que tecnicamente aprendeu a ler e escrever na escola e não consegue fazer uso da linguagem em situação de leitura e escrita são os chamados analfabetos funcionais pessoas que em decorrência do tipo de ensino que tiveram não se tornaram capazes de compreender o que lêem e de se comunicar por meio da escrita Porém alguns dados numéricos permitem analisar a dramática situação brasileira no que se refere ao acesso a livros a despeito de todas as estimativas de que os níveis de leitura vêm se elevando Segundo a 81 Câmara Brasileira do Livro o país consome 23 livros per capita ao ano sendo que 60 dos livros vendidos são escolares didáticos e paradidáticos e que parte considerável é distribuída gratuitamente pelo governo nas escolas E o Ministério da Cultura informa que a maior parte do material de leitura adquirido espontaneamente no país é comprado em bancas de jornais e revistas e que as bancas vendem mais livros do que as livrarias Informa também que há apenas 4000 bibliotecas públicas no Brasil aproximadamente uma para 40000 habitantes E somandose a outros tantos disse o escritor Alberto Manguei em entrevista recente a uma revista brasileira Ler é poder A leitura dá poder porque é um meio para compreender o mundo e essa compreensão é uma condição de cidadania além do que lendo podemos nos tornar cada vez mais também cidadãos da cultura escrita Portanto os desafios que se colocam para a escola espaço privilegiado de desenvolvimento da competência para ler e escrever não são poucos pois todas as evidências têm mostrado que essa competência não depende propriamente do acesso a certas práticas convencionais de ensino da língua mas a experiências significativas de utilização da escrita no contexto escolar tanto em situação de leitura como de produção de textos O Ministério da Educação assumindo seu papel de indutor de políticas vem produzindo documentos e incentivando projetos que têm na formação de leitores uma das finalidades principais Os Parâmetros Curriculares Nacionais o Referencial Curricular Nacional de Educação Infantil a Proposta Curricular para a Educação de Jovens e Adultos os Referenciais para a Formação de Professores são documentos orientadores da educação escolar e da formação dos docentes brasileiros que assumem a defesa da formação de leitores como uma prioridade e sugerem possibilidades de trabalho pedagógico para incentivar a leitura e desenvolver a capacidade dos alunos de fazer uso real da escrita O Programa Nacional Biblioteca na Escola que distribui livros de literatura obras de referência e materiais de apoio a alunos e professores de escolas públicas de ensino fundamental e o projeto PróLeitura na Formação do Professor que integra o Programa de 82 Cooperação Educacional BrasilFrança e é resultado da iniciativa conjunta do MEC e da Embaixada da França são ações complementares com a mesma finalidade A tarefa é cada vez mais criar condições favoráveis para o desenvolvimento de propostas eficazes de formação de verdadeiros usuários da linguagem o que pressupõe trabalhar com os diferentes textos tanto em situações de produção como de compreensão No que se refere à leitura isso implica um amplo trabalho não apenas com livros mas com todos os materiais em que a palavra escrita é ferramenta para o acesso à informação ao entretenimento à compreensão crítica do mundo Principalmente quando os alunos não têm contato sistemático com bons materiais de leitura e com adultos leitores quando não participam de práticas onde ler é indispensável a escola deve oferecer materiais de qualidade modelos de leitores e práticas de leitura eficazes Essa pode ser a única oportunidade de esses alunos interagirem significativamente com textos cuja finalidade não seja apenas a resolução de pequenos problemas do cotidiano É preciso portanto oferecerlhes os textos do mundo não se formam bons leitores solicitando aos alunos que leiam apenas durante as atividades na sala de aula apenas no livro didático apenas porque o professor pede Sem um trabalho com a diversidade textual certamente não é possível formar leitores competentes ou seja pessoas que por iniciativa própria são capazes de selecionar dentre os textos que circulam socialmente aqueles que podem atender às suas necessidades e que são capazes de utilizar procedimentos adequados para ler Hoje se sabe que o desenvolvimento da capacidade de ler depende em grande medida do sentido que a leitura tem para as pessoas do ponto de vista de quem lê a escrita deve responder a objetivos de realização imediata É assim que acontece fora da escola lemos para solucionar problemas práticos para nos informar para nos divertir para estudar para escrever ou revisar o próprio texto Certos textos lemos por partes buscando a informação necessária outros exaustivamente e várias vezes outros rapidamente outros vagarosamente Às vezes controlamos atentamente a compreensão voltando atrás para checar nosso 83 entendimento outras seguimos adiante sem dificuldade entregues apenas ao prazer de ler outras realizamos um grande esforço intelectual e a despeito disso continuamos lendo sem parar Toda criança jovem e adulto têm direito a essas experiências de leitura também na escola Isso requer um trabalho pedagógico criteriosamente planejado não só com a diversidade de textos mas com a diversidade de objetivos e formas de ler Para tornar os alunos bons leitores para desenvolver o gosto e o compromisso com a leitura a escola terá de mobilizálos internamente pois esse é um aprendizado que requer esforço Precisará fazêlos achar que ler é algo interessante e desafiador algo que conquistado plenamente dará a eles autonomia e independência E terá de oferecer condições favoráveis para as práticas de leitura que não se restringem apenas aos recursos materiais disponíveis pois na verdade todas as evidências têm revelado que o uso que se faz dos livros e demais materiais escritos é o aspecto mais determinante para a formação de leitores de fato 84 15 JASON PRADO Ingenuidade e inconseqüência Publicitário jornalista Professor Convidado da cadeira de Promoções e Merchandising da Escola de Comunicação da UFRJ e Diretor Geral do Programa Leia Brasil Programa de Leitura da Petrobras Nos primeiros dias do ano de 1992 levamos à Petrobras um projeto de bibliotecas sobre rodas que ao nosso ver atenderia com desenvoltura às necessidades de relacionamento institucional daquela empresa com um público especial constituído por alunos e professores das escolas públicas da cidade do Rio de Janeiro Por pura ingenuidade nós não dimensionamos o que havia por trás daquela porta que timidamente acabávamos de abrir O pretexto ou justificativa que adotamos para abrir as escolas às mensagens corporativas da maior empresa brasileira foi o de ajudar a formar leitores a partir de uma oferta constante e sistemática de bons livros de literatura e ele acabou se configurando numa necessidade tão veemente da rede de ensino que hoje precisamos encontrar justificativas 85 para não atender com o que resultou daquele projeto inicial as centenas de milhares de escolas de todo o país Desde a primeira visita do caminhão colorido à primeira escola deu para perceber pela euforia das crianças que pelo menos em parte nós tínhamos acertado o Leia Brasil tinha um público Também por ingenuidade naquele trabalho embrionário que resultava de algumas pesquisas sobre a nossa realidade educacional sob a ótica da publicidade e da comunicação social que era a nossa pauta imaginávamos que a dita oferta de livros seria o abretesésamo para uma nação de leitores Por isso o batizamos com o subtítulo de bibliotecas volantes centrando toda a sua conceituação na idéia de um contêiner de livros ambulantes Levou algum tempo até que percebêssemos um vazio que se instalava nas escolas logo após o impacto da chegada do caminhão professores que se afastavam para matar o tempo atualizando papos alunos das primeiras séries do primeiro grau desfilando livros densos e enormes pelos pátios bibliotecárias escolares torcendo o nariz para o projeto invasor Era o princípio do caos Foi quando despertamos para o fato de que há outros fatores de grande importância para a formação de leitores do que a simples possibilidade do contato com o livro Com o apoio do Proler que acabava de ser criado pela Fundação Biblioteca Nacional descobrimos que não basta oferecer livros Mais ainda descobrimos que será difícil encontrar um aluno que leia sem um professor leitor Por pura ingenuidade começamos a trabalhar a leitura nas escolas pelo viés da sedução Utilizamos mais de uma centena de técnicas e artifícios para seduzir alunos e professores para a leitura e abrimos ao máximo o significado do termo dandolhe a dimensão do universo quem lê constrói uma nova dimensão de significados Quem lê viaja pelo mundo da fantasia Fomos em busca de outras parcerias oferecendo a fome de nossos alunos em troca da sede atávica das entidades por público cativo Sem custo para as partes 86 Com isso enriquecemos nosso arsenal de seduções exibindo telas de Debret em Alagoas índios Karajás em São Paulo Portinari na Bahia Levamos gente para aprender História do Brasil jogando RPG no Museu Histórico Nacional Promovemos visitas guiadas aos mais fantásticos espaços culturais da atualidade da Academia Brasileira de Letras ao Paço Imperial Levamos artistas inimagináveis para escolas de subúrbio E fomos todos viver a Aventura do Teatro1 Paralelamente iniciamos um trabalho de valorização do professor mexendo com sua autoestima e provocamos a libertação das suas identidades aprisionadas Coisas que só se faz por máfé ou ingenuidade E por isso fomos inconseqüentes Alguns dos nossos alunos e professores começaram a querer ler Alguns gostaram Uns tantos até passaram a escrever a contar histórias a declamar poemas a trabalhar com teatro artes plásticas Em algumas das nossas escolas toda a comunidade educadores alunos vizinhos pais etc se reúne uma vez por semana durante mais de uma hora para conversar sobre suas leituras de filmes de livros de músicas de reformas de fachadas de prédios que viram pelo meio das ruas Em suma do cotidiano Nossa inconseqüência gerou uma enorme pressão sobre a Petrobras que a cada ano tem aumentado nosso raio de ação e ampliado significativamente o alcance de nossas propostas Hoje se você está lendo essas linhas em 1999 e for um dia útil no calendário escolar aproximadamente 28 mil alunos estarão visitando nossas 16 bibliotecas volantes devolvendo e emprestando livros Amanhã outros tantos E depois de amanhã também E assim sucessivamente até que nossos 610 mil usuáriosmês completem um ciclo de visitas Depois começa tudo de novo até o fim do ano letivo Esses números como todo número numa narrativa são relativos O que são alguns entre milhões Não importa Não é disso que estamos tratando e sim do fato de que de certa forma alguns estão se tornando leitores E mais alguns já 87 chegaram ao simbólico estágio da leitura silenciosa com vocabulários ampliados compreendendo textos e falas complexas É possível portanto formar leitores Ou seja há caminhos pelos quais se consegue modificar o comportamento de pessoas Esse é um dos pressupostos da Comunicação e é sintomático que o Leia Brasil tenha nascido como uma proposta de trabalho de relações públicas Ele acabou transformandose num veículo de massa e como tal tem modificado o comportamento de leitura de um expressivo contingente populacional Seria formidável se outros veículos de massa se envolvessem nessa questão de formar leitores Mas isso é muita ingenuidade de nossa parte E as conseqüências então seriam por demais imprevisíveis Voltando aos nossos recémchegados leitores Grande parte desses alunos e professores nos escrevem textos pungentes sobre suas descobertas da leitura e na leitura De um deles quando conquistamos o Prêmio Petrobras de Qualidade pelos resultados do Leia Brasil recebemos um bilhete que nos dava conta de nossa ingenuidade e inconseqüência tal como a descrevemos agora Essa pessoa citando alguém cujo nome nos escapa nos disse o seguinte Ele não sabia que era impossível Por isso foi lá e fez 1 Peça inspirada na obra de Maria Clara Machado 88 16 JOEL RUFINO DOS SANTOS Como me apaixonei por livros Escritor historiador Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ Atualmente é Superintendente de Cultura do Estado do Rio de Janeiro membro do Comitê Científico Internacional do Programa Rota de Escravo da UNESCO e Coordenador no Brasil do Programa das Escolas associadas à UNESCO Nasci em Cascadura tradicional bairro do Rio de Janeiro Carroças recolhiam o lixo puxadas por pobres burros tristes Meu avô aposentado do DLU Departamento de Limpeza Urbana o dono das carroças sentavase na calçada com outro aposentado chamado Bahia e sonhava grandezas Faria uma viagem ao Recife compraria o terreno ao lado se tornaria sócio do Botafogo Nos colégios em que estudei o primário hoje 1a a 5a série e o ginásio de 5a a 8a não havia bibliotecas nem muito menos sala de leitura Além das salas e dos pátios havia é verdade uma sala sempre fechada o quartoescuro Lá o faltoso ficava uma hora defronte da sua consciência Não foi portanto na escola que me apaixonei por livros 89 Onde foi Minha avó materna era de origem caeté ou talvez fulniô ou talvez potiguara de qualquer jeito indígena Trabalhou toda vida de cozinheira veio para o Rio trazida por um ricaço que não queria ficar sem suas mãesbentas e cozidos Era uma contadora excepcional de histórias e quando ficou em cadeiraderodas não podendo mais cozinhar sentávamos à sua volta para ouvir O Soldado Verde O que aconteceu com Malasartes O dia em que Lampião entrou em Cajazeiras Primeiro portanto fui seduzido por histórias Minha família era de religião batista Pai mãe irmãos tios avós todos Os batistas eram de uma religiosidade singela discreta e puritana portanto algo hipócrita Aí pelos oito anos tive uma comoção ao descobrir que o pai do pastor auxiliar não usava meias me pareceu uma pecado sem remissão Eu me alfabetizei na Bíblia depois de aprender a juntar sílabas numa cartilha qualquer Quer dizer o que estava na cartilha eram signos no livro sagrado textos Textos fabulosos fábulas histórias Pessoas como minha avó com sua memória e seu talento de narrar haviam escrito aquilo Podia abrir em qualquer página e viajar A técnica abrir em qualquer página na minha família serviu também para dar nome aos filhos Abriase e com o dedo se procurava o primeiro nome Meus irmãos se chamam Samuel Ebenezer Giré Sic Eu seria Isaq mas minha avó na última hora fez um apelo por Joel Minha mãe esperava que lendo muito a Bíblia eu me tornasse um bom cristão como ela Não me tornei O sagrado no meu caso perdeu para o literário Mergulhado desde menino na Palavra de Deus fui seduzido pela primeira e abandonei o segundo Não lembro com alegria esse fracasso da minha mãe Mas devo contar que naquele tempo todo ambiente das igrejas a minha era a batista de Tomás Coelho era literário Se recitava poesia a fama dos declamadores como por exemplo minha irmã corria a cidade se montavam peças toda manhã de domingo as missionárias com sotaque do meiooeste americano contavam histórias para crianças e enfim havia sensacionais concursos de versículos quem sabia 90 mais etc Um outro tipo de literatura antagônica à Bíblia começou porém a agir sobre mim As histórias em quadrinhos como se sabe surgiram na imprensa americana em fins do século passado Logo chegaram ao Brasil mas proliferaram de fato após a Segunda Guerra Surgem as bancas de jornal fascinantes oferecendo gibis a mancheias e não livros como queria Rui Barbosa Capitão Marvel Flash Gordon Brucutu Ferdinando Capitão América Tocha Humana Nioba a Rainha da Selva Meu preferido era o Príncipe Submarino com suas orelhas de peixe Minha mãe proibia Queixavase das mesmas coisas que muitos pais de hoje com relação à televisão estimula a violência o sexo precoce a superficialidade o banditismo Essa proibição foi o segundo fracasso de minha mãe o gibi ganhou mais um gozo para mim o do proibido Eu sonhava ganhar meu primeiro salário na vida para arrematar inteira uma banca de gibi Estou aqui tentando mostrar como me apaixonei por livros especialmente os de ficção Falei de minha avó da Bíblia e das histórias em quadrinhos Ainda falta uma causa que deixei por último Veio na adolescência quando as outras três já tinham agido Eu entrei no ginásio aos 13 anos Os donos eram metodistas a força do protestantismo na minha formação e praticavam uma pedagogia severa e bondosa No segundo ano começava o latim Na primeira aula professor Matta rechonchudinho e careca se dirigiu ao quadro e escreveu o primeiro parágrafo do De Belo Galico só depois de apresentar o autor general de antes de Cristo que fundou o império romano Julius Caesar começou a traduzir Não sei por que comecei a me sentir diante de um espelho Numa língua desconhecida há dois mil anos atrás do outro lado do oceano um general escrevera algo que eu podia ler se quisesse Quem era eu Um menino pobre filho de seu Antônio apanhador de caranguejo nos mangues de Olinda e dona Felícia favelada de Casa Amarela Quem era ele Julius Caesar Se eu quisesse aprender latim e estava em mim querer Julius Caesar teria escrito o De Belo Galico para mim Ao descobrir isso na aula inaugural do velho professor Matta senti uma alegria íntima e feroz 91 Perdoei a meu amigo Julius Caesar todos os crimes que mais tarde estudei na faculdade Dos fatores que me tornaram um leitor incurável este último é o mais difícil de explicar É bom porém que não se explique completamente tudo 92 17 JORGE WERTHEIN A UNESCO e a formação do leitor Argentino 57 anos PhD em Educação e Mestrado em Comunicação pela Universidade de Stanford Representante da UNESCO no Brasil Para uma Organização das Nações Unidas que há mais de meio século luta contra o analfabetismo no mundo escrever sobre a formação do leitor representa mais um desafio e também uma oportunidade no marco de uma política cujo objetivo maior é o de assegurar a todas as pessoas sem nenhuma discriminação condições para o domínio dos códigos básicos da cidadania quais sejam o domínio da leitura da escrita e do cálculo O mundo lamentavelmente entrará no próximo milênio com aproximadamente 1 bilhão de analfabetos absolutos e 100 milhões de crianças sem escola Se a esses números adicionarmos o grande contingente de analfabetos funcionais verificase logo que estamos diante de um quadro assustador pois privar seres humanos do direito da leitura 93 e da escrita equivale a negar lhes o direito à cidadania Sem dúvida pois como muito bem lembrou Antenor Gonçalves a língua é o grande projeto de formação de cidadania por meio do qual o homem toma conhecimento dos direitos que lhe garantem e protegem a vida nas condições de produção de sua vida social e individual O domínio da língua continua Gonçalves significa o ingresso no universo dos homens livres gerando resistência à opressão1 É devido a isso que a UNESCO atribui prioridade máxima à erradicação do analfabetismo e à educação permanente para todos Não se trata mais de apenas erradicar o analfabetismo embora seja esta uma condição politicamente estratégica mas de garantir educação continuada para todos e por toda a vida A Declaração de Hamburgo Sobre Educação de Adultos aprovada em 1997 admitiu que a educação ao longo da vida é mais do que um direito é uma das chaves do século XXI É ao mesmo tempo conseqüência de uma cidadania ativa e uma condição para participação plena na sociedade Observase que este novo conceito de educação é de grande importância no contexto da discussão sobre a formação do leitor Por um lado significa que o processo de alfabetização precisa ser visto como passo inicial necessário ao início de uma trajetória longa de ler e de ver o mundo com lentes que vão se ampliando para melhor decifrar a realidade por outro significa que a formação do leitor necessita aprendizagens que favoreçam o desenvolvimento da capacidade de análise e de crítica Não é mais suficiente somente ler É preciso mais É preciso saber ler É o saber ler que permite indagar e perguntar Eis aí o sentido pedagógico da leitura Tinha razão George Steiner ao afirmar que ler corretamente é correr grandes riscos É tornar vulnerável nossa identidade nosso autodomínio Sem dúvida é esse tipo de leitura que permite a iluminação da realidade Mas como formar esse leitor Pode ser que existam vários caminhos mas nenhum se iguala ao da escola pública de qualidade que é o locus privilegiado para a aquisição dos instrumentos necessários para uma leitura crítica do mundo É o locus insubstituível onde podem e devem ser construídos os alicerces para que cada aluno sujeito dê início a uma trajetória de crescente autonomia intelectual de 94 forma a garantir permanente aquisição e domínio de saberes Se é verdade que a escola pode desempenhar papel dos mais relevantes no processo de formação do leitor é importante sublinhar que essa potencialidade só se explicitará plenamente na medida em que o projeto pedagógico da escola colocar o ensino da língua em posição privilegiada ou seja o estudo da língua precisa ser entendido como veículo de inserção lúcida do estudante no circuito de idéias de seu tempo O domínio das idéias e da cultura que caracteriza o tempo histórico no qual o estudante se acha inserido é de grande alcance para ampliar o significado das diversas leituras que se tornarem necessárias Para se ter uma idéia de como pode ser importante a leitura e sobretudo a leitura dos clássicos reportamonos novamente a George Steiner que ao comparar o ensino das ciências com o ensino das humanidades afirmou As ciências reformularão nosso meio ambiente e o contexto de lazer ou subsistência no qual a cultura é viável Contudo embora tendo inesgotável fascinação e constante beleza as ciência naturais e matemáticas só raramente são de interesse fundamental Com isso quero dizer que acrescentaram pouco a nosso conhecimento ou controle das possibilidades humanas que comprovadamente existe mais compreensão da questão do homem em Homero Shakespeare ou Dostoievski do que em toda a neurologia ou a estatística2 Se dermos crédito a essa afirmação há muito o que ser reformulado nas escolas de educação básica no sentido de renovar o conteúdo e a prática pedagógica para que o aluno vislumbre um futuro mais cheio de significados E já que se debate tanto o Mercosul quão extraordinário seria se a essa altura autores como Borges Euclides da Cunha Garcia Márquez e tantos outros de uma notável plêiade de valores literários da América Latina fossem lidos e interpretados não como algo excepcional mas como atividade curricular regular das escolas básicas da região Certamente o conhecimento dos problemas e dos desafios latinoamericanos seria percebido por crianças e jovens que estariam em melhores condições para engendrar o futuro 95 Dessa forma verificase que o melhor caminho para a formação do leitor é a instauração de uma escola de qualidade para todos e de todos sem o que qualquer remendo que se fizer a posteriori será sempre insuficiente para que o domínio da palavra e da escrita seja de fato um instrumento de libertação e dignidade humanas É certo que como vimos no início desse texto estamos longe desse ideal face aos grandes déficits do sistema educacional No entanto quando se compara o panorama atual da educação no mundo e também no Brasil com o que existia há mais de cinqüenta anos ao tempo em que a UNESCO foi criada constatase que progressos significativos foram alcançados tanto em termos de alfabetização quanto de escola para todos Ainda recentemente a UNESCO participou em Brasília de seminário de avaliação da Política de Educação para Todos da década Segundo os depoimentos e as próprias críticas ficou evidente o progresso alcançado As oportunidades educacionais estão se universalizando e a luta pela melhor qualidade da oferta educativa também já se iniciou Isso significa que há um cenário de perspectivas concretas que passará a constituir o palco principal de lutas pela universalização da cidadania que certamente ocupará o principal espaço da agenda política do próximo milênio É nesse quadro que a UNESCO concebe o desenho de sua agenda de atuação para o futuro que terá na educação para todos e de todos ao longo da vida o seu eixo norteador 1 GONÇALVES Antenor O Poder da Palavra UNESP Campus de Marília 2 STEINER George Linguagem e Silêncio São Paulo Cia das Letras 1988 96 18 LUIZ PERCIVAL LEME BRITTO Máximas impertinentes Se o leitor possui alguma riqueza e vida bem acomodada sairá de si para ver como é às vezes o outro Se é pobre não estará me lendo porque lerme é supérfluo para quem tem uma leve fome permanente Faço aqui o papel de vossa válvula de escape e da vida massacrante da média burguesia Rodrigo S M na verdade Clarice Lispector A Hora da Estrela Doutor em Lingüística pelo IELUNICAMP Mestre em Educação Presidente da Associação de Leitura do Brasil desde 1993 e Professor do Programa de Mestrado em Educação da Universidade de Sorocaba Autor de literatura e publicações sobre leitura e educação Quando se fala em formação do leitor implicitase muitas outras coisas de que não se fala diretamente A mais evidente delas é a idéia de que nem todo mundo que sabe ler é leitor isto é que ser leitor significa algo mais que simplesmente saber ler algo mais que saber enunciar em voz alta ou em silêncio as palavras escritas em linhas corridas caso contrário formar o leitor seria sinônimo de ensinar a ler Outra idéia implícita é que deve existir alguém ou algo que tenha a capacidade e a autoridade de formar o leitor isto é um agente formador mais ainda que esse formador é leitor e sabe como formar leitores E a mais forte de todas a idéia de que ser leitor é algo positivo caso contrário não se justificaria o esforço empreendido em sua formação Essas idéias têm estimulado programas de incentivo à leitura e 97 justificado as mais variadas campanhas de promoção da leitura são motivo de livros e preocupação pedagógica resultam deem um perigoso e apenas aparente consenso Por isso gostaria de negando o consenso pôr em questão algumas dessas crenças subjacentes ao debate político e pedagógico em torno da leitura apresentando essas que eu chamei de máximas impertinentes A leitura não é nem boa nem má a leitura é a leitura O que é ser leitor Tratase certamente de uma categoria em que se inclui determinado tipo de pessoa assim como ocorre com ser consumidor motorista passageiro espectador usuário assinante pedestre assegurado cliente eleitor Esses são por assim dizer alguns dos atributos que se incorporam à condição de ser de cada indivíduo na sociedade contemporânea e que caracterizam o exercício da cidadania Para cada uma dessas situações supõese um comportamento um direito São situações em que de acordo com o conceito de cidadão de Milton Santos articulamse o espaço público e o privado O mesmo se passa com ser leitor Saber ler é uma necessidade objetiva do sujeito moderno na medida em que a leitura está implicada por muitas práticas sociais e a impossibilidade de realizála impede em alguma medida o sujeito de participar delas E assim como não faz sentido dizer que alguém por ser cliente eleitor usuário ou assegurado tornase melhor ou pior mais ou menos crítico também não faz sentido afirmar que o indivíduo é melhor ou pior mais ou menos crítico por ser leitor Lêse pelas mais variadas razões diferentes tipos de textos em diferentes suportes e em diferentes situações Não há nenhum valor ético ou moral associado ao exercício da leitura ela se presta a muitas finalidades e é realizada por pessoas de todas as índoles de qualquer ideologia Ler é verbo transitivo O mito de que ler faz bem de que torna as pessoas melhores parte do princípio de que não importa o que se leia No entanto não se 98 pode negar que a leitura pressupõe necessariamente o texto que se este não existe sem aquela a recíproca também é verdadeira Assim não se pode pensar a leitura sem pensar os objetos sobre os quais ela incide Ler um romance pressupõe em função dos códigos sociais estabelecidos esquemas e finalidades de leitura diferentes de quando se lê um relatório ou uma receita culinária sei que se pode escrever um poema na forma de uma receita que se pode escrever um relatório literário que é tênue a fronteira entre biografia e ficção mas sei também das convenções que permitem essas possibilidades O leitor de X é leitor de X Outra das idéias que circula muito nas escolas e em programas de promoção da leitura é que o importante é ler não importa o quê Por trás dessa idéia está a crença que uma leitura puxa outra e que a pessoa começa lendo história em quadrinho e conforme pega o gosto pela leitura passa a ler coisas melhores Nada contra que o sujeito leia o que quer ou precisa mas não há como aceitar essa idéia de progressão na formação do leitor As TVs educativas continuam mantendo índices de audiências baixíssimos apesar da enorme audiência de certos programas sensacionalistas Os filmes de autor continuam sendo assistidos por muito menos gente que os filmes de aventura O grande sucesso de jornais populares no Rio de Janeiro não implicou o aumento de vendas dos jornais tradicionais De fato o sujeito vai ler aquilo que tenha relação com seu modo de vida com suas necessidades pessoais e profissionais com os vínculos culturais e sociais Não é a leitura que conduz o indivíduo a novas formas de inserção social É ao contrário o tipo de vínculo que ele estabelece que pode conduzilo eventualmente a ler certas coisas de certo jeito A leitura mesmo feita em recolhimento não é um comportamento subjetivo uma questão de hábito ou de postura é uma prática inscrita nas relações históricosociais Ler não é um prazer ainda que possa ser 99 A aproximação de leitura e prazer é uma das imagens mais freqüentes tanto em campanhas de promoção de leitura quanto em sugestões de métodos de ensino da leitura Supõese que as pessoas se encontrarem prazer na leitura lerão mais e melhor O curioso é que este seria o único prazer que precisaria ser promovido como se fosse uma espécie de prazer secreto ou como se as pessoas não soubessem o que lhes dá prazer É certo que alguém pode encontrar prazer na leitura principalmente quando se associa leitura com entretenimento ou com a experiência estética Mas não é certo que haja relação necessária nem vínculo entre leitura e prazer Ao contrário a leitura muitas vezes exige esforço e concentração intensos é cansativa é feita por obrigação e também não há nada de errado que seja feita assim por motivos profissionais religiosos cotidianos ou outros Eximome de comentar o eventual prazer do masoquista A leitura de entretenimento é um entretenimento Se assisto a um show de música se saio para dançar se fico vendo TV se vou no parque de diversões se jogo futebol se faço um churrasco com amigos ou se leio um livro isso depende dos meus gostos modo de vida e condição financeira Não há até aí nenhum parâmetro de avaliação que permita dizer que esta diversão é melhor que aquela podese isto sim lançar mão de princípios éticos ou sociais para pôr em questão certas diversões macabras Divertirse é muito bom e não tem por que supor que a leitura não seja um bom divertimento Mas enquanto divertimento ela não é diferente de qualquer outra forma de entretenimento prazer por prazer tanto faz ler ou ver Ela não forma ou transforma ninguém não produz nenhuma mudança na sociedade nem conduz a outros hábitos De qualquer modo não se pode esquecer que na sociedade industrial moderna a indústria do entretenimento é uma das maiores do mundo movimentando somas fantásticas de dinheiro Nesse sentido o livro ou revista é uma mercadoria como outra qualquer como um brinquedo um doce ou uma peça de vestuário e cabe aos empresários do setor promover seus produtos 100 O leitor que se promove é um estilo de vida A mulher recostada languidamente em uma poltrona a criança estirada no chão diante de um livro as pernas em movimento para o ar as mãos no queixo sustentando o rosto o moço sentado numa mesa de um café com um livro aberto sobre a mesa o velho com a criança no colo e o livro na mão o intelectual diante de enormes fileiras de livros sisudos São imagens recorrentes em iconografias de leitura Imagens de algo que reconforta diverte instrui instiga a imaginação Imagens que reproduzem um modo de ser apropriado É interessante perceber os objetos que combinam com ler se criança almofada se mulher sofá se homem cachimbo e caneta Interessantemente ao lado desse clichê de leitor bem comportado reside seu antípoda a imagem do maravilhoso maldito o escritor que deixa morrer a amada mas salva seus manuscritos do naufrágio que passa noite em claro debruçado sobre sua obra sacrificando a saúde que experimenta radicalmente a vida e morre ainda jovem de cirrose hepática ou de overdose que se suicida num quarto sórdido de Paris As duas imagens se sobrepõem para construir o mito da superioridade do leitor de um lado o gênio indomável do artista de outro a fruição pacífica do burguês radical Poder ler é direito de cidadania Aqui reside a questão central A escrita e a leitura sempre foram e continuam sendo instrumento fundamental de poder e nesse sentido sempre estiveram e continuam estando articuladas aos processos sociais de produção de conhecimento e apropriação dos bens econômicos A própria alfabetização em massa resulta muito mais das necessidades do sistema do que de uma democratização social ou de uma mudança de consciência dos detentores do poder Portanto o quê e o quanto um cidadão é leitor depende acima de tudo de sua condição social e da possibilidade de ter acesso ao escrito e isto depende das relações sociais Não é por acaso que os dados da pesquisa de mídia Abril 1994 relativos 101 ao perfil do leitor de suas revistas trazem números tão insignificantes para o segmento E exatamente aquele que tem menor poder de compra que vive nas piores condições que tem mais desempregados estranha condição de cidadão essa Ou seja os mais excluídos da leitura são também os mais excluídos da sociedade os que não têm hoje emprego moradia atenção à saúde direito ao lazer Promover a leitura só tem sentido enquanto movimento político de contrapoder enquanto parte de um programa de democratização social Nesse sentido a questão que se coloca é a do direito de ler e não a da promoção deste ou daquele comportamento ou a valorização de tal ou qual gosto O que interessa não é o que um sujeito lê se gosta mais disso ou daquilo se encontra ou não prazer na leitura mas sim se pode ler e ler quanto e o que quiser 102 19 MARIA ALICE BARROSO Romancista bibliotecária e Mestre em Ciência da Informação foi DiretoraGeral do Instituto Nacional do Livro e do Arquivo Nacional Atualmente desenvolve o projeto tema de sua tese de mestrado sobre a biblioteca pública na educação do adulto com acervo especialmente dedicado ao analfabeto funcional Não será demais recordar que nossa geração de bibliotecários aquela que surgiu na década de 50 se fosse interrogada quanto ao real motivo que a teria levado ao estudo da biblioteconomia daria como resposta a determinação de contribuir para a formação do leitor acima de tudo Podia ser até que muitos houvessem enveredado por esse caminho pela afinidade com aquele que seria o leitor infantil e não será difícil compreender que a compreensão do texto tornase cada vez mais completa na medida em que esse texto for mais simples em que as palavras se complementem sem o esforço maior do pernosticismo lingüístico Assim os bibliotecários que passaram a centralizar o seu trabalho naquele leitor em potencial que muitos também chamam de analfabeto 103 funcional descobriram na simplicidade do texto infantil a indispensável aproximação que se oferece aos que se iniciam eou desenvolvem o seu exercício de alfabetização trilhando o caminho da educação supletiva Há portanto uma clara conexão no fato de a biblioteca pública estar sendo amplamente utilizada não só em cursos de alfabetização como naqueles destinados aos analfabetos funcionais Como um centro de informação é possível reconhecer nos bibliotecários os educadores e não meramente instrutores assim é que a educação do adulto passou a conceituar aqueles que não tiveram acesso ao estudo em idade própria ou que só lograram esse acesso de modo insuficiente No Brasil a sugestão de utilizar a biblioteca pública paralela à escola na complementação da educação do adulto tem a ver com a aprendizagem da leitura o material didático deverá ser apropriado para aquele que vem de ingressar na biblioteca a fim de adquirir no mínimo habilidades de escrita leitura e operações numéricas o que deverá facilitar o seu ingresso no mercado de trabalho Os bibliotecários não são servidores da escolaridade porém podem ser considerados como os agentes capazes de transformar o mundo particular dos leitores Eles oferecem acesso a um universo coerente ou a um tipo de poder capaz de estruturar a incoerência através da linguagem Na verdade o bibliotecário expande o seu papel de contribuir para que o usuário aumente a habilidade no processo da leitura Alguma estatística O Library Literary Planning Guide informa que 25 milhões de adultos americanos não sabem ler nem escrever outros 35 milhões são funcionalmente analfabetos 85 dos jovens que comparecem perante a Corte de Justiça são analfabetos funcionais de 4 a 6 dos 8 milhões de desempregados se ressentem de não terem sido treinados pelo menos com habilidades cotidianas o que poderia hoje darlhes oportunidade num emprego de relativa tecnologia Cerca de um terço das mães que recebem autoalimentação são funcionalmente analfabetas Um em cada três americanos se reconhece incapacitado de ler um livro A população existente nas prisões representa a mais alta concentração de analfabetos funcionais JOHNSON SOULE Illinois 1986 p408 104 Na verdade a estatística acima enseja que se indague em que se distingue o analfabeto do alfabetizado que não lê Cabe ainda indagar o que têm feito as bibliotecas públicas pelos que desejam se alfabetizar Definição O analfabetismo como quase todo termo na área da Educação possui vários significados As várias interpretações da palavra ou seja aquela que diz respeito ao analfabetismo do adulto e a que se refere ao analfabetismo funcional nem sempre são adequadas ao contexto em que são usadas Analfabeto funcional é aquele que não consegue ler o formulário do seu próprio emprego nem as instruções que lhe são passadas por seu superior tem dificuldade em realizar operações numéricas ou decodificar as manchetes de jornais Há quem indague por que a biblioteca pública Vale a pena lembrar FLUSSER O bibliotecário animador 1982 p122 que cita a biblioteca pública como o órgão capaz de dar a palavra a quem não a tem Vale enfatizar a transformação ocorrida na alfabetização de adultos que era realizada de forma autoritária FREIRE A Importância do ato de ler 1984 p 83 e agora a palavra é uma ato de reconhecimento do mundo um ato criador Ele pontua que a instrução da educação não se limita ao treinamento técnico a fim de corresponder às necessidades de uma área Na verdade FREIRE não se refere à educação que domestica e acomoda mas à educação que liberta pela conscientização com a qual o homem opta e decide FREIRE inova classificando a biblioteca popular como um centro disseminador do saber e não como um depósito silencioso de livros Em sua obra A importância do ato de ler em três artigos que se completam 1994 p 18 esse educador afirma que falar da educação de adultos e de bibliotecas escolares é falar entre muitos outros do problema da leitura e da escrita Não da leitura de palavras e de sua escrita em si próprias como se lêlas e escrevêlas não implicasse uma outra leitura prévia e concomitante àquela a leitura da realidade mesma Um outro ponto que FREIRE acha interessante sublinhar é que uma visão crítica de educação portanto da formação do leitor se refere à necessidade que têm os educadores de viver na prática o 105 reconhecimento óbvio de que nenhum deles está só no mundo A biblioteca popularpública necessita estimular a criação de horas de trabalho em grupo realizando verdadeiros seminários de leitura Numa área popular que possa ser desenvolvida por bibliotecários documentalistas educadores historiadores poderá ser feito o levantamento da área através de entrevistas gravadas com os mais antigos moradores o que poderia representar o testemunho dos momentos fundamentais da sua história comum PAULO FREIRE recomenda que se faça com esse material folhetos observando total respeito à linguagem dos entrevistados Esse material desde que coletado em diferentes regiões deverá ser intercambiado constituindo um material didático de indiscutível valor nele possivelmente encontraremos o autor recémalfabetizado que o escreveu como também através dele encontraremos o leitor que estará exercitando a sua aprendizagem de leitura Como bem enfatiza o educador PAULO FREIRE um dos aspectos positivos de um trabalho como esse é o reconhecimento do direito que o povo tem de ser sujeito da pesquisa que poderá conhecêlo melhor E não objeto da pesquisa que os especialistas fazem em torno dele A forma como deve atuar uma biblioteca pública a constituição de parte do seu acervo que deverá estar dirigida à formação dos analfabetos funcionais as atividades que podem ser desenvolvidas em seu interior tudo isso deve estar inserido numa política cultural na verdade a biblioteca pública deve também ser utilizada na educação do adulto Até a Segunda República o problema da educação dos adultos não se distinguia especialmente dentro da problemática mais geral da Educação Popular Em sua tese de mestrado VANILDA PAIVA Educação popular e educação de adultos esclarece que a educação de adultos começou a ser percebida de forma independente a partir da experiência do Distrito Federal 19331938 com ANISIO TEIXEIRA como Secretário da Educação e das discussões travadas no Estado Novo quando o censo de 1940 indicava a existência de 55 de analfabetos nas idades de 18 anos e mais 106 Devemos admitir no analfabetismo o traço delineador que sublinha as áreas da injusta distribuição educativa dividindo a humanidade Em certas regiões geográficas é possível reconhecer a existência do analfabetismo da desnutrição da pobreza da mortalidade infantil contribuindo para uma péssima qualidade de vida E também devemos estar conscientes de que não será somente através do combate ao analfabetismo que conseguiremos vencer a injustiça social Vivenciando a véspera do 3o milênio cremos que deva ficar bastante claro que a alfabetização não se engloba somente nas exigências da sociedade ou do governo na intenção de incorporar os analfabetos os analfabetos funcionais na cultura letrada o centro de interesse deve ser a educação do adulto A alfabetização pode ser uma das ferramentas disponíveis para a educação do adulto 107 20 MARIA THEREZA FRAGA ROCCO Leitor leitura escola uma trama plural Não existe texto em si separado de qualquer materialidade fora de um suporte que permita sua leitura fora da circunstância em que é lido CAVALLO e CHARTIER1 Professora titular da Faculdade de Educação da USP e Professora convidada da Universidade de Paris É autora dos livros LiteraturaEnsino Uma problemática Crise na Linguagem A Redação no Vestibular e Televisão e Persuasão além de artigos e ensaios publicados no Brasil e no exterior Reflexões Iniciais Leitor texto leitura termos fundadores de uma relação aparentemente imutável revelam no entanto que entre o traçado da escrita do texto mais fixo e menos sujeito a modificações e as leituras que dele se fazem instaurase conforme M de CERTEAU uma nova ordem em que prevalecem o efêmero a pluralidade e a invenção E por quê Porque segundo o autor nossa sociedade hoje mede a realidade por sua capacidade de mostrar de se mostrar e de transformar as comunicações em viagens do olhar2 O leitor agora busca nos textos uma reapropriação de si mesmo Nesses textos a partir da própria experiência prévia de vida o leitor o espectador se tornam plurais No programa de atualidades da TV no texto do livro ou do jornal leitoresespectadores enxergam paisagens do 109 próprio passado que acabam por integrar às visões às leituras do presente Desse modo os textos enquanto espécies de reservatórios de formas esperam que o leitor lhes dê vida modificandoos enquanto objetos de leitura aos quais são atribuídas múltiplas significações3 Mas nem sempre as coisas foram assim Pelo menos oficialmente Houve um momento em que se acreditava numa ordem fixa mais ou menos secreta inerente à natureza dos textos e inacessível aos não iniciados O livro os textos escritos sacralizados e inatingíveis só poderiam ser objeto de estudo dos privilegiados que transformavam a leitura feita também legítima claro em um produto ortodoxo de interpretação única Assim textos livros lidos por vozes uníssonas prendiamse a um poder social fortemente elitizado e amplamente propagado Foi preciso o tempo passar Foi preciso questionar a estaticidade e a rigidez de certas instituições igreja escola partidos Foi preciso surgir um Roland Barthes para que se começasse a mostrar sem nevoeiros a relação de reciprocidade antes velada que sempre existiu entre leitor leitura e texto Uma vez desvendada tornouse possível então enxergar com nitidez a pluralidade indefinida das escrituras produzidas pelas diversas leituras4 Em nossos dias esse tipo de poder citado ainda pretende ser exercido por exemplo em vários produtos da mídia e na própria escola Na medida em que procuram por vezes isolar os textos de seus leitores e receptores algumas matrizes tentam inutilmente deter a posse e estabelecer uma verdade única dos textos seja por parte dos produtores seja por parte dos próprios professores Inutilmente sim Pois como ensina ainda de CERTEAU por trás do cenário teatral dessa nova ortodoxia se esconde hoje como também no passado a atividade silenciosa transgressora irônica ou poética de leitores ou espectadores que sabem resguardar boa parte da própria privacidade e manter a distância necessária dos mestres5 Leitura Gestos Lugares Suportes A leitura preocupação sempre presente na História não se 110 faz por abstrações Ela se mostra ao longo do tempo como uma atividade que se concretiza pela prática de gestos diversos ocorrendo em variados lugares por meio de diferentes suportes Se no passado o rolo pesado exigia uma determinada postura física do leitor prendendolhe as mãos durante o ato de ler a invenção do códice libertou não só as mãos o corpo e os movimentos do leitor mas também os espaços físicos da leitura e claro os próprios textos Mudanças nos suportes do rolo para o livro do livro para o jornal mudanças nos espaços do interior das bibliotecas para os vários compartimentos da casa dos quartos e salas para a conquista definitiva dos espaços abertos jardins cafés praças públicas mudanças de gestos da posição ereta leitores sentados braços sobre as mesas para a liberação corporal sem restrições deitados em suas camas estirados sobre a grama sentados em bancos de trens ônibus e metrôs todas essas modificações constituemse em pontos fundamentais para compreendermos os períodos que marcaram a evolução histórica desses gestos lugares e suportes da leitura No entanto em que pese a enorme importância destas interfaces a análise exclusiva de gestos lugares e suportes não consegue dar conta do estudo da leitura em suas interrelações mais finas É necessário pois que ao se realizar tal análise não sejam esquecidas outras engrenagens que movimentam e articulam dimensões também essenciais E por quê Porque para além dos gestos lugares e suportes existem grandes diferenças entre aqueles que numa mesma época lêem os mesmos textos Sejam diferenças individuais entre mais letrados e menos letrados sejam diferenças entre mundos de leitores Stanley FISH6 criou uma expressão viva e competente para explicar diferenças de leituras Tratase das comunidades interpretativas que constituem o mundo ou os mundos dos leitores Cada uma de tais comunidades partilha e põe em ação um mesmo conjunto de interesses usos e competências ao ler textos escritos os quais por seu turno circulam em diferentes suportes que são parte integrante e integradora dos próprios processos de interpretação e de significação Exatamente o que se entende por suportes São todos os materiais produtos e equipamentos que permitem a um texto circular 111 Do papiro ao papel do rolo ao livro do volume pesado aos formatos mais leves fáceis de serem transportados e utilizados das páginas policopiadas às outras transmitidas eletronicamente e talvez impressas de modo esparso Isso sem falar das diferentes naturezas de textos verbais visuais híbridos etc Enfim se são muitas as comunidades interpretativas se são diferentes os leitores individualmente dentro da mesma comunidade são plurais também os textos os espaços e os suportes que permitem sua circulação e apropriação Sobre essa dinâmica é que devemos nos debruçar ao pensarmos em um trabalho sistemático com leitura Escola Espaço formal do trabalho com leitura A leitura acontece no cotidiano de cada pessoa também de modo plural Lêse informalmente sobre vários assuntos lêse para aumentar o que se sabe sobre o mundo histórico e factual lêse em busca de diversão e descontração lêse para obter informações úteis e satisfazer curiosidades diversas Lêse na vida em geral de forma não organizada e nem precisa mesmo ser assim Ainda que o trabalho escolar nunca possa divorciarse ou distanciarse do que acontece no diaadia da vida é na escola enquanto instituição formal de educação que atividades ligadas à ampliação do universo cultural do indivíduo ligadas à aprendizagem sistemática dos diferentes campos do saber devem ser concebidas e desenvolvidas de maneira competente Pensandose na questão da leitura também é na escola que podem e devem ser exercitadas organizadamente as práticas da leitura comum cotidiana Textos que circulam no meio urbano no espaço doméstico devem entrar também na escola em todos os níveis de ensino desde a educação infantil passandose pelo curso fundamental até chegarse ao ensino médio momento em que esses textos devem tangenciar outros préselecionados ou com eles estabelecer intersecções Se tanto na vida quanto na escola a leitura acontece de forma multifacetada cabe no entanto à escola a tarefa de alargar por essa leitura os limites do próprio processo de produção do conhecimento e 112 de reflexão sobre o que se produziu Professores alunos textos e leituras devem interagir todo o tempo de forma organizada e sistemática Se por meio de um projeto de leitura na escola podese tentar ampliar os limites do conhecimento tal projeto em todos os níveis terá também que pulverizar equívocos cristalizados pela aceitação não refletida de préconceitos do senso comum sempre repetidos à exaustão mas o projeto deverá proporcionar aos estudantes em diferentes níveis o acesso ao prazer da leitura Prazer que resulta de um trabalho intelectual árduo de um necessário corpoacorpo que se instaura entre o leitoraluno sua experiência prévia de mundo e o texto estético seu autor e os outros leitores virtuais ou reais com quem irá partilhar interpretações e significações recéminauguradas Assim em qualquer faixa etária e de ensino o contato com textos artísticos visuais verbais entre outros precisa ocorrer de forma plena e com a contínua intermediação do professor O texto artístico como por exemplo o literário ficcional ou poético provocará um saudável alargamento das experiências da vida real de cada um ampliando também as possibilidades de refinamento do imaginário pessoal e coletivo A literatura e as outras manifestações artísticas em conjunto quando bem desenvolvidas pela escola geram também fora dela intercâmbios ilimitados entre indivíduo obra de arte e comunidade entre lazer informatividade e fruição A esta altura surge como essencial a atividade do professor De um professor que deve sim ser bem formado e mostrarse capaz de pensar em um ambicioso projeto de leitura para qualquer faixa etária e nível de escolaridade Para tanto alguns requisitos devem ser exigidos desse professor a fim de que seu trabalho com leitura tenha êxito Que o professor seja antes de tudo um leitor O professor A que não lê nunca terá a memória povoada pelas ricas e inesquecíveis imagens fornecidas pelas diferentes formas dos textos de arte principalmente pelos textos literários Se assim for se o professor não se revelar um leitor ele jamais conseguirá trabalhar com leitura Que o professor conheça e avalie criticamente os conceitos 113 de leitura a natureza da leitura e que analise as linhas teóricometodológicas que procuram dar conta de um sério trabalho docente com leitura Que esse professor conheça a carpintaria dos diferentes tipos de textos e saiba avaliálos em seus suportes naturezas e inter relações explorandoos interativamente com os estudantes Que o professor se posicione com firmeza e segurança diante de certas práticas diluidoras de análise textual e de leitura São práticas muito comuns que tentando facilitar o trabalho dos alunos acabam antes por descaracterizar as relações sociais fundadoras da leitura na escola relações que se constroem e se sustentam com base em leituras partilhadas de textos pelos seus leitores Essa facilitação excessiva gera simulacros impede o contato efetivo do aluno com os textos de arte e cria um obstáculo perene para que na escola se atinja o real prazer de ler Que o professor saiba escolher bons textos e de várias naturezas E que para explorálos esse professor crie exercícios inventivos que levem seus alunos à liberação do imaginário ao invés de aprisionar a capacidade de devanear e sonhar dos estudantes na camisadeforça tecida pelas perguntas banais que já pressupõem respostas pré fabricadas e que além de serem um mal em si acabam por estilhaçar a integridade dos bons textos Cabe à escola oferecer condições e ao professor bem formado realizar um competente trabalho de LEITURA com alunos de todas as idades e graus de ensino Referências 1 CAVALLO G e CHARTIER R História da leitura no mundo ocidental São Paulo Ática 1998 v 1 p 9 2 de CERTEAU M A invenção do cotidiano Petrópolis Vozes 1994 p 47 114 3 de CERTEAU M idib p 267 4 de CERTEAU M idib p 268 5 de CERTEAU M idib p 268 6 FISH S Is there a text in this class 9a ed Massachusetts Harvard Univ Press 1995 115 21 OTTAVIANO DE FIORE A formação do leitor uma tarefa Ottaviano de Fiori é escritor e editor Professor de Ciências Sociais na PUC de São Paulo Seus escritos mais recentes tratam do desenvolvimento das ideologias modernas no Brasil Atualmente é Secretário do Livro e da Leitura do Ministério da Cultura e Presidente do Comitê Estratégico do Leia Brasil Programa de Leitura da Petrobras Entre os problemas de nossa cultura a leitura tem um papel essencial e decisivo para o salto civilizatório que o Brasil vem realizando Não há nação desenvolvida que não seja uma nação de leitores Desde o operário que precisa ler manuais até o advogado que precisa decifrar os textos legais passando pelo estudante nos exames o cidadão que enfrenta as urnas a dona de casa que enfrenta a educação da família o executivo que enfrenta sua papelada todos os membros de uma sociedade civilizada são obrigados a utilizar várias formas de leitura e interpretação de livros jornais revistas relatórios documentos textos resumos tabelas computadores cartas cálculos e uma multidão de outras formas escritas É importante perceber que o hábito de leitura de um povo não pode ser considerado igual à sua alfabetização Saber ler não é suficiente 117 para terse familiaridade ou convívio permanente com a leitura Todos os povos civilizados se caracterizam por possuírem uma massa crítica de leitores ativos isto é gente que desde a infância adquiriu o hábito de leitura e que todos os dias manipula com facilidade uma grande quantidade de informação escrita E por detrás desta diversidade dos tipos e meios de leituras encontrase sempre o mesmo objeto o mais poderoso instrumento do saber jamais inventado pelos homens o livro Não é pois exagero afirmar como Darcy Ribeiro que o livro foi a maior invenção da História e a base de todas as outras conquistas da civilização E não é exagero também afirmar que o livro no Brasil não vai nada bem apesar de ter todas as possibilidades de superar esta deficiência num curto prazo histórico Quantos livros os brasileiros lêem por ano Os indicadores indiretos são eloqüentes Nos EUA são produzidos 11 livros per capitaano na França 7 e no Brasil 24 Mesmo considerando que boa parte da leitura do Brasil não é feita em livros mas em jornais e revistas Ou seja muitíssimo menos do que seria necessário para o desenvolvimento do país Esta situação é uma ameaça latente e permanente para o nosso desenvolvimento social econômico e político É fundamental para o futuro da democracia brasileira estabelecer condições para que da multidão de jovens pobres que habita as periferias possa emergir uma massa significativa de pessoas educadas que se integrem nas nossas futuras elites E para que isto se realize é essencial que esta massa de jovens tenha familiaridade com a leitura Sem isso sua ascensão será frustrada nossa democracia continuará a perigo e nossa sociedade continuará pobre Panorama do Livro no Brasil Em 1990 éramos cerca de 144 milhões e produzimos em torno de 16 livros per capita Em 1998 somos quase 160 milhões e estamos produzindo perto de 24 livros per capita o que significou uma melhoria real que pode ser atribuída à estabilização da economia iniciada em 1995 Entretanto este número mantevese o mesmo entre 1996 e 1998 No ano 2000 as projeções indicam que seremos 165 milhões e se o 118 consumo de livros continuar crescendo apenas passivamente produziremos cerca de 25 livros per capita isto é estaremos marcando passo A situação é aliás pior do que pode parecer destes 24 livros per capita produzidos nos últimos três anos apenas 07 são livros não didáticos Ou seja o livro didático que é praticamente obrigatório e distribuído gratuitamente pelo governo federal constitui a imensa maioria dos livros consumidos em nosso país Podese afirmar que na prática o único livro que o povo brasileiro conhece é o escolar e que terminada a escola ele deixa de ter qualquer contato com este instrumento fundamental para o desenvolvimento social político e econômico da nação e dos indivíduos Duas exceções importantes devem ser registradas Uma é o livro religioso que cresce muito mais que os outros setores devido à distribuição mais eficiente e penetrante Outra é o livro infanto juvenil às vezes classificado incorretamente como paradidático que cresceu devido a sua ligação essencial com a escola Constatadas estas duas exceções todo o resto livros de referência literatura técnicos profissionais científicos mantémse dentro dos 07 que não crescem com o passar dos anos e não acompanham o crescimento dos outros setores de nossa economia De fato na última década a quantidade de livros per capita no Brasil tem crescido e decrescido em proporção direta com o aumento ou diminuição das compras de livros escolares pelo estado O livro livremente comprado pelos cidadãos é um mercado que não se desenvolve Os fatores da leitura Estudos globais encomendados pela UNESCO permitiram identificar quais os fatores críticos no estabelecimento do hábito de leitura de um povo ou de uma pessoa ter nascido numa família de leitores ter passado a juventude num sistema escolar preocupado com o estabelecimento do hábito de leitura o preço do livro o acesso ao livro e o valor simbólico que a população lhe atribui Cada um destes fatores se atacado isoladamente não resolverá 119 o problema O livro pode até ser barato mas se não houver pontos de venda ele não será comprado Ele pode mesmo ser grátis Mas se não houver bibliotecas ele continuará não sendo lido A escola pode valorizar a leitura mas se a sociedade não o fizer o hábito se extingue na saída da escola E assim por diante Só programas permanentes que ataquem simultânea e coordenadamente estes cinco fatores poderão produzir o aumento progressivo do consumo de livros e o desejado crescimento da massa crítica de leitores O livro na família Nascer numa família de leitores é um acidente biográfico bastante raro no Brasil mesmo entre as famílias de alto poder aquisitivo o que significa que qualquer política de expansão da leitura no Brasil passa pelo estímulo à formação de bibliotecas familiares Apesar deste ser um ponto sobre o qual é difícil agir temos bons motivos para não desanimar Pesquisas realizadas pela Editora Abril Cultural no início dos anos 80 com compradores de coleções de livros e fascículos vendidos em bancas demonstraram que cerca de 60 deles pessoas de profissões modestas como motoristas garçons e auxiliares de enfermagem vêem nestas enciclopédias e coleções compradas com sacrifício uma forma de financiar a ascensão social de seus filhos O livro no sistema escolar Sabidamente a biblioteca escolar é o patinho feio do sistema educacional A carreira de bibliotecário escolar sequer existe Ninguém sabe de fato o total destas bibliotecas ou espaços de leitura nem sua situação global do ponto de vista de acervo performance e resultados Apenas as secretarias estaduais de educação e nem todas estão parcialmente informadas a respeito Não há também uma política geral de apoio organização treinamento e fomento da biblioteca escolar instituição fundamental para o futuro de qualquer país Em certas escolas especialmente as privadas a situação pode até ser descrita como boa mas é quase certo que na maioria é precária 120 Pior de certa forma a obrigatoriedade da leitura didática age mais como desestímulo à leitura do que como fomento Professores militantes da leitura já perceberam que depois de terem interessado as crianças na leitura através de autores inteligentes e divertidos esta atividade declina dramaticamente no colegial e um dos motivos é que nesta fase a escola passa a obrigar à leitura dos autores exigidos no vestibular Dado que o futuro da nação são suas crianças e que estas mesmo sem pertencerem a famílias de leitores estão concentradas nas escolas a questão do estímulo à leitura na escola é o fator crítico mais importante e mais descuidado na criação de um público para o livro brasileiro Criar um bom sistema nacional de bibliotecas escolares dotado de bons programas de estímulo à leitura à imaginação e à cultura geral criará um enorme mercado presente e futuro para o livro com conseqüências gigantescas na cultura geral capacitação e empregabilidade de nosso povo O preço do livro está ligado ao problema do acesso ao livro O livro é caro no Brasil É caro se comparado aos preços internacionais e mais caro ainda se avaliado pelo poder de compra de nosso povo O motivo fundamental deste preço são nossas baixas tiragens Um livro que no exterior é impresso em 30 mil exemplares no Brasil não passa de 3 mil Os motivos para estas baixas tiragens são a falta de pontos de venda em especial de livrarias e a falta de bibliotecas que comprem livros Nossas livrarias Para um país de 160 milhões temos cerca de 22 mil bancas de jornal e menos de mil livrarias a maioria em dificuldades O problema fundamental não é sequer a falta de clientes porque basta abrir uma feira de livros para que a venda de livros de certa cidade sofra uma explosão Mesmo para o nosso livro tão caro há uma demanda reprimida que não é atendida 121 É necessário pois estabelecer uma política nacional de fomento às livrarias seguindo a máxima de José Sarney A livraria é um serviço público terceirizado Esta é uma questão delicada pouco estudada mas essencial para o futuro do livro Uma proposta importante surgida na Câmara Setorial do Livro e da Comunicação Gráfica é a criação de um programa especial que permita às 10 mil papelarias do país voltar a vender livros como elas faziam no passado antes da venda de livros tornarse para elas um negócio desimportante e secundário A questão do preço do livro é pois um problema que requer transformações estruturais muito menos ligadas aos fatos da produção do que aos fatos da distribuição Ele só será resolvido progressivamente com a expansão da rede de livrarias e da rede de bibliotecas públicas e escolares expansões estas que permitam aos editores trabalhar com grandes tiragens e economia de escala Nossas bibliotecas Para obterse um livro é preciso comprálo ou emprestálo Para comprálo é necessária como vimos uma vasta rede nacional de pontos de venda Para emprestálo gratuitamente são necessárias as bibliotecas públicas Uma pesquisa realizada este ano pela Secretaria de Política Cultural do Ministério da Cultura identificou 3896 bibliotecas públicas em todo o país em sua esmagadora maioria municipais Mais de 80 de seu público é formado por estudantes indicador indireto da falta de bibliotecas escolares O acervo da grande maioria destas bibliotecas não é atualizado há vários anos Essencialmente elas não compram livros e sobrevivem com doações o que significa que estes acervos crescem ao acaso e sem uma política racional de compras voltada para as necessidades de seus freqüentadores específicos os estudantes É fundamental pois que seja criado para as bibliotecas públicas um fundo de compra de acervo com a participação dos governos federal estadual e municipal da iniciativa privada da sociedade e de órgãos internacionais Assim se quisermos utilizar nossa rede de bibliotecas como um instrumento da batalha pela difusão popular da leitura e da cultura escrita 122 abremse a nossa frente dois caminhos a modernização das bibliotecas públicas e a expansão da rede A modernização das bibliotecas existentes Considerando o grau de subutilização da rede nacional de bibliotecas sua modernização permitirá de imediato multiplicar pelo menos por cinco o seu número de usuários Para isto será necessário implementar programas de 1 Treinamento e mobilização de cerca de 13000 responsáveis 2 Criação de uma política de acervos 3 Reequipamento e informatização de toda a rede 4 Ampliação de público e implantação de programas de incentivo à leitura em todas as bibliotecas públicas do país coordenados e fomentados pelo PROLER programa sediado na Biblioteca Nacional que já identificou mais de 130 programas de incentivo à leitura em todo o Brasil Expansão da rede de bibliotecas públicas Mesmo que tenhamos pleno sucesso na revitalização da rede existente ainda assim ela é insuficiente para as necessidades do nosso País Para atingirmos o nível da Espanha ou da Itália precisamos de uma rede com 10 mil ou 15 mil bibliotecas públicas O que significa no mínimo triplicar a rede existente criando com isto ao menos mais 26 mil empregos Este objetivo está longe de ser utópico O México em 10 anos implantou 5 mil bibliotecas públicas voltadas em especial para a escola A Venezuela e a Colômbia realizaram feitos semelhantes e em certos aspectos de qualidade até mais audaciosos Tratase de um objetivo perfeitamente realizável Isto foi demonstrado pelo sucesso do programa Uma Biblioteca em Cada Município sediado na Secretaria de Política Cultural Em 1966 o programa implantou 45 novas bibliotecas Este número cresceu para 68 em 1997 e atingiu 212 em 1998 Sendo que neste último ano até julho o ritmo de implantação superou a taxa de uma biblioteca por dia na 123 verdade 17 por dia O modelo atual de implantação das novas bibliotecas O programa Uma Biblioteca em Cada Município está sendo realizado através de convênios realizados com as prefeituras ou estados O Ministério da Cultura não constrói edifícios de bibliotecas a não ser no caso das emendas de parlamentares ao programa Tanto o prédio que deve ser próximo à escola ou num lugar de fácil acesso quanto a lei de criação da biblioteca os funcionários e a linha telefônica constituem contrapartida obrigatória das prefeituras ou estados O programa lhes repassa uma verba de até 40 mil reais destinados à compra de cerca de dois mil volumes iniciais todo o equipamento estantes arquivos móveis xerox vídeo computador e o que mais for necessário em cada caso Os responsáveis pela nova biblioteca recebem do Ministério uma carta de recomendação de acervo que é orientadora e não obrigatória Seu compromisso é apenas o de manter um equilíbrio necessário entre as várias categorias de livros enciclopédias técnicos infantis literários etc Como resultado da compra pela própria biblioteca em alguns estados como o Maranhão as aquisições de livros regionais chegaram a 30 o que não aconteceria se as compras fossem centralizadas pelo Ministério É importante notar que apesar deste programa estar sendo um sucesso e de contar com o apoio geral as novas bibliotecas vão precisar de integração treinamento e renovação de acervo tanto quanto as velhas que foram mais ou menos abandonadas a sua sorte Isto é se os programas de apoio e modernização de toda a rede não forem implementados em pouco tempo as novas bibliotecas estarão na situação das velhas Outros modelos de biblioteca Além da biblioteca pública com sede fixa existem dois outros tipos que não podem ser esquecidos a biblioteca volante e a mala de livros 124 A mala de livros é o que melhor se adapta às regiões muito pobres ou às de baixa densidade populacional Sua vantagem é o pequeno custo associado à mobilização espontânea dos leitores O sistema funciona melhor quando coordenado por uma biblioteca pública Sua sede pode ser uma casa de família um estabelecimento comercial ou uma igreja Basta um bom armário com uns cem volumes que são periodicamente substituídos por um mensageiro da sede central O armário é controlado pelo próprio dono da casa que se encarrega dos empréstimos e de seu controle O sistema funciona muito bem em várias regiões do país inclusive as periferias de Brasília e merece ser fortalecido como um serviço extra das bibliotecas públicas Nas regiões rurais o carteiro pode tornarse um personagem importante deste sistema A biblioteca volante também chamada ônibus biblioteca foi introduzida no Brasil por Mário de Andrade e ainda funciona em São Paulo onde presta bons serviços Hoje o modelo mais bem sucedido do gênero é o Leia Brasil um empreendimento privado financiado pela Petrobras que circulando pelas escolas de municípios sem bibliotecas atinge mais de 600 mil alunosmês e 16 mil professores O valor simbólico do livro na mente do povo Este é o último dos fatores críticos listados pela UNESCO como decisivos na implantação do hábito de leitura de um povo Ainda não existe uma pesquisa séria a respeito da imagem e do prestígio do livro para nosso povo Ela deverá ser feita para nos orientar corretamente Mas não precisamos dela para começar a trabalhar Também não havia pesquisa a respeito de nossa rede nacional de bibliotecas antes de iniciarmos o programa e ela foi realizada simultaneamente ao trabalho de implantação das novas bibliotecas As únicas campanhas recentes em favor do Livro e da leitura foram realizadas pelo MINC e pelo MEC Em convênios com os grandes municípios e a Associação Nacional de Livrarias o MINC realiza já há três anos no mês de Novembro a campanha Paixão de Ler que se iniciou em quatro capitais e já existe em 22 A campanha difere em cada cidade mas é sempre 125 organizada a partir das bibliotecas públicas e é dirigida em especial para os professores e estudantes O MINC contribui com a divulgação cartazes e folhetos alem de um bônus livro distribuído pelas bibliotecas através do qual os professores podem adquirir o livro que desejarem em qualquer livraria Já foram distribuídos mais de 50 mil destes bônus Este ano o MINC pretende cobrir todas as capitais do país em especial suas periferias O MEC no ano que passou usando a televisão realizou a campanha Ler é Viajar Entretanto é evidente que estes eventos meritórios só terão influência sensível nos hábitos da população se contando com o apoio da televisão forem substituídos por programas permanentes de difusão propaganda e convencimento De todos os trabalhos necessários em favor do livro e da cultura escrita este é certamente aquele que menos progrediu e aquele que ainda pode render muitos frutos se fugir da mera publicidade em si mesma e se tornar um instrumento integrado aos outros programas acima mencionados testemunhando os esforços realizados pela nação sugerindo sua multiplicação engajando o povo as famílias as escolas os sindicatos as igrejas e as empresas Que fazer Como vimos a ampliação contínua do hábito de leitura a expansão significativa da indústria editorial e a conseqüente queda do preço do livro só poderão ser obtidas por um conjunto simultâneo de medidas diretas e indiretas adotadas pelo estado pelas empresas e pela sociedade A Câmara Setorial do Livro e da Comunicação Gráfica onde foi reunida boa parte da informação acima apresentada apresentará em breve alguns resumos de seu trabalho e as relativas sugestões Mas desde já podemos ressaltar alguns pontos fundamentais em torno dos quais deveremos desenvolver programas específicos de ação Os mais importantes parecem ser a Estabelecer programas conjuntos com os municípios e os estados destinados a expandir a rede de livrarias 126 b Programas de ampliação e barateamento da venda de livros pelo Correio e outros meios que não livrarias c Programas de desenvolvimento das bibliotecas familiares d Programas de incentivo à leitura na escola básica e Programas de difusão dos livros paradidáticos nas salas de aula da escola básica f Criação de um programa nacional de bibliotecas escolares g Modernização ampliação e treinamento da rede nacional de bibliotecas públicas h Implantação de programas de incentivo à leitura nas bibliotecas públicas i Regionalização das feiras de livros j Novo desenho do anteprojeto da Lei da Leitura do Livro e da Biblioteca k Programa permanente de propaganda da leitura do livro e da biblioteca Estas sugestões desenvolvidas na Câmara Setorial não representam tudo o que se pode fazer pela leitura e pelo livro Mas se começarmos a trabalhar a sério nestes programas coordenandoos num único movimento certamente estaremos dando ao nosso povo um poderoso instrumento de acesso ao livro à cultura escrita e portanto ao progresso social econômico e político de nossa nação A rigor já sabemos o que fazer o resto aprenderemos fazendo 127 22 PAULO CONDINI Afinal a formação de que leitor Escritor Diretor da Casa Mário de AndradeSP Assessor Especial para Literatura do Secretário de Estado da Cultura de São Paulo e Secretário Executivo do Comitê Estratégico do Leia Brasil Programa de Leitura da Petrobras Quando afirmamos que o Brasil não é um país leitor não estamos com certeza deixando de considerar as milhares de obras vendidas todos os meses nas bancas de jornais e em clubes de livros as centenas de milhares de jornais revistas e volumes de literatura de cordel nem as cifras milionárias de livros didáticos que infestam as estatísticas das diversas associações de editores Certamente em número absoluto de exemplares a indústria editorial do Brasil ostenta respeitável posição na lista dos grandes produtores de papel impresso e é sempre este o argumento que costumam utilizar para minimizar a importância de políticas públicas de estímulo à leitura que não sejam as de distribuição maciça de livros preferencialmente em caráter nacional o que quase sempre acaba 129 sensibilizando as autoridades responsáveis nos vários escalões governamentais Números e estatísticas podem ser enganosos É conhecida a anedota do nadador que morreu afogado numa lagoa que tinha a profundidade média de 30 cm A quantidade aparentemente imensa de exemplares publicados no País não corresponde nem a dois livros por habitante ao ano Quem por força da profissão visita remotos recantos do País pode dizer das centenas de milhares de obras distribuídas estragando nas caixas que nunca foram abertas Cegueira e teimosia podem ser perigosas Que a prática das políticas públicas até hoje adotadas nessa área não levou a quase nada pode ser comprovado pela inexistência de um verdadeiro mercado editorial Objetivamente o País carece de distribuidores mais de setenta por cento dos livros publicados ao ano são didáticos e sua distribuição ocorre basicamente entre janeiro e março o diminuto número de livrarias menos de 1500 em toda a nação tende a diminuir a ínfima quantidade de bibliotecas aproximadamente 3000 no Brasil inteiro e todas elas sem verbas para aquisição e ampliação de acervo tende agora a aumentar por força de um programa governamental o que esperamos dê certo as tiragens com raras exceções caíram progressivamente em 1981 um livro infantil tinha em sua primeira edição tiragens de 3 a 5 mil exemplares Hoje variam de 15 a 2 mil exemplares para uma população que cresceu mais de 30 milhões de almas no mesmo período Também como efeito perverso deste quadro as editoras dificilmente abrem espaço para a literatura principalmente para os novos criadores e especialmente para os ficcionistas Os únicos espaços existentes são para as personalidades conhecidas da mídia atores apresentadores e músicos cujo carisma garanta grandes tiragens ou o das editoras didáticas que para fugir à sazonalidade do seu mercado e poder manter seu contingente de distribuidores e divulgadores ativos investem num tipo de publicação a que denominam paradidática Como diz o nome especializada em obras para leitura em classe ficcional ou de divulgação teóricocientífica 130 sempre com o objetivo de complementar aspectos curriculares não tratados nas obras didáticas história ecologia geografia línguas costumes etc e sempre a partir de modelos estruturais e temáticos empiricamente testados em pesquisas com professores e alunos Da mesma forma quando reafirmamos que o Brasil não é um país leitor não estamos com certeza deixando de considerar as centenas de milhares de páginas lidas nas escolas de todo o Brasil pelos nossos jovens e professores É claro que eles lêem e que as escolas cada uma da sua perspectiva e medida os estimulam Por certo para entender o nosso ponto de vista é fundamental buscar respostas às perguntas Por que eles lêem e o quê E é evidente que para dar respostas a estas perguntas teremos que aprofundar nosso olhar sobre a escola e o seu real papel até chegar à questão primordial Que tipo de homem ela pretende formar Há muito tempo que no Brasil a escola perdeu seu caráter civilizador Ainda que renovada em sua ação pedagógica nosso ensino cada vez mais está a serviço de preparar os jovens para o ingresso à universidade como se todos tivessem essa oportunidade e como isto fosse um fim em si mesmo Pragmática e superficial coloca toda a eficiência pedagógica a serviço do adestramento dos seus jovens esquecendo com isto a nobre missão de educar partilhar o saber acumulado como forma de ampliar ainda mais os horizontes da humanidade provendo a formação necessária a fim de que seres biogenicamente equipados para observar pensar e expressar os fatos e coisas do tempo e espaço em que vivem possam desenvolverse em sua plenitude passando da condição de ser virtual para ser real ou seja de um ser de inteligência inata para o ser de inteligência cultural socialmente construída É evidente que nossa escola com raras exceções favoreça esse tipo pragmático de leitura porque ele é fruto de seu compromisso básico o de inserir o homem no universo da Economia de Produção Na verdade quando afirmamos que o Brasil não é um País leitor estamos nos referindo a uma outra dimensão da leitura fruto de uma 131 outra qualidade de compromisso o de inserir o homem também no universo da Antropologia Cultural abrindolhe as portas para a fruição do patrimônio geral da humanidade para a expansão ilimitada do seu espírito e como conseqüência para transformálo em um ser civilizador Assim foi que todo o saber do Ocidente se criou a partir de dez algarismos e de trinta e duas letras do alfabeto1 À soma deste conhecimento guardada nos livros e noutras obras do fazer do homem é o que chamamos nossa herança cultural e é o acesso a este tesouro acumulado que nos dá a verdadeira dimensão de nossa humanidade que nos diferencia radicalmente de qualquer outro ser vivo e que nos propicia a condição de participar desse processo civilizador Em suma quando asseveramos que o Brasil não é um País leitor estamos propondo com esta afirmação uma reflexão corajosa sobre a premente necessidade de mudar a nossa escola a real possibilidade de ampliar eficientes programas de leitura já existentes no País e o dever inadiável de resgatar os que por incúria ou equívoco foram desativados dando assim o primeiro passo para a construção do Brasil como uma nova civilização 1 Este número é relativo ao alfabeto Cirílico originalmente de 43 letras 132 23 PAULO RENATO SOUZA Um ponto de vista Economista pela UFRS Mestre em Economia pela Universidade do Chile e Doutor em Economia pela Universidade de Campinas Professor Titular da UNICAMP Foi técnico do BID em Washington Reitor da UNICAMP Secretário Estadual de Educação em São Paulo Diretor da OIT no Chile Economista da Cepal Professor da PUC São Paulo UFRJ Universidade do Chile e da Universidade Católica do Chile Atualmente é Ministro da Educação Quantos de nós não se lembram às vezes de frases ou versos de contos poemas ou histórias inteiras lidos ou ouvidos em nossa juventude ou mesmo na mais tenra infância O livro é insubstituível e é evidente a importância da leitura Mas nem sempre se pensou assim No gymnásion dos gregos não se praticava só a ginástica pois os jovens também tomavam contato com os filósofos e suas idéias e isso era suficiente para construir um entendimento cosmológico indispensável à compreensão do seu tempo Na Idade Média essa cosmovisão vinha por meio das leituras religiosas no século XVI as primeiras gramáticas da língua portuguesa foram distribuídas para o aprendizado da população principalmente para a leitura da Bíblia e temas religiosos Só mais tarde 133 com a chamada filosofia das luzes e a circulação das idéias dos grandes pensadores modernos a razão e o conhecimento científico possibilitaram nova compreensão do mundo Para isso o livro e a leitura foram e continuam se constituindo nos pilares do conhecimento apesar de todo o arsenal tecnológico moderno A experiência republicana brasileira revela uma permanente preocupação com o combate ao analfabetismo com os estudos pedagógicos e com a formação profissional na agricultura no comércio e na indústria As políticas para a instrução pública e as várias tentativas de estruturação de um serviço eram quase sempre descontinuadas Após meio século de República os números não eram nada animadores uma grande parcela 55 da população maior de 18 anos era composta de analfabetos e a oferta de ensino público atendia menos de 50 das crianças em idade escolar Esse era o resultado de grande investimento que até então havia sido feito em favor da educação Logo no primeiro governo republicano foi criado o Pedagogium inspirado no Museu Pedagógico francês e no segundo o Instituto Profissional Mais tarde surgiram códigos para o ensino secundário e superior Institutos e Escolas Superiores Em 1909 realizouse o I Congresso de Instrução e em 1922 aconteceu a I Conferência Interestadual do Ensino Primário sempre com a função governamental da Educação vinculada ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores Após a revolução de 30 e a instalação do governo provisório surgiram o Ministério dos Negócios da Educação e da Saúde Pública o Conselho Nacional de Educação a Reforma Ortográfica da Língua Portuguesa e o Serviço de Radiodifusão Educativa No governo constitucional que se seguiu surgem o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos INEP o Instituto Nacional do Livro INL e o Instituto Nacional de Cinema Educativo Somente na década dos 50 o já então chamado Ministério da Educação e Cultura iniciou uma Campanha do Livro Didático e a partir de 1955 instituiu o Programa de Edição de Livros Didáticos As experiências de coedições do INL com as editoras e mesmo a de edição de livros didáticos e literários se desenvolveram pelos anos 60 e 70 quando surgem o FENAME e a FAE Por causa da descontinuidade 134 administrativa decorrente da mudança de ministros esses órgãos lançavam diversos programas que se mantinham por um tempo e logo desapareciam as Bibliotecas Móveis as Salas de Leitura a Biblioteca Escolar e a Biblioteca do Professor No período mais recente na década dos 80 foram criados o Pedagogium Museu da História da Educação Brasileira e a Fundação PróLeitura que não permaneceram e um que se manteve o Centro de Informações Bibliográficas CIBEC que funciona até hoje vinculado ao Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais INEP este criado na década de 30 e transformado em autarquia no atual governo para ser a instituição responsável pelos censos e levantamentos estatísticos estudos e pesquisas de temas educacionais avaliações e perspectivas da educação em nosso país Nessa retrospectiva não se vê uma política pública clara e permanente em favor do livro da leitura e da formação do leitor E isso é indispensável a qualquer jovem do mundo moderno A leitura é uma experiência muito ampla que inclui a própria percepção do mundo e as diferentes formas de compreender os ambientes Essa percepção que o homem tem do mundo encontra no livro a melhor forma de registro fazendonos capazes de apreender organizar e construir o conhecimento Contudo podemos ler qualquer manifestação da natureza o movimento das estrelas a marcha das estações o movimento das marés ou a fenomenologia das plantas assim como os testemunhos do ser humano sua simples presença suas atividades ou sua produção cultural que podem ser reconhecidos desde os mais remotos documentos arqueológicos até a mais recente edição de um jornal diário Quando olho o céu e concluo Vai chover eu faço uma leitura dos elementos da natureza que posso transmitir oralmente Entretanto esse conhecimento só representará um patrimônio da humanidade quando for registrado de maneira sistematizada ie no momento em que as nuvens se organizam de determinadas formas cores ou volumes e mais quando o vento sopra em determinada direção sob certas condições de força e de temperatura sabemos que pode chover Nesse momento fazemos a leitura desse conhecimento podemos registrálo e transmitilo por meio de um livro 135 Podese proceder a uma leitura de todas essas manifestações da natureza e do homem porém somente através do registro sistemático em códigos reconhecíveis se pode socializar o conhecimento Em nossos dias muitas novas formas de comunicação são possíveis mas todas dependem quase sempre de vários bens materiais ou tecnológicos dinheiro máquinas energia tecnologia enquanto basta ao leitor ter incorporado o código de recepção e interpretação dos textos para depender só de si mesmo para a leitura de um livro Se o livro é veículo ou suporte natural dos códigos lingüísticos seu objetivo é sempre o leitor A ele se destinam os escritos e portanto devemos cuidar de sua formação no processo educativo O livro didático é a base de todo o processo o início de um trabalho com o aluno com a intenção de desenvolver nele o gosto pela leitura Além de ser um elemento básico no processo de aprendizagem e o domínio da língua o livro didático é também um caminho eficaz para se desenvolver no estudante a compreensão do meio em que vivemos e o gosto pela literatura desde que tenha qualidade e o mestre saiba bem utilizálo Como uma orientação geral sobre a educação fundamental nossos estudantes e professores têm hoje à disposição os Parâmetros Curriculares Nacionais PCN o Programa Nacional do Livro Didático PNLD e o Programa Nacional da Biblioteca da Escola PNBE voltados realmente ao atendimento da comunidade escolar no seu sentido mais amplo Isso está claro tanto do ponto de vista material e técnico quanto do conceitual já que as obras difundem em seus conteúdos os valores da cidadania promovendo uma formação integral A responsabilidade legal do MEC fez com que a compra dos livros didáticos fosse associada a um rigoroso processo de avaliação dás obras oferecidas pelas editoras A maior vida útil das obras é também uma das metas do Programa Nacional do Livro Didático cujos decretos de criação e de regulamentação obrigam à adoção de livros reaproveitáveis e à definição de critérios específicos para sua reutilização por pelo menos três anos Podemos porém ir mais longe estendendo gradativamente o aproveitamento do livro Comprovam isso pesquisas do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação e do Ministério da Ciência e Tecnologia segundo as quais os títulos podem ser utilizados 136 por até cinco anos como acontece em outros países O mesmo prazo valeria para o projeto educativo da escola Os livros passaram por uma avaliação criteriosa dos conteúdos e metodologias trabalhadas Eliminamos deles falhas preconceitos insuficiências ou incoerências sendo selecionados os mais adequados para a publicação de um Guia que é distribuído anualmente aos professores O resultado é uma lista de qualidade da qual os próprios professores escolhem os títulos que querem utilizar em sala de aula Para o Ministério da Educação a leitura é prioridade e várias são as iniciativas voltadas para a difusão do livro e o incentivo à leitura tanto para os alunos quanto para os professores Ampliamos a participação do MEC em diversos programas como o PROLER MECMinCFBN desenvolvemos campanhas de incentivo à leitura criamos programas de distribuição de livros para as bibliotecas escolares intensificamos o intercâmbio e a cooperação internacional Nesse campo é importante citar o Projeto próLeitura resultante de um acordo entre a França e o Brasil que se dedica à formação do professor e se desenvolve com sucesso em vários estados brasileiros Creio que deva ser essa a estratégia para a atualização dos acervos das Bibliotecas As bibliotecas são de indiscutível importância de todos os tipos bibliotecas escolares bibliotecas universitárias bibliotecas públicas estaduais e municipais bibliotecas de instituições públicas sindicatos e conselhos de diversas categorias profissionais e de entidades privadas Tenho notícias de um razoável desenvolvimento dos acervos e atualização dessas bibliotecas nos últimos tempos Se não se desenvolveram no nível desejado pelo menos os atores se envolveram e tomaram iniciativas As parcerias do governo com a iniciativa privada já efetivadas somam mais de uma centena permitindo o enriquecimento de acervos como um todo e às escolas o acesso a outros recursos materiais contribuindo efetivamente para a melhoria da qualidade do ensino público em nosso país A avaliação que faço é extremamente positiva Em todos os estados encontramos trabalhos que promovem a leitura Existem dezenas de exemplos tocantes como o dos professores 137 da cidade de Quixelô a 400 km de Fortaleza Ceará que com o projeto A leitura e a escrita no processo de alfabetização escolheram os caminhos da leitura e da escrita como guia para suas práticas pedagógicas nas escolas públicas da cidade mudando as relações das crianças com a leitura A diretora da Biblioteca Pública Benedito Leite professora Rosa Maria Ferreira de Lima começou a ligar a garotada em literatura com o Programa Livro na Praça O trabalho é feito sempre nos finais de semana em praças de bairros da periferia com o apoio das comunidades da prefeitura e de empresas privadas São pessoas que procuram partilhar a leitura com quem não desfruta desse privilégio levando a dimensão social da apropriação crítica do texto escrito É como o caso que apareceu em um concurso no ano passado de uma professora aposentada que vai às ruas da sua pequena cidade ler com as crianças motivandoas a buscar nos livros um sentido novo para suas vidas entre outras tantas experiências originais Uma vez conquistada a criança ela terá condições de sair do mundo da leitura para uma leitura do mundo Diferem as formas as soluções os locais mas o objetivo é o mesmo qualificar a educação oferecida à maioria de nossas crianças e jovens por meio de uma meta comum que é a leitura para todos e assim melhorar as perspectivas do futuro de cada um O importante desses programas que desenvolvem parcerias que vão ao encontro dos educadoresleitores daqueles que estão fazendo acontecer e despertar o gosto e a necessidade pela leitura e pela escrita é que eles agregam também pelo mérito dos seus trabalhos e pela importância do tema a adesão de vários parceiros dando força e representatividade aos movimentos Além de editores e livreiros parceiros naturais são importantes outros agentes como serviços sociais meios de comunicação prefeituras secretarias de educação e de cultura universidades centros de cultura e de organizações não governamentais Esse esforço solidário amplia a ação indireta dos programas de leitura e os faz crescer tão rápido que ainda não temos condições para mensurálo 138 24 PEDRO BANDEIRA Esperançando que é sempre tempo de esperançar Professor ator publicitário e jornalista até dedicarse exclusivamente à criação de Literatura para crianças e jovens em 1983 Algumas de suas obras mais conhecidas A Droga da Obediência A marca de uma lágrima Feiurinha Descanse em paz meu amor A hora da verdade Mais respeito eu sou criança Acredito que ninguém discordará desta afirmativa nosso eterno subdesenvolvimento devese à nossa ignorância A riqueza das nações não mais se baseia na posse de grandes extensões de terra de boa qualidade para cultivar ou das riquezas do subsolo Isso tudo nós temos O que nos falta é uma população capacitada a produzir bens utilizando de modo moderno essas riquezas O que nos falta é o Conhecimento E o Conhecimento está escrito Mesmo na televisão ou nos computadores Nada foi criado até agora que substitua a palavra escrita como fonte de acesso ao acervo do Conhecimento acumulado pela Humanidade durante séculos Sem dúvida esta é a principal causa do nosso subdesenvolvimento 139 Não há plano econômico por mais adequado que venha a ser não há governante por mais bem intencionado que seja que possa solucionar problemas ligados à nossa própria incapacidade de agir em favor de nós mesmos Só uma ampla e profunda revolução educacional poderá reverter nosso destino de nação pobre e marginal no contexto do planeta Nosso desenvolvimento e nossa felicidade só podem ser atingidos na medida direta do desenvolvimento de nossa capacidade de ler de entender o que está escrito de saber como fazer transformandonos efetivamente em leitores isto é em pessoas que saibam ler criticamente argumentando discutindo e posicionandonos diante das idéias expostas nos textos Além disso quem lê bem também entende melhor o que ouve protegendose de discursos enganosos e aproveitando melhor discursos positivos Para confirmar isso basta raciocinar sobre um ponto todos os países que têm uma elevada taxa de analfabetismo ou de semi analfabetismo necessariamente apresentam um baixo consumo de livros per capita E viceversa viajandose por exemplo nos confortáveis trens de países como a Alemanha ou o Japão sempre encontraremos praticamente todos os passageiros lendo para passar o tempo da viagem do modo mais agradável possível No Brasil porém se estivermos à espera de um avião em qualquer um dos grandes aeroportos veremos que praticamente ninguém estará lendo um livro para preencher o longo tempo de espera para o embarque E quem tem dinheiro para viajar de avião certamente não pode culpar o preço dos livros por sua pouca ligação com a leitura Muitos críticos acusam a televisão por esse nosso descaso pela leitura Esquecemse estes que antes do advento da televisão no Brasil nossa população mesmo a elite também não lia Diferentemente países como a Alemanha o Japão e os Estados Unidos os maiores consumidores de livros per capita do mundo são ao mesmo tempo possuidores de sistemas de televisão moderníssimos e com altíssimos índices de audiência Nossa juventude não lê E seus pais Esses lêem A verdade é que nossos jovens não têm o exemplo em casa e todos sabemos que a 140 imitação é a base do aprendizado E não se trata somente de famílias carentes mesmo os pais brasileiros de elite mesmo muitos médicos e engenheiros lêem muito pouco no Brasil Muitos dos professores que criticam os próprios alunos por não lerem também não lêem ou lêem muito pouco eles mesmos No modo brasileiro o ter é mais importante que o ser Muitos pais aceitam gastar boas somas de dinheiro para comprar o tênis da moda para os filhos mas protestam quando a escola pede que comprem livros para eles No modo brasileiro é mais importante investir no pé da criança do que em sua cabeça Precisamos desesperadamente transformar nossos jovens em leitores em bons leitores antes que eles se tornem adultos iguais a nós eternizando nosso destino de pobreza e ignorância Mas como fazer isso Em que ponto da vida de uma criança deve ser iniciado o processo educacional É claro que em casa Se um brasileirinho quando bebê teve o privilégio de adormecer no colo da mãe ouvindo acalantos certamente não estranhará quando mais tarde for introduzido ao mundo da Poesia Se desde muito pequena essa criança ouvir histórias de fadas e contos maravilhosos aconchegada no colo da mãe do pai ou da vovó e se logo em seguida puder folhear livros coloridos lendo as ilustrações mesmo antes da alfabetização formal o livro estará para sempre inoculado em suas veias como portador de sensações de explicações emocionais de respostas para suas dúvidas Um leitor se faz em casa Mas o que fazer se como já afirmamos nossas crianças crescem e vão para a escola sem ter a leitura como exemplo doméstico Acredito que a exemplo das campanhas de rádio e tevê que aconselham o aleitamento materno penso que seriam muito úteis campanhas do tipo Cante com o seu bebê no colo e Conte histórias para seu filho dormir Do mesmo modo como é fácil fazer os brasileiros consumirem certos produtos simplesmente mostrando atores e atrizes utilizando esses produtos ao longo de cenas de novelas penso que seria ótimo se usássemos esse recurso para apoiar o livro O que aconteceria se um protagonista de novela aparecesse lendo e comentando algum romance com outro E se uma de nossas atrizes fosse vista a cantar para 141 seu bebê a contarlhe histórias de fadas mesmo que fosse de modo incidental em uma cena de novela Bom mas isto é uma outra história porque pelo andar do carro de bois a tarefa de formar leitores no Brasil cabe quase que exclusivamente à escola está nas mãos dos nossos professores e professoras profissionais mal treinados mal pagos desmotivados desrespeitados socialmente Uma guerra se vence com bons soldados não com soldados mal alimentados mal treinados e com soldo miserável Temos de mudar isso já Temos de treinar nossos professores temos de tornar atraente a carreira do magistério para atrair nossos melhores vestibulandos para ela Precisamos de multidões de bons professores capazes de seduzir nossas crianças para a leitura Falei em seduzir Pois é isso Como diz o educador francês Daniel Pennac o verbo ler é parente dos verbos sonhar e amar pois nenhum dos três suporta o imperativo Ninguém pode ordenar que uma pessoa ame ou sonhe ela sonha ou ama se quiser O mesmo acontece com a leitura Precisamos de professores que não forcem seus alunos a ler mas de profissionais sedutores que demonstrem o prazer o tesão que é ler uma boa história Contudo devemos repensar nosso modo de ver a educação Provavelmente desde sempre mas certamente com o reforço da ditadura militar abraçamos um conceito de que seria preciso apressar nosso desenvolvimento educacional selecionando os melhores para criarmos uma elite que pudesse arrastar o Brasil para a frente Na mentalidade de nossos educadores e professores está o desprezo a irritação como aluno mais fraco Nós os professores adoramos dar aula para os bons alunos e perseguimos os mais fracos tachandoos de burros de preguiçosos e estamos sempre dispostos a reproválos provocando uma forma cruel de seleção dos mais aptos E é comum receber grande respeito social aquele professor duro severo que reprova muito que pune os mais fracos sem parar Agora comparemos esse professor com um médico um bom médico é aquele que só se dedica aos pacientes sãos e se irrita quando aparece alguém doente requerendo seus cuidados É claro que não Quanto mais grave for o estado de saúde do paciente maior dedicação ele receberá do corpo médico e das enfermeiras de um hospital E isso 142 tudo sem irritação porque o doente é o objeto do trabalho da medicina Por que com a escola é diferente Por que expulsamos de sala por que punimos por que expulsamos os alunos fracos Temos de imaginar nossas escolas como hospitais que cuidam de todos os pacientes menos dos sãos Isso porque o bom aluno avança sozinho na escola pouco precisando de socorro do professor São os mais fracos que precisam de nós de todo o nosso esforço O professor que adora reprovar pode ser comparado ao médico felizmente hipotético que adora assinar atestados de óbito Tratar somente os sãos servir somente à elite como sempre fizemos e ainda fazemos selecionar somente os mais aptos e relegar todo o resto à vala comum tem sido a nossa política educacional E isso é fascismo Só podemos sonhar com democracia no ensino se nos dedicarmos a todos os alunos especialmente aos que mais precisam de nós os mais fracos Em cada escola deveríamos ter algo como um Centro de Terapia Intensiva desde a préescola para que todos os brasileiros tenham a oportunidade de transformar nosso País Senão não será o caos Já é o caos Vamos sair dele 143 25 REGINA ZILBERMAN Regina Zilberman licenciada em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul doutorouse era Romanística pela Universidade de Heidelberg na Alemanha É professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul onde leciona Teoria da Literatura e coordena o curso de Pósgraduação em Letras É pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CNPq e Membro do Comitê Estratégico do Leia Brasil Programa de Leitura da Petrobras Seja Carlos Drummond de Andrade nosso guia de leitura que no poema Biblioteca Verde registra as emoções provocadas pela posse dos livros pertencentes à Biblioteca Internacional de Obras Célebres coleção de prestígio distribuída no Brasil no começo do século XX1 Depois de muito insistir com o pai que não queria adquirir a Biblioteca mas que pressionado Compra compra compra repete o menino cede o poeta recorda o modo como se apropriou dos livros Chega cheirando a papel novo mata de pinheiros toda verde Sou o mais rico menino destas redondezas Orgulho não inveja de mim mesmo 145 Ninguém mais aqui possui a coleção das Obras Célebres Tenho de ler tudo Antes de ler que bom passar a mão no som da percalina esse cristal de fluida transparência verde verde Amanhã começo a ler Agora não Agora quero ver figuras Todas Templo de Tebas Osiris Medusa Apolo nu Vênus nua Nossa Senhora tem disso nos livros Depressa as letras Careço ler tudo A mãe se queixa Não dorme este menino O irmão reclama Apaga a luz cretino Espermacete cai na cama queima a perna o sono Olha que eu tomo e rasgo essa Biblioteca antes que eu pegue fogo na casa Vai dormir menino antes que eu perca a paciência e te dê uma sova Dorme filhinho meu tão doido tão fraquinho Mas leio leio Em filosofias tropeço e caio cavalgo de novo meu verde livro em cavalarias me perco medievo em contos poemas me vejo viver Como te devoro verde pastagem Ou antes carruagem de fugir de mim e me trazer de volta à casa a qualquer hora num fechar de páginas Tudo que sei é ela que me ensina O que saberei o que não saberei nunca está na Biblioteca em verde murmúrio de flautapercalina eternamente2 A apropriação do texto se dá de modo praticamente ritualístico primeiro ele apalpa a obra sentindoa de modo táctil e explicitando a natureza carnal do livro Depois procura as figuras detendose nas 146 imagens visuais para só então mergulhar nas letras que o conduzem a universos fantásticos distantes no tempo no espaço e nas idéias mas próximos dele dada a materialidade do livro para onde o leitor apaixonado sempre retorna A experiência de Carlos Drummond de Andrade dáse no interior da família e da vida doméstica testemunhada pelo pai a mãe e o irmão que não participam da viagem imaginária do futuro poeta Olavo Bilac experimenta fenômeno similar mas em cenário diferente a escola A crônica Júlio Verne registra a admiração do escritor e de seus colegas pelo ficcionista francês cujas obras eram lidas por todos conforme um processo de socialização ausente na situação apresentada pelo poema No colégio todos nós líamos Júlio Verne os livros passavam de mão em mão e à hora do estudo no vasto salão de paredes nuas e tristes enquanto o cônego dormia a sesta na sua vasta poltrona e enquanto o bedel que era charadista passeava distraidamente entre as carteiras combinando enigmas e logogrifos nós mergulhávamos naquele infinito páramo do sonho e encarnávamonos nas personagens aventureiras que o romancista dispersava arrebatados por uma sede insaciável de perigos e de glórias pela terra pelos mares e pelo céu3 O contexto é outro mas em ambos os casos os leitores vivenciam encantamento similar fundado na profunda identificação com a história narrada Oh os homens e as cousas que vi as paisagens que contemplei os riscos que corri os amores que tive os sustos que curti os combates em que entrei os hinos de vitória que encantei e as lágrimas de derrota que chorei viajando com Júlio Verne conduzido pela sua mão sobrehumana Quase morri de frio no pólo de fome numa ilha deserta de sede na árida solidão do centro da África de falta de ar no fundo da terra de deslumbramento na proximidade da lua Atravessei areais amarelos e infinitos beijei com os olhos oásis esplêndidos dormi à sombra das tamareiras da Síria e à sombra dos pagodes da Índia contemplei o lençol intérmino das águas dos grandes rios cacei tigres e crocodilos na Ásia e na África 147 arpoei baleias no mar alto perdime em florestas virgens naveguei no fundo do mar entre vegetações fantásticas e animais imensos ouvi o estrondo da queda do Niágara enjoei com o balanço de um balão no meio do céu formigante de astros e quase fui comido vivo pelos Peles vermelhas A essa exaltação opõese o mundo escolar a que o leitor volta quando o livro se encerra E quando os meus olhos pousavam sobre a última linha de um desses romances quando eu me via de novo no salão morrinhento e lúgubre quando ouvia de novo o ressonar do cônego e as passadas do bedel charadista havia em mim aquela mesma súbita descarga de força nervosa aquele mesmo afrouxamento repentino da vida aquele mesmo alívio misturado de tristeza Era o regresso à triste realidade à tábua dos logaritmos à gramática latina à palmatória do cônego às charadas do bedel Era o desmoronamento dos mundos o eclipse dos sóis a ruína dos astros era o pano de boca que descia sobre o palco da ilusão matando a fantasia e ressuscitando o sofrimento Para experimentar efeito similar o menino Lima Barreto tal como o pequeno Carlos Drummond conta com a solidariedade do pai consumidor dos livros de Júlio Verne A minha literatura começou por Jules Verne cuja obra li toda Aos sábados quando saía do internato meu pai me dava uma obra dele comprando no Daniel Corrazzi na Rua da Quitanda Custavam milréis o volume e os lia no domingo todo com afã e prazer inocente4 Por sua vez no que se refere aos efeitos dessa leitura Lima Barreto está mais próximo de Olavo Bilac do que jamais sonhou a estética de ambos Fezme sonhar e desejar saber e deixoume na alma não sei que vontade de andar de correr aventuras que até hoje não morreu no meu sedentarismo forçado na minha cidade natal O mar e Jules Verne me enchiam de melancolia e de sonho Do que mais gostava eram aquelas que se passavam em 148 regiões exóticas como a Índia a China a Austrália mas de todos os livros o que mais amei e durante muito tempo fez o ideal da minha vida foram as Vinte mil léguas submarinas Sonheime um Capitão Nemo fora da humanidade só ligado a ela pelos livros preciosos notáveis ou não que me houvessem impressionado sem ligação sentimental alguma no planeta vivendo no meu sonho no mundo estranho que não me compreendia a mágoa nem ma debicava sem luta sem abdicação sem atritos no meio de maravilhas Jorge Amado foi outro viajante do imaginário valendose da ajuda por um lado do britânico Jonathan Swift autor das Viagens de Gulliver por outro de seu professor o padre pouco ortodoxo em matéria de ensino que lhe pôs nas mãos livros salvadores No colégio dos jesuítas pela mão herética do padre Cabral encontrei nas Viagens de Gulliver os caminhos da libertação os livros abriramme as portas da cadeia A heresia do padre Cabral era extremamente limitada nada tinha a ver com os dogmas da religião Herege apenas no que se referia aos métodos de ensino da língua portuguesa em uso naquela época ainda assim essa pequena rebeldia revelouse positiva e criadora5 Leitura é viagem mostram os escritores no sentido literal quando as obras se deslocam de um centro urbano para o interior de Minas Gerais conforme recorda Drummond e metafórico quando são os leitores que rumam para terras distantes e universos longínquos Da rotina cotidiana para o mundo da fantasia o caminho não é longo desde que o instrumento o livro esteja ao alcance de seu destinatário e esse percurso é de mão dupla porque o leitor invariavelmente retorna ao lugar de onde partiu No meio do caminho tem a escola Bilac contrapõe a sala de estudos de paredes nuas e tristes à paisagem exuberante que sua imaginação freqüenta por força da linguagem de Júlio Verne Jorge Amado não está muito longe dessa apreciação porque precisou encontrar um padre herético para poder ultrapassar a limitada vida do aluno interno6 a que estava condenado Brito Broca por sua vez dividese entre a leitura apaixonada e os deveres escolares executados sob o olhar vigilante do pai 149 Broca narra de que modo se tornou admirador de Júlio Verne por influência da avó materna foi levado à leitura dos romances desse escritor e como Lima Barreto empenhou seus tostões na compra dos volumes que nesse caso reprisando Carlos Drummond de Andrade chegavam com dificuldade à cidade interiorana onde morava Na minha infância e nos primórdios da adolescência embora me fosse geralmente controlada pela vigilância paterna a leitura de romances tive a meu favor a circunstância de minha avó os ter lido apaixonadamente na mocidade e a efusão com que meu pai os lia sempre que conseguia subtrair algum tempo a uma vida terrivelmente afanosa Como eu embevecido manifestasse o desejo de penetrar também nesses mundos maravilhosos ela tinha o cuidado de me observar que os meus domínios seriam outros os de Júlio Verne cujo encanto também experimentara Falavame das Aventuras do Capitão Hateras de Cinco Semanas em um Balão de A Volta ao Mundo em Oitenta Dias Mas onde encontrar esses livros Não era fácil adquirilos no Interior naquele tempo Marcou assim uma data na minha vida o dia em que à força de rigorosa economia poupando tostão a tostão consegui mandar comprar em São Paulo o primeiro romance de Júlio Verne Atribulações de um Chinês na China7 Mas à sua fome de ler contrapõese a necessidade de fazer os deveres de casa impostos pela escola A cena noturna repartida entre livros de ficção e temas escolares retrata a oscilação do menino entre os dois mundos agora separados pela figura paterna Relembro o quadro A noitinha depois que o comércio fechava eilo entrar trazendo para casa os livros de escrituração mercantil em que trabalhava até pouco depois das dez Logo que ele assumia o posto eu vinha colocarme defronte no outro canto da mesa com os meus cadernos os meus livros escolares Nem sempre porém me entretinha nessa tarefa muitas vezes dandoa por cumprida naquele dia trazia em lugar dos compêndios um romance e me entregava com fruição à leitura Como as horas passavam depressa Ao bater das dez meu pai 150 fechava os vastos infólios de contabilidade Se eu permanecia na leitura não dando mostras de me aprontar também para deitarme ele intervinha Vamos basta de leitura são horas de dormir Faltam só algumas páginas desculpava eu já estou no fim E como os minutos corressem e o fim não chegasse ele advertia já num tom meio severo Acaba com isso já disse tem muito tempo amanhã para ler Não havia outro remédio senão fechar o livro a mente a fervilhar de imagens e peripécias Com que desespero nessas implacáveis dez horas interrompi a leitura de tantos romances que me empolgaram dos onze aos quinze anos LA deixava os heróis às voltas com as situações mais complicadas Phileas Fog e Passepartout em apuros Estácio arrancando a espada pronto a morrer por Inezita Raras vezes a escola seu aparato como salas de aula seus instrumentos como o livro didático e sua metodologia como a execução do dever de casa provocam lembranças aprazíveis de leitura As atividades pedagógicas provocam tédio quando não são vivenciadas como aprisionamento controle ou obrigação A leitura parece ficar do lado de fora porque os professores não a incorporam ao universo do ensino Quem lê contudo quer o lado de fora para onde se desloca comandado pela imaginação Por isso talvez seja o caso de se pensar em transformar o de dentro da sala de aula em de fora da leitura Para obter esse resultado os escritores oferecem o receituário que os fez leitores vorazes contestar as normas como sugere Jorge Amado deixar o livro ao alcance da mão para ser apalpado cheirado folheado como desejou Carlos Drummond de Andrade nunca porém deixar que se rompa o fio da viagem onde se equilibram todos esses andarilhos da literatura brasileira 1 Sobre a Biblioteca Internacional de Obras Célebres v Saraiva Arnaldo Fernando Pessoa PoetaTradutor de Poetas Porto Lello 1996 2 Andrade Carlos Drummond de Biblioteca Verde In 151 Menino Antigo Boitempo II Rio de Janeiro Sabiá José Olympio Brasília Instituto Nacional do Livro 1983 p 129 130 3 Bilac Olavo Júlio Verne In Ironia e Piedade In Obra Reunida Organização e Introdução de Alexei Bueno Rio de Janeiro Nova Aguilar 1996 p 726 729 4 Barreto Afonso H Lima O Cemitério dos Vivos São Paulo Brasiliense 1961 p 88 5 Amado Jorge O Menino Grapiúna Rio de Janeiro Record 1981 p 101 6 Id ibid 7 Broca Brito O Vício Impune In Escrita e Vivência Campinas EDUNICAMP 1993 p 15 152 26 RUI DE OLIVEIRA A ilustração e a reprodução da imagem como formas de conhecimento e os mitos do original Designer e ilustrador Professor do Curso de Desenho Industrial da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutorando da Escola de Comunicações e Artes da USP Atualmente desenvolve no CTE Centro de Tecnologia Educacional o Projeto Animagem oficina de cinema e animação Membro do Comitê Estratégico do Leia Brasil Programa de Leitura da Petrobras Lembro que a primeira vez em que vi o Tríptico Portinari de Hugo Van Der Goes no Museu Uffizi em Florença foi na década de setenta Eu ainda era um estudante de arte em Budapeste Todo o meu conhecimento anterior deste maravilhoso retábulo da pintura flamenga do século XV estava restrito aos livros e às reproduções O primeiro impacto que senti diante da obra foi pelo seu gigantismo Foi também a primeira vez em que tive a vivência das contradições do que significa o conhecimento diante do original com as reproduções da obra que conheci através de livros Este conflito se acentuou ainda mais quando estive em frente de Sandro Botticelli a quem sempre admirei como um mestre principalmente em seu período de juventude Lembro que neste caso a impressão foi no sentido inverso isto é apesar de na época já conhecer 153 as características técnicas da têmpera achei que as reproduções de Nascimento de Vênus e a Primavera estariam mais adequadas no múltiplo do que no original guardando logicamente as questões de proporção textura etc Portanto ainda que de forma intuitiva eu estava diante de uma questão que mais tarde viria a me ocupar em termos teóricos quando passei a lecionar no Curso de Desenho Industrial da Universidade Federal do Rio de Janeiro Pensando sobre o significado cultural da arte da ilustração principalmente como veículo de conhecimento e a possibilidade da imagem impressa ser mais verídica do que o próprio original pretendo através deste pequeno estudo evocar algumas contradições e preconceitos contra a imagem reproduzida no caso a ilustração que ainda permanecem de forma velada mas muitas vezes explicitamente Reportandome ainda à experiência que tive diante do mestre flamengo destaco o painel central representando a Adoração dos Pastores A magistral organização do espaço e o jogo simbólico das proporções dos personagens deste verdadeiro presépio sagrado impressionaramme profundamente A fruição desta obraprima a partir do real da presença humana insubstituível fora totalmente reveladora para mim até mesmo na descoberta da Anunciação pintada por fora das alas quase em forma monocromática Descrever e rever mentalmente este tríptico é uma aula eterna de ilustração Por exemplo as mãos de José postas em oração e as mãos contritas e espirituais de Maria são um ícone que me ficou para sempre e que adoto como referência até hoje dentro de meus limites quando represento as mãos em meus trabalhos O processo como foi construída a narração neste quadro de Van Der Goes é uma fonte inesgotável de descoberta para os ilustradores desde as flores nos dois vasos que simbolizam a pureza conseqüentemente Maria até a leveza dos dois anjos que levitam contrastando com a imagem rústica e ao mesmo tempo sublime dos pastores Estas soluções narrativas e simbólicas fundamentais na ilustração o que sempre é bom enfatizar são uma arte de contar histórias por imagens que inevitavelmente nos conduzem a uma reflexão sobre os limites entre a pintura e a ilustração 154 Diante da experiência do real a que me referi no início deste estudo gostaria de me deter unicamente neste ponto os momentos em que a leitura da ilustração e da pintura realmente se polarizam Estou me referindo à questão do múltiplo da reprodução em série e da transmissão de conhecimento A ilustração é sempre uma imagem que foi criada para ser reproduzida O seu conhecimento pleno a sua fruição correta advêm portanto do livro Existem outras diferenças fundamentais entre a pintura e a ilustração Porém no momento por suas inúmeras contradições nos deteremos apenas nesta última Seguindo pois a trilha acima descrita chegamos à conclusão de que conceitualmente o original da ilustração é o múltiplo Isto é a sua reprodução impressa num livro por exemplo No caso da pintura ela tem o seu estágio maior de percepção quando estamos diante do original ou das condições ideais para as quais esta pintura foi criada Porém neste ponto começam as incompatibilidades citadas acima O que realmente significa o original A percepção direta do real é sempre a condição básica de fruição do fenômeno pictórico Veremos no entanto que esta condição fundamental nem sempre se realiza Isto é a visão do original nem sempre autentica a experiência do real Se deslocarmos esta discussão em direção à arte do nosso século chegaremos no fundo de um poço sem fundo como dizia Tennessee Williams Citaria apenas alguns exemplos do Dadaísmo que questionou até os últimos limites o significado de peça única e do conceito sacro de original Neste sentido transcrevo dois pensamentos enunciados por Picabia afirmando que as verdadeiras obras de arte modernas não são feitas por artistas mas por pessoas anônimas e comuns Continuando ainda com Francis Picabia ele chega à conclusão daquilo que seria conhecido como readymades ao afirmar que o cordão umbilical entre o objeto e seu criador havia se rompido e que não havia diferença fundamental entre o objeto feito pelo homem e o objeto feito pela máquina a única intervenção pessoal possível numa obra é a escolha concluía O urinol que Duchamp chamou de Fonte e tentou expor na Exposição dos Independentes em Nova Iorque sob o pseudônimo de R Mutt era certamente igual a milhares de outros encontrados nas lojas 155 Muitos exemplos poderiam ser citados no contexto da arte de nosso século sobre esta chamada experiência única diante da obra original Porém não é necessário tanto radicalismo para levantarmos a questão ambígua do original e sua fruição ideal Basta retornarmos ao século XIX mais precisamente ao Impressionismo que encontraremos uma outra face deste multifacetado rosto Em outras palavras por exemplo os efeitos de luz solar das pinturas de um Claude Monet ou de um Camille Pissarro apreciálos dentro de uma galeria sob luz artificial ou tecnicamente elaborada pode até ser entendido como uma inadequação no ato de fruir corretamente a pintura destes mestres Melhor seria se as víssemos nas condições em que foram criadas ou seja ao ar livre o que seria sem dúvida mais compatível com o ato de criação daqueles artistas Logo muito acima do significado de ser original o que existe na verdade é um ritual adequado de cognição da pintura que até pode ser único Muitos outros exemplos poderiam ser citados dentro do universo da escultura e a impropriedade de sua correta leitura em galerias e museus principalmente com relação à luz Acho oportuno diante de todos os mitos e sacralização do que seja original levantarmos esta questão dirigindo sempre nossa reflexão para a ilustração e toda a sorte de incompreensões que ainda a envolve Todas estas dúvidas nos conduzem a uma conclusão de que nem sempre a obra original é vista de maneira original existindo também a possibilidade de que a reprodução como já foi dito anteriormente em termos conceituais seja mais verídica do que a própria realidade e originalidade da peça única Esta discussão é importante pelo fato de a ilustração sofrer freqüentemente o estigma de uma linguagem menor a começar até pelo seu habitual suporte o papel muito mais perecível do que a tela e em termos de mercadoria e posse ser um investimento de pouco futuro e rentabilidade A ilustração seria uma linguagem dirigida pela circunstancialidade e por este motivo uma experiência e conhecimento artístico atrofiados Este preconceito que é tristemente real e revela uma absoluta incompreensão até da própria história da arte e sua discussão fugiria totalmente dos limites físicos deste trabalho Porém não podemos deixar ao largo este tema do fim servido da arte e da circunstância que norteou grande parte da criação em todas as épocas 156 Bastaria apenas citar no universo da música alguém que resplandece como astro eterno estou me referindo a Johann Sebastian Bach que levou ao extremo sublime seu ofício de músico Como autêntico artesão trabalhava copiosamente semanalmente para os cultos dominicais Em vida mais conhecido como exímio organista até hoje nos causa depressão a leitura de suas humildes cartas solicitando ajuda e proteção para os nobres de sua época Sua magistral música que era meramente destinada ao momento tornouse erudita e transcendente em nossos tempos Mesmo assim como estigma de música descartável sua obra ficou esquecida após a sua morte Apenas em princípio do século XIX Mendelssohn o ressuscitou e é também no início do nosso século que as transcrições para orquestra feitas por Leopold Stokovsky o popularizaram colocandoo num lugar que sempre foi seu um monumento da música Este apelo a duas referências musicais inclusive utilizando a palavra transcrição é da maior importância quando estamos estudando a relação entre conhecimento e imagem impressa Citarei agora um exemplo infelizmente pouco conhecido da complexa relação entre obra original reprodução impressa e conseqüente conhecimento da imagem original através da gravura reproduzida Evoco o nome e a obra de um dos pintores que mais admiro e que tem grandes influências em meu trabalho de ilustrador Estou me referindo a Henry Fuseli nascido em 1721 e falecido em 1825 Este pintor visionário e profundamente envolvido com a arte fantástica foi contratado em 1786 pelo marchand e editor Aldermann Boydell para pintar uma série de quadros sobre peças de Shakespeare como por exemplo Sonho de uma Noite de Verão Estes quadros após serem exibidos em sua galeria na verdade se destinavam a servir de modelo para que fossem feitas gravuras a partir deles e conseqüente publicação em forma de livros e quem sabe até vendidas separadamente Este não é um exemplo isolado artistas ingleses do porte de Romney e Reynolds foram também contratados por Boydell Voltando às pinturas de Fuseli elas estão hoje em dia em galerias como Tate Gallery Vancouver Art Gallery etc Sobre este tema de arte ilustração e conhecimento que é na verdade o motivo central deste trabalho voltarei a falar mais adiante 157 Retornando ao quarto de espelhos este labiríntico exercício que é a concepção de original as contradições se aguçam ainda mais quando constatamos que o conhecimento da pintura dos grandes mestres se realiza em nossos dias basicamente através da reprodução nos livros de arte Neste ponto existe uma analogia com os exemplos que citei acima das ilustrações a partir da obra de Fuselli na verdade transcrições e gravuras para peças de Shakespeare Esta leitura a reprodução possui um processo próprio e extremamente diversificado de ver e decodificar a imagem original Portanto existem vários originais a partir destas traduções visuais onde até mesmo um trabalho de restauro é obtido através de métodos modernos como o laser e a computação gráfica Os critérios para reprodução destas obras realmente não existem Não se trata de salvaguardar a aura o valor cultuai a obra única e irreproduzível Walter Benjamin já dissecou muito bem esta questão Porém retornando ao que poderíamos chamar de imponderabilidade do conceito de fruição original é muito difícil aceitar no túmulo de Lourenço de Médici o modo frontal como é iluminada a peça escultórica representando o pensamento criada pelo gênio de Michelangelo Tendo na parte inferior o Crepúsculo e a Aurora esta escultura em pose de meditação foi imaginada para ser vista com os olhos em penumbra acentuada mais ainda pelo elmo que lhe encobre a fronte Isto certamente lhe conferiria um nível mais simbólico e introspectivo Entretanto não é isto que experimentamos nem na Capela dos Medicis tampouco nas inúmeras reproduções da obra Esta complexa relação entre a experiência do real e a dramatização da luz e conseqüente ou inconseqüente reprodução em livros e catálogos pode ser melhor compreendida quando observamos neste caso algumas reproduções da pequena escultura o Hermafrodita um protótipo de Policie de 150 AC que está na Galeria Borghese em Roma O escultor o representou deitado de bruços intencionalmente encobrindo o atributo feminino ou masculino criando uma indefinição uma ambigüidade absolutamente clara para o observador No entanto este mistério é revelado de forma unilateral pela iluminação capciosa criada principalmente na maioria das reproduções da obra A luz é dirigida para a região lombar do personagem Em termos bem vulgares até porque vulgar é a sua iluminação o 158 foco de luz é dirigido precisamente para a bunda de Hermafrodita Nesta parte final do estudo gostaria através de alguns exemplos de enunciar que a concreção divulgação do pensamento nas mais diversas disciplinas teve na imagem impressa a sua real complementação Tentando encontrar uma metáfora para a palavra e a imagem eu diria que a primeira é a alma e a segunda o corpo portanto parceiras indissolúveis Começando pelo Renascimento e por uma de suas maiores figuras que foi Leonardo Da Vinci seus estudos diversificados em geologia zoologia botânica anatomia astronomia além de seus projetos em máquinas e engenharia tudo isto é distribuído em mais de 5000 páginas de anotações repletas de ilustrações Seu pensamento era portanto materializado pelas imagens que assumiam um alto estágio do pensamento visual com sua própria sintaxe ao mesmo nível de suas especulações escritas Expressando ao mesmo tempo a beleza e a informação estas imagens prescindem em muitas casos da palavra As indicações escritas funcionam às vezes como fato complementar Deste modo os pensamentos em imagens feitos por Da Vinci são uma referência para conceituarmos a arte de ilustrar Neste caso elas não contam histórias elas narram conhecimento Permanecendo ainda no Renascimento foi através das gravuras italianas reproduzindo as obras dos grandes mestres que o principal vulto do renascimento alemão teve o primeiro contato com a arte italiana dos Quatrocentos Estou me referindo ao genial pintor e gravador alemão Albrecht Durer Este fato inclusive é documentado por seus estudos a partir das gravuras de Andrea Mantegna como a Batalha dos Deuses do Mar Durer foi o primeiro grande artista alemão a conhecer a Itália ele tinha 23 anos quando esteve em Veneza Certamente o contato direto com a arte italiana e o seu conhecimento prévio através de gravuras fizeram com que Durer diferente dos outros artistas alemães que tinham os mestres flamengos como modelo tivesse um caminho totalmente diferente e até mesmo contestador Ainda nesta seqüência da imagem impressa como forma de pensamento não posso deixar de citar o exemplo de Petrus Paulus 159 Rubens Este magnífico pintor originário da Antuérpia onde nasceu em 1577 teve uma vida exitosa como pintor cidadão embaixador e homem das cortes européias Rubens foi também um grande ilustrador utilizando motivos alegóricos símbolos emblemas e figuras mitológicas nos livros que ilustrava Repleto de encomendas trabalhando com uma equipe de discípulos e com um profundo sentido de negócios percebeu que sua obra única poderia ser vendida e difundida através de cópias em gravuras Para tanto montou um atelier com um grupo de gravadores que iria traduzir para um esquema basicamente linear em forma de gravuras a sua obra pictórica Criou com isto inclusive um estilo próprio que certamente tinha a sua orientação Este estilo um Rubens médio para o grande público ficou tão famoso quanto o estilo Goltzius ou o estilo Callot estou me referindo a dois grandes gravadores aguafortistas do século XVI que criaram uma verdadeira escola de reprodução de originais de pintura O importante é dizer que a popularidade e principalmente a extraordinária influência de Rubens na arte européia da época se deu através de gravuras da sua pintura Para concluirmos sobre a importância da ilustração e da imagem impressa como formação de pensamento quero citar um curioso exemplo de influência da gravura O fato em questão é o famoso quadro de Eduard Manet que tanta polêmica causou em 1863 quando exposto no Salão dos Recusados o célebre Almoço sobre a Relva A tranqüilidade de uma mulher nua e seu displicente olhar para o observador em plena conversa de dois vestidos cavalheiros causaram um escândalo no grande público tudo isso aliado a uma extraordinária palheta um jogo de luzes uma naturalidade até então nunca representada numa cena ao ar livre Todavia este ícone da pintura francesa do século XIX guarda incríveis semelhanças com uma antiga gravura do século XVI de autoria de Marcantonio Raimondi denominada O Julgamento de Páris Este não é em absoluto um exemplo isolado na história da arte Enfatizo pois que a imagem é realmente um gênero de pensamento uma persuasão fortíssima em nossos dias globalizados e a nação que melhor usar suas imagens e ícones dominará numa primeira fase todos os fenômenos culturais do planeta e numa segunda fase o real domínio econômico das outras nações 160 Logo o estudo da imagem impressa nos mais diversos suportes e emitido nos mais diferentes veículos de alta tecnologia é fundamental para qualquer País que tenha um mínimo de projeto sério quanto ao seu futuro como nação como povo e principalmente como preservação de seus valores culturais 161 27 RUTH ROCHA Livros X Computador Paulista socióloga orientadora pedagógica e editora Escritora premiada de extensa obra de literatura infantil e juvenil Membro do Comitê Estratégico do Leia Brasil Programa de Leitura da Petrobras Computador é bom É Faz coisas fantásticas Mas não faz as coisas que um livro faz E depois livro não enguiça como disse o Millor Fernandes E computador como disse o Ziraldo não se leva pra cama E não se põe uma violeta dentro dele O livro guarda tesouros E o computador não guarda Ah guarda Mas acontece que os tesouros que o livro guarda são complementares com a nossa fantasia E o processo de leitura possibilita essa operação maravilhosa que é o encontro de que está dentro do livro com o que está guardado na nossa cabeça 163 Seja na leitura de ficção de literatura seja na leitura de um ensaio Os neurônios funcionam em sintonia com a letra impressa Completam enriquecem complementam Quando se lê se põe em funcionamento tanto as funções intelectuais do cérebro o seu lado esquerdo como o lado direito instintivo imaginoso emotivo Por isso a leitura preenche todos os nossos desejos todas as nossas necessidades Além disso a leitura desenvolve a independência do espírito Não traz tudo pronto como o computador Não é sem motivo que o livro tem mais de dois mil anos Como formar leitores Fornecendo livros Tenho visto um número enorme de pais que dão aos filhos brinquedos caríssimos Com o preço de um videogame podese comprar uma pequena biblioteca Jamais vi um pai entrar numa livraria e comprar uma pequena biblioteca para seus filhos E sem livros dificilmente se aprende a gostar de ler 164 28 SÔNIA RODRIGUES Das dificuldades da exposição Doutora em Literatura escritora criadora do jogo Autoria e Companhia de produção de enredos coletivos consultora de projetos de formação de platéia para empresas e instituições culturais colunista do suplemento feminino do jornal O Estado de São Paulo e colaboradora do Programa Leia Brasil Por que existem mais leitores do que escritores Por que é mais fácil aprender a ler do que a escrever Por que a leitura e a escrita podem ser usadas automaticamente e no automático mascaram limites de visão e de atuação Deve parecer estranho começar a partilhar um ponto de vista pelas dúvidas e não pelas certezas Leitora quase que compulsiva escritora doutora em literatura e coautora de um jogo educativo de criar histórias em grupo sempre me intrigou a dificuldade de contar histórias demonstrada por um grande número de pessoas Durante muito tempo acreditei que bastava uma boa iniciação à leitura para que todos pudessem expressar livremente seu potencial criativo Transformado em leitor pelo contato com o produzido pela 165 imaginação alheia o ser humano seria sujeito de sua própria obra As redações a correspondência os relatórios seriam mais coerentes mais coesos mais belos Hoje sei que isso não é verdade A formação do leitor para leválo à escrita é um processo mais complexo E talvez mais misterioso Não estou aqui me referindo às pessoas que apresentam um alto potencial de inteligência para a linguagem como alguns para a música Meu questionamento dirigese à maioria dos seres saudáveis com experiências dores e alegrias comuns à espécie Com uma capacidade íntegra de compreender a língua materna e dominar suas regras Por que mesmo quando são leitores sensíveis essas pessoas não se expressam através da escrita Por que não conseguem escrever uma história ou mesmo contála com clareza de forma a produzir prazer terror riso ou compaixão em outros Conheço dezenas de leitores que confessam não conseguir escrever Amam o texto literário porém fazer ficção lhes parece uma tarefa impossível Alguns alegam ser esta uma atividade para eleitos iluminados gente dotada de um talento acima do comum Outros imaginam os escritores como pessoas que detêm o privilégio de poder estudar o texto burilálo em condições ideais e prometem a si mesmos que um dia quando se aposentarem ganharem na loteria ou tirarem longas férias imitarão Para os dois grupos na maioria das vezes escrever mesmo um texto pragmático relatório carta ofício é um esforço assombroso Fazêlo com facilidade um dom Depois de seis anos estudando a produção coletiva de texto interativa e instantânea dos jogos de representação RPG praticada por jovens e depois de ter contribuído para a criação de um jogo cheguei a um ponto de vista específico que aqui partilho escreve o leitor que se mostra Escreve o leitor que se arrisca à exposição O leitor que não teme em excesso pelo menos a rejeição ou aquele que precisa da companhia do aplauso da apreciação de alguém que o leia O escritor é o leitor que escolhe o palco e não a platéia Ele é platéia dos outros autores mas se acha no direito de se expor também na arena Talvez não seja nem uma questão de direito e sim de compulsão É um leitor que precisa recriar o que leu viu ouviu como aliás todos 166 os leitores o fazem no processo de produção de sentido Precisa mais se arriscar aos aplausos ou às vaias ao exibir sua recriação A formação desse leitor segue passos específicos É necessário que se crie um clima de confiança para que os resultados de leituras sejam partilhados as primeiras criações mostradas em público e principalmente se demonstre ao leitor sempre e sempre o direito inalienável de recontar histórias Óbvio que grandes escritores se formaram em famílias opressoras escolas opressoras regimes políticos idem Alguns irão atrás de literatura e de publicar sua literatura mesmo que canhões busquem impedir Mas esses fazem parte da minoria dos resistentes aqueles que lerão mesmo que tentem colocar uma venda em seus olhos ou amarrem suas mãos Para cada um que tem dentro de si a compulsão de escrever milhares serão sufocados pela falta de condições de desenvolverem essa forma de comunicação humana Penso que a maioria das pessoas não acredita ter o direito à imaginação ao exercício da beleza a partir de histórias contadas e recontadas A não ser no faz de conta infantil nas brincadeiras de casinha ou de polícia e ladrão Depois desses breves anos as pessoas aprendem na escola e na vida coisas sérias para passar de ano trabalhar casar constituir família A ficção se torna uma atividade à parte dos outros os artistas atores escritores roteiristas de cinema ou de telenovelas Com sorte se existir uma iniciação anterior essas pessoas se tornarão leitores Platéia Escreverão com maior ou menor dificuldade textos aos quais atribuirão a categoria de realidade No trabalho na correspondência entre amigos ou familiares É preciso que se incorpore à formação de leitores o conceito de invenção do real O Rio de Janeiro em Dom Casmurro era o Rio inventado por Machado de Assis Da mesma forma se uma recémcasada retrata em carta a sua melhor amiga os melindres da sogra tratase de uma sogra inventada também as cores serão mais ou menos favoráveis dependendo do relacionamento entre as duas e a confiança entre a remetente e a destinatária A diferença principal na minha opinião entre a hipotética nora e 167 Machado de Assis é que este tinha a certeza de que alguém perceberia a originalidade do seu Rio de Janeiro e dos personagens e sentimentos que ali colocava a circular Se essa certeza não existia dentro dele existia pelo menos a necessidade de encontrar e encantar o leitor O direito de conquistar um interlocutor para sua obra A noção de que seria capaz de recontar a trajetória de um ciumento mesmo que Homero ou Shakespeare tivessem feito isso antes dele Acredito que escritores têm em comum essa convicção Têm algo a dizer e alguém quer ouvir Ler Nem que para isso precisem se expor ao ridículo às críticas às concessões Mesmo que recorram ao baú das lembranças familiares à denúncia dos ex amores e amigos À fofoca portanto Correndo o risco de imitar quem sabe mal seus autores preferidos O resto é talento sim mas principalmente trabalho E maturidade e mais trabalho E lucidez e mais trabalho Muito esforço para seduzir o leitor sabendo que até chegar a ele existe uma longa cadeia industrial a ser percorrida Isto a via crucis do escritor não é objeto dessa minha reflexão Quero apenas chamar atenção que é necessário que se acrescente às atividades voltadas para o projeto de formação de leitores uma intervenção específica no sentido de ampliar o direito de recontar O direito de se expor A competência do Narciso que se mostra não para o espelho mas para seus pares e diz Eu também sou belo Não basta formar uma sociedade leitora É preciso que ousemos mais É urgente democratizar os segredos da narrativa Criar espaços onde leigos de qualquer idade se manifestem livremente como autores Socializar a idéia de que a leitura e a escrita como instrumentos de imaginação são um direito Mais do que direito ou além dele são fonte de prazer e arma de combate Caminho de redenção e troféu da condição humana Qualquer escritor sabe que a imaginação concretizada no texto tem esses poderes De Homero a Woody Allen Só não o sabem ainda os milhões de estudantes que se digladiam com dissertações onde não conseguem transmitir seus pontos de vista Os apaixonados incapazes de colocar no papel o calor dos seus sentimentos Os solitários impedidos 168 de estabelecer contato através da escrita As vítimas sem possibilidade de defesa ou de vingança pela palavra É indispensável à formação do leitor o exercício da confiante exposição Só assim a leitura será um contágio uma grande epidemia de autores cada um no seu território senhor rainha dono da sua própria palavra 169 29 TÂNIA DAUSTER Espaços de Sociabilidade ouvindo escritores e editores sobre a formação do leitor e políticas públicas de leitura no final do século XX Doutora em Antropologia Social UFRJ e Mestre em Educação PUCRJ Leciona a disciplina de Antropologia e Educação nos cursos de graduação e pósgraduação do Departamento de Educação da PUCRJ Coordena o escritório da UNESCO no Rio de Janeiro Membro do Comitê Estratégico do Leia Brasil Programa de Leitura da Petrobras Este texto emerge de um programa de pesquisa interinstitucional que vem sendo encaminhado conjuntamente pelo Departamento de Educação da PUCRio e pela Faculdade de Educação da UFRJ1 Ao longo desta parceria as seguintes pesquisas vêm sendo realizadas desde 1992 sob a coordenação de Tânia Dauster PUCRIO e Pedro Benjamim Garcia FAE UFRJ Cotidiano práticas sociais e valores nos setores populares urbanos enfocando alunos de uma escola pública municipal da Zona Sul do Rio de Janeiro e suas práticas de leitura A formação do leitor limites e possibilidades da escola estudando a visão de escritores da chamada literatura infanto juvenil residentes na cidade do Rio de Janeiro 171 Reordenação de linguagens e formação de leitor buscando as percepções de editores de literatura infantojuvenil que moram no Rio de Janeiro Embora exista uma linha nítida de abordagem temática que privilegia o olhar antropológico cada uma dessas pesquisas tem uma gama específica de questões Mas por que falar de um programa de pesquisa Sucessivos estudos oriundos de projetos anteriores sobre a formação do leitor vêm configurando continuidades e rupturas em termos de campos empíricos e de indagações Apesar disso optamos por manter e enriquecer o quadro teórico inicialmente adotado Contudo ao se abordar o universo do livro percebese que este como meio de comunicação e difusão dos mais antigos ao lado de seu impacto cultural e educativo comporta também interesses industriais e econômicos próprios do setor editorial A associação destes fatores cria um sistema complexo de parâmetros aparentemente incompatíveis Portanto a investigação do mundo da editoração e da leitura requer a compreensão das relações internas entre os diferentes elementos que compõem a cadeia do livro assim listados em opúsculo da UNESCO criação literária função do editor impressão distribuição práticas leitoras e construção do significado Postura teóricometodológica Essa concepção global deveria ser objeto de políticas nacionais de leitura próprias a cada país de acordo com as quais temos construído nossos objetos de investigação No enfoque teórico adotado destacamos o conceito de cultura contribuição relevante do campo da Antropologia fugindo ao sentido que lhe é dado pelo senso comum e a uma visão exclusivamente erudita Nessa acepção antropológica cultura significa crenças valores visão de mundo significados entrelaçados idéias e práticas que orientam os indivíduos no seu diaadia Geertz 1979 assim como artefatos materiais Nesta mesma linha buscamos entender as diferenças sociais e os modos distintos de construção da realidade Velho 1978 assim 172 como o caráter relacionai e dinâmico entre as diferentes esferas sociais Nosso propósito foi embasado na Antropologia como mencionamos e na História Cultural tendo em vista compreender as redes de significado a partir dos pontos de vista do outro operando com a lógica de suas categorias e conceitos sem reduzir nossa argumentação à sistematização destas categorias Sabendo que o pesquisador é parte do problema que ele vai investigar necessitamos trazer à luz e tentar compreender nossas idiossincrasias e préconceitos na busca de avançar o conhecimento da área pesquisada Situar o problema na especificidade do social significa desnaturalizar os fenômenos ou seja mostrar que fatores como atitudes comportamentos gosto formação do leitor relação com os livros significado da leitura e fatos similares são socialmente construídos e nada têm de naturais pois pertencem ao campo da cultura e das relações nas sociedades Trabalhando em contextos simbólicos e comunicacionais estivemos atentos às relações sujeitosujeito e sujeito objeto buscando seus significados sistemas simbólicos e de classificação códigos práticas valores atitudes idéias e sentimentos em uma postura de base antropológica que pressupõe a quebra da visão dissimuladora da homogeneidade e dos estereótipos Nossos caminhos de investigação são marcados pelo entendimento das diferenças entre posturas simbólicas e as distintas práticas sociais o que resulta em significações específicas e singulares em cujo horizonte metodológico damos forma a nossas perguntas Construímos um referencial bibliográfico com resumos e análises e textos da literatura pertinente a nossos problemas Em princípio abrangemos o que vem sendo publicado no Brasil sob forma de artigos e livros nas áreas da Educação Antropologia e História Cultural Esse acervo vem sendo analisado numa perspectiva de estranhamento e relativização buscandose lógicas de representações e ações assim como padrões de recorrência O caminho adotado tem pontos de apoio na pesquisadiálogo de Gilberto Velho 1986 De certo modo fazemos parte do universo do entrevistado compartilhamos suas experiências tensões expectativas e 173 ansiedades e temos algumas vezes gostos valores e concepções em comum Reconhecemos como nossas muitas de suas práticas e no que tange ao domínio de livros e leituras os autores que habitam nosso imaginário e o dos entrevistados são quase sempre os mesmos Portanto tratase de uma troca entre sujeitos culturalmente próximos na qual as fronteiras entrevistadorentrevistado se diluem Queiroz 1998 mostra que a entrevista é por excelência uma situação dialógica e técnica de coleta de dados Seu exame na perspectiva da busca de padrões sociais representa uma tentativa de compreensão do social nos indivíduos Para situar sociologicamente nossos comentários posteriores discutiremos os conteúdos emergentes de escritores e editores dois universos sociais investigados nos últimos anos na chamada literatura infantojuvenil2 Esses escritores se vêem como profissionais uma vez que vivem de seu próprio trabalho têm inúmeros livros publicados e traduzidos em países como México Itália Alemanha Estados Unidos participam de feiras de livros tanto no Brasil quanto no exterior visitam escolas são lidos dentro e fora do âmbito escolar e são leitores tanto da grande literatura quanto de revistas em quadrinhos Quanto aos editores seus pontos de vista abrangem versões e perspectivas distintas sobre o universo do livro e a formação do leitor Entre os fatores emergentes nos comentários desses dois tipos de profissionais podemos citar Referências às ditas crises da leitura por prazer e da literatura consagrada ao mesmo tempo em que se constata um mercado de livros em ascensão direcionado ao público infanto juvenil O crescimento desse mercado de livros associado a vendas feitas diretamente às escolas A necessária redução dos preços dos livros para atender à demanda de leitores embora esta seja uma visão polêmica A existência de práticas escolares que afastam os alunos da leitura O espaço da escola como único acesso à leitura e à literatura consagrada para a grande maioria da população 174 A hipótese do desaparecimento do livro tendo em vista a difusão do computador e o impacto da imagem na sociedade do final do século XX Após estas breves considerações sobre os universos sociais investigados faremos alguns comentários úteis para a elaboração de políticas públicas de leitura3 embora muitas das questões levantadas já estejam incluídas no rol de possibilidades previstas pela administração pública Em parte tal continuidade de propósitos oficiais na área de políticas públicas de leitura indica que há questões crônicas à espera de soluções abrangentes nesta área A presença do livro e seus paradoxos Dizse que cada vez se lê menos dado o poder da imagem da TV e do vídeo Contudo nunca se publicou tanto quanto hoje Dados quantitativos mostram que o Brasil é um grande mercado editorial com significativo contingente de leitores e grande vitalidade no universo da leitura como vendas expressivas freqüentes feiras de livros noites de autógrafos rede de bibliotecas e grupos de contadores de histórias Vale lembrar que nossa Bienal do Livro é a terceira maior do mundo e que este evento em 1999 revestiuse de novo brilho por sua organização interna com a presença de autores e especialistas em variados debates e com a homenagem prestada à literatura portuguesa atraindo imenso público Acreditamos também conforme temos indicado em outros textos que o ato da leitura não se reduz à prática literária e que tal associação indica uma concepção limitada do conceito de leitura Ao tentar ultrapassar os estereótipos percebemos uma visão elitista da leitura e da literatura que obstrui a vitalidade o interesse em torno das diversas práticas e atos de leitura e dos leitores Para Paulo Rangel4 há uma relação entre o que as pessoas lêem e o nicho do editor o que justifica um leque amplo e uma diversidade de gostos e ofertas no universo das publicações Daí inferirmos que as práticas leitoras e o ofício da literatura podem ser exercidos de várias formas o que nos 175 conduz a uma visão mais complexa e multifacetada dos fenômenos da criação da editoração daquelas práticas leitoras e dos leitores em geral Isto entretanto não nos permite ignorar ou negar a importância e a qualidade diferencial da literatura escrita pelos grandes autores seu significado formativo e seus efeitos subjetivos Podemos por fim dizer que a presença do livro é marcante na cena brasileira pelo menos no que diz respeito à rede das grandes capitais Contudo longe de ser tranqüilizador este quadro revela paradoxos entre os quais A face da exclusão considerandose a população em termos amplos são bens escassos a competência na leitura silenciosa que revela familiaridade no ato de ler enquanto ato de produção de significado e interpretação Chartier 1990 e a posse do livro seja de literatura ou ligado à informação e aos diversos campos de conhecimento O acesso diferencial ao uso e posse do computador até o momento este equipamento não representa a morte do livro nem da leitura e da escrita mas apenas um outro suporte para textos o que não abala a vitalidade do mercado editorial O pequeno número de leitores literários comparativamente à população total A escassez de bibliotecas públicas e sua concentração nas áreas privilegiadas das cidades é importante ressaltar que o acervo das bibliotecas existentes necessitaria ser constantemente atualizado além de ampliado com obras de literatura ficcional e de referência para a formação dos estudantes5 O papel da escola é fundamental na formação do leitor e sobretudo quando se trata do leitor de setores populares embora a escola seja vista por muitos como uma vacina contra a leitura envolvendo constrangimentos à formação desse leitor Salvo o risco de generalização indevida esta visão crítica talvez se deva ao despreparo de parcela expressiva do professorado à obrigatoriedade da adoção de um só livro e ao uso das fichas de leitura por alguns consideradas um mal necessário dada a precariedade do corpo docente Passaremos a seguir aos comentários de escritores e editores buscando sobretudo as recorrências entre esses dois universos 176 Políticas públicas e estratégias de formação de leitores O gosto pela literatura pertence ao domínio da arte Birman 1996 comenta que o leitor moderno tem com o texto uma relação de prazer e de revelações imaginárias na qual a leitura é mais uma forma de aprimoramento da sensibilidade do que de educação justamente porque o que está em causa não é apenas o entendimento mas principalmente a subjetividade do leitor O gosto se forma pela opção declara Julio Emílio Braz Já para Luiz Antonio Aguiar a formação do leitor se dá na liberdade de escolha sem obrigatoriedade Livro não é material didático e o professor deve ir no caminho do interesse da criança6 Liberdade opção e prazer aparecem como valores relacionados à subjetividade do leitor mas também devem ser incorporados à dinâmica das políticas públicas sobre leitura dentro e fora da escola Isto porque é preciso levar em conta a formação do gosto pela leitura enquanto enriquecimento do imaginário Tratase da lógica da subjetividade transposta e traduzida para a lógica da ação e das políticas públicas Contudo parecenos fundamental trazer o outro lado da moeda Jean Hébrard em comentário no Salão do Livro em Paris 1998 recomenda que o discurso em prol da leitura não seja apenas afetivo mas contenha um trabalho de leitura como um de seus eixos principais Nesta linha a escola tem um significativo papel no que tange à construção de espaços coletivos de discussão e debate em torno da leitura e do livro Isto significa um esforço intenso de elaboração construção e negociação do sentido da própria leitura a partir do confronto de distintos pontos de vista O mesmo autor em recente palestra na PUCRio 1999 falando de políticas públicas educacionais apresenta como uma das vias de entrada para a cultura escrita as práticas do aprender a falar que fariam da escola o espaço do ensinar a falar O professor enquanto detentor da função de saber falar a língua escrita seria incentivador de outras maneiras de dar vida ao ato pessoal da leitura Neste enfoque caberia uma reorganização das sociabilidades da leitura buscando novas formas de se falar sobre o que se lê Ainda segundo Hébrard este seria o trabalho da leitura ou seja falar da leitura 177 realizada implica reconhecer a existência do ato de ler Portanto deverseia estimular o diálogo em torno do livro e não aprisionar a literatura como se ela fora material didático Neste sentido é questionável o uso de encartes fichas e avaliações Em relação à ficha de leitura ponto muito polêmico disse Ana Maria Machado Já fui muito contra essa ficha quando ela vem nos livros e sei que hoje ela é muito criticada Eu preferia que ela não existisse mas reconheço sua importância no Brasil sobretudo no caso da professora do interior sem recursos e despreparada Para ela a ficha dá um mínimo de orientação7 A escola apresenta uma dupla face na formação do leitor De um lado a obrigatoriedade de leitura de um só livro pode criar resistências e obstáculos à formação do gosto e do hábito de ler Mas pode significar o único acesso a livros para quem não os tem em casa Nesse propósito os entrevistados concordam que as políticas públicas têm que incentivar e apoiar a leitura de livros na escola atuando na formação de professores viabilizando acervos de livros e favorecendo acesso freqüente a bibliotecas atualizadas Assim Ana Maria Machado sugere que seja garantido a cada escola um acervo de pelo menos 300 livros de uma lista básica de aproximadamente 5000 escolhidos por uma comissão de especialistas A autora lembra também que traduções bem feitas são boas leituras e que portanto os professores de português poderiam indicar livros estrangeiros Também merecem atenção as campanhas incentivadoras do hábito de ler envolvendo distintos estimuladores como grupos de contadores de história e outros além de recursos como programas televisivos etc Relata Ana Maria uma iniciativa inglesa de leitura em colégio acessível a qualquer outro país Tratase do Projeto de Leitura Silenciosa Contínua8 Essa autora nos conta a vivência de sua filha nessa experiência em 19889 No primeiro dia a única coisa que ela trouxe para casa foi uma pasta com fecho éclair de plástico transparente onde estava escrito USSR Dentro havia uma folha mimeografada com um cabeçalho que 178 continha data título do livro autor e comentário da família em quatro colunas Atrás vinham informações sobre o Projeto entre elas a de que a escola havia aderido à campanha do USSR que não era obrigatória Podem dela participar escolas públicas ou particulares mas é basicamente voltada para as primeiras A escola se compromete a determinar um horário semanal para leitura silenciosa A de minha filha optou por 40 minutos Outras optam por 30 minutos uma hora Neste período eles avisam aos pais que não tentem vir ao colégio porque ninguém vai poder recebêlos A leitura silenciosa é para toda a escola do porteiro à diretora todos lêem A professora não pode ficar corrigindo caderno o homem da cantina pára tudo Não se atende ao telefone Este horário deve ser antes do recreio porque se alguma criança estiver em um ponto do livro em que não queira parar pode continuar durante o recreio Ao acabar a leitura todos voltam a suas obrigações O professor não pergunta O que faz tal personagem Alguém poderá até indagar Quantas páginas você leu Mas o aluno só precisa registrar na folha os dados do livro da biblioteca levando a fichinha para casa Aí irmão irmã avô avó pai etc devem completar a parte da opinião da família sobre a leitura da criança Ele gostou ou ele não gostou que bom que ele está lendo esse livro ou nunca ouvi falar nesse autor etc Alguém da família tem que ter uma opinião sobre aquele livro colocandoa na ficha até o dia da próxima leitura prazo dado pela escola Após a terceira semana se o aluno não trouxer a opinião de casa os pais são chamados ao colégio para uma conversa O interessante é que a família se envolve nesse projeto Outro critério importante na escola inglesa é o sistema de pontos em que uma série de atividades inclusive essa campanha da leitura torna a escola prioritária para receber ajuda do governo Por exemplo tendo comprado um determinado número de livros novos para a biblioteca a escola conta pontos para o sistema Se precisa cimentar novamente o pátio ou colocar uma grade nova poderá também utilizar os pontos da campanha Essa experiência existe há 24 anos e aplicase apenas à escola primária Uma avaliação mostrou que ela conseguiu aumentar a freqüência da leitura entre os jovens Outro ponto recorrente no discurso de nossos entrevistados diz 179 respeito à disseminação de bibliotecas Idealmente a maioria delas deveria ser de estaduais e portanto necessariamente diversificadas com uma dupla entrada na escolha de seus acervos ao mesmo tempo centralizados e contendo obras de autores locais Segundo recomendação da UNESCO a relação tolerável é de uma biblioteca para cada 12000 habitantes De acordo com dados veiculados pelo Jornal do Brasil10 há 3500 bibliotecas públicas e 22 milhões de brasileiros alfabetizados não têm biblioteca próxima a suas casas Para se alcançar o ideal seria necessário criar aproximadamente 2000 unidades É claro que mais bibliotecas devem ser criadas e atualizadas mas elas têm que funcionar como espaços vivos nos quais os bibliotecários assim como os professores são preparados para estimular a formação do leitor Do ponto de vista econômico autores e editores insistem no barateamento do livro por meio da redução de impostos sobre a produção É reiterada também a publicação de obras de domínio público melhor distribuição em bancas de jornais e investimento em edições de bolso Em suma preços altos e baixas tiragens são considerados inimigos do livro e da formação do leitor No que diz respeito ao grande evento da Bienal pesquisa recente da empresa de pesquisa Vox Populi conclui que mais de 90 da população brasileira não têm o hábito de ler o que indica a importância de se difundir no país pequenos eventos como feiras e salões de livros que não deveriam ficar limitados apenas às grandes capitais Para finalizar volto à tese central da UNESCO 1996 Desenvolvimento econômico não é variável independente Inúmeros projetos de desenvolvimento sócioeconômicos fracassaram por não levar este fator em conta Os fatores econômico e cultural se interpenetram Dado o papel constitutivo da cultura teremos que pensar o desenvolvimento em termos que englobem também o crescimento cultural Buscando uma síntese diria que são culturais as políticas de leitura Cabe aos responsáveis pelos equipamentos de educação e cultura promoverem parcerias criando as teias articuladoras entre família escola 180 bibliotecas museus cinema teatro e música enfim tecendo a rede cultural na qual o leitor se forma Referências Bibliográficas BIRMAN Joel O sujeito na leitura In Por uma estilística da existência São Paulo Editora 34 1996 CHARTIER R A História cultural entre práticas e representações Memória e sociedade Lisboa Difel 1990 A ordem dos livros Brasília Editora UNB 1994 As práticas da escrita In História da vida privada da Renascença ao século das luzes 3 São Paulo Companhia das Letras 1991 CUÉLLAR J P org Nossas diversidades criadoras Relatório da Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento UNESCO Campinas SP Papirus 1996 DAUSTER T Leituras no Rio de Janeiro In Testemunho III Antologia em prosa e verso Rio de Janeiro Oficina do Livro Ltda 1994 O Cipoal das letras entre olhares recortes e construções da Antropologia e da História no contexto de uma pesquisa sobre leitura Seminário História da Educação Brasileira a ótica dos pesquisadores Leitura teoria e prática Campinas SP revista da Associação de Leitura do Brasil ALB Fac de Educação UNICAMP Ano 15 n 28 dez 1996 Série documental eventos INEPMEC n 5 maio1994 p 48 54 Jogos de inclusão e exclusão sociais sobre leitores e escritores urbanos no final do século XX Anuário da Educação Rio de Janeiro Tempo Brasileiro org Barbara Freitag 1997 1998 MATA M L O valor social da Educação e do trabalho em camadas populares urbanas Rio de Janeiro CNPqOEA Departamento de Educação da PUCRio 1990 MATA L GARCIA Pedro B Cotidiano práticas sociais 181 e valores nos setores populares urbanos a difusão diferencial da escrita e da leitura e o significado da imagem entre os jovens Rio de Janeiro CNPq Departamento de EducaçãoPUCRio Projeto 1991 Relatório Final 1994 GEERTZ C A interpretação das culturas Rio de Janeiro Zahar Edit 1979 QUEIROZ MI Experimentos com histórias de vida Itália Brasil Org e introdução de Olga de Moraes von Simson São Paulo Vértice 1988 VELHO G Observando o familiar In A aventura sociológica Rio de Janeiro Zahar Edit 1978 Subjetividade e sociedade uma experiência de geração Jorge Zahar Editor Rio de Janeiro 1986 1 Vale esclarecer que as recorrentes pesquisas sobre a formação do leitor dentro e fora da escola têm recebido o apoio do CNPq incorporando alunos de iniciação científica mestrandos e doutorandos tanto da PUCRio como da UFRJ Dissertações teses e artigos vêm sendo elaborados e estes últimos apresentados em seminários no Brasil e no exterior pelos componentes da equipe 2 Esta classificação corresponde às concepções de alguns dos escritores Vale dizer contudo que a literatura infantojuvenil brasileira é vista como uma das melhores do mundo e comparada qualitativamente à inglesa 3 Tratase de iniciativas públicas e privadas importantes como o programa PROLER articulado à Biblioteca Nacional a campanha Paixão de Ler da Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro e o Leia Brasil programa da Petrobras apoiado pela UNESCO 4 Em entrevista realizada em 1996 para a pesquisa A formação do leitor limites e possibilidades da escola 5 A Secretaria Municipal de Cultura na gestão de Helena Severo começa a implantar bibliotecas em áreas faveladas tendo sido iniciadas essas atividades no contexto de ações do Programa FavelaBairro 182 6 Em contatos realizados para a pesquisa A formação do leitor limites e possibilidades da escola em 1996 7 Em entrevista realizada em 1997 para a pesquisa A formação do leitor limites e possibilidades da escola 8 Uninterrupted Sustained Silent Reading USSR 9 Em entrevista realizada em 1997 para a mesma pesquisa A formação do leitor limites e possibilidades da escola 10 Informe JB 1997 183 30 WALDA DE ANDRADE ANTUNES Leitura e biblioteca Bibliotecária Mestra em Planejamento Bibliotecário Doutora em Educação Professora do CID Departamento de Ciência da Informação e Documentação da Universidade de Brasília Diretora Técnica da WACORBI Membro do Comitê Estratégico do Leia Brasil Programa de Leitura da Petrobras Era da informação Mais do que isso era do conhecimento A sociedade globalizada ao tempo em que se defronta com o encontro de profissões tendências demandas enfrenta mudanças que chegam a todos os segmentos desta sociedade exigindo dos indivíduos um maior aporte cultural e educacional De outra parte o país vive um dos momentos mais significativos de sua história no qual se vê obrigado a acelerar o processo de modernização sobre novas bases políticas na busca de consolidação e fortalecimento da vida democrática Enquanto o país enfrenta grandes desafios no concerto internacional motivado pelas freqüentes mudanças nas relações importantes avanços científicos e tecnológicos passíveis de fortalecer o desenvolvimento criam o risco de gerar maiores desequilíbrios dentre 185 aqueles que não dispõem de articulações calcadas no campo cultural e não detêm reais potencialidades e recursos próprios As ações governamentais tendentes à globalização em todos os aspectos precisam se voltar para a promoção da autorealização dos indivíduos Sendo assim a elevação do nível cultural e educativo fundamento essencial para as transformações esperadas se assinalam como prioritárias medidas voltadas para a adoção de diretrizes que garantam a formação de leitores Medidas urgentes ousadas e de impacto devem constituir planos de ação abrangentes que fortaleçam a solidariedade nacional e garantam o engajamento de todos os setores da sociedade Apontase neste alvo talvez a única possibilidade de ampla participação do indivíduo no processo de formação do seu conhecimento e no esforço maior de participar da construção de uma sociedade globalizada e igualitária ser este indivíduo leitor freqüentador de bibliotecas usuário da informação O livro a leitura e a biblioteca alinhamse como importantes componentes sociais e em especial do sistema educativo Somamse a isto os meios de comunicação e veiculação de modo a que o livro seja disponibilizado e atenda as muitas demandas de leitura de forma que a aprendizagem o acesso à informação e ao conhecimento ocorram plenamente Promoção da leitura tem nítidas interfaces na luta contra o analfabetismo cuja eliminação é condição essencial do desenvolvimento e bemestar dos povos Porém promover a leitura é tarefa que deve estar respaldada por medidas que garantam a disseminação do livro fortalecendo a todas as instâncias criação produção disseminação para que isto aconteça O campo editorial brasileiro registrando expressivo desenvolvimento especialmente no que se refere à produção de livros infantis e infantojuvenis é capaz de contribuir efetivamente para o desenvolvimento da leitura Destacase como estrutura básicasuporte neste contexto o papel de serviços bibliotecários em suas diversas modalidades de modo a atingirem as comunidades independente de sua situação geográfica Cabe desta forma a ação de políticas públicas que garantam o desenvolvimento dos acervos das bibliotecas escolares e públicas para permitir a estas unidades o verdadeiro cumprimento de sua missão formadora de leitores e disseminadora de informações 186 A biblioteca é centro dinâmico de promoção da leitura de apoio à aprendizagem centro de disseminação cultural de informação Especialmente bibliotecas públicas e escolares trazem em sua missão explícita a participação no desenvolvimento do indivíduo Se por um lado a educação deve permitir o pleno exercício da dúvida da especulação e da busca da verdade por outro podemos dizer que o homem educado não é necessariamente um homem sábio mas um homem capaz de buscar o caminho da sabedoria Por esta razão os especialistas situam a educação como um processo em permanente desenvolvimento Ninguém pode ser considerado educado se não for capaz de adquirir novos conhecimentos A ausência de bibliotecas nas escolas e nas comunidades priva os alunos os cidadãos das oportunidades de leitura de facilitação da aprendizagem de acesso ao conhecimento Se educação e conseqüentemente a cultura são partes integrantes e fundamentais da formação dos indivíduos a leitura do livro a disponibilidade ofertada pela biblioteca são molas propulsoras do desenvolvimento da individualidade da independência na busca da informação À diversidade de possibilidades que uma biblioteca oferece pela leitura de muitos autores pela diversidade de idéias somase a função de elemento de comunicação a compreensão da mensagem o conteúdo que é lido por parte de quem lê condições e insumos importantes que levam o indivíduo a construir o seu próprio pensamento a ter as suas idéias A liberdade experimentada em uma biblioteca é extremamente relevante quer seja biblioteca escolar ou pública desvencilhase de qualquer método que possa resultar em unificador no processo de ensinar restrito à previsibilidade de ações O desenvolvimento da leitura na escola está intimamente vinculado ao livro As primeiras atividades de aproximação estabelecidas ainda na préescola têm no livro de literatura o despertar do interesse na criança A livre escolha o direcionamento ditado pelo interesse pela curiosidade pelo prazer a caminhada que aí se inicia vai desde o apego emocional que cresce na medida em que o livro assume um significado maior na vida da criança quer como o veículo que desvenda novos horizontes que amplia o seu mundo que sacia a sua curiosidade que oferece as grandes oportunidades de crescer além da dimensão que a saladeaula lhe propicia ANTUNES 1998 187 A propósito ABRAMOVICH F 1989 escritora brasileira expressa o seu pensamento na introdução da obra Leitura infantil gostosuras e bobices quando narra Ah a volúpia de ler sozinha de mergulhar no mundo mágico das letras pretas que remetiam a tantas histórias fantásticas Como era triste e comovente O soldadinho de chumbo é também triste e dadivosa A sereiazinha dois contos de Andersen como era deleitoso delicioso lagartear com os livros de Monteiro Lobato Era gostosura pura era maravilhamento total E essa volúpia de ler essa sensação única e totalizante que só a literatura provoca esse ir mexendo em tudo e formando meus critérios meus gostos meus autores de cabeceira relendo os que me marcaram ou mexeram comigo dum jeito ou de outro esse perceber que ler é um ato fluido ininterrupto de encantamento e de necessidade vital é algo que trago comigo desde muito muito pequenina E foi algo que me tornou essa viciada total em ler que sou até hoje Ler para mim sempre significou abrir todas as comportas pra entender o mundo através dos olhos dos autores e da vivência das personagens ler foi sempre maravilha gostosura necessidade primeira e básica prazer insubstituível A diversidade de livros que uma biblioteca oferece em seu acervo favorece a habilidade de ler além de atender às necessidades naturais de leitura e interesse do leitor Ainda garante o oferecimento de materiais orienta e cria condições para que o aluno vivencie experiências enriquecedoras e através do livro não obtenha apenas a informação mas que este se converta em forma de lazer prazer e freqüência nos momentos livres É ainda na diversidade que a biblioteca pode oferecer que o aluno passa a distinguir o que seja uma boa leitura atrativa convidativa instigante fortalecendo desta maneira o hábito de ler E o que mais se espera um leitor autônomo um usuário que sabe escolher o livro procurar a informação Um leitor que usa a informação que a amplia pelo conhecimento Ressaltada a importância do papel da biblioteca como fundamental no contexto de formação do leitor registrase aqui também a preocupação expressa por tantos quantos o reconhecem A biblioteca 188 especialmente aquela cuja clientela identificada é o leitor ou potencial leitor infantil bibliotecas infantis bibliotecas escolares e seções infantis em bibliotecas públicas não ocupam o espaço que lhes é devido junto à educação e à cultura Ressaltese ainda o fato de que a descontinuidade está sempre presente no trabalho da biblioteca na escola o responsável pela biblioteca é a primeira Além disso ressaltese o papel da biblioteca com relação à oportunidade de manipulação de diferentes materiais impressos e audiovisuais tomando contato com outras linguagens favorecendo o desenvolvimento de outras formas de comunicação expressão e leitura A ampliação de visão de mundo somase às experiências de leitura 189 Nota da revisora Páginas em branco 10 30 44 54 60 70 74 80 108 116 128 144 162 170 184 1 httpgroupsgooglecomgroupViciadosemLivros httpgroupsgooglecomgroupdigitalsource 1 Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com a intenção de facilitar o acesso ao conhecimento a quem não pode pagar e também proporcionar aos Deficientes Visuais a oportunidade de conhecerem novas obras Se quiser outros títulos nos procure httpgroupsgooglecomgroupViciadosemLivros será um prazer recebêlo em nosso grupo iNDICE Falando em leitura 7 Como e quando comecamoS a ler 11 Ampliando a noo de leitura 22 0 ato de ler e os sentidos as emocoes e a razao 36 A leitura ao jeito de cada leitor 82 Indicacoes para leitura 88 Bibliografia 92 o mais diffcil mesmo e a arte de desler Mario Quintana FALANDO EM LElTURA Falando em leitura podemos ter em mente alguam lendo jornal revista folheto mas 0 mais comum a pensarmos em Ieitura de livros E quando se diz que uma pessoa gosta de ler vive lendo talvez seja rata de biblioteca ou consumidor de romances hist6rias em quadrinhos fotonovelas S passa em cima dos livros via de regra estuda muito Sem duvida 0 ate de ler a usual mente relacionado com a escritae 0 leitor visto como decodificador da letra Bastard poram decifrar palavras para acontecer a leitura Como expli caramos as express5es de uso corrente fazer ahitura de urn gesto de uma situ8ao Ier 0 olhar de alguam Ier 0 tempo Ier 0 espaco indicando que 0 ate de ler vai alam da escrita Se alguam na rua me dci urn encontraominha reaao pode ser de mere desagrado diante de Maria Helena Martins batida casual ou de franca defesa diante de empurrio proposital Minha resposta a esse erne revela meu modo de leIo Outra as vezes passamos anos venda objetos urn vasa um cinzeiro sem jamais teIos tam enxergado IimitamoIos a sua funao decolilf ou ut ilitaria Um dia por motivos diversos nos encontramos diante de um como se fosse algo total mente novo 0 0 a cor a figura que representa seu passam a ter sentido melhora fazer senitido para 065 56 entiio se estabeleceu uma ligaao efetiva nels e esse objeto E consideramos sua beleza ra 0 ridculo ou adequao ao ambiente se encontra 0 material e as partes que COI1lJOem Podemos mesmo pensar a sua jifoyo as circunstancias de sua criaao as do autor ou fabricante ao fazeIo 0 de sua realizao as pessoas que 0 aJailltU1aram no decorrer de sua produao e Qie1015 de pronto aquelas ligadas a ele e as que onrun ou a quem desagrad Perguntamonos e nao Hnhamos enxergado isso antes essa questao nos ocorre por um segundo nnl rtTac eta e duradoura mas dificilmente voltamos 10 da mesma rnaneira nao importa com e intensidade o que aconteceu Ate aquele momenta 0 eta era apenas algo mais na parafernalia de o que e Leitura coisas ao nosso redor com as quais temos fami liaridade sem dar ateno porque nao dizem nada em particular ou das quais temos uma visao preconcebida De repente se descobre um sentido nao 0 sentido mas apenas uma maneira de ser desse objeto que nos provocou determinada reaao um modo especial de veIo enxergaIo percebeIo enfim Podemos dizer que afinal lemos o vaso ou 0 cinzeiro Tudo ocorreu talvez de modo casual sem intenao consciente mas porque houve uma conjunao de fatores pessoais com o momentoe 0 lugar com as circunstancias ISS pode acontecer tambem com relaao a pessoas com quem convivemos ambientes e situaoes cotidianas causando urn impacto uma surpresa ate uma revelaao Nada de sobrenatural Apenas nossos sentidos nossa psique nossa razao responderam a algo para 0 que ja estavam poten cialmente aptos e s6entao se tornaram disponveis Sera assim tambem que acontece com a leitura de um textoescrito Com frequencia nos contentamos por economia ou preguia em ler superficialmente passar os olhos como se diz Nao acrescentamos ao ate de ler algo mais de n6s alem do gesto mecanico de decifrar os sinais Sobretudo se esses sinais nao se ligam de imediato a uma experiencia urna fantasiauma necessidade nossa Reagimos assim ao que nao nos interessa no momento Um discLirso pol tico urna conversa uma I ngua 9 r to Maria Helena Martins estrangeira uma aula expositiva urn quadra uma pa musical urn livro Sentimonos isolados do processo de comunicacao que essas mensagens instauram desligados E a tendencia natural e ignoraIas ou rejeitaIas como nada tendo aver com a gente Se 0 texto e visual ficarnos cegos a ele ainda que nossos olhos continuem a fixar os sinais graficos as imagens Se e sonoro surdos Quer dizer nao 0 lemos nao 0 compreendemos impossvel darIhe sentido porque ele diz muito pouco ou nada para n6s Por essas razoes ao comecarmos a pensar a questao da leitura fica urn mote que agradeco a Paulo Freire a leitura do mundo precede sempre a leitura da palavra e a leitura desta implica a continuidade da leitu ra daquele COMOE QUANDO COMEAMOS A LER Desde os nossos primeiros contatos com 0 mundo percebemos 0 calor e 0 aconchego de urn berco diferentemente das mesmas sensacCSes provocadas pelos bracos carinhosos que nos enlacam A luz excessiva nos irrita enquanto a penumbra tranquiliza 0 som estridente ou urn grito nos assustam mas a cancao de nlnar embafa nosso sono Uma superfcie aspera desagrada no entanto 0 toque macio de maos ou de urn pano como quese integram a nossapele E 0 cheiro do peito ea pulsacao de quem nos amamenta ouabraca pod em ser convites a satisfacao ou ao rechaco Comecamos assim a compreender a dar sentido ao que e a quem nos cerca Esses tambem sao os primeiros passos para aprender a ler Tratase pois de urn aprendizado mais natural Maria Helena Martins pensar mas tao exigente e exo como a pr6pria vida Fragmentado mesmo tempo constante como nossas linrriDJVias de confronto com n6s mesrnos e odo ro novamente Paulo Freire ninguem ninguem como tampouco ninguem se a si mesrno os hornens se educam em mediatizados pelo mundo Paro hn e tambem ousando divergir neste caso se poderia dizer ninguem ensina ninguem a ler izado a em ultima instancia solitario ra se desencadeie e se desenvolva na convi com os outros e com 0 mundo Exagero tanto estudos da linguagem vem revelando cada com maior enfase que aprendemos a ler dos professores que para aprender a ler reender 0 processo da leitura nao estamos s temos condioes de fazer algumas sozinhos e necessitamos de alguma orien mas uma vez propostas instruoes unifor mizacias etas nao raro causam mais confusio do auxiliam bem as investigaoes interdisciplinares vem erideflCiando rnesmo na leitura do texto escrito ser apenas 0 conhecimento da I ngua que e sim todo um sistema de relaoes inter pessoa s e entre as varias areas do conhecimento e da expressao do homem e das suas circunstancias o que e Leitura Mas 0 que inois 0 intrigava eram as jigurinhizs desenhizdas embaixo das imagens e que provavelmente deveriam ser insetos desconhecidos 13 Maria Helena Martins Enfim dizem os pesquisadores da lingua crescente conviccao aprendemosa ler E diria vivendo faz pensar que 0 aprendizado de Tarzan Sieja pura obra da imaginacao de Edgar Rice OFrrI hc Aos dez anos remexendo nos escom da cabana de seu falecido pai 0 garotomacaco com alguns livros e teve seus primeiros ntltnc com a palavra impressa atraves de uma it Tentou de inlcio pegar as imagens que i ustravam percebendo entao serem apenas representafOes das figuras reais Mas 0 que mais eram as figurinhas desenhadas embaixo gens e que provavelmente deveriam ser desconhecidos Varios tinham pernas lem nenhum descobria bocas e olhos Nao aginar que esses sinais fossem as letras atfabeto Observando e refletindo percebeu poucos a relacao entre os insetozinhos e gens que os acompanhavam eles nao eram nume rosos repetiamse varias vezes Assim Utarefa extraordinaria aprendeu a ler sem possuir a menor nocaodas letras nem da agem escrita sem mesmo saber que essas coisas existiam Fascinante Imposslvel diriam os mais ceticos e fato numa crianca desde urn ana de idade sem oontato com a civilizacao tal facanha parece apenas coisa de ficcao Mas os inumeros escritores que rem recriado a aprendizagem da leitura quase o que e Leitura sempre apresentamna intencionalmente como alga magico senao enquanto ato enquanto processo de descoberta de urn universo desconhecido e maravilhoso Certamente aprendemos a ler a partir do nosso contexto pessoal E temos que valorizaIo para poder ir alem dele Esse orecado de Sartre em seu relato autobiografico no qual apresenta uma perspectiva mais realista mas nao menos fascinante da iniciacao a leitura Aposseime de urn livro intitulado Tribulaoes de um chines na China e 0 transportei para urn quarto de despejo aI empoleirado sobre uma cama de armar fiz de conta que estava lendo seguia com os olhos as linhas negras semsaltar uma unica e me contava uma hist6ria em voz alta tomando o uidado de pronunciar todas as snabas Surpre enderamme ou melhor fiz com que me surpreendessem gritaram admirados e decidiram que er tempo de me ensinar 0 alfabeto Fui zeloso como urn catecumeno ia a ponto de dar a mim mesmo aulas particulares eu montava na minha cama de armar com 0 Sem Famllia de Hector Malot que conhecia de cor e em rte recitando em parte decifrando percorriIhe todas as paginas uma ap6s outra quando a ultima foi virada eu sabia ler Fiquei louco de alegria eram minhas aquelas vozes secas em seus pequenos herbarios aquelas vozes que meu avo reanimava com 0 olhar que ele 15 Maria Helena Martins e eu nao Eu iria escutaIas enchermeia discu rsos cerimoniosos e saberia tudo Oeixa vagabundear pela biblioteca e eu dava ttn a sabedoria humana Foi ela quem me fez nca esgaravatei a terra nem farejei ninhos herborizei nem joguei pedras nos passarinhos os livros foram meus passarinhos e meus tvIOC meus animais domesticos meu estabulo e a biblioteca era 0 mundo colhido espelho t inha a sua espessura infinita a sua e ea sua imprevisibilidade Eu me lanva iYes aventuras era preciso escalar as cadeiras neas com 0 risco de provocar avalanches que m sepultado As obras da prateleira ficaram per muito tempo fora do meu outras mal eu as descobri me foram anmaudas das maos outras ainda escondiamse as apanhara um dia comeara a Ielas acreditava reposto no lugar mas levava uma sea reencontraIas Tive encontros hOrrlvels um album topava com uma prancha em insetos horrveis pulavam sob mmha r Deitado sobre 0 tapete empreendi aridas at raves de Fontenelle Arist6fanes ais as frases resistiamme a maneira das coisas cumpria obseniaIas rodeaIas fingir que me atastava e retornar subitamente a elas de modo a reendelas desprevenidas na maioria das vezes am seu segredo Ai t emes duas sinteses literarias do processo o que e Leitura de aprendizagem da leitura uma altamente ficcio nal outra autobiografica Ambas evidenciam a curiosidade se transformando em necessidade e esforo para alimentar 0 imaginario desvendar os segredos do mundo e dar a conhecer 0 leitor a si mesmo at raves do que Ie e como Ie Embora os exemplos se refiram ao texto escrito tanto Burroughs quanto Sartre indicam que 0 conhe cimento da I ngua nao e suficiente para a leitura se efetivar Na verdade 0 leitor preexiste a descoberta do significado das palavras escritas foise configurando no decorrer das experiencias de vida descle as maiselementares e individuais as oriundas do intercambio de seu mundo pessoal eo universo social e cultural circundante Quando comeamos a organizar os conheci mentos adquiridos a partir das situaoes que a realidade impoe e da nossa atuaao nela quando comemos a estabelecer relaoes entre as expe riencias e a tentar resolver os problemas que se nos apresentam a entao estamos procedendo leituras as quais nos habilitam basicamente a ler tudo e qualquer coisa Esse seria digamos 0 lade otimista e prazeroso do aprendiiado da leitura Oanos a impressao de 0 mundo estar ao nosso alcance nao s6 podemos compreendeIo conviver com ele mas ate modificaIo a medida que incor poramos experiencias de leitura Nao obstante em nossa trajet6ria existencial interpoemse inumeras barreiras ao ate de ler 17 Maria Helena Martins o desde cedo veemse carentes de convvio o ou com re l aoes sociais restritas quando condicOes de sobrevivencia material e cultural sao precarias refreando tambem suas expectatlvas pessoas tendem a ter sua aptidao para ler mente constrangida Nao que sejam incapazes pessoas com graves disturbios de carater ico A questao af esta mas Jigada as IQi5es de vida a nvel pessoal e socIal E 981 realizouse uma pesquisa sobre Tele e Comunicacao Publicitaria no Meio Rural ns dos depoimentos colhidos entre moradores or do Estado de Sao Pauloforam divulga peIa Revista Isto Uma mulher 37 anos casada dois filhos trabalhadora na ro moradora nha disse a respeito da televisao UPara televisao tem q ue saber ler Eu nao sei errtao nao en tendo nada Essa dec laraao aparentemente sem sentido transparecer uma 16gica revelando um pn Jt2SS0 de reflexaoacerca da leitura E isso em illSt3ncia demonstra tratarse de alguem que pribIa 0 ato de ler no seu cotidiano tem condi embora precarias de dar sentido as coisas no iha1Ih 0 na vida domestica nas relaoes humanas n la ao condicionar a leitura da TV a leitura text escrito assemelhando a linguagem das ados signos lingiHsticos rompe com a 1IVInrtamento usual que ve ambas as linguagens irvtArloAndentes e tambem exigindo capacidades o que e Leitura diferentes para compreendeIas Sua afirmaao nesse sentido se aproxima da noao da leitura proposta aqui Outra inferencia do raciodnio expresso esta na impormncia dada a leitura da escrita como ponte para outro entendimento 0 que e comum a maio ria das pessaas Seriade se perguntar em que medida essa mulher ve sua capacidade de dar sentido as coisas bloqueada pelo seu analfabetismo e qual a extensao de sua frustraao diante disso Como teria acres centado que quando compreende esquece logo temse a um dado elucidativo 0 que se Ihe oferece para ler na televisao pouco ou nada significa Rara ela pr isso nao chega a fixar na memoria seu universo de interesses e outro outras assuas necessidades reais ou de fantasia A psicanalise enfatiza que tudo quanto de fate impressionou a nossa mente jamais e esquecido mesmo que permana muito tempo na obscuri dade do inconsciente Essa constataao evidencia a importancia da mem6ria tanto para a vida quante para a leitura Principal mente a da palavra escrita da a valorizaao do saber ler e escrever ja que se trata de um signo arbitrario nao disponivel ns natureza criado como instrumento de comu nicaao registro das relaoes humanas das aoes e aspiraoes dos homens transformado com frequencia em instrumento de poder pelos domi nadores mas que pode tambem vir a ser a liberaao dos dominados 19 Maria Helena Martins te disso tambem poderfamos perceber 0 ecimento como urn mecanismo de defesa como a aprendizagem em geral e da leitura particular significa uma conquista de auto permite a ampliacao dos horizontes implica mente urn comprometimento acarreta alguns Estes ult imos em geral estabelecem a c1eSlXlnTlJanca I nco nscientemente aquela I eitora achemelhor nem entender ler porque ITlCaria para ela novas exigencias ruptura a passividade enfrentamento de uma situacao causarIhe maiores frustracoes em face idade E esta possivelmente ela considere rn fivPL ou cujas perspectivas de modificacao 2rirn a seu ver muito alem de seu alcance piSOaJ ou de seu grupo social Esse tipo de resposta a de nao querer ler vern ntro dos interesses das minorias dominan or certo nao estimulada abertamente ao 0 os sabedores das coisas na aparencia se pre prontos a ensinar a ler So que a o Esse desafio os indivfduos e as socie carentes como a nossa precisam aprender a rnh1Plm r comecando a ler por conta propria qu a duras penas exercitando sua me6ria se deixando iludir pela aparente gratUidade pequenas coisas da vida porque elas em rna instancia fazem a nossa hist6ria Com exemplos de leitores tao diferenciados cria na primeira infancia Tarzan Sartre o que e Leitura mulher da roca 0 prop6sito foi enfatizar algo sempre influente no ate de ler a interacao das condic5es interiores subjetivas e das exteriores objetivas Elas sao fundamentais para desen cadear e desenvolver a leitura Seja quem for 0 leitor 0 ate de ler sempre estara ligado a essas condicoes precarias ou ideals 21 AMPLIANDO A NOAO DE LEITURA conceito de leitura esta geralmente restrito da escrita sua aprendizagem no m Hgase por tradilao ao processo de l1li io global do indivduo a sua capacitalao oonvvio e atualoes social pol tica econo e cultural Saber ler e escrever ja entre e romimos significava possuir as bases de I o adequada para a vida educalao visava nao s6 ao desenvolvimento das aaiidades intelectuais e espirituais como das fisicas possibilitando ao cidadao integrar ente a sociedade no caso a classe dos res dos homens livres m se saber ler textos escritos e escrever oje e algo a que nao se tern acesso natu e 0 analfabetismo persiste mesmo em ises desenvolvidos entre os antigos era o que e Leitura privihgio de pouqulsslmos E 0 aprendizado se baseava emdisciplina rgida por meio de metoda analltico caracterizado pelo progresso passe a passe primeiro decorar 0 alfabeto depois soletrar por fim decodificar palavras isoladas frases ate chegar a textos continuos 0 mesmo metodo sendo aplicado para a escrita Apesar de seculos de civilizalao as coisas hoje nao sao muito diferentes Muitos educadores nao conseguiram superar a pratica formalista e meciinica enquanto para a maioria dos educandos aprender a ler se resume a decoreba de signos IingHsticos por mais que se doure a plulacom metodos sofisticados e supostamente desalienantes Prevalecea pedagogia do sacriflcio do aprender por aprender sem se colocar 0 porque como e para que impossibilitando compreender verda deiramente a funlaO da leitura 0 seu papel na vida do indivduo e da sociedade Tambem e sabido que nenhuma metodologia de alfabetizalao avanda ou nao leva por si s6 a existencia de leitores efetivos Uma vez alfabe tizada a maioria das pessoas se limita a leitura com fins eminentemente pragmaticos mesmo suspeitando que ler significa inteirarse do mundo sendo tambem uma forma de conqiJistar auto no mia de deixar de ler pelos olhos de outrem Oa 0 habito de ler livros em especial ser mistificado consideraremse os letrados os unicos capazes seja de criar e compreender a linguagem 23 Maria Helena Martins istica seja de ditar leis estabelecer normas e res sociais e culturais Isso de fato determina rlivas difceis de se abrir mao pois sao rrtonIiiadoras indfcios de que se pertence a uma Cabendo a essa minoria 0 direito de dar ao mundo enquanto aos demCis resta a issao aos ditames dos que sabem das coisas ndo 0 intelectual se debruca sabre 0 iletrado auxiliaIo a aprender inevitavelmente emerge patemal ismo Porem nao ensina 0 pulo do gato e ate af seu aitrulsmo nao chega Ahm do esse pulo tudo indica nao se ensina mesmo ese isto sim limpar 0 terreno ou na hip6tese quiavelica reforcar seus acidentes De qualquer forma prevalece a cultura do 1 cio se 0 educador e 0 que sabe se os ed candos sao os que nada sabem cabe aquele da entregar levar transmitir 0 seu saber aos ndos E ao denunciar isso Paulo Freire ama a atencao dos verdadeiros humanistas para 0 fato de que eles nao podem na busca da Libertao servirse da concepcao bancaria a ed cacao e doacao favor sob pena de se contrad izerem em sua busca Nesse caso predo mi na a visao de cultura do intelectual ou da cultura que Ihe pareca conveniente transmitir ao iletrado desrespeitandoo frontal ou subrepticiamente esta ultima hip6tese se insere uma das questoes mais discutidas e controvertidas de nosso tempo a cultura de massa sua manipulacao e con o que e Leitura sumo Para abrir perspectivas que mmlmlzem esses problemas muitos educadores apregoam a necessi dade da constituicao do habito de ler A leitura seria a ponte para 0 processo educacional eficiente proporcionando a formacao integral do indivduo Todavia os pr6prios educadores constatam sua impotencia diante do que denominam a crise de leitura Mas que crise e essa Pare eles em maioria ela significa a ausencia de leitura de texto escrito principal mente livros ja que a leitura num sentido abrangente esta mais ou menos fora de cogitacao Seria preciso assim investigar os inumeros fatores determinantes dessa situacao entre os quais ressalta 0 de a leitura como em regra a entendem estar limitada a escola com a utili zacao preponderante dos chamados livros dida ticos Como principalmente no contexte brasileiro a escola e 0 lugar onde a maioria aprende a ler e escrever e muitos tem sua talvez mica oportu nidade de contato com os livros estes passam a ser identificados com os livros didaticos Esses textos condensados supostamente dige rveis dao a ilusao de tornar seus usuarios aptos a conhecer apreciar e ate ensinar as mais diferentes disciplinas Na verdade resultam em manuais da 2S Maria Helena Martins ncia mais inibem do que estimulam 0 gosto Elaborados de modo a tiansmitir uma visao do conservadora repressiva tais livros estao etos de falsas verdades a servico de ideologias rrnI1 rlas mesmo quando mascarados por rsos formais ou tematicos atuais e nao conser res Subjaz a intencao de manipular a leitura ponto de seus organizadores deturparem os transcritos num franco desrespeito aos res e leitores sob 0 pretexto de resguardar pios ditos inabalaveis mas que a realidade inconsistentes justificativa maior dos organizadores dos didaticos entretanto se reveste de esplrito ernlfico a necessidade de viabilizar 0 desen mento de capacidades especlficas de simplifi assuntos demasiado complexos Quanto ao educadores muitos consideram tais livros um I necessario diante de evidentes problemas carater economico deficiencia na forma9ao professores na pr6pria estrutura do ensino rasileiro E enquanto a educacao formal vai r agua abaixo a mafia do livro didatico como a caracteriza Osman Linsr prospera franca e Resultado de polltica educacional e sistema s6cioeconomico no mlnimo desastrosos Encobrese desse modo 0 receio de urn dialogo espontaneo e crtico entre 0 professor e 0 aluno e de ambos com seu material de trabalho bloquean do oportunidades raras de realizaremse leituras o que e Leitura efetivas consequentes de se desenvolverem verda deiros leitores Ha portanto urn equ voco de base quando educadores falam em crise de leitura algodesfocado em relacao a nossa realidade o Brasil em termos de publicac5es distribuicao e venda de material impresso principal mente livros deixa muito a desejar Quanto a bibliotecas nem se fala Mas a oferta vem aumentando inclu sive a precos acesslveis a camadas mais amp las da populacao 0 volume de exemplares vendidos em edic5es populares cresce revelando que mesmo em term os de leitura de livros a crise naose da tanto devido a faltado que ler aos precos altos a pouca qualidade do material ou mesmo pela inexistencia de leitores A questao e mais ampla e complexa vem da precariedade de condic5es s6cioeconomicas e se espraia na ineficiencia da instituicao escolar determinando e limitando opc5es Sem duvida a concepcao que liga 0 habito de leitura apenas aos livros deve muito a influencia persistente no nosso sistema educacional de uma formacao eminentemente livresca e defasada em relacao a realidade ainda fomentada pela escolastica crista que orientou os jesu tas os primeiros educadores no Brasil Ademais deve muito a ideologia burguesa que busca na elitizacao da cultura meios de perpetuar seu domlnio social pol tico economico 27 Maria Helena Martins o que e considerado materia de leitura na esco esta longe de propiciar aprendizado tao e duradouro seja de que especie for como 0 desencadeado pelo cotidiano familiar pelos colegas 9Os pelas diversoes e atribuicoes diarias pelas r caoes de canher popular pelos diversos de comunicacao de massa enfim pelo ntexto geral em que os leitores se inserem exto esse permanentemente aberto a inumeras ras Nao e de admirar pois a preferencia pela ra de coisas bem diferentes daquelas impostas sala de aula sem a cobranca inevitavel em I por meio das execraveis fichas de leitura esconsiderando essa realidade a escola corre 0 de estar preparando criancas e jovens mesmo Iegiados por conseguirem chegar e permanecer que vao envelhecer sem crescer caso contarem com ela E obviamente esse processo ocorre com indivduos quanto com instituicoes outras palavras 0 tiro pode sair pela culatra A em do mais seria contrasenso insistir na portancia do habito de ler restringindoo aos ou quando muito a textos escritos em geral sso implica alijar da experiencia de leitura os il 5es de analfabetos espalhados pelo pais ou iletrados que nao costumam ter na escrita sua ferencia cotidiana Sobretudo quando se sabe lou se deveria saber que para modificar esse quadro sao necessarias reformulacoes expressivas sistema pol ltico economico e s6Ciocultural o que e Leitura de modo a permitirem melhoria efetiva de condicoes de vida da imensa maioria desfavorecida Solucoes simplificadoras ou demag6gicas para questoes tao complexas resultam inoperantes Fundamental e que conhecendo os limites de sua acao os educadores repensem sua pratica pro fissional e passem a agir objetiva e coerentemente em face dos desequil brios e desafios que a reali dade apresenta Temos entao mais um motive para ampliar a nOCao de leitura Vista num sentido amplo inde pendente do contexte escolar e para alem do texto escrito permite compreender e valorizar melhor cada passo do aprendizado das coisas cad a experiencia Incorporase assim ao cotidiano de muitos 0 que geralmente fica limitado a uma par cela minima da sociedade ao ambito dos gabinetes ou salas de aula e bibliotecas a momentos de lazer ou de busca de informacao especializada Enfim essa perspectiva para 0 ate de ler permite a descoberta de caractersticas comuns e diferencas entre os indivduos grupos sociais as varias cultu ras incentiva tanto a fantasia como a consciencia da realidade objetiva proporcionando elementos para uma postura crtica apontando alternativas Mas ampliara nocao de leitura pressupoe transfor macoes na visao de mundo em geral e na de cultura em particular Isso porque estamos presos a um conceito de cultura muito ligado a producao escri ta geralmente provinda do trabalho de letrados 29 Maria Helena Martins realidade entretanto nos apresenta inumeras culturais originarias das camadas norantes do povo e cuja forta significativa feito perdurar pr seculos Da a necessi de se compreender tanto a questao da leitura men a da cultura para alem dos limites que as OUUUI tOes impuseram Seria preciso entao considerar a leitura como processo de compreensao de expressoes formais e Micas nao importando por meio de que lUJyurIgtlJ Assim 0 ate de ler se refere tanto a escrito quanto a outros tipos de expressao do humano caracterizandose tambem como ntecimento hist6rico e estabelecendo uma win igualmente hist6rica entre 0 leitor e 0 que Sugerindo uma visao mais ampla da notao de ra abro questoes cujas respostas nao tenho pretendo encontrar aqui Elas sao colocadas como urn desafio porque estamos inapela nte condicionados a perspectiva da cultura rwI a relatao leituraescrita Mas essa delimi do ato de ler impede de se eng lobar no processo uma serie de aspectos que a realidade ia assim como elitiza a leitura e a escrita nainnndose enquanto privilegio e a conquista privilegio com sua subsequente democrati za3o e negatao enquanto privilegio e uma neces imperiosa para as classes subalternas me observou Flavio Aguiar Ele como I o que e Leitura certamente muitos outros simpatiza com minha proposta embora fique pouco a vontade em seu contraforte de letrado Da ser precise nao s6 revelar a insatisfatao quanto aos limites de nOtoes estratificadas pelos seculos como tambem ousar questiomiIas aventando alternativas As inumeras conceptoes vigentes de leitura grosso modo podem ser si ntetizadas em duas caracterizatoes 1 como uma decodificatao mecanica de signos lingusticos por meio de aprendizada estabelecido a partir do condicionamentoestlmuloresposta perspectiva behavioristaskinneriana 2 como urn processo de compreensao abran gente cuja dinamica envolve compohentes senso ria is emocionais intelectuais fisiol6gicos neurol6gicos bern como culturais economicos e pol ticos perspectiva cognitivosocioI6gica Conforme as investigatoes interdisciplinares vern apontando esta ultima conceptao da conditoes de uma abordagem mais ampla e mesmo mais aprofundada do assunto Por certo cada area do conhecimento enfatiza urn aspecto mas nao se propondo delimitatoes estanques esta aberta ao intercambio de informatoes e experienciasAlem disso 0 debate decodificataoversus compreensao 31 Maria Helena Martins parece estar se esvaziando Ambas sao necesais e ra Decodificar sem compreender a nutll co preender sem decodificar imposslvel Ha e se pensar a questao dialeticamente despeito de todas as tentativas de uma visao h5tica e met6dica se nos perguntarmos 0 e 0 que significa a leitura para n6s mesmos certamente cada urn chegara a urna resposta enciada 1550 porque se trata antes de mais a de uma experiencia individual cujos limites estao demarcados pelo tempo em que nos emos nos sinais ou pelo espafo ocupado por es Acentuese que porsinais entendese aqui aJquer tipo de expressao formal ou simb6lica configurada pelas mais diversas linguagens Frank Smith psicolinguista norteamencano estudando a leitura mostra que gradativamente os pesquisadores da linguagem passam considerIa urn processo no qual 0 leltor partlclpa co uma aptidao que nao depende basicamente e sua capacidade de decifrar sinais mas sim de sua capacidade de dar sentido a eles compreendeIos esmo em se tratando da escrita 0 procedimento esta mais ligado a experiencia pessoal a vivencia de cada urn do que ao conhecimento sistematico da Ingua A leitura vai portanto alam do texto seja ele al for e comefa antes do contato com ele o leitor assume urn papel atuante deixa de ser mer decodificador ou receptor passivo E 0 o que e Leitura contexto geral em que ele atua as pessoas com quem convive passam a ter influencia apreciavel em eu desempenho na leitura Isso porque 0 dar sentdo a um texto implica sempre levar em conta a situafao desse texto e de seu leitor E a nOfao de texto aqui tambern a ampliada nao mais fica restrita ao que esta escrito masabrese para englobar diferentes linguagens Considerando as colocafoes acima a leitura se realiza a partir do diiogo do leitor com 0 objeto ido seja escrito sonoro seja um gesto uma Imaem um acontecimento Esse dialogo a refe renclado por urn tempo e urn espafO uma situafao desenvolvido de acordo com os desafios e as respostas que 0 objeto apresenta em funfao de expectativas e necessidades do prazer das descobertas e do reconhecimento de vivencias do leitor Tambem 0 sustenta a intermediafao de outro s leitor es Alias 0 papel do educador na interrnediafBo do objeto lido com 0 leitor a cada vez mais repensadose da postura professoral lendo para eou peo educando ele passar a ler com certamente ocorrera o intercambio das leituras favorecendo a ambos trazendo novos elementos para urn e outro 33 A dinamica do processo e pois de tal ordem que considerar a leitura apenas como resultado da interaao textoIeitor seria requzilci considera velmente a ponto de se arriscar equvoco como pensar que urn mesmo leitor lendoum mesrno Maria Helena Martins texto nao importa quantas vezes sempre realizaria rna mesma leitura Nao precisa ser especialista no assunto para saber 0 quanto as circunstanias pessoais ou nao uma dor de cabeca uma recomen mao acatada ou imposicao urn conflito social podem influir na nossa leitura Em face disso aprender a ler significa tambem aprender a ler 0 mundo dar sentido a ele e a n6s roprios 0 que mal ou bern fazemos mesmo sem set ensinados A funcao do educador nao seria ecisamente a de ensinar a ler mas a de criar co dicoes para 0 educando realizar a sua pr6pria a rendizagem conforme seus pr6prios interesses necessidades fantasias segundo as duvidas e exigencias que a realidade Ihe apresenta Assim jar condicoes de leitura nao implica apenas aJfabet izar ou propiciar acesso aos livros Tratase es de dialogar com 0 leitor sobre a sua leitura e sabre o sentido que ele da repito a algo escrito urn quadro uma paisagem a sons imagens coisas ideias situacoes reais ou imaginarias Enquanto permanecermos isolados na cultura etrada nao poderemos encarar a leitura senao como instrumento de poder dominacao dos que sabem ler e escrever sobre os analfabetos ou iletrados Essa real idade precisa ser alterada Nao e se proponha 0 menosprezo pela escrita isso seria tolice ela em ultima instancia nos oportuniza condicoes de maior abstracao de reflexao Importa antes comecarmos a ver a 0 que e Leitura leitura como instrumento liberador e posslvel de ser usufru Ido por toqos nao apenas pelos letrados Se 0 papeL do educador pareceu aqui em evidencia ele fol trazido a baila para ser colocado em seu devido lugar e compreendido nao neces sariamente como 0 do especialista em educacao 011 do professor mas como 0 de urn indivdLJo letrado que sabe algo e se propoe a ensinaIo a alguem Importa muito se ter bern presente a ideia de que isso de ler e ler bern depende muito de n6s mesmos das nossas condicoes reais de existencia mais do que podem ou querem nos fazer crer os sabedores das coisas Alias essas condicoes vao inclusive orientar preferencias e privilegiar urn determinado nvel de leitura como se vera a seguir 35 o ATO DE LER E OS SENTIDOS AS EMOOES E A RAZAO Como afirmei de inicio estou apenas pensando e gerindo reflexoes ace rca da questao da leitura pretendo chegar a defini90es a conceitua90es mitivas tampouco apresentarregras ou receitas prop6sito e compreender a leitura tentando it ificaIa por meio de uma abordagem despre iosa mas que permita avaliar aspectos basicos processo dando margem a se conhecer mais o roprio ate de ler Esses aspectos se relacionam a pr6pria existencia omem incitando a fantasia 0 conhecimento e a reflexao acerca da realidade 0 leitor entretanto se detem no funcionamento do ato de ler intrincada trama de interrela90es que se esta ecem Todavia propondose a pensaIo perce a configura9ao de tres nveis basicos de o que e Leitura leitura os quais sao possveis de visualizar como nlveis sensorial emocional e racional Cada urn desses tres nveis corresponde a urn modo de aproxima9ao ao objeto lido Como a leitura e dinamica e circunstanciada esses tres nfveis sao interrelacionados senao simultaneos mesmo sendo um ou outro priviegiado segundo a expe riencia expectativas necessidades e interesses do leitor e das condi90es do contexte geral em que se insere Percorrendo uma feira urn bricabraque urn museu ou urn antiquario certamente assaltamnos as mais variadas sensa90es em090es e pensamentos Talvez pelo ins61ito do conjunto de objetos observados do lugar em que se encontram nos detenhamos mais a olhaIos Cada individuo reagira a eles de urn modo ira Ielos a seu modo Eu par exemplo as vezes nao resisto a tenta9ao de toealos cheiraIos fazelos funcionar Em certas ocasioes me deprimem como num mercado de quinquilharias ou num brique onde cada coisa teve sua hist6ria particular e acabouna vala comum nas maos de quem possivelmente ignora por completo sua trajet6ria Noutros casos assume uma postura de reverencia e encantamento diante de urn objeto consagrado um manuscrito de autor notavel uma cadeira que pertenceu a alguem famoso urn original de quadro ha muito admirado apenas at raves de reprodu90es Ocorrem tambem os momentos em que me descubro pnsando 0 37 Maria Helena Martins porque da existencia de tais objetos quais as i e es de sua criacao suc finalidade 0 que de o significaram para seus criadores e possuidores rorno se relacionam com 0 momenta hist6rico al e 0 lugar em que foram criados qual seu se ido para mim e para 0 mundo em que vivo Em cada urn desses casos como em muitlssimos os estou realizando leituras dando sentido coisas as pessoas ligadas a elas ao tempo e espaco que ocuparam e ocupam e a minha relacao isso tudo Estou tendo com meus sentidos has emocoes meu intelecto 5e recorro aqui m examplo tao pessoal e para nao generalizar ocadamente quanto a preferencias De aJquer modo temse at uma ideia inicial dos i is de leitura Alem disso fica eyidenciado algo a meu ver fundamental se a leitura tem mais sterios e sutilezas do que a mera decodificacao palavras escritas tem tambem um lade de plicidade que os letrados nao se preocupam 0 em revelar intemao aqui e de uma aproximacao por esse angulo dos nveis basicos do processo Ha meras maneiras de caracterizaIos e estudaIos ei pelos aspectos que me parecem mais entes longe de querer esgotar as possibilidades abordagem do tema Pelo contrario tratase wna iniciacao a ele Alias cabe observar par desta para outras reflexoes encontrarseao concepc5es a respeito de nveis de leitura o que e Leitura Cada coisa teve sua hist6ria particular e acabou na vala comum nas maos de quem possivelmente ignora por completo sua trajet6ria 39 40 Maria Helena Martins Praticamente cada estudioso tern uma VI sao diferenciada talvez par ser questao cada vez rna is repensada e acrescida de novas perspectivas 0 que sempre aumenta as possibilidades de com preendeIa Leitura sensorial A visao 0 tato a audicao 0 olfato e 0 gosto podem ser apontados como os referenciais mais elementares do ate de ler 0 exemplo visto anteriormente dos momentos iniciais da relacao d13 crianca com 0 mundo ilustra a leitura sensorial De certa forma caracteriza a descoberta do universo adulto no qual todos n6s precisamos aprender a viver para sobreviver Nao se trata de uma leitura elaborada e antes uma resposta ime diata as exigencias e ofertas que esse mundo apresenta relacionase com as primeiras escolhas e mot iva as primeiras revelacoes Talvez por isso mesmo Rlarcantes Essa leitura sensorial comeca pois muito cedo enos acompanha por toda a vida Nao importa se mais ou menos minuciosa e simultanea a leitura emocional e racional Embora a aparente gratui dad de seu aspecto ludico 0 jogo com e das imagens e cores dos materia is dossons dos cheiros e dos gostos incita 0 prazer a busca do que o que e Leitura agrada e a descoberta e rejeicao do desagradavel aos sentidos E atraves dessa leitura vamonos revelando tambem para n6s mesmos Em suas mem6rias Erico Verfssimo cia mais vida e significacao a essas coisas de que estamos falando Estou convencido de que meu primeiro contato com a musica 0 canto 0 conto e a mhologia se processOu at raves da piimeira cantiga de acalanto que me entrou pelos ouvidos sem fazer sentido em meu cerebro e 6bvio pois a princpo aquele conjunto ritmado de sons nao passava dum narc6tico para me induzir ao sono Essa cancao de ninar falava do Bicho Tutu que estava no telhado e que desceria para pegar 0 menino se este ainda nao estivesse dormindo Mas se ele ja esti vesse piscando com a areia do sono nos olhos a letrada cantilena era diferente uma advertencia ao Bicho Tutu para que nao ousasse descer do telhado pois nesse caso 0 pai do menino mandaria mataIo E a temos sem duvida uma efabulacao ou est6ria uma melodia e um elemento mitol6gico Amas e criadas encarregaramse de enriquecer a galeria mitol6gica da crianca contandoIhe est6rias fantasticas de carater francamente sadomasoquista como aquela da madrasta que mandou enterrar vivas as tres enteadas Ouco uma voz remota exclamar Xo xo passarinho Dessa hist6ria das meninas enterradas Capineiro de meu pai nao me cortes os cabelos minha mae me penteou minha madrasta me enterrou Mtiria Helena Martins guardo mais 0 terror que ela me inspirou do que o seu enredo Poressa epoca a criancaja caminhava e a rita magnetica de sua mem6ria estava ainda praticamente virgem pronta para registrar as impressoes do mundo com suas pessoas animais coisas e misterios A leitura sensorial vai portanto dando a conhe cer ao leitor 0 que ele gosta ou nao mesmo incons cientemente sem a necessidade de racionalizacoes justificativas apenas porque impressiona a vista 0 ouvido 0 tato 0 olfato ou 0 paladar Por certo alguns estaraoa pensar que ler sensorial mente rna est6ria contada urn quadro uma cancao ate rna com ida e facil Mas como ler assim urn livro per exemplo Antes de ser um texto escrito um livro e um objeto tem forma cor textura volume cheiro Podese ate ouviIo se folhearmos suas paginas Para muitos adultos e especialmente criancas nao alfabet izados essa e a leitura que conta Quem ja eve oportunidade de vivenciaIa e de observar a sua realizacao sabe 0 quanto ela pode render a crianca essa leitura atraves dos sentidos revela um prazer singular relacionado com iii sua d ponibilidade maior que a do adulto e curio dade mais espontaneamente expressa 0 livro esse objeto inerte contendo estranhos sinais o que e Leitura quem sabe imagens coloridas atrai pelo formato e pela facilidade de manuseio pela possibilidade de abriIo decifrar seu misterio e ele revelar atraves da combinacao rtmica sonora e visual dos sinais uma hist6ria de encantamento de imprevistos de alegrias e apreensoes E esse jogo com 0 universe escondido num livro vai estimu lando na crianca a descoberta e aprimoramento da linguagem desenvolvendo sua capacidade de comunicacao com 0 mundo Surgem as primeiras escolhas 0 livro com ilustracoes coloridas agrada rna is se nao contem imagEms Cltrai menos E s6 fato de folheaIo abrindoo e fechando o provoca uma sensacao de possibilidades de conheceIo seja paradominaIo rasgandoo num gesto onipotente seja para admiraIo conservandoo a fim de voltar repetidamente aele Esses primeiros contatos propiciam a crianca a descoberta do livro como um objeto especial diferente dos outros brinquedos mas tambem fonte de prazer Motivamna para a concretizacao maior do ate de ler 0 texto escrito a partir do processo de alfabetizacao gerando a promessa de autonomia para saciar a curiosidade pelo desco nhecido e para renovar emocoes vividas Melhor do que qualquer tentativa de explicar isso e buscar nova mente 0 relato de Sartre Eu nao sabia ainda ler mas ja era bastante esnobe para exigir os meus livros Peguei os dois volume zinhos chereios apalpeios abrios negligentemen 43 Maria Helena Martins te na pagina certa fazendoos estalar Oebalde eu nao ti nha a sensaao de possuIos Tentei sem ior exito trataIos como bonecas acalentaIos jalos surralos Quase em lagrimas acabei por dep6los sobre os joelhos de minha mae Ela ntou os olhos de seu trabalho 0 que queres e eu te leia querido As Fadas Perguntei I ulo As Fadas estao a dentro Ja os adultos tendem a uma postura mais inibida nte do objeto livro Isso porque ha sem duvida tradicao de culto a ele Mesmo quando nao m a forma pela qual hoje os conhecemos os os eram vistos como escritura sagrada porta dora da verdade enigm3tica ou perigosa E e inegavel a seriedade que uma biblioteca sugere A casa onde se encontra uma estante com livros 51 s6 ja conota certo refinamento de esprito igencia cultura de seus moradores Quanto livros melhor Nao e a toa que se compra as vezes por metro belos exemplares encaderna e se os poe bem a mostra alardeando aos nantes 0 status letrado Mesmo que esses livros sejam manuseados sua simples presenca j ca basta para indiciar sabedoria Os fetichistas ramnos indiscriminadamente mais em rwao de seu aspecto do que pela sua representa rrv e devido ao seu valor intrnseco por seu mfiteUdo ou autor Ha ainda um tipo de fetichista sutil 0 bibl iofilo colecionador de raridades as quais muitasvezes sequer tern condicoes de o que e Leitura avaliar mas exibeas com tal orgulho como se a mera posse dos exemplares ja Ihe facultasse 0 reconhecimento efetivo de importancia cultural e social quando nao a exclusividade de manuseio deixando aos demais leitores apenas a possibilidade de ler mediados pr uma vitrina Oiante de tal poder a simples posse do objeto livro pode significar erudicao sua leitura levar a salvacao os incredulos como quando repositorio das palavras de Cristo nos Evangelhos ou construir a loucura como a do cavaleiro andante Quixote a atitude do homem comum e historicamente de respeito Mesmo 0 advento da era eletronica com 0 radio e a televisao antes de arrefecer 0 culto aos meios impressos e especial mente ao livro acabou enfatizando sua importancia A suspeita amea cadora para uns Ietrados e alentadora para outros iletrados de que a escrita nao seria mais indispensavel para saber das coisas nao se concre tizou Pelo contraste entre 0 facilitario da comu nicacao eletronica ou da comunicacao oral e complexidade da escrita acabam ainda sendo mais valorizados os textos impressos os livros m particular e seus leitores Estes optam pelo mais diflcil e por ser a escrita mais difcil de entender seria possivelmente mais importante que os outros meios Esse tipo de raciocnio comum entre a 1 populacao iletrada e sem duvida estimulado pelos intelectuais resulta ser urn dos fatores maiores I 4S Maria Helena Martins de su stentaao do culto da letra e dos livros Os possuidores do poder da palavra escrita se encarregam de sublinhar e alargar a aura mistifi eadora que a envolve certos deestarem eles tamoom sob a protecao dos deuses enquanto ao itor em geral cabe a submissao 0 que esta escrito resso e principalmente publicado em forma e livro e inquestionavel significa sabedoria encia arte a que 0 comum dos mortais s6 atinge mmo receptor passivo Nao era de graca que Catulo Paixao Cearense quando mostrava a alguem seus manuscritos advertia para 0 fato de que is de impressos ficariam melhores e ao sarem livro estariam excelentes Corolario desse poder e a ameaca que os textos escritos pod em inspirar Da as queimas e destrui cOes as proibicoes daqueles considerados perigosos os seus concorrentes na forca de persuasao e ressores do pensamento e expressao livres exemplo mais acabado encontramos no Index brorom Proibitorum f ndice dos Livros Proibi uma lista de titulos elaborada pela Igreja Carolica Romana para impedir a contaminacao ie ou a corrupcao moral De mead os do securo XVI ate 1966 quando foi suspenso inume ediyoes do Index foram publicadas e conse entemente mil hares de punicoes executadas em da desobediencia as proibicoes Ha quem rezado muitas AveMarias de penitencia por algum dos livros malditos quando naq o que e Leitura apenas por possu los au manuseaIos E ha quem literalmente perdeu a cabeca por teIos escrito Mas nao sao apenas religiosos os pretextos de proibicao Os governos autoritarios tem side os maiores censores E disso n6s sabemos muito bem Mesmo cercado de tal fama 0 objeto livro nem sempre convence por si s6 Sua aparencia tambem impressiona bern ou mar Quem de n6s nao rechacou um deles por ser impresso em tipos muito miudos por ser muito grosso ou devido a mancha gratica compacta mente distribuida na pagina ao papel aspero e a brochura ou encadernacao nao se acomodarem as nossas maos Os racionalistas dirao mas 0 importante e 0 que esta escrito Nao se trata de racionalizar a questao aqui envolve os sentidos Do contrario como explicar 0 prazer que pode despertar aos olhos e ao tate um bela exemplar em papel sedoso com ilustracoes coloridas e planejamento gratico cuidadoso mesmo 0 texto escrito sendo piegas cheio de falsas verdades ou ainda absolutamente indecifravel E a revista inescrutavel envolta por urn plastico deixando a mostra apenas a capa atraente e estimu lante Num primeiro momenta 0 que conta e a nossa res posta fsica ao que nos cerca a impressao em nossos sentidos Estes entretanto estando ligados as emocoes e a razao as vezes pregam pecas surpreendendo perturbando mudando 0 percurso de nossa leitura 47 Maria Helena Martins Quantos ja se dirigiram a alguem efusivamente descobrindo logo tratarse de pessoa desconhecida E aquela almofada macia e quentinha que virou m gato nos arranhando Ha tambem 0 caso do lime em branco e preto em c6pia velha que resulta inesperadamente born Uma revista visual mente agradchiel que de repente deixa de ter alquer interesse para n6s Ou urn livreco de sebo meio rasgado e sujo com pessimo planeja ment o grMico que acaba nos agarrando Assim quando uma leitura seja do que for nos faz ficar alegres ou deprimidos desperta a riosidade estimula a fantasia provoca descober tas lembranas a I entao deixamos de ler apenas co os sentidos para entrar em outro n Ivel de ra 0 emocional Leitura emocional Sob 0 ponto de vista da cultura letrada se a tura sensorial parece menor superficial pela sua pria natureza a leitura emocional tambem tern sell tear de inferioridade ela lida com os senti mentos 0 que necessariamenteimplicaria falta de objetividade subjetivismo No terreno das emocoes as coisas ficam ininteligveis escapam ao controle o leitor que se ve envolvido por verdadeiras arT1lCdilhas trancadas no seu inconsciente Nao j o que e Leitura obstante essa a leitura mais comum de quem diz gostar de ler talvez a que de maior prazer E mais uma contradicao e pouco revelada e muito menos valorizada Certaspessoas situacoes ambientes coisas bem como conversas casuais relatos imagens temas cenas caracteres ficcionais ou nao tern o poder de incitar como num toque magico nossa fantasia libertar emoc5es Vem ao encontro de desejos amenizam ou ressaltamfrustrac5es diante da realidade Levamnos a outros tempos e lugares imaginarios ou nao rnas que naquelas circunstancias respondem a uma necessidade provocam intensa satisfacaoou ao contrario desencadeiam angustia levando a depressao Tudo se passa num processo de identificacao nao temos controle racional sabre issa pelo menos naquele momento E quando nos percebemos dominados pelos sentimentos nossa reacao tende a ser a de refreaIos ou negaIos por respeito humano conforme os cat61icos ou como explica Freud par um mecanisme de defesa pois aexpressao livre das emoc5es nos torna demasiado vu ineraveis Esses os motivos pelos quais procuramos esca motear ou justificar uma leitura emocional uma vez passado seu impacto Chegamos mesmoa ridicularizaIa tempos depois menosprezando nossa capacidade como leitor na ocasiao Tolice A leitura foi tao ou mais crreta se existe urna leitura assim que a feita com 0 passar eto tempo 49 Maria Helena Martins ou de cabeca fria Naquele momento contaram apenas as nossas emooes Por que negar 0 fato de nos emocionarmos ao assistir a uma cena amorosa real ou na telenovela ao ouvir uma cancao romantica ou em face de uma contrariedade domestica de uma injustica social inexoravel Nao sao essas situacoes e reacoes comuns a maioria dos homens Acontece que pr urn lado a gente nao quer parecer comum cada urn de n6s deseja marcarse como personalidade nao 56 para os outros como para si pr6prio mesmo que por meio de estere6ti pos inculcados de uma conduta pnHabricada e supostamente desalienante racional Pr outro somos intolerantes diante de manifestacoes estra nhas ao que se convencionoLi chamar de expressao equilibrada consciente Tudo isso acaba nao raro mediocrizando e complicando ainda mais nossas das Se nao mascarassemos as nossas leituras e a sua mem6ria talvez elas nos revelassem muito mais de n6s mesmos das nossas condicoes de vida entao E do confronto de leituras certamente sairfamos forta1ecidos Muitas vezes descobrimos gravadas em nossa mem6ria cenas e situacoes encontradas durante a leitura de urn romance de urn filme de uma cancao E sentimos que elas com 0 passar do tempo se tornaram referencias de urn perfodo especial de nossas vidas cheio de sonhos e aspiracoes o que e Leitura 1 Ocorrem tambem lembrancas rna is prosaicas e desagradaveis Imaginem urn texto lido as pressas para realizar uma prova Tudo nele aborrece ou preocupa por terse que dar conta de seu cOAteudo provavelmente devendo se airQa encontrarIhe qualidades Na verdade pouco ou nada e elaborado A leitura pode ate se tornarnsuportavel urn verdadeiro exercfcio de angustia Esse texto mesmo se passando muito tempo sem veIo ou sem referencias a seu respeito esta marcado Dificilmente voltamos a ele de espfrito aberto sem preconceito E caso 0 consigamos talvez ate tenhamos uma surpresa agradavel porque se mostra atraente enquanto tambem reaviva urn pouco da nossa hist6ria quando da primeira C leituraou porque definitivamente tern conf mada a sua insignificancia para n6s0 que nao deixa de ser revelador Nao sentimos algo semelhante com relacao a alguem ou a alguma coisa que em princfpio nos agrada ou desagrada Urn certo ator u parente urn vizinho urn objeto urn acontecl mento Essa uma das razoes para considerarse a primeira leitura definitiva Como vimos talvez nao seja mas sem duvida e marcante Por que assim mesmo receamos revelaIa Na leitura emocional emerge a empatia tenden cia de sentir 0 que se sentiria caso stivessemoslila situacao e circunstancias experimentadas por outro isto e na pele de outra pessoa ou mesmo Maria Helena Martins de urn animal de um cbjeto de uma personagerri de ficlaO Caracterizase pois urn processo de participalaO afetiva numa realidade alheia fora de n6s I mplica necessaria mente disponibilidade o seja predisposilaO para aceitar 0 que vern do ndo exterior mesmo se depois venhamos a echalC3lo A crianla tende a ter maior disponibilidade que o adulto pelo simples fato de em princlpio tudo e ser novo e desconhecido e ela precisar conhecer o mais possvel a fim de aprender a conviver com esse mundo Assim sendo nao s6 e mais receptiva como mais espontanea quanto a manifestar emoloes Acaba entao revelando a empatia de do ate exacerbado Da sermos condescenden es nao levarmos muito a serio suas manifes tafXes consideradas infantis isto e nao condi onadas pelas normas de conduta adulta Haven a urna ponta de inveja nossa pr aquela esponta neidade perdida Sera por isso que fica mais drtlcil expressar certos sentimentos nossos em relo a determinadas leituras Talvez conviesse nesse momento pensarmos 0 texto menos como urn objeto como foi eviden ado na leitura sensorial e mais como urn acontecimento algo que acontece ao leitor Princi palmente porque na leitura emocional nao importa o que e Leitura perguntarmos sobre 0 seu aspecto sobre 0 que urn certo texto trata em que eleconsiste mas sim 0 que ele faz 0 que provoca em n6s As vezes temos uma semiconsciencia de estar mos lendo algo mediocre sem originalidade mistificador da realidade ou sem representatividade estetica social pol tica cienHfica Tratese de urn romance um filme um relato hist6rico uma reportagem um manual de comportamento sexual Mas essa duvida aparece parcial e remota mente Define nossa ligalao com 0 texto algo mais forte e inexplicavel irracional Por isso nos sentimos inseguros quase incapacitados de explicar porque nos prendemos a leitura Eocorre pr certo a situalao inversa apesar do reconhecimento geral do valor de um texto nossa resposta a ele e de total desagrado 0 que tambem nos causa constrangimentos Podemse encontrar as determinantes dessas preferencias e rejeicoes aparentemente descabidas tanto no universe social como no individual No primeiro caso a fonte primaria esta na nossa relacao com os modelos de comportamento com os mitos transmitidos a n6s pr uma ordem social cultural pol tica Para examinar a questao sob esse ponto de vista digamos exterior precisa rlamos verificar em que medida e pr que nos deixamos dominar ou influenciar pr sistemas de ideias que mascaram a realidade Ha a todo urn processo de formacao e condicionamento ideol6 53 Maria Helena Martins gico que nos plasmou comomembros de uma deter inada classe social de uma religiao de um partido politico de uma profissao Todavia nao basta rompreendermos isso No segundo caso e precise saber como esses fatores externos se relacionam rom 0 nosso inconsciente com 0 nosso universe erior afinal onde se forma e se ciesenvolve a nossa emocionalidade Para conheceIo tornase ecessario anal isar nossas fantasias nossos sonhos em vigilia ou durante 0 sono Ambas as tarefas requerem urn grau consideravel e conhecimento de reflexao de interpetaao da nossa hist6ria social e pessoal E isso s6 consegui s realizar no decorrer de toda uma trajetoria de vida Ha porem urn recurso mais imediato e vel para comear ainvestigaao 0 das rememo da infancia e adolescencia das lemQranas leituras realizadas e daspredileoes e aversoes ais Se por exemplo quando criarwa ou adolescente a preferencia foi por ficao de aventuras tipo arzan Zorro ou mais recentemente Batman perhomem a fixa8o afetiva possivelmente se com relaao as personagenstltulo Apesar de narrativas serem basicamente calcadas na encia de acontecimentos o tempo e 0 espao que se desenrolam contam menos que a identi ficaIao do leitor Gom 0 her6i Atraem mais a sua personalidade e seu modo de agir seja por se assernelharem a imagem que 0 leitor faz de si ou o que e Leitura pelo paradoxo isto a por revelarem a imagem idealizada as avessas caracterizandose a atraao pelos opostos Com 0 correr do tempo outras preferencias de leitura surgem mas permariece a ligaao inicial a ponto de a mera visao de urn filme ou exemplar dessas aventuras desencadear urn processo nostal gico nao raro levando a retomada dos textos Talvez entao ocorra urn distanciamento Porem e mais comum nos deixarmos envolver com a mesma disponibilidade da infancia ou adolescencia principal mente se nao ha testemunhas dessa ecalda E a releitura se desenvolve entre uma semiconsciencia de que talvez 0 texto nao valha nada bern como a imersao na magia que ele permanece oferecendo E a criana que ainda somos emergindo no adulto possibilitando tam bern conhecermonos mais E quanto as fotonovelas as telenovelas ou aos programas de radio e TV tipo mundocao agora voltando com fora total e plena aceitaao Sua caracterlstica comum dizse e 0 gosto popular Para Ligia Chiappini ha todo urn processo de identificaao do publico Essas classes sociais para as quais sao dirigidos vivem muito maisos problemas da violencia Nao apenas a violencia criminal mas tudo aquilo que sofrem no seu cotidiano a fome a doena 0 trabalho arduo toda a sorte de dificuldades De fato uma leitura mesmo superficial revela 55 56 Maria Helena Martins muitos quadros intima mente ligados as frustraoes e angustias de cada leitor vindo tambem ao encontro de suas fantasias mais comuns Diante das desgraas presenciadas atraves do video ouvidas pelo radio ou lidas nos jornais e revistas tende a desenvolverse no leitor um processo catartico se as suas agruras sao tantas ha piores Por outre lado ha sempre algo que alimenta a ilusao de se conseguir como na novela tirar 0 pe do barre num golpe de sorte um amor rico uma heranca uma alma generosa y I nvestigando as leituras de operarias numa fabrica de Sao Paulo Eclea Bosi constata a prefe rencia por revistas sentimentais sendo as narrativas tlpicas as fotonovelas hist6rias em quadrinhos infantis reportagens sobre a vida de artistas realizaCao do sonho de iJma crianca doente cr6nica de milagre carta ao consultorio sentimental Fundamentandose em Freud e Gramsci observa nao ser a busca de uma compensacao quaquer que move e comove a leitora de fotonovela mas a de urn correlato imagimirio de sua posiao espec fita Jlo sistema social Situacao em que se interpe ntram carencias economlcas basicas graves liinitaoes de cultura e via de regra a impossibilida qe de transcender pelos proprios esforos 0 horizonte que sua c1asse e seu status circuns crevem Vese nesses exemplos a importancia da leitura emocional nao so no ambito individual mas no o que e Leitura o leilar enUla consome a tex ta sem se perguntar como ele fai feita Maria HeleM Martins das rela90es socia is evidenciandose a necessidade de se dar a ela mais aten9ao 0 inconsciente indivi al e 0 universo social orientam seus passos Nao obstante geralmente a considerada de menor nifica9ao pelos estudiosos enquanto para it os leitores adquire validade principalmente momentos de lazer descomprometimento sso se deve muito ao fato de ser vista como ra de passatempo seja qual for ograu de rU9ao cultura status social do leitorRoland Sarthes ensasta e estudioso da literatura e outras ormas de expressao declara que para ler senao yoluptuosamente pelo menos gulosamenlt e eciso ler fora de toda a responsabilidade tica 0 leitor entao consome 0 texto sem se perguntar como ele foi feito Enquanto passatempo essa leitura revela a edisposi9ao do leitor de entregarse ao unverso resentado no texto desligandose das circuns tancias concretas e imediatas Da ser tambem rada como leitura de evasao 0 que conota certo menosprezo por ela quando na realidade ria levar a uma reflexao aprofundada a aparente gratuidade da leitura de uma novela TV uma revista de mod as uma fotonovela comedia cinematografica urn romance ticial ou pornogratico esta impl cito 0 modo e encontramos para extravasar em090es satisfazer curiosidades e alimentar nossas fantasias t imentos esses que no nosso cotidiano nao o que e Leitura podemosoJ nao queremos expressar A leitura transformase entao numa especie de valvula de escape Mas nao apenas isso direta ou indire tamente ajuda a elaborar at raves do relaxamento de nossas tensoes sentimentos diHceis de compreender e conviver Assim selido 0 conceito de escapismo aplicado ao modo de ler tornase ambguo como observa Robert Escarpit embora possua uma carga pejorativa 0 termo evasao pode significar fuga para a liberdade e conse quentemente uma abertura intencional de novos horizontes Essa a razao pela qual nao se pode simplesmente imputar a leitura emocional a caracterstica de alienante Pr certo se me torno dependente dea e a usa sistematica mente como refugio para afastarme de uma realidade insuportavel meu comportamento deixa de ser 0 de quem busca momentos de lazer e distensao ou distra9ao para ser 0 de alguem que se nega a viver seus proprios problemas e em consequencia nao luta para soluciomiIos Ao preferir 0 desligamento de si e a imersao no universe do que e lido deixatnse de estabelecer as rela90es necessarias para possibilitar a diferencia9ao e compreensao tanto do contexte pessoal e social quanto do ficcional ou mistificador da realidade Caracterizase entao a total submisao do leitor tornandose ele vulneravel e suscetfvel a manipula9ao Eos estragos causados sao con sideraveis S9 Maria Helena Martins Tudo 0 que lemos a excecao da natureza Osso se nao considerarmos a interferencia do homem nela e fruto de uma visao de mundo de urn sistema de ideias e tlknicas de producao caracte rizando um comprometimento do autor com o que produz e pr certo com seus posslvels leitores Ha portanto relacao entre texto e ideologias pois estas sao inerentes a intencao consciente ou inconsciente do autor a seu modo de ver 0 mundo tornandose tambem elementos de ligacao entre ele e os leitores de seu texto este nao nos interessa aqui pelo seu valor intrlnseco se art lstico ou nao discuHvel ou elogiavel bem ou mal realizado importa antes como algo sujeito a leituras Mas se htl uma intencionalidade na criacao ela sabidamente nem sempre corresponde ao modo como a leitura se realiza A resposta do leitor depende de inumeros fatores presentes no ate de ler Estando predisposto a entregarse passivamente ao texto tende a se deixar envolver pela ideologia ou ideologias nele expressas expllcitas ou nao dar a sua vulnerabilidade Sempre havera entretanto momentos de distanciamento quanto mais nao seja causados por fatores externos a leitura a interrupcao do ato de ler por exemplo E nessas ocasioes vindo a tona emergindo do universe lido 0 leitor pode estabelecer relacoes entre seu mundo e 0 do texto Ha entao oportunidade para elaborar as emocoes l o que e Leitura desencadeadas pel a leitura As vezes a retomada d texto significa tambem uma nova postura dlante dele outras 0 fato de termos interrompido a leitura nao nos impede de mergLilharmos nova mente nela como se narcotizados mesmo havendo entao emocoes diferenciadas Assim alem da hist6ria pessoal do leitor e do seu contexto fica de novo sublinhado 0 quanto os fatores circunstanciais da leitura influem no tipo de resposta dada ao texto Urn dramalhao uma noHcia de jOrnal ou um incidente cotidiano odem suscltar lagnmas ou gargalhadas urn c1assico do teatro da literatura ou do cinema talvez provo quem bocejos ou emocoes as mais profundas e duradouras Oepende muito do referencial da leitura da situacao em que nos encontramos das intencoes com que nos aproximamos dela do que el desperta de lembrancas desejos alegrias tnstezas Iprta pr fim frisar 0 quanto em geral repnmlmos e desconsideramos a leitura emocional muito em funcao de uma pretensa atitude inte lectual Todavia se interrogadas sobre os motivos que as levam a ler livros revistas ir ao cinema assistir televisao ou mesmo ouvir fofocas muita pessoas revelam ser para se distrair 1550 nao significa serem leitores desatentos ou incapazes de pensar urn texto Apenas sua tendencia mais cGmum e deixaremse envdlver emocionalmente pelo que hem Ocorre entretanto e cada vez 61 l Maria Helena Martins com maior frequencia as pessoas sentirem ecessidade de justificar suas preferencias de leitura racionalizar seus gostos A convivencia senao a conveniencia social cultural e pol iticaprincipalmente nos centros rbanos vainos transformando em joguetes de nossas racionalizacc5es levandonos a expressar emocc5es dissimuladas quando nao contrarias ao que real mente sentimos Entao urn filme uma reportagem urn livro uma cancao uma escultura uma pessoa que nos desgostam ou agradam profundamente sao lidos de urn jeito e a leitura revelada de modo distorcido E agimos assim porque temos motivos intelectuais para isso Estamos nesse caso penetrando ainda que pela porta dos fundos em outro nivel de leitura 0 racional Leitura racional Para muitos s6 agora estariamos no ambito do status letrado pr6prio da verdadeira capacidad produzir e apreciar a linguagem em especial a artistica Enfim leitura e coisa seria dizem os tel ectua is RelacionaIa com nossas experiencias sensoriais e emocionais diminui sua significacao revela ignorancia Imaginese 0 absurdo de ir ao teatro e d ivertirse com Otelo ou Ricardo III I o que e Leitura ou pir ainda representar Shakespeare em tom popularesco uma afronta ao bardo ingles e a Cultura Como admitir tambem que um filme de Igmar Bergman possa aborrecer que a musica erudlta contemporanea pareca apenas barulho aos nosss ouvidos que Vlisses de Joyce se revele urn tlJolaco sem sentido para n6s Essa a postura intelectualizada e dominanteNao PDr ser d maioria dos leitores Pelo contrario Ol concelda e e mantida por uma elite ados mtlectuals pensadores estetas criticos e mesmo artlstas que reservam a si 0 direito de ditar normas a noss leitur em como guardam para si 0 pnvlleglo da cnacao e fruicao das artes das ideias das coisas boas da vida ntesde prosseguir convem esclarecer Ha uma ne de caracteristicas diferenciadoras entre as dlversas tegorias de intelectuais Horacio Gonales estdaas em outro livro desta colecao Aqui generallzo e simplifico 0 sentido de inte letual levado icIusive a radicalizacao eJoratlva POlS eVldenclo 0 elitismo 0 intelectua IIsmo 0 objetivo disso esta em querer sublinhar 0 que ha de negativo na postura cornu mente enten dida como intelectual A leitur a esse n vel intelectualenfatiza pois 0 mtelectualrsmo doutrina que afirma a preeminen cia e anterioridade dos fenomenos intelectuais sobre os sentimentos e a Vontade Tende a ser un voca 0 leitor se debruca sobre 0 texto 63 64 Maria Helena Martins pretende veIo isolado do contexto e sem envol vimento pessoal orientandose por certas normas preestabelecidas Isto e ele endossa urn modo de ler preexistente condicionado por uma ideolo gia Tal postura dirige a leitura de modo a se perceber no objeto lido apenas 0 que interessa ao sistema de ideias ao qual 0 leitor se liga Muitas vezes se usa entao 0 texto como pretexto para avaliar e ate provar asseroes alheias a ele frus trando 0 conhecimento daquilo que 0 individualiza Ao se aplicar urn esquema de leitura ao texto adotando urn comportamento esteriotipado em relaao a ele poese tambem de lado uma maneira de ler de dar sentido nossa autentica em funao de uma leitura supostamente correta porque sob 0 beneplacito de intelectuais Assim se estes autorizam a reverencia 0 riso 0 entuiasmo ou o menosprezo em face de urn texto revogamse as disposioes em contrario Dutro aspecto muito difundido dessa concepao intelectual ligase ao fato de em princlpio limitar a noao de leitura ao texto escrito pressupondo educaao formal e certo grau de cultura ou mesmo erudiao do leitor Como se viu de inlcio discuto aqui a visao da leitura confinada a escrita e ao texto literario ou as manifestaoes artlsticas em geral propondo veIa como urn processo de compreensao abran gente no qual 0 leitor participa com todas as suas capacidades a fim de apreender as mais diversas o que e Leitura formas de expressao humana e da natureza A Aim na perspectiva proposta aqui a compe tenla para criar ou ler se concretiza tanto por melo de text os escritos de carater ficCional ou nao quanto de expressao oral musica artes plasicas artes dramaticas ou de situaoes da realldade objetiva cotidiana trabalho lazer relaoes afetivas socia is Seja 0 leitor inculto ou erudito seja qual for a origem do objeto de leitura tenha ele carater utilitario cientlfico artlstico configurese como produto da cultura folcl6 rica popular de massa ou das elites Reforase entao 0 que ja foi dito a construcao da capacidade de produzir e compreender as mais diversas linguagens esta diretamente ligada a condioes propcias para ler para dar sentido a expressoes formais e simb6licas representacionais ou nao quer sejam configuradas pela palavra quer pelo gesto pelo som pela imagem E essa capaci dade relacionase em princfpio com a aptidao para ler a pr6pria realidade individual e social Esas considera90es sao basicas para se perceber a dlferena entre a leitura a nlvel intelectual e a vel racional como as coloco aqui A leitura raclonal e certamente intelectual enquanto elaorada por nosso intelecto mas se a enuncio assl e para tornar mais evidentes os aspectos POSltlVOS contra os negativos do que em regra se considera leitura intelectual Importa pois na leitura racional salientar seu Maria Helena Martins earn er eminentemimte reflexive e dinamico mesmo tempo que 0 leitor sai de si em busea realidade do texto lido sua percepcao implica volta a sua experiencia pessoal e uma visao da pr1a hist6ria do texto estabelecendose entao dialogo entre este e 0 leitor com 0 contexte qual a leitura se realiza Isso significa que 0 ocesso de leitura racional e permanentemente lizado e referenciado Em sntese a leitura racional acrescenta a sorial e a emocional 0 fato de estabelecer uma te entre 0 leitor e 0 conhecimento a reflexao reordenacao do mundo objetivo possibilitando no ate de ler dar sentido ao texto e questionar o a pr6pria individualidade como 0 universe relac5es socia is E ela nao e importante por racional mas por aquilo que 0 seu proceso ite alargando os horizontes de expectatlva leitor e ampliando as possibilidades de leitura texto e da pr6pria real idade social E extrema mente elucidativo um epis6dio rela o por Marilena Chaui em trabalho no qual ina a relacao entre a obra e 0 destinatario painel de considerac5es acerca de Conceitos Hist6ria e Obra Esse relato fica ainda mais arecedor para n6s se pensarmos os termos e visao usados pela autora como ler e leitura respectivamente Eu t enho uma estatueta de barre nordestina resentando uma fabrica de farinha de mandioca o que e Leitura Uma faxineira minha nordestina um dia limpando a estatuet8 me contou que havia trabalhado numa fabrica daquelas Nao s6 descreveu cada uma das etapas do trabalho a funcao de cada instrumenta mas tambem 0 pr6prio ate de trabalhar quais os movimentos a fazer em cada etapa a d uracao de cada urn deles 0 cansaco 0 calor a necessidade de mudar de posiao etc A estatueta era para ela reproducao de algo concreto e mem6ria Ela contemplava a estatueta mas sua contemplacao e a minha nada tinham em comum Eu sabia que era uma cena de t rabalho mas nao sabia 0 que era esse trabalho As posic5es das figuras e dos objetos eram aleat6rias para mim e necessarias para a faxineira Meu primeiro impulso foi pensar nunca tinha visto esta estatueta isto e ver a estatuela para vaIa com os olhos da faxineira fabricante de farinha A consequencia foi distinguir uma visao verdadeira e outra falsa autantica e inautentica profunda e superficial Levou um certo tempo para que eu percebesse 0 objetivismo das minhas reacoes Eu estava supondo que existia uma estatueta que era a eseultura posta diante de dois pares de olhos diferentes havia uma obra e dois destinatcirios urn dos quais via a obra e o outro nada via Estava pressuposta a unidadel identidade da obra atraves da juncao entre a estatueta e oolhar da faxineira pondo fora do campo da obra 0 meu pr6prio olhar Foi s6 quando me dei conta do desejo da unidadeidentidade que 67 68 Maria Helena Martins depositei na estatueta que percebi 0 que e destruir 0 trabalho da obra isto e uma experiencia diferente no campo de experiencia de duas pessoas diferentes A obra e a estatueta 0 trabalho do escultor 0 olhar da faxineira 0 meu e quantos outros que diante dela a incorporarem como experiencia visual ou de mem6ria A partir do instante que fica depositada a verdade em uma das visoes e a falsidade na outra voce tern duas atitu des possveis diante de uma obra ou voce quer se tornar 0 portador 0 portavoz da verdade que foi expressada ou voce se considera incapaz de ver 0 que urn outro privilegiado esta vendo Esse maniquesmo e perigoso sobretudo em setratando de cultura popular Perdendo a obra como trabalho podemos perder 0 fa to de que a estatueta produz essas duas visoes que essas duas visoes so sejam possveis a partir dessa estatueta 0 que a faz ser uma obra e 0 fato de que ela seja memoria para uma pessoa e representacao de uma forma de trabalho ignorada para outra E isso que ela e E ela nao e mais verdadeira ou menos verdadeira nurn caso e noutro ela e as duas coisas e essas duas visoes estao incorporadas agora na estatueta fazem parte da historia da estatueta Embora a autora esteja refletirido acerca de obra e de como e discuHvel a questao de ser autentica ou inautentica de haver uma leitura correta e outra errada para n6s aqui 0 episodio relatado e sua reflexao tornamse ainda mais o que e Leitura expressivos por exemplificarem 0 quanto signifi cam para a leitura a historia a memoria do leitor e as circunstancias do ate de ler Por urn lado 0 relato deita por terra a ilusao de 56 os intelectuais terem condicoes de assimilar certas formas de ex p ressao especialmente a estetica Nao se pode ignorar que a conotacao mais persistente da palavra intelectual confere aquele que designa uma certa aura intocavel inquestionavel Isso faz com que ainda m uit sejam vistos e se vejam como os escolhidos cujos sentidos e emocoes sao educados pela postura objet iva crtica Mas 0 que pretendem ser obje tividade e se revela como objetivismo para Marilena Chaui em vez de levalos a apretiacao e compreensao abrarigente do mundo nao raro deslocaos para a guarita de urn saber abstrato Por outro lado com esse relato fica tambem questionada a ilusao populista de que s6 povo teria 0 poder da verdade cabendo a ele fazer a leitura correta Tratando da leitura do texto escrito Jorge Luis Borges 0 grande escritor argentino assinala a etica supersticiosa do leitor que pretende uma postura intelectual mas realiza uma leitura de atencoes parciais Nela nao importam a eficacia ou eficiencia de uma pagina porem as habilidades 69 o Maria Helena Martins aparentes de escritor recursos de linguagem sonoridade sintaxe pontuarao enfim tecniqui ces segundo Borges que obscurecern as emoroes e convicroes do leitor em funrao de um suposto modo correto ou adequado de escrever e ler urn romance um poema Na verdade frequentemente confundese a ieitura racional com a investigarao pura e simples do arcabouro formal de um texto com 0 exame de sua estrutura interna enquanto sistema de relaoes entre as partes que 0 compoem sem efetivamente estudaIo como urn todo como expressao de urna visao de mundo Realizase assim 0 que 0 estruturalismo ortodoxo apregoou e ainda proclama 0 estudo do texto em si Esse tipo de leitura elimina a dinamica da relaao leitortextocontexto limitando consideravelmente uma compreensao maior do objeto lido o chamado distanciamento crtico caracterls tieo da leitura a nlvel racional sem duvida induz a disposiao sensorial e 0 envolvimento emocional a cederem esparo a prontidao para 0 questiona mento No entanto estudando a relaao do leitor com 0 texto se observa atendencia de acentuar o que e verificavel ocasionalmente nesse texto a partir do vivido no decorrer da leitura sensorial eou emocional Estas percebemno como objeto acontecimento emoao enquanto a leitura racio nal permite conheceIo familiarmente sem apenas sentiIo Podese entao estabelecer uma visao mais J o que e Leitura objetiva do processo de elaboraao de materiais formas linguagem tematica simbologia Na leitura emocional 0 leitor se deixa envolver pelos sentimentos que 0 texto Ihe desperta Sua atitude e opiniatica tende ao irracional Contam a I os criterios do gosto gosta ou nao do que Ie por motives muito pessoais ou por caracterlsticas textuais que nem sempre consegue definir Muito menDs se coloca a questao de como 0 objeto lido se constr6i Ja na hitura racional 0 leitor visa mais 0 texto tem em mira a indagaao quer mais compreendeIo dialogar com ele 1550 nos leva a considerar a leitura racional como sendo especial mente exigente pois a disponibili dade emocional 0 processo de identificacao agora se transformam em desprendimento do leitor em vontade de apreender um processo de criacao Como diz Barthes advem da necessidade de colocarse dentro da produao nao dentro do produto E nesse sentido Barthes ve a leitura como a parente pobre da criaao sendo seu objetivo 0 de reencontrar como algo foi criado Mas de que modo se realiza essa leitura Parece inegavel ela supr um esforo especial nao pode mos simplesmente nos apropriar do texto ou aceitaIo passivamente Temos antes que conquis taIo conhecendo e respeitando suas caractersticas pr6prias 1550 implica cercaIo de uma atenao tal que nos leve a perceber peculiaridades c 10 que o diferencia dos demais tornaoalgo u fro nao I Maria Helena Martins importa se apresente maior oumenor grau de qualidade Alias quando se fala em qualidade em criterios de valor estamos necessariamente diante do confronto entre um e outros textos entre leituras Cotejandoos evidenciase aquilo que individualiza cada um E quanto maiores as possibilidades de confrontar melhores as condiCfoes para apreender isso Quem leu um unico romance por exemplo pode ter opiniao definida senao definitiva sobre literatura de ficCfao Seu repert6rio desse tipo de leitura talvez por ser bem Iimitado permite maior clareza de criterios Para quem leu inumeros as coisas se tornam mals complexas os parametros diversificamse Nao vai a nenhum juzo de valor para um ou outro tipo de leitura leitor ou texto Quero com esse exemplo apenas observar que ao se ampliarem as fronteiras do conhecimento as eXlgencias necessidades e interesses tambem aumentam que uma vez encetada a trajet6ria de leitor a n vel racional as possibilidades de leitura de qualquer texto antes de serem cada vez menores pelo contrario multiplicamse Principalmente porque nosso dialogo com 0 objeto lido se nutre de inumeras experiencias de leitura anteriores enquanto lanCfa desafios e promessas para outras tantas o que e Leitura Cabe aqui uma observaCfao talvez dispensavel caso nao viesse dar forCfa ao que tentei sublinhar no decorrer desta reflexao Embora enfatizasse a leitura das mais diferentes linguagens a da escrita acabou se impondo os exemplos literarios evidenciam isso Primeiro porque e atraves del a que 0 pr6prio ate de ler tem side pensado segundo porque na literatura se encontram elementos aos quais podemos voltar inumeras vezes testando nossa mem6ria incitando nosso imaginario dei xando sentidos emoCfoes e pensamentos serem permeados pela variedade de sentidos que pode possuir uma mica palavra Alem disso quer se queira ou nao todos estamos historicamente ligados a nOCfaO de leitura como referindose a letra talvez 0 sinal mais desafiador e exigente em qualquer nvel especial mente 0 racional E creio quanto mais lermos de modo abrangente mais estaremos tambem favorecendo nossa capacidade de leitura do texto escrito Sem duvida 0 intercambio de experiencias de leituras desmistifica a escrita 0 livro levando nos a compreendeIos e apreciaIos de modo mais natural e certamente estaremos assim fortalecendo nossas condiCfoes de leitores efetivos das inumera veis mensagens douniverso em que vivemos Uma inifinidade de aspectos num texto pode 73 4 Maria Helena Martins desencadeare orientar a leitura racional Um dos mais comuns e a narrativa sustentada praticamente por qualquer tipo de linguagem falada escrita gestual gratica plastica musical cinematogratica Todo texto nos conta alguma coisa seja por meio de uma narrativa nitidamente marcada pel a sequencia cronologica dos acontecimentos como no romance tradicional seja de modo obscuro ou quase imperceptvel como num poema I rico ou numa composicao musical E a busca do processo narrativo do modo como a hist6ria e contada po de ser excelente deixa para a leitura racional Partindo do pressuposto de que nada e gratuito num texto tudo tem sentido e fruto de uma intencao consciente ou inconsciente importa e muito na leitura racional captarmos como se constroi esse sentido ou sentidos Para tanto um dos aspectos mais significativos esta no reco nhedmento dos indlcios textuais Essas pequenas unidades de sentido sao verdadeiras pistas para o leitor compreender 0 objeto lido em seu todo mesmo que muitas vezes passem quase desper cebidas ou que 0 autor as disponha de modo mais ou menos expllcito estabelecendose assim uma especie de jogo alias algo ainda mais estimulante para a leitura Nos romances ditos psicologicos com fre quencia a criacao de indcios esta presente na propria descricao das personagens a caracterstica o que e Leitura Hsica indica traos de personalidade As vezes esse recurso e usado de maneira caricatural mar cando 0 perfil de determinados tipos Tem side extrema mente explorado nas narrativas populares nos folhetins nas fotonovelas nas telenovelas no cinema no teatro Os modelos classicos dessa tipologia remontam a dupla QuixotePanca criaao de Cervantes Dom Quixote tem sua alienacao e vulnerabilidadesalientadas pelo porte fragil longi neo doentio envelhecido contras tando com 0 ridculo de uma paramentaao e atitudes de pseudocavaleiro alias Cavaleiro da Triste Figura Sancho Pana ja no proprio nome carrega algo de bonachao e primitivo como sua aparencia embora de muy poca sal en la mollera seu esprito pragmatico transformao em esclideiro perfeito para 0 sonhador Quixote o romance natural ista postulando 0 princlpio de que ohomem e fruto de seu meio apresenta empre indcios ambientais para corroborar tracos do carater e ate explicar as aoes das personagens o nosso Alu isio de Azevedo e um exemplo de autor que utiliza esses recursos para nao falar de Zola ou do grande Eca de Queiroz Quanto ao texto policial ou ao fantastico sao sem duvida prodigos na apresentacao de ind cios Alias a pedra de toque para a soluco do s misterio s ou para a criacao de uma at mosfera sobrenatural Se pensarmos nos filmes de H itch cock pr exemplo verificamos a habilidade com 6 Maria Helena Martins que 0 cineasta subverte a expectativa do leitor criando falsos indcios ou aparentemente menos prezando pistas definitivas para desvendar a trama Um olhar mais sombrio ou uma personagem de 6culos escuros em hora e lugar inesperados podem parece uma deixa do perseguidor ou assassino quando na verdade tratase de urn inocente urn passaro indefeso pode resultar no matador Aprendemos a ler esses indcios a medida que nossas experiencias de leitura se sucedem come camos assim a perceber com sao constru dos e dispostos no texto qual a mtenao do autor ao criaIos No entanto mesmo sabendo como e porque sao armados os indcios nao quer dizer que 0 texto se tome transparente para n6s No caso de Hitchcock como na maioria dos auto res altamente criativos mesmo 0 leitor percebendo um pass vel esquema de construao de ind cios a sempre a apresentaao de um elemento novo desafiandoo Assim constituise 0 que se chama de opacidade da ambigiiidade do texto aquela qualidade sua de negacear e se entregar ao mesmo tempo de nos levar a querer compreedeIo mais e mais e de nos possibilitar inumeras lelturas parecendo ate i nesgotavel o que e Leitura A interacao dos niveis de leitura Vale retomar 0 que disse ao iniciar a questao dos nveis de leitura eles sao interrelacionados senao simultaneos mesmo sen do urn ou outro privilegiado Deve po is ficar claro nao haver propriamente uma hierarquia existe digamos uma tendencia de a leitura sensorial anteceder a emocional e a esta se suceder a racional 0 que se relaciona com 0 processo de amadurecimento do homem Porem como quis mostrar aqui sao a hist6ria a experiencia e as circunstancias de vida de cada leitor no ate de ler bem como as respostas e questoes apnsentadas pelo objeto lido no decorrer do processo que podem eviden ciar urn certo nvel de leitura Nao se deve tambem supr a existencia isolada de cada urn desses nveis Talvez haja como disse a prevalencia de um ou outro Mas creio mesmo ser muito diflcil realizarmos uma leitura apenas sensorial emocional ou racional pelo simples fato de ser proprio da condiao humana interrelacionar sensaao emoao e razao tanto na tentativa de se expressar como na de buscar sentido compreender a si pr6prio e 0 mundo A lampada branca a querosene no centro da mesa dava claridade suficiente para a leitura e 0 croche Mesmoassim de vez em quando urn deles se aproximava do drculo vivo da luz que a Maria Helena Martins pantalha concentrava scbre a tabua para ler uma ietrinha apagada ou acertar um ponto mais delicado 0 estancieiro ocupava uma das cabeceiras Dona Alzira sentava perto na cadeira de embalo a outre pnta as criancas brincavam Lelita J ntando as palmas das maos seus dedos eram delgados compridos flexlveis punhase defronte a lampada e projetava na parede silhuetas de cabecinhas de cordeiro de coelho de gato se lambendo A predilecao do irmaozinho era ada pelas cabecinhas de coelho Mas ela sabia fazer tambem outras figurinhas de queroquero emper igado como um militar de joaogrande dormindo a beira da lagoa Entao sim Carlos esquecia as estampas das revistas velhas que folheava e admirava ausente fantasiando coisas Coisas confusas distantes envoltas num nevoeiro tenue que nao se esgacava nunca para dar franca passagem ao sol 0 que sentia era estranho suave comovente Enterneciao sobretudo a postura im6vel do joaogrande como de morto em pe A sua tristeza vinha justamente daquilo de saber que 0 pernalta estava vivo Vivo e tao parado tao sumido em si mesmo Era um al ivio quando Lelita movia de novo 0 dedo mindinho e lentamente a asa caida se enfunava para 0 voo Essa e uma cenadomestica da campanha rio grandense no inicio do sEkulo Uma recriacao ficcional de Cyro Martins mas que encontra eco o que e Leitura nas vivencias de muitos de n6s Apesar das limita coes ambientais de recursos materia is precarios e de uma experiencia de vida ainda em suas prirneiras descobertas a circunstancia favoreceu a realizacao da leitura efetivada al simultaneamente a nivel sensorial emoCional e racional os quais se interpenetram e se complementam Se a enfase no decorrer desta reflexao acerca dos nlveis de leitura foi mais hierarquizante deveuse ao prop6sitode dar uma fisionomia mais organi zada a questao Alem do que se pensarmos em exigencias feitas ao leitor no ate de ler parece mesmo haver uma gradacao da leitura sensorial a racional Por outro lado sabese mesmo 0 leitor se propondo uma leitura a urn certo nlvel seja ele qual for e a dinamica de sua relacao com o texto que vai determinar 0 nlvel predominante Assim como ha tantas leituras quantos sao os leitores ha tambem uma nova leitura a cad a aproximacao do leitor com um mesmo texto ainda quando minimas as suas variacoes Nesa ocasioes talvez ocorram mudancas de nlvel Um poema ou uma cancao que hoje nao nos dizem nada nao fazem sentido amanha podem emocio nar agradar ao ouvido pela musicalidade e pelo ritmo tempos depois suscitar reflexoes apenas ap6s varias leituras 79 Maria Helena Martins Se hssemos apenas e serlpre em um unico nvel tenderamos a radicalizar esse modo e ler proo cando a distorcao do texto lido pela Imobhaao Sendo a leitura um processo portanto dmamlca isso nao ocorre Seria como fixar 0 olhar num determinado objeto e s6 e sempre enxergaIode um unico angulo n6s e ele estaticos em pouco tempo nao mais conseguiramos veIo Isso porque a capacidade de nosso cerebro de registrar sensa cCies emocoes e pensamentos decai rapidamente quado 0 que queremos apreender e infinitamene repetido 0 efeito resulta invers do que se podena imaginar em vez delermos als emelhor 0 texto a leitura se dilui a ponto de mexlstlr Na verdade a medida que desehvolvemos nossas capacidades ensoriais emocionais e racionais tambem se desenvolvem nossas leituras nesses nlveis ainda que repito um ou outro Jrevleca Mas a interacao persiste Quanto mals nao eJ por certas caractersticas de cada um dos nlvelS as quais em ultima instancia sao interdependentes Vejamos que caractersticas sao essas A leitura sensorial tem um tempo de duracao e abrange um espaco mais limitado em face do meio utilizado para realizaIa os senldos Seu alcance e mais circunscrito pelo aU1 e agor tende ao imediato A leitura emoclonal e mals mediatizada pelas experiencias previas pela vivn cia anterior do leitor tem um carater retrospectlo impllcito se inclina pois a volta ao passado Ja a o que e Leitura leitura racional teflde a ser prospectiva a medida que a reflexao determina um passe a frente no raciocnio isto e transforma 0 conhecimento previoem um novo conhecimento ou em novas questoes implica mais concretamente possibilida des de deserwolver 0 discernimento acerca do texto lido Essas leituras se radicalizadas realizadas sempre de modo isolado umas das outras apresentariam aspectos alta mente questionaveis enfatizando 0 imediatismo sensoriaI 0 conserva dorismo emocional e 0 progressismo racional ismos esses que pela pr6pria natureza depre ciariam a leitura Felizmente e pouco provavel se efetivarem radicalmente em funcao da dinamica pr6pria do procedimento existencial do homem Mesmo querendo forcar sua naturezacom posturas extremistas 0 homem Ie como em geral vive num processo permanente de interacao entre sensacoes emocoes e pensamentos 81 I A LEITURA AO JEITO DE CADA LEITOR E 0 pulo do gato Como disse esse nao se ensina mesmo Mortimer Adler e C Van Doren apesar de terem escrito urn tratado sobre a arte de ler advertem que as regras para adormecer tendo sao mais faceis de seguir do que as regras para ficar acordado enquanto se Ie conseguir ficar acordado ou nao depende em grande parte da meta visada na leitura A esta altura espero tenha deixado claro que para compreendeIa e para a leitura se efetivar deve preencher uma lacuna em nossa vida precisa vir ao encontro de uma necessidade de urn desejo de expansao sensorial emocional ou racional de uma vontade de conhecer mais Esses sao seus prerequisitos A eles se acrescentam os estlmulos e os percal90s do mundo exterior suas exigencias o que e Leitula Para compreendea e para a leitura se efetivar deve preencher uma lacuna em nossa vida 83 Maria Helena Martins e recompensas E se pensarmos especialmente na leitura a nvel racional ha que considerar 0 esforro para realizaIa 0 homem e um ser pensante pr natureza mas sua capacidade de raciocfnio precisa de tanto treinamento quanto necessita seu fsico para por exemplo tornarse um atleta Nada enfim e gratuito sequer 0 prazer Este alias nasce d um anseio de realizacao plena portanto pressupo urna meta e um empenho para atingiIa o tremamento para a leitura efetiva implica aprendermos e desenvolvermos determinadas tecnicas Dos manuais didaticos aos estudos apro fu ndados sobre 0 ate de ler todos oferecem orientacoes ora menos ora mais objetivas e eficientes Todavia cada leitor tem que descobrir criar uma tecnica pr6pria para aprimorar se desempenho Auxiliamno entre osfatores ime d atos e externos desde 0 ambiente e 0 tempo dlsponlvel ate 0 material de apoio lapis papel em branco bombons almofadas escrivaninha ou poltrona a Itofa lantes fones a entra toda a parafernalia de objetos que se fazem necessarios ou que fazem parte do miseenscene de cada leitor Se isso tudo pode influenciar criando uma atmosfera propcia sabidamente e com raras excecoes e dispensavei Fundamental mesmo e a continuidade da leitura 0 interesse em realizaIa Quantos leitores ja deixaram passar a sua parada porque no onibus superlotado barulhento e o que e Leitura sacolejante estavam total mente imersos no seu radinho de pilha na fotonovela no romance num artigo cientlfico ou numa fotografia na rememoracao de um filme de uma peca teatral de uma conversa Ha quem 56 consiga ler um livro de ensaios p r exemplo sentado quieto em seu canto tomando notas assinalando passagens do texto olltros 0 fazem deitados ou mesmo de pe em meio a maior balpurdia Ha os que se sentem no cinema apenas quando acomodados numa das dez primei ras fileiras da sala de exiblcao outros vao para a ultima Muitos curtem 0 somde modo a tudo ao redor estremecer com 0 volume do altofalante enquanto outros s6 conseguem apreciar musica em surd ina Enfim cad a urn precisa buscar 0 seu jeito de ler e aprimoraIo para a leitura se tornar cada vez mais gratificante A releitura traz muitos bEmefcios oferece subsldios consideraveis principalmente a nvel racional Pode apontar novas direcoes de modo a esclarecer duvidas evidenciar aspectos antes despercebidos ou subestimados apurar a conscien cia crticaacerca do texto propiciar novos elementos de comparacao c Uma as razoes pelas quais as vezes nos sentimos desanimados diante de um texto considerado diflcil esta no fato de supormos ser em fu ncao de deficiencia nossa de incapacidade para compre endeIo Isso em geral e um equvoco Por que 85 Maria Helena Martins desistirmos de uma leitura racional se temos interesse e necessidade de realizaIa Tampouco adianta ficar relendo mecanicamente pelo contrario e pior Para diminuir a tensao amenizar as dificuldades importa muito nao considerar 0 texto como uma ameaca ou algo inatingvel elhor relaxar nao se preocupar em decifniIo em descobrir 0 sentido mas cercaIo ao modo da gente pelo cingulo que mais atraia mesmo pare cendo al90 secundario do texto Tratandose de urn livro retomaIo folheando ao acaso e lendo uma ou outra passagem sem nos sentirmos obrigados a entendeIa mas procurando apreciaIa estabelecendo relacoes com outras passagens lidas com leituras ja realizadas quais quer que tenham side os meios de expressao dos textos ou os nveis privilegiados As vezes 0 som das palavras de urn poema vernnos indicar 0 caminho para co meca r a pensaIo a descricao de uma cena de uma paisagem de urn aconteci mento talvez rem eta a uma experiencia vivida e facilite a compreensao do texto urn assunto desconhecido pode num determinado momento trazer referencias a al90 ja lido e pr ai come camos a entendeIo Enfim e fundamental nao ter preconceito nem receio de carrear para a leitura quaisquer vivencias anteriores procurar questionar 0 texto quem sabe ele apresente falhas seja confuso inconse qijente e nao ha por que simplesmene aceitaIo J o que e Leitura Daf a importancia de discutir a seu respeito de buscar esclarecimentos com outros leitores ou em outros text os A leitura mais cedo ou mais tarde sempre acontece desde que se queira realmente ler Acima de tudo precisamos ter presente que se nao conseguimos de vez dar 0 pulo do gato bern que se continue andando ainda urn pouco pois nao e pecado caminhar 87 INDICAOES PARA LEITURA Bern indicat6es para leitura foram dadas desde o inkio deste nosso contato Seria mesmodesne cessario dizer que Ie sobre leitura nao faz de ninguem urn leitor Os textos que estao a ao nosso redr expressos em mil linguagens a inteira dispositao podem ensinar a ler e compreender a leitura as vezes muito mais do que algo escrito especificamente sobre 0 assunto Mas como tambem se viu e atraves da escrita que a leitura tern side pensada e se torna mais facil aprofundar uma reflexao a seu respeito Prova disto esta nos textos que serviram de apoio para o que discorri Alias eles foram selecionados ja por serem agradaveis e esclarecedores revelando aspectos curiosos da iniciatao a leitura Para cometar melhor ir direto a poesia a fictao as mem6rias Mario Quintana la na epgrafe o que e Leitura Do Caderno H ja diz quase tudo Como ere Drummond e varios outros poetas sao nossos grandes mestres de leitura Entre os ficcionistas ha dezenas excelentes s6 na literatura brasileira Citei dois gauchos para puxar a brasapara a minha sardinha Erico Verssimo em Solo de Clarineta num tom e extensao mais de romance oferece alem do prazer do texto solto indcios para se ler melhor e compreender muito de sua obra Cyro Martins numa linguagem simples relata nas 70 paginas de Um Menino Vai Para a CoMgio a aventura de urn garoto do campo comeando a ler 0 munoo enfrentando os desafios e descobriridose na cidade grande Do Tarzan desnecessario falar mais Ainda encanta em livros quadrinhos TV e cinema leitores de todas as idades Ja Sartre embora muito conhecido de nome e pouco lido Em As Palavras temse umaexcelente introdutao a sua obra Nesse relato delicioso facil e de leitura rapida 0 ate de ler e 0 processo de formatao do autor estao imbricados rEvelando como se fez esse quee talez 0 maior fil6sofo de nosso seculo De Jorge Luis Borges mais que atraves dos ensaios lendose Hist6ria Universal da Infamcia contos ficase sabendo e reconhecendo como urn grande leitor s transforma niJm escritor genial Depois e saborear seus inumeros outros livros Quanto aos ensaios citados todos trazem 90 MlJria Helet1Il MIlrtins elementos substanciais para a Questao da leitura Comece por Paulo Freire Na simplicidade de sa linguagem como nenhum outro ainda indica as meios para aprender a ler e conquistar as caminhos para a liberdade Seu A Imporrancia do Ato de Ler fundamental fininho com tres artigos um dos Quais foi a pedra de toque para a elaboraao deste meu texto Pedagogia do Oprimi ao umcliCo com umerosas edi5es e tradues Af 0 grande educador brasileiro faz urn retrato da quesrno educacional e do problema da alfabetiza cao em parses subdesenvolvidos Examina aspectos Msicos dos fracassos e propOe alternativas tendo em vista uma educatyao efetiva e liberadora Discutindo a leitura na escola e na universidade brasileiras Osman Lins em Do Ideal e da GI6ria tornase urn refrigerio para as estudantes e profes sores insatisfeitos com 0 que se considera leitura e literatura na sala de aula Numa serie de artigos em tom jomalistico faz a crtica e mostra como se pode enfrentar 0 desanimo de uma leitura imposta Em A Arte de Ler de Mortimer Adler eVan Doren se encontra talvez 0 ttXto mais robusto e detalhado publicado em portugues sobre leitura Li eslao os niveis de leitura apresentados de modo diferente do visto aqui mas sem duvida muito esclarecedor A obra apesar de extensa em linguagem acessfvel e estii bem organizada em itens que podem ser facilmente consultados Os autores abordam desde 0 comportamento do leitor UUe i Leitura elementar ao leitor exigente dando indicacoes valiosas e pr ticas de como recilizar a leitura de escritos desde literatura matematica a socia is filosofia E ainda finalizam com serie de exerdcios e testes de leitura Robert Escarpit e Barker em A Fome de Ler a questao da leitura e do livro em relacao de comunicacao de massa problemas de distribuicao e direito autora 0 capitulo habitos de leitura e as conclusOes especial mente Tambern e leitura e facil old Barthes urn dos estudiosos da linguagern badalados dos ultirnos vinte anos atrai peJa beleza de seu texto e colocacoes Nao emuito tikil de ler Mas ha rios livros dele em portugues que valem a pena uma olhada Recomendo para comelClr e Verdade ensaios fda Perspectival der e gostar vai ficar fregues desses hc1 outros estudos em portugues a questao da leitura que podem auxiliar 0 Itli da investiao Entre os autores esta Lionel Bellenger com Os Meta Leitura Zahar que examina 0 compona do leitor os rnetodos de alfabetizacao e se aprende a ser urn leitor ativo Gaston U em A Aprendizagem da Leitura Editorial lisboal detemse na questao dos meto Ezra Pound em 0 ABC da Literatura Cultrix 91 Maroa Helena Martins alias da leitura no original como Sartre faz set depoimento sobre 0 que seja 0 ate de ler sua relao com a literatura dando exemplos de urn e outra Ent re os textos mais recentes de autores brasi leiros encontrase 0 Ato de Ler Cortez de Ezequiel da Silva Urn estudo que sistematiza aspectos basicos da leitura relacionandoos com seus fundamentos psicol6gicos e filos6ficos oferecendo subsdios especial mente para professo res e bibliotecarios E em Leitura em Crise na Escola Mercado Aberto organizado pr Regina Zilberman ha artigos e pesquisas de varios professores do 1 2 e 3C graus Relatamse experiencias discutindo as deficiencias e apon tando sa das para 0 impasse da leitura e do ensino da literatura em nossas escolas Para terminar varios livros da Colecao Primeiros Passos relacionamse com questoes levantadas aqui Dentre eles Ideologia de Marilena Chaui Literatura de Marisa Lajolo Poesia de Fernando Paixao Arte de Jorge Coli Intelectuais de Hora cio Gonzales Cinema de JeanClaude Bernardet Teatro de Fernando Peixoto Bibliografia ADLE R Mortimer J VAN DOREN Charles A arte de ler Rio de Janeiro Agir 1974 o que e Leitura AGUIARFIvio Comentrios aos originais deste trabalho BARTHES Roland Le Grain de lavoix entretiens 19621 9801 Paris Editions du Seuil 1981 BORGES Jorge Luis Del culta de los libros In Otras inquisiciones Buenos Aires Emece Editores 1960 BOSI Ecl4a Cultura de massa e cultura popular leituras de opera rias Petr6poiis Vozes 1977 BURROUGHS Edgar Rice Tarzan 0 filho das selvas Sao Paulo Companhia Ed Nacional 1968 CHAUI Marilena Conceitos de hist6ria e obra 19 SeminrkI I nterno sobre 0 Nacional e 0 Popular na Cultura Brasileira FUNARTE Rio de Janeiro 1980 in4ditol CHIAPPINI Ligia A TV se volta para 0 gosto popular Entre vista concedida ao jornal 0 Estado de Sao Paulo Sao Paulo 23 de maio de 1982 ESCARPIT Robert BARKER Ronald A fome de ler Rio de Janeiro Fundacao Getulio VargasMEC 1975 FREI RE Paulo A importincia do ato de ler em tns artigos que se completaml Sao Paulo Autores AssociadosCortez 1982 Pedagogia do oprimido 6 ed Rio de Janeiro Paz e Terra 1978 LI NS Osman Do ideal e da gl6ria problemas inculturais brasileiros Sao Paulo Summus 1977 MARTINS CyrQ Um menino vai para 0 colligio Porto Alege Movimento 1977 REVISTA Isto t A TV no outro mundo Sao Paulo 7 de Abril de 1982 SARTRE JeanPaul As palavras Sao Paulo Difuscio Europ4ia do Livro 1964 SMITH Frank Underitsnding reading a psycholinguistic analysis of reading and learning to read 2 ed Nova Yorque Holt Rine hart and Winston 1978 VERrSSIMO Erico Solo de Clarinets Porto Alegre Globo 1973 vol 1 93 Biografia Maria Helena Martins e de Porto Alegre onde foi pro fessora do 19 e 29 graus por varios anos Desde 1973 leciona principalmente Teoria Literaria e Literatura Infanto Juvenil no Curso de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul onde tambem fez mestrado cuja dissertayao foi publicacta sob 0 titulo Agonia do Herosmo contexto e trajetoria de Antonio Chimango porto Alegre URGSLPM 1980 Atualmente faz doutoramento na Universidade de Sao Paulo em Teoria Literaria Tern realizado trabalhos para congressos e seminmos e publicado artigos em jomais e revistas a respeito de temas relativos a disciplinas que leciona De 1979 a 81 ampliou sua expe riencia profIssional fora do ambito escolar criando uma Salinha de Leitura para crianas a qual muito contribuiu para a elaborao deste 0 que e leitura Coro leltor As opini6es expressas neste Ilwo sao as do autor podem nao ser as suas Caso voce ache que vale a pena escrever um outr livro sobre 0 mesmo tema 6s estamos dispostos a estudar sua publicaao com 0 mesmo titulo como segunda visao COLECAo PRIMEIROS PASSOS I Soc Arnaldo Spindel 2 Amaldo Spindel 3 1Ilomo Ricardo C Antu nes 4 1apR8I A Mende Catanl 5 Anwqulamo Caio Tullo Costa 8 U Caio Prado Jr 7 RKlsmo J Rufino dos Santos IndUstr Culture Tel xeira Coelho 9 Clneru J Clau de Bernardet 10 T tro fernan do Peixoto 1 t Energlll Hue J Goldmberg 12 UtopbI Tel xeira Coelho 13 ldeologla Ma rilena Chaui 1 ubdesenvolvl menlo H Gonzalez 15 Joan mo CI6vis Rossi 16 Arqultetura Carlos A C Lemos 17 Hlst6tia Vavy Paclleco Borges 11 Ques do Agrirlo Jose G da Sliva 19 Comunldodo Ee de Frol Betto 20 EcIucaIo Carlos R Brandlo 21 IurocredI F C Prestes Motta 22 Dftaduru Arnaldo Spindel 23 DIaIItIca Leandro Konder 24 Poder Gti rard Lebrun 25 Revol Flo restan Fernandes 21 Multi clonal Bernardo Kucinski 27 Marketing Aaimar Rlchers 21 EP900 SoIario P R de Souza 29 Intetectuai Horacia Gonzalez 30 Receulo Paulo Sandroni 31 RoIgllo Rubem Alves 32 10 P Evaristo Car deal Arns 33 RefonM AO J Eli Veiga 34 Stollnlomo J Paulo Netto 35 IIomo A Mendel Catani 31 Cuttura A Augusto Arantes 37 fllooaflo Calo Prado Jr 31 todo hulo F C R Bra 39 hIcoIogIo S T Mau rer Lane to Trotsldsmo J R0 berto Campos 41 Jamil A Haddad U Io Urbene Regis de Morais a Poe M Glauco Mattoso feminiMIO B M AlvesJ Pltano guy e A Rodolpho Canlato Arte Jorge Coli t1 Coml de F R Antu nesA Nogueira Geogreft8 Ruy Moreira 4 DlNItn Oalmo de Abreu Oallarl 50 Familio Dando Prado 51 trlmOnlo HI Carloa A C Lemo 52 PoIquIotrIo A ttYII Alan Indio Serrano 51 Ute rawra Marlsl lIjol PoIttIcIi Wolfgang Leo Mllr 5 bplrI Roque Jacintha Po LegloIotIvo Nolson Saldanha 57 8ocWogla Cados B Mar tin DI 1 J Monserrat Fllho 59 Teon Ota viano Pereira 80 FoIcIore Car los Rodrigues Brandlo 61 Exl tenclallamo Joio da Penha 62 Dlrello Roberto Lyra Fllho 83 Poela Fernando Palxio 64 Ca pital Ladlslau Dowbor as Mal Valla Paulo Sand rani 68 Recur an Humanoe Flivlo de Toledo 87 Comunkaqio Juan Diaz Bor denave II Rock Paulo Chacon 99 Postoral Joio Batista Libe nlo 70 Cont8bII Roque J clntho 71 CopHol 1 Rabah Benakouche 72 Positivi mo Jolo Ribeiro Jr 73 Loucura Jolo A FraYlePereira 14 Lei tura Marla Helena Martins 15 0untI0 na Helena Salem 18 Punk Antonio Sivar 71 Pro IdeoI6gIco Nelon Jahr Garcla 11 M8g1a JoAo Ribeiro Jr 79 EcIucaIo Fiolco Vltor Marlnho de Oliveira 80 Mua J Jota de Moraes 11 Homos xUlI Peter Fry I Edward McRae 92 Fotogroflo Cl6udlo A Kubrusly 13 Politlca Nuclear Ricardo Arnt Medlcllll Al ternativi Alan India Serrano 85 VIoI6ncIo Nilo Odalla 16 PoIco 1 Fabio Hermann 17 mentarfmo Ruben Cesar Keinert II ARlO Betty Milan 99 Pee DeftcIentes Jolo B Clntra Rlbe 90 10 Civil Evaldo Vieira 91 UnI Lull E W Wanderley 92 ou do de Lull C O Ribei ro Robert M Pechman 93 Jazz Roberto Muggltl 14 81b11otKo lulz Milanesl 95 Juan E Dial Bordenave 91 C poetl Almir das Arelas 97 Um Mnda Patricia Birman 91 Ute turII PopulII Joseph M Luyten 99 PopoI Ot6vlo Roth 100 ContrllCUttu Carlos A M Pe reira t01 Comun Rural JUln E 0 Bordenave 102 Fome Ricardo Abramovay 103 Seml6 tlea lucia Santaella t04 hrllel Politico Oalmo de Abreu Oallorl lOS J Julio Cesar Tadeu Barboa 108 AotroIogIo Juan A C Mulier lOa M P Muller 107 Politico CUltural Martin Celer Feij6 101 Comu DAG GIt4FICA E EDITORIAL L mAo Imprimiu Av Nona Senbora do 0 1782 Tel 8516044 A CorIoo P Tavares 101 IIclol Sandra Wei R I Cultu Jos6 Lull los Saneo III Sa SocIal Ana Aamos Estevlo 112 Te lUlla Margareth Rago F P Moreira 113 M tonio Carlos Rocha 114 T N6 Darel Yaluco Kusano 115 ROOIclode JoiFrancisco Duo te Jr III coIovIo Lago Josti Augusto P6dua in Neologiomo Nelly Corvalho I 9 Modlci KIn Kloetz 1 119 ro Carlos Garcia 120 Iidodo Guillermo RoUt 121 T Glauco 122 PoropoIcoIovIo Osman drade Faria 123 liana R Petrilli Segnini DC E Evervdo P Qi mari es Rocha 125 Me6ciIre Populor Elda Rizzo de Oheino 128 Abono Oanda Prado 121 Sulcidlo Roosevelt M S ea soria 121 E R Yo raes e S M Lapeiz 12 ca Mtlca Jocelyn Sennaton UI Ge Andre Frod G6e 131 w Hamburger 132 Raymundo Glvio de 0Ueiraz 133 I 2 0s car Cesarotto M Souza 134 FIMa 0 35 Conto Luzia de Mu 131 Erotlamo LUcia Casten o Bnaco 137 Video CJndido Jose des de Almeida 131 Paulo de Salles Oliveira tl Her6i Martin Cezar Feio Autonomlo lUcia to Bruno 14 AI ley Codo 142 EIdo Rizzo de Oliveira 143 cli tuint Marilla Garcia 1 IOrIo em Duodrinhoo S6nUo Luyten Ie A Vlnicius Ferreira e EIpiriIi5 mo 2 villa Maria Utura Viw ros de Castro 147 tlea Alain Jean Costilhes a Marxlamo Jos Paulo Netto te ToxlcomMil Jandtr Masrr Morte Jos Lull de Soua Ma ranhlo 151 Ito Eventdo G Rocha 152 Edso Pas oIlI153 otdm to Suannes Processos de Ensino e Aprendizagem em Língua Portuguesa Aula 7 LITERATURA E PRÁTICA PEDAGÓGICA 26 de maio de 2020 Profª Cristina Prates Texto 1 ENSINAR LITERATURA PARA QUÊ 1 Paulo Franchetti 1 Disponível em httpdesenredosdominiotemporariocomdoc03ensaioliteratura Franchettipdf Universidade Estadual de Campinas UNICAMP Instituto de Estudos da Linguagem IEL Instituiçãosede da última proposta de pesquisa País de origem Brasil Paulo Franchetti 1953 formouse em Letras PortuguêsFrancês na UNESP campus de Araraquara 1975 Mestre em Teoria Literária pela Unicamp 1981 doutor em Letras pela Universidade de São Paulo 1992 e Livre Docente pela Unicamp 1999 desde 2004 foi Professor Titular da Universidade Estadual de Campinas Unicamp De 2002 a 2013 dirigiu a Editora da Unicamp presidindo seu conselho editorial Aposentouse em 17 de março de 2015 É bolsista nível 1B do CNPq Atua na área de Letras com ênfase em Teoria Literária Literatura Brasileira dos séculos XIX e XX e Literatura Portuguesa do século XIX Parte de sua produção se encontra reunida no blog wwwpaulofranchettiblogspotcombr Fonte Currículo Lattes Questões o que se ensina quando se ensina literatura o que se aprende quando se estuda literatura Possível resposta ênfase na literatura como forma de conhecimento de outra coisa como de história filosofia arte língua culta psicologia Assim a literatura poderia ser estudo das paixões e dos movimentos do espírito veículo de educação e de difusão de modos de comportamento adequados cristalização de modelos de língua culta acesso ao diferente a outros ambientes sociais outros tempos o romance histórico ou o de atualidade de outro período quando lido hoje outras formas de o homem se relacionar com a palavra outros costumes enfim RESPOSTA DO AUTOR Não resta dúvida de que a literatura pode ser lida em busca desse tipo de conhecimento mas isso garantiria por si só o interesse de mantêla como matéria curricular Não creio Ler um romance ou um poema ou uma peça de teatro é mais do que obter conhecimento objetivo E qual seria então o diferencial da literatura para que ela mereça ser objeto de um grande investimento social como é a sua inserção no currículo escolar Deslocamento Literatura como Arte promove um deslocamento da perspectiva um entregarse a tudo que se move no texto Esse deslocamento esse mergulhar no texto na vivência dos sentimentos e das paixões que ele expõe faz da literatura uma forma eficaz de convencimento de moldagem de opiniões Romance Nosso espírito se cola às palavras e pode experimentar integralmente aquilo que nelas se desenvolve Nós nos colocamos na posição das personagens julgamos as suas ações repudiamos ou aprovamos o seu comportamento nos identificamos ou sentimos repugnância pelos seus movimentos morais espirituais Não há um interesse particular LITERATURA ARTE DA PALAVRA Por depender só da palavra a literatura na verdade tem uma força que as artes combinadas não possuem ESPAÇO DA IMAGINAÇÃO Ela abre um espaço enorme à projeção do leitor De fato tudo depende da sua imaginação a forma de um rosto por mais pormenorizadamente descrita que seja é uma para cada leitor Assim também o tom da voz de uma personagem uma paisagem um ruído da guerra o som de um grito ou de um encontro amoroso Pelo som das palavras se erguem as personagens as exclamações as imagens de um poema o ritmo dos eventos de uma peça ou de uma novela Como ideia se ergue na mente do leitor a mulher amada o filho ingrato o prado florido a fábrica insalubre enfim o mundo das coisas e das emoções Ex ilustração de um livro ou adaptação de um livro para filme Os olhos de Capitu não pensamos que ela tem mãos Nem que tenha pés Nem que vestido ela estaria usando Muito menos somos compelidos a lidar com outras particularidades como brincos cor precisa do cabelo maquiagem etc Não há mais nada senão as imagens que se juntam para dar ideia daqueles olhos Essa magia se quebra quando se filma ou se desenha Capitu com traço realista todas as coisas não nomeadas no texto do Machado partes do rosto do corpo do ambiente vêm junto com os olhos empanam o seu brilho enfraquecem a sua força ESPAÇO DA LEITURA O leitor por acaso o decifra palavra por palavra Não por certo Ele voa sobre elas buscando ao mesmo tempo o sentido do conjunto e o tom do trecho e do livro Leitura conjunto complexo de habilidades Entender se uma passagem é dita em tom irônico ou em tom jocoso Precisa perceber os sentidos que se formam além das passagens pela alusão a eventos históricos a outros textos a costumes Precisa perceber o ritmo das frases e a justeza ou o inusitado das imagens na poesia tanto quanto na prosa LITERATURA E CULTURA Relação da cultura com o passado de continuidade de ponte a transcender os limites do tempo e as formas da sensibilidade do presente relação com o passado de continuidade de ponte a transcender os limites do tempo e as formas da sensibilidade do presente LITERATURA continuidade ou a oposição ao passado O passado é que dá sentido ao presente da literatura Uma obra solta no tempo não tem significação literária SIGNIFICAÇÕES E CONTEXTO O leitor precisa conhecer o passado os seus monumentos se puder reconhecer a alusão a intertextualidade ou a citação O PASSADO E A LITERATURA A literatura redimensiona o passado que é lido pelo presente O olhar do presente percorre o panorama do passado e ali vê o que estava apagado ou não potencializado A importância da influência na obra dos autores a tradição a continuidade é um dos elementos de significação mais importantes da literatura O Surrealismo que descobriu precursores em pintores que nada tinham de surrealistas A influência de Sousândrade na obra dos poetas concretos A literatura é uma forma uma forma de nos apropriarmos do passado de nos colocarmos como seus herdeiros A literatura fala pelo passado e faz o passado falar pelo presente Literatura um dos elementos principais da civilização que é a continuidade a herança e a atualização do passado no presente Entre todas as artes foi a literatura a que mais se identificou com o conceito de cultura de civilização e de nacionalidade Através da literatura o leitor compreende que nada é natural mas sim cultural Ensinar literatura portanto em sentido amplo é criar as condições para que o estudante o leitor em formação possa tornarse ele também um herdeiro desse manancial da cultura da civilização e da nacionalidade O QUE APRENDEMOS COM A LITERATURA Aprendemos a relativizar as certezas a contemplar o leque das possibilidades de realização e das limitações à realização humana ao longo do eixo temporal ou espacial A literatura ensina a historicidade das formas de sensibilidade convocando o que permanece ainda vivo em nós e o que já não permanece o que nos rege desde o mundo dos mortos porque ainda é vivo e o que nos rege desde lá sem nenhuma razão para isso POR QUE A LITERATURA MERECE SER ESTUDADA E ENSINADA Por ser um fator de civilização uma forma privilegiada de convívio com o passado e com a tradição que fala em nós e por nós COMO A LITERATURA NÃO DEVERIA SER ENSINADA Quando se abandona o seu investimento estético A literatura não pode ser apenas um documento da história da sociologia linguística da geografia da política da economia Quando enclausuramos uma obra dentro de uma estética literária Ex Dom Casmurro Se o leitor de Dom Casmurro por exemplo não deu conta da amargura do ciúme se não percorreu o caminho da angústia e não descobriu a ponta de loucura ou a miséria moral do narrador se não se divertiu ou se admirou com a profusão de referências cultas que enxameiam a prosa de Bento Santiago terá mesmo lido literariamente o livro CONSTATAÇÃO DO AUTOR EM RELAÇÃO AO ENSINO DA LITERATURA A literatura é uma das fontes principais do vínculo com o passado e da sua projeção no futuro uma das formas de tornar o presente menos prisioneiro de si mesmo e da dose de cegueira que acomete cada época quando olha para si mesma Por isso mesmo julgo que haja muita relevância na nossa função de ensinar literatura especialmente aos jovens APELO DO AUTOR PARA OS PROFESSORES DE LITERATURA É preciso ter em mente a complexidade do que precisa ser feito para construir uma verdadeira educação literária Ou seja o apelo é para que não nos curvemos à ignorância dos que não têm essa formação e não compreendem o que dela pode advir e sim que resistamos a eles mostrando com o nosso exemplo de leitores o que é ser educado em literatura e como isso é uma fonte de conhecimento e de prazer e sobretudo para que não barateemos o nosso trabalho para que não tornemos a literatura apenas um veículo para outros conhecimentos ou um campo desinteressante de discurso sobre de definições e classificações vazias que tentam em vão substituir ou anular a vivência e a complexidade da leitura Textos para leitura Letramento Literário uma proposta para a sala de aula Renata Junqueira de Souza e Rildo Cosson Disponível em httpsacervodigitalunespbrbitstream12345678940143101d16t08pdf Letramento literário em círculos de leitura na escola Cleonice de Moraes Evangelista Leão e Dalma Flávia Barros Guimarães de Souza Palimpsesto Rio de Janeiro n 21 p 42741 juldez 2015 Disponível em httpswwwe publicacoesuerjbrindexphppalimpsestoarticleview35126 Literatura modos de ler na escola Rildo Cosson Disponível em httpseditorapucrsbranaisXISemanaDeLetraspdfrildocossonpdf Formação de leitores a questão dos cânones literários Graça Paulino Disponível em httpswwwresearchgatenetpublication26465043Formacaodeleitoresa questaodoscanonesliterarios Literatura possíveis diálogos Maria Cristina Prates Fraga Disponível em httpwwwabralicorgbreventoscong2008AnaisOnlinesimposiospdf009MA RIAFRAGApdf Literatura poética e humanização Cristina Prates Disponível em httpwwwfilologiaorgbrxxicnlfcnlfcnlf03065pdf 2013 Literatura infantojuveniL Prof Abraão Junior Cabral e Santos ProfªJackeline Maria Beber Possamai Profª Joseni Terezinha Frainer Pasqualini Copyright UNIASSELVI 2013 Elaboração Prof Abraão Junior Cabral e Santos ProfªJackeline Maria Beber Possamai Profª Joseni Terezinha Frainer Pasqualini Revisão Diagramação e Produção Centro Universitário Leonardo da Vinci UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI Indaial 0285 S237l Santos Abraão Junior Cabral e Literatura infantojuvenil Abraão Junior Cabral e Santos Jackeline Maria Beber Possamai Joseni Terezinha Frainer Pasqualini Indaial Uniasselvi 2013 175 p il ISBN 9788578307103 1 Literatura infantojuvenil I Centro Universitário Leonardo da Vinci Impresso por III apresentação Caroa acadêmicoa Neste Caderno de Estudos esperamos mediar o encontro da literatura com questões que possam auxiliar sua prática pedagógica bem como fixar aprofundar estabelecer relações e dar continuidade aos estudos iniciados com a disciplina de Teoria Literária e principalmente que ao término dessa disciplina você possa perceber a importância da literatura na sala de aula e na vida do indivíduo A literatura é conhecimento produzido historicamente objeto de interrogação dúvida e pesquisa Civiliza educa e humaniza na medida em que sugere melhores formas de vida e se constitui como exercício de liberdade inquietação crescimento e perplexidade Neste Caderno de Estudos chamamos a atenção para o fato de que muitas vezes a literatura é metodicamente submetida a rotinas padronizadas perdendo seu sentido mais profundo Tornase mera soma de palavras e frases concebida como um sentido preestabelecido ou seja os alunos leem somente para transcrever recursos estilísticos para estudar análise sintática procurar palavras no dicionário estudar normas gramaticais e aprender modelos de conduta moral Esta última muito enfatizada na escola sobretudo na literatura infantil apresenta textos somente com o intuito de que as crianças assimilem padrões de conduta adequada à ordem social Essas práticas podem ser fator decisivo e determinante para o distanciamento da literatura A literatura infantojuvenil é um aparato facilitador para despertar o prazer da leitura e deveria ocupar lugar de destaque no cotidiano escolar e familiar O desafio é incentivar a dimensão prazerosa lúdica e estética da literatura e ainda por meio dela proporcionar que o leitor se depare com sentidos e identificações do lido explorandoos aprendendo sobre os medos angústias lutas coragem amor e o mundo que o cerca Para tanto é imperativo que o professor avalie e reflita entendendo sua intenção primeira suscitar e despertar o gosto pela leitura A necessidade da literatura em sala de aula é algo incontestável Em especial neste espaço privilegiado pela possibilidade de apresentação e interação do texto literário pois contribui para a ampliação de conhecimentos permite a interpretação do mundo como um texto universal e a percepção de sua complexidade Ainda nessa perspectiva expande e reforça a ideia de que cada indivíduo é sujeito e agente de sua própria história Na sala de aula deve existir muita leitura de vários gêneros literários a fim de que o aluno possa melhor refletir compreender problematizar IV e questionar os textos lidos fazendo uso de sua criticidade e também da habilidade em lidar com as regras estabelecidas para a leitura Ler significa aprender a produzir sentidos inseridos em um tempo e em um espaço tornando o exercício de leitura ativo Não temos a pretensão caroa acadêmicoa de esgotar as reflexões sobre a literatura infantojuvenil mas esperamos colaborar para apontar questões teóricas e práticas o que sem dúvida alguma contribuirá para sua postura frente à literatura em sala de aula Bons estudos e sucesso em sua vida acadêmica Prof Abraão Junior Cabral e Santos Profa Jackeline Maria Beber Possamai Profa Joseni Terezinha Frainer Pasqualini Você já me conhece das outras disciplinas Não É calouro Enfim tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano há novidades em nosso material Na Educação a Distância o livro impresso entregue a todos os acadêmicos desde 2005 é o material base da disciplina A partir de 2017 nossos livros estão de visual novo com um formato mais prático que cabe na bolsa e facilita a leitura O conteúdo continua na íntegra mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto aproveitando ao máximo o espaço da página o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel por exemplo Assim a UNIASSELVI preocupandose com o impacto de nossas ações sobre o ambiente apresenta também este livro no formato digital Assim você acadêmico tem a possibilidade de estudálo com versatilidade nas telas do celular tablet ou computador Eu mesmo UNI ganhei um novo layout você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos para que você nossa maior prioridade possa continuar seus estudos com um material de qualidade Aproveito o momento para convidálo para um batepapo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes ENADE Bons estudos UNI V Olá acadêmico Para melhorar a qualidade dos materiais ofertados a você e dinamizar ainda mais os seus estudos a Uniasselvi disponibiliza materiais que possuem o código QR Code que é um código que permite que você acesse um conteúdo interativo relacionado ao tema que você está estudando Para utilizar essa ferramenta acesse as lojas de aplicativos e baixe um leitor de QR Code Depois é só aproveitar mais essa facilidade para aprimorar seus estudos UNI Olá acadêmico Você já ouviu falar sobre o ENADE Se ainda não ouviu falar nada sobre o ENADE agora você receberá algumas informações sobre o tema Ouviu falar Ótimo este informativo reforçará o que você já sabe e poderá lhe trazer novidades Vamos lá Qual é o significado da expressão ENADE EXAME NACIONAL DE DESEMPENHO DOS ESTUDANTES Em algum momento de sua vida acadêmica você precisará fazer a prova ENADE Que prova é essa É obrigatória organizada pelo INEP Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira Quem determina que esta prova é obrigatória O MEC Ministério da Educação O objetivo do MEC com esta prova é o de avaliar seu desempenho acadêmico assim como a qualidade do seu curso Fique atento Quem não participa da prova fica impedido de se formar e não pode retirar o diploma de conclusão do curso até regularizar sua situação junto ao MEC Não se preocupe porque a partir de hoje nós estaremos auxiliando você nesta caminhada Você receberá outros informativos como este complementando as orientações e esclarecendo suas dúvidas Você tem uma trilha de aprendizagem do ENADE receberá emails SMS seu tutor e os profissionais do polo também estarão orientados Participará de webconferências entre outras tantas atividades para que esteja preparado para mandar bem na prova ENADE Nós aqui no NEAD e também a equipe no polo estamos com você para vencermos este desafio Conte sempre com a gente para juntos mandarmos bem no ENADE VII UNIDADE 1 CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA 1 TÓPICO 1 O ADULTO VERSUS A CRIANÇA QUAL O MODELO 3 1 INTRODUÇÃO 3 2 ASSIMETRIA ENTRE MATURIDADE E INFÂNCIA 4 3 O PENSAMENTO FELIZ ENTRE O LÚDICO E O LÚCIDO 9 LEITURA COMPLEMENTAR 14 RESUMO DO TÓPICO 1 16 AUTOATIVIDADE 17 TÓPICO 2 A LITERATURA ENTRA NO JOGO 19 1 INTRODUÇÃO 19 2 A ARTE E A PALAVRA 19 3 A LITERATURA COMO FONTE HUMANIZADORA 24 RESUMO DO TÓPICO 2 31 AUTOATIVIDADE 32 TÓPICO 3 CARACTERÍSTICAS DA LINGUAGEM LITERÁRIA 33 1 INTRODUÇÃO 33 2 O LITERÁRIO ASPECTOS QUE O DEFINEM 33 3 O TEXTO LITERÁRIO E O TEXTO NÃO LITERÁRIO 37 RESUMO DO TÓPICO 3 41 AUTOATIVIDADE 42 UNIDADE 2 A LITERATURA INFANTIL FONTE DE EMOÇÕES 43 TÓPICO 1 ASPECTOS DA LITERATURA INFANTIL 45 1 INTRODUÇÃO 45 2 OS TEXTOS DESTINADOS AO JOVEM LEITOR 46 3 A LITERATURA INFANTIL UM POUCO DE HISTÓRIA 47 31 PANORAMA DA LITERATURA INFANTIL BRASILEIRA 51 RESUMO DO TÓPICO 1 57 AUTOATIVIDADE 58 TÓPICO 2 GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA ESTRUTURA I 61 1 INTRODUÇÃO 61 2 AS NARRATIVAS E O ESTILO 61 3 NARRATIVAS O CONTO 64 31 OS CONTOS DE FADA 65 4 O PODER DOS CONTOS NA CONTEMPORANEIDADE 68 RESUMO DO TÓPICO 2 72 AUTOATIVIDADE 74 sumário VIII TÓPICO 3 GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA ESTRUTURA II 77 1 INTRODUÇÃO 77 2 A COMPOSIÇÃO DOS TEXTOS LITERÁRIOS 77 21 A AÇÃO 79 22 AS FALAS NA NARRATIVA 80 23 O ESPAÇO 84 24 O TEMPO 85 3 A PERSONAGEM E SEUS ASPECTOS 85 31 A FÁBULA 89 32 A LENDA 90 33 A PARÁBOLA 92 34 A PARLENDA 92 35 O ROMANCE 94 4 LEITURA E A DIMENSÃO COGNITIVA 95 LEITURA COMPLEMENTAR 98 RESUMO DO TÓPICO 3 102 AUTOATIVIDADE 104 UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA 105 TÓPICO 1 O DIVERTIDO PRAZER DE LER 107 1 INTRODUÇÃO 107 2 A SALA DE AULA QUE TEXTOS ESCOLHER 107 3 INVERTENDO A TRADIÇÃO 112 RESUMO DO TÓPICO 1 114 AUTOATIVIDADE 115 TÓPICO 2 A RELAÇÃO LIVRO E A CRIANÇA 117 1 INTRODUÇÃO 117 2 A RECEPÇÃO DO LIVRO INFANTIL 117 3 A IMAGEM LUGAR ESPECIAL 122 RESUMO DO TÓPICO 2 131 AUTOATIVIDADE 132 TÓPICO 3 EXPLORANDO OS GÊNEROS INFANTIS 133 1 INTRODUÇÃO 133 2 LEITURA DO MUNDO A LITERATURA 134 3 A DESCOBERTA DA POESIA 144 31 O TEATRO 149 4 AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS 156 LEITURA COMPLEMENTAR 159 RESUMO DO TÓPICO 3 162 AUTOATIVIDADE 163 REFERÊNCIAS 165 1 UNIDADE 1 CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS Esta unidade tem por objetivos refletir sobre a assimetria entre o adulto e a criança identificar possíveis conceitos atribuídos à literatura diferenciar um texto literário de um texto não literário refletir sobre as funções da literatura Esta unidade está dividida em três tópicos Ao final de cada um deles você encontrará atividades visando à compreensão dos conteúdos apresentados TÓPICO 1 O ADULTO VERSUS A CRIANÇA QUAL O MODELO TÓPICO 2 A LITERATURA ENTRA NO JOGO TÓPICO 3 CARACTERÍSTICAS DA LINGUAGEM LITERÁRIA VI 3 TÓPICO 1 UNIDADE 1 O ADULTO VERSUS A CRIANÇA QUAL O MODELO 1 INTRODUÇÃO Prezadoa acadêmicoa nesse tópico você entrará em contato com algumas teorias e discussões em torno das quais importantes relações se estabelecem entre arte e infância Para tanto não só o presente texto quanto os demais tópicos desta unidade estão construídos de modo a possibilitarlhe não apenas tecer considerações acerca da temática em questão como também em ajudáloa a colher implicações que em alguma medida possam auxiliáloa a melhor observar refletir e posteriormente opinar sobre a realidade da literatura infantojuvenil no contexto atual das instituições de ensino Assim observaremos primeiro o quanto a construção da nossa civilização escolarizada se deveu ao aprisionamento de nossa gestualidade espontânea que em sua origem marcava não um divórcio mas uma identidade entre o lúdico e os afazeres cotidianos que acabaria sendo amordaçada pelo pensamento racional o qual ao fazer prevalecer os pontos de vista do adulto acabaria por normatizar diversas instituições sociais como a escola e a literatura destinada à criança Em seguida verificaremos o lugar do pensamento lúdico na atualidade seja a partir da relação assimétrica que socialmente se constrói entre a magia infantil e a lógica do indivíduo adulto seja segundo a aparente evolução da consciência mítica em direção à racionalidade pragmática que nesse percurso desfazse do caráter mágico inerente ao lúdico Ora há de se constatar que essa aparente evolução da racionalidade rumo a formas de expressão mais refinadas não deveria descartar o poder mágico presente nas manifestações literárias já que elas surgem como formas artísticas calcadas no pensamento mítico e em atividades lúdicas praticadas desde o aparecimento de nossa espécie e até hoje consolidadas como formas significativas de revelação do real UNIDADE 1 CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA 4 2 ASSIMETRIA ENTRE MATURIDADE E INFÂNCIA Quando guri eu tinha de me calar à mesa só as pessoas grandes falavam Agora depois de adulto tenho de ficar calado para as crianças falarem QUINTANA 1979 p 28 Você se lembra de como no tempo em que você era pequenininho seus pais ou parentes mais próximos reagiam às brincadeiras ou às traquinagens das crianças de sua geração Lembra ademais que tipo de expressões ou formas de linguagem eles utilizavam em tais momentos quer fosse para elogiar essas mesmas ações quer fosse para censurálas ou no pior dos casos para reprimilas Nessas situações você também deve lembrar que de modo semelhante à maneira como os adultos de antigamente nos tratavam nós não porque verdadeiramente o sejamos mas tão somente porque agora ocupamos o lugar destinado a quem deve ser o mais sábio ou o mais forte diante da criança em geral sentenciamos escute a voz da razão você precisa aprender a crescer tenha juízo siga quem tem mais experiência do que você etc expressões que demarcam claramente o lugar de quem manda e em contrapartida o lugar destinado a quem deve obedecer Caro acadêmicoa para aprofundarmos essa reflexão sobre as relações entre maturidade e infância seria interessante você parar por alguns instantes e fazer um pequeno exercício de memória Primeiro tente identificar quais expressões eram utilizadas pelos adultos no tempo em que você era criança e que ainda lhe soam familiares em seguida observe as expressões que você emprega hoje em dia ao tratar com as crianças da atual geração Caso tenha conseguido identificálas anote algumas dessas expressões no diagrama a seguir e em sala de aula troque suas experiências com as dos colegas Ora uma das possíveis consequências de tal exercício é que a partir da experiência pessoal podemos constatar que essas expressões não só revelam mas simultaneamente contrapõem dois modos distintos de se perceber e experimentar a existência a saber um primeiro modo geralmente considerado irracional por vezes pueril e inerente a quase todo indivíduo que se encontre na fase transitória TÓPICO 1 O ADULTO VERSUS A CRIANÇA QUAL O MODELO 5 da infância e em um segundo modo considerado harmônico equilibrado e característico não apenas do indivíduo adulto mas através dele se estabelecendo como parâmetro ou modelo para pautar a existência e as atitudes de qualquer ser humano independente da faixa etária em que ele se encontre Segundo o Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa o vocábulo Assimetria referese a um substantivo feminino enquanto a palavra Assimétrico referese a um adjetivo ambos os termos designando ausência de simetria que não tem simetria dessimetria dissimétrico UNI É o que também sustenta Bettelheim 2007 p 9 quando ao valerse de um viés do discurso psicanalítico busca compreender quais práticas culturais ou ações educativas seriam mais adequadas a operar a passagem da fase infantil para a fase adulta Assim ao defender a utilização do repertório dos contos de fadas tradicionais como modelo predominante na educação familiar acaba depondo em favor da hierarquia assimétrica que tem predominado nas relações entre maturidade e infância Somente na idade adulta uma compreensão inteligente do significado de nossa existência neste mundo pode ser obtida de nossa experiência nele Infelizmente muitos pais querem que as mentes dos filhos funcionem como as suas como se uma compreensão madura de nós mesmos e do mundo e nossas ideias sobre o significado da vida não tivessem que se desenvolver tão lentamente quanto nossos corpos e mentes Hoje como no passado a tarefa mais importante e também mais difícil na criação de uma criança é ajudála a encontrar significado na vida BETTELHEIM 2007 p 10 grifo nosso Dessa forma ainda que o autor reconheça o encontrar significado para a vida como um dos eixos da condição existencial de qualquer indivíduo não importa em que faixa etária este se encontre Bettelheim não deixa de corroborar com a existência de dois pontos de vista assimétricos dos quais acaba por optar ainda que implicitamente pela perspectiva do adulto cujo equilíbrio e maturidade deve progressivamente orientar o olhar equivocado e fantasioso da criança A criança à medida que se desenvolve deve aprender passo a passo a se entender melhor com isso tornase mais capaz de entender os outros e eventualmente pode se relacionar com eles de forma mutuamente satisfatória e significativa Com respeito a essa tarefa nada é mais importante que o impacto dos pais e das outras pessoas que cuidam da criança em segundo lugar vem a nossa herança cultural quando transmitida à criança de maneira correta BETTELHEIM 2007 p 10 grifo nosso UNIDADE 1 CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA 6 Mais adiante constatará Magalhães 1984 apud ZILBERMAN 1984 essa transmissão idealizada de normas propalada tanto pelas instituições tradicionais quanto pelos comportamentos e atitudes maduras dos adultos visaria transformar a criança em um adulto pacificado ou melhor dizendo em um indivíduo capaz não apenas de conter por meio de ponderações racionais suas inquietações como também de responder a eventos imprevistos de uma maneira educada e lógica E aqui se situa a contradição da preocupação educativa na transmissão de normas o objeto das tarefas pedagógicas é um sujeito ideal membro de uma sociedade que se espera construir um dia graças à transmissão de padrões vigentes que não conseguiram concretizar a ordem social almejada À caça do sonho todos os conceitos pedagógicos estão voltados para a criança no sentido de dizer no que ela deve se tornar O objetivo da pedagogia só será atingido se ela conseguir realizar um sujeito senhor de sua própria linguagem e de seus atos dirigido pela razão e pela lógica sujeito do consciente e destituído de conflito MAGALHÃES In ZILBERMAN 1984 p 43 A partir das observações anotadas até aqui você consegue imaginar o quanto esse modo assimétrico de relação que se estabelece entre a criança e o adulto pode ir muito além da relação familiar adentrando quase todas as esferas de convívio social Percebe também que como uma regra geral quase sempre se dá a primazia do segundo modo de existência sobre o primeiro fazendo predominar os valores e os pontos de vista dos adultos IMPORTANTE Portanto não havia nada de acidental no fato de Platão 1999 conceber em sua República ideal que ademais serviria de modelo para se pensar dentro dos padrões da civilização ocidental a arte pois o processo adequado de aquisição e transmissão do conhecimento deveria se pautar prioritariamente pelo pensamento racional o que implicava reconhecer que os sentimentos as emoções as experiências lúdicas e as formas míticas de compreensão do mundo que são inerentes tanto ao saber artístico quanto à infância se firmariam sobre as aparências das coisas e consequentemente só poderiam fornecer um saber equivocado da realidade Ora sabemos que desde a Grécia antiga o único espaço em que se conseguiu fazer convergir essas duas ordens aparentemente antagônicas a saber o pensamento lúcido e racional do adulto e o pensamento lúdico e espontâneo da criança foi não propriamente a escola mas sim a obra de arte Esta onde quer que seja pensada como mais adiante veremos no caso da literatura infantojuvenil vinculase a formas de compreensão da realidade que não se pretendem absolutamente verdadeiras ou universais tal como o fazem os saberes científicos e a especulação filosófica mas ao contrário por admitir sua própria parcialidade acaba comportando pontos de vista particulares subjetivos guardando assim um estreito parentesco com as formas como as crianças movidas pela admiração e pela fantasia lidam nomeiam e inventam a sua realidade presente TÓPICO 1 O ADULTO VERSUS A CRIANÇA QUAL O MODELO 7 Para Platão haveria dois mundos intercomunicáveis através da mímesis cópia ou representação o mundo das ideias perfeito habitado pelos deuses e onde residiria a verdade e em contrapartida o mundo sensível material precário e imperfeito da existência humana A tarefa do filósofo consistia em desvendar o mundo sensível aparente e falso em proveito da inteligibilidade do mundo das ideias Assim no capítulo X do livro A República o filósofo através da metáfora da cama e do pintor desqualifica o artista e a obra de arte primeiro haveria a cama idealizada possível no mundo das ideias e portanto perfeita depois a cama feita pelo marceneiro que seria uma cópia precária da cama ideal do mundo das ideias por último teríamos a cama do pintor que imita a cama do marceneiro que por sua vez já havia imitado a cama do mundo das ideias portanto uma cópia de uma outra cópia Dessa forma a cama pintada pelo artista seria a imitação mais falsa de todas e por esse motivo através da hierarquia mimética o artista e seu falso saber não deveriam participar da República UNI Você deve concordar que ainda nos dias atuais é a escola e não a obra de arte o principal espaço encarregado de transmitir e redimensionar a herança cultural entre gerações Se assim o for também poderemos concordar que a sua evolução na história se daria conforme a escola na contramão do pensamento platônico não mais recusasse o saber apreendido pelas sensações pelas emoções e pela imaginação e passasse a adquirir características de uma obra de arte desfazendose portanto dos modelos ideológicos vigentes que mantinham a compreensão equivocada de que a infância fosse apenas uma fase aberta a toda sorte de fantasia crença no maravilhoso e em distorções da realidade palpável Antes de prosseguirmos nessa linha de raciocínio que tal fazermos uma pequena reflexão Pense após tanto tempo inseridos nesse paradigma cultural advindo do platonismo que inicialmente se baseava na abstração da existência corporal e no pensamento racional e que foi posteriormente acrescido de valores econômicos e burgueses como o pragmatismo e a utilidade e que enfim afetariam os modos de se pensar a educação e as concepções formais e informais de ensino por vários séculos você acredita que esse modelo já estaria superado Façamos então um breve exercício vamos ler um dos excertos literários de Mário Quintana O velho e o acaso que versa sobre a temática em questão para em seguida opinar O velho mendigo que neste momento acaba de encontrar num monte de sucata a lâmpada de Aladino tão amassada tão enferrujada e de feitio tão esquisito eis que ele a abandona e leva em vez dela uma útil chaleira Uma chaleira sem tampa digo eu para os que gostam de pormenores E não é esta a primeira vez que o acaso inocentemente assim estraga uma bela história QUINTANA 1979 p 5 UNIDADE 1 CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA 8 AGORA PENSE E RESPONDA Para você o mendigo em questão teria agido coerentemente Dito de outro modo em seu lugar você também teria optado pela chaleira ao invés da lamparina Por quê Vivemos de tal maneira enraizados no universo lógico do adulto que em nada nos estranharia se pensarmos a partir da parábola literária de Quintana se algum de nós mesmo que se tratasse de um mendigo decidisse recolher a velha chaleira sem tampa posto nela ainda haver alguma serventia mas jamais uma inútil lamparina largada em um amontoado de lixo e se esta fosse a opção frequentemente tomada então ela nos levaria a reconhecer que tal atitude referendaria o socialmente aceito quer dizer a maneira como vivemos o que já está consagrado pelo senso comum Assim em um gesto aparentemente banal como esse de modo consciente ou não mostramonos sempre aptos a referendar atitudes orientadas pelo paradigma racional da utilidade e em contrapartida caso alguma escolha repousasse sobre a velha lamparina essa outra atitude já que imprevisível seria provavelmente considerada infantil delírio de um sonhador ou até mesmo taxada como sintoma de desequilíbrio emocional De certa forma tal constatação levarnosia a reconhecer que somente na infância e nesse sentido devese estender o conceito de infância para além de uma mera etapa cronológica ou seja para toda criança que permanece viva em nós por ainda nos sentirmos capazes de magia seríamos capazes de recolher em sua face dupla a lâmpada encantada de Aladim FIGURA 1 RETRATO III JOAN MIRÓ FONTE Disponível em httpwwwbibliofiliaentreparentesis blogspotcom Acesso em 10 ago 2012 TÓPICO 1 O ADULTO VERSUS A CRIANÇA QUAL O MODELO 9 Dito de outro modo e eis um lance de dados da esperança há uma infância que se mantém viva independente da faixa etária em que nos encontremos como bem se exemplifica no trabalho singular do artista tal como se vê na parábola literária de Mário Quintana ou na feliz conjunção de infância e maturidade visualmente presente na tela de Joan Miró mais acima 3 O PENSAMENTO FELIZ ENTRE O LÚDICO E O LÚCIDO Li há tempos que num desses exóticos países do Oriente que um engenheiro inglês queria convencer o respectivo xá ou qualquer título que tivesse que em nome do progresso era urgente a construção de uma estrada de ferro E findou assim seu arrazoado A estrada de ferro fará com que em vez de trinta dias a lombo de camelo a viagem da capital à fronteira seja apenas de um dia Mas objetou o soberano o que é que vamos fazer dos vinte e nove dias que sobram QUINTANA 1979 p 1 Uma vez que pudemos constatar a presença marcante de uma relação assimétrica entre a infância e a maturidade inicialmente gestada no convívio familiar para depois desdobrarse em outras esferas sociais restanos refinar tanto um referencial teórico quanto estratégias pedagógicas que ajudassem a minimizar mais especificamente a partir de um ponto de vista literário os efeitos dessa tradição cultural assentada sobre a diferença hierárquica do adulto sobre a criança que sem nos darmos conta atravessa nossos gestos mais banais e cotidianos Em geral observase que o conhecimento mítico da realidade particularmente característico do imaginário infantil e assaz presente no trabalho dos artistas por não manter o pensamento congelado em ideias explicativas passa a ser encarado não como uma fonte possível de verdade que tivesse uma lógica própria mas ao contrário passa a ser visto como etapa transitória em direção a formas mais elevadas de reflexão que no mundo ocidental desde o ideal da república platônica deveriam levar aos ditames da consciência racional Platão que talvez tenha compreendido aquilo que forma a mente humana melhor do que alguns de nossos contemporâneos que querem suas crianças expostas apenas a pessoas reais e a acontecimentos do dia a dia sabia o quanto as experiências intelectuais contribuem para a verdadeira humanidade Ele sugeriu que os futuros cidadãos de sua república ideal começassem a educação literária com a narração de mitos em lugar de meros fatos ou dos assim chamados ensinamentos racionais BETTELHEIM 2007 p 51 Ora se o próprio Platão chegaria a admitir a narração de mitos tão necessária à criança e tão característica do fazer literário como um modo ainda que provisório de compreensão da realidade é porque ele também estava reconhecendo que a abordagem mítica da existência que acessa o real por meio UNIDADE 1 CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA 10 do lúdico e da fantasia mantendose aberto a um jogo de significações incessantes conteria um modo de consciência não apenas provisório mas também imprescindível à elaboração do próprio real É assim que antes de desenvolvermos a capacidade intelectual de expressar conhecimento por meio da ordem do cálculo e do que pode ser demonstrado com clareza que prioritariamente caracterizam a razão científica e a especulação filosófica a primeira forma de racionalidade que nos aparece está ainda fortemente impregnada por uma compreensão mágica e sobrenatural dos fenômenos a qual por não poder ser logicamente comprovada expressaria para uma cultura extremamente racional como a nossa apenas visões comunitárias primitivas ou formas arcaizantes de compreensão da realidade Você consegue se lembrar de alguns relatos não científicos que os adultos costumam dar às crianças para explicar determinados fenômenos da natureza Por exemplo que na tradição cristã as chuvas e os trovões seriam causados por uma faxina que São Pedro estaria fazendo no céu A chuva corresponderia ao momento em que ele joga a água no chão do céu e o trovão derivaria de algum tropeço como quando o santo arrastasse ou derrubasse alguma cadeira Lembra se de histórias similares a esta que apresentam uma forma mítica de compreensão da realidade Anoteas no diagrama a seguir Ora mas é justamente nessa forma infantil de racionalidade ou seja a consciência mítica que se expressa muito mais do que uma incoerência ou falta metodológica pois é dela que pode advir um saber portanto inacessível à racionalidade lógica seja através de narrativas ficcionais que revelam mundos paralelos seja por intermédio de ritos que apreendem manifestações provisórias da existência dos seres a sutil passagem entre o humano e o não humano Esses saberes de certo modo inapreensíveis à consciência racional estão presentes na arte e no pensamento infantil através da consciência mítica que de modo exemplar frequenta as histórias ficcionais e a invenção do maravilhoso aí se revelando não só como formas de compensação às verdades dolorosas atestadas pela racionalidade compensação que Aristóteles no livro Poética nomearia como a catarse promovida pela obra de arte que nos faz experimentar por instantes fingindo ser verdade o que de fato um dia será tal como a consciência paralisante de nossa morte mas sobretudo perpetuando um poder mágico que razão nenhuma até agora conseguiu desmontar TÓPICO 1 O ADULTO VERSUS A CRIANÇA QUAL O MODELO 11 Caroa acadêmicoa você já estudou sobre a catarse aristotélica no caderno de Teoria da Literatura Entretanto vale a pena observar as acepções deste termo retiradas do Dicionário Houaiss substantivo feminino 1 na religião medicina e filosofia da Antiguidade grega libertação expulsão ou purgação do que é estranho à essência ou à natureza de um ser e que por isso o corrompe 2 Rubrica estética teatro purificação do espírito do espectador através da purgação de suas paixões esp dos sentimentos de terror ou de piedade vivenciados na contemplação do espetáculo trágico 3 Rubrica medicina evacuação dos intestinos 4 Rubrica psicanálise operação de trazer à consciência estados afetivos e lembranças recalcadas no inconsciente liberando o paciente de sintomas e neuroses associadas a este bloqueio 5 Rubrica psicologia liberação de emoções ou tensões reprimidas comparável a uma abreação 6 Rubrica psicologia efeito liberador produzido pela encenação de certas ações esp as que fazem apelo ao medo e à raiva FONTE HOUASSIS VILLAR 2009 p 422 UNI Ademais se essa forma de racionalidade primitiva que nunca desaparece completamente se desenvolve em direção a formas mais elaboradas da consciência portanto mais afastadas de nossa gestualidade espontânea da compreensão da realidade através dos jogos da experimentação infantil do lúdico enfim é porque ela se faz como ponte entre o que em nós é ainda natureza e nossa outra forma de natureza mais sofisticada cultural FIGURA 2 A DANÇA HENRI MATISSE FONTE Disponível em httphenrimatisseladansefirstversionjpg Acesso em 20 ago 2012 UNIDADE 1 CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA 12 De modo geral o mundo adulto confere ao lúdico apenas uma importância parcial secundária e temporalmente localizada em determinada etapa do desenvolvimento infantil Assim embora ela seja admitida como atividade necessária ao crescimento saudável da criança a atividade lúdica acaba por ser reduzida ao formato útil de brincadeiras e jogos destinados a promover a necessária esta sim uma função importante internalização de regras padrões e comportamentos sociais Dessa forma se estabelece uma relação do jogo com os demais fenômenos da vida ao mesmo tempo em que o marginaliza por não se inserir no conjunto de atividades práticas Eis por que o jogo é aceito como atividade infantil e como tal é estimulado contanto que não haja necessidade de a criança participar da manutenção da família MAGALHÃES In ZILBERMAN 1984 p 26 Visto dessa maneira o jogo que de um modo quase unânime é compreendido como a forma mais expressiva do ludismo infantil acaba por demonstrar a visão excludente que de modo exemplar a sociedade adulta sempre voltada para o que é útil e pragmático desde a ascensão burguesa do capitalismo mantém com a infância Com frequência o jogo é reconhecido como tendo uma função importante na vida infantil mas se espera que ao longo do processo de desenvolvimento a criança se afaste do jogo e o substitua por atividades úteis só retornando ao comportamento lúdico de forma ocasional como uma pausa recreativa MAGALHÃES In ZILBERMAN 1984 p 26 O termo lúdico advém do latim mais especificamente da palavra ludus que inicialmente significava jogo e que se associava dessa forma a movimento espontâneo à brincadeira ou ao ato simples de jogar Entretanto com a evolução da sociedade burguesa a expressão paulatinamente ampliaria sua conotação semântica de certo modo expandindo seu sentido inicial vinculado à espontaneidade em proveito do sentido de necessidade isto é como lazer compensatório em relação às atividades laborais diárias UNI Há de se concluir que o jogo tanto em sua modalidade corporal mais característica de brincadeiras marcadas ora por uma gestualidade rítmica incessante corridas competições jogos de esconder etc ora por enleios ou formas mais serenas de diversão brincadeiras de casinha jogos com bonecas passar o anel etc quanto em sua modalidade linguística como nos conhecidos jogos com palavras travalíngua etc o jogo ou o lúdico enfim afora cumprirem a tarefa ordeira de facilitar a internalização de regras sociais pela criança acabam geralmente enquadrados no papel secundário de preencher o tempo inútil e ocioso dos pequenos TÓPICO 1 O ADULTO VERSUS A CRIANÇA QUAL O MODELO 13 Há porém uma característica que apesar da ausência de uniformidade distingue qualquer tipo de jogo enquadrandoo num determinado comportamento o jogo se coloca como uma atividade marginal perante atividades como comer e trabalhar porque não é gerado por uma necessidade biológica nem por um interesse pragmático Não é uma obrigação nasce da ociosidade e com esse caráter se opõe ao que se chama de atividades sérias MAGALHÃES In ZILBERMAN 1984 p 26 Assim muito mais do que atestar o lugar do jogo e do brinquedo de criança como espécies de gestualidades pueris destinadas exclusivamente a preencher uma ociosidade gratuita e vazia esse modo adulto de compreender o lúdico como ímpeto sem direcionamento objetivo ou qualquer uso prático demarca entretanto o lugar que o lúdico reserva ao próprio adulto isto é como o lugar do lazer do descanso ou como repositor das energias consumidas em atividades úteis como o trabalho e outros compromissos sociais O adulto confere ao jogo um valor muito limitado Reconhece sua eficácia na restauração das energias gastas no trabalho e acredita no seu valor terapêutico quando a tensão do empenho produtivo se tornou excessiva MAGALHÃES In ZILBERMAN 1984 p 25 Você acadêmicoa consegue lembrar dos jogos e brincadeiras praticados na infância ou que outras crianças praticavam Você recorda também de que modo esses jogos eram vistos isto é que valor lhes eram atribuídos pelas próprias crianças e pelos adultos daquela época A partir do ponto de vista do jogo encontramos um saber comum tanto à infância quanto à verdadeira especulação filosófica Enfim muito mais do que compreender o lúdico como lugar de passagem entre a consciência mítica e a consciência racional tratase de apontar seu poder de restituição de uma atmosfera mágica capacidade de admiração de espanto diante da realidade que se faz presente no simples ato de viver no ato de admirarse com as coisas que está na raiz de toda sorte de filosofia isto é na compreensão dos dados existenciais Ademais é de importância capital assinalar a permanência do lúdico tanto na concepção quanto na fruição da obra de arte posto que ela regra geral tende a quebrar a seriedade da compreensão lógica abrindo ao menos por virtude de semelhança com o real possibilidades de se chegar a outras formas de verdade a saber não planejadas surpreendentes por vezes mágicas Vamos ler o texto Magia e Felicidade Sublinhe o que você considerou mais importante Pense na relação jogo ludicidade criança e felicidade UNIDADE 1 CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA 14 LEITURA COMPLEMENTAR MAGIA E FELICIDADE Giorgio Agamben Benjamin disse certa vez que a primeira experiência que a criança tem do mundo não é a de que os adultos são mais fortes mas sua incapacidade de magia A afirmação proferida sob o efeito de uma dose de vinte miligramas de mescalina não é por isso menos exata É provável aliás que a invencível tristeza que às vezes toma conta das crianças nasça precisamente dessa consciência de não serem capazes de magia O que podemos alcançar por nossos méritos e esforço não pode nos tornar realmente felizes Só a magia pode fazêlo Isso não passou despercebido ao gênio infantil de Mozart que em carta a Bullinger vislumbrou com precisão a secreta solidariedade entre magia e felicidade Viver bem e viver feliz são duas coisas diferentes e a segunda sem alguma magia certamente não me tocará Para isso deveria acontecer algo verdadeiramente fora do natural As crianças como os personagens das fábulas sabem perfeitamente que para serem felizes precisam conquistar o apoio do gênio da garrafa guardar em casa o burrinhofazdinheiro asino cacabaiocchi ou a galinha dos ovos de ouro E em todas as ocasiões conhecer o lugar e a fórmula vale bem mais do que esforçarse honestamente para atingir um objetivo Magia significa precisamente que ninguém pode ser digno da felicidade que conforme os antigos sabiam a felicidade à medida do homem é sempre hybris é sempre prepotência e excesso Mas se alguém conseguir dobrar a sorte com o engano se a felicidade depender não do que ele é mas de uma noz encantada ou de um abretesésamo então e só então pode realmente considerarse bem aventurado Contra essa sabedoria pueril que afirma que a felicidade não é algo que se possa merecer a moral colocou sempre sua objeção E o fez com as palavras do filósofo que menos do que qualquer outro compreendeu a diferença entre viver dignamente e viver feliz O que em ti tende ardorosamente para a felicidade escreve Kant é a inclinação o que depois submete tal inclinação à condição de que deves primeiro ser digno da felicidade é tua razão Mas de uma felicidade de que podemos ser dignos nós ou a criança em nós não sabemos o que fazer É uma desgraça sermos amados por uma mulher porque o merecemos E como é chata a felicidade que é prêmio ou recompensa por um trabalho bem feito Na antiga máxima segundo a qual quem se dá conta de ser feliz já deixou de sêlo mostrase que o estreitamento do vínculo entre magia e felicidade não é simplesmente imoral e que ele pode até ser sinal de uma ética superior A felicidade tem pois com seu sujeito uma relação paradoxal Quem é feliz não pode saber que o é o sujeito da felicidade não é um sujeito não tem a forma de uma consciência mesmo que fosse a melhor Nesse caso a magia faz valer sua exceção a única que permite a um homem dizerse ou considerarse feliz Quem sente prazer de algo por encanto escapa da hybris implícita na consciência da TÓPICO 1 O ADULTO VERSUS A CRIANÇA QUAL O MODELO 15 felicidade porque a felicidade embora ele saiba que a tenha em certo sentido não é sua Assim Júpiter que se une à bela Alcmena assumindo as feições do consorte Anfitrião não sente prazer com ela como Júpiter Nem sequer apesar das aparências como Anfitrião Sua alegria pertence totalmente ao encanto e se sente prazer consciente e puramente só com o que obteve pelos caminhos tortuosos da magia Só o encantado pode dizer sorrindo eu e só a felicidade que nem sonharíamos merecer é realmente merecida Essa é a razão última do preceito segundo o qual só existe sobre a terra uma possibilidade de felicidade crer no divino e não aspirar a alcançálo uma variável irônica é em conversa de Kafka com Janouch a afirmação de que há esperança mas não para nós Essa tese aparentemente ascética só se torna inteligível se entendermos o sentido do não para nós Não quer dizer que a felicidade esteja reservada apenas a outros felicidade significa precisamente para nós mas que ela só nos cabe no ponto em que não nos estava destinada não era para nós Ou seja por magia Nesse momento quando a arrebatamos da sorte ela coincide inteiramente com o fato de nos sabermos capazes de magia com o gesto com que afastamos de uma vez por todas a tristeza infantil Se for assim se não houver felicidade a não ser sentindonos capazes de magia então se torna transparente também a enigmática definição dada por Kafka sobre a magia ao escrever que se chamarmos a vida com o nome justo ela vem porque esta é a essência da magia que não cria mas chama Tal definição está de acordo com a antiga tradição que cabalistas e necromantes seguiram escrupulosamente em todos os tempos segundo a qual a magia é essencialmente uma ciência dos nomes secretos Cada coisa cada ser tem além de seu nome manifesto um nome escondido ao qual não pode deixar de responder Ser mago significa conhecer e evocar esse arquinome Disso nascem as intermináveis listas de nomes diabólicos ou angélicos com as quais o necromante garante para si o domínio sobre potências espirituais O nome secreto é para ele apenas a sigla de seu poder de vida e de morte sobre a criatura que o traz Há porém outra e mais luminosa tradição segundo a qual o nome secreto não é tanto a chave da sujeição da coisa à palavra do mago quanto sobretudo o monograma que sanciona sua libertação com relação à linguagem O nome secreto era o nome com o qual a criatura havia sido chamada no Éden e ao pronunciálo os nomes manifestos e toda a babel dos nomes acabaram em pedaços Por isso a criança nunca fica tão contente quanto quando inventa uma língua secreta própria Sua tristeza não provém tanto da ignorância dos nomes mágicos mas do fato de não conseguir se desfazer do nome que lhe foi imposto Logo que o consegue logo que inventa um novo nome ela ostentará entre as mãos o passaporte que a encaminha à felicidade Ter um nome é a culpa A justiça é sem nome assim como a magia Livre de nome bemaventurada a criatura bate à porta da aldeia dos magos onde só se fala por gestos FONTE AGAMBEN Giorgio Profanações São Paulo Boitempo 2007 p 2325 16 Neste tópico você viu que Algumas relações se estabelecem entre arte e infância com o intuito de questionar em que medida essas mesmas relações podem estar influenciando a postura social dos adultos e mais especificamente repercutindo na postura didática dos professores em sala de aula Pôde observar a condição assimétrica que se estabelece entre a magia infantil e a lógica do adulto ou seja no quanto essa forma de relação tem afetado a motivação e o desempenho escolar dos alunos Pôde refletir que para uma concepção diferenciada de escola fazse necessária a distância de pontos de vista exclusivamente lógicos e racionais e tal qual uma obra de arte literária a escola passe a incorporar referenciais lúdicos em todas as dimensões do ensino A presença de uma relação paradoxal entre a vida em sua forma espontânea e o desenvolvimento regrado da criança na medida em que à pretendida evolução social têm correspondido restrições da espontaneidade e da expressão dos indivíduos seja pelo aprisionamento de sua gestualidade lúdica seja pela limitação da expressividade infantil que poderiam reencontrar seu solo expressivo não só através de brincadeiras mas também por meio de um uso estético literário da linguagem Pôde compreender o lúdico como algo que possui um poder de restituição de uma atmosfera mágica da capacidade de admiração e de espanto diante da realidade O que comumente acontece em nossa sociedade e consequentemente na escola é a percepção do jogo ou o lúdico como facilitador para a internalização de regras sociais pela criança geralmente enquadrados no papel secundário de preencher o tempo inútil e ocioso dos pequenos RESUMO DO TÓPICO 1 17 Prezadoa acadêmicoa após ter completado a leitura do presente tópico reflita sobre as questões elencadas a seguir 1 Você consegue observar que independente dos meios ou mídias impressa cinematográfica web etc em que é veiculada a transmissão de saberes entre gerações persistem relações assimétricas entre o universo adulto e o mundo da criança 3 Como você proporia uma atividade em sala de aula que estabelecesse um diálogo fora da via tradicional professoraluno mas que considerasse em condições de igualdade os universos de sua geração e a de seus alunos AUTOATIVIDADE 2 Você concordaria que ao considerarmos a argumentação do presente Caderno de Estudos há uma relação evidente entre a infelicidade adulta e a perda da inocência infantil 18 19 TÓPICO 2 A LITERATURA ENTRA NO JOGO UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO Neste tópico buscaremos estabelecer uma aliança mais profícua entre a literatura e a palavra a partir de uma breve fundamentação teórica acerca dos modos de compreensão do objeto literário para depois estabelecermos algumas diferenças entre o literário e o não literário Assim começaremos por mapear as características principais que definem um texto literário discorrendo sobre alguns dos elementos estruturais que o definem tema que será aprofundado na sequência desses estudos refletindo especialmente sobre os repertórios voltados para a criança que como vimos geralmente evidenciam uma tradição pedagógica baseada na transmissão de valores do universo adulto 2 A ARTE E A PALAVRA Certo autor famoso dividiu um livro seu em duas partes na primeira contos reais na segunda contos fantásticos Resultado temse a frustrada impressão de que ficou cada uma das partes amputada da outra quando na realidade os dois mundos convivem Por que chamar de invisível ou fantástico a esse mundo que por enquanto não conseguimos apreender em contraposição a este mundo que está na cara QUINTANA 1979 p 73 De um modo geral podemos entender a literatura como uma forma de compreensão da realidade que por não ter um compromisso direto com a verdade instituída pela ciência pela moral vigente ou pela racionalidade lógica pode valerse de uma forma de discurso ao qual chamamos de discurso ficcional que consegue reelaborar o real de um ponto de vista inusitado e na maior parte das vezes por saber fazêlo de uma maneira prazerosa tem a virtude de promover através de um ponto de vista diferenciado um certo nível de instrução e conhecimento ao mesmo tempo em que diverte o leitor UNIDADE 1 CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA 20 FIGURA 3 MENINAS PABLO PICASSO FONTE Disponível em httpwwwcoligacopoeticablogspot om Acesso em 10 ago 2012 Caroa acadêmicoa observe que João Cabral de Melo Neto 1997 p 287 por meio de um poema transcrito a seguir define a essência da arte e de modo especial de sua própria literatura UNI Miró sentia a mão direita demasiado sábia e que de saber tanto já não podia inventar nada Quis então que desaprendesse o muito que aprendera a fim de encontrar a linha ainda fresca da esquerda Pois que ela não pôde ele pôsse a desenhar com esta até que se operando no braço direito ele a enxerta A esquerda se não é canhoto é mão sem habilidade reaprende a cada linha cada instante a recomeçarse TÓPICO 2 A LITERATURA ENTRA NO JOGO 21 É assim que o autor no poema citado ao tentar apreender algumas das essências que perpassam a pintura do artista plástico Joan Miró acaba capturando os modos de fazer e de fruição comuns a qualquer obra de arte inclusive à literatura Mais do que isso o poetateórico demonstra o que viria a ser não apenas uma ação autêntica válida como modelo de composição de obras pictóricas ou literárias mas também sugere de modo sutil em que consistiria uma postura inovadora diante da vida a saber a de reaprender a cada instante a recomeçarse Façamos uma outra reflexão você já observou o quanto é raro no dia a dia utilizarmos uma via inesperada fora do comum de nossa rotina habitual Pense por exemplo no percurso que você faz de casa para o trabalho do trabalho para a universidade ou viceversa Não é fato que geralmente repetimos o caminho mais fácil rápido e usual Percebe que raramente nos questionamos sobre isso É como se quem é canhoto raramente experimentasse a mão direita ou a esquerda para quem é destro Dando continuidade às reflexões se possível rememore algumas ações que surpreenderam a você mesmoa Anoteas aqui Anotou Então continuemos Nesse sentido uma autêntica aparição da infância independeria da idade cronológica ou da faixa etária em que se encontre o indivíduo pois a ela corresponderia toda ação mediada pela mão esquerda isto é por uma atitude que se põe fora do alcance tanto das formas de conhecimento previsíveis quanto dos modos de construção da realidade realizados a partir da lógica usual Fazendo uma analogia com o poema citado significa dizer que a infância decorreria de uma postura de distanciamento das verdades dogmáticas metaforicamente produzidas pelos usos modelares da mão direita Seguindo essa linha de raciocínio interessa mais à literatura enquanto forma de arte ligada à palavra não por descrever os fatos como eles são e dessa forma conduzilo pela ação de uma mão direita para legitimar alguma hipótese científica ou para dar veracidade a alguma especulação filosófica mas ao contrário à literatura interessam os fatos como eles deveriam ou poderiam vir a ser fiel apenas ao critério da verossimilhança isto é de alguma verdade postulada não como real mas como possível A literatura é chamada de ficção isto é imaginação de algo que não existe particularizado na realidade mas no espírito de seu criador O objeto da criação poética não pode portanto ser submetido à verificação extratextual A literatura cria o seu próprio universo semanticamente UNIDADE 1 CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA 22 autônomo em relação ao mundo em que vive o autor com seus seres ficcionais seu ambiente imaginário seu código ideológico sua própria verdade pessoas metamorfoseadas em animais animais que falam a linguagem humana tapetes voadores cidades fantásticas amores incríveis situações paradoxais sentimentos contraditórios etc Mesmo a literatura mais realista é fruto de imaginação pois o caráter ficcional é uma prerrogativa indeclinável da obra literária DONOFRIO 2006 p 19 Uma das consequências de a literatura ser uma forma de tratamento artístico da palavra que age por verossimilhança portanto descomprometida com as verdades factuais é que ao estabelecermos uma analogia comparativa entre a ficção literária e a realidade tal qual a compreendemos aquela acaba por mostrarse muitas vezes mais eficaz e autêntica do que os relatos presos a descrições objetivas da vida diária o que particularmente se verifica nos relatos destinados à criança A cultura dominante deseja fingir particularmente no que se refere às crianças que o lado obscuro do homem não existe e professa a crença num aprimoramento otimista Em contrapartida essa é exatamente a mensagem que os contos de fadas transmitem à criança de forma variada que uma luta contra dificuldades graves na vida é inevitável é parte intrínseca da existência humana mas que se a pessoa não se intimida e se defronta resolutamente com as provações inesperadas e muitas vezes injustas dominará todos os obstáculos e ao fim emergirá vitoriosa BETTELHEIM 2007 p 15 Assim enquanto na vida real não nos é possível explicitar nossas emoções mais baixas ou indesejáveis que de fato sentimos em relação aos outros a exemplo do fingimento que passa a ser também uma das características mais marcantes de nossa existência cotidiana em uma história ficcional por sua vez as personagens podem se expressar inteiramente revelando suas raivas baixezas temores e dessa forma agem de um modo mais autêntico do que o fazemos na vida real Então da relação entre a literatura e a vida ou entre o ficcional e a realidade armase um paradoxo evidente a saber enquanto na vida real que não é fingimento estamos continuamente fingindo portanto fazendo dela uma mentira na literatura por outro lado que por verossimilhança deve ser fingimento as personagens por não necessitarem fingir acabam sendo mais reais do que as pessoas que encontramos fora dos livros TÓPICO 2 A LITERATURA ENTRA NO JOGO 23 Conceito de verossimilhança a obra de arte por não estar diretamente relacionada com o mundo exterior não é verdadeira em si mesma entretanto possui equivalência de verdade ou seja a ela se assemelha Morfologicamente a palavra verossimilhança pode desmembrarse em dois morfemas que nos revelam diretamente o seu sentido a saber vero de verdadeiro e similhança de semelhante a Assim a partir de sua raiz etimológica encontramos seu significado o de ser semelhante à verdade Foi com o conceito de verossimilhança que Aristóteles corrigiu a compreensão errônea da filosofia platônica que condenava a obra de arte como falsa e inadequada à sociedade por aquela não ser reveladora da verdade Para Aristóteles bem ao contrário dizer a verdade era atributo exclusivo da racionalidade filosófica e não da arte a qual deveria fingir ou ser semelhante à verdade para poder deleitar agradar e envolver o público ou o receptor da obra UNI Eis portanto uma das razões pelas quais a arte é tão necessária ao homem embora ela esteja constantemente variando de modo de expressão seja na pintura na literatura no cinema etc ela acaba por ser uma fonte autêntica e talvez uma das mais seguras de compreensão da realidade A criança necessita muito particularmente que lhe sejam dadas sugestões em forma simbólica sobre o modo como ela pode lidar com essas questões e amadurecer com segurança As histórias seguras não mencionam nem a morte nem o envelhecimento os limites à nossa existência nem tampouco o desejo de vida eterna O conto de fadas em contraste confronta a criança honestamente com as dificuldades humanas básicas BETTELHEIM 2007 p 15 Assim a um certo momento essa virtude da arte seria não só reconhecida mas em larga medida traduzida para uma outra finalidade qual seja a de converter através da escola e em nome da ordem vigente a liberdade artística em uma moralidade adequada à formação da criança cabendo à educação o papel de garantir a permanência da organização social através da transmissão de regras a um sujeito reconhecido apenas na sua reflexividade a escola se torna o lugar da consagração do sistema e a criança se transforma em aluno aquele que deve aprender as regras transmitidas MAGALHÃES In ZILBERMAN 1984 p 46 Pensar sobre a literatura é também abrir espaço para discussões a respeito da função que ela exerce na sociedade É discorrer sobre a arte no espaço escolar Vejamos caroa acadêmicoa a importância da literatura na sociedade UNIDADE 1 CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA 24 3 A LITERATURA COMO FONTE HUMANIZADORA A literatura e aqui incluímos também outras manifestações artísticas atende como discutimos anteriormente ao mundo da imaginação propicia um projetarse para o mundo dos sonhos para o lúdico para a fruição essenciais à vida do homem A partir dela poderemos compreender interpretar modificar ou eternizar relações sociais Azevedo 2007 afirma que embora não faça sentido discorrer sobre a função da literatura sua importância é indiscutível pois é por intermédio dela que entramos em contato com os temas humanos como a paixão a amizade o autoconhecimento a angústia o ciúme a mentira a existência de diferentes pontos de vista sobre determinado assunto Além disso para o autor o contato com temas da vida concreta e com vozes diferentes das nossas pode por meio da identificação constituir um extraordinário recurso de humanização e sociabilização Em tempos de consumismo sem limites individualismo doentio e coisificação do homem com efeitos nefastos numa sociedade desequilibrada como a nossa a leitura de ficção e poesia pode ter um papel regenerador e insubstituível AZEVEDO 2007 p 66 Podemos afirmar que para a literatura são atribuídas natureza e funções distintas de acordo com a realidade cultural e social de cada época Antonio Candido assinala três funções para a literatura Vejamos Você já fantasiou observando as estrelas o mar ou as pessoas Já fantasiou sobre o amor Sobre uma cena de novela Ouvindo uma música Nós possuímos mesmo que como vimos por vezes tolhida a capacidade de fantasiar e para Candido essa modalidade possibilitada também por meio da ficção é muito rica É o que ele nomeia de função psicológica Ainda segundo o autor a fantasia tem uma estreita relação com a realidade e é por meio dessa ligação com o real que a literatura passa a exercer outra função a formadora que atua como instrumento de formação e educação do ser humano por exprimir realidades permeadas pelas ideologias Nas palavras de Candido 2002 p 85 a literatura não corrompe nem edifica mas trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal humaniza em sentido profundo porque faz viver Ainda continua o autor a literatura possui outra propriedade qual seja uma força humanizadora não como sistema de obras mas como algo que exprime o homem e depois atua na própria formação do homem E dentre esta capacidade a de confirmar a humanidade ao homem CANDIDO 2002 p 80 comporta uma expressividade que corrobora por educar o gosto visual serve à exploração das formas expressa a natureza e reflete a complexidade do ser humano TÓPICO 2 A LITERATURA ENTRA NO JOGO 25 Há que se considerar que a literatura se vale da língua fonte de manifestação de dimensões padrões e momentos culturais Umberto Eco 2003 explicita essa questão quando afirma que a língua vai para onde quer mas é sensível às sugestões da literatura Sem Dante não haveria um italiano unificado Quando Dante em vulgari eloquentia analisa e condena os vários dialetos italianos e se propõe a forjar um novo vulgar ilustre ninguém apostaria em semelhante ato de soberba e no entanto ele ganhou com a Comédia a sua partida ECO 2003 p 1011 Por intermédio dela a literatura são reconhecidos os valores da humanidade pois surge como um mundo aberto um convite à liberdade de interpretação e à criatividade ECO 2003 p 21 Assim a literatura desde as origens está vinculada à função de atuar sobre as mentes onde se decidem as vontades ou as ações e sobre os espíritos onde se expandem as emoções paixões desejos sentimentos de toda ordem No encontro com a Literatura ou com a Arte em geral os homens têm a oportunidade de ampliar transformar ou enriquecer sua própria experiência de vida em um grau de intensidade não igualada por nenhuma outra atividade COELHO 2000 p 29 A literatura e a formação do homem de Antonio Candido é o texto de uma conferência pronunciada na XXIV Reunião Anual da SBPC São Paulo julho de 1972 NOTA No entanto para entender literatura dessa forma é necessário que se estabeleça um exercício de diálogo com o texto Somente assim a literatura se mostrará como uma oportunidade de compreensão do homem e de tudo o que o cerca A literatura opera sobre o pensamento É um fenômeno de criatividade e enquanto atividade cognitiva contribui para a ampliação do processo perceptivo do leitor Daí a necessidade da presença do livro literário em sala de aula fonte inesgotável de conhecimentos e descobertas O exame dos elementos formativos em textos destinados à criança coloca uma questão que transcende o gênero da literatura infantil abrangendo o problema da função social da arte Portanto toda arte desempenha um papel na formação da sociedade e nesse sentido é educativa O critério perante essa característica inerente à obra é a distinção entre aquelas obras que são apenas eco de lugares comuns estéticos e ideológicos e aquelas que não apenas conservam experiências adquiridas mas conduzem ao questionamento dos convencionalismos de interpretação e comportamento pela apresentação UNIDADE 1 CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA 26 de novas perspectivas A obra emancipatória é prospectiva porque pela amostragem de novas possibilidades propicia experiências futuras a obra convencional é retrospectiva porque valida experiências passadas sem redimensionálas criticamente MAGALHÃES In ZILBERMAN 1984 p 54 Significa dizer que a escola deve proporcionar aos jovens contato com as mais variadas produções literárias favorecendo uma atitude de curiosidade de interesse pela descoberta com vistas à formação de um leitor capaz de dialogar com textos e neles reconhecerse e distinguir expressões estéticas e artísticas Umberto Eco enfatiza que a literatura possui e mantém a língua como patrimônio coletivo e contribui para a sua formação na medida em que intensifica um modo de expressão de um grupo UNI Caroa acadêmicoa continuaremos refletindo sobre a palavra literária que assume vida própria com novas significações que diferem daquelas usualmente utilizadas nos textos não literários mas antes veja como Ítalo Calvino concebe os clássicos Por que ler os clássicos Comecemos com algumas propostas de definição 1 Os clássicos são aqueles livros dos quais em geral se ouve dizer Estou relendo e nunca Estou lendo Isso acontece pelo menos com aquelas pessoas que se consideram grandes leitores não vale para a juventude idade em que o encontro com o mundo e com os clássicos como parte do mundo vale exatamente enquanto primeiro encontro O prefixo reiterativo antes do verbo ler pode ser uma pequena hipocrisia por parte dos que se envergonham de admitir não ter lido um livro famoso Para tranquilizálos bastará observar que por maiores que possam ser as leituras de formação de um indivíduo resta sempre um número enorme de obras que ele não leu Isso confirma que ler pela primeira vez um grande livro na idade madura é um prazer extraordinário diferente mas não se pode dizer maior ou menor se comparado a uma leitura da juventude A juventude comunica ao ato de ler como a qualquer outra experiência um sabor e uma importância particulares ao passo que na maturidade apreciamse deveriam ser apreciados TÓPICO 2 A LITERATURA ENTRA NO JOGO 27 muitos detalhes níveis e significados a mais Podemos tentar então esta outra fórmula de definição 2 Dizemse clássicos aqueles livros que constituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado mas constituem uma riqueza não menor para quem se reserva a sorte de lêlos pela primeira vez nas melhores condições de apreciálos De fato as leituras da juventude podem ser pouco profícuas pela impaciência distração inexperiência das instruções para o uso inexperiência da vida Podem ser talvez ao mesmo tempo formativas no sentido de que dão uma forma às experiências futuras fornecendo modelos recipientes termos de comparação esquemas de classificação escalas de valores paradigmas de beleza todas coisas que continuam a valer mesmo que nos recordemos pouco ou nada do livro lido na juventude Relendo o livro na idade madura acontece reencontrar aquelas constantes que já fazem parte de nossos mecanismos interiores e cuja origem havíamos esquecido Existe uma força particular da obra que consegue fazerse esquecer enquanto tal mas que deixa sua semente A definição que dela podemos dar então será 3 Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória mimetizandose como inconsciente coletivo ou individual Segundo Calvino deveria existir um tempo na vida adulta específico para reler as leituras feitas na juventude pois nós mudamos o foco ou os focos serão novos outros Portanto conforme o autor usar o verbo ler ou o verbo reler não tem muita importância De fato poderíamos dizer 4 Toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira 5 Toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma releitura A definição 4 pode ser considerada corolário desta 6 Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer Ao passo que a definição 5 remete para uma formulação mais explicativa como 7 Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes UNIDADE 1 CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA 28 Calvino argumenta sobre o poder que a leitura de um clássico possui Existe uma inversão de valores muito difundida segundo a qual a introdução o instrumental crítico a bibliografia são usados como cortina de fumaça para esconder aquilo que o texto tem a dizer e que só pode dizer se o deixarmos falar sem intermediários que pretendem saber mais do que ele Podemos concluir que 8 Um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si mas continuamente as repele para longe O clássico não necessariamente nos ensina algo que não sabíamos às vezes descobrimos nele algo que sempre soubéramos ou acreditávamos saber mas desconhecíamos que ele o dissera primeiro ou que de algum modo se liga a ele de maneira particular E mesmo esta é uma surpresa que dá muita satisfação como sempre dá a descoberta de uma origem de uma relação de uma pertinência De tudo isso poderíamos derivar uma definição do tipo 9 Os clássicos são livros que quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer quando são lidos de fato mais se revelam novos inesperados inéditos Essa possibilidade advém do fato de a leitura de um clássico favorecer o estabelecimento de uma relação pessoal com quem o lê Assim Se a centelha não se dá nada feito os clássicos não são lidos por dever ou por respeito mas só por amor Exceto na escola a escola deve fazer com que você conheça bem ou mal um certo número de clássicos entre os quais ou em relação aos quais você poderá depois reconhecer os seus clássicos A escola é obrigada a darlhe instrumentos para efetuar uma opção mas as escolhas que contam são aquelas que ocorrem fora e depois de cada escola 10 Chamase clássico um livro que se configura como equivalente do universo à semelhança dos antigos talismãs Com esta definição nos aproximamos da ideia de livro total como sonhava Mallarmé Mas um clássico pode estabelecer uma relação igualmente forte de oposição de antítese Tudo aquilo que JeanJacques Rousseau pensa e faz me agrada mas tudo me inspira irresistível desejo de contradizêlo de criticálo de brigar com ele Aí pesa a sua antipatia particular num plano temperamental mas por isso seria melhor que o deixasse de lado contudo não posso deixar de incluílo entre os meus autores Direi portanto 11 O seu clássico é aquele que não pode serlhe indiferente e que serve para definir a você próprio em relação e talvez em contraste com ele Creio não ter necessidade de justificarme se uso o termo clássico sem fazer distinções de antiguidade de estilo de autoridade Para a história de TÓPICO 2 A LITERATURA ENTRA NO JOGO 29 todas essas acepções do termo consultese o exausto verbete Clássico de Franco Fortini na Enciclopédia Einaudi vol III Aquilo que distingue o clássico no discurso que estou fazendo talvez seja só um efeito de ressonância que vale tanto para uma obra antiga quanto para uma moderna mas já com um lugar próprio numa comunidade cultural Poderíamos dizer 12 Um clássico é um livro que vem antes de outros clássicos mas quem leu antes os outros e depois lê aquele reconhece logo o seu lugar na genealogia A esta altura não posso mais adiar o problema decisivo de como relacionar a leitura dos clássicos com todas outras leituras que não sejam clássicas Problema que se articula com perguntas como Por que ler os clássicos em vez de concentrar nos em leituras que nos façam entender mais a fundo o nosso tempo e Onde encontrar o tempo e a comodidade da mente para ler clássicos esmagados que somos pela avalanche de papel impresso da atualidade É claro que se pode formular a hipótese de uma pessoa feliz que dedique o tempoleitura de seus dias exclusivamente a ler Lucrécio Luciano Montaigne Erasmo Quevedo Marlowe O Discours de la méthode Wilhelm Meister Coleridge Ruskin Proust e Valéry com algumas divagações para Murasaki ou para as sagas islandesas Tudo isso sem ter de fazer resenhas do último livro lançado nem publicações para o concurso de cátedra e nem trabalhos editoriais sob contrato com prazos impossíveis Essa pessoa bem aventurada para manter sua dieta sem nenhuma contaminação deveria abster se de ler os jornais não se deixar tentar nunca pelo último romance nem pela última pesquisa sociológica Seria preciso verificar quanto um rigor semelhante poderia ser justo e profícuo O dia de hoje pode ser banal e mortificante mas é sempre um ponto em que nos situamos para olhar para a frente ou para trás Para poder ler os clássicos temos de definir de onde eles estão sendo lidos caso contrário tanto o livro quanto o leitor se perdem numa nuvem atemporal Assim o rendimento máximo da leitura dos clássicos advém para aquele que sabe alternála com a leitura de atualidades numa sábia dosagem E isso não presume necessariamente uma equilibrada calma interior pode ser também o fruto de um nervosismo impaciente de uma insatisfação trepidante Talvez o ideal fosse captar a atualidade como o rumor do lado de fora da janela que nos adverte dos engarrafamentos do trânsito e das mudanças do tempo enquanto acompanhamos o discurso dos clássicos que soa claro e articulado no interior da casa Mas já é suficiente que a maioria perceba a presença dos clássicos como um reboar distante fora do espaço invadido pelas atualidades como pela televisão a todo volume Acrescentemos então 13 É clássico aquilo que tende a relegar as atualidades à posição de barulho de fundo mas ao mesmo tempo não pode prescindir desse barulho de fundo 14 É clássico aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível UNIDADE 1 CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA 30 Resta o fato de que ler os clássicos parece estar em contradição com o nosso ritmo de vida que não conhece os tempos longos o respiro do otium humanista e também em contradição com o ecletismo da nossa cultura que jamais saberia redigir um catálogo do classicismo que nos interessa Eram as condições que se realizavam plenamente para Leopardi dada a sua vida no solar paterno o culto da antiguidade grega e latina e a formidável biblioteca doada pelo pai Monaldo incluindo a literatura italiana completa mais a francesa com exclusão dos romances e em geral das novidades editoriais relegadas no máximo a um papel secundário para confronto da irmã o teu Stendhal escrevia a Paolina Mesmo suas enormes curiosidades científicas e históricas Giacomo as satisfazia com textos que não eram nunca demasiado up todate os costumes dos pássaros de Buffon as múmias de Frederico Ruysch em Fontenelle a viagem de Colombo em Robertson Hoje uma educação clássica como a do jovem Leopardi é impensável e sobretudo a biblioteca do conde Monaldo explodiu Os velhos títulos foram dizimados mas os novos se multiplicaram proliferando em todas as literaturas e culturas modernas Só nos resta inventar para cada um de nós uma biblioteca ideal de nossos clássicos e diria que ela deveria incluir uma metade de livros que já lemos e que contaram para nós e outra de livros que pretendemos ler e pressupomos possam vir a contar Separando uma seção a ser preenchida pelas surpresas as descobertas ocasionais Verifico que Leopardi é o único nome da literatura italiana que citei Efeito da explosão da biblioteca Agora deveria reescrever todo o artigo deixando bem claro que os clássicos servem para entender quem somos e aonde chegamos e por isso os italianos são indispensáveis justamente para serem confrontados com os estrangeiros e os estrangeiros são indispensáveis exatamente para serem confrontados com os italianos Depois deveria reescrevêlo ainda uma vez para que não se pense que os clássicos devem ser lidos porque servem para qualquer coisa A única razão que se pode apresentar é que ler os clássicos é melhor do que não ler os clássicos E se alguém objetar que não vale a pena tanto esforço citarei Cioran não um clássico pelo menos por enquanto mas um pensador contemporâneo que só agora começa a ser traduzido na Itália Enquanto era preparada a cicuta Sócrates estava aprendendo uma ária com a flauta Para que lhe servirá perguntaramlhe Para aprender esta ária antes de morrer FONTE CALVINO Ítalo Por que ler os clássicos Ed Cia das Letras 2004 31 RESUMO DO TÓPICO 2 Neste tópico você viu que A literatura é uma linguagem especial que tece a palavra que atua no pensamento humano à qual são atribuídas natureza e funções distintas de acordo com a realidade cultural e social de cada época assunto sobre o qual refletiremos a seguir A literatura possui uma importância indiscutível pois a partir da literatura é que somos levados a refletir sobre a paixão a amizade o autoconhecimento a angústia o ciúme a mentira e a existência de diferentes pontos de vista sobre determinado assunto Para Antonio Candido a literatura exprime o homem ao mesmo tempo em que atua na sua formação É na escola que o jovem poderá obter um contato com as produções literárias O professor nestes momentos proporcionará uma atitude de curiosidade de interesse pela descoberta um encontro que possibilitará transformação enriquecimento experiência de vida e transmissão de ideias A literatura surge como um mundo aberto um convite à liberdade de interpretação à criatividade e à exploração das formas Serve de entendimento da organização social pois estabelece relações com momentos históricos A literatura mantém a língua como patrimônio coletivo na medida em que intensifica um modo de expressão de um grupo eou contribui para a sua formação Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória mimetizandose como inconsciente coletivo ou individual Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes 32 1 Quais são as funções da literatura segundo Antonio Candido 2 Como você observa as questões ligadas ao modo de entender a literatura 3 Após a leitura do texto de Calvino faça o seguinte exercício pense em livros que lhe chamaram a atenção e que você pensa em ler novamente Algumas das observações levantadas por Calvino lhe servem de argumento para a seleção por você escolhida AUTOATIVIDADE 33 TÓPICO 3 CARACTERÍSTICAS DA LINGUAGEM LITERÁRIA UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO Você certamente ao ler o texto de Calvino inferiu que o autor delineia o que é um clássico defendendo a ideia de que ler clássicos é melhor do que não os ler Nosso objetivo de escolher este texto é o de que você reflita sobre livros já lidos e sinta vontade de reler e ler tantos outros livros conforme afirma Calvino ler aquele livro sobre o qual você escutou pessoas comentando estou relendo nunca estou lendo Mas afinal o que é a linguagem literária contida nos clássicos É o que veremos neste tópico 2 O LITERÁRIO ASPECTOS QUE O DEFINEM Podemos dizer que muitas das obras literárias passam para a posteridade tornandose clássicos fonte inesgotável de conhecimento Autores e suas obras são referenciados estudados e analisados uma vez que desvelam a existência humana elaborando seus escritos a partir do engendramento da língua com um estilo peculiar Assim novamente questionamos O que é literatura Se nos debruçássemos sobre a teoria a fim de obtermos uma resposta à pergunta sobre o conceito de literatura perceberíamos que sua definição não é matéria pacífica entre os estudiosos Vários tentaram e tentam sistematizálo apresentando variações significativas Essas posições nos impulsionam a refletir sobre esse assunto Acerca do conceito vejamos o que Terry Eagleton 2003 p 6 comenta Os formalistas consideravam a linguagem literária como um conjunto de desvios da norma uma espécie de violência linguística a literatura é uma forma especial de linguagem em contraste com a linguagem comum que usamos habitualmente Caroa acadêmicoa é importante salientar que o formalismo concentrou seus estudos na literatura separada do contexto social e histórico da obra Para os formalistas tudo o que é necessário numa obra literária está contida nela ou seja a base está nos aspectos linguísticos Portanto o formalismo em sua essência aplicou a linguística ao estudo da literatura 34 UNIDADE 1 CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA Octávio Paz 1982 p 47 conceitua literatura argumentando que na criação poética os vocábulos são forjados a nascerem novamente O primeiro ato dessa operação consiste no desenraizamento das palavras O poeta arrancaas de suas conexões e misteres habituais separados do mundo informativo da fala os vocábulos se tornam únicos como se acabassem de nascer De acordo com esse pensamento o poeta consegue fazer da palavra anteriormente usada para informar algo que está além do habitual Considere o poema que segue Autopsicografia O poeta é um fingidor Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente E os que leem o que escreve Na dor lida sentem bem Não as duas que ele teve Mas só a que eles não têm E assim nas calhas de roda Gira a entreter a razão Esse comboio de corda Que se chama o coração Fernando Pessoa 1977 FIGURA 4 FERNANDO PESSOA FONTE Disponível em httpblogdobacanamarcelomarques blogspotcombr201106os123anosdefernandopessoahtml Acesso em 10 ago 2012 TÓPICO 3 CARACTERÍSTICAS DA LINGUAGEM LITERÁRIA 35 Perceba que Fernando Pessoa ao escrever elaborou a linguagem manipulou as palavras criativa e esteticamente transformandoas em poesia arte literatura Você poderá ler mais sobre o formalismo e literatura no livro de Terry Eagleton intitulado Teoria da Literatura uma introdução Tradução de Waltensir Dutra São Paulo Martins Fontes 2003 IMPORTANTE Assim a literatura representaria uma violência organizada contra a fala comum pois o escritor utiliza a linguagem transformandoa intensificandoa afastandoa sistematicamente da fala cotidiana Outro estudioso JeanPaul Sartre 1993 p 28 afirma que a literatura é uma subjetividade que se entrega sob a aparência de objetividade um discurso tão curiosamente engendrado que equivale ao silêncio um pensamento que se contesta a si mesmo uma Razão que é apenas a máscara da loucura um Eterno que dá a entender que é apenas um momento da História um momento histórico que pelos aspectos ocultos que revela remete de súbito ao homem eterno um perpétuo ensinamento mas que se dá contra a vontade expressa daqueles que a ensinam Umberto Eco 2003 p 8 também teorizou sobre a literatura e segundo ele é um valor imaterial que se lê por prazer elevação espiritual e ampliação de conhecimento O objetivo em apresentar esses conceitos sobre a literatura caroa acadêmicoa é demonstrar que o texto literário é resultado do trabalho do escritor com a linguagem que é por ele cuidadosamente explorada o que ocasiona várias possibilidades de significação que também podem variar de acordo com os conhecimentos prévios do leitor A teoria literária enfatiza a partir da estética da recepção a figura do leitor que atribui sentidos e significados ao texto literário Segundo Sartre 1993 dificilmente dois ou mais leitores farão leituras idênticas de um mesmo texto Além disso para o estudioso o leitor poderá ser considerado coautor e coprodutor Sem o leitor o texto nada mais é que sinais perdidos no papel SARTRE 1993 p 24 Especificamente no que se refere ao papel do leitor trataremos na Unidade 3 deste Caderno de Estudos e em objeto de aprendizagem Disponível na trilha do curso 36 UNIDADE 1 CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA Leia mais alguns conceitos sobre literatura Arte literária é mimese imitação é a arte que imita pela palavra ARISTÓTELES apud NICOLA 1998 p 25 É a expressão da sociedade como a palavra é a expressão do homem LOUIS DE BONALD apud NICOLA 1998 p 25 Várias são as acepções do termo literatura conjunto da produção intelectual humana escrita conjunto de obras especialmente literárias conjunto de obras sobre um dado assunto o que chamamos mais vernacularmente de bibliografia de um assunto ou matéria boas letras além de outros derivados ou secundários um ramo especial daquela produção uma variedade da Arte arte literária VERÍSSIMO 2001 p 23 UNI Caroa acadêmicoa leia os textos e em seguida resolva a autoatividade proposta Texto 1 Bullying é preciso levar a sério ao primeiro sinal Esse tipo de violência tem sido cada vez mais noticiado e precisa de educadores atentos para evitarem consequências desastrosas Para evitar o bullying as escolas devem investir em prevenção e estimular a discussão aberta com todos os atores da cena escolar incluindo pais e alunos Para os professores que têm um papel importante na prevenção alguns conselhos dos especialistas Cléo Fante e José Augusto Pedra autores do livro Bullying Escolar Artmed Observe com atenção o comportamento dos alunos dentro e fora da sala de aula e perceba se há quedas bruscas individuais no rendimento escolar Incentive a solidariedade a generosidade e o respeito às diferenças através de conversas trabalhos didáticos e até de campanhas de incentivo à paz e à tolerância Desenvolva desde já dentro da sala de aula um ambiente favorável à comunicação entre alunos Quando um estudante reclamar ou denunciar o bullying procure imediatamente a direção da escola Muitas vezes a instituição trata de forma inadequada os casos relatados A responsabilidade é sim da escola mas a solução deve ser em conjunto com os pais dos alunos envolvidos FONTE Extraído e adaptado de BARROS Andréia Revista Nova Escola Edição Abril de 2008 TÓPICO 3 CARACTERÍSTICAS DA LINGUAGEM LITERÁRIA 37 Texto 2 Catar Feijão Catar feijão se limita com escrever Jogase os grãos na água do alguidar E as palavras na folha de papel E depois jogase fora o que boiar Certo toda palavra boiará no papel Água congelada por chumbo seu verbo Pois para catar esse feijão soprar nele E jogar fora o leve e oco palha e eco Ora nesse catar feijão entra um risco O de que entre os grãos pesados entre Um grão qualquer pedra ou indigesto Um grão imastigável de quebrar dente Certo não quando ao catar palavras A pedra dá à frase seu grão mais vivo Obstrui a leitura fluviante flutual Açula a atenção iscaa como risco FONTE MELO NETO João Cabral de Poesia crítica Rio de Janeiro José Olympio 1982 p 12 Você percebeu que existem diferenças entre os dois textos Revisiteos Agora observe mais atentamente compareos e aponte algumas diferenças eou semelhanças quanto aos assuntos abordados ao processo de construção e quanto ao uso da linguagem Muitas considerações podem ser elencadas entre os dois textos entretanto aqui nos interessa a classificação texto literário e texto não literário Observe 3 O TEXTO LITERÁRIO E O TEXTO NÃO LITERÁRIO A partir da realização da autoatividade podemos inferir que o primeiro texto aborda a questão do Bullying na escola faz uso da linguagem denotativa é constituído de signos linguísticos com significado mais preciso uma vez que existe a necessidade de uma informação objetiva de maneira a evitar mais de uma interpretação daí a classificálo como texto não literário Pense nas bulas de remédio ou nas instruções de funcionamento de um eletrodoméstico As informações disponibilizadas ao usuário deverão ser rigorosas presas ao contexto de comunicação específico não deixando margem a dupla interpretação Maria da Glória Bordini e Vera Aguiar Teixeira afirmam que o texto não literário contém 38 UNIDADE 1 CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA indicadores muito rígidos e presos ao contexto de comunicação não deixando margem à livre movimentação do leitor BORDINI AGUIAR 1993 p 15 O texto não literário prioriza a informação tem uma função utilitária para convencer explicar responder e ordenar São exemplos de textos não literários manuais de informação ao usuário notícias e reportagens jornalísticas textos de livros didáticos de história filosofia matemática textos científicos em geral receitas culinárias bulas de remédio O segundo texto o poema do autor João Cabral de Melo Neto remete a outra concepção cujo plano de expressão rompe com seu significado racional ou seja tem sentido conotativo pois a significação da palavra é subjetiva O texto literário tem uma dimensão estética o autor faz uso específico e complexo da língua explora recursos do sistema linguístico os sons as rimas as metáforas as metonímias o sentido das palavras e a organização frasal Cria novas relações entre as palavras combinandoas de maneira singular revelando assim novas formas de ver o mundo Os signos linguísticos as frases as sequências assumem significados variados e múltiplos possibilitando a criação de novas relações de sentido É um fazer peculiar porque expressa uma forma de dizer carregada de significados que são inerentes a um tempo histórico e particular na medida em que explicita e compreende o homem e a sua organização social Exemplos de textos literários poesias romances contos novelas fábulas entre outros Após uma breve definição acerca do fenômeno literário aqui conceituado segundo o critério de representação do real que situa a literatura enquanto modalidade artística como uma forma de arte descompromissada com a verdade lógica e com a racionalidade utilitária interessanos agora definir uma de suas formas de manifestação mais praticadas aquela destinada ao público infantil Assunto que abordaremos na próxima unidade Antes disso é interessante pensar na tríade autor texto e leitor Para tanto leiamos O Jogo do Texto no qual o autor argumenta que É sensato pressupor que o autor o texto e o leitor são intimamente interconectados em uma relação a ser concebida como um processo em andamento que produz algo que antes inexistia Esta concepção do texto está em conflito direto com a noção tradicional de representação à medida que a mímesis envolve a referência a uma realidade prédada que se pretende estar representada No sentido aristotélico a função da representação é dupla tornar perceptíveis as formas constitutivas da natureza completar o que a natureza deixara incompleto Em nenhum dos casos a mímesis embora de importância fundamental não pode restringir à mera imitação do que é pois os processos de elucidação e de complementação exigem uma atividade performativa se as ausências aparentes hão de se transformar em presença Desde o advento do mundo moderno há uma tendência clara em privilegiarse o aspecto performativo da relação autortexto leitor pelo qual o prédado não é mais visto como um objeto de representação mas sim como o material a partir do qual algo novo é ordenado TÓPICO 3 CARACTERÍSTICAS DA LINGUAGEM LITERÁRIA 39 O novo produto entretanto não é predeterminado pelos traços funções e estruturas do material referido e contido no texto Razões históricas explicam a mudança em foco Sistemas fechados como o cosmos do pensamento ou da imagem de mundo medieval priorizavam a representação como mímesis por considerarem que todo o existente mesmo que se esquivasse à percepção deveria ser traduzido em algo tangível Quando no entanto o sistema fechado é perfurado e substituído por um sistema aberto o componente mimético da representação declina e o aspecto performativo assume o primeiro plano O processo então não mais implica vir aquém das aparências para captar um mundo inteligível no sentido platônico mas se converte em um modo de criação de mundo Se aquilo que o texto realiza tivesse de ser equiparado com a feitura de mundo surgiria a questão se ainda se poderia continuar a falar em representação O conceito podia ser mantido apenas se os próprios modos de criação de mundo se tornassem o objetivo referencial para a representação Neste caso o componente performativo teria de ser concebido como o prédado do ato performativo Independente de se isso poderia ou não ser considerado tautológico permanece o fato de que provocaria uma quantidade de problemas de que este ensaio não pretende tratar Há contudo uma inferência altamente relevante para minha discussão o que tem sido chamado o fim da representação pode afinal de contas ser menos a descrição do estado histórico das artes do que a articulação de dúvidas quanto à habilidade da representação como conceito capaz de capturar o que de fato sucede na arte ou na literatura Isso não equivale a negar que a relação autortextoleitor contém um amplo número de elementos extratextuais que entram no processo mas são apenas componentes materiais do que sucede no texto e não correspondente um a um Parece portanto justo dizer que a representação no sentido em que viemos compreendêla não pode abarcar a operação performativa do texto como uma forma de evento Com efeito é importante notar que não há teorias definidas da representação que de fato fixem as condições necessárias para a produção da mímesis Os autores jogam com os leitores e o texto é o campo do jogo O próprio texto é o resultado de um ato intencional pelo qual o autor se refere e intervém em um mundo existente mas conquanto o ato seja intencional visa a algo que ainda não é acessível à consciência Assim o texto é composto por um mundo que ainda há de ser identificado e que é esboçado de modo a incitar e imaginálo e por fim interpretálo Essa dupla operação de imaginar e interpretar faz com que o leitor se empenhe em visualizar as muitas formas possíveis do mundo identificável de modo que inevitavelmente o mundo repetido no texto começa a sofrer modificações Pois não importa que novas formas o leitor traz à vida todas transgridem e daí modificam o mundo referencial contido no texto Ora como o texto é ficcional automaticamente invoca a convenção de um contrato entre autor e leitor indicador de que o mundo textual há de ser concebido não como realidade mas como se fosse 40 UNIDADE 1 CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA realidade Assim o que quer que seja repetido no texto não visa a denotar o mundo mas apenas um mundo encenado Este pode repetir uma realidade identificável mas contém uma diferença decisiva o que sucede dentro dele não tem as consequências inerentes ao mundo real referido Assim ao se expor a si mesma a ficcionalidade assinala que tudo é tão só de ser considerado como se fosse o que parece ser noutras palavras ser tomado como jogo FONTE Texto adaptado de ISER W O Jogo do Texto In JAUSS H R et al A literatura e o leitor textos de estética da recepção Rio de Janeiro Paz e Terra 1979 p 105107 41 RESUMO DO TÓPICO 3 Neste tópico vimos que A literatura é uma forma de manifestação artística que tem como material de expressão a palavra marcada por uma organização peculiar da linguagem A literatura é uma espécie de violência linguística organizada e caracterizase pelo estranhamento da linguagem A literatura é uma forma de dizer carregada de significados É uma variedade de arte ou seja é arte literária O texto literário abrese para várias significações é portanto plurissignificativo tem uma dimensão estética e explora os recursos do sistema linguístico Para a dimensão literária o autor faz uso específico e complexo da língua explora sons as rimas as metáforas as metonímias o sentido das palavras e a organização frasal A escrita literária possibilita a criação de novas relações entre as palavras combinandoas de maneira singular peculiar porque expressa uma forma de dizer carregada de significados que são inerentes a um tempo histórico e particular O texto não literário prioriza a informação possui função utilitária para convencer explicar responder e ordenar Exemplos de textos não literários manuais de informação ao usuário notícias e reportagens jornalísticas entre outros 42 3 Você concorda com a afirmação de que dificilmente dois leitores farão leituras idênticas de um mesmo texto Comente Com base no tópico responda às seguintes questões 1 No que se refere à literatura assinale V para a sentença verdadeira e F para a sentença falsa a Os formalistas consideravam a linguagem literária como um conjunto de desvios da norma uma espécie de violência linguística b A literatura infantil é uma forma de manifestação artística c A literatura é uma forma de dizer carregada de significados d O texto literário é composto de palavras que se afastam sistematicamente da fala cotidiana O leitor atribui sentidos e significados Segundo Sartre pode ser considerado coautor e coprodutor e O texto literário tem uma dimensão estética o autor faz uso específico e complexo da língua explorando recursos do sistema linguístico Agora assinale a alternativa CORRETA a F V F V V b V F F V V c V V V V V 2 Escreva nas sentenças a seguir L para as afirmativas que caracterizam um texto literário e I para aquelas que caracterizam um texto informativo ou seja não literário Textos que se atêm a fatos particulares Textos que atingem uma significação mais ampla Textos que contêm indicadores mais rígidos e presos ao contexto de comunicação Textos que não deixam margem à livre movimentação do leitor a informação que oferecem é imediata e restrita valendo apenas para uma situação definida Textos que permitem leituras diversas justamente por seus aspectos em aberto são textos plurissignificativos Textos que dependem de referentes reais de forma direta Assinale a alternativa CORRETA a I L I L I I b L L L I I I c I L I I L I AUTOATIVIDADE 43 UNIDADE 2 A LITERATURA INFANTIL FONTE DE EMOÇÕES OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS Nessa unidade vamos analisar as diferentes fases da criança e sua influência na escolha de livros refletir sobre alguns dos fatores que contribuem para a formação do jovem leitor perceber que o texto literário não se limita ao ensino da gramática eou escolas literárias identificar a transmissão de valores e contravalores de algumas das perso nagens encontradas na literatura infantojuvenil Esta unidade está dividida em três tópicos Ao final de cada um deles você encontrará atividades visando à compreensão dos conteúdos apresentados TÓPICO 1 ASPECTOS DA LITERATURA INFANTIL TÓPICO 2 GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA ESTRUTURA I TÓPICO 3 GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA ESTRUTURA II 44 45 TÓPICO 1 ASPECTOS DA LITERATURA INFANTIL UNIDADE 2 1 INTRODUÇÃO Há palavras verdadeiramente mágicas O que há de mais assustador nos monstros é a palavra monstro Se eles se chamassem leques ou ventarolas ou outro nome assim todo arejado de vogais quase tudo se perderia do fascinante horror de Frankenstein QUINTANA 1979 p 21 A magia e o encanto da expressão literária perpassam gerações e é sobre essa literatura que nos deteremos mais especificamente àquela destinada ao jovem leitor que recebeu o adjetivo de infantil Por vezes essa qualidade essa adjetivação inquieta o próprio estatuto de literário uma vez que muitas histórias foram transformadas adaptadas para o público infantil e para este trabalho de reescritura importava validar o aspecto pedagógico da literatura Hoje é sabido que por expressar e refletir a complexidade do ser humano o seu mundo e suas relações existenciais a literatura se apresenta fascinante essencial e favorece o desenvolvimento intelectual Enquanto atividade cognitiva contribui para a ampliação do processo perceptivo do leitor Daí a necessidade da presença do livro literário em sala de aula por representar possibilidade de conhecimento e descoberta São essas questões que serão abordadas FIGURA 5 SENECIO PAUL KLEE FONTE Disponível em httpwwwricciarte biz543jpg Acesso em 12 ago 2012 UNIDADE 2 A LITERATURA INFANTIL FONTE DE EMOÇÕES 46 2 OS TEXTOS DESTINADOS AO JOVEM LEITOR Ao que parece o surgimento de uma literatura para crianças encontrase ligado à novelística popular medieval que tem suas origens na Índia Descobriuse que a magia e o encanto dessas criações vindas em sua maioria da tradição oral e mitológica repassadas através de gerações e adaptadas pela experiência do adulto poderiam satisfazer a mente fértil e inesgotável do público infantil OLIVEIRA 2007 A literatura infantil constituise como gênero durante o século XVII na Europa e seu aparecimento possui características próprias A ela foi atribuída a função de suscitar situações para uma educação moral Os textos em sua estrutura maniqueísta demarcavam claramente o bem e o mal o que a criança deveria fazer e o que não deveria Com uma sociedade burguesa em ascensão a criança ou melhor dizendo o que fez parte de sua infância no caso a escola passou por uma reorganização As histórias destinadas à criança foram associadas à Pedagogia que as converteu em aliado instrumento pedagógico Nessa abordagem a criança era considerada um ser diferente do adulto com necessidades e características próprias Para tanto deveria receber uma educação especial que a preparasse para a vida adulta e priorizasse os valores morais Assim surge a chamada literatura infantil que desde sua gênese esteve atrelada a fins pedagógicos a serviço da divulgação dos ideais burgueses OLIVEIRA 2007 Somente a partir de estudos da psicologia experimental é que se altera a concepção Entra em questão a sucessão das fases evolutivas da inteligência A partir de então passa a existir a preocupação de falar com autenticidade aos possíveis destinatários das mais tenras idades Transformase assim o foco da literatura infantil Entretanto vejamos A literatura infantil é comunicação histórica localizada no tempo e no espaço entre um locutor e um escritor adulto emissor e um destinatário criança receptor que por definição do período considerado não dispõe senão de modo parcial da experiência do real e das estruturas linguística intelectuais afetivas e outras que caracterizam a idade adulta COELHO 1997 p 185 Nesse sentido lembrese de nossas discussões iniciadas na primeira unidade o livro destinado ao infante é produzido por um adulto que comunica experiências já adquiridas a um público que não possui tal experiência É direcionada a uma idade que é de aprendizagem e mais especificamente de aprendizagem linguística donde advém sua inclinação pedagógica Assim a literatura no espaço escolar foi incorporada como tarefa a ser cumprida Para Abramovick 1989 é justamente este caráter de cobrança que distancia a criança da leitura de literatura Sobre essa função utilitáriopedagógica à qual a literatura infantojuvenil é exposta leiamos Palo e Oliveira 1986 p13 que afirmam TÓPICO 1 ASPECTOS DA LITERATURA INFANTIL 47 a função pedagógica implica a ação educativa do livro sobre a criança De um lado relação comunicativa leitorobra tendo por intermediário o pedagógico que dirige e orienta o uso da informação de outro a cadeia de mediadores que interceptam a relação livrocriança família escola biblioteca e o próprio mercado editorial agentes controladores de usos que dificultam à criança a decisão e escolha do que e como ler Esse contexto de literatura infantil interfere sobre o universo da criança Assim questões que envolvem a literatura no espaço escolar e consequentemente no universo infantil são o mote de vários estudos Bruno Bettelheim 2007 discorre sobre as personagens infantis o maravilhoso o fantástico seus conflitos e o papel que os enredos dessas histórias desempenha no imaginário do jovem leitor Afirma que toda a simbologia presente no literário infantil ajuda a resolver problemas existenciais da criança Enfatiza também o poder regenerador dos contos de fada que por conterem na sua estrutura elementos simbólicos criam uma ponte com o inconsciente propiciando ao jovem leitor conforto e consolo em termos emocionais Dito de outro modo apresentam temas relacionados ao medo ao amor ao ódio à alegria à busca à tristeza que fazem parte do cotidiano infantojuvenil propiciando um treino para as emoções A postura que considera a literatura objeto pedagógico sofre forte reação pois há quem a defenda como entretenimento ludicidade e deleite Então podemos inferir que sob um olhar é arte é emoção e prazer e sob o aspecto de instrumento manipulado para uma intenção educativa ela é objeto pedagógico Uma dicotomia existe entretanto salientamos que a literatura infantil acaba sendo aquela que corresponde de alguma forma aos anseios do leitor OLIVEIRA 2007 É objeto de entretenimento e ao mesmo tempo traduz o homem e atua na sua formação CANDIDO 2002 É nesse sentido que devemos pensar a literatura destinada à humanidade em especial neste nosso estudo a destinada ao público infantojuvenil Atribuise o ponto de partida para a literatura infantil à Europa do século XVII mais especificamente França Para instigar sua curiosidade sobre esse universo literário leia o item seguinte Neste elegemos alguns escritores e obras no intuito de fazer uma incursão pela história da literatura inafantojuvenil 3 A LITERATURA INFANTIL UM POUCO DE HISTÓRIA Estudos apontam Charles Perrault como precursor da literatura infantil Iniciou seu trabalho adaptando histórias contadas oralmente em locais parisienses com enredos de personagens que viviam em estado de precariedade sofriam e ao final venciam Caroa acadêmicoa façamos o exercício de recordar o conto A gata borralheira Confira uma das versões na trilha de aprendizagem da disciplina Lembrese de que borralheira significa local onde existe acúmulo de borralha mais conhecida como cinza do forno ou lareira UNIDADE 2 A LITERATURA INFANTIL FONTE DE EMOÇÕES 48 Cinderela sua origem tem diferentes versões A versão mais conhecida é a do escritor francês Charles Perrault de 1697 baseada num conto italiano popular chamado A gata borralheira A mais antiga é originária da China por volta de 860 aC Existe também a dos Irmãos Grimm semelhante à de Charles Perrault Sociólogos historiadores e literatos veem na história de Cinderela muito mais do que uma simples trama romântica Por ter origem atemporal e ter surgido em várias civilizações diferentes a trajetória da protagonista traduziria uma espécie de arquétipo fundamental traduzindo o anseio natural da psiquê humana em ser reconhecida especial e levada a uma existência superior A literatura e o cinema cientes disso utilizaramse de seu arco dramático para o desenvolvimento de inúmeras outras obras de apelo popular FONTE Disponível em httpptwikipediaorgwikiCinderelaDisponível Acesso em 5 out 2012 UNI Que tal Recordou Então atente para o fato de que neste conto Perrault descreve a preocupação dos convidados quanto ao vestuário os salões de festa as danças a carruagem enfim o glamour da nobreza contrapondose à vida dos camponeses marcada pela privação devido ao agravamento das contradições econômicas Enredos com aspectos que provinham do povo humilde elementos da corte a vida e as festas nos palácios FIGURA 6 A GATA BORRALHEIRA FONTE Disponível em httpprosimetronblogspotcombr201206gata borralheirahtml Acesso em 5 out 2012 Além de Perrault Fénelon dedicouse a escritos com qualidades pedagógicas Sua obra Telêmaco relata as aventuras do filho de Ulisses personagem da Odisseia de Homero Quando Ulisses rei de Ítaca partiu para a Guerra de Troia deixou seu filho Telêmaco aos cuidados de seu fiel e amigo Mentor Mesmo tendo a guerra terminado Ulisses não retorna ao seu lar Telêmaco cresce vendo o patrimônio de TÓPICO 1 ASPECTOS DA LITERATURA INFANTIL 49 seu pai ser dilapidado pelos pretendentes de sua mãe Indignado com tal situação parte em busca de notícias do pai e leva consigo Mentor para orientálo e encorajálo Os reveses da viagem de Telêmaco à procura do pai o auxílio dos deuses dos amigos fazem parte do enredo desta história Além disso a história revela o quanto Mentor foi importante na educação de Telêmaco na formação de seu caráter de seu senso de responsabilidade e na transição da infância à maturidade Podemos dizer que a personagem Mentor adquire outro status a partir do momento no qual Fénelon escreve As Aventuras de Telêmaco em 1699 elevandoo à condição de um professor um guia do jovem Telêmaco A palavra mentor passou então a figurar nos dicionários como sinônimo de conselheiro sábio além de protetor e financiador Pessoa que inspira estimula cria ou orienta ideias ações projetos realizações etc HOUAISS VILLAR 2009 p 1275 O escritor Fénelon foi tutor do neto de Luis XIV e seu livro fez grande sucesso inspirando muitos pedagogos UNI La Fontaine por sua vez imortalizouse através das fábulas entre outros escritos Leiamos uma de suas fábulas A Raposa e a Cegonha A Raposa convidou a Cegonha para jantar e lhe serviu sopa em um prato raso Você não está gostando de minha sopa Perguntou enquanto a cegonha bicava o líquido sem sucesso Como posso gostar A Cegonha respondeu vendo a Raposa lamber a sopa que lhe pareceu deliciosa Dias depois foi a vez de a cegonha convidar a Raposa para comer na beira da Lagoa serviu então a sopa num jarro largo embaixo e estreito em cima Hummmm deliciosa Exclamou a Cegonha enfiando o comprido bico pelo gargalo Você não acha UNIDADE 2 A LITERATURA INFANTIL FONTE DE EMOÇÕES 50 A Raposa não achava nada nem podia achar pois seu focinho não passava pelo gargalo estreito do jarro Tentou mais uma ou duas vezes e se despediu de mau humor achando que por algum motivo aquilo não era nada engraçado MORAL Às vezes recebemos na mesma moeda por tudo aquilo que fazemos FONTE Disponível em httppensadoruolcombrfraseODEwMzk3 Acesso em 5 out 2012 Do século XIX destacamos o dinamarquês Hans Christian Andersen autor de 156 contos maravilhosos entre os quais figuram O soldadinho de chumbo e O patinho feio Confira versão na trilha de aprendizagem Os Irmãos Grimm Jocob e Wilhelm por sua vez além de filólogos e lexicógrafos foram celebrizados com as publicações de contos e lendas alemãs emanados da tradição e saber popular Pinóquio é outro clássico da literatura Um pedaço de madeira falante aparece nas mãos de Gepeto O velho Gepeto tem planos ambiciosos para a marionete que ele fabrica É capaz de dançar cantar e falar Pinóquio entretanto revelase um títere arteiro e que sonha em tornarse um menino de verdade As aventuras de Pinóquio é a obra original de Carlo Collodi publicada pela primeira vez em 1883 Em seu percurso de transição de boneco a menino Pinóquio se mete em confusão atrás de confusão enfrenta a autoridade da lei a solidão da condição humana e outras tantas aventuras perigosas Outra relevante figura para a literatura infantil é Lewis Carrol autor de Alice no país das maravilhas uma históriaromance considerada complexa e que sugere variadas interpretações por abordar em seu contexto assuntos de diferentes temáticas Carrol explora elementos dos contos de fada animais que falam reis e rainhas personagens enigmáticos que em um passe de mágica aparecem desaparecem e mudam de tamanho A história se passa dentro de um sonho é marcada pelo recurso do nonsense termo que indica ausência de sentido No caso da narrativa em questão os episódios são permeados por algum recurso de ligação garantindo assim uma coerência interna Além disso o enredo de Alice no país das maravilhas não exige uma lógica total dos acontecimentos uma vez que se passa no mundo dos sonhos um universo no qual coisas mais insólitas são aceitas como naturais Alice é uma obra que permite várias interpretações Uma delas é a de que as mudanças os conflitos da adolescência à maturidade podem estar representados na obra Além dessa interpretação podemos considerar questões históricas como por exemplo críticas à sociedade inglesa vitoriana TÓPICO 1 ASPECTOS DA LITERATURA INFANTIL 51 Outros escritores que merecem destaque são Jonathan Swift 16671745 Em 1726 o autor publica sua obraprima As viagens de Gulliver Daniel Defoe 16601731 Seu romance mais famoso Robinson Crusoé foi publicado em 1719 Mme Leprince de Beaumont 17111780 Sua obra denuncia preocupação educativa Entre suas produções salientamos A fada das ameixas A bela e a fera entre outras Mark Twain 18351910 Publicado em 1876 o livro trouxe popularidade ao escritor americano com seu Tom Sawyer Júlio Verne 18281905 Autor de obras de ficção científica popularizouse em trabalhos como Vinte mil léguas submarinas A Ilha misteriosa Cinco semanas em um balão Volta ao mundo em 80 dias Os filhos do Capitão Grant Podemos ainda juntar a esta lista obras como As mil e uma noites Dom Quixote de la Mancha de Miguel de Cervantes Os três mosqueteiros O Conde de Monte Cristo e um rol interminável de leituras 31 PANORAMA DA LITERATURA INFANTIL BRASILEIRA Na Europa a literatura infantil assumiu a função pedagógica e difundiu modos e modelos comportamentais e no Brasil seu objetivo não foi diferente A literatura infantil chega ao nosso país nos fins do século XIX Conforme Célia Doris Becker 2001 p 36 o mercado requer dos escritores livros que atendam ao público infantil Começa então a importação desses textos e com eles a mesma atitude didática e redutora que difunde normas e doutrinava as crianças Para Becker a história da literatura infantil brasileira é dividida em quatro fases A primeira fase final do século XIX e início do século XX é norteada por adaptações e traduções de textos europeus principalmente de produções portuguesas Os textos tinham a intenção de incutir o patriotismo a valorização do nacionalismo Destacamse entre as produções nacionais com essa finalidade Contos pátrios e Através do Brasil Olavo Bilac Coelho Neto Era uma vez Júlia Lopes de Almeida Saudade Tales de Andrade Dentre as traduções podemos citar as obras de Carlos Jansen Figueiredo Pimentel Robinson Crusoé e outros BECKER 2001 p 36 A segunda fase descrita por Becker 2001 abrange os anos de 19201945 e poderá ser assim sintetizada em nosso país como o momento em que acontecem mudanças advindas da expansão cafeeira e da indústria Essa efervescência social atinge a educação que apresentava um sistema educacional com altos índices de analfabetismo Constatouse com esse fato que para o Brasil inserirse entre as grandes potências internacionais necessário era além de outras medidas acabar com o analfabetismo UNIDADE 2 A LITERATURA INFANTIL FONTE DE EMOÇÕES 52 Neste período criouse a Escola Nova eclodiram inovações diversas nas áreas culturais expressas na Semana de Arte Moderna A literatura infantil especialmente a partir de Monteiro Lobato recebeu roupagem nova com temáticas e uma linguagem coloquial próximas à realidade da criança O folclore mostrouse revelador de um mundo bem brasileiro porém com o mesmo caráter pedagógico Muitos dos autores coadunavam com o autoritarismo através de personagens que não questionavam as ações A terceira fase de aproximadamente 1950 e década de 1960 foi marcada pelas trocas de governo pelas lutas por uma democracia e pelo golpe militar que culminou com os Atos Institucionais a partir dos quais a sociedade passou a conviver com os órgãos de repressão e com a censura aos meios de comunicação BECKER 2001 p 39 A literatura infantil nesse período de acordo com Becker 2001 recorreu a temas que abordaram a supremacia da vida urbana sobre a rural na qual os moradores rurais foram desprestigiados e até estereotipados o café apareceu como fonte primeira de riqueza a Amazônia era destacada bem como o passado histórico e o heroísmo dos Bandeirantes foram os temas abordados A quarta e última fase 19701980 segundo Becker 2001 foi marcada por personagens que contestavam fatos Apareceram a gíria os dialetos as falas regionais ou seja uma literatura inovadora e plena de desafios Registrouse também um significativo aumento de obras e autores Abrandouse se não foi totalmente abandonado o caráter didáticopedagógico que historicamente comprometia a produção literária infantil BECKER 2001 p 40 No Brasil o rico material literário favorece ao professor subsídios para o desenvolvimento da criatividade da imaginação do gosto pela leitura e consequentemente a ampliação do conhecimento do jovem leitor No que tange à literatura infantil os primeiros trabalhos em solo brasileiro repetiam o que acontecia na Europa porém escritores se consagraram por arquitetar uma literatura infantil brasileira uma vez que além de traduzir os contos de fada europeus eternizaram narrativas que faziam parte da oralidade do povo brasileiro entre os quais destacamos Figueiredo Pimentel 18691914 Com os Contos da carochinha Histórias da baratinha Álbum das crianças Teatrinho infantil e Os meus brinquedos Pimentel pode ser considerado o precursor de nossa literatura infantil Viriato Padilha 18661924 Autor de Histórias do arco da velha Olavo Bilac 18651918 Publicou em colaboração Poesias infantis e Contos pátrios Escreveu poemas que enalteciam o civismo o nacionalismo e a história política do Brasil daquela época TÓPICO 1 ASPECTOS DA LITERATURA INFANTIL 53 Viriato Corrêa 18841967 Notabilizouse com Varinha de condão No reino da bicharada A macacada No país da bicharada As belas histórias da história do Brasil História do Brasil para crianças etc Malba Tahan 18851974 Pseudônimo literário do professor de Matemática Julio Mello e Souza Desse autor destacamos as seguintes obras O homem que calculava Maktub Céu de Allah Seleções A caixa do futuro Lendas do céu e da terra Lendas do povo de Deus Minha vida querida As aventuras do Rei Baribê entre outras Outro nome relevante da literatura infantil brasileira é Monteiro Lobato criador de Emília Dona Benta e o Visconde de Sabugosa bem como os demais personagens do Picapau Amarelo Seres da fantasia que saíram dos livros para as telas da TV para lojas e supermercados para as festas de aniversário escolas jogos brincadeiras revelando que a realidade fabulosa que saiu de sua cabeça acabou sendo maior mais poderosa e mais duradoura do que ele mesmo cogitou ZILBERMAN 2005 p 22 Monteiro Lobato dedicou o livro Reinações de Narizinho para apresentação da menina Lúcia a Narizinho informando também ao leitor que ela mora com a avó Dona Benta e ganhou de Anastácia a cozinheira uma boneca de pano batizada de Emília Pedrinho primo de Narizinho também fará parte desse mundo encantado Visconde de Sabugosa outro boneco feito a partir de um sabugo de milho tornouse famoso tanto quanto os demais personagens FIGURA 7 VISCONDE DE SABUGOSA FONTE Disponível em httpswwwgooglecombr searchqsabugosahlptBRprmdimvnstbmischtbouso urceunivsaXei6CvaT6ChO4e09QTQheTuBQved0CG0Qs AQbiw1280bih618 Acesso em 12 set 2012 Lobato optou pela sistemática de repetir as personagens tal qual histórias em série criando narrativas que revelam o espírito desafiador e heroico estereótipo dos legendários contos folclóricos dos mitos e das lendas UNIDADE 2 A LITERATURA INFANTIL FONTE DE EMOÇÕES 54 São personagens que enfrentam variados problemas embrenhamse nas mais variadas peripécias demonstrando inteligência autonomia e emancipação ou seja a relação estabelecida entre as personagens adultas e infantis é de igual para igual Para tanto bastará observar o comportamento da boneca Emília e das crianças que por vezes ignoram certos limites o que lhes confere autenticidade A personagem Dona Benta é quem dirige o sítio Instruída inteligente bemintencionada modelo do político que segundo Lobato deveria governar o Brasil Ao perceber que não poderá mais contar com a renda propiciada pelas lavouras de café que estão arruinadas adere ao ideal de Lobato não por acaso tem o nome do próprio escritor José Bento patrocina a prospecção de petróleo em suas terras obtendo grandes lucros e promovendo o progresso não apenas na área mas em todo o país ZILBERMAN 2005 p 28 Dona Benta é quem geralmente narra as fábulas fato este que na opinião dos críticos é um recurso do próprio escritor para demonstrar a reflexão e ponderação das pessoas mais vividas Tia Nastácia se mostra bastante inclinada a aceitar a moral das fábulas Já Pedrinho e Narizinho fazem comentários de acordo com seu espírito irrequieto de crianças curiosas e Emília tenta a cada momento contestar a lição de moral que a fábula encerra Lobato revela um Brasil a partir do sítio Mostra um país com predomínio da economia agrícola expressando o que deseja para o Brasil a possibilidade de modernização crescimento e fortuna graças à exploração das riquezas minerais em especial do petróleo O sítio na visão de Lobato constitui uma espécie de república ideal que admite seres dotados de qualidades positivas e expulsa o julgado negativo como o próprio sistema governamental Quando aparecem os vilões estes jamais levam a melhor O sítio é o Brasil conforme o desejo de Lobato que desde os primeiros livros mesmo criticando as mazelas nacionais nunca deixou de colocar o país no centro e propor alternativas para problemas cruciais Monteiro Lobato prezou pela nacionalidade desde os primeiros livros como Urupês de 1918 Criticou as mazelas nacionais e propôs alternativas para os problemas que assolavam o país As ações do Sítio do Picapau Amarelo podem ocorrer em vários locais e épocas na Lua nos planetas na cidade em outros séculos todavia é o sítio o cenário recorrente Monteiro Lobato adaptou clássicos da literatura como Dom Quixote das crianças 1936 e de obras europeias destinadas à infância Peter Pan 1930 Estabeleceu incursões no folclore com Histórias de tia Nastácia 1937 e na mitologia ocidental O Minotauro 1939 TÓPICO 1 ASPECTOS DA LITERATURA INFANTIL 55 Podemos dizer que com Lobato a nossa literatura infantil atingiu projeção universal Criou uma concepção para a fabulação infantil suas personagens vivem tipos que integram o cenário literário a exemplo de Emília boneca admirável misto de fada e ser humano Por sua vez os protagonistas Pedrinho e Narizinho retratam as preocupações e atividades que ocupam os meninos e meninas daquela época e por que não dizer de nossa época A obra infantil de Lobato está reunida em vários volumes Reinações de Narizinho Viagem ao céu O Saci Caçadas de Pedrinho Emília no país da gramática Aritmética de Emília Geografia de Dona Benta entre outras histórias que encantaram e encantam os jovens leitores E as traduções e adaptações de Contos de Grimm Novos contos de Grimm Contos de Andersen Novos contos de Andersen Alice no país das maravilhas Além disso Lobato atentava para o fato dos conteúdos moralizantes da literatura destinada ao jovem leitor A partir da fábula A cigarra e a formiga de La Fontaine escreve A formiga boa e a Formiga má Naquela versão a formiga reconhece o valor do canto da cigarra a distração que tal cantoria lhe proporcionava nas horas de labuta sendo assim recompensa a cigarra protegendoa do rigoroso inverno Exibe uma formiga solidária tolerante e que respeita os outros e suas diferenças ao contrário da personagem da fábula A Formiga má que é perversa não se deixa levar pelos apelos da fragilizada cigarra negandolhe qualquer auxílio FIGURA 8 A CIGARRA E A FORMIGA FONTE Disponível em httpaprendercentrodeestudosblogspotcom br201205contocigarraeformigahtml Acesso em 12 set 2012 UNIDADE 2 A LITERATURA INFANTIL FONTE DE EMOÇÕES 56 A Formiga má Já houve entretanto uma formiga má que não soube compreender a cigarra e com dureza a repeliu de sua porta Foi isso na Europa em pleno inverno quando a neve recobria o mundo com seu cruel manto de gelo A cigarra como de costume havia cantado sem parar o estio inteiro e o inverno veio encontrála desprovida de tudo sem casa onde abrigarse nem folhinhas que comesse Desprovida bateu à porta da formiga e implorou emprestado notem uns miseráveis restos de comida Pagaria com juros altos aquela comida de empréstimo logo que o tempo o permitisse Mas a formiga era uma usurária sem entranhas Além disso invejosa Como não soubesse cantar tinha ódio à cigarra por vêla querida de todos os seres Que fazia você durante o bom tempo Eu eu cantava Cantava Pois dance agora vagabunda e fechoulhe a porta no nariz Resultado a cigarra ali morreu entanguidinha e quando voltou a primavera o mundo apresentava um aspecto mais triste É que faltava na música do mundo o som estridente daquela cigarra morta por causa da avareza da formiga Mas se a usurária morresse quem daria pela falta dela Os artistas poetas pintores escritores músicos são as cigarras da humanidade Leia a seguir uma fábula de Monteiro Lobato FONTE Disponível em httprecantodasletrasuolcombrcontos1184720 Acesso em 12 set 2012 Lobato escreveu o primeiro livro voltado ao público infantil A Menina do narizinho arrebitado em 1921 e o último Os doze trabalhos de Hércules em 1944 Ele faleceu em 1948 ZILBERMAN 2005 Graças à atividade dos escritores Monteiro Lobato Viriato Correa Érico Veríssimo Graciliano Ramos Figueiredo Pimentel Maria José Dupré entre outros é que a literatura infantil brasileira traça seus caminhos inovadores e ganha projeção nacional e universal 57 RESUMO DO TÓPICO 1 Caroa acadêmicoa neste tópico você viu que O adjetivo infantil determina o público a que se destina Entretanto é o que é escrito para a criança e lido pela criança Alguns escritores e especialistas preferem dispensar o adjetivo infantil afirmando não poder haver distinções que reduzam ou orientem os diferentes leitores A literatura infantil brasileira a exemplo da europeia assumiu a função pedagógica e difundiu modos e modelos comportamentais A primeira fase da literatura infantil no Brasil é norteada por adaptações e traduções de textos europeus principalmente de produções portuguesas Os textos tinham a intenção de incutir o patriotismo a valorização do nacionalismo Entre as décadas de 1920 a 1945 em termos de literatura infantil eclodiram inovações diversas nas áreas culturais expressas na Semana de Arte Moderna A literatura infantil especialmente a partir de Monteiro Lobato recebeu roupagem nova com temáticas e uma linguagem coloquial próximas à realidade da criança Podese afirmar que atualmente a literatura infantil é marcada por personagens que contestavam fatos apareceram as gírias os dialetos as falas regionais ou seja uma literatura inovadora e plena de desafios A literatura surge como um mundo aberto um convite à liberdade de interpretação à criatividade e à exploração das formas O encontro com a arte literária possibilita transformação enriquecimento experiência de vida e transmissão de ideias 58 AUTOATIVIDADE Para a autoatividade leia o texto que segue Desafio aos educadores Um famoso filósofo alemão do século passado Frederico Nietzsche tece uma crítica radical à civilização ocidental dizendo que ela educa os homens para desenvolverem apenas instinto da tartaruga O que quer dizer isso A tartaruga é o animal que diante do perigo da surpresa recolhe a cabeça para dentro de sua casca Anula assim todos os seus sentidos e esconde também na casca os membros tentando protegerse contra o desconhecido Este é o instinto da tartaruga defenderse fecharse ao mundo recolherse para dentro de si mesma e em consequência nada ver nada sentir nada ouvir nada ameaçar Formar boas tartarugas parece ter sido o objetivo dos processos educacionais e políticos de educação desenvolvidos no mundo ocidental nos últimos anos Temos educado os homens para aprenderem a se defender contra todas as ameaças externas sendo apenas reativos Ensinamos o espírito da covardia e do medo Precisamos assumir o desafio de educar o homem para desenvolver o instinto da águia Águia é o animal que voa acima das montanhas que desenvolve seus sentidos e habilidades que aguça ouvidos olhos e competência para ultrapassar os perigos alçando voo acima deles É capaz também de afiar as suas garras para atacar o inimigo no momento que julgar mais oportuno As nossas escolas têm procurado fazer com que nossas crianças se recolham para dentro de si e percam a agressividade o instinto próprio do homem corajoso capaz de vencer o perigo que se lhe apresenta Temos criado neste país uma geraçãotartaruga uma geração medrosa recolhida para dentro de si E estamos todos impregnados por esse espírito de tartaruga Não temos coragem para contestar nossos dirigentes para nos opor às suas propostas e criar soluções alternativas Agimos apenas de maneira reativa negativa covarde Temos ensinado às nossas crianças que os nossos instintos são pecaminosos A parte mais rica do indivíduo que é a sua sensibilidade sua capacidade de amar e de odiar sua capacidade de se relacionar de maneira erótica com o mundo tem sido desprezada Temos ensinado o homem a ser obediente servil pacífico incompetente e depositar todas as suas esperanças num poder maior ou no fim das tempestades 59 Quando ensinaremos aos nossos alunos que eles não precisam se esconder diante das ameaças porque todos nós temos capacidade de alçar voo às alturas ultrapassando as nuvens carregadas de tempestade e perigo Temos ensinado às nossas crianças a se arrastar como vermes e porque se arrastam como vermes elas se tornam incapazes de reclamar se lhes pisam na cabeça O que desejamos afinal desenvolver em nós mesmos e nos jovens O instinto da tartaruga ou o espírito das águias FONTE RODRIGUES Neidson Lições do príncipe e outras lições 18 ed São Paulo Cortez 1999 p 110 Agora responda 2 No texto Desafio aos educadores lemos que a escola desenvolve nos alunos apenas o instinto das tartarugas sendo que deveria desenvolver o espírito das águias Você concorda Por quê 1 Na sua opinião atualmente a escola cumpre seu papel no que se refere à formação de leitores Comente 60 61 TÓPICO 2 GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA ESTRUTURA I UNIDADE 2 1 INTRODUÇÃO As narrativas sejam elas contos de fada lendas fábulas romance entre outras constituemse em objeto de leitura Propiciam ao leitor ou ouvinte uma ou várias interpretações de acordo com seus referenciais Há que se considerar que tais textos possuem características pertinentes que provocam efeitos diferentes em diversas pessoas É em parte a história de vida de cada um que determinará sua significação O encontro com essa literatura favorece a liberdade a satisfação e desperta o imaginário Assim após considerações que situam a literatura como arte envolvida com a palavra descompromissada com a verdade lógica com a racionalidade utilitária e sua inclusão no universo infantil interessanos agora definir uma de suas formas de manifestação mais praticadas a saber o texto narrativo 2 AS NARRATIVAS E O ESTILO Pessoas das mais variadas condições socioculturais têm prazer de ouvir e contar histórias O romancista e ensaísta Forster 1998 cita a obra As mil e uma noites na qual a protagonista Sherazade narrava diariamente histórias ao sultão e as interrompia em momentos de suspense Essa atitude da jovem contadora de histórias motivava sempre mais a curiosidade do sultão Tal fato livrou Sherazade da morte visto que o sultão enamorouse da habilidosa narradora Para Forster nós também somos como o sultão pois quando nossa curiosidade é aguçada permanecemos muito atentos ao desenrolar de um fato Entre os gêneros literários a narrativa poderia ser conceituada como uma forma de discurso que nos apresenta uma história imaginária como se fosse real constituída por uma pluralidade de personagens cujos episódios de vida se entrelaçam num tempo e num espaço determinados DONOFRIO 2006 p 53 isto é características que fariam da narrativa um gênero universal cuja inventividade revelase nas diversas modalidades artísticas em que ainda se concretiza A narrativa pode ser sustentada pela linguagem articulada oral ou escrita pela imagem fixa ou móvel pelo gesto ou pela mistura ordenada de todas essas substâncias está presente no mito na fábula UNIDADE 2 A LITERATURA INFANTIL FONTE DE EMOÇÕES 62 no conto na novela na epopeia na história na tragédia no drama na comédia na pantomima na pintura no vitral no cinema nas histórias em quadrinhos no faits divers na conversação Além disso sob essas formas quase infinitas a narrativa está presente em todos os tempos em todos os lugares em todas as sociedades BARTHES 1972 p 19 Você já parou para pensar o quanto a nossa vida é marcada pela presença da narrativa A todo instante estamos contando para alguém ou silenciosamente para nós mesmos fatos e episódios que nos acontecem ou que poderiam vir a acontecer em nosso dia a dia Basta levantarmos da cama e começa a se desenhar mais uma história mais uma forma de narrativa que vamos indefinidamente tecendo até a nossa morte Alguns de nós mais talentosos conseguem transformar o essencial desses relatos em textos literários por isso são escritores UNI À estrutura da narrativa portanto corresponderia uma lógica não matemática ou exclusivamente racional mas captada de um modo simples e ao mesmo tempo maravilhoso posto que originalmente resultante de uma intuição presente na arte primitiva da caça que ademais pressupunha uma lógica da adivinhação Talvez a própria ideia de narração tenha surgido pela primeira vez numa sociedade de caçadores da experiência do deciframento de indícios mínimos O caçador teria sido o primeiro a contar uma história porque era o único capaz de ler nas pegadas mudas se não imperceptíveis deixadas pela sua presa uma série coerente de acontecimentos GINZBURG apud COMPAGNON 2010 p 129 Além da estrutura da narrativa assunto que será ampliado nos próximos tópicos vale ressaltar a questão relacionada ao que conhecemos como estilo Do dicionário escolhemos as seguintes asserções da palavra estilo maneira de exprimirse utilizando palavras expressões que identificam e caracterizam o feitio de determinados grupos classes ou profissões conjunto de tendências e características formais conteudísticas estéticas etc que identificam ou distinguem uma obra um artista etc ou determinado período ou movimento conjunto de traços que identificam determinada manifestação cultural HOUAISS VILLAR 2009 p 835 A noção de estilo conforme pensadores alemães ingleses e franceses resume o espírito a visão de mundo própria de uma comunidade Pode representar uma norma um ornamento um desvio um gênero uma cultura ou ainda a soma de todos esses conceitos COMPAGNON 2003 Assim a história da literatura pode ser descrita considerando os vários estilos ou os traços marcantes de determinado período o estilo romântico o barroco o clássico o moderno TÓPICO 2 GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA ESTRUTURA I 63 Compagnon 2003 após um levantamento das noções que permeiam o entendimento do estilo considerou que três aspectos são inevitáveis e insuperáveis para o entendimento das noções de estilo O estilo é uma variação formal a partir de um conteúdo mais ou menos estável o estilo é um conjunto de traços característicos de uma obra que permite que se identifique e se reconheça mais intuitivamente do que analiticamente o autor o estilo é uma escolha entre várias escrituras COMPAGNON 2003 p 194 Estilo pode ser entendido como uma forma mais ou menos constante que varia de acordo com as qualidades e as expressões que persistem na arte de um indivíduo ou de um grupo de indivíduos A esse conjunto de textos de determinada nação que se singulariza pela presença de determinados valores estéticos dáse nas palavras de Diderot o nome de arte apud SILVA 1986 p 6 Então podemos afirmar que no que tange à literatura há que se considerar que o estilo abarca questões relativas à natureza e público a que se destina e em nosso caso o jovem leitor Além disso a classificação é feita não somente em função do aspecto temático mas levando em conta a predominância de elementos constitutivos de cada gênero A maneira do escritor organizar e expressar ideias e pensamentos elementos e estruturas caracteriza o estilo tais como a apresentação o conflito ou a complicação o clímax o desfecho o tema ou enredo a fala das personagens o espaço ou seja o ambiente o tempo são recursos dos quais o escritor lança mão para compor os mais variados gêneros Nesse sentido é importante que na escola o professor atente para esses aspectos a fim de que possa refletir juntamente com os alunos o que engendra um texto literário Caroa acadêmicoa a partir do conceito de estilo proposto por Compagnon elencamos uma característica marcante nos escritos de Machado de Assis qual seja a de um narrador intrometido as personagens machadianas contam sua vida e intercalam a narração em primeira pessoa com frequentes explicações para o leitor Parecem justificar para si e explicar aos que os escutam os acontecimentos que motivaram seus atos O narrador eou protagonista provoca o leitor em uma série de afirmações interrogações exclamações Nos contos machadianos encontramos este recurso a exemplo do conto O Sainete Pode o leitor coçar o nariz à procura da explicação a leitora não precisa desse recurso para adivinhar que o Dr Maciel ama que uma seta do deus alado o feriu mesmo no centro do coração O que a leitora não pode adivinhar sem que eu lho diga é que o jovem médico ama a viúva Seixas cuja maravilhosa beleza levava após si os olhos dos mais consumados pintalegretes O Dr Maciel gostava de a ver como todos os outros amoua desde certa noite e certo baile em que ela andando a passeio pelo seu braço perguntoulhe de repente com a mais deliciosa languidez do mundo ASSIS 2011 p 68 UNIDADE 2 A LITERATURA INFANTIL FONTE DE EMOÇÕES 64 Após mapear alguns atributos que definem a narrativa literária resenharemos acerca dos gêneros mais comuns na modalidade literatura infantojuvenil Além disso atente para a sua estrutura seu estilo suas características procure estabelecer diferenças e semelhanças Bom estudo 3 NARRATIVAS O CONTO No mundo dos contos de fadas não devem ser despertados sentimentos de angústia e tampouco sentimentos inquietantes Quanto ao silêncio e escuridão tudo o que podemos dizer é que são realmente os fatores a que se acha ligada a angústia infantil que na maioria das pessoas nunca desaparece inteiramente FREUD 2010 p 376 Os contos populares contos de fada as lendas bem como o cordel o mito sempre foram associados ao folclore e por vezes foram suprimidos dos estudos literários Segundo Leal 1985 p 9 a partir do século XX com a linguística saussuriana ocorre um resgate acadêmico desse material de origem popular Assim despontam novas perspectivas sugerindo outros modelos de análise para essas narrativas As reflexões compreenderam que o ato de narrar de recontar histórias é inerente ao ser humano Desde o princípio das civilizações o contar oralmente era a única possibilidade de registro e sendo assim foi reconstruído seu valor tanto literário quanto no processo de formação do leitor Nesse sentido esse resgate da chamada literatura oral beneficiou a construção de uma memória de leitura de um povo bem como os estudos dessa literatura Além dos crescentes trabalhos sobre as narrativas de tradição oral o mercado editorial também ampliou o número de edições dessas histórias geralmente catalogadas como literatura infantil e juvenil com um tratamento editorial e gráfico aprimorado colorido com ilustrações e traços que realçam as novas configurações e os elementos visuais No Brasil Cascudo 2004 coletou e registrou histórias contadas pelo povo especialmente do Nordeste brasileiro sempre com o cuidado de ser um coletor não um autor Cascudo declarou que mantinha cerca de noventa por cento da linguagem oral Nenhum vocábulo foi substituído Apenas não julguei indispensável grafar muié prinspo prinspa timive terrive Conservei a coloração do vocabulário individual as imagens perífrases intercorrências Impossível será a ideia do movimento o timbre a representação personalizadora das figuras evocadas instintivamente feita pelo narrador CASCUDO 2004 p 16 Segundo Leal 1985 nas coletâneas de Câmara Cascudo há nos textos um estilo revelando um contorno peculiar de composição oral marcada pela escritura TÓPICO 2 GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA ESTRUTURA I 65 Esses contos lendas narrativas míticas é bom lembrar são expressões de culturas orais propagadas por narradores passadas de geração em geração portanto passíveis de modificações fusões acréscimos cortes substituições e influências Eis porque os contos populares revelam certa dificuldade de identificar sua verdadeira origem Ainda segundo Câmara Cascudo folclorista brasileiro para ser classificado como conto popular é preciso que o conto seja velho na memória do povo anônimo em sua autoria divulgado em seu conhecimento e persistente nos repertórios orais Que seja omisso nos nomes próprios localizações geográficas e datas CASCUDO 2004 p 13 O conto difere de outras formas de narrativa de ficção não somente por sua brevidade que oferece um episódio uma amostra da vida mas por conter outras características É o que procuraremos elencar 31 OS CONTOS DE FADA Estas narrativas surgiram com os celtas aproximadamente no século II aC propagadas através da oralidade O conto de fada apresenta uma estrutura com início meio e fim A história iniciase com uma situação de equilíbrio alterada por um conflito No decorrer dos acontecimentos a tranquilidade é retomada pelo herói ou heroína efetuandose assim o desfecho da história Fada Palavra derivada do latim fátaae a deusa do destino Parca HOUAISS VILLAR 2009 p 867 UNI Nessas narrativas aparecem fadas duendes espelhos mágicos príncipes princesas reis rainhas bruxas gigantes ou seja objetos ou seres mágicos elementos que conferem uma simbologia a esse modelo literário Apresentam temas relacionados ao medo ao amor às carências às perdas e buscas Essas questões fazem parte do cotidiano infantojuvenil e favorecem a autodescoberta quem somos e o que desejamos conforme nossos valores morais e éticos Os contos de fada trazem a magia que alimenta a imaginação ajudam a encarar os problemas da vida e por vezes trazem esperanças de dias melhores É um pouco por isso que ainda hoje esses contos continuam a ser tão encantadores para adultos e crianças que podem acreditar UNIDADE 2 A LITERATURA INFANTIL FONTE DE EMOÇÕES 66 pelo menos na fantasia de que é possível viver feliz para sempre GAGLIARDI AMARAL 2001 p 86 O conto possibilita à criança dar vazão a seus afetos e angústias ou seja o conto faz rir e chorar é um treino para as emoções Bruno Bettelheim 1980 em sua obra A Psicanálise dos Contos de Fada afirma que os mesmos ajudam a resolver problemas da existência da criança Enfatiza também o poder regenerador dos contos Por conterem na sua estrutura elementos simbólicos criam uma ponte com o inconsciente propiciando ao jovem leitor conforto e consolo em termos emocionais Outro elemento característico dos contos de fada é a presença de personagens que não mudam bruscamente suas ações ou reações no decorrer da narrativa são bem delineadas quanto ao seu caráter ou modo de ser bom ou mau São representantes destas personagens os reis as rainhas os príncipes as princesas as fadas as bruxas Personagens classificadas como planas E que serão objeto de estudos futuros Algumas características são recorrentes entre os contos tais como a existência de poderes desconhecidos feitiços monstros encantos instrumentos mágicos vozes do além viagens extraordinárias Costumam ocorrer num tempo desconhecido reconhecido pelas expressões era uma vez há muito tempo há milhares de anos Nelly Novaes Coelho 2000 p 173 distingue conto maravilhoso do conto de fadas Segundo a autora o conto maravilhoso foi difundido pelos árabes São narrativas nas quais a aventura é de natureza materialsocialsensorial ou seja no enredo aparece a satisfação do corpo e busca pela riqueza e poder Ainda de acordo com a autora isto o diferencia do conto de fadas uma vez que este é de origem celta e é permeado por uma natureza espiritualética existencial com aventuras ligadas ao sobrenatural daí a aparecerem os seres dotados de poderes como as fadas com extraordinários encantos IMPORTANTE As personagens geralmente são apresentadas como a bela adormecida um certo rei uma princesa muito linda a filha mais amada e que no decorrer da narrativa enfrentam os mais variados perigos nos quais aventuram se são castigados vencem casam e quanto ao aspecto físico não mudam Além disso exploram o bem como tudo o que corrobora para com os objetivos do herói ou da heroína Ao contrário o que prejudica ou atrapalha é denominado de mal Em outras palavras é uma moral relativa determinada por situações do contexto TÓPICO 2 GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA ESTRUTURA I 67 As personagens nos contos de fadas não são ambivalentes não são ao mesmo tempo boas e más como somos todos na realidade Mas uma vez que a polarização domina a mente da criança ela também domina os contos de fadas Uma pessoa é boa ou má sem meiotermo Um irmão é tolo o outro esperto Uma irmã é virtuosa e trabalhadora as outras vis e preguiçosas Uma é bela as outras feias BETTELHEIM 2007 p 20 É assim que para Bettelheim ao lado das relações parentais e afetivas seria o conto de fadas a mais alta expressão de uma herança cultural que poderia verdadeiramente contribuir para propiciar às crianças uma infância emocionalmente sadia Enquanto diverte a criança o conto de fadas esclarece sobre si próprio e favorece o desenvolvimento de sua personalidade Oferece tantos níveis distintos de significado e enriquece a sua existência de tantos modos que nenhum livro pode fazer justiça à profusão e diversidade das contribuições dadas por esse conto à vida da criança O prazer que experimentamos quando nos permitimos ser sensíveis a um conto de fadas o encantamento que sentimos não vêm do significado psicológico de um conto embora isso contribua para tal mas de suas qualidades literárias o próprio conto como uma obra de arte BETTELHEIM 2007 p 17 São narrativas que pressupõem sempre uma voz que conta até porque como já sabemos nasceram na oralidade são textos lineares com começo meio e fim Bettelheim 2007 por exemplo acredita que a simplificação das ações narrativas através do uso da tríade básica começo meio e fim aliada à polarização das personagens em boas e más capta uma origem inconsciente e profunda dos valores humanos que podem contribuir significativamente para a evolução emocional da criança evolução que se deve dar de forma progressiva posto que só em idade madura ela estaria apta a estabelecer relações mais complexas e mais próximas da realidade tal como a experimentamos Vejamos outras questões encontradiças nessas narrativas quais sejam a metamorfose personagens ou objetos podem ser encantados por algum efeito maléfico Essa transformação ao que parece está ligada a antigas crenças de que todos os seres anormais ou disformes possuíam poderes de intervenção na vida humana Geralmente é uma figura feminina que consegue quebrar desfazer o encanto Outro elemento são os objetos mágicos que em um passe de mágica interferem no destino das personagens ajudando ou prejudicando Exemplos bem difundidos foram o espelho mágico e a varinha de condão Há que se considerar que os elementos sobrenaturais estão ligados a um enigma desafiador um obstáculo a ser vencido Os contos de fada apresentam geralmente seres dotados de poderes que vencem obstáculos e a partir de então modificam sua vida Conseguem por UNIDADE 2 A LITERATURA INFANTIL FONTE DE EMOÇÕES 68 exemplo conquistar a pessoa amada eou o trono de algum reino São enredos voltados a problemáticas existenciais nos quais de acordo com Bettelheim 2007 p 15 A cultura dominante deseja fingir particularmente no que se refere às crianças que o lado obscuro do homem não existe e professa a crença num aprimoramento otimista Em contrapartida essa é exatamente a mensagem que os contos de fadas transmitem à criança de forma variada que uma luta contra dificuldades graves na vida é inevitável é parte intrínseca da existência humana mas que se a pessoa não se intimida e se defronta resolutamente com as provações inesperadas e muitas vezes injustas dominará todos os obstáculos e ao fim emergirá vitoriosa Em tais enredos paira a ideia do maravilhoso A história iniciase com uma situação de equilíbrio alterada por um conflito devendo este ser resolvido pelo herói ou heroína A restauração da ordem acontece no desfecho da narrativa a trama é revelada ao leitor de forma rápida e surpreendente As fadas os duendes objetos mágicos príncipes princesas reis rainhas bruxas gigantes são elementos que assinalam o estilo desse gênero literário Assim por ser a forma narrativa de maior destaque na relação da literatura com a infância o conto popular mais conhecido como conto de fadas agrupa temáticas variadas que expressam a psicologia coletiva e inconsciente dos povos relatam coisas e eventos que não como eles são mas sim como deveriam ser portanto fazendo predominar sobre os aspectos negativos da vida os valores considerados sagrados pelas comunidades tais como o triunfo do bem sobre o mal da beleza sobre a feiura da verdade sobre a mentira da justiça sobre a injustiça entre outros As narrativas constituemse em objeto de leitura dentro e fora do espaço escolar O encontro com os contos de fada ainda favorece a liberdade e desperta o imaginário do leitor É o assunto que discutiremos a seguir 4 O PODER DOS CONTOS NA CONTEMPORANEIDADE Ainda que o tempo tenha evoluído os contos infantis não perderam o seu valor pois tanto as crianças quanto os jovens tiram proveito das suas mensagens ou seja fazem crescer e despertam a consciência Contribuem no despertar o interesse na literatura são estímulos à imaginação e criatividade favorecem o diálogo com os seus familiares e amigos potenciam a cultura e a inteligência emocional tratam de valores de comportamento ético entre outros Uma das prováveis vantagens dos contos de fadas sobre as outras formas de ficção devese à universalidade de sua difusão O compartilhamento de trechos do imaginário entre as crianças é o que possibilita sua utilização como se fosse um brinquedo Se uma menina diz para a outra seremos princesas eu quero ser a Bela Adormecida TÓPICO 2 GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA ESTRUTURA I 69 a amiga pode responder e eu a Cinderela e então a brincadeira pode começar sem maiores esclarecimentos CORSO CORSO 2003 p 78 De acordo com o exposto inferese que a criança através da imaginação incorpora traços da personalidade das personagens e cenários advindos da ficção No dizer de Bruno Bettelheim 2001 p 15 a criança necessita muito particularmente que lhe sejam dadas sugestões em forma simbólica sobre o modo como ela pode lidar com estas questões os problemas existenciais e crescer a salvo para a maturidade Com base nesse pressuposto o autor em questão vê o conto de fadas como possibilidade que conduz a um plano superior de compreensão e elaboração Bettelheim 2001 p 33 afirma que o conto de fadas é terapêutico porque o paciente encontra sua própria solução através da contemplação do que a história parece implicar acerca de seus conflitos internos neste momento da vida E argumenta ainda que a forma e a estrutura dos contos de fadas sugerem imagens à criança com as quais estrutura seus devaneios BETTELHEIM 2001 p 16 Ressalta a importância da história e dela extrair os elementos que vão servir de remédio para o convívio com os demais são as escolhas que as crianças fazem a partir do seu imaginário Seria esse o potencial dos contos traduzir o que se passa conosco ainda que não compreendamos uma angústia ou um sofrimento Uma história pode dar um sentido delinear o nosso sofrimento Nesse caso um conto de fadas estabelece uma relação com um problema real mérito que Bettelheim 2001 enfatiza pois a criança ao ouvir histórias fantásticas sente segurança e conforto ainda que não compreenda as dificuldades e onde estão consegue superálas pela sensação de um bemestar Para o autor em questão as crianças conseguem lidar melhor com o mundo extrafamiliar por conta das esperanças e promessas contidas nos contos de fadas ou seja à medida que a criança cresce consegue satisfações emocionais com pessoas que não fazem parte de sua família BETTELHEIM 1992 p 155 A criança se apropria de certas habilidades que não realizava mas que por força do seu natural desenvolvimento é desafiada como as mudanças de relações e hábitos Esse fato pode causar desapontamentos frustração desespero e decepção especialmente em relação aos seus pais seus provedores Segundo Bettelheim 1992 p 157 esse é o momento em que a criança começa a fantasiar e acreditar nas fantasias que forma e vive mais presa ao futuro fugindo das angústias de um presente que não a agrada A criança passa então a manejar os acontecimentos e suas relações com o mundo são determinadas pelo contato com contos de fadas durante a sua formação pelos avanços e retrocessos em seu desenvolvimento os quais se constituem forma sadia de crescer Desse modo quando insatisfeita é comum que ela imagine para UNIDADE 2 A LITERATURA INFANTIL FONTE DE EMOÇÕES 70 si um reino encantado cujo fato é positivo para o seu desenvolvimento pois é nesse fazer que a criança constrói sua personalidade BETTELHEIM 1992 É preciso então considerar o mito e a fantasia inerentes à formação humana afinal a simbologia é capaz de representar os pensamentos especialmente os da criança Os contos infantis contribuem para o conhecimento para o convívio harmonioso para a compreensão dos conflitos na medida em que a criança pelo contato e leitura cresce cognitivamente e estrutura a sua personalidade Ao compreender a simbologia dos contos de fadas pais e professores terão a seu favor um precioso recurso de desenvolvimento infantil que favorecerá a fantasia e a imaginação Diante disso é preciso um olhar atento sobre esse assunto com vistas a discussões acerca do papel dos contos de fadas no processo de ensino e aprendizagem Do ponto de vista antropológico e filosófico o mito é encarado como a palavra que designa um estágio do desenvolvimento humano anterior à história MOISÉS 2004 p 342 Assim as histórias expressavam uma compreensão fantástica ou um ponto de vista religioso do mundo e o mito aludia a uma forma de narrativa ficcional que em sua origem versaria sobre divindades e a interferência delas na vida e no comportamento humanos e que por ser criado por uma coletividade não possuiria uma autoria específica A maior parte deles por expressarem valores de comunidades primitivas passou a ser também estudada pela Mitologia Há entretanto os mitos literários criados por autores específicos e que buscam exprimir valores de vida pessoais obedecendo assim a um encadeamento mais lógico e subjetivo UNI TÓPICO 2 GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA ESTRUTURA I 71 A discussão acerca do poder dos contos de fada teve por base o livro Psicanálise dos contos de fadas publicado pela Bertand Editora 2001 que aborda os contos de fadas numa perspectiva psicológica e social Bruno Bettelheim reflete sobre os efeitos benéficos dos contos infantis na criança ajudando pais professores e outros profissionais que atuam com as crianças a compreender os impactos dos contos no desenvolvimento pessoal social e afetivo Para o estudioso além do entretenimento os contos infantis fornecem às crianças pistas para a resolução dos seus problemas como lidar com as mudanças de vida enfrentar um amigo na escola aprender a lutar pelo que se deseja entre outras possibilidades O autor aborda também as teorias da psicologia sociologia e psicanálise como o Complexo de Édipo o Inconsciente o Princípio do prazer versus princípio da realidade entre outras para embasar os seus estudos acerca do conto de fadas e o seu efeito na criança FONTE Disponível em httpwwwnetsabercombr UNI 72 RESUMO DO TÓPICO 2 Neste tópico apresentamos A narrativa poderá ser conceituada como uma história imaginária composta por uma pluralidade de personagens com episódios que se entrelaçam num tempo e num espaço O estilo presente nas narrativas e nas demais formas de expressão da arte pode ser entendido como uma norma um ornamento um traço marcante de determinado período autor obra levando em conta a predominância de elementos característicos de cada gênero Os contos as lendas as narrativas míticas é bom lembrar são expressões de culturas orais propagadas por narradores passadas de geração em geração portanto passíveis de modificações fusões acréscimos cortes substituições e influências No Brasil Câmara Cascudo coletou e registrou histórias contadas pelo povo especialmente do Nordeste brasileiro sempre com o cuidado de ser um coletor não um autor O conto de fadas apresenta uma estrutura com início meio e fim A história iniciase com uma situação de equilíbrio alterada por um conflito No decorrer dos acontecimentos a tranquilidade é retomada efetuandose assim o desfecho da história Os temas recorrentes nos contos estão relacionados ao medo ao amor às carências às perdas e buscas Outro elemento característico dos contos de fadas é a presença de personagens planas envoltas em temáticas que expressam a psicologia coletiva e inconsciente dos povos relatando valores considerados sagrados pelas comunidades tais como o triunfo do bem sobre o mal da beleza sobre a feiura da verdade sobre a mentira da justiça sobre a injustiça entre outros Nos contos maravilhosos as questões emanam do social e do econômico isto é são problemáticas ligadas à vida e à sobrevivência A personagem central lutará para conquistar bens status e poder Para tanto será auxiliada por elementos mágicos e maravilhosos São exemplos de conto maravilhoso O gato de botas Aladim e a lâmpada maravilhosa muitos dos contos de As mil e uma noites Os contos destinados ao público infantil não perderam seu encanto mágico e contribuem para despertar o interesse na literatura são estímulos à imaginação à criatividade e à interpretação favorecem o diálogo potenciam a cultura e a inteligência emocional 73 Para Bettelheim 2001 um conto de fadas estabelece uma relação com um problema real assim a criança ao ouvir histórias fantásticas sente segurança e conforto ainda que não compreenda as dificuldades consegue superálas pela sensação de um bemestar Os contos de fadas contribuem para o conhecimento para o convívio harmonioso para a compreensão dos conflitos na medida em que a criança pelo contato e leitura cresce cognitivamente e estrutura a sua personalidade O mito e a fantasia são inerentes à formação humana afinal a simbologia é capaz de representar os pensamentos O mito em sua origem acena para uma forma de narrativa ficcional que versa sobre divindades e a interferência delas na vida e no comportamento humanos foi criado por uma coletividade não possuindo uma autoria específica Há entretanto os mitos literários criados por autores específicos e que buscam exprimir valores de vida pessoais obedecendo assim a um encadeamento mais lógico e subjetivo A modalidade infantojuvenil devido à sua funcionalidade estética lúdica e cognitiva é fonte de instrução e arte porque pressupõe que desde a infância o homem necessita da expressão e da compreensão do mundo No constante contato com a arte a visualização da fantasia da imaginação do faz de conta a criança experimenta novas sensações com emoção prazer e aguça o fascínio pelo belo pela expressão artística 74 AUTOATIVIDADE Caroa acadêmicoa propomos algumas questões com o objetivo de leváloa a refletir sobre sua vida como leitora 1 Dos livros que você já leu qual deles você indicaria para um amigo Por quê 2 Quais são suas preferências de leitura quanto ao assunto Enumere de 1 a 9 indicando sua preferência de forma crescente Humor Ficção científica Terror Poesia Autoajuda Mistério Ciência e saúde Policial Filosofia Esoterismo Outros 3 Você gosta de ler revistas Em caso afirmativo quais 5 Quais seus escritores brasileiros preferidos 6 Quais seus escritores estrangeiros preferidos 7 Enumere de 1 a 10 de modo crescente as atividades de sua preferência Ouvir música Dançar Ler Ir ao cinema Praticar esportes 4 Você lê jornais Qual assunto mais interessa a você 75 Assistir TV Ir ao teatro Viajar Namorar Navegar na internet 8 Você se considera um leitor Justifique Importante que oa ProfessoraTutora Externoa comente sobre a necessidade de que para sermos professores devemos antes ser leitores Caroa acadêmicoa socialize suas respostas Peça para oa ProfessoraTutora Externoa ouvir o que os colegas escreveram Fomente o diálogo e a troca de ideias 76 77 TÓPICO 3 GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA ESTRUTURA II UNIDADE 2 1 INTRODUÇÃO Você já observou a tripartição das ações que aparece nas narrativas É o caso dos filmes sobre piratas em que se apresenta nos primeiros minutos uma ilha paradisíaca na qual vive uma linda moça que geralmente é filha de um governante ou rei Após ser mostrada essa situação inicial harmônica inicia se o conflito quando a linda jovem ao passear distraidamente em uma praia é raptada por um grupo de piratas malfeitores Organizase então uma expedição em busca de recuperar a moça indefesa momento em que um belo e valoroso jovem encarnando o papel de herói da trama salva a filha do governante e por ter restituído a harmonia inicial recebe a mão dela em casamento como forma de compensação por sua bravura Não será assim a estrutura da maior parte dos filmes hollywoodianos Pense nos que vêm à mente e reflita se eles estão ou não voltados para agradar ao senso comum 2 A COMPOSIÇÃO DOS TEXTOS LITERÁRIOS Após este exercício de reflexão discorreremos sobre a estrutura ou a composição das narrativas sobre o encadeamento de uma sequência de fatos reais ou imaginários na qual as personagens após uma série de acontecimentos restabelecem o equilíbrio diferente ou não do equilíbrio inicial Assim podemos dizer que um texto narrativo apresenta a seguinte estrutura Apresentação também conhecida como início no qual o autor apresenta parte dos personagens do ambiente e algumas das circunstâncias da história Devese atentar para o fato de que existem textos nos quais já de início mostrase a ação em pleno desenvolvimento Atente para o fato de que existe uma técnica literária conhecida como In media res expressão latina que significa no meio dos acontecimentos O escritor omite personagens cenários e conflitos no início da narrativa e os retoma adiante por meio de uma série de flashbacks ou por intermédio de personagens que discorrem entre si sobre eventos passados Essa forma de iniciar a narrativa não no início temporal mas a partir de um ponto médio de seu desenvolvimento pode ser encontrada nas obras clássicas como a Eneida de Virgílio e a Ilíada de Homero 78 UNIDADE 2 A LITERATURA INFANTIL FONTE DE EMOÇÕES O escritor Luís de Camões a exemplo dos clássicos lançou mão dessa técnica em Os Lusíadas NOTA Conflito ou complicação momento do texto no qual se inicia propriamente a ação O aparente equilíbrio dá lugar a transformações expressas em um ou mais episódios que se sucedem conduzindo ao clímax A partir desse primeiro movimento de entrada na narrativa no qual identificamos uma convivência harmônica entre as personagens e a sociedade retratada seguirseá inevitavelmente um segundo movimento denominado fase de transgressão e que é caracterizado pela ruptura daquela forma de convivência ordeira e pacífica por parte de um indivíduo vil ou fraco de caráter transgressão esta a partir da qual se inicia o terceiro movimento agora em direção ao fim da história e que trata do restabelecimento da ordem inicial conhecido como clímax Neste momento a narrativa atinge seu ponto máximo e crítico que convergirá no desfecho Para entendermos o arranjo das funções contratuais é preciso pressupor um contrato natural e implícito subjacente a toda organização social o indivíduo deve admitir uma hierarquia de valores e a ela subordinarse Em troca do conforto da proteção e de outros inúmeros benefícios que a vida em sociedade lhe oferece o indivíduo obrigase ao respeito das normas impostas pelo viver em comunidade A transgressão de uma ordem por parte de um membro da sociedade implica a ruptura desse contrato natural implicitamente aceito No seio da sociedade o elemento disfórico o transgressor é contrabalançado pelo herói o reparador DONOFRIO 2006 p 78 Desenlace ou desfecho parte do texto na qual se restabelece o equilíbrio e em que geralmente acontece a solução do conflito Os episódios que compõem as narrativas podem seguir uma sequência cronológica No entanto encontramos narrativas em que o desfecho aparece antes da complicação e do clímax É interessante notar que essa forma estrutural das histórias estabelecida segundo três movimentos estruturais básicos três pontos centrais fixos começo ou equilíbrio transgressão ou dano e reparação adveio de um estudo contundente do teórico russo Vladimir Propp não propriamente sobre textos eruditos mas acerca dos tradicionais contos populares Assim Propp foi o pioneiro da abordagem interna ou estrutural do texto literário Para ele uma narrativa é vista como uma obra de arte que uma vez produzida passa a ter uma vida independente do autor e da época DONOFRIO 2006 p 66 TÓPICO 3 GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA ESTRUTURA II 79 Dessa forma a partir do estudo de cem contos maravilhosos o referido autor pôde constatar que poderiam ocorrer não apenas três mas 31 funções fixas comuns e possíveis não apenas aos contos de fadas e histórias maravilhosas mas a toda e qualquer forma de narrativa literária funções sobre as quais devem se debruçar todos aqueles interessados em aprofundar seus estudos em teoria da literatura Caroa acadêmicoa relacionamos a seguir as 31 funções elencadas por Vladimir Propp afastamento interdição transgressão interrogação informação engano cumplicidade dano pedido de socorro início da ação contrária partida função do doador reação do herói recepção do objeto mágico deslocamento espacial luta marca vitória reparação volta perseguição socorro chegada incógnita pretensões falsas tarefa difícil tarefa cumprida reconhecimento desmascaramento transfiguração punição casamento UNI Além de sua estrutura vários elementos compõem a narrativa personagens ação tempo espaço tema ou enredo e estilo integrados numa obra a ser apreciada pelo leitor Refletiremos caroa acadêmicoa sobre cada um destes 21 A AÇÃO Ação história trama assunto tema ou o enredo são alguns dos termos usados para designar o que sucede na narrativa No caso das narrativas infantis e contos tradicionais desenrolamse dois tipos padrões de ação um em que alguém por sentirse inadequado ao meio social em que vive pretende modificar na maior parte das vezes de modo ilícito a harmonia social existente papel geralmente desempenhado pelo vilão da história e um segundo em que algum personagem colocado em contraposição àquele encarna os valores sociais idealizados pela comunidade e por ser destinado ao bem consegue restituílos na medida em que vence o mal e vilania a ele associada O conto de fadas simplifica todas as situações Suas personagens são esboçadas claramente e detalhes exceto quando muito importantes são eliminados Todas as personagens são típicas em lugar de únicas Em praticamente todo conto de fadas o bem e o mal são corporificados sob a forma de alguns personagens e de suas ações Não é o fato de a virtude vencer no final que promove a moralidade mas sim o fato de o herói ser extremamente atraente para a criança que se identifica com ele em todas as suas lutas BETTELHEIM 2007 p 16 80 UNIDADE 2 A LITERATURA INFANTIL FONTE DE EMOÇÕES O enredo envolve o que acontece com as personagens suas ações e reações É o desenrolar dos acontecimentos simples ou complexos de conflitos que surgem de uma situação que desequilibra a vida das personagemns e que pode ser resolvida ou não Então podemos dizer que a ação referese à sequência dos acontecimentos de uma narrativa literária teatral cinematográfica entre outras Acerca ainda dessa tripartição fabular começo meio e fim que possibilita categorizar o gênero narrativo como um conjunto de obras que se valem dos mesmos elementos estruturais e que os utilizam de um modo semelhante é interessante destacar que uma ação decorreria da outra e todas partiriam do desenvolvimento de uma situação inicial que é determinada pelas relações existentes entre as personagens anteriormente a qualquer ação Geralmente ela é representada simbolicamente por uma paisagem edênica pitoresca e colorida e indica um estado de felicidade que serve como fundo contrastivo à infelicidade que vai se seguir A situação inicial é ao mesmo tempo estática e conflitual Estática porque não contém nenhum movimento ou ação Conflitual porque contém virtualmente um motivo dinâmico de conflito que irá possibilitar o desenrolar dos acontecimentos DONOFRIO 2006 p 7576 Mas de modo geral e independente do tipo de gênero da obra literária trata o enredo de um conjunto de acontecimentos narrados na trama termo que se reporta mais aos arranjos estilísticos dos episódios da narrativa ficcional ou para utilizar uma terminologia mais estrutural do desenrolar das ações da fábula termo que se reporta mais à sucessão cronológica dos acontecimentos em que personagens participam sofrem e reparam danos em um tempo sequencial e em um espaço determinado 22 AS FALAS NA NARRATIVA No que tange às falas das personagens estas podem ser classificadas em Discurso direto o discurso direto nas palavras de Ulisses Infante 1999 p 116 é a reprodução direta das falas das personagens e um recurso que imprime maior agilidade ao texto Você poderá constatar no exemplo que segue TÓPICO 3 GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA ESTRUTURA II 81 Seu major Seu major suspendeu as instruções ficou esperando Seu major Deuse O quê A coisa Hein A coisa O Washington Não percebo homem A REVOLUÇÂO VENCEU Estás doido O chefe da estação ficou possesso Eu doido O senhor é que está maluco Se não é analfabeto leia isto FONTE MACHADO Antônio de Alcântara Contos avulsos as cinco panelas de ouro Disponível em httpwwwbibliocombrconteudoalcantaramachadomcontosavulsoshtm Acesso em 12 nov 2012 O discurso indireto neste caso ao narrador cabe a tarefa de contar os fatos que se sucedem com as personagens Observe que a narrativa poderá ser conduzida na primeira ou na terceira pessoa utilizandose dos pronomes pessoais eu e nós Ocorre em terceira pessoa quando o narrador esclarece os fatos e os pormenores revelando progressivamente o caráter das personagens aspectos físicos e o meio em que vivem sem no entanto participar da história Entretanto o narrador não deve ser confundido com o autor O narrador pertence ao texto e fora deste ele não existe É uma entidade fictícia responsável pela dinâmica que produz o discurso narrativo Segundo W Kaiser 1970 o narrador tem como função atuar conduzir ou imprimir ou seja narrar Uma narrativa pode ser conduzida por um narrador que participa da história narrada e toma parte dos acontecimentos expondo o que presencia em primeira pessoa eu nós um narrador personagem Constituise assim em um personagemnarrador como no caso do conto de Clarice Lispector Felicidade Clandestina Ela era gorda baixa sardenta e de cabelos excessivamente crespos meio arruivados Tinha um busto enorme enquanto nós todas ainda éramos achatadas Como se não bastasse enchia os dois bolsos da blusa por cima do busto com balas Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter um pai dono de livraria 82 UNIDADE 2 A LITERATURA INFANTIL FONTE DE EMOÇÕES Pouco aproveitava E nós menos ainda até para aniversário em vez de pelo menos um livrinho barato ela nos entregava em mãos um cartãopostal da loja do pai Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo onde morávamos com suas pontes mais do que vistas Atrás escrevia com sua letra bordadíssima palavras como data natalícia e saudade Mas que talento tinha para a crueldade Ela toda era pura vingança chupando balas com barulho Como essa menina devia nos odiar nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas esguias altinhas de cabelos livres Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo Na minha ânsia de ler eu nem notava as humilhações a que ela me submetia continuava a implorar lhe emprestados os livros que ela não lia Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa Como casualmente informoume que possuía as Reinações de Narizinho de Monteiro Lobato Era um livro grosso meu Deus era um livro para se ficar vivendo com ele comendoo dormindoo E completamente acima de minhas posses Disse me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança de alegria eu não vivia eu nadava devagar num mar suave as ondas me levavam e me traziam No dia seguinte fui à sua casa literalmente correndo Ela não morava num sobrado como eu e sim numa casa Não me mandou entrar Olhando bem para meus olhos disseme que havia emprestado o livro a outra menina e que eu voltasse no dia seguinte para buscálo Boquiaberta saí devagar mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife Dessa vez nem caí guiavame a promessa do livro o dia seguinte viria os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira o amor pelo mundo me esperava andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez Mas não ficou simplesmente nisso O plano secreto da filha do dono da livraria era tranquilo e diabólico No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa com um sorriso e o coração batendo Para ouvir a resposta calma o livro ainda não estava em seu poder que eu voltasse no dia seguinte Mal sabia eu como mais tarde no decorrer da vida o drama do dia seguinte com ela ia se repetir com meu coração batendo E assim continuou Quanto tempo Não sei Ela sabia que era tempo indefinido enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer às vezes adivinho Mas adivinhando mesmo às vezes aceito como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra TÓPICO 3 GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA ESTRUTURA II 83 Quanto tempo Eu ia diariamente à sua casa sem faltar um dia sequer Às vezes ela dizia pois o livro esteve comigo ontem de tarde mas você só veio de manhã de modo que o emprestei a outra menina E eu que não era dada a olheiras sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados Até que um dia quando eu estava à porta de sua casa ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa apareceu sua mãe Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa Pediu explicações a nós duas houve uma confusão silenciosa entrecortada de palavras pouco elucidativas A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo Até que essa mãe boa entendeu Voltouse para a filha e com enorme surpresa exclamou Mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha Ela nos espiava em silêncio a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta exausta ao vento das ruas de Recife Foi então que finalmente se refazendo disse firme e calma para a filha Você vai emprestar o livro agora mesmo E para mim E você fica com o livro por quanto tempo quiser Entendem Valia mais do que me dar o livro pelo tempo que eu quisesse é tudo o que uma pessoa grande ou pequena pode ter a ousadia de querer Como contar o que se seguiu Eu estava estonteada e assim recebi o livro na mão Acho que eu não disse nada Peguei o livro Não não saí pulando como sempre Saí andando bem devagar Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos comprimindoo contra o peito Quanto tempo levei até chegar em casa também pouco importa Meu peito estava quente meu coração pensativo Chegando em casa não comecei a ler Fingia que não o tinha só para depois ter o susto de o ter Horas depois abrio li algumas linhas maravilhosas fecheio de novo fui passear pela casa adiei ainda mais indo comer pão com manteiga fingi que não sabia onde guardara o livro achavao abriao por alguns instantes Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade A felicidade sempre iria ser clandestina para mim Parece que eu já pressentia Como demorei Eu vivia no ar Havia orgulho e pudor em mim Eu era uma rainha delicada Às vezes sentavame na rede balançandome com o livro aberto no colo sem tocálo em êxtase puríssimo Não era mais uma menina com um livro era uma mulher com o seu amante FONTE LISPECTOR Clarice Coleção Literatura em Minha Casa seleção e organização de Maria Clara Machado Rio de Janeiro 2002 84 UNIDADE 2 A LITERATURA INFANTIL FONTE DE EMOÇÕES Podemos também encontrar nas histórias o narrador em terceira pessoa Aquele que esclarece os fatos e os pormenores revelando progressivamente o caráter das personagens aspectos físicos e o meio em que vivem sem no entanto participar da ação narrada Já o discurso indireto livre ocorre quando a narrativa é permeada pela intervenção do narrador e pela fala das personagens Observe o exemplo no excerto retirado do conto de Machado de Assis A igreja do Diabo Entre Deus e o Diabo Deus recolhia um ancião quando o Diabo chegou ao céu Os serafins que engrinaldavam o recémchegado detiveramse logo e o Diabo deixouse estar à entrada com os olhos no Senhor Que me queres tu perguntou este Não venho pelo vosso servo Fausto respondeu o Diabo rindo mas por todos os Faustos do século e dos séculos Explicate Senhor a explicação é fácil mas permiti que vos diga recolhei primeiro esse bom velho dailhe o melhor lugar mandai que as mais afinadas cítaras e alaúdes o recebam com os mais divinos coros Sabes o que ele fez perguntou o Senhor FONTE ASSIS Machado de Volume de contos Rio de Janeiro Garnier 1884 Extraído da Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro Disponível em httpwwwbibvirtfuturouspbr Acesso em 15 out 2012 23 O ESPAÇO O espaço é o ambiente o cenário por onde se desenvolve a trama e circulam os personagens Seu meio familiar social tipo de habitação clima vestuário são elementos do espaço que corroboram para a significação e verossimilhança da narrativa Existem basicamente três tipos de espaço o natural aquele não modificado pelo trabalho do homem planície deserto mar o espaço social constituído de elementos da natureza ou do ambiente modificados pela civilização casas castelos casebres meios de transporte e outros e finalmente o espaço transreal criado pela imaginação do homem No dizer de Nelly Coelho 2000 p 77 é um espaço não localizável no mundo real Através dele podem se configurar traços dos personagens e até mesmo a própria história TÓPICO 3 GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA ESTRUTURA II 85 24 O TEMPO Em uma narrativa os fatos ou situações se desenvolvem e chegam a um final isto é existem durante um determinado tempo COELHO 2000 O narrador pode contar os fatos no tempo em que eles estão acontecendo ou narrar um fato já concluído ou ainda entremear presente e passado técnica denominada flashback Na narrativa existem dois tipos de tempo vividos pelos personagens o tempo cronológico ou convencional que é representado em horas dias meses e anos e que corresponde ao tempo exterior vinculado aos movimentos de rotação e translação da Terra O outro tempo encontrado na narrativa é o tempo interior o qual se destaca pela desmistificação das estruturas temporais Nesse tempo aparece a fugacidade que permeia a memória influência de Bérgson filósofo francês que ressignificou o conceito de tempo e duração Para Bérgson o passado se projeta sobre o presente condicionandoo Esta forma de tempo na literatura moderna substituiu a sequência cronológica pela sequência psicológica 3 A PERSONAGEM E SEUS ASPECTOS A palavra personagem deriva do termo latino persona termo usado pelos romanos para denominar as máscaras usadas nas representações teatrais A personagem da narrativa cumpre funções específicas a partir do conjunto de ações que a qualifica como boa ou má vilã ou heroína corajosa ou covarde De modo geral nos textos literários as mesmas aparecem associadas a valores religiosos morais políticos éticos e suas atitudes serão determinadas pelas suas crenças Nas personagens o leitor centra sua atenção enfatizando o que lhes acontece seus pensamentos suas ações seu modo de agir e falar O autor na construção da personagem propõe um modelo no qual evidencia uma concepção de homem e de sociedade podendo o leitor por sua vez identificarse com determinadas características ou modo de agir Conforme Rosenfeld et al 1995 p 48 a ficção é um lugar ontológico privilegiado lugar em que o homem pode viver e contemplar através de personagens variadas a plenitude de sua condição em que se torna transparente a si mesmo lugar em que transformandose imaginariamente num outro vivendo outros papéis e destacandose de si mesmo verifica realiza e vive a sua condição fundamental de ser autoconsciente e livre capaz de desdobrarse distanciarse de si mesmo e de objetivar a sua própria situação Não há narrativa sem personagem ela é um elemento decisivo da narração A personagem participa do desenrolar dos acontecimentos vive o enredo e as ideias e os torna vivos CANDIDO 1995 p 54 A relevância da personagem tem sido objeto de estudo e a crítica apoiouse no que as personagens representam ou fazem dentro da narrativa para melhor classificálas Basicamente de acordo com Forster 1998 existem na literatura duas categorias de personagens planas e redondas As planas na sua forma mais pura são construídas ao redor de uma 86 UNIDADE 2 A LITERATURA INFANTIL FONTE DE EMOÇÕES única ideia ou qualidade quando lhes descortinamos mais de um fator iniciamos o percurso de uma curva rumo da personagem redonda MOISÉS 2004 p 348 A personagem plana é simples em sua construção É facilmente reconhecida no decorrer da narrativa não muda suas ações As personagens planas reportamse àquelas que jamais mudam de temperamento de modos de agir e de reagir no decorrer da narrativa como é o caso da bruxa má do rei bondoso da fada madrinha e amiga que embora ajudem a compreensão da criança através da simplificação dos traços humanos tendem a fixar estereótipos A mulher bela e dócil vence suas dificuldades cativando um príncipe que a redime garantindo segurança e riqueza A virtude é premiada materialmente numa negação de que ela valha algo por si mesma já que é sempre meio de conseguirse poder e riquezas MAGALHÃES In ZILBERMAN 1984 p 49 Segundo Forster 1998 as personagens planas podem ainda ser subdivididas em personagemtipo e caricaturas Neste caso são construídas de maneira simples e de fácil reconhecimento na trama e em personagemcaricatura quando o seu traço distintivo beira o cômico e a deformidade como é o caso para quem leu Machado de Assis da personagem José Dias de Dom Casmurro que arremata sua falação sempre com uma expressão no modo superlativo São personagenstipo aquelas que podem ser definidas em poucas palavras ou seja quando a sua peculiaridade alcança o auge sem causar deformidade MOISÉS 2004 p 349 Do contrário quando são motivo de chacota ou seja a deformidade está a serviço da sátira ou do cômico são conhecidas como caricaturas MOISÉS 2004 p 349 Podemos citar como exemplos de personagem plana reis rainhas príncipes princesas fadas e também as que correspondem a uma função de trabalho ou estado social A personagem redonda é outra classificação estabelecida por Forster 1998 Esta é organizada com maior complexidade seus pensamentos e suas ações são reveladores de aspectos comportamentais e do caráter Suas ações são capazes de nos surpreender traz em si a imprevisibilidade contrariamente da personagem plana que nunca surpreende Não existe uma divisão precisa entre essas duas categorias podendo uma personagem passar de plana à redonda quando sua atuação se aprofunda no questionamento de valores Para Forster 1998 o que caracteriza uma personagem redonda é somente a sua capacidade de surpreender do contrário é plana Estabelecem um caráter complexo e imprevisível o que as levam a ter uma maior participação em contos literários e textos eruditos tal como no dizer de Moisés 2004 p 350 na construção de romances introspectivos ou de sondagem psicológica característicos da literatura contemporânea e que pouco se vinculam à tradicional literatura voltada para a criança TÓPICO 3 GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA ESTRUTURA II 87 FIGURA 9 ARLEQUIM PABLO PICASSO FONTE Disponível em httpwwwoqueenossonetblogspot com Acesso em 5 set 2012 É assim que nas figuras típicas do herói e do vilão a personagem de ficção simplificada desenhase como um elemento intrínseco e determinante da estrutura fabular da clássica literatura infantojuvenil Dessa forma ressaltamos que as personagens na narrativa vivem e dão consistência às ideias presentes nas ações e que podem ser classificadas segundo a terminologia didática de Forster 1988 em planas ou redondas Nas narrativas antigas os heróis descritos se analisados pelo viés psicológico eram figuras pouco complexas suas dúvidas as lutas de sua alma foram pouco exploradas por seus escritores Já o herói contemporâneo vai tomando consciência de si próprio rejeitando a versão dos outros quanto à sua pessoa à sua realidade É um herói sempre em busca LUKÁCS 1982 p 66 Por intermédio da exploração do interior do protagonista percebemos uma busca uma viagem que explora as profundezas do inconsciente A partir de uma ou várias realidades percebidas sobre um determinado fato a personagem vive seus próprios sentimentos e ilusões de modo individual assume uma máscara ou várias máscaras segundo a realidade e o seu interior O autor desenha e arquiteta a personagem em um processo típico de construção das personagens redondas e portanto dos romances introspectivos ou de sondagem psicológica MOISÉS 2004 p 350 Essas personagens entre os adolescentes devido à natureza questionadora são apreciadas Consideremos ainda que as ilustrações das personagens dos livros infantis e não somente os infantis muitas vezes carregam e reforçam estereótipos Explorar as características das personagens é levar o jovem leitor a perceber que preconceitos podem ser transmitidos através de palavras atos eou imagens 88 UNIDADE 2 A LITERATURA INFANTIL FONTE DE EMOÇÕES Vejamos caroa acadêmicoa o que diz Fanny Abramovich sobre as personagens encontradas nos livros infantojuvenis Segundo a autora livros infantis por vezes reforçam o ético e o estético as bruxas são assaz feias até monstruosas deformadas fazendo com que o afastamento físico a repulsa instintiva a reação da pele sejam o detonador do temor e do medo e não a ameaça emocional do que eles representam de fato para a criança ABRAMOVICH 1989 p 37 Ainda segundo a autora as princesas e as fadas são predominantemente de olhos azuis cabelos longos e lisos esbeltas e lindas o mesmo ocorre com o príncipe pele branca forte vestindo roupas belíssimas Reforçando o estereótipo da raça ariana FIGURA 10 PERSONAGENS ENCONTRADAS NOS LIVROS INFANTOJUVENIS FONTE Disponível em httpswwwgooglecombr searchqimagemderei Acesso em 5 set 2012 Observe que os reis são gordos os médicos aparecem de branco com maleta eou estetoscópio o avôs são marcados pelo uso de óculos e as avós portam óculos e coque E o preto Ora somente ocupa funções de serviçal setor doméstico ou industrial e aí pode ter um uniforme profissional que o defina enquanto tal e que o limite nessa atividade seja mordomo ou operário Normalmente é desempregado subalterno tornando claro que é coadjuvante na ação e por consequência coadjuvante na vida ABRAMOVICH 1989 p 37 O ladrão geralmente aparece feio e assustador mal vestido nunca bem vestido bonito rico Diante disso vale salientar que o ambiente no qual vivemos requer que estejamos atentos aos diversos sentidos luz som cor movimento imagens nos atraem Muitas vezes somos leitores passivos aceitamos sem questionamentos certos modelos impostos por uma sociedade marcada pela desvalorização do ser Que saibamos na escola ou em outros momentos de leitura promover e TÓPICO 3 GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA ESTRUTURA II 89 estimular a capacidade de ler nas entrelinhas de sentir e refletir produzir saber e conhecimento para organização de uma sociedade que não favoreça estereótipos Para tanto é conveniente que estejamos atentos aos vários textos que circulam em nossa sociedade e em especial nas formas clássicas de narrativa sua estrutura imagens e o engendramento das personagens dos textos literários e sua evolução no tempo Dentro das diversas modalidades que acabariam por tornarse a base de desenvolvimento do gênero literatura infantil entre as quais destacamos os mitos e as lendas as fábulas os contos parábolas parlendas entre outros gêneros fixados nas diversas culturas da humanidade Sugerimos a leitura do texto Personagem infantil a caminho da emancipação RAMOS PANOZZO ZANOLLA 2006 As autoras analisam três obras de 1919 a 1976 Caroa acadêmicoa é importante considerar a estrutura e elementos dos textos como recursos dos quais escritores e críticos literários lançam mão para construir e analisar as narrativas NOTA 31 A FÁBULA É uma narrativa curta geralmente com animais como personagens que agem como seres humanos e apresentam sentimentos Tem um caráter prático destinase a ilustrar um preceito Sua conclusão oferece uma lição diz como o leitor ou ouvinte pode melhorar sua conduta e convivência social a partir de exemplos de outros seres A intenção é ensinar o melhor comportamento e fazer refletir haja vista que possuem um caráter moralizante As fábulas nasceram no Oriente e foi no Ocidente no século IV aC que Esopo escravo grego as reinventou utilizandoas para mostrar como agir com sabedoria Além deste La Fontaine foi um dos maiores responsáveis pela divulgação dessa forma de narrativa No Brasil destacamos Monteiro Lobato que reescreveu e traduziu muitas das antigas fábulas e criou outras tantas Atente que no gênero narrativo fábula encontramos formas de relato de tamanho pequeno encenadas por animais que encerrariam uma lição de moral explícita ou implícita sugerindo ao leitor ou ouvinte como ele deveria proceder para melhorar sua conduta social Já a poesia enquanto modalidade literária originalmente pertencente ao gênero lírico e não ao épico no qual se inscrevem todas as narrativas era largamente utilizada na literatura em sua fase oral devido a ainda não haver a escrita impressa portanto o uso de rimas e de formas literárias fixas como é frequente nos poemas dessa época ajudava o processo de memorização dos conteúdos das narrativas fossem elas poéticas ou não UNI 90 UNIDADE 2 A LITERATURA INFANTIL FONTE DE EMOÇÕES FIGURA 11 FÁBULA A LEBRE E A TARTARUGA FONTE Disponível em httpamigosdaeducacaocomatividadesparaalfabetizacao fabulaalebreeatartarugahtmlfabulaalebreeatartaruga9 Acesso em 5 out 2012 O estilo adotado nas fábulas é marcado pelo caráter moralizante transmitindo ensinamentos referentes à sociedade da época em que foi escrita Portanto um determinado conselho presente numa fábula poderá tornarse obsoleto Na fábula existem dois elementos relevantes o lúdico e o pedagógico Este último mostra nas entrelinhas virtudes e defeitos do homem bem como questões ligadas ao meio ambiente 32 A LENDA A lenda surge na Idade Média com o intuito de narrar a vida dos mártires e dos santos da Igreja Católica e ao contrário das histórias míticas que se ligavam geralmente a entes sobrenaturais na lenda o herói é humano e religioso e situase em um acontecimento de fato na existência real de alguém ou de um episódio que a imaginação popular encarregarseia de desviar do fato de origem Assim embora o fato histórico gerador da lenda não possa ser provado ele pode ao contrário do mito ser situado geograficamente e em um período de tempo cronológico como por exemplo na lenda da fundação de Roma por Rômulo e Remo Como forma expressiva refletia o assombro e o temor do homem diante do mundo e buscava uma explicação necessária às coisas É uma forma de narrativa cujo argumento é tirado da tradição do relato de acontecimentos no qual o TÓPICO 3 GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA ESTRUTURA II 91 maravilhoso e o imaginário superam o histórico e o verdadeiro A lenda também possui características estilísticas próprias Geralmente a lenda é marcada por um profundo sentimento de fatalidade que fixa a presença do destino aquilo contra o que não se pode lutar ou seja o homem dominado pela força do desconhecido De origem muitas vezes anônima a lenda foi transmitida e conservada pela tradição oral como esta que veremos a seguir A Vitóriarégia A lenda da vitóriarégia é brasileira de origem indígena tupiguarani Há muitos anos em uma tribo indígena contavase que a Lua Jaci para os índios era uma deusa que ao despontar a noite beijava e enchia de luz os rostos das mais belas virgens índias da aldeia as cunhantãsmoças Sempre que ela se escondia atrás das montanhas levava para si as moças de sua preferência e as transformava em estrelas no firmamento Uma linda jovem virgem da tribo a guerreira Naiá vivia sonhando com este encontro e mal podia esperar pelo grande dia em que seria chamada por Jaci Os anciãos da tribo alertavam Naiá depois de seu encontro com a sedutora deusa as moças perdiam seu sangue e sua carne tornandose luz viravam as estrelas do céu Mas quem a impediria Naiá queria porque queria ser levada pela Lua À noite cavalgava pelas montanhas atrás dela sem nunca alcançála Todas as noites eram assim e a jovem índia definhava sonhando com o encontro sem desistir Não comia e nem bebia nada Tão obcecada ficou que não havia pajé que lhe desse jeito Um dia tendo parado para descansar à beira de um lago viu em sua superfície a imagem da deusa amada a Lua refletida em suas águas Cega pelo seu sonho lançouse ao fundo e se afogou A Lua compadecida quis recompensar o sacrifício da bela jovem índia e resolveu transformála em uma estrela diferente de todas aquelas que brilham no céu Transformoua então numa Estrela das Águas única e perfeita que é a planta vitóriarégia Assim nasceu uma linda planta cujas flores perfumadas e brancas só abrem à noite e ao nascer do Sol ficam rosadas FONTE Disponível em httpwwwculturavotorantimcombrid24 Acesso em 9 abr 2013 FIGURA 12 A LENDA DA VITÓRIARÉGIA FONTE Disponível em httpwwwovermundocombrbanco vitoriaregia1 Acesso em 5 set 2012 92 UNIDADE 2 A LITERATURA INFANTIL FONTE DE EMOÇÕES 33 A PARÁBOLA É uma narrativa que expressa uma moral por isso é frequentemente confundida com a fábula Porém diferenciase desta pelo fato de ser protagonizada por seres humanos Nos textos bíblicos encontramos várias parábolas como por exemplo a do Semeador FIGURA 13 CAPA DO LIVRO A PARÁBOLA DO SEMEADOR FONTE Disponível em httpwwwdiskshopcom brsystemprodutosactiondetalhesprodid162 Acesso em 5 set 2012 No livro em questão a parábola é contada ao leitor infantil com algumas características particulares linguagem acessível ricamente ilustrada contendo no final uma atividade para a criança interagir A agradável apresentação visual gráfica e o conteúdo expresso em linguagem simples e acessível fazem deste livrinho como os demais da mesma coleção um excelente subsídio para iniciar o público infantil na assimilação dos ensinamentos de Jesus 34 A PARLENDA Composição literária tradicional que se caracteriza por apresentar forma versificada ritmo fácil e rápido É entretenimento garantido em especial entre as crianças o que significa dizer que sua finalidade é ensinar algo através da diversão É comumente chamada de travalíngua quando recitada de maneira rápida e repetidamente É uma importante aliada para despertar na criança os sentidos a sensibilidade e a musicalidade Caroa acadêmicoa brinque um pouco Tente ler rapidamente TÓPICO 3 GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA ESTRUTURA II 93 A ARANHA E A JARRA Debaixo da cama tem uma jarra Dentro da jarra tem uma aranha Tanto a aranha arranha a jarra Como a jarra arranha a aranha CAJU O caju do Juca E a jaca do cajá O jacá da Juju E o caju do Cacá LUZIA E OS LUSTRES Luzia listra os Lustres listrados NÃO CONFUNDA Não confunda ornitorrinco Com otorrinolaringologista Ornitorrinco com ornitologista Ornitologista com otorrinolaringologista Porque ornitorrinco é ornitorrinco Ornitologista é ornitologista E otorrinolaringologista é otorrinolaringologista O DESENLADRILHADOR Essa casa está ladrilhada Quem a desenladrilhará O desenladrilhador que a desenladrilhar Bom desenladrilhador será ATRÁS DA PIA Atrás da pia tem um prato Um pinto e um gato Pinga a pia apara o prato Pia o pinto e mia o gato SEU TATÁ O seu Tatá tá Não o seu Tatá não tá Mas a mulher do seu Tatá tá E quando a mulher do seu Tatá tá É a mesma coisa que o seu Tatá tá tá FONTE Disponível em httpwwwqdivertidocombrverfolclorephpcodigo22 Acesso em 5 out 2012 94 UNIDADE 2 A LITERATURA INFANTIL FONTE DE EMOÇÕES 35 O ROMANCE O gênero romance deriva da expressão latina romanice que significa falar romântico ou seja falar num dos vários dialetos europeus em oposição à língua culta da Idade Média Nesses dialetos populares contavamse histórias de amor de aventura transmitidas oralmente Dependendo da importância ou do destaque dado à personagem à ação ou ainda ao espaço foram classificados como romances de costume psicológico policial regionalista histórico de cavalaria de aventura Caroa acadêmicoa nos cadernos de estudos de Literatura Brasileira do Período Colonial ao Romantismo e Literatura Brasileira do Período Realista à Literatura Contemporânea abordaremos e aprofundaremos algumas questões teóricas referentes ao gênero romance textos e respectivos autores UNI Diante do exposto podemos afirmar que na sala de aula deve existir muita leitura de vários gêneros literários a fim de induzir o aluno a melhor refletir compreender problematizar e questionar os textos lidos fazendo uso de sua criticidade e também da habilidade em lidar com as regras estabelecidas para a leitura Lembrese ler significa aprender a produzir sentidos inseridos em um tempo e um espaço tornando o exercício de leitura ativo A literatura infantojuvenil é matéria indispensável e básica no campo da cultura e educação A necessidade da presença da literatura em sala de aula é algo incontestável Em especial este espaço privilegiado pela possibilidade de apresentação e interação do texto literário contribui para a ampliação de conhecimentos permite a interpretação do mundo como um texto universal e a percepção de sua complexidade E ainda expande e reforça a ideia de que cada indivíduo é sujeito e agente de sua própria história Mas o que comumente acontece no espaço escolar é um distanciamento dos livros A escola parece esquecer que a literatura é antes de tudo arte prazer e não pode ser imposta pois a imposição é sinônimo de afastamento De acordo com Fanny Abramovich 1989 p 36 A literatura infantojuvenil foi incorporada à escola e assim imagina se que por decreto todas as crianças passarão a ler Até poderia ser verdade se a leitura não viesse acompanhada da noção de dever de tarefa a ser cumprida mas sim de prazer de deleite de descoberta de encantamento TÓPICO 3 GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA ESTRUTURA II 95 Dessa forma a prática de leitura é dirigida limitada e no mais das vezes afastada da realidade o texto é transparente e exterior ao aluno é mera soma de palavras e frases nas quais o aluno deve buscar e confirmar um sentido preestabelecido É imprescindível propiciar no ambiente pedagógico um clima favorável à leitura marcado por interações que permitirão várias interpretações de um mesmo texto por sujeitos que têm histórias competências interesses valores e crenças diferentes Cabe ao professor reconstruir com seus alunos a trajetória interpretativa de cada um buscando compreender a construção de cada sentido ampliando dessa forma a compreensão do aluno Então provoque busque seduzir o leitor com persistência sensibilidade e responsabilidade sem perder de vista o objetivo principal que é o de despertar o interesse o prazer e a consciência da importância da leitura na vida das pessoas O professor ao escolher a literatura deverá propiciar o contato com os mais variados gêneros literários e além disso estar atento à classificação de acordo com o interesse e a idade do estudante Nelly Novaes Coelho apresenta critérios para seleção de livros de acordo com os estágios psicológicos da criança assunto que abordaremos na sequência 4 LEITURA E A DIMENSÃO COGNITIVA É sabido que a evolução da criança não é rígida ou seja cada qual tem seus próprios limites definidos por diferentes fatores O interesse da criança eou adolescente por determinado assunto está relacionado à sua idade e ao amadurecimento cognitivo O professor tem papel primordial na medida em que a ele cabe perceber e adequar seu trabalho respeitando as referidas fases da criança e do jovem Se uma das funções da literatura é transformar a realidade humana numa experiência prazerosa de aprendizagem e de crescimento o papel da escola é decisivo no processo de formação do leitor pois o espaço escolar constitui um lugar privilegiado de estímulo à construção à reflexão à assimilação de saberes e valores daí a necessidade de encorajar crianças e jovens a adentrar nesse fantástico universo da literatura Para que se efetivem oportunidades singulares de experiência com a literatura é importante atentar quanto à escolha de livros e temas a serem abordados em sala de aula A criança o adolescente e o adulto têm preferência por diferentes textos Para tanto fazse necessário observar os gostos a realidade o grau de escolaridade o amadurecimento intelectual e a idade do aluno Veremos agora como Nelly Novaes Coelho descreve as fases de leitura que abrangem as crianças e os adolescentes 96 UNIDADE 2 A LITERATURA INFANTIL FONTE DE EMOÇÕES Segundo a autora a fase do préleitor abrange duas fases a primeira e a segunda infância Primeira infância dos 1517 meses aos três anos Nesta fase A criança inicia o reconhecimento da realidade que a rodeia principalmente pelos contatos afetivos e pelo tato É a chamada fase da invenção da mão Seu impulso básico é pegar em tudo que se acha ao seu alcance É também o momento em que a criança começa a conquista da própria linguagem e passa a nomear as realidades à sua volta COELHO 2000 p 33 Para estimular a leitura nessa fase o adulto deve apresentar à criança diferentes gravuras fotos desenhos objetos e livros de imagens coloridas e de diferentes materiais Narrar histórias com ênfase no ritmo gestos explorando a sonoridade É importante nessa fase a presença e atuação do adulto manipulando e nomeando os brinquedos ou desenhos inventando situações bem simples a fim de estabelecer uma relação de afetividade entre o adulto a criança e o livro Segunda infância a partir dos 23 anos Neste período começam a predominar os valores vitais saúde e sensoriais prazer ou carências físicas ou afetivas é quando se dá a passagem da indiferenciação psíquica para a percepção do próprio ser Início da fase egocêntrica e dos interesses ludopráticos Impulso crescente de adaptação ao meio físico e crescente interesse pela comunicação verbal COELHO 2000 p 33 A presença do adulto nessa fase é ainda muito importante nos livros deve predominar a imagem e pouco ou quase nada de texto escrito Os textos devem ser significativos e atraentes a fim de levar a criança a perceber cada vez mais a relação entre o mundo que a cerca e a palavra escrita O colorido a graça o humor a sonoridade e a repetição de elementos são fatores importantes para prender a atenção dessa criança O leitor iniciante a partir dos 67 anos Para a autora é a fase da aprendizagem da leitura na qual a criança já reconhece com facilidade os signos do alfabeto e reconhece a formação das sílabas simples e complexas Início do processo de socialização e de racionalização da realidade COELHO 2000 p 35 A presença do adulto é ainda necessária para estimular e encorajar a criança à leitura Os livros adequados a essa fase devem valorizar a imagem A narrativa simples com princípio meio e fim é a mais indicada e apreciada TÓPICO 3 GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA ESTRUTURA II 97 As personagens podem ser pessoas animais plantas eou objetos sempre com traços de caráter ou comportamento bem nítidos bons e maus fortes e fracos belos e feios etc O texto deve ser estruturado com palavras e frases simples em ordem direta cujos argumentos estimulem a imaginação a inteligência a afetividade as emoções o pensamento e o sentimento O leitoremprocesso a partir dos 89 anos Segundo Coelho 2000 p 37 nesta fase a criança já domina com facilidade o mecanismo da leitura Seu pensamento lógico organizase em formas concretas que permitem as operações mentais Atração pelos desafios e pelos questionamentos de toda natureza A presença do adulto ainda é importante para motivar a leitura e esclarecer possíveis dificuldades A narrativa deve girar em torno de um conflito a ser resolvido até o final A efabulação deve obedecer ao esquema linear princípio meio e fim O realismo e o imaginário ou a fantasia despertam grande interesse nesta idade O leitor fluente a partir dos 1011 anos Nesta fase ocorre a consolidação do domínio do mecanismo da leitura e da compreensão do mundo expresso no livro A leitura segue apoiada pela reflexão a capacidade de concentração aumenta permitindo o engajamento do leitor na experiência narrada e consequentemente alargando ou aprofundando seu conhecimento ou percepção de mundo A partir dessa fase desenvolvese o pensamento hipotético dedutivo e a consequente capacidade de abstração É a fase da préadolescência COELHO 2000 p 38 Nessa fase as imagens são dispensáveis a linguagem pode ser mais elaborada As personagens podem ser heróis ou pessoas comuns questionadoras marcadas pela emotividade pela luta por ideais inseridas em contos crônicas novelas e histórias policiais que envolvam aventuras O leitor crítico a partir dos 1213 anos Fase de total domínio da leitura da linguagem escrita capacidade de reflexão em maior profundidade podendo ir mais fundo no texto e atingir a visão de mundo ali presente COELHO 2000 p 39 Nessa faixa etária o adolescente desenvolve o pensamento reflexivo e crítico e deve ser provocado à exploração do texto para a descoberta dos mecanismos que o compõem A literatura é arte da linguagem e como qualquer arte exige uma iniciação COELHO 2000 p 40 Quando o indivíduo lê nas entrelinhas e busca no texto o não dito é porque se sente instigado pelo desejo de descoberta do mundo Esse anseio efetivouse porque foi provocado no período da infância 98 UNIDADE 2 A LITERATURA INFANTIL FONTE DE EMOÇÕES Lembremos que nas fases apresentadas os limites são teóricos Na realidade cada criança tem seu próprio limite definido por muitos e diferentes fatores Caroa acadêmicoa além de conhecer as fases é necessário conhecer a criança sua história sua experiência e sua ligação com o livro O importante é proporcionar um contato com a literatura e que o estudante possa fazer suas opções LEITURA COMPLEMENTAR EM CASA Anton Tchekhov Vieram da parte dos Grigóriev buscar não sei que livro mas eu disse que o senhor não estava em casa O carteiro trouxe os jornais e duas cartas A propósito Ievguêni Pietróvitch eu lhe pediria que prestasse atenção no Seriója Hoje e anteontem eu reparei que ele fuma Quando eu comecei a repreendêlo ele como de costume entupiu os ouvidos e pôsse a cantar alto para abafar a minha voz Ievguêni Pietróvitch Bikovski procurador do tribunal regional que acabava de voltar de uma sessão e estava tirando as luvas no seu gabinete olhou para a governanta que lhe fazia o relatório e riu Seriója fuma encolheu os ombros imagino esse pirralho com um cigarro Quantos anos ele tem mesmo Sete anos Ao senhor isto não parece coisa séria mas na sua idade o fumar representa um hábito mau e pernicioso e é preciso erradicar os maus hábitos desde o começo Totalmente correto E onde ele arranja o tabaco Na escrivaninha do senhor É mesmo Neste caso mandeo para mim Quando a governanta saiu Bikovski sentouse na poltrona diante da escrivaninha fechou os olhos e pôsse a pensar Na sua imaginação ele sem saber por que pintava o seu Seriója com um enorme cigarro de um palmo de comprimento entre nuvens de fumaça de tabaco e essa caricatura o fazia sorrir ao mesmo tempo o rosto sério e preocupado da governanta despertoulhe lembranças de um tempo há muito passado e meio esquecido quando o fumar na escola e no quarto das crianças incutia nos pedagogos e nos pais um terror estranho e não muito compreensível Era justamente terror Os garotos eram surrados sem TÓPICO 3 GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA ESTRUTURA II 99 dó expulsos do ginásio truncavamlhes a vida embora nenhum dos pais ou pedagogos soubesse em que realmente consistiam o prejuízo e a delinquência do fumar Mesmo pessoas muito inteligentes não se davam ao trabalho de lutar contra um vício que não compreendiam Ievguêni Pietróvitch lembrouse do seu diretor do ginásio um velhote muito instruído e bondoso que se assustava tanto quando topava com um ginasiano com um cigarro que empalidecia convocava imediatamente uma reunião pedagógica extraordinária e condenava o culpado à expulsão Assim deve ser ao que parece a lei da convivência quanto mais incompreensível o mal tanto mais encarniçada e grosseira é a luta contra ele O procurador lembrouse de dois ou três dos expulsos suas vidas subsequentes e não pôde deixar de pensar que o castigo muitas vezes traz males bem maiores que o próprio crime Um organismo vivo dispõe da capacidade de se adaptar rapidamente habituarse e acomodarse a qualquer atmosfera senão o homem deveria sentir a cada momento que fundo irracional têm às vezes as suas atividades racionais e quão pouca verdade há em atividades tão sensatas e terríveis pelos seus resultados como a pedagógica a jurídica a literária Mas afinal o que é que eu vou lhe dizer pensou Ievguêni Pietróvitch Mas antes que ele pudesse lembrar alguma coisa já entrava no gabinete o seu filho Seriója menino de sete anos Boa noite papai disse ele com voz macia encarapitandose nos joelhos do pai e dandolhe um rápido beijo no pescoço Você me chamou Com licença com licença Serguêi Ievguênitch respondeu o procurador afastandoo de si Antes de nos beijarmos precisamos conversar e conversar seriamente Estou zangado e não gosto mais de você e você não é mais meu filho Sim Natália Semiónovna viu você fumando duas vezes Quer dizer que você foi apanhado em três más ações você fuma tira da gaveta o tabaco alheio e mente Três culpas Antes você era um bom menino mas agora estou vendo que você ficou estragado e tornouse mau Cada um só tem o direito de se servir daquilo que lhe pertence e se pega uma propriedade alheia então não é um homem bom Não era isso que eu queria lhe dizer pensou Ievguêni Pietróvitch Você tem cavalinhos e figurinhas E eu não pego neles certo Quem sabe eu até gostaria de pegálos mas acontece que eles são seus e não meus Pode pegar se quiser disse Seriója erguendo as sobrancelhas Por favor papai não se acanhe pegueos Esse cachorrinho amarelo sobre a sua mesa ele é meu mas eu nada Deixa que fique aí O que eu vou dizerlhe pensava Ievguêni Pietróvitch Ele não me escuta Evidentemente não considera importante nem os seus malfeitos nem os meus argumentos Como fazêlo entender Antigamente no meu tempo essas questões eram resolvidas com maravilhosa simplicidade cogitava ele Qualquer garoto apanhado fumando era surrado 100 UNIDADE 2 A LITERATURA INFANTIL FONTE DE EMOÇÕES Ele tem o seu próprio fluxo de pensamentos pensava o procurador Tem o seu próprio pequeno mundo na cabeça e ele sabe à sua maneira o que é importante e o que não é Para cativar a sua atenção e consciência não basta arremedar a sua linguagem é preciso também pensar à maneira dele Ele me compreenderia perfeitamente se de fato eu lamentasse o tabaco se eu ficasse abespinhado se começasse a chorar É por isso que as mães são insubstituíveis na educação é porque elas sabem sentir junto com as crianças chorar gargalhar Mas com lógica e moral não se chega a nada Bem que mais eu vou lhe dizer O quê Bateram as dez horas Bem menino está na hora de dormir disse o procurador despeçase e vá Não papai e Seriója franziu o rosto eu ainda vou ficar um pouco Conteme alguma coisa Conte uma história encantada Pois não só que depois da história direto para a cama Era uma vez num reino muito distante um velho rei muito velho de longa barba grisalha e o velho rei tinha um filho único herdeiro do reino Um menino assim como você Ele era um bom menino Nunca fazia manha ia dormir cedo não mexia em nada na mesa e e era um menino sensato e bonzinho Ele só tinha um defeito Ele fumava Seriója escutava concentrado e olhava nos olhos do pai sem piscar O procurador continuava pensando E agora o que mais Ficou longamente como se diz mastigando e remoendo e terminou assim De tanto fumar o príncipe adoeceu de tísica e morreu quando tinha vinte anos E o velho caduco e adoentado ficou sem qualquer apoio Não havia ninguém para governar o reino e defender o palácio Chegaram os inimigos mataram o velho destruíram o palácio e agora no jardim já não há nem cerejas nem aves nem sininhos Assim é maninho Esse final parecia ao próprio Ievguêni Pietróvitch ingênuo e ridículo mas a história toda causou em Seriója uma forte impressão Novamente seus olhos enevoaramse de tristeza e de algo parecido com susto por um minuto ele ficou olhando pensativo para a janela escura estremeceu e disse com a voz apagada Não vou fumar mais Quando ele se despediu e foi dormir seu pai ficou andando silenciosamente de um canto para outro e sorrindo Dirão que o que funcionou aqui foi a beleza a forma artística refletia ele Que seja mas não é consolo Mesmo assim isto não é um recurso verdadeiro Por que a moral e a verdade dever ser apresentadas não na sua forma crua mas com misturas inevitavelmente de forma açucarada e dourada como as pílulas Isto não é normal Falsificação enganação truques TÓPICO 3 GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA ESTRUTURA II 101 Lembrouse dos jurados para os quais é absolutamente necessário pronunciar um discurso do público que assimila a história só por meio de lendas e romances históricos de si mesmo que hauria o bom senso da vida não de sermões e leis mas de fábulas romances poesias O remédio deve ser doce a verdade bela E essa fantasmagoria o homem assumiu desde os tempos de Adão De resto Quem sabe tudo isso é natural e deve ser assim mesmo Não são poucas na natureza as fraudes e as ilusões úteis Ele pôsse a trabalhar mas os pensamentos preguiçosos e domésticos ainda continuaram a vagar pelo seu cérebro por muito tempo Atrás do teto já não se ouviam mais as escalas mas o morador do segundo andar ainda continuava a marchar de um lado para outro FONTE TCHÉKHOV Anton Pavlovitch Um homem extraordinário e outras histórias Porto Alegre LPM 2010 p 3849 102 RESUMO DO TÓPICO 3 Neste tópico você viu que Procuramos definir as qualidades básicas de um texto literário e as principais modalidades presentes na literatura infantojuvenil segundo a ótica do desvio ou seja do que pode ser construído a partir da ação infantil da mão esquerda associando assim a literatura a um saber que embora lúcido fazse de um modo também lúdico Em seguida verificamos o quanto toda a literatura clássica é estruturalmente tributária dos contos populares e maravilhosos que forneceram não apenas a estrutura padrão do desenvolvimento do enredo especialmente com a noção de função de Vladimir Propp mas também por caracterizar ainda que de modo simplificado as personagens no espaço literário As personagens são elementos decisivos na construção de um texto narrativo é nelas que reside o interesse do leitor A personagem plana é simples em sua construção e é facilmente reconhecida não muda suas ações no decorrer da narrativa A personagem redonda é mais complexa suas ações são capazes de surpreender e revelam aspectos de seu caráter Os livros infantis e não somente os infantis muitas vezes carregam e reforçam personagens estereotipadas Explorar as características das personagens é levar o jovem leitor a observar que preconceitos podem ser transmitidos através de palavras eou imagens Os temas e comportamentos abordados na literatura são consequência do seu contexto e contribuem para o desenvolvimento do homem que a sociedade almeja A fábula é uma narrativa curta geralmente com animais como personagens que agem como seres humanos e apresentam sentimentos O estilo adotado nas fábulas é marcado pelo caráter moralizante transmitindo ensinamentos referentes à sociedade da época em que foi escrita A lenda reflete o assombro e o temor do homem diante do mundo e buscava uma explicação necessária às coisas Geralmente é marcada por um profundo sentimento de fatalidade que fixa a presença do destino aquilo contra o que não se pode lutar ou seja o homem dominado pela força do desconhecido 103 A parábola expressa uma moral por isso é frequentemente confundida com a fábula Porém diferenciase desta pelo fato de ser protagonizada por seres humanos A parlenda caracterizase por apresentar forma versificada ritmo fácil e rápido É uma importante aliada para despertar na criança os sentidos O romance gênero que deriva da expressão latina romanice que significa falar romântico ou seja falar num dos vários dialetos europeus em oposição à língua culta da Idade Média Entre os elementos que compõem a estrutura do texto literário está o enredo também conhecido como história trama ou fábula e que nos contos de fadas trata geralmente do desenrolar das ações de um herói que encarna os valores comunitários de modo exemplar e carregado de moralidade A apresentação de vários gêneros literários é extremamente relevante durante todo o período escolar É fácil observar o fascínio da criança por histórias e o interesse em imitar as leituras recontando as narrativas e consequentemente enriquecendo e dominando além de outras possibilidades um estilo de linguagem que lhe garantirá êxito escolar e ascensão social O interesse da criança eou adolescente por determinado assunto está relacionado à sua idade e ao amadurecimento cognitivo Na primeira e na segunda infância 1517 meses aos três anos a criança começa a nomear a realidade à sua volta sendo crescente o interesse pela comunicação verbal O leitor iniciante a partir dos 67 anos é a fase da descoberta e da aprendizagem da leitura O leitoremprocesso a partir dos 89 anos ocorre quando a criança domina com certa facilidade o mecanismo da leitura O leitor fluente a partir dos 1011 anos é a fase de consolidação do domínio da leitura O leitor crítico a partir dos 1213 anos entra na fase de total domínio da leitura e da linguagem escrita Capacidade de reflexão em maior profundidade ou seja costumamos dizer que ele consegue ler nas entrelinhas Cada criança tem seu próprio limite definido por muitos fatores é necessário conhecer o estudante sua história sua experiência e sua ligação com o livro 104 3 Ao contrário de uma obra dialógica como a de Tchekov você consideraria o debate acerca dos contos de fadas tradicionais como o patinho feio a gata borralheira etc mais profícuo e motivador para o estudo em sala de aula Justifique sua resposta Prezadoa acadêmicoa após ter completado a leitura do conteúdo deste tópico sugerimos a você a leitura do conto literário Em casa leitura complementar de Anton Tchekov para em seguida confrontando ambas as leituras refletir sobre as seguintes questões 1 Você observou que ao contrário do que ocorre nos contos de fadas que geralmente veiculam uma verdade moral e imparcial nos contos literários ou eruditos como o de Tchekov há uma indecisão entre quem tem e quem não tem a razão 2 Na sua opinião os pontos de vista pedagógicos da personagem Ievguêni Pietróvitch o pai de Seriója seriam conflituosos ou bem ao contrário apontariam saídas pedagógicas com certa atualidade para o ensino nos dias de hoje Considerar que o texto foi escrito na segunda metade do século XIX AUTOATIVIDADE 105 UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir desta unidade você será capaz de reconhecer a importância da poesia das histórias em quadrinhos e das narrativas identificar os fatores estruturantes das narrativas infantojuvenis perceber que as narrativas devem constituirse em objeto de leitura dentro e fora do espaço escolar Esta unidade está dividida em três tópicos Ao final de cada um deles você encontrará atividades que contribuirão para a apropriação dos conteúdos TÓPICO 1 O DIVERTIDO PRAZER DE LER TÓPICO 2 A RELAÇÃO LIVRO E A CRIANÇA TÓPICO 3 EXPLORANDO OS GÊNEROS INFANTIS 106 107 TÓPICO 1 O DIVERTIDO PRAZER DE LER UNIDADE 3 1 INTRODUÇÃO Neste tópico verificaremos que uma das questões principais dentro de uma abordagem literária formal ou informal reportase não tanto ao lugar onde se lê o mundo ou seja se na mídia cinematográfica na mídia impressa na internet etc mas sim o que propriamente se deveria ler Quer dizer a questão seria descobrir como estabelecer uma relação de obras literárias que dê pistas de como aprimorar o espírito crítico da criança ajudandoa em sua inserção no mundo e na transformação da realidade social em que vive sem que para isso tenha que abandonar o espaço interior de sua infância que atravessará toda a sua vida 2 A SALA DE AULA QUE TEXTOS ESCOLHER Nunca lhe aconteceu ao ler um livro interromper com frequência a leitura não por desinteresse mas ao contrário por afluxo de ideias excitações associações Nunca lhe aconteceu ler levantando a cabeça É essa leitura ao mesmo tempo irrespeitosa pois que corta o texto e apaixonada pois que a ele volta e se nutre que tentei escrever BARTHES 2004 p 26 A escola é um dos poucos espaços sociais que ainda tem o privilégio de poder promover o contato dos indivíduos com textos que estão fora do circuito comercial Ademais ela também é capaz de estabelecer uma interação diferenciada entre os leitores e essas mesmas obras tornandoos mais críticos a partir do contato e do acesso socializado aos textos clássicos cuja virtude maior estaria em fortalecer de modo subliminar a convivência de pontos de vista distintos entre os alunos Subliminar é a definição para o tipo de mensagem que não pode ser captada diretamente pela porção do processamento dos sentidos humanos que está em estado de alerta É tudo o que está abaixo do limiar a menor sensação detectável conscientemente Toda mensagem subliminar pode ser dividida em duas características básicas o seu grau de percepção e de persuasão HOUAISS VILLAR 2009 p 1780 UNI UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA 108 Então a escola mesmo que inserida em um contexto cujo maior valor é a utilidade e por ser a instituição a qual é dada entre as demais instituições sociais o papel privilegiado de pedagogicamente operar a passagem daquela primeira fase existencial infantil e irregular para a outra que deveria idealmente orientar e organizar a sociedade em que vivemos passa a assumir a tarefa em certa medida contraditória de promover uma mudança nos valores culturais vigentes invertendo o paradigma segundo o qual ela mesma foi estruturada Façamos um exercício de reflexão Você acredita que atualmente a escola tem atribuído um valor mais acentuado ao pensamento lúdico e à imaginação infantil ou ao contrário ainda trata a criança como um pequeno adulto imperfeito Teça algumas considerações sobre essa temática comparando a realidade escolar da sua infância com a das escolas de hoje Esse viver na pluralidade que vemos como modo ideal do viver junto em sociedade poderia advir do entrecruzamento dos pontos de vista internalizados pela história individual e biográfica de cada aluno com os pontos de vista disponibilizados pelas tradições culturais veiculadas pelo texto literário independente do suporte ao qual o texto esteja vinculado livro tradicional ipads internet filmes cinematográficos gibis mídia impressa etc Assim parecenos que mais relevante do que determinar onde se deve dar a leitura é precisar quais obras têm e quais outras não a possuem a complexidade e a abertura necessárias para ao mesmo tempo instruir e fazer do leitor um sujeito ativo e coparticipante de sua realidadedestino já que a formação do indivíduo não cessa quando ele termina a fase escolar prolongandose por toda a vida e nesse sentido não resta dúvida os bons textos literários são potencializadores eficazes de significação existencial Se esperamos viver não apenas de momento a momento mas sim verdadeiramente conscientes de nossa existência nossa maior necessidade e mais difícil realização será encontrar um significado em nossas vidas É sobejamente sabido que muitos perderam o desejo de viver e pararam de tentar porque tal significado lhes escapou Uma compreensão do significado da própria vida não é subitamente adquirida numa certa idade nem mesmo quando se alcança a maturidade cronológica E essa conquista é o resultado final de um longo desenvolvimento a cada idade buscamos e devemos ser capazes de achar alguma quantidade módica de significado congruente com o quanto nossa mente e compreensão já se desenvolveram BETTELHEIM 2007 p 9 Destarte pensar estratégias pedagógicas que possibilitem tornar o aluno não apenas um partícipe das demandas de sua geração mas um coprodutor de TÓPICO 1 O DIVERTIDO PRAZER DE LER 109 novas perspectivas existenciais e de alternativas sociais implica encontrar uma fundamentação teórica que nos torne capazes de identificar pedagogicamente quais obras sustentam visões de mundo inusitadas que se mantêm em estado latente até que potencializadas pela leitura transformemse em texto em espaço dialógico de leitura FIGURA 14 PINÓQUIO ODILON MORAES FONTE Disponível em httpwwwcultlivros03jpg Acesso em 2 set 2012 Nesse momento uma boa saída teórica seria pensar com o escritor Mikhail Bakhtin que a partir de uma releitura dos clássicos de Rabelais e de Dostoievski conseguiu redefinir os códigos culturais da tradição ocidental a seu ver estruturados a partir da alternância de duas tendências estéticas distintas As obras de estrutura e conteúdos monológicos são orientadas pela aceitação dos cânones estéticos tradicionais e pela conformação à ideologia dominante as obras de estrutura e de conteúdo dialógicos expressam a revolta contra a tradição estéticocultural centradas como estão no polimorfismo e na polifonia Nessas obras é impossível encontrar a univocidade que caracteriza o gênero de literatura monológica DONOFRIO 2006 p 14 Dessa forma haveria uma oposição nessas tendências que se captura desde o momento autoral até a seleção e apresentação final da obra Nesse percurso Bakhtin pôde localizar na origem da literatura monológica a permanência dos valores vigentes do período em que fora criada o que a faria ser também uma literatura ideológica por ser a expressão dos anseios de um grupo social que acredita nos valores humanos e na possibilidade do conhecimento da verdade bem como no triunfo do complexo de virtudes que compõem a ideologia social ordem beleza justiça amor etc o código natural por sua vez UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA 110 caracteriza um tipo de literatura dialógica carnavalizada expressão da revolta do indivíduo contra a fixidez dos cânones estéticos e a opressão das injunções religiosas e morais DONOFRIO 2006 p 21 Ora se a essa altura tivéssemos que sintetizar o tipo de literatura que seria conveniente à sala de aula não hesitaríamos em optar pela obra clássica e dialógica pois os clássicos aportam significações não inteiramente previstas no texto original portanto que poderão ainda ser construídas a partir da interação da singularidade do leitor com a singularidade da obra em questão Esse entrecruzamento ou jogo de singularidades é o que definiria segundo Barthes 2007 p16 as qualidades de uma verdadeira literatura Essa trapaça salutar essa esquiva esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder no esplendor de uma revolução permanente da linguagem eu a chamo quanto a mim literatura Bakhtin 1995 foi quem apresentou o conceito de dialogismo No dizer deste estudioso a linguagem é dialógica porque a palavra a enunciação e por extensão todo o texto possui um caráter de duplicidade no qual a presença do outro é fundamental e cujo contexto social não pode ser ignorado UNI Você deve estar percebendo o quanto é importante haver na escola um ambiente pedagógico favorável à leitura e à recriação de textos literários não é mesmo Reflita ainda sobre a relevância do professor como mediador de obras literárias não apenas as de qualidade reconhecida mas também as que têm um declarado apelo comercial geralmente associadas à mídia televisiva É oportuno lembrar nesse momento a discussão abordada na Unidade 1 de que a literatura voltada para a criança é uma literatura produzida pelo adulto o que faz com que sua mensagem mantenha praticamente a mesma assimetria entre infância e maturidade que estudamos no primeiro capítulo do presente Caderno de Estudos Assim a partir de uma breve descrição estrutural poderemos mapear as obras de tendência monológica que mantêm um único ponto de vista na narrativa como é o caso da maioria dos contos de fadas e em contrapartida obras dialógicas como a narrativa literária As aventuras de Pinóquio de Carlo Collodi que sustentam mais de uma perspectiva ficcional conferindo assim maior valor e liberdade ao leitor Em vista disto também o leitor não é um ente passivo a obra dirigese a ele e a seus valores sob a forma de um questionamento A operação de leitura que enquanto concretização do universo ficcional supõe de antemão uma atitude voluntária e ativa ocasiona ainda uma tomada de posição perante o texto e o mundo que apresenta Nesta medida se a criação poética não produz necessariamente uma contrariedade especialmente ao leitor como pretendiam os formalistas mas a um sistema vigente de normas e padrões é importante destacar TÓPICO 1 O DIVERTIDO PRAZER DE LER 111 que o recebedor deverá aceitar ou rejeitar o jogo resultando daí um posicionamento perante o mundo e a arte ZILBERMAN 1984 p 79 Ora seja a partir de uma perspectiva monológica seja a partir de uma focalização dialógica que abrem ou fecham possibilidades de interpretação para o leitor mantémse no plano estrutural de qualquer narrativa literária uma voz condutora da trama que determina o foco narrativo de abordagem da história ora em primeira ora em terceira pessoa ora exterior ora interior à ação etc e assim conduz a trama conforme se deseje fazer do relato um exemplo ou ao contrário estabelecer um universo ambíguo capaz de dar lugar à subjetividade singular do leitor independente de ela ser aceita ou rejeitada pela sociedade vigente A essa altura sugerimos a você caroa acadêmicoa a leitura de As aventuras de Pinóquio na excelente tradução de Marina Colasanti Além do divertido prazer de ler um texto produzido especialmente para crianças na Itália do século XIX esse exercício lhe possibilitará o confronto de uma narrativa dialógica com a tendência predominantemente monológica dos contos de fadas tradicionais Ademais você entrará em contato com um texto clássico isento das concessões cinematográficas feitas por Walt Disney que retirou muito da complexidade do texto literário para poder se aproximar da moral vigente do século XX e dessa forma obter melhor êxito comercial UNI Assim a partir do foco narrativo determinamse diversas formas de focalização No conto de fadas por exemplo tal como se observa na narrativa Chapeuzinho Vermelho predomina a terceira pessoa já que o narrador se coloca de modo onisciente que tudo vê que tudo sabe acima das personagens sabendo inclusive mais da interioridade delas do que elas mesmas Essa voz entretanto pode ser portavoz de ideologias indesejáveis Quando o narrador onisciente diz o lobo malvado está emitindo um julgamento de valor acusando o seu posicionamento ideológico Por que lobo é malvado Ao comer a menina ele está apenas atendendo ao instinto de conservação da própria vida que o leva a satisfazer sua fome O homem que mata animais para alimentarse ou simplesmente para divertirse praticando os esportes da caça e da pesca por que não é considerado malvado A resposta está na postura ideológica do autor implícito que sendo humano defende a superioridade do homem em relação ao mundo animal DONOFRIO 2006 p 60 Por outro lado no contraponto da maior parte dos teóricos da literatura Bettelheim 2007 a partir de um enfoque psicanalítico da obra literária verá essa forma de narração em terceira pessoa não como negativa já que para ele ela se apropria da sabedoria inconsciente das gerações passadas podendo ensinar ao jovem leitor algo importante para o seu amadurecimento psicológico UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA 112 Para dominar os problemas psicológicos do crescimento superando decepções narcisistas dilemas edipianos rivalidades fraternas tornandose capaz de abandonar dependências infantis adquirindo um sentimento de individualidade e de autoestima e um sentido de obrigação moral a criança precisa entender o que está se passando dentro de seu eu consciente para que possa também enfrentar o que se passa em seu inconsciente Ela pode atingir esse entendimento e com ele a capacidade de enfrentamento não pela compreensão racional da natureza É aqui que os contos de fadas têm um valor inigualável conquanto oferecem novas dimensões à imaginação da criança que ela seria incapaz de descobrir por si só de modo tão verdadeiro BETTELHEIM 2007 p 12 3 INVERTENDO A TRADIÇÃO Os livros são enfadonhos de ler Não há livre circulação Somos forçados a ler O caminho está traçado único Muito diferente é o quadro imediato total À esquerda à direita em profundidade à vontade Nada de trajeto incontáveis trajetos e as pausas não são indicadas Se o desejarmos o quadro inteiro MICHAUX 1994 p 38 Ao longo desse Caderno de Estudos você observou a reflexão teórica debruçarse sobre esse objeto exemplar e histórico na transmissão dos valores culturais que tem sido o livro literário cujo surgimento se deu com a literatura oral à época criadora de recursos facilitadores da memorização como as rimas as estrofes a metrificação entre outros para depois vêlo se expandir em mídias mais ágeis como o cinema a internet e a história em quadrinhos Assim ao buscarmos fundamentar acerca dos modos mais adequados de utilização da literatura em sala de aula optamos pela obra dialógica já que uma de suas características é de estar sempre aberta a universos de significação insuspeitados Desnecessário por conseguinte alertar para as versões redutoras dos textos clássicos que geralmente ocorrem em revistas versões para filmes ou novelas televisivas etc e que tendem a tipificar as personagens dos textos originais retirando assim a potencialidade inventiva e inusitada das obras clássicas O livro permite uma abordagem de que o cinema o teatro e a televisão não são capazes Diante de um livro o leitor não é passivo ele pode voltar atrás reler interromper saltar etc Enfim ser abordado por onde o leitor quiser MELO NETO 1998 p 52 Vejamos O texto As aventuras de Pinóquio se inicia com a revelação do desejo do velho Gepeto de criar uma marionete para com ela melhorar de vida ou dizendo com suas palavras para viajar e tomar um bom copo de vinho Assim simbolicamente desde o início o livro reverte a assimetria tradicional que atribui aos valores da maturidade uma origem bondosa e a ser imitada em detrimento dos valores infantis vistos como imperfeitos egoístas e a serem modificados em prol daqueles Na obra em questão metaforicamente revelase um pai Gepeto ainda que bondoso que sabe usar e se beneficiar do filho TÓPICO 1 O DIVERTIDO PRAZER DE LER 113 Optar pelos clássicos dialógicos não significa entretanto a exclusão da literatura e de outras formas de arte monológicas geralmente de feição popular como é o caso das novelas de televisão dos filmes de apelo comercial da música brega da subliteratura de autoajuda etc mas apenas atentar para que essa forma de arte receba um acompanhamento crítico geralmente mediado por um professor ou tutor para evitar que o estudante caia na malha ideológica de valores autoritários e preconcebidos veiculados de modo sorrateiro por essas mídias É a um fantasma dito ou não dito que o professor deve voltar anualmente no momento de decidir sobre o sentido de sua viagem desse modo ele se desvia do lugar em que o esperam que é o lugar do Pai sempre morto como se sabe pois só o filho tem fantasmas só o filho está vivo BARTHES 2007 p 43 Caroa acadêmicoa por hora cabenos reforçar a função pedagógica da arte e assim apontar para a importância de sua vinculação com as atividades escolares Quer dizer a arte fora do imediatismo dos valores políticos e dos valores medidos pelo sucesso comercial visa à constituição singular e por que não dizer amorosa dos sujeitos ou seja aliada à escola ela pode formar indivíduos leitores que pensem a vida e o mundo que se vai deixar como o fazem se lembrarmos com João Cabral de Melo Neto alguns poetas Melhorar a realidade é um ato de consequência imediata e isso o poeta não pode fazer porque não é essa coisa mágica metafísica que muitos imaginam Como todo artista entretanto ele pode empreender uma ação a longo prazo Muitas vezes os homens que mandam não estão habituados a ver toda a realidade o conjunto É aí que a arte pode ajudar cumprindo sua função que é dar a ver donner à voir Não pode haver objetivo melhor para a arte e para o artista MELO NETO 1998 p 18 Enfim tudo se resumiria em descobrir qual a melhor forma de operar essa passagem em mão dupla de dois pontos de vista infância e maturidade que por serem paradigmaticamente opostos só raramente convergem como acontece em certas obras literárias e quiçá algum dia também o seja na escola em que se consegue combinar o pensamento em sua forma lúdica e a ludicidade em sua forma lúcida 114 Neste tópico você viu que A escola é um espaço que pode promover o contato dos indivíduos com textos e capaz de estabelecer uma interação diferenciada entre os leitores e essas mesmas obras tornandoos mais críticos a partir do contato e do acesso socializado aos textos clássicos O papel da escola é operar a passagem daquela primeira fase existencial infantil e irregular para a outra que deveria idealmente orientar e organizar a sociedade em que vivemos de promover uma mudança nos valores culturais vigentes invertendo o paradigma segundo o qual ela mesma foi estruturada Os bons textos literários são potencializadores eficazes de significação existencial É preciso que a escola pense em estratégias pedagógicas que possibilitem tornar o aluno não apenas um partícipe das demandas de sua geração mas um coprodutor de novas perspectivas existenciais e de alternativas sociais Em sala de aula melhor seria optar pela obra clássica e dialógica pois os clássicos aportam significações não inteiramente previstas no texto original portanto que poderão ainda ser construídas a partir da interação da singularidade do leitor com a singularidade da obra em questão É importante haver na escola um ambiente pedagógico favorável à leitura e à recriação de textos literários A partir de um enfoque psicanalítico da obra literária verá a narração em terceira pessoa não como negativa já que para ele ela se apropria da sabedoria inconsciente das gerações passadas podendo ensinar ao jovem leitor algo importante para o seu amadurecimento psicológico É importante descobrir qual a melhor forma de operar essa passagem em mão dupla de dois pontos de vista infância e maturidade e quiçá algum dia também o seja na escola em que se consegue combinar o pensamento em sua forma lúdica e a ludicidade em sua forma lúcida RESUMO DO TÓPICO 1 115 Caroa acadêmicoa Apresentamos algumas questões sobre a valorização da literatura infantojuvenil na escola Para tanto responda e teça comentários sobre perguntas 1 O que você pensa sobre a escola como um lugar privilegiado de leitura 2 Quantas horas semanais você dedica à leitura de textos literários 3 Considerando a sala de aula que recursos você utilizaria para incentivar a leitura de literatura 4 O que você pensa sobre atividades como A hora do conto A partir dessas questões faça um elenco das estratégias e recursos que poderiam ser adotados pelos professores Lembrese de compartilhar com os seus colegas AUTOATIVIDADE 5 O que você pensa sobre os textos dialógicos 116 117 TÓPICO 2 A RELAÇÃO LIVRO E A CRIANÇA UNIDADE 3 1 INTRODUÇÃO Já enfatizamos que a narrativa infantil deveria estabelecer uma relação dialógica que se concretiza no encontro do leitor com o texto ou seja permite que o leitor tenha contato com uma linguagem que se materializa por meio do livro Nessa perspectiva a literatura infantojuvenil se apresenta às crianças e jovens como um possível horizonte de expectativas especialmente pela renovação da linguagem das palavras e imagens No dizer de Zilberman 2003 p 176 a literatura deve se integrar ao projeto desafiador próprio de todo fenômeno artístico impulsionar ao seu leitor uma postura crítica inquiridora e dar margem à efetivação dos propósitos da leitura como habilidade humana Argumenta a autora que o livro infantil deve estimular o leitor a conhecer a dimensão artística e estética 2 A RECEPÇÃO DO LIVRO INFANTIL A escritora Fanny Abramovich faz alusão a vários aspectos a serem considerados durante a exploração da leitura que segundo ela apresenta um potencial crítico O pequeno leitor põe em prática habilidades como pensar duvidar se perguntar questionar ou seja a criança pode se sentir inquietada cutucada querendo saber mais e melhor ou percebendo que pode mudar de opinião E isso não sendo feito uma vez ao ano mas fazendo parte da rotina escolar sendo sistematizado sempre presente o que não significa trabalhar em cima dum esquema rígido e apenas repetitivo ABRAMOVICH 1989 p 142 Quando nos referimos à relação entre a criança e o livro estamos também nos reportando à escola ao fazer pedagógico dentro da sala de aula Nesse fazer uma das metodologias que pode ser utilizada envolve o contato com os livros e dependendo da história geralmente a criança quer repetila às vezes somente em algumas partes ou por vezes detesta e não quer mais nenhuma aproximação com determinada história Essa relação forma a opinião da criança que passa a estabelecer critérios de seleção do que quer ler Observe a opinião de Abramovich 1989 p 143 118 UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA No que se refere à história quando boa interessante se palpitante se boba etc E a ideia do autor Nova batida já lida outras vezes em outros livros Esse autor repete suas ideias seus temas ou inventa novos se atreve a caminhar por outros assuntos por outras questões E o ritmo Muito longo rapidinho demais da conta não dando tempo de saborear de ir mais longe de querer saber mais e melhor sobre um assunto conversa ou qualquer outra coisa que ficou solta sem maiores explicações Ou se arrastando se esticando se esticando e dando voltas e mais voltas em torno do mesmo tema como se não achasse o momento de terminar E falando nisso como foi sentidopercebido aplaudidovaiado etc o final da história Tinha a ver com tudo o que aconteceu ou de repente acabou dum jeito confuso abrupto perdido E o começo foi gostoso chamou a atenção deu vontade de continuar lendo ou já deu pra sacar que ia ser uma chatura só Ou começou mal e de repente pra surpresa total foi esquentando esquentando e até que ficou muito do simpático e do bom E tanta coisa mais que foi percebida pelo leitor e que merece ser discutida Com base na citação podemos constatar que a autora apresenta vários questionamentos que devem ser considerados pelos professores ao propor a leitura em sala de aula afinal o livro infantil pelas suas características permite essa postura Outra questão abordada por Abramovich 1989 p 146 faz alusão à história e aos personagens As que tinham vida que convenciam que agiam dum modo verdadeiro não importa se gente se bicho se fada se vampiro e aquelas que reagiram de repente sem mais nem por quê dum modo que não tinha nada a ver com elas como vinham atuando desde o comecinho da históriaE aquelas que foram esquecidas pelo autor o que acontece muito que aparecem no começo e nunca mais ou aquelas que não tinham a menor importância pro desenrolar do conto e que ficaram só enchendo as páginas sem função sem razão sem opinião E tanta coisa mais que foi percebida pelo leitor e que merece ser discutida Conforme podemos perceber a história é um dos aspectos mais importantes na composição do livro de literatura infantil Mas segundo Abramovich 1989 p 147 existem outros a considerar porque estimulam a leitura e a interação A capa se bonita feia atraente boba sem nada a ver com a narrativa o título que afinal são o primeiro contato que se tem com o volume o impacto visual e a curiosidade despertada ou adormecida E por que não discutir a encadernação do desprazer que é ver um livro amado desfolhado descolando não dando nem mais para virar a página E o jeito como o volume foi paginado olhando muito do bem olhado se a ilustração corresponde ao que está escrito na página ao lado se está tudo muito compactado muito apertado sem espaço para respirar ou ao contrário se ficou muito pouca coisa escrita ou desenhada em cada folha sobrando partes em branco demais da conta só para engrossar o livro E se as letras eram grandonas gostosas de ler ou pequenas apertadinhas sendo necessário um binóculo para poder seguir apenas letras tão mínimas E quanto havia de espaço na passagem dum capítulo para outro mostrando que já era outro momento outro dia outra situação ou que fosse estava tudo apertado estreito e até difícil TÓPICO 2 A RELAÇÃO LIVRO E A CRIANÇA 119 perceber que já era outro capítulo Estava metade cuidado metade não Por que não propor também que se releia algo que algum dia tenha sido importante Não é apenas na novidade que está o novo mas na forma de nos aproximarmos de algo já conhecido e perceber mudanças Para a autora a proposta da leitura na escola requer um olhar atento no que se refere à escolha do livro além de propósitos bem definidos para atrair a atenção da criança Ainda segundo Abramovich 1989 p 148 Colocar a leitura do livro infantil brasileiro no currículo escolar não quer dizer nada Podese até estar formando pessoas com ojeriza permanente pela leitura tal a quantidade de livros ruins que lhes pedem que leiam aliada a nenhuma crítica que é solicitada Apenas fazendodeconta que se leu como se se assinasse um visto uma rubrica de feito Dar uma opinião pode não significar nada não exigir nada além dum comentário superficial epidérmico ou não ser senão um jeito de agradar e corresponder à expectativa do adulto que já tem uma opinião formada sobre aquele livro ou aquele autor No dizer de Abramovich 1989 é papel da escola sensibilizar para o hábito da leitura e para a criticidade e segundo ela a preocupação básica deveria ser a formação de leitores abertos e capazes de absorver o que uma boa história traz afinal Literatura é arte literatura é prazer Que a escola encampe esse lado É apreciar e isso inclui criticar Se ler for mais uma lição de casa a gente bem sabe no que é que dá Cobrança nunca foi passaporte ou aval para a vontade descoberta ou para o crescimento de ninguém ABRAMOVICH 1989 p 148 Entretanto por vezes a literatura é submetida a rotinas padronizadas e termina por perder seu sentido Tem sido usada para atividades estritamente mecânicas Antigas práticas amplamente avaliadas em seus efeitos limitadores continuam presentes nas salas de aula mesmo diante do fracasso de muitos alunos e do desagrado de outros tantos em relação ao estudo da língua e literatura A literatura em sala assume a função de obrigatoriedade de prazo imposição de número de livros a serem lidos durante o ano letivo e seus fichamentos procedimentos pedagógicos com ênfase no desenvolvimento em atividades de identificação e classificação de períodos literários ensino de regras gramaticais e ortográficas estudo de palavras isoladas e de frases desconectadas exercícios de interpretação aumento de vocabulário fixação da norma culta e motivador de redações assumindo assim a feição da rotina O fazer pedagógico se fecha para as várias possibilidades o desafio é não deixar que a função pedagógica controle o texto As possíveis significações e a imprevisibilidade da mensagem que o texto literário carrega são grandes aliados no processo de formação de leitores críticos Ao que parece estudantes e professores ainda não se conscientizaram do caráter libertador do ato de ler 120 UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA A escola lida com a palavra arte como se ela fosse informação sem pensar em estratégias de trabalho diferentes entre o texto artístico e o texto informativo Há a necessidade urgente de priorizar o caráter artístico do texto literário Devese constituir em exploração e vivência caso contrário incorrese no risco de reduzir o texto à categoria de instrumento contribuindo para a alienação do processo educativo Conforme cita Marisa Lajolo apud ZILBERMAN 1984 p 52 O texto não é pretexto para nada Ou melhor não deve ser Um texto existe apenas na medida em que se constitui ponto de encontro entre dois sujeitos o que o escreve e o que o lê escritor e leitor reunidos pelo ato radicalmente solitário da leitura contrapartida do igualmente solitário ato de escritura No entanto sua presença na escola cumpre funções várias e nem sempre confessáveis frequentemente discutíveis só às vezes interessantes Para Ezequiel Theodoro da Silva 1986 p 52 o material escrito não visa o assimilar memorizar ou reproduzir literalmente o conteúdo da mensagem mas principalmente o compreender e o criticar O que tem ocorrido é a ineficiência das práticas de leitura propostas pela escola com metodologias que aniquilam o potencial dos jovens ocasionando um nível rudimentar de leitura que se detêm apenas na historinha transmitida Metodologias falhas podem causar o desprezo e resistência à leitura Também é desejável que a literatura obtenha a parceria de outras áreas como por exemplo a pintura a escultura o teatro e o cinema para que o aluno vivencie diferentes formas de artes à sua cultura Mais do que possibilitar aos alunos leituras diversas de diferentes gêneros escritos em contextos diferenciados e para diferentes fins os projetos arrojados de literatura devem oferecer livros que exercitem a experimentação e a descoberta e investir na inteligência e sensibilidade do leitor infantojuvenil De acordo com Marisa Lajolo 1982 E a cada novo texto com que se defronta o aluno pode vivenciar de forma crítica a atitude de sujeito não só de sua linguagem mas de uma teoria e uma história da literatura do seu povo A não ser assim a literatura não cumprirá sua função maior no contexto se não da escola ao menos da formação do indivíduo livre LAJOLO apud ZILBERMAN 1984 p 52 As dificuldades de conquistar o leitor passam pelo equívoco da maneira como o texto é usado em sala de aula ou seja pretexto reduzido à aprendizagem da leitura e da gramática Entretanto quando o leitor se sente provocado pelas palavras lidas realizase a função formadora da leitura que induz o indivíduo a melhor conhecer a si e ao mundo que o cerca SARAIVA 2001 p 27 Através da literatura o leitor busca novas formas de dizer amplia sua capacidade linguística lança hipóteses experimenta duvida exercita descobre acresce modifica sua leitura e assume uma postura crítica TÓPICO 2 A RELAÇÃO LIVRO E A CRIANÇA 121 O desafio é levar o aluno a acrescentar interpretações livres daquelas preestabelecidas abandonar antigas práticas que relevam o texto e sua significação como que algo sacralizado Para Sanches Neto 2007 p 50 a grande tarefa pedagógica é produzir o apetite pelo texto e ainda suscitar no fruidor sentimentos e pensamentos que não estão no texto mas nele É nesse sentido que a literatura é obra aberta pois a literatura é lugar do entrecruzamento de muitos discursos de lacunas provocadoras do apetite pela leitura Outro fator a ser observado é o de que a literatura nos lares ocupa pouco espaço muitas casas sequer possuem um material de leitura O adulto diz que não tem tempo para a leitura a família de modo geral não possui livros de literatura preferindo livros didáticos de culinária de textos sobre atualidade textos práticos receitas de emagrecimento livros de autoajuda revistas de moda e outras A literatura cumpre na vida de muitos adultos o papel secundário não significa prazer não é uma opção de lazer Sabemos que deveria ser de responsabilidade da família promover o primeiro contato com os livros no período precedente ao da escola que poderia se dar muitas vezes por intermédio dos pais avós ou seja no seio familiar com histórias de fada de animais histórias inventadas Esse narrar histórias é positivo pois contribui para a aproximação entre a criança e o livro Porém o que percebemos é que as condições de vida impostas pelo contexto socioeconômico acabam por acarretar uma escassez de leitura literária no espaço familiar os pais pouco ou quase nada leem para seus filhos E ainda o livro possui um alto preço o que na maioria das vezes impossibilita a sua aquisição Entretanto se na rotina dos pais ocorre a inclusão da leitura à criança soará natural o ato de ler Além disso pais que procuram conhecer e debater sobre livros histórias demonstram interesse por aquele mundo da criança Cristiane M Oliveira 2007 afirma a importância e as atitudes dos pais para o incentivo da leitura pois a descoberta da magia da leitura se dá numa fase em que a ligação entre pais e filhos ainda é muito grande Por conta disso o afetivo está intimamente envolvido com esse processo Se o momento de leitura na infância se associa a momentos de prazer formase uma relação positiva com os livros que é o embrião de um adulto leitor Se a leitura ressignifica o humano e o mundo que o cerca então incitar a criança a explorála propiciar o contato com a literatura de forma prazerosa deverá ser um dos principais objetivos tanto da escola quanto da família e da sociedade Os papéis no incentivo à leitura não se excluem mas se complementam A eles cabe compreender a sua importância e assumila contribuindo assim para a formação de leitores 122 UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA 3 A IMAGEM LUGAR ESPECIAL Quando contamos uma história fazemos uso de estruturas próprias da linguagem oral podendo incluir aos componentes verbais gestos entonação e pausa Na formação de leitores é preciso somar outros elementos à linguagem verbal Um deles é a linguagem não verbal que se utiliza de signos visuais Ainda que no tópico precedente defendemos o texto infantil na perspectiva dialógica e no sentido de favorecer a imaginação e a fantasia somos uma civilização vinculada à linguagem imagética pois através da visão percebemos figuras cores formas e movimentos Através de uma imagem atribuímos qualidades aos objetos e ao espaço reconhecendoos e identificandoos Podemos então afirmar que a imagem cumpre a função de mediadora entre o espectador e a realidade Nesse sentido os livros com imagens destinados ao público infantil ganham força desde a década de 1920 quando pesquisas no campo da psicanálise ligadas ao âmbito pedagógico confirmaram que as imagens favorecem o estabelecimento de relações entre o concreto e o abstrato Um dos pioneiros na idealização de materiais com figuras influenciando a renovação da literatura tanto na Europa quanto nas Américas foi o francês Paul Faucher A produção desses livros surge em consonância com os avanços da psicologia e os ideais do movimento Escola Nova que propôs uma mudança de foco no processo pedagógico contrapondose à escola tradicional Em 1927 Faucher interessouse pelas ideias pedagógicas do tcheco Frandisck Bakulé Esse encontro instigou o francês que atento às descobertas da psicologia experimental aplicada à pedagogia tendo em vista os estágios de amadurecimento físico e psicológico da criança explora cada vez mais livros e materiais com linguagem não verbal que no entender de Faucher são capazes de instigar a imaginação e inteligência das crianças COELHO 2000 UNI O estudo da psicologia aplicada à pedagogia preconiza que o conhecimento se processa basicamente pelo contato direto da criança com o mundo que a cerca Daí a dizer que a linguagem imagética presente na literatura infantojuvenil auxilia na construção das percepções e propicia uma primeira entrada na interpretação de um texto porque é componente importante na atribuição de significados Dessa forma o texto ilustrado desempenha um papel fundamental no processo de leitura e ampliação de sentidos Nas livrarias circulam as mais diversas publicações de livros quanto ao formato tamanho assuntos ou temas com histórias contadas unicamente através de imagens ou fotos Esse novo formato de material desperta o interesse do público infantojuvenil Observe o exemplo a seguir TÓPICO 2 A RELAÇÃO LIVRO E A CRIANÇA 123 FIGURA 15 CAPA DO LIVRO MARCELO MARMELO MARTELO E OUTRAS HISTÓRIAS FONTE ROCHA Ruth Marcelo marmelo martelo e outras histórias RJ Salamandra 1976 A capa do livro em questão favorece discussões sobre o personagem o texto escrito enredo e espaço A partir da imagem é possível antecipar hipóteses e fazer inferências levando o jovem leitor a expor as suas opiniões Imagens como esta possibilitam o primeiro contato com a história a partir dos desenhos e cores A criança frente a esse objeto poderá contar e recontar histórias criar roteiros cenários personagens cenas e espaços sem necessariamente a intervenção do adulto A criança exercita a imaginação para em seguida descrever o que observou desenvolvendo a habilidade oral eou por meio de rabiscos É nesse fazer que ela inicia a relação com a linguagem escrita ao tentar reproduzir o que viu no livro A criança que exercita a observância das imagens alarga a percepção tátil uma vez que ao passar os dedos sobre as imagens de um livro tenta construir hipóteses de sentido apropriandose de uma leitura específica uma leitura imaginária ficcional enfatiza Eliane Debus 2006 p 36 O olhar é despertado pelo colorido do livro pela capa um convite à imaginação que estimula o prazer Alguns estudiosos como Bruno Bettelheim no entanto contestam o uso da ilustração em textos infantis alegando que estas já chegam preenchidas ao imaginário do leitor não deixam espaço para outras possibilidades estabelecidas a partir do leitorcriança Esses livros não deveriam conter ilustrações pois a criança ao ler ou ouvir histórias elaboraria de acordo com sua experiência as figuras e imagens do que estaria lendo ou ouvindo Um conto de fadas perde muito de sua significação pessoal quando suas figuras e situações recebem substância não 124 UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA através da imaginação da criança mas de um ilustrador BETTELHEIM 2007 p 76 Para este autor as ilustrações limitariam a capacidade cognitiva do jovem leitor Já para Ramos e Panozzo 2005 p 38 tanto a linguagem verbal quanto as ilustrações devem ser exploradas Pensar o livro infantil apenas pela perspectiva da palavra implica ignorar parte de sua significação uma vez que o leitor apreende a obra na sua totalidade ou seja congregando as linguagens que a constituem Para Nelly Novais Coelho 2000 os livros com ilustrações exercem forte atração por meio da capa do colorido dos desenhos das personagens favorecendo o exercício da capacidade inventiva pois possibilitam associações e inferências As imagens materializam a palavra do artista Ao ser estimulado a observar detalhes das imagens cores traços distribuição dos elementos no papel relação entre imagem e escrita estará o adulto ajudando o jovem leitor a apurar sua percepção e reestruturar o modo de ver reconhecer e julgar Para elucidar essa questão observe o livro Marcelo marmelo martelo e outras histórias Esse livro conta a história de Marcelo um menino muito curioso e esperto que procura entender o significado das coisas e por que elas são como são Marcelo vivia fazendo perguntas a todo mundo Papai por que é que a chuva cai Mamãe por que é que o mar não derrama Vovó por que é que o cachorro tem quatro pernas As pessoas grandes às vezes respondiam Às vezes não sabiam como responder ROCHA 1976 p 3 O livro mostra situações reais do cotidiano de um jeito que procura ser simples e de modo colorido O livro é composto de três contos cujas personagens são crianças que vivem na cidade Elas resolvem seus impasses com muita esperteza e vivacidade Marcelo cria palavras novas Teresinha e Gabriela descobrem a identidade na diferença e Carlos Alberto compreende a importância da amizade FIGURA 16 TRECHO DO LIVRO MARCELO MARMELO MARTELO E OUTRAS HISTÓRIAS FONTE Disponível em httpeducandocomocoracao blogspotcombr201104marcelomarmelomartelohtml Acesso em 5 out 2012 TÓPICO 2 A RELAÇÃO LIVRO E A CRIANÇA 125 Marcelo personagem do livro ajuda os pequenos leitores a perceberem que outras crianças também têm seus questionamentos De maneira lúdica Marcelo compartilha com os seus leitores uma relação prazerosa com a língua E cada vez mais para além do texto escrito o mercado editorial enfatiza a linguagem não verbal a ilustração Nos livros contemporâneos as personagens eou os elementos das histórias saltam da página divertindo e surpreendendo o leitor Segundo Mattos 2006 p 114 é bastante comum que nesse tipo de publicação a história seja um pretexto para a introdução da brincadeira o que em absoluto não compromete a qualidade da obra que reside principalmente no projeto gráfico A leitura sensorial por meio da imagem promove a curiosidade Esse jogo com o universo escondido num livro vai estimulando na criança a descoberta e aprimoramento da linguagem desenvolvendo sua capacidade de comunicação com o mundo MARTINS 1994 p 43 Sendo assim é imperativo instigar a percepção imagética com o objetivo de ajudar o leitor no processo de construção do pensamento abstrato Não podemos esquecer de levar o leitor a perceber aspectos relacionados ao objeto ao material do livro iniciando pela capa pelo formato do livro título Comentar cada ilustração inclusive a da capa o tamanho as cores o ilustrador o tipo de letra a organização das páginas se em capítulos se com subtítulos se pertence a uma coleção enxergando o livro como um todo ABRAMOVICH 1989 p 140 De acordo com Abramovich é preciso explorar ao máximo o livro infantil através de atividades a fim de perceber que a leitura não é somente uma mas múltipla e que as imagens comunicam Dessa forma o texto imagético é mais uma possibilidade de leitura carregada de significados Nos livros contemporâneos a ilustração conforme já dissemos não dispensa o texto escrito mas estimula o senso estético e contribui para a leitura da imagem isso porque para as crianças pequenas os desenhos favorecem a criação de hipóteses acerca do que está escrito Dito de outro modo a imagem antecipa o sentido do texto DEBUS 2006 Vejamos agora o livro A caligrafia de dona Sofia de André Neves cujo texto se constitui em uma narrativa poética e as ilustrações elementos que favorecem a recepção 126 UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA FIGURA 17 A CALIGRAFIA DE DONA SOFIA FONTE Disponível em httpanynhaproletramentoblogspotcombr201007paulinas prazersabersaborehtml Acesso em 5 out 2012 A narrativa assim se inicia Na mais alta colina entre as colinas que guardam a cidade existe uma casa diferente de todas as outras com paredes decoradas com poemas NEVES 2006 p 2 O livro enfatiza a caligrafia de uma professora aposentada que desenha as letras e demonstra como a poesia está presente em sua vida Para a personagem um mundo repleto de luz e sensibilidade Não haveria quem não pudesse dizer que ali as paredes recitavam cada canto vivo cuidado com emoção e a caligrafia em estilo que só Dona Sofia sabia NEVES 2006 p 2 Dona Sofia mora sozinha e sua paixão pela leitura levaa a escrever os poemas preferidos a fim de que não ficassem escondidos nos livros Os anos foram passando e um belo dia Dona Sofia percebeu que não havia mais espaço para escrever O que faria então Não queria deixar as poesias escondidas nos livros NEVES 2006 p 2 TÓPICO 2 A RELAÇÃO LIVRO E A CRIANÇA 127 Desse modo decorou as paredes de sua casa com poemas de diversos escritores como por exemplo Roseana Murray Fernando Pessoa Bartolomeu Campos de Queirós Castro Alves Florbela Espanca Carlos Drummond de Andrade Elias José Álvares de Azevedo Gonçalves Dias Gláucia de Souza Garcia Lorca Machado de Assis Casimiro de Abreu Sérgio Capparelli entre outros FIGURA 19 POESIAS DECORADAS NAS PAREDES POR DONA SOFIA FONTE Disponível em httpanynhaproletramentoblogspotcom br201007paulinasprazersabersaborehtml Acesso em 5 out 2012 A professora decide enviar os cartões poéticos a todos os moradores da cidade Com letra de caprichosa moça a professora aposentada decidiuse pelos cartões poéticos prensando flores sobre o papel colhendo palavras com sua florida caligrafia endereçandoos a todos os moradores da pequena cidade NEVES 2006 p 2 É nesse momento que entra em cena seu Ananias o carteiro que passa a ajudar Dona Sofia a entregar cartões Mais uma vez quando o alvor da aurora surgiu no céu Seu Ananias começou a percorrer a cidade de casa em casa Mas não entregava cartas A cada morador ele contava o quanto tinha aprendido com Dona Sofia e como aquela senhora havia mudado aos poucos a vida da pequena cidade sem ninguém perceber NEVES 2006 p 4 128 UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA FIGURA 20 ANANIAS O CARTEIRO FONTE Disponível em httpencantamentosdaliteraturablogspotcom br200904caligrafiadedonasofiaandreneveshtml Acesso em 5 out 2012 O enredo demonstra uma senhora preocupada em sensibilizar os demais moradores da cidade à leitura de poemas Dona Sofia era conhecedora das sensações e emoções que as palavras provocavam O livro sugere que a vida pode ser melhor se espalhássemos poemas pelo mundo A criança poderá ser orientada a explorar as imagens as cores enfatizando a relação destas com o texto Com base nas considerações a pretensão é enfatizar que muitos livros exploram além do enredo a imagem O intento é o de atrair o leitor neste caso a criança cujas sensações embora subjetivas comovem e divertem Assim no contexto de sala de aula pode o professor propor a leitura da imagem estimulando inferências e hipóteses com perguntas do tipo O que sugere a imagem Quem aparece Como é a imagem Será um texto engraçado ou triste Para complementar a nossa sugestão de metodologia sobre a leitura de imagens trazemos um texto extraído da revista Nova Escola que apresenta um roteiro TÓPICO 2 A RELAÇÃO LIVRO E A CRIANÇA 129 para atividades ligadas à cultura visual O diferencial é fazer sempre a relação com a realidade do aluno 1 Descrever Para aproveitar tudo o que uma imagem pode oferecer os olhos precisam percorrer o objeto de estudo com atenção Então o professor deverá solicitar de todos um relato do que veem elaborando um inventário descrevendo detalhadamente o que estão vendo As observações podem ser elencadas no quadro 2 Analisar É um momento destinado à percepção de detalhes Neste caso o professor poderá dirigir algumas perguntas objetivando estimular o aluno a prestar atenção na linguagem visual e seus elementos 3 Interpretar Eleja com a turma outras manifestações visuais que tratem de tema semelhante ao que está sendo abordado na imagem estimuleos a fazer comparações cores formas linhas organização espacial etc 4 Fundamentar Elabore com a turma uma lista de aspectos que provocaram curiosidade sobre o livro a imagem e o autor Pesquise em conjunto ou divida a turma para que busquem respostas às dúvidas 5 Revelar Discuta como gostariam de expor as ideias encontradas Quais são e como comunicálas É hora de criar desenhar e escrever FONTE Extraído e adaptado de REVISTA NOVA ESCOLA Prática pedagógica Artes visuais Abril 2003 Caroa acadêmicoa além do livro A caligrafia de dona Sofia outros livros infantojuvenis contêm as características para a abordagem da leitura imagética Veja a seguir a relação de livros retirada da Revista Crescer que poderá ser ampliada com a colaboração dos colegas 130 UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA FIGURA 21 RELAÇÃO DE LIVROS INFANTOJUVENIS FONTE Extraído e adaptado de Revista Crescer e publicada na edição do mês de junho de 2007 Aumente sua lista trocando experiências e sugestões sobre livros infantis com os colegas Anote o nome dos livros aqui 131 Neste tópico você viu Uma das metodologias que pode ser utilizada em sala de aula envolve o contato com os livros e geralmente a criança quer repetila Essa relação forma a opinião da criança que passa a estabelecer critérios de seleção do que quer ler É importante que o professor seja o mediador no contexto das práticas escolares de leitura literária na medida em que ele opera escolhas de narrativas poesias teatros contos fábulas autores enfim escolhas variadas de gêneros literários e estratégias de atividades a serem desenvolvidas em sala de aula Para a formação de leitores podemos destacar algumas proposições que escolas e salas de aula disponibilizem livros e outros materiais de leitura atentem para a leitura livre promovam momentos de leitura entre aluno e professor Vale ressaltar que o professor deveria também ser um leitor assíduo de modo a acompanhar o movimento editorial infantil e juvenil É papel da escola sensibilizar para o hábito da leitura A preocupação básica deveria ser a formação de leitores abertos e capazes de absorver o que uma boa história proporciona A contação de histórias estimula o uso de estruturas próprias da linguagem oral componentes verbais gestos entonação e pausa É preciso somar outros elementos à linguagem verbal um deles é a linguagem não verbal que se utiliza de signos visuais Uma imagem contém qualidades aos objetos e ao espaço e cumpre a função de mediadora entre o espectador e a realidade A linguagem imagética presente na literatura infantojuvenil auxilia na construção das percepções e propicia uma primeira entrada na interpretação de um texto porque é componente importante na atribuição de significados A criança frente ao livro de imagens poderá contar e recontar histórias criar roteiros cenários personagens cenas e espaços sem necessariamente a intervenção do adulto Os livros com ilustrações exercem forte atração por meio da capa do colorido dos desenhos das personagens favorecendo o exercício da capacidade inventiva pois possibilitam associações e inferências As imagens materializam a palavra do artista Ao ser estimulado a observar detalhes das imagens cores traços distribuição dos elementos no papel relação entre imagem e escrita o adulto ajuda o jovem leitor a apurar sua percepção e reestruturar o modo de ver reconhecer e julgar RESUMO DO TÓPICO 2 132 Caroa acadêmicoa neste tópico enfatizamos a leitura de imagens como uma atividade que estimula o olhar Com o intuito de exercitar a criatividade a escrita e a imaginação propomos a seguinte atividade elabore uma história a partir da leitura da imagem que segue Lembrese de dar um nome à história e à personagem Lembrese também de que toda narrativa apresenta uma estrutura AUTOATIVIDADE FIGURA 22 IMAGEM PARA ELABORAÇÃO DE UMA HISTÓRIA FONTE Disponível em httpmeninasemartewordpresscomtag ilustracao Acesso em 10 abr 2013 133 TÓPICO 3 EXPLORANDO OS GÊNEROS INFANTIS UNIDADE 3 1 INTRODUÇÃO A leitura enfatizamos é um meio de descoberta do mundo O ser humano ao longo da vida se desenvolve através da leitura Mas ler não significa apenas identificar as palavras significa compreender e interpretar É nesse sentido que destacamos a importância da literatura na infância pois é neste período que inicia uma relação especial com o livro O objetivo da literatura no ambiente escolar é a formação do leitor e deve para isso criar entre alunos e obras literárias uma atitude de curiosidade pelos livros de interesse pelo descobrimento de encantamento Essa relação poderá ser construída privilegiando a leitura de obras na sala de aula e as conversas informais que provoquem discussão sobre o que é lido Apresentar diversidade de gêneros significa apontar para objetivos e interesses criados coletivamente para a linguagem como mediadora da compreensão do mundo e do autoconhecimento Para tanto o professor deverá adotar uma postura que privilegia a polissemia o dialogismo permitindo que Alunos e professores falem com suas vozes o discurso das suas vidas que lhes dá chance de somar suas falas às dos colegas para contestar concordar sair do mundo escolar a partir do texto buscando outras referências colhidas na TV na música no humor nas histórias e fatos do bairro no trabalho no namoro enfim nesse todo que é o conhecimento que eles dominam SANTA CATARINA 2005 p 41 O professor neste fazer deverá contemplar histórias do dia a dia contos fábulas lendas parlendas músicas poesia novela crônica piadas filmes romances histórias em quadrinhos ou seja uma prática pautada no contato com os diversos gêneros textuais Apresentamos a seguir algumas possibilidades de atividades a serem realizadas com o jovem leitor estas no entanto já são conhecidas Assim nossa pretensão é tão somente refletir que o sucesso depende de ações planejadas com objetivos bem definidos UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA 134 2 LEITURA DO MUNDO A LITERATURA Vejamos algumas possibilidades de práticas propondo atividades como por exemplo a roda de leitura Um momento de contato primeiramente individual com a literatura para em seguida integrarse com o grande grupo expondo as leituras a elaboração de comentários de análise e reconhecimento da palavra É no conjunto dessas atividades que se amplia o vocabulário e a troca de informações que podem aguçar a curiosidade por novas leituras FIGURA 23 RODA DE LEITURA FONTE Disponível em httpescoladavilawordpresscom20100318voce adivinhoueuadoreiolivroquemeindicoublog57 Acesso em 5 out 2012 Ainda na roda de histórias o professor junto com os alunos procede a contação de histórias prática que favorece a escuta e a oralidade Essa atividade poderá ser incrementada com o objetivo de exercitar a leitura de obras mais extensas Neste caso a escolha das obras para leitura deverá ser dosada com a leitura de um determinado número de páginas ao dia Este procedimento provocará suspense sobre o desenrolar da história O professor poderá também elaborar com a classe um quadro que indique quais obras foram lidas em sala de aula ou quais os alunos gostariam de ler durante o próximo mês ou semestre Lembrese de que Sherazade personagem de As mil e uma noites utilizava esta estratégia para prender a atenção do sultão UNI TÓPICO 3 EXPLORANDO OS GÊNEROS INFANTIS 135 Ao mesmo tempo você futuroa professora atente para os temas propostos que são abordados nestas histórias como amizade ambição preconceito coragem responsabilidades vida morte OA professora ao propor a prática do contar estimula o ler literário propicia o encontro entre as crianças e a produção que lida simbolicamente com o real A língua seja na modalidade falada ou escrita aponta para a organização de uma sociedade suas ideias pensamentos valores e traços de sua cultura Esses reflexos podem ser encontrados na literatura que desvela por intermédio da narrativa experiências de épocas e sociedades distintas Inicialmente as narrativas eram propagadas oralmente garantindo o relembrar e o transmitir a sabedoria às gerações futuras Prática muito antiga e universal na qual as histórias narradas eram e são ainda hoje momentos de trocas união diversão e reflexão Uma mesma história pode ser narrada em lugares distintos e poderá apresentar variações quanto às palavras empregadas quanto à sequência aos elementos empregados e ao enredo Porém as inovações ou variações realizadas pelo contador devem ser aceitas pelos ouvintes somente assim poderão fazer parte do repertório coletivo da tradição É nesse sentido que o espectador participa da criação e transformação da cultura popular No momento da narração palavras ou frases se repetem como é o caso das expressões era uma vez e viveram felizes para sempre Uma palavra uma pausa um tom de voz Adéquase o gesto à história narrada com o intuito de envolver a plateia Para as crianças e adolescentes ouvir histórias poetizadas cantadas é um sedutor exercício de investigação e experimentação e portanto construção de conhecimento O narrador com arte prende a atenção do ouvinte De acordo com esse pensamento fomentar o imaginário por meio da contação de narrativas de histórias diversificadas favorece o contato do aluno com a cultura escrita tornandoo inquieto pelo desejo do ler Cléo Busatto relata algumas nuances que auxiliam no momento de elaborar uma atividade que envolva o contar histórias Para a autora contar histórias é diferente de representar entretanto ao se iniciar a contação começam a surgir os primeiros sinais de que a representação está ali inserida Neste fazer colocamos em ação também a linguagem teatral um recurso didático rico porém algumas distinções se fazem necessárias No teatro buscamos o gesto exato de cada personagem sua voz seu pensamento de tal maneira que ele se apresente inteiro para quem esteja assistindo Na narrativa este personagem será concebido pelo ouvinte através dos elementos oferecidos pelo narrador muitas vezes não mais que meia dúzia de palavras as quais fornecem elementos suficientes para que o personagem crie vida na imaginação do ouvinte BUSATTO 2003 p 74 UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA 136 O teatro é a arte de apresentar ou melhor representar as ações da narrativa e a arte de descrever as ações No entanto isso não nos impede de nos apropriarmos da linguagem teatral no momento da contação O que deve orientar a atividade de contação é manter a característica do narrar e não deixar que se sobressaia a do representar teatralmente BUSATTO 2003 p 74 Tal postura garante ao ouvinte a possibilidade de imaginar os personagens e as suas ações sem determinar através de um corpo e uma voz como é aquele personagem e qual é a ação que ele está executando BUSATTO 2003 p75 Na contação é o narrador a conduzir a história Um gesto uma mudança de tom de voz remeterá a criança ao mundo da imaginação do faz de conta Exemplificando a autoridade de um pai poderá ser traduzida por um pequeno movimento de mão acompanhado da sua intenção correspondente Isto aliado à fala do pai é o suficiente para a criança imaginar como ele impõe respeito Não é preciso mudar a voz mesmo porque seria muito fácil cair na caricatura da autoridade O Lobo Mau não precisa falar grosso para demonstrar a sua ferocidade Um desenho no ar um pequeno tom já traduz a sua malvadeza O que podemos carregar do teatro é justamente a intenção que carrega um ritmo preciso BUSATTO 2003 p 75 O narrador deverá ter o cuidado de não exagerar nos gestos considerando o fato de levar ao ouvinte a imagem visual Ainda segundo Busatto 2003 p 76 narrar em pé é mais estimulante assim o contador poderá observar esta ocupação espacial e os ouvintes à sua frente buscar os olhos de cada um propondo e mantendo uma atitude intimista O uso de objetos também poderá ser explorado como recurso Estimular a partir do uso de objetos não significa que se deva usar os objetos descritos pelo conto Você até poderá se munir de alguns objetos comuns como caixa de fósforos palitos lápis e borracha e fazer deles os personagens de uma história porém isso faz parte de outra técnica é teatro de animação de formas Não é assim que vejo o uso de elementos durante uma narrativa porém não fecho esta questão em certo X errado O que exponho aqui é apenas a minha forma de enxergar a técnica BUSATTO 2003 p 77 Sendo assim ao contar histórias podemos nos apropriar dos elementos do teatro mas com bom senso É importante que o uso da linguagem teatral de objetos e outros recursos não esclareça tudo que a imaginação faça a sua parte que cada ouvinte retire do conto aquilo que necessita e que a partir dele se faça um estimulante exercício imaginativo BUSATTO 2003 p 77 A contação deve ser preparada cautelosamente leia boas versões escolha histórias que tocam seu coração a ponto de fazer com que você disponha do seu tempo para preparálas e depois narrálas a quem deseja ouvir BUSATTO 2003 p 77 Após a escolha atente que a dinâmica de contar e ouvir é de grande valia em sala de aula pois sempre fascinaram uma vez que os alunos compartilham leituras TÓPICO 3 EXPLORANDO OS GÊNEROS INFANTIS 137 Todos os gêneros podem ser explorados para a atividade de contação Destacamos aqui as fábulas Estas devem fazer parte do repertório uma vez que promovem discussões em torno de temas como a solidariedade a desigualdade a vaidade a vida a morte Narreas e proponha debates sobre l A atualidade do tema l A moral destacada na contemporaneidade l Mudanças ocorridas l Contrapontos com textos escritos recentemente Outro modo de expandir a leitura da literatura e o conhecimento é propor uma atividade cujo objetivo é encontrar elementos intertextuais pela comparação entre dois ou mais textos O aluno durante a leitura identifica quais elementos estão presentes que podem fazer referência à forma às personagens ao tema a palavras a frases Feita a leitura e a constatação dos aspectos intertextuais O professor poderá ainda propor que os alunos elaborem o seu próprio texto tendo por base uma história um desenho um quadro O objetivo dessa atividade é considerar a intertextualidade como uma possibilidade dialógica que contribui para a leitura e escrita Lembrese de que a intertextualidade pode ser entendida como a superposição de uma frase um tema uma personagem uma imagem um texto da literatura a outro texto Está presente nos livros nas propagandas novelas filmes Proponha um estudo comparativo por exemplo entre Chapeuzinho Vermelho e as versões desse clássico a exemplo de Capuchinho Vermelho de Charles Perrault e Chapeuzinho Vermelho dos Irmãos Grimm observando a intertextualidade com textos mais contemporâneos Chapeuzinho Vermelho de Raiva de Mário Prata Chapeuzinho Amarelo de Chico Buarque Fita Verde no Cabelo de Guimarães Rosa Cabelinho Vermelho e Lobo Bobo de Ronaldo Bôscoli e Carlos Lyra e Chapeuzinho Verde de Augusta Faro FIGURA 24 TÍTULOS DE VÁRIOS LIVROS INFANTIS FONTE Disponível em httplpressurpwordpresscom20100322 projetodeleituraE2809CquehistoriaeessaE2809D Acesso em 5 out 2012 UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA 138 Essa análise possibilita observar além da intertextualidade aspectos ligados às normas e valores de épocas distintas uma proposta de leitura que configura uma sociedade emancipatória e democrática Outra categoria editorial que vem ganhando força são livros nos quais prevalece a função referencial transmitindo a informação objetivamente de forma precisa e denotativa É a linguagem do jornalismo dos noticiários Está centrada no referente ou seja naquilo de que se fala geralmente escrita em terceira pessoa com frases estruturadas na ordem direta Entretanto muitos dos livros de cunho informativo revelam alguns parâmetros estéticos e para tanto se valem de recursos lúdicos e artísticos Para Mattos 2006 p 115 tais publicações devem ser avaliadas a partir de um duplo critério o primeiro diz respeito à correção adequação e pertinência do seu conteúdo informacional o segundo à qualidade de seu discurso artístico e estético Sendo assim apropriese destes textos com o escopo de aprimorar a função referencial da linguagem característica de um texto informativo Para tanto aproveite as histórias que vão desde contos tradicionais eou até as aventuras encontradas nos livros de Harry Potter poderão servir de texto base Vejamos você pode narrar a história por exemplo Chapeuzinho Vermelho solicitando aos alunos que atentem para os acontecimentos que vão sendo arrolados Em seguida proponha a elaboração de uma notícia de jornal informando o que aconteceu com a menina e sua avó o lobo o caçador o rapaz o bruxo Suscite questões que auxiliem o aluno a escrever a notícia O que aconteceu Onde Quem estava envolvido Por quê Quando Como Além disso o texto deverá conter uma manchete interessante com letras em destaque e com um título curto devendo ser clara objetiva informativa e de fácil compreensão A cada parágrafo o aluno deverá acrescentar um dado novo Mostre ao aluno como são elaborados estes textos utilize jornais que circulam na cidade exemplificando a dinâmica de construção do texto a o primeiro parágrafo apresentará um resumo do fato b o segundo informará onde e quando o fato ocorreu e quais as pessoas envolvidas c os demais parágrafos deverão relatar a sequência dos fatos até finalizar a notícia Importante também é abrir espaço para falar desinteressadamente sobre leituras recomendação de leituras promover júris audição de músicas sessões de vídeos e de filmes de interesse do grupo e de acordo com a idade dos alunos estabelecer relações e provocar neles a curiosidade para que investigue o momento histórico e social no qual autor e obra estão inseridos fazêlos observar possíveis intenções do autor o gênero a escola literária o momento político o pensamento filosófico predominante SANTA CATARINA 2005 TÓPICO 3 EXPLORANDO OS GÊNEROS INFANTIS 139 Aproveite estes momentos para discutir questões pertinentes à ambiguidade que envolve muitas manchetes de jornais e revistas Estabeleça relações explore os conhecimentos prévios dos alunos e levante questões pertinentes ao texto Tenhamos em mente que quanto mais a criança for exposta ao exercício de leitura de vários gêneros e temas mais ela perceberá o poder da palavra e a ação da linguagem sobre o pensamento humano E ainda a diversidade dos textos sem dúvida possui o intento de atender às necessidades de um público que tem gostos interesses e demandas diferentes e favorecerá a função de conquistar o jovem para a leitura da palavra de garantir o desenvolvimento da criatividade da criticidade para que haja e interaja com seus pares e exerça a democracia Vale ainda ressaltar a necessidade de evidenciar aspectos pertinentes à linguagem do texto literário Uma ideia é possibilitar o contato com textos de autores diversos eou gêneros diversos mas que abordem a mesma temática a exemplo da temática que envolve amor e traição Sendo assim programe aulas com autores que escreveram histórias com esses temas assista a um filme que aborde a mesma temática explorando visões e épocas diferentes Quem sabe aborde a traição a partir de escolas literárias distintas Para tanto escolha Madame Bovary do autor Gustave Flaubert e São Bernardo de Graciliano Ramos Neste fazer questione as verdades os estereótipos investigue comportamentos compare estilos o início e o final das tramas confronte a linguagem cinematográfica com a literária Outra possibilidade que deve ser explorada em sala de aula é a de comparar estilos de autores épocas e nacionalidades distintas A título de exemplificar comparamos o estilo do escritor brasileiro Machado de Assis com o do escritor italiano Luigi Pirandello Elencamos algumas características que revelam semelhança nos escritos desses dois autores o humorismo e a conversa do narrador com o leitor Luigi Pirandello nasceu em Agrigento na Sicília em 28 de junho de 1867 Fez seus estudos universitários em Palermo Roma e na Alemanha concluindo o curso de Filologia Tornouse professor de uma instituição de ensino médio e deu aulas particulares Pirandello além das aulas intensificou sua produção literária Em 1889 foi editado o primeiro livro do autor Mal Giocondo O escritor morreu em 10 de dezembro de 1936 em Roma no mesmo ano em que recebeu o Prêmio Nobel de Literatura não só pelo conjunto de sua obra mas principalmente pelo sucesso de não só levar aos palcos histórias de aristocratas e burgueses mas uma nova forma de teatro o teatro no teatro Foi o próprio Pirandello que assim nomeou o seu teatro talvez pelo fato de o autor fazer uso da metalinguagem Suas personagens discutiam seus próprios papéis a influência do autor da peça e de certa forma a relevância do teatro para a vida de um povo Das obras traduzidas para o português que corroboraram para o reconhecimento do autor como romancista e dramaturgo no Brasil destacamos O Finado Matias Pascal Seis personagens à procura de um autor Henrique IV Um nenhum e cem mil Os velhos e os moços O humorismo Esta noite se representa de improviso Cada um a seu modo UNI UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA 140 Quanto à presença do humorismo destacamos que a visão naturalista e realista não retratava completamente a complexidade do subjetivismo o ser e seu íntimo Pirandello e Machado de Assis assinalam várias de suas obras com esse toque de humorismo Conforme Pirandello um escritor poderia fazer uso da ironia da comicidade ou do humorismo Cada qual possui características distintas embora sutis muito bem descritas em seu ensaio O humorismo de 1908 Para Pirandello o humor é diverso do cômico este não leva à reflexão É do humor que surge a reflexão a partir da qual a representação frente à realidade passa a ser profunda pois ao se refletir abrirseá mão do divertimento Em citação do próprio autor neste ensaio temse a explicação Vejo uma velha senhora com os cabelos retintos toda ela torpemente pintada e vestida de roupas juvenis Ponhome a rir Assim posso à primeira vista e superficialmente determe nessa impressão cômica advertimento do contrário Mas se agora em mim intervém a reflexão e me sugere que aquela velha senhora pensa que assim vestida escondendo assim as rugas e as cãs consegue reter o amor do marido muito mais moço do que ela eis que já não posso mais rir disso como antes porque precisamente a reflexão trabalhando dentro de mim me leva a ultrapassar aquela primeira advertência ou antes a entrar mais em seu interior daquele primeiro advertimento do contrário ela me fez passar a esse sentimento do contrário E aqui está toda a diferença entre o cômico e o humorístico PIRANDELLO 1999 p 147 Há que se considerar que não há nada de inocente no humorismo pirandelliano ou no humorismo machadiano É para o leitor que é dado a interpretar inferir concluir sobre fatos aparentemente insignificantes temperados com humorismo os dissabores da vida A dor é disfarçada de riso A essência do humorismo é a do riso que se encontra próximo ao doloroso Já Machado de Assis inicia o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas fazendo uso desse recurso Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas ASSIS 1994 p 1 Nos escritos do italiano Pirandello traços desse humor podem ser percebidos quando o protagonista do romance O finado Matias Pascal nos leva ao riso ao narrar o fato de seu olho esquerdo não acompanhar o direito como no dia em que resolveu começar a ser leitor e sim senhores comecei a ler eu também e só com um olho porque o outro se recusava a semelhante prática PIRANDELLO 1970 p 98 ou quando narra sua alegria por finalmente em seu primeiro emprego bibliotecário encontrar uma ocupação De vez em quando das prateleiras se precipitavam dois ou três livros acompanhados de certos ratos tão grandes quanto coelhos Foram para mim como a maçã de Newton E para começar escrevi um elaboradíssimo requerimento a fim de que fosse com a maior urgência provida a biblioteca de pelo menos uns dois grandes gatos TÓPICO 3 EXPLORANDO OS GÊNEROS INFANTIS 141 cuja manutenção não acarretaria despesas à Administração Pública PIRANDELLO 1970 p 96 Ou ainda quando vai visitarse no cemitério de vez em quando vou até lá para me ver morto e sepultado PIRANDELLO 1970 p 281 Observe que nestas passagens a reflexão abre espaço para múltiplas interpretações e significados sujeito dividido entre seguir as regras íntimas ou aquelas impostas pela sociedade um indivíduo fragmentado uma sociedade fadada à ignorância longe dos livros com objetivo No romance Memórias póstumas de Brás Cubas o narrador narra em primeira pessoa A personagem narra postumamente ou seja após sua morte Um defuntoautor e não um autordefunto alguém que já não pertence mais a este mundo é quem decide escrever suas memórias Assim podemos dizer que a história se desenrola em dois tempos um psicológico no qual o autor alémtúmulo relata sua vida com digressões que se afastam da ordem temporal linear Quanto ao tempo cronológico podemos destacálo nos acontecimentos que obedecem à ordem lógica e linear infância adolescência ida para Coimbra volta ao Brasil e morte UNI As personagens pirandellianas e machadianas contam sua vida e intercalam a narração em primeira pessoa com frequentes explicações para quem as escuta justificam para si e explicam aos outros os acontecimentos que motivaram seus atos O protagonista provoca o leitor em uma série de afirmações interrogações exclamações por vezes imperativas em outras como que num pedido de desculpas provocando o leitor A intromissão é recorrente nos romances pirandellianos O fragmento retirado do romance Um nenhum e cem mil marca esse recurso Eu queria estar só de modo inusitado totalmente novo O oposto do que vocês pensam isto é sem mim e portanto com um estranho por perto Isso já lhes parece um primeiro sinal de loucura Pode ser que a loucura já estivesse em mim não nego mas peço que acreditem que o único modo de se estar realmente só é este que lhes digo PIRANDELLO 2001 p 29 Para Compagnon 2003 p 151 quando o autor faz uso dessa técnica construir seu leitor da mesma forma que ele constrói seu segundo eu está reservando um lugar para o leitor que poderá ocupálo ou não julgar da mesma forma que o narrador ou não UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA 142 Vejamos essa intromissão nos escritos de Machado de Assis No romance Quincas Borba o escritor contextualiza o leitor sobre quem é Quincas Este Quincas Borba se acaso me fizeste o favor de ler as Memórias póstumas de Brás Cubas é aquele mesmo náufrago da existência que ali aparece mendigo herdeiro inopinado e inventor de uma filosofia Aqui o tens agora em Barbacena Logo que chegou enamorouse de uma viúva senhora de condição mediana e parcos meios de vida mas tão acanhada que os suspiros no namorado ficavam sem eco Chamava se Maria da Piedade Um irmão dela que é o presente Rubião fez todo o possível para casálos Piedade resistiu um pleuris a levou ASSIS 1994 p 3 Outro fator que pode ser mote para o confronto de escritos estimulando o gosto pela leitura e a observância do engendramento dos textos escritos poderia ser a análise das construções sintáticas O escritor Pirandello resgatou as construções sintáticas próximas da linguagem falada e para tanto optou pelo colorido dialetal o que de certa forma dá continuidade à herança linguística De acordo com Cesarini e Federicis 1996 essa maneira singular de escrever permitiu mostrar como na narrativa as personagens manifestam uma identidade subjetiva não separada da sua cultura O intento não era o de responder a gostos e a exigências de leitores mas de deixar falar as personagens com sua vivacidade e singularidade Nas palavras de Pirandello O movimento está na língua viva e na forma que se cria E o humorismo que não pode prescindir dela encontráloemos repito nas expressões dialetais na poesia macarrônica e nos escritores rebeldes à retórica PIRANDELLO 1999 p 76 No Brasil o emprego de uma escrita mais próxima da fala na literatura tornouse símbolo de identidade nacional Essa tendência iniciouse com o romantismo e pode ser detectada em autores como José de Alencar ou Gonçalves Dias que empregavam expressões de origem indígena ou construções sintáticas utilizadas no Brasil em suas obras Entretanto os escritos literários com ênfase em características nacionalistas culminam no Modernismo com Oswald de Andrade e Mário de Andrade entre outros Para tanto leia Macunaíma de Mário de Andrade A obra revela uma escrita com idiomatismos que são compreendidos dentro do contexto Escritores como José Lins do Rego e Graciliano Ramos Jorge Amado ou Érico Veríssimo Guimarães Rosa para citar alguns exemplos estabelecem a partir de seus textos uma proximidade com a língua oral falada no Brasil dando uma cor local a suas obras Atentar para estes traços na obra é um convite à percepção estética Como nos diz Umberto Eco 2003 p 6 um poder imaterial que de alguma forma pesa um convite à leitura por deleite por curiosidade de desvendar os segredos da alma por prazer em apreciar uma forma especial de linguagem que difere da forma cotidiana e por isso chamada de arte TÓPICO 3 EXPLORANDO OS GÊNEROS INFANTIS 143 Resumo da obra Um nenhum e cem mil de Pirandello Vitângelo Moscarda o protagonista descobre quando sua esposa comenta corriqueiramente que o nariz dele inclina se ligeiramente para a direita fato nunca observado pelo protagonista que entra em desespero ao se dar conta a partir deste detalhe que ele não é exatamente aquele que acreditava ser Assim dáse início uma busca do conhecerse entre um nenhum e cem mil O romance O finado Matias Pascal foi escrito em 1904 narra a história do pequeno burguês Matias Pascal que pertencia a uma família abastada da região da Sicília mas com a morte do pai e a contratação de Malagna um administrador desonesto a família acaba na miséria Anos mais tarde Matias casase com Romilda um casamento necessário e problemático Para sustentar a família começa a trabalhar como bibliotecário A vida miserável tanto conjugal quanto financeira que leva e a morte pela peste da mãe e da filha fazem com que Matias resolva dar um basta e foge de sua casa e da cidade Para na cidade de Monte Carlo joga em um cassino e ganha quantia considerável em dinheiro Pensa muito e resolve voltar para sua cidade e tentar salvar seu casamento Na viagem para casa ainda no trem lê uma nota num jornal que o surpreende e o faz mudar de ideia a notícia de seu suicídio Sua pseudomorte servirá para que ele sonhe com a liberdade FONTE Adaptado de Encontro e confronto do in visível na tradução do romance Il fu Mattia Pascal de Pirandello PASQUALINI Joseni Terezinha Frainer 2005 p 5053 UNI Assim diante da exposição de algumas peculiaridades desses escritores vale ressaltar a importância de estabelecer como rotina a observância entre um e mais autores e gêneros confrontando analisando e fomentando a discussão em sala de aula O mesmo poderá ser planejado com poesias e com músicas O desafio de se fazer descobertas em relação ao mundo da música das artes da moda e de comportamentos expande o conhecimento do gênero poético O contato com as trovas os desafios dos repentistas a literatura de cordel bem como as composições musicais das bandas contemporâneas possibilitam o reconhecimento do que a sociedade estabelece por literário e não literário A poesia na escola promove a integração possibilita a representação como forma de expressão corporal desenvolve a eloquência a autoestima e favorece a criatividade Associada a outras formas de arte cumpre na escola um papel integrador na medida em que revela a essência da expressão do homem Por sua ação sobre os processos emocionais ela desencadeia a liberdade de criação de troca de espontaneidade e socialização A poesia pode ser entendida se é que devemos entendêla como certo modo de ver e sentir as coisas carregadas de encanto É a magia da palavra que se multiplica porque a poesia é imagem som emoção e sensação UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA 144 Para Nelly Novaes Coelho 2000 p 222 o jogo poético além de estimular o olhar de descoberta nas crianças atua sobre todos os sentidos despertando um semnúmero de sensações visuais auditivas gustativas olfativas tácteis comportamentais e outras Nesse sentido colocase a importância do espaço a ser concedido à poesia na escola e sua necessidade numa ação formadora A poesia é uma das mais elaboradas formas de expressão verbal é um trabalho da linguagem sobre si mesma Na linguagem poética as palavras se condensam de modo exato e belo provocando encantamento Quando pensamos em poesia para o leitor infantojuvenil precisamos refletir sobre as peculiaridades que revestem esse gênero reveladas nos ritmos nas imagens nos temas nas metáforas na conotação na subjetividade e na linguagem 3 A DESCOBERTA DA POESIA Além disso é importante reconhecer que a partir da escrita nos meios eletrônicos informação digital ou hipermídia surgem novas formas de leitura O aluno diariamente está em contato com a televisão o rádio as revistas o computador e a internet recursos que respondem mais facilmente às necessidades imediatas dos jovens e crianças No meio digital não existe a obrigatoriedade imposta de prazos das fichas de leitura títulos como garantia de leitura realizada O acesso a essa nova tecnologia é atrativo e também propicia conhecimento Pensar na tecnologia implica pensar em mudanças em aprimoramentos É certo que algo deve ser feito com uma pedagogia mais apropriada para a criança e o jovem que frequenta a escola que não vive sem o computador a televisão o celular e tantas outras tecnologias que fazem parte do universo virtual no qual estamos inseridos Sendo assim o educador consciente de seu papel transformador buscará metodologias com novas formas de despertar na criança eou adolescente o gosto pela descoberta da leitura literária sem no entanto desconsiderar o valor estético Caroa acadêmicoa embora o texto literário não deva servir de pretexto estas reflexões e sugestões são o princípio de uma discussão Para tanto é imperativo que o professor amplie seu conhecimento e visão acerca da literatura infantojuvenil atualizandose quanto às publicações bem como observar o gosto literário dos alunos O texto literário é o instrumento de trabalho importante e não usálo ou desconhecêlo demonstra falta de idealização planejamento e despreparo TÓPICO 3 EXPLORANDO OS GÊNEROS INFANTIS 145 Falando de livros O livro é a casa onde se descansa do mundo O livro é a casa do tempo é a casa de tudo Mar e rio no mesmo fio água doce e salgada O livro é onde a gente se esconde em gruta encantada FONTE Roseana Murray in Carteira de identidade ed Lê 2010 Observe como a autora Roseana Murray se utiliza de figuras de estilo e de maneira poética escolhe uma linguagem elaborada para falar do livro É um fazer especial com as palavras Embora não nos demos conta a criança recebe ainda no berço o primeiro contato com a poesia e seus elementos o ritmo e a rima manifestados na voz que acalenta nas cantigas de ninar e mais tarde na musicalidade das parlendas das brincadeiras de roda nos travalínguas nas adivinhas jogos da tradição oral O aproveitamento das estruturas rítmicas aliado ao controle da respiração das expressões da fala da postura além de possibilitar o desenvolvimento cognitivo e a motricidade é fator positivo no processo do domínio da palavra São essenciais para o desenvolvimento do ser humano no plano linguístico e no psicológico que se desenvolve através das atividades corporais musicais e outras Percebese assim a importância da poesia já nas séries iniciais e no preparo adequado e cuidadoso quando da exploração desse gênero textual Como afirma Ligia Morrone Averbuck 1993 p 57 a poesia não pode ser ensinada mas vivida o ensino da poesia é assim o de sua descoberta A experiência com a poesia visa aguçar a emoção a fantasia e a sensibilidade do jovem leitor A poesia possibilita à criança o gosto pelo jogo rítmico e o jogo da linguagem ao mesmo tempo é lúdica e libertadora De todos os gêneros a serem explorados em sala de aula deve a poesia ser a menos comprometida com os aspectos ligados à moral à instrução e à exploração de atividades obrigatórias de entendimento do poema lido É fundamental que a poesia seja apresentada e vivenciada com frequência no espaço escolar e seja selecionada cuidadosamente a fim de propiciar a sensibilidade para a arte UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA 146 poética no aluno através de textos diversificados com ou sem rima curtos e mais longos temas autores e épocas variados poesias complexas eou simples E ainda oportunizar novas formas de expressar seu entendimento de poesia através de desenhos colagens pintura bem como a tentativa de criação de novos poemas Essas e outras oportunidades constituem para a criança meios eficazes e válidos no desenvolvimento da criatividade e da sensibilidade frente a um texto poético Não se trata de que a escola deva assumir a responsabilidade de fazer poetas Para Averbuck 1993 p 67 é importante que a escola desenvolva no aluno habilidades e competências para sentir a poesia apreciála e percebê la como uma forma de comunicação com o mundo Sugerese que o professor explore o texto poético que é carregado de significado de ritmo cadência e melodia O contato com a poesia é portanto o da descoberta do jogo das palavras e do domínio da sonoridade Para a criança alfabetizada uma forma de desenvolver a imaginação e a criatividade é a decomposição de textos poéticos criando novos poemas Para que ela seja atraída pela magia da palavra poética é preciso criar uma atmosfera de uma legítima oficina poética em que a desconstrução dos textos seja o caminho para novas construções AVERBUCK 1993 p 76 Já nos níveis mais avançados de escolaridade pensando nos adolescentes o professor poderá também lançar mão da música A utilização dos textos musicais favorece a aproximação de uma linguagem que fala diretamente ao jovem Outro aspecto muito importante a ser valorizado por parte do professor quanto à exploração da poesia em sala de aula é a questão da disposição da palavra no espaço do papel A poesia especialmente a moderna utilizase desse recurso denominado poema figurado composição poética cujos versos se organizam de modo a sugerir a forma do objeto que lhe serve de tema MOISÉS 2004 p 357 Podemos citar como exemplos de temas de poema figurado corações asas flores Essa percepção poderá ser desenvolvida através da apresentação ao jovem leitor de poemas diferenciados graficamente Observe como o escritor Sérgio Capparelli 2008 trabalha com o poema visual em seu livro Tigres no quintal TÓPICO 3 EXPLORANDO OS GÊNEROS INFANTIS 147 FIGURA 25 A PRIMAVERA ENDOIDECEU FONTE Disponível em httppaginasefolhasblogspotcombr200907dia desolcompoemahtml Acesso em 10 abr 2013 A partir da leitura de poemas o professor poderá propor uma oficina de criação escrita prática que atrai os alunos pela gama de artifícios que o gênero oferece Além disso a poesia infantil da modernidade recobrese de significações múltiplas palavras imagens rimas sonoridades forma cor e luz Caroa acadêmicoa como você já estudou nos módulos anteriores a poesia apresenta várias formas líricas fixas tais como a balada a canção a elegia a ode e o soneto formas essas a serem exploradas pela literatura infantojuvenil Uma agradável sugestão para o trabalho com a poesia em sala de aula poderá ser a utilização de uma forma lírica de origem japonesa denominada haicai NAVEGUE Guilherme de Almeida começou a escrever haicais em 1936 Sistematizou as suas ideias sobre o que seria o haicai em português um terceto com 575 sílabas dotado de título sendo que o primeiro verso rima com o terceiro além de contar com uma rima interna no segundo verso entre a segunda e a sétima sílabas UNI UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA 148 O haicai é um poema caracterizado pela brevidade composto por três versos somando 17 sílabas o primeiro e o terceiro com cinco e o segundo com sete Essa composição estaria de acordo com as fases da existência humana ascensão apogeu decadência Com um dos mais famosos poetas japoneses Matsuo Bashô no século XVII o haicai ganha importância grandeza e a solenidade que o distinguem até hoje Semelhante pela forma a um epigrama o haicai deve concentrar em reduzido espaço um pensamento poético eou filosófico geralmente inspirado nas mudanças que o ciclo das estações provoca no mundo concreto MOISÉS 2004 p 217 Era em sua forma original destituído de rima Seus temas não abordam moralidade ou tudo quanto possa atentar contra a vida humana Seu objetivo é atingir a simplicidade tendo como artifício a humanização da natureza e a correspondente naturalização do ser MOISÉS 2004 p 217 O haicai tem integrado a obra de ilustres poetas brasileiros como Guilherme Almeida Manuel Bandeira Paulo Leminski e outros Leia o haicai de Guilherme de Almeida FIGURA 26 HAICAI DE GUILHERME DE ALMEIDA FONTE Disponível em httppoemasdesolblogspotcombr20101101archivehtml Acesso em 10 abr 2013 INFÂNCIA Um gosto de amora Comida com o sol A vida Chamavase Agora AQUELE DIA Borboleta anil que um louro lafinete de ouro espeta em Abril Caroa acadêmicoa sobre a poesia sugerimos a leitura do Caderno de Estudos Teoria da Literatura cujo material é indispensável para alargar os conhecimentos sobre este importante gênero literário UNI TÓPICO 3 EXPLORANDO OS GÊNEROS INFANTIS 149 Vejamos como ocorre a contagem das sílabas dessa forma de poesia Lembrese de que quando fazemos a separação das sílabas poéticas levamos em conta o ritmo das palavras e não a divisão silábica gramatical Na divisão poética as vogais átonas são agrupadas em uma única sílaba e a contagem das sílabas seguese até a última sílaba tônica Um gos to de a mo ra 5 Co mi da com sol A vi da 7 Cha ma va se A go ra 5 Conforme Miguel Almir L de Araújo 2002 p 60 a poesia une o lúdico e o lúcido nos processos de aprendizagem no desenvolvimento de inteligências meditativas e sensíveis flexíveis e audaciosas Ultrapassa as dimensões ordinárias da linguagem instrumental retilínea que tem exercido predominância na rotina da sala de aula levando aos horizontes do extraordinário que renova transmuta e vivifica Para incrementar essa atividade outra possibilidade relacionada à poesia consiste na elaboração de um caderno de poemas Cada aluno terá um caderno destinado à poesia e num sistema de rodízio cada uma escreverá um poema para o colega O caderno poderá manter a rotatividade até que todos participem escrevendo e recebendo poesias Lembrese de que nesta atividade a intervenção do professor é somente a de viabilizar a circulação dos cadernos Além disso as poesias poderão ser de autoria dos alunos ou de autores consagrados Enfatizase portanto a possibilidade de reintroduzir a poesia na vida MORIN 1998 p 44 buscando textos poéticos que ofereçam possibilidades de convivência mais sensível com o outro e consigo mesmo Somente a poesia poderá nos levar a essa percepção Certamente esse convívio deve começar dentro das salas de aula não como proposta exigente mas prazerosa e partilhada 31 O TEATRO O teatro sempre foi uma forma de expressão artística profundamente ligada à comunidade Mesmo com a expansão da mídia não perdeu seu espaço a presença física do artista e do espectador é insubstituível Os sentimentos vivenciados e expressos no teatro provocam além das sensações e emoções dessa atividade a possibilidade do aluno colocarse no lugar do outro desenvolver e priorizar a noção do trabalho em grupo perder continuamente a timidez e ampliar o seu repertório cultural O teatro surgiu com as festas chamadas dionisíacas celebradas na Grécia em honra a Dionísio deus da fertilidade e do vinho Essas comemorações eram realizadas em época de colheita ou quando se fabricava o vinho Nas festividades havia cantos danças e representação da vida de Dionísio UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA 150 A arte teatral era tão popular na Grécia Antiga que anualmente eram promovidos concursos de textos teatrais Os autores escreviam as peças as encenavam para o público e para uma comissão julgadora que premiava o melhor trabalho O teatro grego além de retratar o cotidiano do homem evidenciava costumes personalidades deuses e belezas da Grécia Desde os tempos mais antigos é fonte de cultura educação diversão e lazer Da Grécia foi levado para Roma e dela para o mundo Um texto teatral apresenta geralmente três partes a exposição o conflito e o desenlace A exposição revela aos espectadores a situação que desequilibra a vida normal da personagem Situação que prenderá a atenção do público e se modificará até o desfecho ao final da peça O conflito é a parte na qual a situação vivida pelas personagens apresentada na exposição chega ao clímax Há sempre um desafio a ser superado surgem obstáculos que se opõem à ação da personagem e esta se esforçará para triunfar O desenlace é o relaxamento da tensão instaurada desde a revelação da situaçãoproblema ou seja a catarse A solução marca os tipos de peça teatral drama comédia ou tragédia O termo catarse referese à purificação limpeza e purgação Esse efeito purificador da tragédia clássica foi conceituado por Aristóteles As situações dramáticas de extrema intensidade e violência trazem à tona os sentimentos de terror e piedade dos espectadores A catarse supera esses sentimentos e os elimina proporcionando alívio ou purgação IMPORTANTE O teatro se desenvolve em atos divididos em cenas O ato apresenta acontecimentos que estão diretamente ligados ao eixo central apresentando uma resposta mas não valendo por si só deixando sempre em aberta para o ato seguinte parte da situaçãoproblema mantendo assim o interesse do público A cena por sua vez representa o ponto culminante de cada ato A mesma expõe a unidade mínima de uma peça teatral Alguns estudiosos empregam o termo quadro como sinônimo No contexto escolar existem várias peças teatrais possíveis de encantar o público infantojuvenil bastando para isso que elas envolvam os espectadores com personagens que suscitem a identificação e o apoio do público As peças teatrais devem ser ajustadas à idade da criança Assim conforme Maria Antonieta Antunes Cunha 1991 p 139 teremos De 4 a 7 anos as histórias de lendas e folclores são apreciadas bem como as pantomimas que são as representações teatrais por meio de gestos De 8 a 12 anos as histórias que versam sobre personagens do mundo real são as mais indicadas TÓPICO 3 EXPLORANDO OS GÊNEROS INFANTIS 151 De 12 anos em diante as adaptações das obras clássicas terão maiores chances de sucesso Obras de Gil Vicente Martins Pena Maria Clara Machado Oswald de Andrade Nelson Rodrigues da escritora inglesa Agatha Christie e Shakespeare entre outros Trabalhar com o teatro na escola é desenvolver uma atividade visando aproximar as crianças e jovens dessa linguagem Para tanto é necessário colocar a turma em contato com diversos autores com estilos variados e observar o tipo de texto tragédia comédia situações do cotidiano eou mistério O professor poderá também sugerir aos estudantes que façam um mapeamento dos folguedos populares festas autos e outras manifestações folclóricas que mais chamam a atenção do grupo e que possam ser representados na escola FIGURA 27 TEATRO FONTE Disponível em httpteatroeducazipnet Acesso em 5 out 2012 Em uma encenação podem ser transmitidos conhecimentos culturais históricos científicos ou morais por exemplo mas eles não devem ser vistos como objetivo e sim como consequência O ideal é que os alunos se envolvam com a trama e as personagens e sintam prazer em representar A representação teatral desenvolve a memória estimula o senso crítico e artístico e auxilia no aperfeiçoamento da leitura É importante estimular a participação de todos os estudantes sem exigir o profissionalismo observar atentamente a postura e se possível fotografar e filmar as encenações para depois convidar a classe a analisar a montagem Esse exercício de autoavaliação serve para aprimorar as próximas apresentações UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA 152 Uma prática muito bem aceita entre os jovens é o teatro de bonecos O teatro de marionetes está ligado ao contexto histórico cultural social político econômico religioso e educativo e por conta da diversidade cultural regiões distintas desenvolveram a arte de confeccionar bonecos em diferentes materiais revelando traços locais da cultura à qual pertenciam sendo movimentados por luvas fios varas sombras entre outras possibilidades A Itália ocupou lugar de destaque na divulgação dessa arte sendo espetáculos preparados e reservados para adultos Esses bonecos eram criados a partir de tipos ou caricaturas que revelavam traços da personalidade da personagem A Comédia da Arte surgiu na Itália e serviu de inspiração para o alargamento desta prática Esses artistas mambembes utilizavam máscaras em suas apresentações nas mais variadas regiões da Itália e assim graças a estas companhias itinerantes é que os bonecos foram difundidos em toda a Europa cuja arte recebeu nomes distintos Vejamos alguns na Itália o Polichinelo na Turquia o Karagoz na Grécia as Atalanas na Alemanha o Kasper na Rússia o Petruska em Java o Wayang na Espanha o Cristovam na Inglaterra o Punch na França o Guinhol nos Estados Unidos o Muppets e no Brasil o Mamulengo É arte realizada pelo ator que por meio do movimento das mãos o manipula e narra as histórias conduzindo a realidade para a magia O boneco com sua expressividade movimento e sonoridade encanta e atrai o público FIGURA 28 TEATRO DE BONECOS FONTE Disponível em httpwwwinfoescolacomartesteatrode bonecos Acesso em 5 out 2012 No espaço escolar as apresentações podem ser elaboradas e discutidas pelo grupo que poderá englobar desde a fabricação do boneco até a transmissão de temáticas sociais históricas eou políticas ou seja o boneco possui um alto potencial educativo Ainda que pareça pretexto constitui mais uma possibilidade de interação com criatividade ludicidade e arte TÓPICO 3 EXPLORANDO OS GÊNEROS INFANTIS 153 Eram companhias itinerantes nas quais os atores montavam um palco ao ar livre e proviam o divertimento através de malabarismo acrobacias e mais tipicamente peças de humor improvisadas baseadas num repertório de personagens preestabelecido e que envolviam temas como adultério ciúme velhice amor Faziam uso de um figurino com máscaras e até objetos cênicos O diálogo e a ação poderiam facilmente ser atualizados e ajustados para satirizar escândalos locais eventos atuais ou manias regionais misturados com piadas e bordões A Comédia da Arte foi uma forma de teatro popular Teve início no século XV na Itália UNI Uma variante do teatro de bonecos é o boneco de vara manipulado através de varas ou hastes de madeira plástico ou metal leve Pode ser tanto um simples objeto preso numa única vara como também ser constituído por mecanismos com várias varas para movimentar boca braços e pernas FIGURA 29 TEATRO DE BONECOS DE VARA FONTE Disponível em httpcecidiantedotronoblogspotcombr201102 teatrodevarashtml Acesso em 5 out 2012 UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA 154 Os que são elaborados por uma vara são simples e de fácil confecção podendo ser feitos com cartolinas bolinhas de isopor de papel colher de pau palitos de churrasco garfos vestidos com roupas de pano palitos de picolé copinhos de plástico sustentados por palitos Os que são produzidos com mais de uma vara são mais complexos e requerem a habilidade de um titereiro para movimentálos Outra prática que poderá ser explorada é o teatro de fantoches Assim como os demais bonecos é uma atividade que envolve os alunos desde a confecção até o desenvolvimento de habilidades motoras e apropriação do texto Além disso é uma atividade associada ao lúdico cujo assunto abordamos na Unidade 1 FIGURA 30 TEATRO DE FANTOCHES FONTE Disponível em httpaposentadosolteoverboorgopiniaoopiniao doleitorcamaradosdeputadosumteatrodefantoches Acesso em 5 out 2012 Como variante desse recurso sugerimos também a utilização das próprias mãos como fantoches O desenho é feito na própria mão com caneta esferográfica ou tintas especiais O uso de acessórios como lã chapéu meias penas enfeita as mãos e os dedos das crianças O professor nesse sentido incentiva os alunos no conhecimento do próprio corpo quando estes exploram todos os movimentos dos dedos das mãos e braços Para estes recursos a utilização de poesias narrativas literárias músicas populares e folclóricas textos criados pela turma é fundamental para essa atividade Nessa perspectiva o professor organiza o grupo de acordo com o que será apresentado O momento necessário à apresentação e interação a leitura prévia do texto o decorar se for o caso são empreitadas que favorecem o desenvolvimento e a apuração do gosto estético Ao jovem leitor agrada muito o jogo teatral que é realizado por cenas de ação dramática e que se caracterizam por explicação da ação por meio do gesto de caricaturas dramatização imitação de uma pessoa famosa descrição de algo com características fortes sem utilizar palavras um contexto social comumente TÓPICO 3 EXPLORANDO OS GÊNEROS INFANTIS 155 conhecido como pantomima Essa brincadeira tem por objetivo diversão socialização coordenação motora e corporal como um todo Os pantomímicos buscam transmitir à plateia por meio da mímica histórias e mensagens Por aproveitarse de gesticulações praticamente universais ela é bastante utilizada FIGURA 31 PANTOMIMA FONTE Disponível em httpwwwjornallivrecombr150870oquee pantomimahtml Acesso em 5 out 2012 Caroa acadêmico a como foi o seu contato com o teatro enquanto alunoa E as escolas desenvolvem atividades relacionadas ao fazer teatral Comente em poucas palavras O teatro é expressão artística profundamente ligada à comunidade Segundo Ana Maria Machado o teatro e a dramatização são reveladores de momentos mágicos nos quais a criança fica como que hipnotizada O teatro funciona em relação à criança como o faz de conta e o fiunnn do pó de pirlimpimpim no mundo do picapau amarelo participando ao mesmo tempo da mais poética fantasia e da mais concreta realidade abrindo portas para desvãos insuspeitados e revelando aspectos surpreendentes do real misturando fantásticas viagens a uma mineração de si mesmo Na palavra admirável de Guimarães Rosa é a pirlimpsiquice MACHADO 1991 p 144 UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA 156 Há que se considerar que nas brincadeiras da criança a dramatização se faz presente Pense na criança brincando de boneca de carrinho representa quando faz comidinha ou conversa com amigos imaginários Uma peça teatral é capaz de estimular a criatividade e a imaginação Possibilita à criança assumir sua fantasia conviver com suas angústias exorcizar suas tensões rir de seus medos É necessário que a escola propicie o contato com a arte teatral não apenas dirigindo algumas peças passivamente mas que reflita sobre o possível espetáculo a ser encenado Para Machado no que se refere à escolha de um espetáculo o professor deverá indagarse Será que ele defende o conformismo ou estimula um desejo de transformar o mundo De que maneira ele fala à percepção infantil À sensibilidade da criança Será que esquece sua capacidade de ser também racional e apenas a envolve numa profusão de sons e cores inteiramente oca Cenários figurinos adereços são inventivos A música é massificada ou criativa A iluminação sabe criar uma atmosfera As personagens são esquemáticas e incoerentes Isso é importante afinal é nelas que as crianças se projetam com elas é que se identificam A peça estimula a delação Incentiva sentimentos de culpabilidade infantil tudo de ruim que acontece é culpa do pobre herói desobediente por exemplo É esquematicamente maniqueísta Ou pelo contrário embaralha de tal maneira o bem e o mal que deixa de passar qualquer valor ético O vilão se arrepende de repente e é perdoado sem mais aquela evitando o castigo e tornando inútil o sofrimento dos inocentes em suas mãos A delação é incentivada sob a máscara de participação da plateia com perguntas do tipo para onde é que ele foi A peça reforça estereótipos racistas Sociais Sexistas Profissionais por exemplo cientista é maluco professor é repressor e jornalista é mentiroso etc E qual será sua mensagem fundamental Não será uma supervalorização da segurança como ideal supremo a impedir que as crianças explorem o mundo em nome de um ficar bonzinho e obediente em casa FONTE MACHADO 1991 p 142 O teatro na vida do jovem leitor inclui benefícios que vão desde o aprender a improvisar desenvolver a oralidade a expressão corporal a impostação de voz o vocabulário até o desenvolvimento das habilidades para as artes plásticas pintura corporal confecção de figurino e montagem de cenário oportunizando a pesquisa o trabalho coletivo e assim contribui para o desenvolvimento da expressão e comunicação favorecendo a percepção da arte como manifestação cultural 4 AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS As histórias em quadrinhos despertam o interesse do público infantojuvenil oferecendo uma diversidade de propostas que podem ser exploradas em proveito do jovem leitor O texto associado à imagem característica presente nas histórias em quadrinhos como afirma Nelly Novaes Coelho 2000 p 242 atinge TÓPICO 3 EXPLORANDO OS GÊNEROS INFANTIS 157 direta e plenamente o pensamento intuitivosincréticoglobalizador que é próprio da infância Nesse sentido o trabalho com as HQs aliado ao prazer de uma aprendizagem significativa desenvolve na criança estímulos propícios à pratica da leitura pressupondo a formação de leitores Acreditase que as pinturas realizadas nas paredes das cavernas foram uma das primeiras formas gráficas a serem criadas pelo ser humano como elemento de comunicação O homem retratava histórias a partir de imagens que ficaram conhecidas como pinturas rupestres em uma época muito anterior à invenção da escrita Por isso alguns especialistas insistem em afirmar que os primeiros exemplos conhecidos de histórias em quadrinhos foram feitos por homens pré históricos A publicação de histórias em quadrinhos no Brasil tem início no século XX A primeira revista em quadrinhos brasileira lançada em 1905 foi o TicoTico que circulou até 1955 Em seus primeiros anos reproduzia os quadrinhos norte americanos Essa revista apresentava ao leitor as aventuras de um menino ingênuo e travesso chamado Chiquinho versão brasileira da personagem Buster Brown menino crítico e contestador criado nos Estados Unidos por Richard Felton cartunista que em 1895 criara a Yellow Kid Em 1960 começa no Brasil a publicação da revista O Pererê com texto e ilustrações do escritor Ziraldo A personagem principal era um saci e não raro suas aventuras tinham um fundo ecológico moral ou educacional Também na década de 60 o cartunista Henfil deu início à tradição do formato tira com as personagens Graúna e os fradinhos Foi nesse formato que também apareceram as personagens de Maurício de Sousa criador da revista A turma da Mônica que é a mais famosa e bemsucedida revista em quadrinhos brasileira Os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Fundamental e os Referenciais Curriculares Nacionais para a Educação Infantil 1998 apresentam as histórias em quadrinhos como uma linguagem dinâmica marcada pela ludicidade e associação de imagens que despertam no jovem leitor prazer e contribuem para o desenvolvimento da leitura e escrita Os gibis mesclam palavras e imagens influenciando o cotidiano das pessoas Maria Antonieta Cunha 2003 p 100 enfatiza que a facilidade de aquisição de leitura o apelo visual através das cores os quadros os balões e as onomatopeias que dão uma movimentação à narrativa o humor e o otimismo com personagens interessantes ou heroicos são alguns dos aspectos que levam o jovem leitor a adotar as revistas em quadrinhos UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA 158 FIGURA 32 HISTÓRIA EM QUADRINHOS GARFIELD FONTE Disponível em httpblogmaxieducacombrwpcontentuploads201701Garfield jpg Acesso em 5 out 2012 Porém as opiniões sobre os quadrinhos nem sempre foram convergentes Educadores já reagiram de maneira contrária à adoção das revistas em quadrinhos em sala de aula Para estes as revistas em quadrinhos não deixam margem à imaginação pois tudo na história está pronto e acabado o texto é precário sucinto e com excessivas ilustrações ALMEIDA apud CUNHA 1991 p 101 Opiniões dessa natureza contribuíram para que no âmbito educacional as revistas em quadrinhos fossem tratadas como gênero menor minimizadas como criação literária Segundo Valdomiro Vergueiro apud CORDEIRO 2002 p 54 esses preconceitos foram uma das maiores injustiças cometidas contra um meio de comunicação de massa não só legítimo mas também de grande penetração popular Os estudos dos meios de comunicação de massa iniciados na Europa nos anos 60 corroboraram para elevar as HQs à categoria literária uma vez que se constituem de literatura e de artes plásticas Sendo assim as HQs convertemse em mais um instrumento pedagógico essencial contudo é importante a disposição do professor em realizar tal empreendimento para que aconteça o crescimento do jovem enquanto leitor e de sua potencialidade humana Onomatopeia significa imitar um som com um fonema ou palavra Em geral são de entendimento universal Ruídos gritos canto de animais sons da natureza barulho de máquinas o timbre da voz humana fazem parte do universo das onomatopeias UNI TÓPICO 3 EXPLORANDO OS GÊNEROS INFANTIS 159 Propostas de exploração desse gênero textual associado ou não ao computador devem ser atividades oferecidas em sala de aula contudo é importante a disposição do professor e dos demais envolvidos no processo em realizar tal empreendimento As charges podem também constituirse como ferramentas São desenhos humorísticos com ou sem legenda O tema reflete um acontecimento atual sob a forma de crítica ironizando por vezes as personagens envolvidas através da caricatura Sendo assim pode ser entendida como um meio de protesto e crítica através de argumentos lógicos que possam convencer o leitor A charge está ligada aos acontecimentos cotidianos do âmbito político eou econômico eou personagens ligadas ao meio artístico ou desportivo São caricaturas de pessoas ou de fatos executadas com exageros e deformações reforçando o grotesco e jocoso Esse humor crítico encontrado nas charges é muito apreciado pelo jovem leitor tornandose um relevante trabalho que poderá provocar discussões que envolvem criticidade dinamismo e leitura de mundo apresentadas pelos diversos sujeitos que compõem a escola Leia a seguir a entrevista HQs também se aprende na escola com Waldomiro Vergueiro Embora o mercado editorial de quadrinhos para o público infantojuvenil esteja fortemente concentrado na produção de uma ou duas revistas o Brasil ao contrário do que se pensa se destaca no cenário latinoamericano exatamente por uma larga produção Se compararmos com a de outros países a produção de quadrinho infantil brasileiro por exemplo é bastante significativa Nos EUA não se publicam mais revistas para crianças Lá as histórias são voltadas para os jovens destaca o coordenador do Núcleo de Pesquisas de História em Quadrinhos da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo ECAUSP professor Waldomiro Vergueiro De acordo com Waldomiro são os adolescentes dos 13 aos 25 anos que mais leem histórias em quadrinhos As crianças também se dedicam à leitura mas não de uma forma intensiva e regular Segundo ele o quadrinho nacional reflete cada vez mais a realidade urbana dos jovens das grandes cidades do país o que chama atenção e atrai mais leitores adolescentes Jovens que são influenciados pela cultura pop pela televisão e pelos meios eletrônicos Acompanhe a entrevista revistapontocom Que modelos e padrões de comportamento os quadrinhos brasileiros veiculam LEITURA COMPLEMENTAR UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA 160 Waldomiro Vergueiro Vivemos num grande contexto globalizado num grande sistema de comunicação interligado Neste cenário as histórias em quadrinhos veiculam modelos e padrões de comportamento que já são transmitidos pelas outras mídias em todo o mundo Tudo acaba se repetindo No Brasil o quadrinho reflete de uma forma geral a realidade urbana dos jovens das grandes cidades do país Jovens que são influenciados pela cultura pop pela televisão e pelos meios eletrônicos Uma realidade que na verdade não é tão diferente daquela que vivem os jovens de outros países O que há de diferente em nossas histórias são algumas características e especificidades que dizem respeito à nossa cultura local expressa por exemplo nos relacionamentos de amizade e de amor e na apresentação e definição dos grupos sociais revistapontocom Daí então o interesse das crianças pelos quadrinhos Waldomiro Vergueiro As crianças naturalmente gostam dos quadrinhos se identificam com a narrativa Afinal a linguagem dos quadrinhos se aproxima muito do universo das crianças e também dos adolescentes Felizmente aqui no Brasil temos uma forte produção infantil basicamente assinada por Maurício de Sousa que está facilmente disponível no mercado e ao alcance de boa parte dos leitores A leitura é fácil e prazerosa Se compararmos com a de outros países a produção de quadrinho infantil brasileiro é bastante significativa Nos EUA por exemplo não se publica mais quadrinho infantil Lá as histórias são voltadas para os jovens Mesmo tendo um mercado de quadrinhos infantis monopolizado as revistas de Maurício de Sousa respondem aproximadamente por 85 de tudo o que é produzido para o público infantil o Brasil é uma exceção na América Latina em investimentos no setor revistapontocom O mesmo vale para os adolescentes Waldomiro Vergueiro O jovem acaba não tendo a mesma relação com os quadrinhos Muitas vezes ele acaba sendo chamadofisgado por outras mídias de uma forma mais persuasiva do que as crianças Por outro lado também há poucos investimentos para este segmento O mercado editorial para os adolescentes é marcado pelas produções estrangeiras As crianças que crescem lendo os gibis do Maurício de Sousa quando chegam à adolescência não têm uma alternativa nacional Ou seja quando o leitor passa a fase da Mônica ele não encontra nada As tentativas brasileiras não deram certo pois é grande o predomínio das histórias em quadrinhos com base nos superheróis e na cultura norteamericana Este processo dá origem a um círculo vicioso Os jovens que leem os quadrinhos importados e que se formam na área acabam reproduzindo o mesmo formato e conteúdo É difícil quebrar este movimento Por outro lado o próprio leitor jovem de hoje quer exatamente este tipo de material Um material que é amplamente divulgado e reforçado pelas demais mídias Chega o quadrinho do superherói ao mesmo tempo em que são lançados o filme o bonequinho e o desenho animado As mídias se reforçam Acaba sendo uma competição desleal para os produtos brasileiros Os jovens de 13 aos 25 anos são os que mais leem histórias em quadrinhos As crianças leem muito mas não de uma forma intensiva quanto os jovens TÓPICO 3 EXPLORANDO OS GÊNEROS INFANTIS 161 revistapontocom E nas escolas as histórias em quadrinhos vêm ganhando espaço Waldomiro Vergueiro Já não sinto mais um preconceito mas sim um estranhamento à introdução dos quadrinhos na sala de aula Há uma falta de familiaridade Muitos professores querem utilizar mas não sabem como O Núcleo de História em Quadrinhos da Escola de Comunicação e Artes da USP tem trabalhado neste sentido mostrando alternativas e caminhos para que os quadrinhos sejam utilizados de forma mais inteligente Acredito que os quadrinhos devam ser usados pelas escolas de uma forma interdisciplinar integrando várias disciplinas O professor deve trabalhar o quadrinho com o mesmo rigor que usa o livro didático Não acredito que exista limite para a utilização de quadrinhos na educação Tudo depende da criatividade do professor revistapontocom Há um projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados que determina mecanismos de proteção à produção de quadrinhos nacionais incentivando a realização de obras e de projetos escolares O senhor é a favor desta proposta Waldomiro Vergueiro Sou Acredito que o caminho a ser adotado seja esse mesmo Todos os países que baixaram leis de proteção tiveram êxito em suas propostas A Argentina fez isso A França e a Itália também trabalharam neste sentido A proposta não vai colocar em xeque o que já existe só vai acrescentar revistapontocom Qual é o futuro dos quadrinhos Waldomiro Vergueiro Estou convencido de que o futuro dos quadrinhos é a segmentação de mercado Quadrinhos específicos para públicos específicos Quadrinhos para crianças para meninas adolescentes para meninas mais velhas A Era dos Quadrinhos como meio de massaproduto de massa é coisa do passado Com o advento das novas tecnologias vamos ter o aparecimento de produtos híbridos quadrinhos que incorporam elementos da multimídia Este é um caminho sem volta Mas acredito que as histórias em quadrinhos da forma como ainda conhecemos hoje continuarão a existir FONTE Disponível em httpwwwrevistapontocomorgbrmateriashqstambemseaprende naescola Acesso em 10 dez 2012 162 Neste tópico você viu que A literatura no ambiente escolar tem como objetivo a formação do leitor Para tanto o professor deverá adotar uma postura que privilegie a polissemia o dialogismo Deve adotar uma prática pautada no contato com os diversos gêneros textuais e contemplar histórias do dia a dia contos fábulas lendas parlendas músicas poesia novela crônica piadas filmes romances histórias em quadrinhos A conotação de histórias também é uma prática que favorece a escuta e oralidade Essa prática do contar estimula o ler literário propicia o encontro entre as crianças e uma produção que lida simbolicamente com o real diferentemente dos relatos pessoais Outra possibilidade que não poderá ser ignorada é a visita à biblioteca para que o aluno possa ver e tocar os vários volumes as várias ilustrações escolher a leitura o livro que lhe agradar desenvolvendo a leitura sensorial É importante reconhecer que com a escrita nos meios eletrônicos informação digital ou hipermídia surgem novas formas de leitura O acesso a essa nova tecnologia é atrativo e também propicia conhecimento A poesia infantojuvenil reflete as peculiaridades que revestem esse gênero reveladas nos ritmos nas imagens nos temas nas metáforas na conotação na subjetividade e na linguagem É fundamental que a poesia seja apresentada e vivenciada com frequência no espaço escolar e seja selecionada cuidadosamente a fim de propiciar a sensibilidade para a arte poética no aluno Trabalhar com o teatro na escola é desenvolver uma atividade visando aproximar as crianças e jovens dessa linguagem Para tanto é necessário colocar a turma em contato com diversos autores com estilos variados e observar o tipo de texto tragédia comédia situações do cotidiano eou mistério RESUMO DO TÓPICO 3 163 AUTOATIVIDADE APRENDIZAGEM Mãe cabelo demora quanto tempo pra crescer Hã Se eu cortar meu cabelo hoje quando é que ele vai crescer de novo Cabelo está sempre crescendo Beatriz É que nem unha A comparação deixa a menina meio confusa Ela não está preocupada com unhas Todo dia mãe É só que a gente não repara Por quê Porque as pessoas têm mais o que fazer não acha A menina não sabe se essa é uma pergunta do tipo que precisa ser respondida ou é daquelas que a gente ouve e pronto Prefere não responder Você é muito ocupada não é mãe Hã Nada não A mãe termina de passar a roupa e vai guardando tudo no armário Enquanto isso Beatriz corre até o quartinho de costura pega a fita métrica e mede novamente o cabelo da boneca Ela tinha cortado aquele cabelo com todo o cuidado do mundo pra ficar parecido com o da mãe mas a verdade é que ficou meio torto Nada não cresceu nada ela conclui guardando a fita E já tem uma semana Depois volta para onde está a mãe que agora lustra os móveis Mãe existe alguma doença que faz o cabelo da gente não crescer Mas de novo essa conversa de cabelo Não tem outra coisa pra pensar não criatura Sobre essa pergunta não há dúvida é do tipo que você não deve responder Leia a história a seguir e organizea em forma de quadrinhos com balões contendo as falas das personagens bem como a fala do narrador 164 A mãe continua trabalhando Precisa se apressar Dali a pouco a patroa chega da rua e o almoço nem está pronto ainda Mãe O que foi É que eu estava aqui pensando Pensando o quê Beatriz não responde Espera um pouco tentando achar as palavras certas Vai fala logo Quando a gente faz uma coisa sabe e não dá mais para voltar atrás entendeu Não não entendi Ela abaixa a cabeça dá um tempinho e resolve arriscar Então se você não entendeu posso continuar perguntando sobre cabelo Ai meu Deus Beatriz deixa a mãe trabalhando e vai procurar de novo sua boneca Pega a boneca no colo e diz no ouvido dela Não liga não Cabelo de boneca é assim mesmo cresce devagar viu E com um carinho Foi minha mãe que me ensinou 165 REFERÊNCIAS ABRAMOVICH Fanny Literatura Infantil gostosuras e bobices São Paulo Scipione 1989 AGAMBEN Giorgio Profanações São Paulo Boitempo 2007 AGUIAR E SILVA Vitor Manuel Teoria da literatura 8 ed Coimbra Livraria Almedina 1999 ALMEIDA Fernanda Lopes de A fada que tinha ideias São Paulo Ática 1971 ARAÚJO Miguel Almir Lima de O poético na educação Revista de Educação CEAP Salvador ano 11 n 42 setnov 2003 Laços de encruzilhada ensaios transdisciplinares Feira de Santana edUEFS 2002 ARISTÓTELES Poética São Paulo Nova Cultural 2000 ASSIS Machado de Obra Completa Rio de Janeiro Nova Aguilar 1994 O Sainete In 40 contos escolhidos Rio de Janeiro BestBolso 2011 AVERBUCK Morrone Lígia A poesia e a escola In Zilberman Regina Org Leitura em crise na escola as alternativas do professor 11 ed Porto Alegre Mercado Aberto 1993 AVERBUCK Morrone Lígia Literatura em tempo de cultura de massa São Paulo Nobel 1993 AZEVEDO Ricardo Qual a função da literatura Carta na Escola São Paulo n 14 mar 2007 BAKHTIN Mikhail Língua fala e enunciação In Marxismo e filosofia da linguagem Trad Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira São Paulo Hucitec 1995 BARTHES Roland Aula São Paulo Cultrix 2007 166 O prazer do texto São Paulo Perspectiva 2004 O rumor da língua Trad M Laranjeira São Paulo Martins Fontes 2004 O grau zero da escrita São Paulo Cultrix 1972 BECKER Célia Dóris História da literatura infantil brasileira In SARAIVA J A Literatura e alfabetização do plano do choro ao plano da ação Porto Alegre Artmed 2001 BETTELHEIM B A psicanálise de contos de fadas Rio de Janeiro Paz e Terra 2007 A psicanálise dos contos de fadas Trad A Caetano São Paulo Paz e Terra 2007 A psicanálise de contos de fadas 15 ed Rio de Janeiro Paz e Terra 2001 Psicanálise dos contos de fadas 9 ed Trad Arlene Caetano Rio de Janeiro Paz e Terra 1992 A psicanálise dos contos de fadas Rio de Janeiro Paz e Terra 1980 BORDINI Maria da Glória AGUIAR Vera Teixeira de Literatura a formação do leitor Porto Alegre Mercado Aberto 1993 BRASIL Ministério da Educação e do Desporto Secretaria da Educação Fundamental Referencial curricular para a educaçãoMinistério da Educação e do Desporto Secretaria de Educação Fundamental Brasília MECSEF 1998 3 v BUSATTO Cléo Contos e encantos pequenos segredos da narrativa Petrópolis Vozes 2003 CADERMATORI Lígia O que é literatura infantojuvenil São Paulo Ática 1995 CANDIDO Antônio A literatura e a formação do homem Revista Ciência e Cultura São Paulo v 24 n 9 p 803809 set 1972 167 A literatura e a formação do homem In DANTES V Org Textos de intervenção São Paulo Duas Cidades Ed 34 2002 p 7792 CANDIDO Antônio et al A personagem de ficção São Paulo Perspectiva 1995 CAPPARELLI Sérgio Tigres no quintal São Paulo Global 2008 Poesia fora da estante Porto Alegre Editora Projeto 2008 CASCUDO L da C Contos tradicionais do Brasil São Paulo Global 2004 COELHO Nelly Novaes Literatura infantil teoria análise didática São Paulo Moderna 2000 Panorama histórico da literatura infantiljuvenil das origens indo europeias ao Brasil contemporâneo São Paulo Ática 2000 Literatura infantil teoriaanálisedidática São Paulo Ática 1997 COMPAGNON A O demônio da teoria literatura e senso comum Belo Horizonte Editora UFMG 2010 O demônio da literatura Belo Horizonte UFMG 2003 CORDEIRO Santos Márcia Leitura dos quadrinhos em sala de aula Revista da educação CEAP São Paulo n 38 ano 10 setnov 2002 CORSO Mario CORSO Diana Lichtenstein Fadas no divã psicanálise nas histórias infantis São Paulo Artmed 2003 CUNHA Maria Antonieta Antunes Literatura infantil teoria e prática São Paulo Ática 2003 Literatura infantil teoria e prática São Paulo Ática 1991 DEBUS Eliane Festaria de brincança a leitura literária na educação infantil São Paulo 2006 DONÓFRIO Salvatore Teoria do texto prolegômenos e teoria da narrativa São Paulo Ática 2006 168 Teoria do texto prolegômenos e teoria da narrativa São Paulo Ática 1990 EAGLETON Terry Teoria da literatura uma introdução São Paulo Martins Fontes 2003 ECO Umberto Sobre literatura Rio de Janeiro Record 2003 FORSTER E M Aspectos do romance São Paulo Globo 1988 FREUD S O Inquietante Trad SOUZA Paulo Cesar de São Paulo Companhia das Letras 2010 GAGLIARDI Eliana AMARAL Heloísa Conto de fadas São Paulo FTD 2001 GULLAR Ferreira Toda poesia Rio de Janeiro José Olympio 1991 HOUAISS Antônio VILLAR Mauro de Salles Dicionário Houaiss de língua portuguesa Rio de Janeiro Objetiva 2009 HOUAISS Antônio VILLAR Mauro de Salles Dicionário Houaiss de língua portuguesa Rio de Janeiro Objetiva 2001 INFANTE Ulisses Do texto ao texto curso prático de leitura e redação São Paulo Scipione 1999 ISER Wolfgang O jogo do texto In LIMA Luiz Costa A literatura e o leitor textos de estética da recepção 2ª ed Rio de Janeiro Paz e Terra 2002 p 105 118 JAUSS Hans Robert A história da literatura como provocação à teoria literária Tradução de Sérgio Tellaroli São Paulo Ática 1994 JAUSS H R et al A literatura e o leitor Seleção organização e tradução de Luiz Costa Lima Rio de Janeiro Paz e Terra 2002 KAISER Wolfgang Análise e interpretação da obra literária São Paulo Cultrix 1970 KIRINUS Glória Formigarra cigamiga Rio de Janeiro Braga 1993 LAJOLO Marisa O que é literatura São Paulo Brasiliense 1981 169 O texto não é pretexto In ZILBERM AN Regina Org Leitura em crise na escola as alternativas do professor Porto Alegre Mercado Aberto 1982 LEAL J C A natureza do conto popular Rio de Janeiro Conquista 1985 LISPECTOR Clarice Felicidade Clandestina In Azevedo Artur et al Em família Rio de Janeiro Nova Fronteira 2002 LUKÁCS Georg Teoria do romance Lisboa Presença 1982 MACHADO Ana Maria O teatro infantil In Cunha Maria Antonieta Antunes Literatura Infantil teoria e prática São Paulo Ática 1991 MARTINS Maria Helena O que é leitura 19 ed São Paulo Brasiliense 1994 MATTOS Margareth Silva de Leitura da literatura a produção contemporânea In Carvalho F Maria Angélica de Mendonça Rosa Helena org Práticas de leitura e escrita Brasília Ministério da Educação 2006 MELO NETO João Cabral de Ideias fixas de João Cabral de Melo Neto ATHAYDE Félix de Org Rio de Janeiro Nova Fronteira 1998 Serial e antes Rio de Janeiro Nova Fronteira 1997 MICHAUX H 1994 Darkness Moves An Henri Michaux Anthology 1927 1984 selected translated and presented by David Ball Berkeley and Los Angeles University of California Press MOISÉS Massaud Dicionário de termos literários São Paulo Cultrix 2004 MORIN Edgar Amor poesia sabedoria Rio de Janeiro Bertrand 1998 MORIN Edgar et al Ética solidariedade e complexidade São Paulo Palas Athena 1998 NEVES André A caligrafia de Dona Sofia São Paulo Editora Paulinas 2006 NICOLA José de Literatura brasileira da origem aos nossos dias São Paulo Scipione 1998 OLIVEIRA Cristiane M Disponível em httpwwwgrandezcombrlitinf trabalhos2006almagemeahtm Acesso em 24 mar 2007 170 PALO Maria José de OLIVEIRA Maria Rosa D Literatura Infantil Voz de Criança São Paulo Ática 1986 PAZ Octávio O arco e a lira Rio de Janeiro Nova Fronteira 1982 PIRANDELLO Luigi Um nenhum e cem mil Trad Mauricio Santana Dias São Paulo Cosaf Nacif 2001 O humorismo In GUINSBURG J Pirandello do teatro no teatro Trad J Guinsburg São Paulo Perspectiva 1999 O finado Matias Pascal Trad Helena Parente Cunha São Paulo Opera Mundi 1970 PLATÃO A República Rio de Janeiro Ediouro 1999 PESSOA Fernando Obra poética 7 ed Rio de Janeiro Nova Aguilar 1977 QUINTANA Mário Na volta da esquina Porto Alegre Globo 1979 RAMOS Flavia B PANOZZO Neiva P Literatura infantil um olhar através da ilustração Revista da educação CEAP São Paulo n 48 ano 13 marmaio 2005 ROCHA R Marcelo marmelo martelo e outras histórias Rio de Janeiro Salamandra 1976 ROSENFELD Anatol et al A personagem de ficção São Paulo Perspectiva 1995 SANCHES Neto Miguel O prazer de ler Carta na Escola São Paulo n 15 abr 2007 SANTA CATARINA Secretaria de Estado da Educação Ciência e Tecnologia Proposta Curricular de Santa Catarina estudos temáticos Florianópolis IOESC 2005 SARAIVA Assmann Juracy Literatura e alfabetização do plano do choro ao plano da ação Porto Alegre Artmed 2001 SARTRE Jean O que é literatura São Paulo Ática 1993 SILVA Ezequiel Theodoro da Leitura na escola e na biblioteca Campinas São Paulo Papirus 1986 TCHÉKHOV Anton Pavlovitch Um homem extraordinário e outras histórias Porto Alegre LPM 2010 171 VERÍSSIMO José Estudos de literatura brasileira São Paulo Tatiaia 2001 ZILBERMAN Regina Como e por que ler a literatura infantil brasileira Rio de Janeiro Objetiva 2005 A literatura infantil na escola Revista atualizada e ampliada São Paulo Global 2003 Literatura infantil autoritarismo e emancipação São Paulo Ática 1984 172 ANOTAÇÕES 173 174 175
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A Literatura infantil e juvenil hoje Múltiplos olhares diversas leituras José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina Silva Michelli orgs 2011 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli Organizadores A Literatura infantil e juvenil hoje Multiplos olhares diversas leituras Rio de Janeiro 2011 Copyright 2011 José Nicolau Gregorin FilhoPatrícia Kátia da Costa PinaRegina da Silva Michelli Publicações Dialogarts wwwdialogartsuerjbr Coordenador do projeto Darcília Simões contatodarciliasimoesprobr Cocoordenador do projeto Flavio García flavgarcoicombr Coordenador de divulgação Cláudio Cezar Henriques claudiocbighostcombr Darcília Simões contatodarciliasimoesprobr Projeto de capa e diagramação Elisabete Estumano Freire elisaestumanoyahoocombr Organização e Revisão José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina dacostapinagmailcomr Regina da Silva Michelli reginamichelliglobocom Logotipo Dialogarts Gisela Abad giselaabadgmailcom Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Instituto de Letras Departamento de Língua Portuguesa Literatura Portuguesa e Filologia Românica UERJ SR3 DEPEXT Publicações Dialogarts 2011 FICHA CATALOGRÁFICA J8011c A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras José Nicolau Gregorin Filho Patricia Kátia da Costa Pina Regina Silva Michelli orgs Rio de Janeiro Dialogarts 2011 Publicações Dialogarts Bibliografia ISBN 9788586837777 1 Estudos Literários 2 Linguagem 3 Leitura 4 História 5 Educação I Publicações Dialogarts II Projeto de Extensão III Universidade do Estado do Rio de Janeiro IV Título Correspondências para UERJILLIPO aC Darcilia Simões ou Flavio García Rua São Francisco Xavier 524 sala 11023 Bloco B Maracanã Rio de Janeiro CEP 20 569900 SUMÁRIO PREFÁCIO 6 A NOSSOS POSSÍVEIS E MUITO DESEJADOS LEITORES E LEITORAS 10 A LITERATURA INFANTIL E JUVENIL HOJE MÚLTIPLOS OLHARES DIVERSAS LEITURAS LITERATURA INFANTILUM PERCURSO EM BUSCA DA EXPRESSÃO ARTÍSTICA 12 José Nicolau Gregorin Filho NARIZINHO E EMÍLIA REPRESENTAÇÕES DE CENAS DE LEITURA E CONSTRUÇÃO DO PERFIL DA LEITORA NOVECENTISTA NA OBRA INFANTIL DE MONTEIRO LOBATO 26 Patrícia Kátia da Costa Pina MARINA COLASANTI CONFIGURAÇÕES ARQUETÍPICAS DO MASCULINO E DO FEMININO EM LAÇOS DE AMOR 47 Regina Silva Michelli MEMÓRIAS DE EMÍLIA DE MONTEIRO LOBATO UMA REFLEXÃO SOBRE A LINGUAGEM 91 Eliane Santana Dias Debus ESTÉTICA DO LABIRINTO NA PRODUÇÃO PARA CRIANÇAS E JOVENS DE ESTRATÉGIAS DE LEITURA AOS DESAFIOS PARA MEDIR A ASTÚCIA DO VIAJANTE 121 Maria Zilda da Cunha POLIFONIA E PERFORMANCE O EXPERIMENTALISMOESTÉTICO EM RETRATOS DE CAROLINA DE LYGIA BOJUNGA 142 Marta Yumi Ando A NAU CATARINETA EM DUAS VERSÕES INFANTIS A NARRATIVA POPULAR ATRAVÉS DAS ILUSTRAÇÕES 163 Rhea Sílvia Willmer UFRJ O APELO À IDENTIDADE NACIONAL E AO UTÓPICO NA OBRA INFANTOJUVENIL DE LAURA INGALLS WILDER 184 Fabiana Valeria da Silva Tavares ENTRE SÓTÃOS RUAS E REIS UM OLHAR SOBRE A PRODUÇÃO LITERÁRIA INFANTOJUVENIL DE RICARDO AZEVEDO 200 Penha Lucilda de Souza Silvestre EXPELLIARMUS O UTÓPICO O PÓSUTÓPICO E A CAMBIÂNCIA DAS IDENTIDADES EM HARRY POTTER DE J K ROWLING 219 Marco Medeiros MANOEL DE BARROS INFÂNCIA IMAGEM E CONHECIMENTO 235 Mara Conceição Vieira de Oliveira CARA DE CORUJA A EXPERIÊNCIA DE LEITURA COMO RECURSO PARA A RENOVAÇÃO DOS CONTOS DE FADAS DE CHARLES PERRAULT NO CONTO DE MONTEIRO LOBATO 251 Geovana Gentili Santos UM PAPO DE ARANHA SOBRE TEXTOS E LEITURAS A ESCOLA BRASILEIRA ENSINA A LÍNGUA DA INTERTEXTUALIDADE 270 Regina Chamlian A ADAPTAÇÃO NA TRADUÇÃO DE LITERATURA INFANTOJUVENIL NECESSIDADE OU MANIPULAÇÃO 283 Renata de Souza Dias Mundt O ATRATIVO E O NUTRITIVO A IMAGEM DO ALIMENTO NA LITERATURA PARA CRIANÇAS 300 Daniela Bunn OLHARES PARA A INFÂNCIA E PARA A EDUCAÇÃO NO CONTO NEGRINHA E EM OUTRAS HISTÓRIAS DE MONTEIRO LOBATO 316 Eloísa Porto Corrêa A ESCOLA NA LITERATURA INFANTOJUVENIL PNBE1999 335 Fátima de Oliveira Ferlete Célia Regina Delácio Fernandes QUEM SOMOS NÓS 361 GALERIA DE FOTOS 6 PREFÁCIO É imenso e multifacetado o universo da literatura infantil e juvenil No Brasil a produção cultural para a infância e juventude em especial a literária cresceu exponencialmente a partir de 1970 Cresceu em quantidade e qualidade tornando cada vez mais refinado o vasto menu de obras Vale lembrar que tal refinamento tendo como norte o respeito ao imaginário infantojuvenil encontra em Monteiro Lobato o seu artesão primeiro e maior Minhas lutas em prol da democratização da leitura no país tiveram início em 1972 logo depois que João Carlos Marinho escrevera a obra O Caneco de Prata 1971 tida por muitos estudiosos como o marco principal do movimento de renovação da literatura infantil brasileira na era pósLobato Por isso mesmo como pesquisador das práticas de leitura venho acompanhando a produção dentro dos limites de minhas possibilidades e sempre muito frustrado por não ser capaz de acompanhar a verdadeira avalanche de lançamentos dessa área Ler conhecer e entender as obras se possível as boas de literatura infantil e juvenil é dever de ofício de todos os professores do ensino fundamental e médio Isto porque eles são mediadores e informantes privilegiados de leitura junto aos estudantes Considerando um pouco da realidade vivida pela infância brasileira eu diria que os professores são hoje em dia os principais agentes de promoção da leitura junto às crianças Bem mais do que a família e outros organismos sociais Por isso mesmo as atividades de fomento e de orientação da leitura exigem dos mestres um adequado 7 repertório de conhecimentos sobre universo da literatura infantil e juvenil os seus diferentes gêneros 7 autores configurações suportes etc A presente coletânea reúne 17 trabalhos que penetram o universo da literatura infantil e juvenil por diferentes ângulos A obra permite um aprofundamento e uma adensamento no nosso conhecimento a respeito desse imenso universo que leva as crianças e os jovens a movimentarem a sua fantasia durante as práticas de recriação imaginativa que são próprias das interações com os textos literários Na leitura que fiz para a elaboração deste prefácio consegui perceber quatro eixos em torno dos quais giram as produções dos autores Certamente que esses eixos produtos de minha interlocução com os 17 textos não esgotam a riqueza e amplitude da obra outros olhares talvez mais sensíveis do que o meu poderão encontrar outros núcleos de significação e de interrelacionamento das reflexões aqui costuradas Evolução da Literatura Infantil e Juvenil A coletânea se abre com um texto de natureza histórica que caracteriza as mudanças ocorridas na produção literária para crianças ao longo do tempo um texto específico voltado para a realidade brasileira puxando os fios da história e mostrando a memória até agora constituída Todos os demais artigos indistintamente introduzem os seus temas com base numa visão panorâmica da história da literatura infantil no nosso país ou no mundo A perspectiva histórica fornece o devido suporte para uma compreensão segura das transformações da literatura na direção de diálogos mais criativos com as crianças ao longo do tempo Monteiro Lobato Revisitado Quatro artigos focam diretamente o rico manancial de Monteiro Lobato ou aprofundando as características dos densos personagens por ele criados ou 8 mostrando o alcance das suas adaptações de contos estrangeiros ou ainda esmiuçando aspectos inusitados de suas obras Nestes termos esses trabalhos permitem aquilatar mais abrangentemente a importância de Lobato para o desenvolvimento da literatura infantil brasileira Estudo de Autores Específicos Marina Colasanti Lygia Bojunga Nunes Roger Mello Laura Ingalls Wilder Ricardo Azevedo J K Rowling e Manoel de Barros são rigorosamente estudados no transcorrer da coletânea permitindo a descoberta de novas idéias para a interpretação de suas obras As abordagens diferenciadas e inéditas dos estudiosos revelam uma ampla variedade de possibilidades de significação mitologia polifonia ideologia oralidade intertextualidade etc fazendo ver aquilo que por vezes nos passa despercebido no acervo de obras desses autores Literatura Infantil Escola e Ensino Ainda que todos os artigos da coletânea tenham no professor um leitor privilegiado pelo menos três trabalhos tratam especificamente da relação entre leitura da literatura e a docência Dentre os aspectos a destacar colocase aquele voltado à maneira pela qual a escola é retratada em obras de literatura infantil e juvenil Dois outros também significativos apontam para questões relacionadas ao ensino da intertextualidade e à imagem do alimento na literatura Recomendo com todas as minhas forças e energias a leitura desta coletânea por parte de todos aqueles que lutam por uma infanciajuventude mais crítica e mais criativa no território nacional Retomando um conceito de Walter Benjamim citado nesta obra a experiência pobre não pode mais residir na esfera do magistério brasileiro sob o risco de reproduzirmos ano a ano uma formação cultural rasteira das nossas crianças e jovens No meu ponto de vista a leitura seja deste livro seja de qualquer outro seriamente elaborado permite a reelaboração e o enriquecimento das nossas 9 experiências e das nossas visões de mundo Nestes termos visitar os lugares visitados pelos autores deste conjunto de reflexões pode significar um ganho de discernimento e uma ponte mais segura para a tomada de decisões a respeito do porquê do o quê e do como dispor ou ofertar determinadas obras e não outras para a apreciação das crianças e dos jovens brasileiros EZEQUIEL THEODORO DA SILVA Campinas fevereiro de 2010 10 A NOSSOS POSSÍVEIS E MUITO DESEJADOS LEITORES E LEITORAS Leitoras e Leitores este livro nasceu do Simpósio A Narrativa Ficcional para Crianças e Jovens e as Representações de Práticas de Leitura que coordenamos no Congresso Internacional da ABRALIC em 2008 na USP Gostamos tanto das experiências que trocamos ali dos momentos que vivemos juntos que decidimos concretizar no impresso um pouco do muito que aconteceu naqueles dias chuvosos e friorentos de julho nessa São Paulo querida e provocadora Alguns dos capítulos deste livro estão completamente diferentes daquilo que apresentamos no Simpósio outros estão um pouco mudados outros ainda permaneceram iguais Todos eles testemunham nossa paixão pela LIJ e pela leitura Vejam quem somos em algumas fotos No final do livro na parte Quem Somos Nós vocês poderão ler um pouco acerca de nossas ações na docência e na pesquisa Um grande abraço a todos Nicolau Patrícia Regina A LITERATURA INFANTIL E JUVENIL HOJE MÚLTIPLOS OLHARES DIVERSAS LEITURAS 12 LITERATURA INFANTIL UM PERCURSO EM BUSCA DA EXPRESSÃO ARTÍSTICA José Nicolau Gregorin Filho Discutir literatura infantil é de certo modo vincular um determinado tipo de texto com as práticas pedagógicas que foram se impondo na educação principalmente após a segunda metade do século XIX Assim na maioria dos livros que buscam teorizar o assunto há o questionamento a literatura infantil é instrumento pedagógico ou é arte COELHO 2000 assim inicia a sua discussão sobre o tema Literatura infantil é antes de tudo literatura ou me lhor á arte fenômeno de criatividade que representa o mundo o homem a vida através da palavra Funde os sonhos e a vida prática o imaginário e o real os ideais e sua possívelimpossível realização COELHO 2000 p 9 Se o texto que se convencionou chamar de literatura infantil é apenas mais um dentre tantos outros recursos disponíveis para o desenvolvimento da prática pedagógica ou um objeto artístico tome se como ponto de partida alguns exemplos da obra Coração de Edmundo De Amicis Edmundo de Amicis foi um escritor italiano mundialmente conhecido Natural de Oneglia onde nasceu em 1846 faleceu em 1908 deixando variada obra em que se destacam narrativas de viagens crítica literária novelas livros de temas sociais políticos e um pequeno livro considerado obra prima de literatura didática Cuore Escrito em 1886 a obra foi divulgada pelo mundo em milhares de edições conquistando leitores de todas as idades e de todas as classes sociais só na Itália conta com mais de um milhão de exemplares A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 13 As cenas deste livro e as suas figuras refletem e corporificam a variada e perturbadora alma humana nos seus anseios sofrimentos alegrias e paixões Em Portugal Ramalho Ortigão o traduz em trechos e Miguel de Novais dá a versão portuguesa integral No Brasil Valentim Magalhães em 1891 elabora sua tradução entre fascinado e surpreso Dessa data em diante Coração invade escolas e lares brasileiros passando a ser lido por todos independentemente da faixa etária e condição social A geração que se inicia no século vinte aprende com ele a lição do trabalho do patriotismo da virtude e da generosidade sendo formados como italianinhos Da obra de cunho didáticomoralizante devem ser selecionadas algumas passagens Eu amo a Itália porque minha mãe é italiana porque o sangue que me corre nas veias é italiano porque é ita liana a terra onde estão sepultados os mortos que mi nha mãe chora e que meu pai venera porque a cidade onde nasci a língua que falo os livros que me educam porque meu irmão minha irmã os meus companhei ros e o grande povo no meio do qual vivo e a linda natureza que me cerca e tudo o que vejo que amo que estudo que admiro é italiano MAGALHÃES 1891 p74 Voltini disselhe não deixes penetrar no teu corpo a serpente da inveja é uma serpente que rói o cérebro e corrompe o coração Op cit p75 Ânimo ao trabalho Ao trabalho com toda a alma e com todos os nervos Ao trabalho que me tornará o repouso doce os divertimentos agradáveis o jantar alegre ao trabalho que me restituirá o bom sorriso do meu pro fessor e o beijo abençoado de meu pai Idem p 81 Mas ouça que mísera desprezível coisa seria para ti se não fosses à escola De mãos juntas no fim de uma semana implorarias para nela voltar consumido de no jo e de vergonha nauseado dos brinquedos e da exis tência Idem p 19 Fixa bem na mente este pensamento Imagina que te estão destinados na vida dias tremendos o mais tre mendo de todos será o dia em que perderes tua mãe José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 14 Mil vezes Henrique quando já fores homem forte ex perimentado em todas as lutas tu a invocarás oprimi do por um desejo imenso de tornar a ouvir por instante a sua voz e de rever seus braços abertos para neles te atirares soluçando como um pobre menino sem prote ção e sem conforto Como te lembrarás então de toda amargura que lhe causastes e com que remorsos as pagarás todas infeliz Idem p28 Por meio dos exemplos acima já se percebe o endurecimento dos valores da época ou seja devese ter profundo respeito por todas as instituições que governam a vida do indivíduo ou seja a família a escola a pátria Há nesses trechos um bom exemplo do maniqueísmo e dos valores de um país que lutava pela busca de sua identidade que procurava ser valorizado Em 1919 Tales de Andrade lança o livro Saudade publicado pela Secretaria de Agricultura do Estado de São Paulo Com ela abre se um caminho que vai ser um dos mais trilhados pela literatura infantil daí em diante o rural O mundo acaba de sair de uma grande guerra situação em que os valores da civilização urbana progressista haviam sido abalados profundamente provocando nos homens a desesperança ou a descrença em sua legitimidade A tendência geral na literatura era para a valorização da paz e da justiça social daí a vida no campo aparecer como um grande ideal valorização nostálgica dos costumes simples do campo em confronto com as dificuldades e fracassos encontrados na vida da cidade Saudade recebe saudações de autores como Monteiro Lobato que diz ser um livro para a infância que cai em nossos meios pedagógicos com o fulgor e o estrondo de um raio Seguindo essa mesma concepção de livro para crianças Viriato Correa lança uma série de obras destinadas ao público infantil desde 1908 Era uma vez livro de contos e dentre eles um dos que mais seguem o estilo didáticomoralista de Coração é Cazuza Lançado em 1938 e continuamente reeditado gerado por idéias e ideais do Brasil A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 15 dos anos 30 Cazuza transfigurou m literatura os impulsos que estavam na raiz do grande movimento histórico nacional então em processo movimento que pode ser sintetizado como sendo o deslocamento de populações do campo para a cidade a fim de impulsionar a modernização do país Cazuza é a história de um menino que dá título ao livro e que depois de adulto resolve escrever suas memórias de infância ligase aos dois primeiros pela ênfase dada ao respeito às instituições sendo a educação o meio ideal para o progresso do homem e pela preocupação de confrontar a vida rural interiorana com a vida urbana Apresenta uma nítida evolução sobre os anteriores pois com experiências simples Cazuza vai tendo oportunidade de revelar o jogo das relações humanas o idealismo humanitário que deve nortear as ações de todos os indivíduos as diferenças inerentes aos vários meios sociais Cazuza foi dos que abriram as portas da literatura para os ventos da vida real com linguagem mais ágil mostrando também experiências necessárias ao indivíduo no seu processo de crescimento Mesmo assim o didatismo moralizante ainda se faz presente conforme o trecho abaixo Essa riqueza de que você tem tanto orgulho foi você que a juntou com sua inteligência com seu suor e com seu esforço Pensa você que o Custódio lhe é inferior porque é pobre Pois é justamente a pobreza que lhe dá valor Sendo paupérrimo o Custódio come mal dorme mal e o tempo que deve empregar no estudo empregao em serviço caseiro para ajudar os pais A lição que ele traz sabida vale mais do que a lição sabi da que você traz Você tem tempo e conforto Custódio não tem nada senão a vontade de aprender o brio de cumprir o seu dever de estudante CORREA 1999 p85 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 16 Vários autores tiveram grande influência na sociedade dessa época foram demasiadamente lidos pelas crianças e exerceram papel marcante na vida escolar do Brasil além dos citados precisam ser lembrados autores como Olavo Bilac Manuel Bonfim Júlia Lopes de Almeida Adelina Lopes Vieira entre outros seja como mantenedores do pensamento da classe dominante no que se refere à política ou às maneiras de se viver em sociedade Na totalidade Das obras por eles produzidas a criança é vista como um indivíduo pronto para receber a educação como dádiva como caráter divino mando sua pátria como berço e fonte inesgotável de benevolências Educação e leitura no Brasil do final do século XIX até o surgimento de Monteiro Lobato viviam alicerçadas nos paradigmas vigentes ou seja o nacionalismo o intelectualismo o tradicionalismo cultural com seus modelos de cultura a serem imitados e o moralismo religioso com as exigências de retidão de caráter de honestidade de solidariedade e de pureza de corpo de alma em conformidade com os preceitos cristãos Com o surgimento de Monteiro Lobato e sua proposta inovadora de literatura infantil a criança passa a ter vontade e voz ainda que vindas da boca de uma simples boneca de pano Emília O que importa é que a contestação e a irreverência infantis sem barreiras começam a ser lidas e vistas por meio dos textos e ilustrações das personagens do Sítio do Picapau Amarelo Lobato apresenta características até então não exploradas no universo literário para crianças apelo a teorias evolucionistas para explicar o destino da sociedade onipresença da realidade brasileira olhar empresarial e patronal preocupação com problemas sociais soluções idealistas e liberais para os problemas sociais tentativa de despertar no leitor uma flexibilidade face ao modo habitual de ver o mundo relativismo de valores questionamento do etnocentrismo e A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 17 um outro ponto importante a religião como resultado da miséria e da ignorância Evidentemente Lobato fora o precursor de uma nova literatura destinada às crianças no Brasil uma literatura que ainda passaria por inúmeras transformações por uma ditadura militar e por grandes mudanças na tecnologia e na sociedade Essas mudanças foram de maneira histórica e dialógica sendo capazes de trazer para a chamada literatura infantil a diversidade de valores do mundo contemporâneo o questionamento do papel do homem frente a um universo que se transforma a cada dia Além disso trouxe também as vozes de diferentes contextos sociais e culturais presentes na formação do povo brasileiro sua diversidade e dificuldades de sobrevivência e o mais importante trouxe as vozes e sentimentos da criança para as páginas dos livros para as ilustrações e para as diferentes linguagens que se fazem presentes na produção artística para crianças Desse modo mais precisamente após a década de setenta encontrase uma produção literáriaartística para as crianças que não nasce apenas da necessidade de se transformar em recurso pedagógico mas cujas principais funções são o lúdico o catártico e o libertador além do pragmático e do cognitivo Autores como Pedro Bandeira Carlos Queiroz Telles Roseana Murray e Regina Chamlian entre outros trazem as vozes das crianças e o universo cotidiano com seus conflitos para serem lidosvistossentidos numa literatura para as crianças de hoje conflitos esses levados às crianças com uma proposta de diálogo não somente de imposição de valores por meio de uma literatura que busca a arte sua característica primeira Como exemplo devese observar os seguintes textos de TELLES l999 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 18 Abobrinhas Batatinhas quando nascem se esparramam pelo chão invadem as escolinhas entram em todas as festinhas e viram declamação Que chateação Ao contrário das colegas de terreiro e de pomar as alegres abobrinhas crescem fortes e felizes sem nunca se perguntar onde meninas dormindo colocam os pés e as mãos Adultices Cuidado Sai daí Vem aqui Fica quieto Já pra cama Come tudo Mais respeito Agradece Não emburra Obedece E depois de tanta ordem bronca e chateação não é que ainda nos pedem com cara de coração Vem cá meu anjinho eu quero um beijinho Vem cá garotão me dá um abração Os dois exemplos já conseguem mostrar que os valores mudaram e a voz da criança já se faz ouvir há o descrédito da A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 19 autoridade que se coloca no poder por meio de uma moral dogmática a linguagem se mostra mais próxima do falar da criança e é nesse relativismo de valores que a criança terá de se situar como cidadão Dessa maneira verificamse dois momentos bem definidos da literatura voltada para as crianças no Brasil e entender esse percurso em busca da arte Um outro momento da trajetória histórica da literatura para crianças e jovens foi a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional Lei 9394 de 20 de dezembro de 1996 de onde surgiram os Parâmetros Curriculares Nacionais e consequentemente os Temas Transversais para serem trabalhados na sala de aula Esses temas são temas de interesse no bojo da sociedade e deles fazem parte a Ética a pluralidade cultural e meio ambiente entre outros A questão é que para atender a esse mercado editorial impulsionado por essas novas propostas educacionais vários livros abordam esses temas transversais de maneira a garantir a sua inclusão em planejamentos pedagógicos e não necessariamente tratam do tema de maneira literária ao abordarem o assunto diretamente e em vários casos não apresentam o mínimo traço de literariedade Um dos exemplos é a discussão sobre a aceitação das diferenças sejam elas de caráter social cultural ou sexual tem sido José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 20 muito comum como temática de livros voltados para crianças e jovens O que surpreende na obra O pintinho que nasceu quadrado é exatamente o contrário Suas autoras por meio da construção de um universo ficcional com raízes plantadas pela fábula enriquecem a discussão de modo a garantir múltiplas intertextualidades nas linguagens verbal e visual do livro A sociedade tradicional é mostrada neste contexto literário por meio da figura de um galinheiro e todos os seus aspectos discutidos de maneira metafórica o machismo é mostrado na figura do galo na primeira página e na figura de um outro galo cuja função é ser o juiz sendo a autoridade que organiza o galinheiro e traça o destino de suas dominadas o ato de viver sem grandes reflexões e a vida assujeitada das classes dominadas é figurativizada no ato de botar ovos ato esse tido como obrigação do sexo feminino Nada pode ser questionado Nada deve mudar a ordem estabelecida É nesse ponto que essa ordem social é subvertida Uma das galinhas Carola que às vezes se encosta na grade do cercado e fica olhando para fora para vislumbrar outras possibilidades de vida bota um ovo Esse não era mais um ovo dentre vários que eram postos diariamente era um ovo quadrado O ato de olhar para fora do galinheiro de ficar observando o horizonte que se abre para além dos limites do galinheiro já diz muito significa a nãoaceitação daquela realidade imposta à sua vida A galinha sonhadora bota um ovo quadrado Mais do que o ato de colocar um ovo em pé discutindo a ordem do mundo esse ovo se mantém em pé por si mesmo Evidentemente isso não poderia ser aceito As colegas de galinheiro comentam o absurdo da forma sugerem para que se jogue fora aquilo que parecia uma aberração Sem aceitar qualquer uma das opiniões a galinha resolve chocar o seu ovo quadrado e ali permanecer Convocase um A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 21 julgamento chamam um galo juiz para organizar e resolvem expulsar a autora daquilo que já toma a proporção de um crime para fora dos limites do galinheiro É o poder do macho e das instituições sociais é a manutenção da ordem Na solidão de sua viagem nasce o seu filho um pintinho quadrado Nessa caminhada inúmeros animais que cruzam o caminho de mãe e filho zombam da aparência incomum da criatura e fica impossível de a galinha encontrar nova moradia para os dois Até este ponto da obra encontramse várias relações intertextuais seja no plano de expressão verbal seja no visual Além de mostrar a rejeição pela sua própria espécie aprofundando as discussões propostas pelo texto de Andersen podese deparar com releituras de céus já pintados por grandes nomes da arte mundial na ilustração assim como se pode lembrar a história ancestral de uma mulher grávida e seu marido buscando abrigo para que uma criança nascesse no oriente há mais de dois mil anos Depois de longa caminhada tempo em que se conheceram e tiveram a oportunidade de conversar sobre ser parecer aceitação e rejeição e exaustos da longa caminha o sono sob o céu de Van Gogh tornase profundo e ao abrir os olhos no dia seguinte mãe e filho se deparam com uma visão incomum animais simpáticos e completamente diferentes da forma tradicional Nesse conjunto há uma tartaruga piramidal um coelho triangular um macaco redondo e uma girafa espiral entre outros Após um alegre cumprimento passam a admirar a beleza do pintinho quadrado e a trocar experiências de rejeição pelas quais todos do grupo passaram Conversam sobre a sua vida em grupo e resolvem sair em busca de um lugar para viverem em paz e serem eles mesmos com sua aparência nada convencional e seus próprios sonhos e desejos José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 22 Conforme se disse anteriormente o livro não mostra a aceitação pela própria espécie ou por um grupo convencional e reconhecido pela sociedade como em O Patinho feio de Andersen nem escancara a realidade das rejeições diárias sofridas por crianças e adultos no cotidiano de ruas escolas e igrejas por pessoas que fogem do padrão quer pela sua aparência quer pela sua ousadia de olhar o mundo de maneira diversa do senso comum como a maioria dos livros lançados após a obrigatoriedade de se discutirem os temas transversais na sala de aula As relações intertextuais de O pintinho que nasceu quadrado levam o seu leitor a rememorar personagens históricos não aceitos em sua época exatamente por olharem para fora dos limites impostos pela sociedade por serem diferentes por viverem de maneira diversa daquela tida como certa A importância deste livro nesta discussão está em colocar a importância da aceitação de si mesmo e o valor da busca por um lugar no mundo um mundo que ainda precisa ser muito transformado Os textos verbal e visual que constroem a obra mostram a estaticidade como elemento negativo para essa mudança é na dinâmica do constante caminhar e na busca incansável que as diferenças podem ser aceitas O exemplo acima é apenas um de muitos outros que surgem no mercado editorial para crianças e jovens e procura instigar o seu leitor para a produção de intertextos de múltiplos diálogos com outras obras e tempos e o mais importante aos poucos vai fazendo com que a criança eduque o seu olhar para a arte ao mesmo tempo em que é levada a perceber e discutir as mazelas do mundo onde ela vive Evidentemente neste breve panorama o que se busca é a discussão de paradigmas emergentes a um momento em construção mas o que se pretende é ressaltar a mudança dos objetivos e de A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 23 mecanismos de construção de um tipo de texto que tem como destinatário a criança e que procura se firmar como arte sem que se descarte a sua presença demasiadamente importante no processo educativo entendendo que o processo educativo também se constrói nestes novos tempos tentando levar em consideração a formação plural do povo brasileiro REFERÊNCIAS ANDRADE Tales de Saudade São Paulo Companhia Editora Nacio nal 2002 ARROYO Leonardo Literatura Infantil Brasileira São Paulo Melho ramentos 1988 BANDEIRA Pedro Cavalgando o Arcoíris São Paulo Moderna 2002 CHAMLIAN Regina ALEXANDRINO Helena O pintinho que nasceu quadrado São Paulo Global 2007 CAMARGO Luís A ilustração do livro infantil Belo Horizonte Editora Lê 1995 CHARTIER Roger A aventura do livro do leitor ao navegador São Paulo Editora da Unesp Imprensa oficial do Estado de São Paulo 1999 COELHO Nelly Novaes Panorama Histórico da literatura infantil e ju venil São Paulo Ática 1991 Dicionário Crítico da Literatura Infantil Brasileira São Paulo Edusp 1995 A Literatura Infantil São Paulo Moderna 2000 O conto de fadas símbolos mitos arquétipos São Paulo DCL 2003 CORRÊA Viriato Cazuza São Paulo Companhia Editora Nacional 1999 DE AMICIS Edmundo Coração São Paulo Hemus 1974 DINORAH Maria O livro na sala de aula Porto Alegre LPM 1987 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 24 EVANGELISTA Aracy Alves M Org A escolarização da leitura lite rária o jogo do livro infantil e juvenil Belo Horizonte Autêntica 2003 GÓES Lúcia Pimentel Olhar de Descoberta São Paulo Paulinas 2004 GREGORIN FILHO José Nicolau A roupa infantil da literatura Arara quara SP 1995 Dissertação apresentada à FCLUNESP Figurativização e imaginário cultural Araraquara SP 2002 Tese apresentada à FCLUNESP Literatura infantil brasileira da colonização à busca da iden tidade In Revista Via Atlântica sl sn n 9 sd p 185194 JESUALDO J A Literatura Infantil São Paulo CultrixUSP 1978 KHEDE Sônia Salomão org Literatura InfantoJuvenil um gênero polêmico Petrópolis RJ Vozes 1983 Personagens da Literatura InfantoJuvenil São Paulo Ática 1986 LAJOLO Marisa ZILBERMAN Regina Literatura Infantil brasileira São Paulo Ática 1984 LAJOLO Marisa Usos e abusos da Literatura na escola Rio de Janei ro Globo 1982 PALO Maria José OLIVEIRA M Rosa Literatura Infantil São Paulo Ática 1986 PERROTTI Edmir O texto sedutor na Literatura Infantil São Paulo Ícone 1986 Confinamento cultural Infância e Leitura São Paulo Sum mus Editorial 1990 ROSEMBERG Fúlvia Literatura Infantil e ideologia São Paulo Global 1984 TELLES Carlos Queiroz Abobrinha quando cresce São Paulo Editora moderna 1993 VALE Fernando Marques do A obra infantil de Monteiro Lobato Ino vações e repercussões Lisboa Portugalmundo 1994 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 25 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs YUNES Eliana PONDÉ M da Glória Leitura e leituras da literatura infantil São Paulo FTD 1988 ZILBERMAN Regina org Leitura em crise na escola Porto Alegre Mercado Aberto 1982 org A produção cultural para crianças Porto Alegre Mer cado Aberto 1982 A literatura infantil na escola São Paulo Global 2003 WORNICOV Ruth et al Criança leitura livro São Paulo Nobel 1986 26 NARIZINHO E EMÍLIA REPRESENTAÇÕES DE CENAS DE LEITURA E CONSTRUÇÃO DO PERFIL DA LEITORA NOVECENTISTA NA OBRA INFANTIL DE MONTEIRO LOBATO Patrícia Kátia da Costa Pina Peter Pan é eterno mas só existe num mo mento da vida de cada criatura Monteiro Lobato Peter Pan O fragmento posto em epígrafe corresponde a uma resposta de Dona Benta a Emília quando terminou de contar a todos a história de Peter Pan Essa personagem representa o indivíduo que não quer crescer que não quer assumir o mundo adulto Peter Pan simboliza a criança dentro de cada um de nós e claro dentro das personagens lobatianas também A adaptação feita por Lobato do romance inglês de J M Barrie posta na voz da velha senhora é partilhada por crianças ficcionais e empíricas através da criação de um ambiente provocador de interessantes discussões sobre cultura história literatura Tal processo narrativo pareceme funcionar como forma de criação de uma relação íntima com o pequeno leitor levandoo a identificarse com o narrado Levandoo a ligarse a essa criança eterna que habita o mundo ficcional A fala dessa contadeira da história inglesa define seus interlocutores tanto os de papel e tinta como os de carne e osso pequenos indivíduos que vivem o exato momento em que se construirão como adultos Pareceme desenharse aí o desejo perceptível nessa e em outras narrativas infantojuvenis de Monteiro Lobato de estabelecer formas de promoção de um processo de educação distensa e informal através da leitura literária Explico A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 27 me a escola fornece na maior parte das vezes e principalmente na época da primeira publicação dos livros lobatianos para crianças modelos endurecidos de relação com o livro livros que excluíam o imaginário que tinham como tom maior a moralização o ensino indireto de valores socialmente recomendados Dona Benta ao contrário da Tia que ensinaria aos meninos e meninas que freqüentavam as poucas escolas do Brasil na época dá um caminho alternativo e divertido para esse contato mostrando que lerouvir histórias pode ser algo prazeroso e libertador do imaginário Segundo Teresa Colomer a literatura infantil e juvenil instrumentaliza os leitores para que possam entrar no jogo da literatura adulta conjugando o estético e o pedagógico Nos livros infantis mais do que na maioria dos textos sociais se reflete a maneira como uma sociedade dese ja ser vista e podese observar que modelos culturais dirigem os adultos às novas gerações e que itinerário de aprendizagem literária se pressupõe realizem os lei tores desde que nascem até sua adolescência COLO MER 2003 p14 Entendo que o referido processo formativo desenvolvido por antecessores de Lobato desde o século XIX tendo um público diverso como alvo segue por vias marginais a fim de contactar e seduzir possíveis leitores de literatura Assim o discurso do narrador congrega os valores que estão a serviço de sua visão de mundo e implícita no texto a competência literária de seu público presumido As vias marginais a que me refiro são basicamente duas a a identificação do leitor com as personagens b a provocação do imaginário do interlocutor do texto a partir da identificação primeira Referindose ao livro Reinações de Narizinho Sônia Salomão Khéde afirma Lobato consegue em sua primeira obra criar persona gens que cumprem diversas funções no Sítio do Pica pau Amarelo A mais importante delas é possibilitar a José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 28 identificação do leitor mirim com o texto literário Em segundo lugar através de processos lúdicos e alegóri cos está a relação intratextual e intertextual que os personagens estabelecem entre si e entre personagens de outros livros inaugurando um diálogo rico pela dis cussão dos valores e das formas de viver KHÉDE 1990 p55 Em cada personagem que habita as páginas das variadas narrativas lobatianas para crianças e jovens vislumbro um perfil de leitor Esses diferentes perfis viabilizam ao que tudo indica a relação do texto literário com múltiplos segmentos do leitorado infantil e juvenil novecentista brasileiro A referida relação pareceme pautar se exatamente pela ativação do imaginário desses pequenos leitores é como se o texto lobatiano funcionasse junto a seus interlocutores como um fortíssimo sopro de pó de pirlimpimpim Regina Zilberman constata e discute essa natureza imaginária e formativa da literatura infantil Como procede a literatura Ela sintetiza por meio dos recursos da ficção uma realidade que tem amplos pontos de contato com o que o leitor vive cotidiana mente Assim por mais exacerbada que seja a fantasia do escritor ou mais distanciadas e diferentes as circuns tâncias de espaço e tempo dentro das quais uma obra é concebida o sintoma de sua sobrevivência é o fato de que ela continua a se comunicar com o destinatário a tual porque ainda fala de seu mundo com suas dificul dades e soluções ajudandoo pois a conhecêlo me lhor ZILBERMAN 1985 p22 A apontada síntese do real parece ser o ponto de partida para a ativação do imaginário do leitor aquilo que lhe dá suporte para construir uma visão própria do mundo Colomer afirma que os pequenos leitores abordam os livros em um encontro despojado de contexto e a partir de sua progressiva aquisição de competência leitora op cit p35 Nesse processo de aquisição de habilidade para ler a literatura a ativação do imaginário desse público específico é fundamental A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 29 Walty Fonseca e Ferreira Cury afirmam em Palavra e imagem que o impresso conduz o leitor a palavra guia suas reflexões A leitura é um processo associativo que promove a in teração escrita e imagem em diversos sentidos a i magem propriamente dita a que ilustra textos verbais aquela construída pelo leitor quando lê que tanto pode restringirse ao momento real de produção de sentido como pode ser base de outras citações Além dis so textos verbais ou pictóricos exibem imagens do ato de ler apreendendo o leitor nas malhas discursivas Representações do livro e da atividade de leitura em diversas produções culturais possibilitamnos também refletir sobre seu lugar social tanto numa dimensão espacial quanto temporal delineando o perfil do leitor no imaginário da sociedade WALTY FONSECA CURY 2006 p7 Ao lerouvir uma história então o leitor se apropria das imagens propostas na tessitura narrativa concretizandoas pela particularidade de seu imaginário O romance constrói e propõe uma cena por exemplo que é reconstruída a cada ato de leitura Nesse processo as habilidades e competências do leitor empírico entram no jogo e determinam os caminhos imaginários da interlocução Na obra infantil lobatiana a síntese apontada acima por Zilberman já configura uma realidade inventada e guiada pela palavraimagem no Sítio não moram os pais das crianças moram a avó e sua ajudante Nastácia Tratase de um universo feminino que se opõe aos padrões familiares burgueses segundo os quais enquanto os pais educam os avós deseducam Dona Benta não deseduca propriamente os netos mas permitelhes viver num estado de exceção ou melhor provocaos para que testem o mundo conhecido através da ação imaginária de cada um conduzindoos nessa aventura No Sítio as mulheres são maioria Assim escolho Narizinho e Emília como as iscas textuais que configurando ficcionalmente distintos perfis de leitoras fizeram escola dialogaram com as José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 30 meninas novecentistas brasileiras e construíram padrões diferenciados de gosto literário e de preferências de consumo de bens culturais impressos como é possível observar em outra adaptação do referido escritor agora da obra magistral de Cervantes Emília estava na sala de Dona Benta mexendo nos li vros Seu gosto era descobrir novidades livros de fi gura Mas como fosse muito pequenina só alcançava os da prateleira debaixo Para alcançar os da segunda tinha de trepar numa cadeira E os da terceira e quarta esses ela via com os olhos e lambia com a testa Por is so mesmo eram os que mais a interessavam Sobretu do uns enormes LOBATO 1967 p3 O tamanho de Emília é simetricamente oposto à medida de sua irreverência de sua astúcia de sua criatividade O fragmento acima recortado dá conta da atitude desobediente da boneca que ganha voz e vida na obra infantojuvenil de Monteiro Lobato Sua curiosidade é insaciável qualquer proibição só faz aumentála ainda mais Pedrinho e Narizinho as crianças ficcionais que dividem o estrelato com Emília seguem parâmetros de comportamento pertinentes ao mundo concreto e nãoficcional precisam obedecer aos mais velhos Emília uma boneca concretização ficcional do lúdico em confronto com o mundo adulto não precisava enquadrarse nas relações familiares comuns e em suas injunções Daí ela poder dar livre curso à bisbilhotice indomável que a caracteriza De um lado Narizinho menina sapeca mas obediente educada inteligente capaz de conhecer e dominar com perfeição as regras do jogo literário e social ela resume as características necessárias à menina novecentista para tornarse uma ótima esposa e mãe Emília por outro lado resguardada pela condição de brinquedo isto é por uma natureza lúdica irrevogável desobedece e transgride todas as regras e todo o bom senso burguês típico da época em que tais narrativas começaram a circular entre os pequenos brasileiros a que se destinavam A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 31 Assim seria impossível segurar a boneca Isso de ver com os olhos e lamber com a testa era para as crianças Por ser brinquedo Emília já carrega a marca da reinvenção da infância ela é uma ficcionalização ficcionalizada da meninice que Lobato construía como possível nessa primeira metade do século passado Dessa forma são os livros inacessíveis que constituem seu grande objeto de desejo essa inacessibilidade talvez simbolizasse para a boneca de macela e retrós o obstáculo encenado por sua própria condição de ser inventado e inventor D Quixote está inacessível fisicamente Peter Pan tem seu grau de inacessibilidade no fato de não estar na época traduzido para o português A narrativa de que destaquei a citação anterior é como afirmado acima uma adaptação da obra de Cervantes para crianças nela me interessa enfocar a função de Dona Benta como mediadora de leitura o que conduz minha reflexão para Narizinho e Emília como personagens paradigmáticas no que tange à formação do gosto pela leitura literária e à criação de identificação entre elas e as leitoras empíricas Dona Benta seleciona normalmente os livros que deverão ser lidos para e pelas crianças A própria arrumação da estante em D Quixote das crianças conota isso como se percebe no fragmento destacado numa referência quase explícita aos degraus do saber que os aprendizes precisam galgar É o que ocorre com o romance Peter Pan and Wendy de Barrie Só que neste último caso é Emília quem exige que Dona Benta que não conhecia o romance o leia e conteo a todos Pois se não sabe trate de saber Não podemos ficar assim na ignorância Onde já se viu uma velha de óculos de ouro ignorar o que um gato sabe LOBATO 1970 p73 V3a A boneca de macela solicita a mediação da avó das crianças do Sítio ela quer conhecer a história direitinho José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 32 A incontrolável indiscrição de Emília subverte no entanto os desígnios da velha senhora Ao pegar D Quixote deixandoo cair e esmagando o Visconde Emília explicita para todos que não vai se submeter a censuras sobre suas leituras Dona Benta então na tentativa de saciar sua curiosidade e a dos meninos se propõe a fazer uma leitura seletiva da obra na verdade a fazer uma contação das histórias de D Quixote e Sancho Pança o mesmo ocorrendo com o romance inglês nesse processo de tradução de Peter Pan Emília revive e reinventa a história tendo tia Nastácia como a vítima da vez Emília saíra da sala pé ante pé sem que ninguém per cebesse e logo depois voltou com a tesoura de Dona Benta na mão E deu jeito de cortar a cabeça da som bra de tia Nastácia que enrolou e foi guardar no fundo de uma gaveta LOBATO opcit p 82 Emília se apropria das histórias contadas e estabelece imaginariamente um padrão de concretude para o que é puramente ficcional o mesmo padrão que lhe permite existir nas tramas lobatianas O paradigma de prática de leitura que essa personagem constrói e representa é marcado pela subversão e pela irreverência Narizinho ao contrário esforçase por sempre agir dentro das normas embora revistaas de um aspecto lúdico inegável O ambiente dessas contações de histórias é interessantíssimo todos se sentam confortavelmente comem os quitutes de tia Nastácia e ouvem os causos contados pela avó Quando vai contar D Quixote ela tenta ler o livro mas o auditório reclama da linguagem ao que retruca Meus filhos disse Dona Benta esta obra está escrita em alto estilo rico de todas as perfeições e sutilezas de forma razão pela qual se tornou clássica Mas como vocês ainda não têm a necessária cultura para compreender as belezas da forma literária A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 33 em vez de ler vou contar a história com palavras minhas LOBATO 1967 p17 Dona Benta aponta a necessidade da mediação por não terem os interlocutores o repertório que lhes permitiria compreender o livro e ressalta de forma indireta a relevância de uma assimetria entre leitores comuns leitores preparados e obra implicitamente definindo o ato da leitura como uma atividade adequada apenas a iniciados A vantagem é que sua mediação é lúdica e interativa No correr da narrativa as crianças e os demais ouvintes podem interferir discutir e até vivenciar o narrado desdobrando a loucura quixotesca Outra característica do processo é que Dona Benta muitas vezes interpreta o texto e conduz o processo reflexivo de sua platéia Tal função fica muito explícita no volume 4 das Obras completas de Monteiro Lobato na seção dedicada às Fábulas bem como no volume 3 da mesma coleção na seção dedicada a Peter Pan O processo narrativo pode ser resumido da seguinte forma as fábulas são dadas ao leitor e a seguir após uma curta e tênue linha surge em letra menor o comentário de Dona Benta a que se seguem as respostas das crianças e da boneca as raras e deslocadas intervenções de Tia Nastácia ou ainda as falas do Visconde LOBATO 1970 p1155 No caso do romance Peter Pan a história contada é fatiada em capítulos numa técnica folhetinesca bastante eficiente no que tange à sedução do pequeno leitor Nisto soou o prrrrr Julgando que fosse alguma coruja que houvesse entrado na nursery a senhora Darling correu para lá Ao ver a janela aberta e as três camas vazias deu um grito e desmaiou Neste ponto Dona Benta interrompeu a história dei xando o resto para o dia seguinte Todos gostaram muito daquele começo e Narizinho observou que as his tórias modernas são mais interessantes que as antigas LOBATO 1970 p81 V3a José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 34 O corte viabilizou uma interessante discussão entre a avó e seus ouvintes O leitor empírico por seu turno vêse levado de um nível de ficcionalização a outro pela narrativa e nesse processo é guiado pela identificação com esta ou aquela personagem para aderir às idéias e aos pontos de vista discutidos vivendo a relação obraleitor de uma forma ativa A descrição dos aspectos materiais do livro e da leitura não vem por mero preciosismo Quando aborda questões relativas ao processo de apropriação dos textos impressos Roger Chartier aponta a presença de instruções que funcionam como uma dupla estratégia de escrita inscrever no texto as convenções sociais ou literárias que permitirão a sua sinalização classificação e compreensão empregar toda uma panóplia de técnicas narrativas ou poéticas que como uma maquinaria deverão produzir efeitos obrigatórios garantindo a boa leitura Existe aí um primeiro conjunto de dispositivos resultantes da escrita puramente textuais desejados pelo autor que tendem a impor um protocolo de leitura seja aproximando o leitor a uma maneira de ler que lhe é indicada seja fa zendo agir sobre ele uma mecânica literária que o colo ca onde o autor deseja que esteja CHARTIER 1996 p9596 Se do lado do autor há dispositivos textuais inscritos na obra impressa para servirem de guia ao receptor do lado do editor há instruções que também se fazem presentes ilustrações diagramação divisão de textos e seções são fatores que dirigem o olhar do receptor sobre os textos Tais senhas viabilizam a interação obraleitor e no caso dos livros para crianças e jovens funcionam como etapas de aproximação entre a obra e seus interlocutores As ilustrações também entram aí são pequenas iscas deixadas pelos produtores de bens culturais impressos de forma que possam fisgar os ariscos consumidores Retomando os livros lobatianos no caso das fábulas os comentários de Dona Benta são elucidativos quanto à forma literária A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 35 assumida por esse tipo textual que vem das práticas de interação oral e invade os domínios da escrita quanto à definição de critérios para que se distinguissem os bons e os maus textos literários quanto a estratégias autorais para conferir um diferencial artístico à linguagem Parecemme muitas vezes instrumentos pedagógicos disfarçados para dar aos pequenos leitores parâmetros de recepção e de formação do gosto pela leitura literária No caso de Peter Pan as discussões que ocorrem durante a contação da história e após cada corte efetuado pela avó incluem reflexões sobre práticas culturais valores morais situações históricas etc Logo no início Pedrinho interage com a contadeira de histórias Nursery repetiu Pedrinho Que vem a ser isso Nursery pronunciase nârseri quer dizer em inglês quarto de crianças Aqui no Brasil quarto de criança é um quarto como outro qualquer e por isso não tem nome especial Mas na Inglaterra é diferente São uma beleza os quartos das crianças lá com pinturas engra çadas rodeando as paredes todos cheios de móveis es peciais e de quanto brinquedo existe Boi de chuchu tem indagou Emília LOBATO op cit p75 Dona Benta traz aspectos curiosos da cultura inglesa um deles está no trecho destacado e aponta para a importância familiar e social da criança entre os britânicos em oposição ao Brasil Emília traduz em sua pergunta a construção imaginária brasileira da infância A possibilidade de aprender com o lúdico fica visível na relação entre Dona Benta e os habitantes do Sítio Após as fábulas A Assembléia dos Ratos LOBATO op cit p20 e O Veado e a Moita Idem p24 Dona Benta dá aulas aos netos à boneca e aos leitores sobre o que faz um texto ter valor literário e sobre formas sancionadas de leitura Na primeira delas a simpática e sedutora avó explica ao curioso Pedrinho José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 36 Meu filho há duas espécies de literatura uma entre aspas e outra sem aspas Eu gosto desta e detesto a quela A literatura sem aspas é a dos grandes livros e a com aspas é a dos livros que não valem nada Se eu digoEstava uma linda manhã de céu azul estou fa zendo literatura sem aspas da boa Mas se eu digo Estava uma gloriosa manhã de céu americanamente azul eu faço literatura da aspada da que merece pau Idem ibidem Certamente D Benta quer levar aos netos à boneca ao Visconde e aos leitores a estes últimos por condução e identificação o consumo da alta literatura da literatura canônica ratificada pelo discurso crítico e historiográfico sancionada pela intelectualidade dominante Os dois exemplos contrapostos na sua fala podem perfeitamente representar a escrita despida dos ornamentos retóricos característicos dos epígonos oitocentistas invasores do primeiro novecentos e a produção dos citados escritores anacrônicos e persistentes os quais dominavam o gosto literário comum A interlocução avóneta é bastante significativa Compreendo vovó disse a menina e sei de um exemplo ainda melhor No dia dos anos da Candoca o jornal da vila trouxe uma notícia assimColhe hoje mais uma violeta no jardim da sua preciosa existência a gentil Senhorita Candoca de Moura ebúrneo ornamento da sociedade itaoquense Isto me parece literatura com dez aspas E é minha filha É da que pede pauIbidem E o pau está dado Ainda que crianças ou adolescentes e portanto pouco hábeis no trato com o texto literário o que os deixaria presas fáceis para escritores de ocasião os leitores estariam tendo a chance de através da ficionalização do diálogo carinhoso entre avó e neta diálogo este recheado de instruções de leitura aprender a escolher o que ler e a ler com olhos mais atentos Quero destacar no fragmento acima a atitude dócil de Narizinho Ela não questiona a fala da avó como Pedrinho faz apenas A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 37 se deixa levar pela conversa e ratifica a opinião dos mais velhos colaborando com exemplos Na fábula O Veado e a Moita ela começa por aplaudir a linguagem usada pela avó demonstrando conhecer as regras do jogo literário Bravos vovó aplaudiu Narizinho A senhora botou nessa fábula duas belezas bem lindinhas Quais minha filha Aquele ouviu latir ao longe o perigo em vez de ouviu latir ao longe os cães e aquele pastou a benfeitora em vez de pastou a moita Se tia Nastácia estivesse aqui dava à senhora uma cocada D Benta riuse Pois essas belezinhas são uma figura de retórica que os gramáticos xingam de sinédoque LOBATO opcit p24 A menina traz para a narrativa a possibilidade de se apreciar a construção literária ainda que não se dominem os códigos basta compreender o processo do jogo o que para ela parece ser bem fácil Dessa forma Narizinho desenha o perfil de uma leitora desejável pelo escritor da época alguém dotada de inteligência certa agudeza perspicácia e predisposição para aceitar as normas que lhes são impostas ainda que sutilmente Esse paradigma de mulher leitora deve ter acalmado o público adulto destacandose pais e professores que viam em Emília exatamente o oposto uma ameaça à ordem familiar e social Na seqüência do trecho acima destacado Emília incorpora à narrativa humor e irreverência Eu sei o que é isso berrou Emília É sem com um pedaço de bodoque Ninguém entendeu Emília explicou José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 38 Sine quer dizer sem quando o Visconde quer dizer sem dia marcado ele diz sine die É um latim E do que é um pedaço de bodoque Parece que é assim mas não é Emília explicou Dona Benta Sinédoque é a synedoche dos gregos e quer di zer compreensão Idem p24 Ao contrário de Narizinho que a cada momento se esforça por aprender mais e melhor as regras do jogo literário e do mundo para o qual se prepara no Sítio da avó Emília brinca com essas mesmas regras e constrói as suas de acordo com os seus limites de imitação da infância A diversão incorporada ao texto e à vida no Sítio parece me outra das iscas lobateanas para envolver o pequeno leitor de seus livros permitindolhe experienciar no domínio quase sagrado do impresso a ludicidade do fazdeconta e a viabilidade de se reinventar a cada linha lida Em D Quixote das crianças Narizinho e Pedrinho estão com ciúmes do sucesso que Emília faz com o público leitor e metalingüisticamente registram isso no texto tentando roubar a voz e a vez de Emília Pare com a Emília vovó gritou a menina furiosa A senhora até parece o Lobato Emília Emília Emília Continue a história de D Quixote LOBATO opcit p115 Essa consciência da ficcionalidade estabelece uma relação ambígua com o leitorado apontandolhe os limites entre a realidade e a ficção E mais a menina afirma que Lobato prefere Emília isto é o dono da história tem predileção pela boneca que foge às regras e constrói novas possibilidades de ler e de viver principalmente para as meninas de então Percebendose excluída da relação entre ledor e interlocutores Emília assume o papel de D Quixote e vai para o quintal lutar contra seus próprios moinhos de vento Algo similar ao que ela faz em Peter Pan quando resolve cortar e recortar a sobra de tia Nastácia trazendo para o ambiente ficcional do Sítio a ficcionalidade outra do A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 39 romance inglês num processo de exposição da natureza imaginária e ficcional do literário Talvez se possa na adaptação de Cervantes vislumbrar o deslocamento social a que as novas mulheres estariam sujeitas seriam como ficções ficcionalizadas brinquedos para um mundo de que o lúdico estava excluído Dona Benta foi espiar pela janela e de fato viu as estrepolias que a Emília Del Rabicó estava fazendo no quintal Vestidinha de cavaleira andante toda cheia de armaduras pelo corpo e de elmo na cabeça avançava contra as galinhas e pintos com a lança em riste fazendo a bicharada fugir num vapor na maior gritaria Até o galo que era um carijó valente correra a esconderse dentro dum caixão Idem p162 Embora boneca Emília traz a marca do feminino marca esta que se nega talvez por se sentir inviável transformandose em um masculino de fantasia O processo de leitura proposto e levado a cabo por Dona Benta pautase na concepção de que o receptor não seria um simples decodificador do texto mas um agente de significados e sentidos A leitura que ali se efetiva ainda que mediada é a leitura do múltiplo do diferente do possível não a leitura do verificável Emília lê as alteridades que pode de acordo com seu parco repertório parco mas aberto sem preconceitos embora vítima deles Laura Sandroni afirma A literatura em si não tem poder Ela atua no terreno das idéias Mas pode atuar contestando o poder constituído através de representações metáforas a existência da censura em todos os tempos é prova palpável do quanto ela incomoda SANDRONI 1980 p11 O texto literário é a possibilidade da transformação ele é potência E como tal demanda alguém que se aproprie dele e que o faça produzirse em incontáveis processos significativos D Quixote realizou os textos que leu Emília os reviveu e os atualizou Para Luzia de Maria José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 40 Através do contato com o mundo simbolizado na litera tura a criança viaja para dentro ou para fora de si mesma experimentando por empatia as sensações vividas pelas personagens e esta é uma forma de se autoconhecer e de conhecer o universo que a rodeia MARIA 2002 p44 Por empatia empatia esta que chegou a incomodar as outras personagens do sítio Emília tornouse um novo paradigma para os pequenos leitores dos textos de seu criador E especifico para as pequenas leitoras Em Emília em suas estrepo lias em suas travessuras em seus questionamentos meninas e meninos encontraram e encontram alternativas para se relacionarem com os diferentes tipos de opressão a que eram e são submetidas os aquelas mais do que estes Daí poder formar leitores e leitores tão irrequietos e inconformados quanto ela Emília é um eficaz e eficiente gancho ficcional capaz de fisgar até os receptores mais ariscos Por si só a boneca de macela feita de trapos redimensiona os polarizados e divorciados segmentos culturais econômicos sociais enfim com os quais se relaciona Ela questiona tanto a cultura popular quanto à erudita relativizando seus limites e a importância que a tradição confere a cada uma Na fábula A Menina do Leite e em O Carreiro e o Papagaio ela reinventa o narrado e indicia a importância do imaginário Emília bateu palmas Viva Viva a Laurimar No nosso passeio ao País das Fábulas tivemos ocasião de ver essa história formarse mas o fim foi diferente Laurimar estava esperta e não derrubou o pote de leite porque não carregava o leite em pote nenhum e sim numa lata de metal bem fechada Lembrase Narizinho A menina lembravase Sim disse ela Lembrome muito bem A Laurinha não derramou o leite e deixou a fábula errada O certo é como vovó acaba de contar LOBATO op cit p22 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 41 Emília tem um lugar de onde fala o da imaginação que dá vida à macela que a recheia e ao retrós que representa seu olho um olho que pelo material de que é feito pode costurar o mundo como bem lhe aprouver O lugar da boneca lhe faculta a possibilidade de ver sempre alternativas para o que lhe é dado como definido e definitivo Assim finais diferentes não a assustam podem inquietá la mas isso em se tratando de Emília é o que se espera A inquietude é a mola das ações da boneca não lhe traz desconforto Narizinho por outro lado opta pela quietude da pertinência e obediência às normas e às injunções sociais Em O Carreiro e o Papagaio Emília se define como a salvação daqueles que estiverem em dificuldades extremas É quando todos estão desesperados e tontos sem saber o que fazer voltaremse para mim eEmília acudae eu vou e aplico o fazdeconta e resolvo o problema Aqui nesta casa ninguém luta para resolver as dificuldades todos apelam para mim Idem p 32 O reino da imaginação através do mecanismo do fazdeconta dá as fronteiras do lugar de Emília Inviável no mundo concreto ela funciona como uma reinvenção dos possíveis da vida transgredindo a ordem natural das coisas Wolfgang Iser traz para os estudos literários a investigação sobre os mecanismos textuais que conduzem a interação da obra com o leitor Há entre ambos uma assimetria que viabiliza o diálogo Para Iser por meio da ficção o leitor pode atravessar as fronteiras do mundo instituído uma vez que ele o refaz antropofagizando a realidade nesse processo coloco a personagem Emília que se apropria do lidoouvido e o reconfigura ressignifica transformando seu próprio mundo e o mundo empírico com o qual dialoga Segundo o teórico alemão o texto ficcional não é pleno em si carrega lacunas que implicam uma projeção do leitor A leitura surge então como uma atividade comandada sim pelo texto José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 42 a relação entre texto e leitor só pode ter êxito medi ante a mudança do leitor Assim o texto constantemen te provoca uma multiplicidade de representações do lei tor através da qual a assimetria começa a dar lugar ao campo comum de uma situação Mas a complexidade da estrutura do texto dificulta a ocupação completa desta situação pelas representações do leitor O au mento da dificuldade significa que as representações devem ser abandonadas Nesta correção que o texto impõe da representação mobilizada formase o hori zonte de referência da situação Esta ganha contornos que permitem ao próprio leitor corrigir suas projeções Só assim ele se torna capaz de experimentar algo que não se encontrava em seu horizonte ISER 1979 p8889 Pela própria indeterminação a relação textoleitor abre incontáveis possibilidades de comunicação que dependem dos mecanismos textuais de controle Os vazios as negações as supressões as cesuras as imagens os cerzidos do texto enfim dão o lugar do leitor quebrando o fluxo textual interrompendo a articulação discursiva seqüencial Dessa forma o texto pode provocar o imaginário do leitor dinamizando o impresso Assim as personagens e suas ações podem funcionar como instrumentos de provocação do imaginário do interlocutor do texto como elementos capazes de suscitar uma leitura ativa Benjamin ao traçar uma História Cultural do Brinquedo em seu livro Reflexões a criança o brinquedo a educação BENJAMIN 1984 p6770 coloca a criança não como indivíduo à parte do mundo mas como ser que transita pelas práticas culturais de sua comunidade de seu grupo social étnico etc A criança pertence ao universo de sua família e de seus amigos ela é engendrada por ele tanto quanto o engendra relendoo através de seu imaginário Vários elementos que o compõem ativam o imaginário infantil mas alguns em especial foram sendo criados com o objetivo de ludicamente aproximar a criança dos padrões sociais desejáveis para cada época e sociedade os brinquedos Carrinhos casinhas A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 43 bonecos trens peões bolas enfim o universo liliputiano BENJAMIN op cit p71 destinado às crianças vem carregado da ideologia dos pais das escolas dos países das igrejas etc Em Brinquedos e Jogos Benjamin afirma O brinquedo mesmo quando não imita os instrumentos dos adultos é confronto na verdade não tanto da criança com os adultos do que destes com as crianças Idem p72 O brinquedo então é uma concretude que projetada pelo adulto para provocar a criança testando e ampliando seus limites físicos psicológicos emocionais cognitivos tornase vivo no ato da brincadeira ganhando contornos de cumplicidade Emília é uma boneca vale lembrar A criança se apropria do brinquedo que se desloca da dominância do adulto escapando de suas previsões O processo de personificaçãoprojeção estabelecido pela criança em sua relação lúdica e imaginativa com o brinquedo vai alimentar suas criações vai lhe dar instrumentos para elaborar o real no qual se insere e que simultaneamente refaz quando instaura o reino do como se do fazdeconta Segundo Jacqueline Held A vida da criança é toda ela dominada pela brincadeira Assim a passagem de uma crença inicial à exploração lúdica dessa crença ocorre muito cedo e de maneira imperceptível HELD 1980 p44 A criança dominada que é pelo adulto e por seus valores desenvolve táticas particulares para distanciarse dessa dominação e jogar com ela subvertendoa muitas das vezes É nesse processo que a ficção literária destinada à infância deve funcionar não como instrumento de controle do imaginário infantil mas como arma de construção de indivíduos capazes de refletir sobre os valores as práticas os discursos que os cercam criando alternativas de diálogo com esse universo sem que sejam devorados por ele José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 44 Pareceme que a vocação pedagogizante da ação de Dona Benta bem como o conformismo denunciado pela obediência de Narizinho podem tanto emancipar como o que penso ser mais provável domesticar o leitor criança e ou adolescente Na contramão vem Emília que por sua inquietação seu inconformismo desestabiliza os suportes burgueses que sustentam as relações familiares e intelectuais no Sítio Emília é a representação do confronto a que alude Benjamin ao identificarse com ela e com as cenas de leitura que protagoniza o leitor tem aberto o caminho para se reinventar enquanto ser crítico e questionador enquanto indivíduo que usa sua imaginação para pensar e fazer o mundo o seu mundo Para Marisa Lajolo É por isso que se lê romance para viver por empréstimo e nesta vida emprestada aprender a viverLAJOLO 2004 p28 E é preciso se reinventar a cada leitura refazendo a si e também ao texto lido através da ação imaginária que preside esse tipo de interlocução Narizinho simboliza o ideal de filha e de neta característico do primeiro novecentos já incorpora o direito feminino à educação mas perpetua a diferença do tipo de conhecimento que pode adquirir em relação ao adquirido por Pedrinho O mais grave pareceme é que enquanto modelo de menina e de leitora Narizinho propõe a reprodução constante e imutável das regras do jogo da vida e da literatura São dois modelos que caminham em direção inversa e que simbolizam a ambigüidade da posição feminina em meados do século XX sabedoras de sua importância de sua capacidade de agir socialmente essas meninasmulheres ainda eram obrigadas a permanecer sob o controle de pais irmãos maridos e até chefes paternalistas sem direito sequer a um fazdeconta que amenizasse seu cotidiano A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 45 Tais personagens concluo funcionaram na construção de pelo menos dois perfis de leitoras novecentistas as independentes e criativas e as dependentes e mantenedoras da ordem social cultural e intelectual que as oprimia E pelo sucesso alcançado pela boneca de pano conforme atesta uma das narrativas de Lobato a inquietude de Emília se desdobrou século afora gerando novas leitoras ou melhor provocando o surgimento de novas práticas femininas e masculinas de leitura da literatura e do mundo práticas estas marcadas pelo poder de reinventar o lido e de se reinventar ao ler REFERÊNCIAS BENJAMIN Walter Reflexões a criança o brinquedo a educação Tradução de Marcus Vinícius Mazzari São Paulo Summus 1984 CHARTIER Roger Do livro à leitura In CHARTIER Roger org Práticas de leitura Tradução de Cristiane Nascimento São Paulo Es tação Liberdade 1996 p77106 COLOMER Teresa A formação do leitor literário Tradução Laura Sandroni São Paulo Global Editora 2003 HELD Jacqueline O imaginário no poder as crianças e a literatura fantástica Tradução de Carlos Rizzi São Paulo Summus 1980 ISER Wolfgang A Interação do Texto com o Leitor In LIMA Luiz Costa org A literatura e o leitor textos de estética da recepção Rio de Janeiro Paz e Terra 1979 p83132 LAJOLO Marisa Como e por que ler o romance brasileiro Rio de Ja neiro Objetiva 2004 LOBATO Monteiro DQuixote das crianças 9ed São Paulo Brasilien se 1967 Fábulas 4 v São Paulo Melhoramentos 1970 Peter Pan 3 v São Paulo Melhoramentos 1970 MARIA Luzia de Leitura e colheita livros leitura e formação de lei tores Petrópolis Vozes 2002 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 46 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 SANDRONI Laura Constância A Estrutura do Poder em Lygia Bojun ga Nunes In et alii Literatura infantojuvenil Rio de Janei ro Tempo Brasileiro 1980 p1125 WALTY Ivete Lara Camargos FONSECA Maria Nazareth Soares CURY Maria Zilda Ferreira Palavra e imagem leituras cruzadas 2 ed Belo Horizonte Autêntica 2006 47 MARINA COLASANTI CONFIGURAÇÕES ARQUETÍPICAS DO MASCULINO E DO FEMININO EM LAÇOS DE AMOR Regina Silva Michelli Qual é a hora de casar senão aquela em que o coração diz quero Marina Colasanti À GUISA DE INTRODUÇÃO MARINA COLASANTI Marina Colasanti é escritora de rara sensibilidade Seus contos refletem o contato estreito com o simbólico e com o inconsciente Imagens metafóricas conduzem a organicidade de seu texto se se pode falar assim Em outras palavras Marina Colasanti assume a intencionalidade de suas narrativas fugirem à linguagem comum Eu nunca trabalho com realismo e nem com linguagem coloquial Gosto da linguagem inventiva que é a linguagem poética COLASANTI 2008 p1 E me ajoelho diante de uma bela metáfora COLASANTI 1997 p129 Em seu conceito sobre contos de fadas deixa clara a associação que existe entre este tipo de texto e o mergulho no humano profundo Quando escrevo poesia ou conto de fadas que são farinha do mesmo saco vou buscar a matéria prima no fundo bem no fundo da alma COLASANTI op cit p128 Em entrevista garante que contos de fadas são metáforas do inconsciente completamente afastados de intenções pedagógicas ou de autoajuda Creo en la fuerza de la literatura como elemento es tructurante lejos de las obviedades de lo previsible de los recados embutidos En cuanto a los cuentos de hadas los verdaderos cuentos de hadas aquellos que estremecen el alma dialogando silencionamiento con ella su esencia está en el origen surgen de las cama das más profundas del inconsciente A veces al escri birlos siento como si yo fuera apenas el receptor de José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 48 historias distantes que por misterio o lujo son con tadas dentro de mí COLASANTI 2000 p1 Não há fadas nem bruxas em sentido explícito nos contos mas uma atmosfera de magia impregna cada linha convidando o leitor a ingressar em um mundo que não é bem o do faz de conta da tradição mas com ele estabelece laços O cenário se configura com castelos reis princesas unicórnios metamorfoses remetendo à herança do maravilhoso porém contos de fadas são como a poesia as pérolas da criação literá ria Estou aqui me referindo a contos de fadas de ver dade não a qualquer conto que só por ter príncipe donzela e dragão se pretende um conto de fada Conto de fada verdadeiro é aquele que serve para qualquer idade em qualquer tempo O que comove E que não morre Contos de fadas são raros e preciosos COLA SANTI 1992 p 71 Ainda que encharcado dessa herança dos contos de fadas da tradição seu texto é contemporâneo e traz as marcas de alguns dos paradigmas que estruturam os tempos e a sociedade em que vive a escritora com uma diferença porém é através da linguagem metafórica e de um tratamento simbólico que afloram nas narrativas os conflitos existenciais da atualidade o mundo complexo dos sentimentos e das relações humanas Os contos de fadas de Marina Colasanti representam um contato direto com o que há de mais profundo na alma humana Afinal a literatura permite essa e outras conexões entre o fascínio da linguagem e o instigante mundo das realidades Para Marisa Lajolo e Regina Zilberman as personagens dos contos são todas de estirpe simbólica tecelãs princesas fa das sereias corças e unicórnios em palácios espe lhos florestas e torres não têm nenhum compromisso com a realidade imediata Participam de enredos cuja efabulação é simples e linear dos quais emergem signi ficados para a vivência da solidão da morte do tempo do amor O clima dos textos aponta sempre para o in sólito e o envolvimento do leitor se acentua através do trabalho artesanal da linguagem extremamente melo diosa e sugestiva LAJOLO ZILBERMAN 1985 p159 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 49 Nas narrativas da escritora percebese o foco que ilumina as relações afetivas entre personagens femininas e masculinas As heroínas se destacam em meio à trama apesar do jugo a que algumas se submetem no fundo imagens representativas de papéis efetivamente desempenhados por mulheres na sociedade não fosse a transfiguração poética que sofre a realidade sob a escritura de Colasanti A ênfase indubitavelmente recai sobre o feminino Eu sou antes de mais nada uma fêmea da minha espécie uma mulher com todos os atributos e todas as cargas das mulheres Só que intensamente crítica 2005 p1 o que se deve em parte ao contato com o movimento feminista e as conseqüências provocadas por esse movimento no âmbito das funções sociais ligadas ao gênero tanto no que se refere à atuação da mulher quanto à do homem pois ambos tiveram de reestruturar seus papéis frente às mudanças ocorridas Pensadora e escritora ativa Marina Colasanti assinala sua participação na imprensa e na televisão Ela trabalhou como jornalista em diferentes revistas sendo editora da Nova ainda atuando como cronista em alguns periódicos Via de regra detém seu olhar em questões que envolvem o comportamento interpessoal e as relações afetivas evidenciando em seus textos a pluralidade de ser mulher em seu relacionamento com a figura masculina Publicou algumas obras especificamente sobre a mulher e o amor como A nova mulher 1980 Mulher daqui pra frente 1981 E por falar em amor 1984 Este último parte da premissa de que é necessário reestruturar a visão sobre o amor E nessa viagem descobri que embora seja sempre tratado como um sentimento único igual para homens e mulheres o amor não o é pela simples razão de que homens e mulheres são diferentes e desempenham diferentes papéis em relação a ele Tentei portanto detectar as formas masculina e feminina de amor e os problemas que José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 50 ocorrem quando procuramos fazer desses dois sentimentos uma coisa só E descobri também que tendo forjado praticamente toda a teoria amorosa da história da humanidade à qual as mulheres tentaram se adequar os homens porém pouco se manifestaram quando se trata de falar do seu amor pessoal do seu apaixonarse Assim a razão amorosa fala pela boca dos homens enquanto a emoção amorosa fala pela boca das mulheres Pareceume uma boa hora para misturar as duas coisas COLASANTI 1987 p1314 Neste estudo proponhome também a uma viagem por alguns contos de Marina Colasanti tendo por objetivo exemplificarmos configurações paradigmáticas identitárias do masculino e do feminino em sua relação amorosa Comecemos porém pela visão dos arquétipos ACERCA DE ARQUÉTIPOS E IDENTIDADES Para Carl Gustav Jung o conceito de inconsciente restringese em princípio a designar o estado dos conteúdos reprimidos ou esquecidos Em seus textos ele defende a existência de um inconsciente pessoal formado por experiências ou aquisições pessoais que repousa sobre uma camada mais profunda inata de natureza universal que é o inconsciente coletivo Jung caracteriza o inconsciente como coletivo por possuir conteúdos e modos de comportamento que são os mesmos em toda parte e em todos os indivíduos constitui um substrato psíquico comum de natureza psíquica suprapessoal que existe em cada indivíduo conteúdos capazes de serem conscientizados 2007 p15 Os conteúdos do inconsciente coletivo são chamados por ele de arquétipos definidos como imagens primordiais imagens universais que existiram desde os tempos mais remotos 2007 p16 tendência instintiva A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 51 que pode se manifestar como fantasias e revelar muitas vezes a sua presença apenas através de imagens simbólicas JUNG 1977 p69 Assim o herói o monstro a criança o velho a mãe são figuras arquetípicas Arquétipos são representações de motivo ou tema que podem se manifestar através de diferentes imagens e se repetem em qualquer época ou lugar do mundo Jung considera que Outra forma bem conhecida de expressão dos arquétipos é encontrada no mito e no conto de fada JUNG 2007 p17 textos que permitem a expressão da alma cujo conteúdo com pouquíssimas variações aparece em países geográfica e temporalmente afastados Buscando a definição de mito Junito Brandão aproximase das concepções junguianas Talvez se pudesse definir mito dentro do conceito de Carl Gustav Jung como a conscientização dos arquétipos do inconsciente coletivo quer dizer um elo entre o consciente e o inconsciente coletivo BRANDÃO2002a p37 compreendendo por inconsciente coletivo a herança das vivências das gerações anteriores Desse modo o inconsciente coletivo expressaria a identidade de todos os homens seja qual for a época e o lugar onde tenham vivido BRANDÃO op cit p37 Pretendese neste trabalho delinear identidades de gênero com base em estudos míticoarquetípicos Focalizase o olhar em contos de Marina Colasanti buscando iluminar perfis paradigmáticos que configurem aspectos do ser feminino e do masculino em sua interrelação A respectiva fundamentação teórica apresenta como esteio os estudos da psiquiatra e analista junguiana Jean Shinoda Bolen que propõe arquétipos femininos e masculinos a partir da configuração mítica dos deuses olímpicos Sob esta perspectiva há também a obra de M Esther Harding Os mistérios da mulher e a de Dulcinéa Monteiro Mulher feminino plural sobre os arquétipos masculinos Rei guerreiro mago amante de Robert Moore e José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 52 Douglas Gillette Jean Bolen contudo oferece uma estrutura analítica semelhante para ambos os gêneros trabalho referendado por Junito Brandão que desenvolve o estudo Ela considera que deusas e deuses podem ser analisados como representações arquetípicas esclarecendo padrões comportamentais Divide as seis deusas mais famosas do Olimpo Héstia Vesta para os romanos Deméter Ceres Hera Juno Ártemis Diana Atenas Minerva Afrodite Vênus acrescentando Perséfone Prosérpina em três categorias que se interrelacionam A primeira formada por Ártemis Atenas e Héstia configura as deusas virgens que representam o atributo de independência e autosuficiência das mulheres são deusas não passíveis de se enamorarem por alguém permanecendo invioladas Explica Bolem que Como arquétipos elas expressam a necessidade de autonomia e a aptidão que as mulheres têm de enfocar sua percepção naquilo que é pessoalmente significativo BOLEN 2005 p39 sendo capazes de atingir os objetivos traçados Junito Brandão referindose ao trabalho da psiquiatra citada caracteriza essas deusas como invulneráveis pois jamais se deixaram dominar e reprimir por seus pares masculinos olímpicos ou quaisquer mortais BOLEN2002 p343 O segundo grupo formado pelas deusas Hera Deméter e Perséfone corresponde ao que Bolen classifica como o das deusas vulneráveis representando respectivamente os papéis tradicionais de esposa mãe e filha São deusasarquétipos orientadas para o relacionamento e suas identidades e bemestar dependem de um relacionamento significativo Expressam as necessidades que as mulheres têm de adoção e vínculo 2005 p40 de afiliação independente do sofrimento que essas relações podem lhes trazer A configuração deste arquétipo delineia um comportamento feminino atencioso e receptivo em sintonia com o outro A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 53 As deusas alquímicas ou transformativas caracterizam o terceiro grupo formado por uma única deusa Afrodite ou Vênus para os romanos Deusa da beleza e do amor no dizer de Brandão sujeita a múltiplas transformações 2002 p343 Afrodite simboliza o poder transformativo e criativo do amor BOLEN 2005 p310 Bolen associa a deusa alquímica às duas categorias anteriores pois Afrodite era capaz de manter a autonomia de fazer o que desejava sem se afastar dos objetivos por interferências alheias como as deusas virgens embora se ligasse afetivamente a vários deuses e mortais como as deusas vulneráveis ao contrário delas porém a deusa da beleza jamais sofreu ou foi vitimada na vivência da paixão O que caracteriza este arquétipo é o valor dado à experiência emocional com o outro sem a preocupação com compromissos e vínculos a longo prazo pode ser vivenciado através de relação física ou de um processo criativo entendendose o contato com o outro como sinônimo de comunicação e comunhão quer no nível físico ou no emocional e espiritual produzindo profundas conexões de amor e crescimento Ao trabalhar com os deuses olímpicos visando à configuração de arquétipos masculinos Bolen destaca a ligação com o patriarcado cujos valores predominantes enfatizam a aquisição de poder e a racionalidade A autora divide os oito principais deuses em dois grandes grupos No primeiro Zeus Júpiter para os romanos Posêidon Netuno e Hades Plutão representam os três aspectos do arquétipo paterno bem como os três deuses irmãos que distribuíram entre si os domínios do pai Cronos Saturno depois de este ser destronado a Zeus coube o céu e a supremacia do universo a Posêidon o mar a Hades o mundo inferior subterrâneo ou Hades Assim como o mundo na mitologia a psique masculina se dividiu em 1 o reino mental consciente do poder da vontade e do pensamento Zeus 2 o reino das emoções e dos instintos José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 54 Posêidon que é geralmente suprimido desvalorizado e às vezes expulso do campo da nossa consciência e 3 o reino indistinto e temido dos padrões invisíveis e dos arquétipos impessoais Hades que só em sonhos costuma ser vislumbrado BOLEN 2002 p74 O céu domínio de Zeus representa a luz e a consciência Este deus articula o poder a autoridade e o domínio manifestando atitudes fundamentadas em controle raciocínio lógico e força de vontade Apresenta temperamento autoritário desempenhando atividades de comando graças à visão objetiva da realidade Caracterizase pelo acúmulo de poder e bens o que lhe garante alta visibilidade e prestígio Posêidon é um deus primitivo regido por emotividade e grande investimento afetivo e emocional O mar seu domínio representa o inconsciente o fundo do mar é o reino dos sentimentos pessoais e dos instintos reprimidos Posêidon manifesta um temperamento violento instável sendo também caracterizado por atividades criativas intuição e reatividade emocional Hades configura a introspecção e a invisibilidade dos que vivem isolados ou reclusos Como seu domínio é o reino inferior esse deus associase à descida à noite escura da alma BOLEN 2002 p149 à depressão e à morte ao inconsciente pessoal e coletivo Mas ele representa também a riqueza do mundo interior cuja reclusão pode ser fonte de criatividade e sabedoria O segundo grupo é composto pelos filhos olímpicos de Zeus Apolo é o deus do sol da luz da música e da poesia Hermes Mercúrio é o deus mensageiro hábil negociador trapaceiro guardião das estradas Ambos são os filhos eleitos mantendose sem se casar Segundo Bolen esses dois deuses definidos pelo distanciamento emocional e pela atividade mental são os que mais se coadunam ao mundo patriarcal Ares Marte é o deus da guerra cuja ação tem por móvel a ira ou a lealdade é um deus destrutivo A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 55 mas também amoroso Hefesto Vulcano é o deus da forja coxo gerado apenas por Hera é um deus criativo artista e solitário mesmo tendose casado com a bela Afrodite Os dois Ares e Hefesto são desprezados pelos demais deuses filhos também rejeitados por Zeus Para a escritora citada esses dois deuses se expressavam através de atividades físicas mais manuais que mentais com predomínio da emoção sobre a razão Brandão 1999 p258 opõe Apolo a Ares o primeiro representa a reflexão e a prudência enquanto o segundo se destaca pelos músculos e pela força física Dioniso Baco deus do vinho do êxtase e do entusiasmo é uma figura ambivalente com uma mãe mortal Sêmele e um pai divino Zeus em cuja coxa completou o tempo necessário para nascer Para Junito Brandão ékstasis êxtase é um sair de si interno uma espécie de transformação uma catarse enthusiasmós entusiasmo é deus dentro de nós é a posse o mergulho de Dioniso BRANDÃO op cit p263 o que estimula o rompimento com interditos de diferentes ordens Para Bolen Dioniso como deus arquétipo e homem era próximo da natureza e das mulheres O reino místico e o mundo feminino eramlhe familiares BRANDÃO 2002 p362 Dioniso configurase como elemento perturbador capaz de criar conflitos e de levar à loucura ao mesmo tempo é associado ao amor à libertação também um arquétipo reprimido nos homens por se ligar a traços femininos a temperamento sonhador e místico a paixão e sensualidade Dioniso traz a marca das oposições violentas como êxtase e horror vida e morte Analisando comparativamente a classificação arquetípica proposta por Jean Bolen para os dois gêneros observase que Dioniso como Afrodite é um deus transformador Apolo e Hermes correspondem às deusasvirgens Hefesto e Ares às vulneráveis Tal correlação justificase porque os arquétipos estão associados a dons e problemáticas existenciais as figuras psíquicas são bipolares e José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 56 oscilam entre o seu significado positivo e negativo JUNG 2007 p184 e estão potencialmente presentes nos seres humanos independente de questões de gênero Pode haver o predomínio de um arquétipo sobre os demais como a alternância de um e outro ou a coexistência de vários em um único ser ao longo da vida Tanto Bolen como Brandão aprofundam o estudo de cada deus e deusa individualmente segundo a narrativa míticobiográfica de cada um destacando atribuições e funções arquetípicas Interessanos dar relevo à caracterização geral das deusas e trabalhar com o grupo dos arquétipos paternos todos eles deuses reis em seus domínios ainda que seja possível realçar algum deus ou deusa específicos que esclareçam a configuração identitária apresentada Entre a espada e a rosa Qual é a hora de casar senão aquela em que o coração diz quero A hora que o pai escolhe Isso descobriu a Princesa na tarde em que o Rei mandou chamála e sem rodeios lhe disse que tendo decidido fazer aliança com o povo das fronteiras do Norte prometera dála em casamento ao seu chefe Se era velho ou feio que importância tinha frente aos soldados que traria para o reino às ovelhas que poria nos pastos e às moedas que despejaria nos cofres Estivesse pronta pois breve o noivo viria buscála COLASANTI 1992 p 23 Marina Colasanti inicia seu conto op cit p 2327 lançando o leitor diretamente no conflito da narrativa logo estabelecido A primeira frase afiança a idéia inicial de liberdade de escolha pessoal A segunda joga por terra tal pretensão levando o leitor para reinos provavelmente medievais onde impera a ordem do pai O Rei na narrativa atualiza o arquétipo do rei existente em Zeus detentor do poder ele controla o desejo do outro subju gandoo aos seus ditames em princípio racionais A única coisa que pre tende o Rei é a aquisição de bens ampliando sua esfera de poder e controle ao estabelecer a aliança política com o povo das fronteiras Sentarse no A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 57 topo com poder autoridade e domínio sobre um território escolhido é a posição de Zeus BOLEN 2002 p83 A marca do ponto cardeal povo das fronteiras do Norte orientação que aparece em vários contos de Cola santi evidencia o rumo indicado pela bússola representando simbolica mente o caminho a ser seguido segundo os parâmetros ditados pela socie dade A personagem feminina a filha é percebida como propriedade e o casamento como meio para consolidar alianças e aumentar domínios Ar quetipicamente Zeus é o pai autoritário que tem a palavra final BOLEN op cit p89 Diante desse contexto o comportamento adequado à Princesa é a obediência a passividade Estivesse pronta pois breve o noivo viria buscála Esses são atributos das deusas vulneráveis em que se destaca Perséfone a filha de Deméter deusa do cereal e da colheita e Zeus Na narrativa mitológica o pai assiste conivente ao rapto de Perséfone por Hades enquanto a mãe desesperada se enclausura provocando a falta de alimentos nada conseguia nascer nos campos Como arquétipo Perséfone representa a mulher tutelada predisposta não a agir mas a ser conduzida pelos outros a ser complacente na ação e passiva na atitude BOLEN 2005 p277 Perséfone é Coré a donzela arquétipo analisado por Jung 2007 p181202 A Princesa do conto porém não se resigna tão facilmente ao destino traçado por outrem Embolada na cama aos soluços implorou ao seu corpo à sua mente que lhe fizessem achar uma solução para escapar da decisão do pai Afinal esgotada adorme ceu E na noite sua mente ordenou e no escuro seu corpo ficou E ao acordar de manhã os olhos ainda ardendo de tanto chorar a Princesa percebeu que algo estranho se passava Com quanto medo correu ao espelho Com José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 58 quanto espanto viu cachos ruivos rodeandolhe o quei xo Não podia acreditar mas era verdade Em seu ros to uma barba havia crescido Passou os dedos lentamente entre os fios sedosos E já estendia a mão procurando a tesoura quando afinal compreendeu Aquela era a sua resposta Podia vir o noivo buscála Podia vir com soldados suas ovelhas e suas moedas Mas quando a visse não mais a quereria Nem ele nem qualquer outro escolhido pelo Rei CO LASANTI 1992 p23 Operase uma transformação na Princesa imersa em lágrimas e a água é um princípio feminino em cuja significação simbólica destacamse as idéias de fonte de vida meio de purificação centro de regenerescência CHEVALIER GHEERBRANT 2002 p15 na visão de Jung A água é o símbolo mais comum do inconsciente 2007 p29 A mudança parte de sua súplica a forças internas ainda desconhecidas mente e corpo O primeiro ordena estabelecendo uma nova ordem o corpo fica permanece e promove a metamorfose Não há fada madrinha como auxiliar mágico embora a circunstância insólita emerja aproximandose do maravilhoso dos contos de fadas tradicionais O fenômeno processase durante a noite que para os gregos é filha do Caos e da Terra e engendrou o sono e a morte os sonhos e as angústias a ternura e o engano momento de transformação de germinação de mudanças que vão desabrochar em pleno dia como manifestação de vida CHEVALIER GHEERBRANT 2002 p639640 A manhã surge com novas possibilidades para a heroína A metamorfose que nas narrativas maravilhosas é provocada geralmente por bruxas aqui é fruto do apelo a forças internas do mergulho no inconsciente concretizandose no corpo pela aparição da barba A necessidade de tal evidência física indicia que a princesa não dispunha de meios como a palavra para defender qualquer ponto de vista que fosse diferente do paterno Sem poder externar o A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 59 próprio desejo a Princesa não consegue subtrairse à vontade do Rei seu pai rechaçando o pretende escolhido por ele Não pode repudiar mas pode ser repudiada Por meios transversos ela consegue fugir desobedecer ao cumprimento da ordem do Pai Primeiro chora busca encontrar uma solução para o casamento indesejado e adormece Ao acordar percebe a mudança instaurandose uma gradação que se repetirá ao final do conto medo diante do novo que se apresenta estranho espanto tomada de consciência pelo enfrentamento no espelho compreensão assimilação do ocorrido A mudança que brota de seu interior assemelhase às mensagens aparentemente incompreensíveis do inconsciente que gradativamente são conscientizadas Como Perséfone a Princesa vai ao Hades esgotada adormeceu trajetória que oferece a possibilidade de transformação da jovem em Rainha Simbolicamente o Inferno pode representar camadas mais profundas da psique um lugar onde as memórias e sentimentos foram enterrados o inconsciente pessoal e onde as imagens padrões instintos e sentimentos que são arquetípicos e compartilhados pela humanidade são encontrados o inconsciente coletivo BOLEN op cit p282 O espelho reflete a própria imagem e no conto evidencia a ambigüidade reinante na figura feminina da princesa corpo de mulher com barba de homem Ao buscar em seu interior a solução para a situação problemática em que se encontrava a personagem efetiva o encontro consigo mesma Iniciase na narrativa o confronto que a heroína vai precisar enfrentar com seu interior e com o espaço social por onde se desloca para que uma identidade ainda adormecida desabroche Quem caminha em direção a si mesmo corre o risco do encontro consigo mesmo O espelho não lisonjeia mostrando fielmente o que quer que nele se olhe ou seja aquela face que José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 60 nunca mostramos ao mundo porque a encobrimos com a persona a máscara do ator Mas o espelho está por detrás da máscara e mostra a face verdadeira JUNG op cit p30 O que pensara a jovem efetivamente acontece Salva a filha perdiase porém a aliança do pai Que tomado de horror e fúria diante da jovem barbada e alegando a vergonha que cairia sobre seu reino diante de tal estranheza ordenoulhe abandonar o palácio imediatamente COLASANTI op cit p24 Zeus era o senhor dos raios símbolo do poder punitivo e do trovão Até os dias de hoje quando ousamos ir contra uma proibição patriarcal esperamos que um raio caia sobre nossa cabeça BOLEN op cit p77 O pai é o símbolo da geração da posse da dominação do valor Nesse sentido ele é uma figura inibidora castradora nos termos da psicanálise CHEVALIER GHEERBRANT op cit p678 Como Pele de Asno princesa de conto homônimo de Perrault a heroína de Colasanti leva alguns objetos que permitem a identificação de seu nobre estatuto social em uma trouxa pequena ela pôs o que lhe era valioso suas jóias e um vestido de veludo cor de sangue 1992 p24 O sangue remete à dor à morte e à vida a Princesa abandona a condição confortável de que dispunha no palácio cujo preço era a dependência e a submissão arquétipo da jovem Perséfone e se lança ao novo a uma nova identidade e à vida não conformada pelo pai Simbolicamente morre a filha e a princesa para nascer uma nova identidade em princípio ambígua a jovem barbada Dito de outra forma morre a menina para dar lugar à mulher passagem que não se efetiva sem alguma dor e se associa ao sangue menstrual Começa a se tecer a passagem da vivência do arquétipo da deusa vulnerável submissa ao poder masculino à da independência da deusa virgem O texto de Marina Colasanti é riquíssimo em metáforas permeado de linguagem poética de tal forma que a cada passo A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 61 tornase interessante transcrevêlo Sobre a saída da princesa do palácio registra a escritora E sem despedidas atravessou a ponte levadiça passando para o outro lado do fosso Atrás ficava tudo o que havia sido seu adiante estava aquilo que não conhecia 1992 p24 O corte entre Rei e Princesa é abrupto Quando o filho não se enquadra no modelo desejado recai sobre ele a rejeição como se observa na mitologia Há um fosso separando espaços tempos e relações atrás o passado o castelo conhecido a proteção do pai com sua conseqüente exigência de submissão à frente o futuro o risco do novo a liberdade Ela não hesita em atravessar de um lado a outro transpondo barreiras Há uma travessia uma morte e um renascimento A trajetória da princesa sua errância pelas aldeias evidencia o conflito a desarmonia entre aparência e essência Na primeira aldeia busca serviços femininos conforme sua identidade de mulher mas é rejeitada devido à barba que lhe confere um aspecto masculino Na aldeia seguinte resolve oferecerse para tarefas masculinas serviços de homem mas o corpo denuncia características femininas sendo novamente rejeitada Na terceira aldeia procura livrarse inutilmente da barba cortandoa com uma tesoura a barba cresce mais cacheada brilhante e rubra do que antes 1992 p24 A heroína do conto tenta encontrar uma solução eliminando o problema que em primeira instância lhe salvara Tornase necessário porém efetivar a aprendizagem de conviver com a barba descobrir o masculino o animus dentro de si arquétipo explicado mais à frente Como deusa virgem com a consciência enfocada BOLEN op cit p193 no que deseja sem mais nada pedir a princesa vende suas jóias e obtém uma couraça uma espada e um elmo Se a aliança com o pai já fora perdida agora se rompe simbolicamente o vínculo com a mãe citada apenas esta vez no discurso mãe distante José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 62 aparentemente morta o que se coaduna à impotência feminina nas famílias patriarcais E tirando do dedo o anel que havia sido de sua mãe vendeuo para um mercador em troca de um cavalo COLASANTI op cit p25 Para que a filha ganhe autonomia é necessário romper os elos de dependência com os pais o que vai lhe permitir a construção de uma identidade madura Prossegue a história Agora debaixo da couraça ninguém veria seu corpo debaixo do elmo ninguém veria sua barba Montada a cavalo espada em punho não seria mais homem nem mulher Seria guerreiro Idem p25 Há uma camuflagem uma aparência que resguarda as marcas de ambigüidade permitindo à Princesa a articulação de uma nova identidade guerreiro e um novo arquétipo a deusa virgem Atenas única deusa do Olimpo a usar couraça capacete escudo e lança O envoltório tanto protege a Princesa das investidas alheias como lhe permite enfrentar o outro Atenas deusa da sabedoria uniase aos homens como seus iguais como uma supervisora do que eles faziam Era a pessoa mais calma na batalha e a melhor estrategista Sua maneira de se adaptar era a identificação com os homens ela se tornava como um deles BOLEN op cit p68 Na qualidade de guerreiro lembrando Joana DArc e Diadorim a Princesa conquista o respeito de todos Sua coragem bravura e vitória em batalhas e torneios fazemna conhecida A couraça falava mais que o nome COLASANTI op cit p25 As suspeitas que seu comportamento levanta obrigamna porém à errância de castelo a castelo Quem era aquele cavaleiro ousado e gentil que nunca tirava os trajes de batalha Por que não participava das festas nem cantava para as damas 1992 p25 A Princesa guerreiro desempenha atributos viris sem contudo perder a gentileza feminina misto de andrógino quase uma supra identidade articulando o feminino princesa e o masculino guerreiro e não A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 63 guerreira Atenas é um arquétipo feminino ela demonstra que pensar bem manter a calma no ponto mais culminante de uma situação emocional e desenvolver boas táticas no meio do conflito são traços naturais para algumas mulheres BOLEN op cit p120 Apenas em espaços livres cavalgando no campo sozinha consegue livrarse temporariamente da viseira permitindose ser A narrativa conduz a Princesa ao encontro com o outro que se tornará desejado Assim de castelo em castelo havia chegado àquele governado por um jovem Rei COLASANTI op cit p25 Surge um segundo Rei na história que diferentemente do primeiro a elege para as batalhas os torneios as caçadas os exercícios os conselhos várias vezes salvando um a vida do outro Uma inquietação começa a se instalar O Rei estranha o fato de seu melhor amigo não se dar a conhecer tirando o elmo Intriga e angustia o jovem Rei o sentimento novo que percebe nascer em si devoção mais funda por aquele amigo do que a que um homem sente por outro homem Idem p26 Por seu turno a princesa exercita sua transformação De dia é guerreiro e luta empunhando sua espada À noite começa a recuperar sua aparência feminina encostava seu escudo na parede vestia o vestido de veludo vermelho soltava os cabelos e diante do seu reflexo no metal polido suspirava longamente pensando nele Idem p26 O conflito se instala na alma do Rei ora evita e foge dela ora percebendo que tal comportamento não a afasta de seus pensamentos só de sua visão mandava chamála para arrepender se em seguida e pedirlhe que se fosse Idem p26 Quem já se sentiu inesperadamente tomado por ondas afetivas poderosas que sobem das profundezas do próprio ser ou percebeu seu corpo tremer e sacudir de dor ódio ou sede de vingança passou por uma experiência direta de Posêidon BOLEN 2002 p115 Tormento é José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 64 a palavra empregada pelo narrador para caracterizar o que se passa no coração daquele jovem Por fim como nada disso acalmasse seu tormento ordenou que viesse ter com ele E em voz áspera lhe disse que há muito tempo tolerava ter a seu lado um cavaleiro de rosto sempre coberto Mas que não podia mais confiar em alguém que se escondia atrás do ferro Tirasse o elmo mostrasse o rosto Ou teria cinco dias para deixar o castelo COLASANTI op cit p26 O jovem Rei diferente do Rei pai exercita o arquétipo de Posêidon Movido por emoção sentimento intuição e instinto este arquétipo associase à destrutividade e ao humor tempestuoso e intempestivo à instabilidade emocional bem como a aspecto pacífico e misericordioso Jean Bolen explica que Posêidon também é o arquétipo por meio do qual pode ser experimentado um domínio de grande profundidade e beleza Acesso às profundezas emocionais é um aspecto desprezado da psique masculina desvalorizado e reprimido pelas culturas patriarcais 2002 p121 O Rei do nosso conto é sensível à presença do outro desenvolvendo sentimentos de afeto e atração por alguém que aparentemente é um amigo de batalha O narrador deixa claro porém que é mais do que afeto o que sentem a Princesa e o Rei Há uma mútua atração fruto da paixão nascente A paixão e o amor são sentimentos perturbadores e enriquecedores e se por um lado há o conflito interior instalado na alma do Rei há também a intuição que o leva a exigir o desmascaramento do outro como se pressentisse algo além da aparência A angústia gera comportamentos contraditórios nele terminando por instalar a agressividade a voz áspera e o ultimato para que o outro se revele Tal como no início a princesa se refugia em seu quarto prisioneira da situação em que se encontra Ela cria um impasse para si acredita que ao se desvelar para o Rei a barba atrairá a rejeição A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 65 dele para sua condição de mulher enquanto o corpo feminino será o obstáculo para continuar guerreiro Novo embate se trava no interior da Princesa Dobrada sobre si mesma aos soluços implorou ao seu corpo que a libertasse suplicou à sua mente que lhe desse uma solução Afinal esgotada adormeceu E na noite sua mente ordenou e no escuro seu corpo brotou E ao acordar de manhã com os olhos inchados de tanto chorar a Princesa percebeu que algo estranho se passava Não ousou levar as mãos ao rosto Com medo quanto medo Aproximouse do espelho polido procurou seu reflexo E com espanto quanto espanto Viu que sim a barba havia desaparecido Mas em seu lugar rubras como os cachos rosas lhe rodeavam o queixo COLASANTI op cit p27 As palavras recuperam a situação inicial intensificando as reações emocionais quanto medo quanto espanto Apesar da experiência anteriormente vivida o novo volta a se instalar insólito Em princípio a Princesa não compreende como da primeira vez a resposta que obtém E perguntavase de que adiantava ter trocado a barba por flores Idem p27 A experiência agora porém inundaa com o perfume das rosas sentiase embriagar de primavera Idem p27 estação das flores e do amor do renascimento da vida Gradativamente operase a metamorfose as rosas vão perdendo a cor vermelha passando a vinho despetalandose sem que novas flores nasçam ao final Só um delicado rosto de mulher Idem p27 A Princesa recobra sua bela aparência e pode aparecer diante do Rei com seu vestido cor de sangue sangue da virgindade que vai perder situação simbolicamente representada nas flores que se despetalam Nova travessia se efetiva agora de deusa virgem a deusa vulnerável mulher esposa desabrochando em primavera Era José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 66 chegado o quinto dia A Princesa soltou os cabelos trajou seu vestido cor de sangue E arrastando a cauda de veludo desceu as escadarias que a levariam até o Rei enquanto um perfume de rosas se espalhava no castelo Idem p27 O conto permite a percepção de diferentes arquétipos na atuação da Princesa Ao final ela é a deusa alquímica capaz de operar transformações em si e no outro Afrodite em pleno gozo de sua feminilidade deusa do amor e da beleza A quem quer que Afrodite impregne com beleza tornase irresistível Resulta uma atração magnética a química acontece entre os dois e eles desejam união acima de tudo BOLEN 2005 p311 A consciência de Afrodite é enfocada e receptiva o que caracteriza respectivamente a configuração arquetípica das deusas virgens e das vulneráveis Atinge o que deseja sem abdicar da interação com o outro Como deusa alquímica é sujeita a múltiplas transmutações Com efeito para chegar ao ouro símbolo também do amor é necessário que a matéria inferior se despoje das gangas impuras até atingir uma pureza total Na realidade o ouro é o aperfeiçoamento de metais inferiores BRANDÃO 2002 p351 O título do conto Entre a espada e a rosa articula a vivência do masculino e do feminino estabelecendo o entrelugar ou a possibilidade de se deslizar de um a outro lado sem fossos exercitando os dois o que se manifesta em sintonia com as identidades cambiantes da pósmodernidade A espada simboliza o combate a luta pelo que se deseja ou acredita é ação ligada ao masculino ao arquétipo do animus o elemento masculino que existe no inconsciente de toda mulher Segundo MarieLouise von Franz O lado positivo do animus pode personificar um espírito de iniciativa coragem honestidade e na sua forma mais elevada de grande profundidade espiritual além de poder lançar uma ponte para o self através da atividade criadora 1997 p195193 A rosa representa a A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 67 delicadeza e a beleza que encantam o perfume que inebria a sensibilidade e a emoção índices do arquétipo feminino da anima o elemento feminino que há em todo homem JUNG 1977 p31 Anima é a personificação de todas as tendências psicológicas femininas na psique do homem os humores e sentimentos instáveis as intuições proféticas a receptividade ao irracional a capacidade de amar a sensibilidade à natureza e por fim mas nem por isso menos importante o relacionamento com o inconsciente FRANZ 1977 p177 No conto observase que as figuras masculinas pouca maleabilidade apresentam São Reis detentores do poder o espaço de atuação já foi conquistado Assinalam porém comportamentos diferentes expressando arquétipos também diferentes O Rei pai articula de forma mais inflexível o poder não há alternativa possível à filha que não se submete às suas ordens e desejos O segundo rei expressa melhor o arquétipo do amante não conseguindo se subtrair às suas emoções e aos seus sentimentos por mais conflituosos que pudessem ser afinal seu interesse recai sobre aquele que aparentemente é um homem amigo de batalhas A figura feminina tangencia diferentes arquétipos evoluindo de uma situação inicial dependente para a liberdade e a autonomia conquistadas à espada típica atitude das deusas invulneráveis para ao final estabelecer a desejada relação amorosa com o outro Luz de lanterna sopro de vento Luz de lanterna sopro de vento COLASANTI 1997 p102105 é um conto que te matiza a espera feminina e a permanência do vínculo afetivo entre o casal Indo o marido para a guerra a mulher acende a lanterna do lado de fora da casa a fim de trazêlo de volta Dia após dia ela realiza a mesma ação mas ao amanhecer José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 68 invariavelmente encontra a lanterna apagada creditando ao vento a ação de extinguir a chama À noite antes de deitar novamente acendeu a lanterna que à distância haveria de indicar ao seu homem o caminho de casa COLASANTI op cit p102 Como as deusas vulneráveis a personagem feminina confere sentido à vida através da relação travada com o companheiro a atração motivacional é o relacionamento mais do que o empreendimento a autonomia ou uma nova experiência O enfoque da atenção é nos outros não num objetivo exterior ou estado interior BOLEN 2005 p191192 Certo dia porém o marido retorna Coberto de poeira e sangue ainda assim não havia vindo para ficar 1997 p103 pois a guerra não acabara Desiludindo as esperanças da esposa que o deseja para si explica sumariamente a razão de ter voltado Vim porque a luz que você acende à noite não me deixa dormir disse lhe quase ríspido Brilha por trás das minhas pálpebras fechadas como se me chamasse Só de madrugada depois que o vento sopra posso adormecer 1997 p103104 A luz efetiva simbolicamente a ligação do casal a distância que os separa não é suficiente para que ele não seja sensível ao chamado dela ainda que este lhe seja inconveniente naquele momento A narrativa assinala outra possível associação à imagem da luz quando o marido regressa a esposa vê sua silhueta a cavalo recortada contra a luz que lanhava em sangue o horizonte 1997 p103 Da parte dele há uma dupla solicitação a do amor e a da guerra Apeou o marido Mas só com um braço rodeoulhe os ombros A outra mão pousou na empunhadura da espada Nem fez menção de encaminharse para a casa 1997 p103 O dever se impõe à personagem masculina que por isso afirma Deixeme fazer o que tem de ser feito mulher 1997 p104 Não resta alternativa à esposa senão obedecer talvez compreendendo as premências dele A esposa carece de alimentar o A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 69 vínculo com o marido distante tentando mantêlo ligado a ela o que efetivamente consegue interfere porém na necessidade que ele tem de se dedicar à guerra A partir do pedido do marido nenhuma luz foi acesa nem no exterior nem no interior da casa Como Penélope sem pretendentes a lhe importunarem a mulher aguarda por longo tempo o retorno do esposo No escuro as noites se consumiam rápidas E com elas carregavam os dias que a mulher nem contava Sem saber ao certo quanto tempo havia passado ela sabia porém que era tanto 1997 p104 Finalmente isso acontece O narrador nos oferece a descrição de um homem alquebrado pelo período em que estava na guerra a pé cabeça baixa o contorno dos ombros cansados a barba no rosto silhueta desenhada na última luz do horizonte sem a marca do sangue avançando devagar Contorno doce sem couraça 1997 p104 Agora que a personagem veio para ficar não precisa mais da couraça que da vez anterior impedira a troca de carinhos com a esposa Encostou a mão no peito do marido mas seu coração parecia distante protegido pelo couro da couraça 1997 p104 A proteção se fez necessária a fim de que ele não cedesse aos apelos mudos daquela com quem estabelece sintonia e de quem precisava se afastar fisicamente naquele momento Acesa novamente a chama da lanterna agora por ele a porta da casa é fechada após a sua entrada com a esposa A luz volta a brilhar ainda que a noite não tenha chegado Observase neste conto o arquétipo de Hera a esposa que deseja acima de tudo a presença do marido a seu lado aguardando ansiosa seu retorno Esse é o objetivo de vida que a caracteriza o vínculo com o ser amado O arquétipo de Hera primeiro e antes de tudo representa o desejo ardente de ser esposa A mulher como forte arquétipo de Hera sentese fundamentalmente incompleta sem um companheiro BOLEN 2005 p203 Com o marido ausente a José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 70 protagonista tem sua atenção voltada para a lanterna que acende toda noite Quando ele retorna da primeira vez A mulher nada disse Nada pediu Encostou a mão no peito do marido 1997 p104 numa nítida atitude de silêncio e submissão Quando ele parte novamente sua casa mergulha nas trevas o tempo passa sem que ela se dê conta O papel de esposa confere um senso de significado e identidade às mulheres do tipo Hera O arquétipo de Hera proporciona a capacidade de se estabelecer elo de ser leal e fiel de suportar e passar pelas dificuldades com companheiro Quando Hera é a força motivadora o compromisso da mulher não é condicional Uma vez casada propõe se a permanecer assim para melhor ou para pior BOLEN 2005 p 205 A personagem masculina define sua conduta em princípio pelo arquétipo de Zeus apesar do amor que tem à esposa seu dever de cavaleiro de guerreiro comanda e orienta sua ação Há porém um outro deus filho de Zeus que ilumina a atuação masculina no conto Ares para os gregos ou Marte para os romanos é o deus da guerra A configuração desse deus é ambivalente é desprestigiado pelos gregos que identificavam nele o descontrole bélico a irracionalidade e a sede de sangue enquanto os romanos o veneravam como protetor da comunidade e pai dos gêmeos fundadores de Roma Rômulo e Remo Apesar de toda a agressividade inerente às funções guerreiras Ares ou Marte distinguese por ser o amante mais famoso de Afrodite ou Vênus a deusa da beleza e do amor Em algumas genealogias Eros ou Cupido é filho dessa união Referindose a Ares e Afrodite Bolen assinala que Esse dois amantes tiveram uma longa história em comum naquele que foi o mais estreito elo de compromisso entre os olímpicos 2002 p281 acrescentando que Ares era pai de sentimentos intensos que agia em defesa dos filhos 2002 p282 A A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 71 escritora destaca a importância da emoção na conduta de Ares sobressaindo as qualidades de coração grandioso e coragem O arquétipo de Ares como o deus está presente nas reações intensas e apaixonadas Com Ares um surto de emoção provavelmente mobiliza uma ação física imediata Esse é arquétipo reativo de tipo aquiagora No entanto quando a ira e a raiva aparecem ele reage de maneira instintiva e muitas vezes entra em situações que o prejudicam e causam danos aos outros BOLEN 2002 p284 O marido é comandado pela emoção e pela sensibilidade tanto que percebe o apelo da esposa Precisa porém sufocar a atenção a ela pela necessidade da guerra o que lhe diz de forma quase ríspida O afeto precisa ser tolhido pela couraça que o impede de se aproximar dela Há a interdição ao desejo que desabrocha ao final do conto luz que ilumina internamente a despeito do momento se dia ou noite Aflora o arquétipo do amante a acender ele mesmo a chama do amor e a cerrar a porta da casa isolando o casal na reclusão do ninho A luz da lanterna assinala a sintonia que existe entre eles marido e mulher luz tão forte que o impede de dormir de se desligar da vida e do amor Dois dos três significados do casamento são a satisfação de uma necessidade interior de ser cônjuge e um reconhecimento exterior entre o marido e a esposa O arquétipo do matrimônio também é expresso num terceiro nível místico como luta pela totalidade através de matrimônio sagrado BOLEN 2005 p 205 Quando acontece o matrimônio sagrado a experiência é considerada numinosa José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 72 A mulher ramada O conto A Mulher Ramada 1982 p2328 apresentanos inicialmente a figura feminina transfigurada na imagem da roseira constantemente definida em seu perfil pelo jardineiro A origem do plantio da árvore remonta à solidão dessa personagem masculina cuja insignificância social é assinalada na narrativa ninguém o via quando passava pelo jardim ou sequer o ouvia quando murmurava algo Sua vida sua imagem confundiase quase com suas plantas mimetizavase com as estações 1982 p23 A solidão levao a buscar companheira tal qual Adão no Paraíso Duas mudas de rosa ele planta com cuidados amorosos aguardando o tempo necessário para que elas brotem Pacientemente então vai podando os galhos entrelaçandoos até que eles adquirem o formato por ele desejado Rosamulher é o nome com que batiza sua mulher ramada a quem acompanha e visita com desvelos de amante ao longo das mudanças das estações do ano Agora levantando a cabeça do trabalho não procurava mais a distância Voltavase para ela sorria contava o longo silêncio de sua vida E quando o vento batia no jardim agitando os braços verdes movendo a cintura ele todo se sentia vergar de amor como se o vento o agitasse por dentro 1982 p24 Observase que a seiva percorre aquele corpo vegetal fazendo o desabrochar Há porém um criador modelando esculpindo podando impedindo Rosamulher de crescer livre das amarras idealizantes de perfeição que a priori aprisionam o ser a um modelo que lhe é exterior erigido pela paixão que segundo a própria escritora significa um processo de enamoramento Tomados pela paixão vemos o outro como simplesmente perfeito e não aceitamos A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 73 outras visões 1987 p19 A chegada da primavera significa a explosão da energia de vida Mas enquanto todos os arbustos se enfeitavam de flores nem uma só gota de vermelho brilhava no corpo da roseira Nua obedecia ao esforço do seu jardineiro que temendo viesse a floração romper tanta beleza cortava rente os botões De tanto contrariar a primavera adoeceu porém o jardineiro E ardendo em amor e febre na cama inutilmente chamou por sua amada COLASANTI 1982 p25 O narrador assinala a docilidade da árvore que se rende e se submete à imagem imposta apesar da resistência nos botões que nascem O esforço de agir contra a natureza de moldar o outro a seu prazer tem o preço da doença o que favorece a solidão e a introspecção de certa forma a entrada no mundo de Hades Recuperado o jardineiro retorna ao jardim e percebe o que sua ausência causara Ainda que modelada pelo jardineiro a roseira negase a ser mero objeto do desejo do outro e floresce Embaralhandose aos cabelos desfazendo a curva da testa uma rosa embabadava suas pétalas entre os olhos da mulher E já outra no seio despontava 1982 p25 A perfeição da figura desenhada se perdera mas do seu amor nada se perdia Florida pareceulhe ainda mais linda Nunca Rosamulher fora tão rosa E seu coração de jardineiro soube que nunca mais teria coragem de podála Nem mesmo para mantêla presa em seu desenho 1982 p2627 Instalase o amor onde antes era paixão Se de início a roseira assinala a submissão feminina às mãos masculinas uma vez quebrado o jugo ainda que perpetrado em nome do amor desabrocha Rosamulher em plenitude de ser Nunca Rosamulher fora tão rosa A transformação é registrada no nível do discurso recuperada a identidade feminina graças ao interregno de liberdade concedido devido à doença do jardineiro a roseira passa de José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 74 Rosamulher a mulherrosa A ênfase é dada ao substantivo mulher como no título assinalando a condição de que ela passa a gozar O jardineiro por sua vez admira a inteireza daquele ser que não admite mais mutilação Se anteriormente ele modelava a roseira mulher a seu prazer motivado pela paixão a uma imagem do feminino agora se depara com a força criadora desse feminino É o amor que desabrocha no respeito ao outro É o jardineiro que cede e se entrega Então docemente a abraçou descansando a cabeça no seu ombro E esperou E sentindo sua espera a mulherrosa começou a brotar lançando galhos abrindo folhas envolvendoo em bo tões casulo de flores e perfumes Ao longe raras damas surpreenderamse com o súbito esplendor da roseira Um cavaleiro reteve seu cavalo Por um instante pararam atraídos Depois voltaram a cabeça e a atenção retomando seus caminhos Sem perceber debaixo das flores o estreito abraço dos a mantes 1982 p2728 Neste conto a personagem feminina exemplifica inicialmente o arquétipo das deusas vulneráveis submissa ao poder masculino à tesoura ilustrando uma dependência quase filial O jardineiro artífice mostrase qual Pigmalião encantado diante de sua própria criação apaixonado por sua própria idéia vivificada na imagem que havia esculpido na roseira Ao experimentar porém a força transformadora da primavera após o inverno que se associa à morte a agora mulherrosa floresce o exercício de poder que até então marcara as atitudes do jardineiro para com a roseira dá lugar à entrega amorosa Rosamulher remete ao arquétipo de Perséfone a filha de Deméter raptada e violentada por Hades com quem passa a conviver um terço do ano após a mãe ter conseguido que a filha lhe fosse devolvida caso Perséfone nada tivesse comido no Inferno na A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 75 companhia de Hades ela teria se libertado inteiramente dele como aceitou comer sementes de romã precisava retornar A deusa Perséfone Prosérpina ou Coré para os romanos assinala uma ambivalência Foi adorada de dois modos como a jovem ou Core que significa garota jovem ou como Rainha do Inferno BOLEN 2005 p275 Como jovem é bela e esbelta associada a símbolos que indicam fertilidade é filha como rainha é uma deusa experiente que reina sobre os mortos guia os vivos que visitam o mundo das trevas e pede para si o que deseja BOLEN 2005 p275 Tal como Perséfone Rosamulher é violentada no espaço em que vai reinar assinalando seu crescimento e maturidade livre floresce Perséfone é juventude vitalidade e potencial para novo crescimento BOLEN 2005 p284 terminando por abarcar o companheiro em um abraço que o afasta da realidade circundante metáfora do reino de Hades a terra dos mortos geralmente associado ao inconsciente à loucura O jardineiro parece exercitar inicialmente o arquétipo de Zeus o deus pai organizador do universo detentor do poder que racionalmente impõe a ordem mas é Hefesto o deus artífice quem se manifesta no tipo de configuração e no comportamento da personagem masculina Hefesto como deus arquétipo e homem personifica a ânsia humana profunda de fazer coisas criar objetos que sejam funcionais e belos Rejeitado e expulso do monte Olimpo Hefesto não era valorizado no elevado reino de Zeus em que importavam o poder e a aparência Em vez disso trabalhava sozinho em sua forja no fundo da terra Seus atributos são igualmente desvalorizados pela cultura patriarcal e os homens que lembram esse deus têm dificuldades em obter sucesso BOLEN 2002 p317 A genealogia de Hefesto caracterizao como o deus artesão inventivo do Olimpo BOLEN 2002 p319 e seu arquétipo remete José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 76 ao trabalho criativo à capacidade de transformar a matéria bruta em obra de arte A invisibilidade social a criatividade a preocupação com a beleza e a perfeição são traços do jardineiro Como ele é atribuída a Hefesto na Teogonia de Hesíodo a criação de Pandora uma bela mulher modelada segunda as deusas imortais Além dela o deus fez para si mesmo servas de ouro verdadeiras obrasprimas de seu gênio que pareciam lindas mulheres capazes de falar e que faziam habilidosamente tudo o que ele lhes ordenava BOLEN 2002 p320 Hefesto é também o deus solitário que trabalhava nas forjas modelando os objetos graças ao fogo dos vulcões serralheiro dos deuses olímpicos confeccionou belas jóias palácios e tronos além dos raios com que Zeus venceu os gigantes Era considerado o deus do fogo subterrâneo que é metáfora para sentimentos apaixonados para o intenso fogo sexual e erótico contido no âmago do corpo até que seja expresso para a ira e a raiva contidas e amortecidas ou para uma paixão pela beleza que se agita e é percebida no corpo ou a terra da pessoa BOLEN 2002 p322 Apesar de feio e coxo casouse com Afrodite e com Caris ou Graça respectivamente na Odisséia e na Ilíada ambas de Homero na Teogonia foi marido de Aglea a mais nova das Graças A união de Hefesto com essas divindades assinala o casamento entre a beleza ou a graça e a habilidade de confeccionar objetos BOLEN 2002 p326 o que conduz à arte No conto de Colasanti o jardineiro vive isolado até que uma dor de solidão começou a enraizarse no seu peito p23 verbo que remete ao seu trabalho corpoterra Como Hefesto ele cria atento aos mínimos detalhes e de forma apaixonada sua própria companheira a quem atribui beleza e graça E aos poucos entre suas mãos o arbusto foi tomando feitio fazendo surgir dos pés plantados no gramado A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 77 duas lindas pernas depois o ventre os seios os gentis braços da mulher que seria sua Por último o cuidado maior a cabeça levemente inclinada para o lado O jardineiro ainda deu os últimos retoques com a ponta da tesoura Ajeitou o cabelo arredondou a curva de um joelho Depois afastandose para olhar murmurou en cantado Bom dia Rosamulher COLASANTI 1982 p24 A narrativa efetivamente remete à história de Pigmalião rei de Chipre Rejeitando as mulheres da ilha por apresentarem uma atitude em sua opinião libertina Pigmalião esculpe uma estátua que representa a mulher ideal perfeita em beleza e pudor Afrodite dá vida à estátua com quem o rei se casa e vem a ter um filho a estátua de Galatéia feita por Pigmalião foi transformada em mulher verdadeira com vida através do amor BOLEN 2005 p320 graças à influência de Afrodite Se de início o jardineiro define o outro a partir de suas expectativas tal qual Hefesto e Pigmalião depois se entrega à força do outro que transcende os limites anteriormente impostos Ele não se furta à experiência plena de amor ao outro e com o outro Abdica da posição de criador para se entregar à criatura não a mulher que foi desenhada por ele mero manequim mas a que brotou em sua essência de vida desabrochando em sua liberdade de ser O estreito abraço dos amantes debaixo das flores atualiza o mito do andrógino de Platão recuperando a unidade através da fusão com o outro completude amorosa reconquistada O moço que não tinha nome Era um moço que não tinha nome Nem nunca tinha tido Um moço que não tendo nome também não tinha rosto COLASANTI 1997 p25 Dessa forma surpreendente iniciase o conto op cit José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 78 p2528 já de chofre seduzindo o leitor para o restante da narrativa Há uma situação insólita que se configura pela ausência de um nome e de um rosto levando a personagem a uma busca por sua identidade A procura se desenvolve através do encontro com o outro estabelecendo porém uma relação especular sendo chamado por alguém quando se aproximava quem o tinha chamado via em lugar do rosto dele seu próprio rosto refletido como num espelho E enchiase de espanto Idem p25 Ele por não possuir uma identidade visivelmente estruturada não pode oferecer o que não possui Por sua vez o outro só vê a si mesmo no encontro com o moço não há conhecimento nem troca o outro vê um prolongamento do próprio eu que não sai de sua visão narcísica encontro esvaziado de sentido A visão no espelho é ameaçadora e poucos conseguem sustentála Aqueles que se viam na ausência de rosto do moço enchiamse de espanto Era muita ausência para ele carregar Idem ibidem mas mesmo assim o protagonista espera crescer para sair em busca do rosto que acredita estar em alguma parte do mundo O peso da falta de uma identidade própria de se sentir singular é o que gera a errância dele por espaços exteriores como se em algum lugar desconhecido estivesse guardada a sua face Nosso herói empreende a viagem elemento invariante assinalado por Propp na análise estrutural de contos maravilhosos a saída de casa ou do espaço conhecido é ação necessária ao amadurecimento Em primeiro lugar no conto a procura se dá através da arte que expressa um fazer criativo humano O moço examinou quadros tapeçarias esculturas pinturas e bordados tudo inutilmente A viagem contínua que empreende à procura de seu rosto assinala uma travessia e uma peregrinação As cidades e as pessoas se sucedem nessa busca sem que ele encontre o que deseja mas sem que também desista A palavra travessia remete à idéia de A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 79 deslocamento e à de vida como trajetória dinamismo Peregrinação a uma longa e exaustiva jornada que se assemelha aos ritos de iniciação CHEVALIER GHEERRANT 2002 p709 As experiências vão trazendo um acúmulo de vivências ao herói que constrói sua história A procura tece um caminho O encontro com o que busca com tanto afinco será inevitável Pela primeira vez o moço não se aproxima de alguém visando a satisfazer a sua carência de um rosto A aproximação acontece porque ele olha e percebe a necessidade do outro aproximação solidária E nesse caminho um dia encontrou a moça que volta va da fonte Ia tão atenta para não entornar o cântaro equilibrado no alto da cabeça que nem o viu chegar pela trilha E quando ele se aproximou oferecendose para carregar o cântaro foi com surpresa agradecida que encarou o rosto vazio Mais do que com espanto COLASANTI 1997 p26 A personagem masculina deixa nesse momento a centralidade em si mesma para penhorar ajuda A moça vem da fonte ele simbolicamente busca a fonte Ela é portadora da água cujo simbolismo na visão de Chevalier e Gheerbrant podem reduzirse a três temas dominantes fonte de vida meio de purificação centro de regenerescência 2002 p14 A reação da moça assinala o quanto ela não estava acostumada a receber ajuda o sentimento que nela se instala diante da falta de rosto dele vem imerso na gratidão não há espanto rejeição ou repulsa Buscar água na fonte é uma das ações mais antigas da mulher já registradas na Bíblia A fonte associase à fecundação às origens não só da vida como da força da graça da felicidade Analisando a presença da fonte nas cantigas de amigo Stephen Reckert destaca Que o encontro amoroso naquele sítio pertence ao patrimônio comum românico e Que a fonte mágica da juventude do amor da José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 80 fecundidade e da vida é uma herança popular ainda mais universal sd p103 É focalizada também como fonte do conhecimento evocando o inconsciente É esse mesmo simbolismo da fonte como arquétipo que Jung traduz considerandoa uma imagem da alma como origem da vida interior e da energia espiritual CHEVALIER GHEERBRANT 2002 p446 Todas as imagens que dão sentido à fonte apontam para a moça que vai se configurar fonte de vida para o moço Ele estabelece uma rotina e a disciplina da rotina ajuda a construir um referencial para a existência cultivando um sentido de ser GIDDENS 2002 p42 indo esperála todos os dias oferecese para carregar o cântaro abdicando da busca desenfreada em que se encontrava A moça abrese à ajuda do outro e ao aceitá la permite que o cântaro passe às mãos do rapaz partilhando trabalho e produto a água Os encontros se sucedem na fonte assinalando a necessidade de se construir um relacionamento no tempo marcado na narrativa pelo presente no advérbio de tempo pelo imperfeito do indicativo que assegura a continuidade da ação pelo gerúndio Agora já se demoravam sentados à beira da nascente conversando sem pressa enquanto o tempo escorria junto com o regato 1997 p27 A referência à nascente reitera as idéias ligadas à fonte à origem A identidade se constrói através das trocas efetivadas no encontro com o outro a cada novo encontro ela olhava os próprios olhos refletidos nele e os via ficarem mais brilhantes olhava sua boca e só lhe via sorrisos 1997 p27 Há uma transformação nela que se opera através desses encontros ela não apenas se vê nele mas transformase por e com ele O indivíduo não é um ser que de repente encontra outros a descoberta do outro de modo cognitivo emocional é de importânciachave no desenvolvimento inicial da autoconsciência como tal GIDDENS 2002 p53 A ausência do A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 81 rosto deixa de ser significativa com a convivência pois o Moço tinha tantas coisas para contar tanta doçura na voz que ela passou a achálo mais e mais bonito 1997 p27 Ainda que não tenha um rosto uma identidade o moço já tem uma história sendo capaz de articular uma narrativa portanto uma biografia A identidade de uma pessoa não se encontra no comportamento por mais importante que seja nas reações do outro mas na capacidade de manter em andamento uma narrativa particular GIDDENS op cit p5556 expressando continuidade biográfica que é fruto de uma captação reflexiva passível de ser comunicada a outrem A aparência a imagem vai cedendo espaço à essência de ser A convivência instaura o conhecimento e o amor Se o sentimento da paixão corresponde ao início do relacionamento talvez à primavera na narrativa aproximase a estação fria e com a chegada do inverno não haveria água para buscar a moça não teria mais desculpa para sair de casa COLASANTI 1997 p28 O inverno assinala o tempo das dificuldades sendo também o momento de definir aquela relação ou ela sucumbe frente às adversidades ou se consolida em amor Mas naquela manhã em que as beiradas do regato co meçavam a fazerse de cristal o medo de perder o mo ço atravessoua como um vento Quis retêlo chamá lo Em ânsia estendeulhe as mãos E quase se sentir num sopro Amado Foi o nome que lhe deu Ondejou seu reflexo no rosto do moço Lentamente seus espelhados perderam a nitidez desfezse o con torno dos lábios Naquele vazio só restava uma névoa E na névoa trazidos de longe pelo chamado de um nome começaram a aflorar duas sobrancelhas espes sas depois a aresta de um nariz a sólida linha de um queixo a ampla testa Traços cada vez mais nítidos desenhando o rosto enfim encontrado Pingentes de gelo formavamse nas folhas Adensa vamse as nuvens Mas ele o homem que agora tinha rosto e nome sorria como um sol 1997 p28 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 82 O amor é o sentimento que permite ao outro ser o que verdadeiramente é afastando máscaras e fingimentos Toda a concretização erótica tem por princípio uma destruição da estrutura do ser fechado que é no estado normal um parceiro do jogo A ação decisiva é o desnudamento BATAILLE 1987 p17 O desnudamento significa a retirada das máscaras para que se possa estabelecer uma proximidade entre a aparência e a verdade do ser A própria escritora distinguindo afeto de amor e paixão explica que o amor exige um rosto e bem definido já que sua característica principal é concentrarse num único objeto Há no amor a intenção de perenidade Eu diria que o amor pensa que é reflexivo E que enxerga ou quer enxergar o outro em sua realidade individual COLASANTI 1987 p18 A figura feminina é a portadora do sentido da vida construído através do amor é ela quem enuncia a palavra mágica que tudo modifica Amado Na proposição arquetípica de Jean Bolen ela configura o exercício Afrodite a deusa alquímica que simboliza o poder transformativo e criativo do amor 2005 p310 A jovem do conto aparece sozinha na fonte mas seu comportamento não a aproxima das deusas invulneráveis é com agradável surpresa que aceita a ajuda recebida sem a marca da independência e da auto suficiência que caracteriza essas deusas Tampouco parece expressar as deusas vulneráveis frágeis e dependentes da relação com o outro O que ocorre neste conto é um processo gradativo de conhecimento e comunhão o ápice é a revelação verbal do significado do outro e da relação através da percepção e da voz dela voz doadora de sentidos Sobre Afrodite Bolen destaca a capacidade de ser receptiva ao outro e de vivenciar sentimentos mútuos amando e sendo amada sem o distanciamento típico das deusas invulneráveis ou a vitimização das vulneráveis ela valorizava mais a experiência emocional com o outro que a independência ou a permanência A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 83 duradoura do vínculo A vivência Afrodite abarca não só a vontade de ficar junto como um impulso mais profundo em direção à inteireza do outro conhecer é compreender realmente um ao outro O desejo de conhecer e de ser conhecido é o que gera Afrodite BOLEN 2005 p311 expressando o interesse acolhedor pelo objeto daquele sentimento percebido em sua singularidade O amor associase ao altruísmo visa à felicidade do outro e significa uma interpenetração psíquica e afetiva tal a que acontece entre a moça da fonte e o moço O moço que não tinha nome nem rosto longe está das configurações celebradas pela sociedade patriarcal cujo poder exemplificase em Zeus Talvez essa personagem assinale uma identidade masculina em crise buscando novas representações concedidas pelo feminino A personagem lembra o arquétipo de Dioniso deus ambivalente o deus do mais abençoado dos êxtases e do amor mais enlevado Walter Otto Apud BOLEN 2003 p362 associado ao reino místico e ao mundo feminino mas também à loucura à violência à tragédia que não se coadunam à personagem masculina do conto O arquétipo ligase à dualidade marcada por oposições intensas como o êxtase e o horror o amor e a destruição violenta porém Quando uma qualidade extática permeia a relação sexual e existe a sensação de comunhão o amor é feito no templo de Dioniso BOLEN 2002 p419 Essa comunhão existe entre as personagens principais do conto A escritora que vem norteando o trabalho com os arquétipos Jean Bolen discorre sobre um deus que falta entre os olímpicos o filho de Métis e Zeus cujo nascimento foi previsto e que devia suplantar seu pai Zeus e passar a reger com o coração compassivo Para que ele nasça Métis a sabedoria feminina teria de emergir mais uma vez na cultura ocidental e em nossas consciências 2002 p422 Acrescenta a autora José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 84 Nos mitos contemporâneos como na mitologia grega Métis sabedoria feminina está ausente mas seus valores que enfatizam a afiliação com os outros e a vinculação com a terra e todas as formas de vida estão emergindo E quando os homens e as mulheres refazem sua ligação com a sabedoria feminina como está acontecendo agora com muitas delas refazemos a ligação com um genitor que faltava e encontramos o deus que estava perdido dentro de nós Minha impressão é que todos nós chegamos a este mundo como crianças que querem amor e se não obtemos amor concordamos em ter poder Quando nos lembramos de Métis lembramos que o amor é aquilo que o tempo todo estávamos querendo BOLEN 2002 p435 O conto de Marina Colasanti apresenta a configuração da identidade através do amor o amor passa a ser o princípio regente em nossa psique BOLEN 2002 p436 quando norteamos nossas escolhas e ações pela sabedoria e pelo amor ao invés de priorizar o poder o controle a posição social a imagem pessoal A personagem masculina representa simbolicamente o novo homem contemporâneo perdido em sua identidade face às mudanças ocorridas na sociedade e na cultura identidade construída no diálogo com o feminino e não mais a despeito dele ou subjugandoo corresponde a um novo arquétipo do masculino O final da narrativa traz a imagem do sol símbolo da vida e da consciência Na narrativa ele o homem que agora tinha rosto e nome sorria como um sol 1997 p28 apesar do inverno que chega A experiência de amor permite a bemaventurança de ser sentir pleno expressa na alegria que desponta no sorriso dele na luz e no calor que ele passa a irradiar através da comparação com o sol CONCLUSÃO A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 85 Os contos de Marina Colasanti delineiam de forma diferente personagens masculinas e femininas ainda que se perceba a idéia de completude entre elas As figuras masculinas orientamse na maioria das narrativas por um princípio ordenador racional é Zeus quem ainda aflora A passagem para uma configuração mais emocional irrompe no contato com o feminino as amadas são as artífices da completude masculina no sentido de oferecer a experiência da emoção permitindo o desenvolvimento pleno de ser A figura feminina evidencia um perfil que também se coaduna em princípio à submissão exigida às mulheres culminando no exercício Afrodite que aponta para a construção de autonomia Para Bauman os agentes são autônomos quando formulam as regras que guiam seu comportamento e estabelecem o leque de alternativas que podem perfilar e examinar ao tomar suas grandes e pequenas decisões 2000 p85 por outro lado toda ausência de liberdade significa heteronomia isto é uma situação em que seguimos regras e comandos impostos por outros uma condição agenciada na qual a pessoa que age o faz por vontade de outra 2000 p85 Para a própria escritora que participou da luta da mulher por um espaço de igualdade em relação aos privilégios já consolidados aos homens em uma sociedade patriarcal independência é a condição de não depender de não ser tutelada de ser dona das próprias decisões de ser autônoma COLASANTI 1980 p13 o que implica poder de escolha Por outro lado é preciso um grau elevado de consciência para que a escolha reflita a verdade do ser Erich Fromm sugere que as relações humanas amorosas obedecem aos mesmos padrões utilitários que norteiam o mercado de trabalho e de consumo O homem moderno é alienado de si mesmo de seus semelhantes e da natureza Transformouse num artigo experimenta suas forças de vida como um investimento que lhe deva produzir o máximo lucro José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 86 alcançável sob as condições de mercado existentes 1986 p116 A palavra alienação do latim alienare alienus significa etimologicamente tornarse estranho a si próprio não vivenciando plena e profundamente sentimentos e ações Nessa circunstância o ser humano é reduzido à condição de autômato alienado sem desenvolver sua própria autonomia interna Como autômato não pode efetivamente amar persistindo justamente por isso o sentimento de solidão Nossa civilização oferece muitos paliativos que ajudam as pessoas a se tornarem conscientemente inconscientes dessa solidão antes de tudo a estreita rotina de trabalho mecânico burocratizado que as auxilia a permanecerem sem conhecimento de seus desejos humanos mais fundamentais da aspiração da transcendência e unidade Como a rotina por si só não o consegue o homem supera seu desespero inconsciente através da rotina da diversão do consumo passivo de sons e visões oferecidos pela indústria de divertimento e além disso pela satisfação de comprar sempre coisas novas e logo trocálas por outras A felicidade do homem hoje em dia consiste em divertirse E divertirse consiste na satisfação de consumir e obter artigo panoramas alimentos bebidas cigarros gente conferências livros filmes tudo é consumido engolido O mundo é um grande objeto de nosso apetite uma grande maçã uma grande garrafa um grande seio somos os sugadores os eternamente em expectativa os esperançosos e os eternamente decepcionados FROMM 1986 p117 Acredita Erich Fromm que a sociedade deve ser organizada de modo tal que a natureza social e amorosa do homem não se separe de sua existência social mas se unifique com ela Se o amor é a única resposta sadia e satisfatória ao pro blema da existência humana então qualquer sociedade que exclua relativamente o desenvolvimento do amor A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 87 deve no fim de contas perecer vitimada por sua pró pria contradição com as necessidades básicas da natu reza humana Ter fé na possibilidade do amor co mo fenômeno social e não apenas excepcional individual é uma fé racional baseada em penetração na própria natureza do homem 1986 p 170171 Em todos os contos vistos de Marina Colasanti há um deus que se faz simbolicamente presente e que no entanto não pertence à estruturação arquetípica formulada por Jean Bolen e retomada por Junito Brandão Eros o deus do amor Ele aparece no discurso de Sócrates em O Banquete de Platão como um daimon ser entre os mortais e os imortais força espiritual misteriosa de coesão É um mediador aproximando os seres cujo poder irradiador é tão violento que contamina erotiza todas as funções vitais Eros é percebido como uma grande força unificadora e gratificadora que preserva o viver batizando com seu nome as pulsões de vida Nos contos de Colasanti o amor é uma grande força de vida de descoberta associandose ao desvelar das verdades intrínsecas às personagens É o amor que fala mais alto na ação do Rei de intimar o amigo a se dar a conhecer retirando a máscara e na escolha da Princesa em abandonar a vida errante de guerreiro É ele que mantém unidos a esposa e o marido superando a separação e o tempo luz que ilumina as almas apesar do sopro do vento tentando apagar a chama É ele ainda que irrompe no abraço final da mulherrosa com o seu jardineiro resgatando a completude amorosa É o amor que une e confere identidade aos seres permitindo a consciência no convívio enriquecedor com o outro parceiro e não tutor É ele enfim o grande maestro dessa orquestra chamada vida de que faz parte a literatura onde mais facilmente se misturam a razão amorosa e a emoção amorosa REFERÊNCIAS José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 88 BATAILLE Georges O erotismo Porto Alegre LPM 1987 BAUMAN Zygmunt Em busca da política Rio de Janeiro Zahar 2000 BOLEN Jean As deusas e a mulher 7ed São Paulo Paulus 2005 Os deuses e o homem São Paulo Paulus 2002 BRANDÃO Junito de Souza Mitologia grega vI 17ed PetrópolisRJ Vozes 2002a Mitologia grega v II 10 ed PetrópolisRJ Vozes 1999 Mitologia grega v III 12 ed PetrópolisRJ Vozes 2002 COLASANTI Marina Entre a espada e a rosa Rio de Janeiro Sala mandra 1992 Longe como o meu querer São Paulo Ativa 1997 A nova mulher Rio de Janeiro Nórdica 1980 Doze reis e a moça no labirinto do vento São Paulo Círculo do Livro 1982 E por falar em amor 20 ed Rio de Janeiro Rocco 1987 Marina Colasanti y las metáforas del inconsciente Entrevista concedida a Sergio Andricaín y Antonio Orlando Rodríguez Cuatroga tos Revista de Literatura Infantil nº1 eneromarzo 2000 Online disponível na Internet via httpwwwcuatrogatosorgmarinahtml Arquivo consultado em 8 de junho de 2008 Entrevista Marina Colasanti 09 de junho de 2005 On line disponível na Internet via httpwwwrecordcombrentrevistaaspentrevista56 Arquivo consultado em 8 de junho de 2008 O que é poesia Entrevista a Cristiane Rogério Crescer Online Ed171 fev 2008 Online disponível na Internet via httprevistacrescerglobocomCrescer0 19125EFC1671753 567000html Arquivo consultado em 8 de junho de 2008 CHEVALIER Jean e GHEERBRANT Alain Dicionário de símbolos Rio de Janeiro José Olympio 2002 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 89 FRANZ MarieLouise Von O processo de individuação In JUNG Carl Gustav O homem e seus símbolos Rio de Janeiro Nova Fronteira 1977 FROMM Erich A arte de amar Belo Horizonte Itatiaia 1986 GIDDENS Anthony Modernidade e identidade Rio de Janeiro Jorge Zahar 2002 HARDING M Esther Os mistérios da mulher São Paulo Paulinas 1985 JUNG Carl Gustav O homem e seus símbolos Rio de Janeiro Nova Fronteira 1977 Os arquétipos e o inconsciente coletivo 5 ed PetrópolisRJ Vozes 2007 LAJOLO Marisa e ZILBERMAN Regina A literatura infantil brasileira História e histórias São Paulo Ática 1985 MICHELLI Regina Silva O masculino e o feminino em Marina Cola santi configurações encontros embates NITRINI Sandra et al A nais do XI Congresso Internacional da Associação Brasileira de Litera tura Comparada Tessituras Interações Convergências São Paulo ABRALIC 2008 ebook p111 Disponível em httpwwwabralicorgbrcong2008AnaisOnlinesimposiospdf073 REGINAMICHELLIpdf MONTEIRO Dulcinéa da Mata Ribeiro Mulher feminino plural mito logia história e psicanálise Rio de Janeiro Record Rosa dos Tem pos 1998 MOORE Robert GILLETTE Douglas Rei guerreiro mago amante Rio de Janeiro Campus 1993 PLATÃO Diálogos Menon Banquete Fedro Rio de Janeiro Ediou ro sd PROPP Wladimir Morfologia do conto Lisboa Vega 2003 RECKERT Stephen e MACEDO Helder Do cancioneiro de amigo Lis boa Assírio Alvim sd José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 90 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 MEMÓRIAS DE EMÍLIA DE MONTEIRO LOBATO UMA REFLEXÃO SOBRE A LINGUAGEM Eliane Santana Dias Debus ONDE SE FALA DA ESCOLHA DO TEMA E SE APRESENTA OS CAMINHOS DA ESCRITA A escolha de uma temática de reflexão na maioria das vezes resulta de uma interpretação prévia inspirada por nosso interesse atual STAROBISNKI 1976 p 133 a produção literária de Monteiro Lobato 18821948 tem sido foco de meus estudos nos últimos dez anos principalmente no que diz respeito a recepção de seus livros infantis através da relação estabelecida com os leitores pelas cartas A opção pelo título Memórias de Emília 1936 devese a discussão sobre os processos da cultura da escrita os meandros da construção da palavra escrita a arquitetura do texto diferentes modos de escrever imprimem formas diversas de ler Este parece ser o título que discute mais a fundo as questões referentes à utilização da língua quer seja a falada quer seja a escrita se lembrarmos que ele faz parte de um conjunto de narrativas desenvolvidas por Monteiro Lobato na década de 1930 que focalizam o ensino da Língua são eles Emília no País da Gramática 1934 que explicitamente traz discussões sobre a gramática normativa e a rigidez dos estudos sobre os fatos da língua padrão e Dom Quixote das crianças 1936 em que tece considerações sobre a leitura suporte faixa etária adaptação etc Ao ler Memórias da Emília investigase como o escritor introduz em seu texto o discurso sobre a cultura escrita em especial o Ensino da Língua Portuguesa isto é como se anuncia no discurso de Monteiro Lobato uma metodologia e uma prática de ensino da Língua na atitude professoral de Emília que exerce o papel de mestre de um 91 ser celestial o anjo Flor das Alturas na forma como o escritor estrutura a sua narrativa bem como focalizar a intenção do escritor de introduzir uma visão renovadora de escola e das coisas da Língua a um público leitor específico a criança apresentando uma concepção de infância diversa da sua época mas tão cheia de agoras A concepção de linguagem de Monteiro Lobato é muito próxima do que é desenvolvida pelo pensador Russo Mikhail Bakhtin 1895 1975 isto é a Língua é vista como interação dialógica entre interlocutores a partir do seu uso social por este viés os seus estudos estarão em profícuo diálogo na tessitura desta produção ONDE SE BUSCA APRESENTAR OS DISCURSOS DE MONTEIRO LOBATO SOBRE AS COISAS DA LÍNGUA Parece que o segredo de escrever e ser lido está em duas coisas ter talento de verda de e escrever com a maior aproximação possível da língua falada sem perder por tanto nenhum dos farelinhos ou sujeirinhas da vida pois é aí que se escondem as vita minas do misterioso e perturbador que das verdadeiras obras darte LOBATO 1951 p57 As palavras de Monteiro Lobato para analisar o discurso do outro parecemnos indicar o segredo de seu próprio fazer literário o tratamento dado à língua Língua vista como dupla a falada e a escrita Para Lobato a falada é que é a grande coisa pois que é o meio de comunicação entre todas as criaturas humanas afora as mudas A língua escrita veio depois e é coisa restritíssima LOBATO Op Cit 49 A língua falada tem cheiros sabores e cores um arco irís inteirinho segundo o autor A língua escrita ao contrário dos elogios à oral é criticada principalmente por ser produzida dum modo tão requintado tão sublimado tão empoleirado que ler a maioria das coisas existentes José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 92 se torna um perfeito traduzir e isso cansa Op Cit p44 Cansar todavia parece ser um vocábulo inexistente no dicionário de Lobato que apresenta a possibilidade do texto literário mascarar a escrita aproximandose o máximo possível da oralidade travestindo a língua escrita em língua falada com todos os seus farelinhos e vitaminas Sua preocupação constante com o estilo o vocabulário e a linguagem marcam a sua produção literária para a infância Transparente com clara de ovo ou clara como água de pote era assim que o escritor queria que fosse a sua linguagem escrita acreditando que a aproximação do seu público leitor exigia um discurso elaborado e cuidadoso sem necessidade no entanto de empoleirar a linguagem Se visitarmos os seus escritos cartas prefácios entrevistas e textos literários perceberemos um constante retomar criticamente os aspectos referentes a linguagem como pode ser observado na ironia mordaz na representação da personagem Aldrovando Cantagalo que nasceu e morreu vitimado de um erro gramatical pronomismo crônico em seu conto O colocador de pronomes LOBATO 1950 No seu discurso teórico seu embate principal é quanto à acentuação das palavras e às reformas ortográficas Em entrevista para o segundo número do jornal Voz da Infância publicação da Biblioteca Infantil Municipal de São Paulo os repórteres Benedito Mendes e Gastão Gorenstein ambos de 12 anos de idade apresentamse com a formalidade que julgavam necessárias usando termos como a subida honra ilustre amigo das crianças insigne homem de letras ao que Lobato interrompe Não fale complicado assim que eu não entendo Fale como você fala em sua casa com sua mãe ou seu pai fale sem gramáticas como se estivesse no recreio contando um caso para os companheiros VOZ DA INFÂNCIA 1936 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 93 Os dois meninos depois de colherem do entrevistado uma biografia nada padronizada solicitam sua opinião sobre a ortografia e sua preferência na época discutiase a reforma ortográfica E para surpresa ele diz que prefere a sua própria ortografia despertando a curiosidade dos pequenos em particular se a ortografia lobatiana era diferente da atual e se possuía algo de especial É e não é Não é porque é a da Academia de Letras e é especial porque suprimi os acentos Acho a maior burrice do mundo estar acentuando palavras que até aqui viveram perfeitamente sem essas bolostroquinhas irritantes dos acentos A palavra Emilia por exemplo Os acentistas escrevem Emília Mas o acento só é ad missível para evitar confusão como em e e é Ora Emilia sem acento não dá lugar a confusão nenhuma logo acentuar essa palavra que até aqui viveu muito bem sem acento é besteira VOZ DA INFÂNCIA 1936 Lobato compara a utilização do acento ao uso do lenço usar só quando se precisa A reforma da academia segundo ele é contraditória com o objetivo de simplificar a língua dando fim às letras dobradas e outras coisas acaba por inundar a língua de acentos ou bolostrocas uma das formas com que ele denominava o acento Ele relata a reação de Emília diante daquelas bolostroquinhas Naquele seu passeio pelo País da Gramática a pestinha teve um pega danado com a Velha Ortografia e escangalhoua E também varreu do tal país todos os acentos inúteis Botouos na lata de lixo Foi em vista dessa revolução emiliana que eu passei a escrever sem acentos Op Cit Para os dois meninos as informações não se processaram de forma pacificadora pois tinham diante de si o escritor admirado e ao mesmo tempo sua rebeldia diante daquilo que era ensinado na escola Ao argumentarem a posição do professor X a resposta de Lobato é mais perturbadora ainda E que tem que o professor X José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 94 diga que Ele vai dizendo e a gente vai fazendo como é sensato Op Cit Embora Lobato fosse um livre pensador sobre as coisas da língua estava comprometido como não poderia deixar de ser com a problemática editorial que uma reforma ortográfica pudesse causar Escreve então a Francisco Campos em carta de cinco de dezembro de 1937 governador de São Paulo representante político do Estado Novo refletindo sobre a nova reforma ortográfica e sua repercussão econômica em relação ao mercado editorial na medida em que a circulação pelo país de livros com a nova ortografia colocava os do período anterior no encalhe provocando um prejuízo sem monta no comércio livreiro Lobato ao mesmo tempo em que elucida o problema sugere dois caminhos ao governo indenizar os editores por meio da compra do estoque didático feito na velha ou estabelecer prazo talvez de dois anos em que seja facultativo às escolas utilizaremse desses livros LOBATO 1964 p 30 A questão referente à acentuação é abordada de forma prática Ele envia um livro infantil de sua autoria desacentuado para análise do político porque acredita que as crianças não vão sentir as pulguinhas suprimidas No caso específico das narrativas lobatianas destinadas ao público infantil percebese uma forte influência do pensamento escolanovista e sua estreita ligação com dois de seus integrantes Anísio Teixeira e Fernando Azevedo pois não podemos esquecer que o contato entre ambos foi intermediado por Monteiro Lobato E quando esse contato se realiza efetivamente pela confirmação de Fernando Azevedo Lobato reitera Quanto mais fundo o conheceres mais me agradecerás o terte revelado esse admirável irmão da grande irmandade Prevejo que do encontro de ambos bons frutos hão de surgir NUNES 1986 p10 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 95 Embora Monteiro Lobato tenha iniciado sua literatura para infância em 1920 com A menina do Narizinho Arrebitado e em 1930 já tinha 11 livros publicados acreditamos que todos passaram possivelmente por uma releitura quando da publicação de Reinações de Narizinho 1931 o que leva a crer que todos os títulos do autor estão compromissados com o que poderíamos chamar de um olhar novo sobre a Educação O desejo de romper com o ensino tradicional da língua e reavivála dentro de uma proposta que colocasse em foco as influências e as transformações oriundas das próprias mudanças cotidianas parece ser a grande sacada de Lobato nos anos 30 do século XX Como define em seu próprio texto cabe aos gramáticos estudar o comportamento da língua mas alterála somente o dono da língua isto é o povo Aos gramáticos o escritor dirige severa críticas tal fato fica latente na representação que faz deste em Emília no País da Gramática Os senhores gramáticos são uns sujeitos amigos de nomenclaturas revarbativas dessas que deixam as crianças velhas antes do tempo A cidade da língua costumava ser visitada apenas por uns velhos carrancas chamados filólogos ou então por gramáticos e dicionaristas gente que ganha a vida mexericando com as palavras levando o inventário de la etc LOBATO 1970 p 36 Essa postura acaba trazendo à tona um novo tratamento à infância pois esse leitor embora aprendendo e conhecendo a etimologia das palavras descobre as possibilidades de driblálas construindo novos significados De forma lúdica e prazerosa Lobato apresenta a possibilidade de aprendizagem da língua e de outros conteúdos escolares revestidos de colorido em especial a través dos livros destinados as crianças José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 96 Talvez a carta destinada ao amigo Oliveira Viana seja uma das que mais evidencia a sua preocupação em relação ao ensino e a crença de que a sua produção infantil era uma possibilidade de fugir a aridez com que os conteúdos escolares eram transmitidos às crianças Como se poderá perceber pelo recorte apresentado logo a seguir Lobato já havia socializado com o educador Baiano e recebido dele o aval para continuar esta produção mais do que isso as suas obras são acolhidas como uma metodologia de ensino A minha Emília está realmente um sucesso entre as cri anças e os professores Basta dizer que tirei uma edi ção inicial de 20000 e o Octales está com medo que não agüente o resto do ano Só aí no Rio 4000 vendi das no mês Mas a crítica de fato não percebeu a signi ficação da obra Vale como significação de que há ca minhos novos para o ensino da matéria abstrata Numa escola que visitei a criançada me rodeou com grandes festas e me pediram Faça a Emília do país da aritmé tica Esse pedido espontâneo esse grito dalma da cri ança não está indicando um caminho O livro como o temos tortura as pobres crianças e no entanto pode ria divertilas como a gramática da Emília o está fa zendo Todos os livros podiam tornarse uma pândega uma farra infantil A química a física a biologia a geo grafia prestam imensamente porque lidam com coisas concretas O mais difícil era a gramática e é a aritméti ca Fiz a primeira e vou tentar a segunda O resto fica canja O Anísio Teixeira acha que é toda uma nova me todologia que se abre Amém NUNES 1986 p 96 Monteiro Lobato demonstra uma inventividade transgressora em relação à elaboração da língua o que vem despertando a atenção de vários pesquisadores Entre muitos trabalhos acadêmicos podemos citar as dissertações de mestrado de Maria Teresa Gonçalves Pereira 1980 Laura Sandroni 1987 e Sueli Cagneti 1988 que de uma forma ou de outra destacam as renovações lingüísticas operadas por Lobato E é do discurso da primeira autora que colhemos a melhor definição do pensar e fazer lobatiano sobre as coisas da língua A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 97 Parecenos que Lobato quer atingir os puristas do seu e do nosso tempo os que o acusaram de poluir a língua ou lhes dar uma resposta operando num nível lingüístico totalmente incompatível com os padrões estabelecidos na época utilizando a língua para chamar a atenção para o discurso em si PEREIRA 1980 p100 Foto fragmento da carta E ousamos dizer que alguns leitores infantis perceberam as intenções de Lobato como Modesto Marques nomeado pelo escritor entre seus correspondentes como o menino número 1 dos últimos tempos O menino escreveu entre os anos de 1941 a 1945 seis cartas na primeira aos doze anos de idade e dirigida à Emília Digna Condessa de XXX considerada por ele sua Princesa Isabel que lhe alforriou da sisudez das coisas do mundo e lhe transformou em Emiliano libertado de uma rotina mental o menino diz travar um diálogo de libertado para libertador Outro fato a ser destacado nessa correspondência é a apropriação do leitor das estratégias utilizadas pela personagem Emília apresentandoa como condessa de três estrelinhas José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 98 autodenominação da boneca em suas memórias como observaremos na análise desse título OS DES A FIOS DA MEMÓRIA A proposta deste texto é analisar como o dialogismo se instaura na obra infantil Memórias da Emília de Monteiro Lobato Cientes de que não conseguiremos nos limites deste texto abarcar as várias formas de manifestação do diálogo propomonos levantar no conjunto das diferentes linguagens que compõe o texto algumas manifestações do modo pelo qual a palavra do outro é incorporada ao discurso do autor Para tal consideraremos a concepção dialógica de Mikhail Bakhtin que se consolida na idéia de que na tessitura de qualquer enunciado sobre determinado objeto já se encontram outros fios outras vozes que se fiam desfiam e desafiam a existência de um discurso neutro e singular Negase portanto a existência de palavras puras virgens de significado pois elas já estão envoltas e vivem em ressonância com outras vozes Somente o Adão mítico estava frente a frente do verbo primeiro já que todo texto está em sua origem habitado povoado por outras vozes por outros textos já escritos BAKHTIN 1993 p 88 A noção bakhtiniana de que o discurso é por natureza dialógico se fundamenta numa relação de alteridade entre o eu e o outro ou seja fazse necessário ouvir considerar e até mesmo chocarse com a voz do outro O outro assume uma essência múltipla outro enquanto voz antecedida outros textos outro enquanto voz imprevisível o leitor as várias vozes sociais que ecoam no meio em que circula o escritor e por que não a própria voz do escritor em consonância eou dissonância com estes discursos O escritor sempre expressa na sua construção literária um ponto de vista assume A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 99 posições seu discurso sempre está revestido de conteúdo ideológico Como observa Bakhtin cada gênero literário nos limites de uma época e de um movimento se caracteriza por sua concepção particular do destinatário da obra literária por uma percepção e uma compreensão particulares do leitor BAKHTIN 1992 p 324 No caso de Lobato como já foi explicitado a intenção estética e a ideológica estão visceralmente interligadas Esteticamente o autor tinha um projeto literário voltado ao público infantil que visava romper com as narrativas que circulava pelo País adaptações galegais português empoleirado respeitando um estilo e uma linguagem própria para criança contribuindo para a formação de um público leitor Ideologicamente o autor crê no papel que a leitura pode desempenhar na formação cidadã dos leitores pois depositara todas as suas cartadas nas crianças enjoado que estava de escrever para os adultos Quando ao escrever a história de Narizinho lá naquele escritório da rua Boa Vista me caiu do bico da pena uma boneca de pano muito feia e muda bem longe es tava eu de supor que iria ser o germe da encantadora Rainha Mab do meu outono LOBATO 1944 p 504 Dividido em quinze capítulos Memórias da Emília é uma narrativa que narra a si mesma ou seja desafia o processo de escrita da memória Lobato mantém alguns dos princípios da narrativa memoralística mas os rearticula de forma paródica Se pensarmos o discurso paródico como aquele em que o autor fala a linguagem do outro revestindoa de orientação oposta à orientação do outro BAKHTIN 1981 p 168 devemos ter em conta que a presença desse novo texto pressupõe a presença do texto ausente A primeira voz para servir ao fim paródico precisa fazer parte do repertório do leitor O gênero memoralístico seria conhecido dos leitores José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 100 Eliane Zagury em estudo sobre a escrita do eu respondenos ao fazer contraponto com a moda dos livros de base autobiográfica principalmente de Graça Aranha Medeiros de Albuquerque e Humberto de Campos publicados entre 1931 e 1935 e as Memórias da Emília concluídas em 10 de agosto de 1936 observando que a paródia se instala pela efervescência do gênero no período e o reconhecimento pelo leitor do discurso parodiado ZAGURY 1982 p 103 Parece admissível então dizer que o leitor daquele período ao se deparar com a leitura do livro poderia compreendêlo ativamente percebendoo como um discurso de questionamento E os leitores de hoje Em tempos de biografias autobiografias e memórias que inundam o mercado livreiro podemos dizer que o leitor contemporâneo interage com o texto e na maioria das vezes pergunta onde começa eou termina a verdadementira desses relatos O autor põe em foco a movência das fronteiras entre história e literatura real e ficcional questionamentos estes que permeiam o discurso teórico desde a Antigüidade Aristóteles já distinguia o ofício do historiador e o do poeta pertencendo o discurso do primeiro ao universo do sucedido e o do segundo ao universo do que poderia suceder a poesia pertenceria ao campo do universal e a história ao campo do particular ARISTÓTELES 1973 p 451 Nesse campo do particular ficaria circunscrito o discurso da memória enquanto registro do acontecido Nas palavras de Eduardo Portella contudo memórias são entidades literárias autônomas que se situam no meio caminho entre a autobiografia e a história PORTELLA 1958 p191 O entre lugar o meio caminho destinado ao gênero possibilita o seu deslocamento tanto no campo do verídico como no do verossímil A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 101 A tradição da escrita do gênero memoralístico é questionada pela boneca que resolve compor as suas memórias da maneira mais inusitada Frente ao discurso de que o sujeito do ato memoralístico só pode redigilo se já viveu bastante Emília solapa o tempo e finge uma possível morte eliminando a gravidade do discurso Se para a Emília a verdade é uma espécie de mentira bem pregada das que ninguém desconfia LOBATO 1994 p8 nada mais justo que ficcionalizar o seu relato A transgressão dos domínios da lógica habitual característica marcante das obras de Monteiro Lobato não se dá só no sentido da criação das personagens e de suas ações temos aqui a contestação do próprio gênero memoralístico que aparece como norteador da narrativa A dessacralização do gênero memória já é apontada no primeiro capítulo quando Emília adverte que a escrita da memória nunca é neutra Quem escreve memórias arruma as coisas de jeito que o leitor fique fazendo uma alta idéia do escrevedor Mas para isso ele não pode dizer a verdade porque senão o leitor fica vendo que era um homem igual aos outros Logo tem de mentir com muita manha para dar idéia de que está falando a verdade pura LOBATO 1994 p7 Resolvida a escrever suas memórias Emília convoca o Visconde de Sabugosa como secretário a princípio sob sua orientação Envolvida pelas dificuldades do começo a boneca ganha tempo mostrando preocupação com a materialidade do impresso exigindo tinta cor do mar papel cor do céu e pena de pato com todos os seus patinhos Exigências estas permeadas de duplicidade pois podemos entender como mais uma das irreverências da boneca por outro lado podem ser lidas como uma crítica às trivialidades que muitas vezes rodeiam o imaginário da escrita ou ainda mais uma José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 102 reflexão sobre os aspectos físicos do livro e sua contribuição para o resultado final da publicação A imprevisibilidade da narrativa já se apresenta no início dado por Emília com seis pontos de interrogação demonstrando uma perplexidade frente as dificuldades da escrita O elemento gráfico do ponto de interrogação preenche os vazios e porque não reproduz fenômenos da oralidade num entrecruzamento das duas modalidades de uso da língua é desaconselhada pelo Visconde que exemplifica o caminho tradicional das narrativas memoralísticas com a citação do livro As Aventuras de Robinson Crusoé Nasci no ano de 1632 na cidade de Iorque filho de gente arranjada etc O discurso de Daniel Defoe é apreendido e reinterpretado dinamicamente por Emília que reveste a palavra do outro de um colorido paródico ao ditar ao Visconde Nasci no ano de três estrelinhas na cidade de três estrelinhas filha de gente desarranjada LOBATO 1994 p10 Tal saída se faz com o objetivo de ludibriar os futuros historiadores gente mexeriqueira Aparece aqui a crítica à prática comum dos pesquisadores que buscam nos registros da memória maior fundamentação para sua pesquisa A transgressão se apresenta na medida em que novamente Emília desassocia a idéia de suas memórias como documento legado à posteridade isto é nega o poder à história com seus caprichos de dama elegante ASSIS 1994 p11 A desobediência ao discurso memoralístico se processa também pelo modelo escolhido Emília Ela não pertence a um grupo seleto ao mundo das celebridades das pessoas públicas Sua árvore genealógica ab ovo se restringe a uma saia velha de tia Nastácia costurada e enchida de macela Por outro viés ela tem o poder da fala Nem tanto boneca nem tanto gente nesse limiar somente ela entre as personagens do Sítio poderia assumir esse papel A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 103 distanciador de quem está fora e de quem está dentro e poder questionar subverter o discurso canônico No segundo capítulo o Visconde assume dupla função exercer a função de escriba assumindo o papel do outro Emília e ordenar as suas próprias memórias dentro de um limite imposto pela boneca as coisas que aconteceram no sítio e ainda não estão nos livros LOBATO 1994 p11 O Visconde seleciona a história do anjinho de asa quebrada e tenta dar veracidade às memórias colocandose como integrante do episódio vivido Na qualidade de registro do vivido aqui o vivido ficcional o Visconde relata ao leitor a descrição das circunstâncias do fato narrado enumerando as peripécias realizadas na Viagem ao Céu de onde trouxeram a figura celestial A estratégia comercial de propagandear seus títulos anteriores dentro das novas narrativas é uma freqüente em toda a produção de Monteiro Lobato como já destacamos em trabalho anterior DEBUS 2004 No caso específico de Memórias de Emília o diálogo com o leitor se dá por títulos que aparecem ao longo da narrativa e explicitamente em trechos como este As crianças que leram as Reinações de Narizinho com certeza também leram a Viagem ao Céu aonde vêm contadas as aventuras dos netos de Dona Benta da Emília e também as minhas no país dos astros LOBATO 1994 p12 O Visconde transporta para a escrita os fatos acontecidos colocandoos no discurso direto das personagens marcado graficamente pelo travessão contudo entre aspas para confirmálo enquanto representação de um diálogo isto é assume o papel de imitação de um discurso entre personagens Um discurso dentro do discurso A presença no Sítio de um anjo de asa quebrada que desconhece as coisas da terra propícia à Emília introduzir as aulas peripatéticas ao gosto e modelo aristotélico como método de ensino José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 104 da língua para Flor das alturas que no ar livre do pomar aprende os mistérios da língua Emília aponta para o significado lingüístico das palavras e a sua multiplicidade de sentidos como o do vocábulo cabo Cabo é uma perna só por onde a gente segura Faca tem cabo Garfo tem cabo Bule tem cabo e bico tam bém Até os países têm cabo como aquele famoso Cabo da Boa Esperança que Vasco da Gama dobrou ou aquele Cabo Roque da Guerra de Canudos um que morreu e viveu de novo Os exércitos também têm ca bos Tudo tem cabo até os telegramas Para mandar um telegrama daqui à Europa os homens usam o cabo submarino LOBATO 1994 p13 As relações entre o significado da palavra cabo objeto lugar e pessoa e a introdução de conteúdos de História que adentram na narrativa foram destacados por Janice Theodoro como possibilidade de introduzir conteúdos de História escapulindo de uma visão linear de ensino reorganizando o conteúdo ao relacionar os fatos através da palavra e constrói uma linha invisível do caráter nacional brasileiro Janice Theodoro Emília brinca com as formas e possibilidades dialógicas de transmissão da palavra do uso cotidiano ao uso literário a cobra enquanto animal odiado e a serpente como motivo de sedução o tigre cruel e o seu significado de bravura As suas informações sobre as coisas cotidianas vão se imbricando de poeticidade desautomatizando as informações de sua rotina do contexto usual Raiz é o nome das pernas tortas p12 Machado é o mudador das árvoresp12 Frutas são bolas que as árvores penduram nos ramos LOBATO 1994 p15 O anjo Flor das Alturas parece ter aprendido bem a lição num primeiro momento quando demonstra a Alice a do País das Maravilhas sua aprendizagem repete ao pé da letra os ensinamentos A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 105 de Emília mas num segundo momento apresenta a sua própria interpretação ao falar dos bolinhos de tia Nastácia Ela amassa esse pó com gema de ovo e gordura continuou o anjinho Enrola os bolinhos entre as pal mas brancas de suas mãos pretas e os põe em lata num buraco muito quente chamado forno Passado al gum tempo os bolinhos ficam no ponto e é só come LOBATO 1994 p27 Assim as palavras adquirem novos significados desprovidas de proprietário e do significado neutro do dicionário elas assumem seu papel de elemento vivo e concreto na comunicação Emília reflete também sobre a evolução histórica e social da linguagem os contextos em que as palavras são empregadas e sua pluridimensão No entanto Emília vincula as calamidades do mundo à língua Para aquele ser ingênuo que desconhece a língua e seu uso Emília adverte Você vai custar a compreender os segredos da língua LOBATO 1994 p15 A ruidosa visita de crianças do mundo real ao Sítio não é novidade na obra de Monteiro Lobato contudo temos no terceiro capítulo das memórias um grupo de criança favorecido por uma escolha democrática os inglesinhos que como as outras crianças do mundo estavam curiosos para ver o anjo de asa quebrada O escritor elenca os soberanos pelas suas titulações honoríficas o rei da Inglaterra o Presidente Roosevelt Fuehrer na Alemanha Duce na Itália o Impredaor no Japão e Negus na Etópia Por trás do episódio da escolha democrática entre os governantes de países diversos Alemanha Itália Etiópia Japão EUA e Inglaterra podemos ler a ironia do autor pois historicamente isto não poderia acontecer haja vista que a Alemanha nazista sob o comando de Hitler vivia numa ditadura bem como a Itália fascista de Mussolini que em 1936 conquista a força a Etiópia José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 106 Juntamente com as crianças inglesas e o Almirante Brown vêm Alice e Peter Pan duas personagens da literatura infantil inglesa Lobato ao citar os dois livros de Lewis Carrol Alice no país das maravilhas 1865 e Alice através do espelho 1872 dialoga com seu exercício de tradutor Não esquecer que em 1931 mesmo ano da tradução do primeiro Alice Lobato dava ao público Robinson Crusoe citado no início dAs Memórias da Emília Os autores ingleses e norteamericanos foram seus preferidos e na Coleção Terramarear deu vazão ao exercício de tradução uma constante na sua carreira ROCHA 2002 As suas palavras no prefácio de Alice no país das maravilhas demonstram a sua preocupação com os cuidados da tradução em especial aquela destinada as crianças Traduzir é sempre difícil Traduzir uma obra como a de Lewis Carroll mais que difícil é dificílimo Tratase do sonho duma menina travessa sonho em inglês de coisas inglesas com palavras referências citações alusões versos humorismo trocadilhos tudo inglês isto é especial feito exclusivamente para a mentalidade dos inglesinhos O tradutor fez o que pôde mas pede aos pequenos leitores que não julguem o original pelo arremedo Vai de diferenças a diferença das duas línguas e a diferença das duas mentalidades a inglesa e a brasileira LOBATO 1969 Quando Emília apresenta a personagem inglesa a Tia Nastácia o faz como se fosse a uma velha conhecida Esta aqui tia Nastácia é a famosa Alice do País das Maravilhas e também do País do Espelho lembrase O jogo entre o que se sabe sobre e a tradução são destacados na argumentação da Emília frente ao espanto de tia Nastácia que ao ser apresentada à menina descobre que ela se comunica na Língua Portuguesa Muito boas tardes Senhora Nastácia murmurou Ali ce cumprimentando de cabeça A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 107 Ué exclamou a preta A inglesinha então fala a nossa língua Alice já foi traduzida em português explicou Emília LOBATO 1994 p39 Peter Pan por sua vez já é uma personagem conhecida no Sítio do Picapau Amarelo ora na possibilidade de ser o Peninha ora como Peter Pan A história do eterno menino da terra do nunca criada pelo romancista e dramaturgo inglês James M Barrie foi adaptada por Lobato em 1930 na sua linha de introduzir dona Benta contando as histórias em pequenos serões para os moradores do Picapau Amarelo A chegada das crianças inglesas propicia duas inversões de papéis provocadas por Emília e pelos netos de Dona Benta A primeira consiste no mascaramento do Visconde em anjinho o divino é vulgarizado ao ser travestido com uma camisola de Emília e asas de gavião polvilhadas com farinha de trigo A segunda consiste na manutenção do Almirante Brown como refém durante a estada no sítio um adulto e responsável por uma tripulação é subordinado ao poder das crianças O celestial anjo e o poder almirante são reibaxados de suas posições Os cuidados tomados para a segurança do anjo são ameaçados por outras duas personagens do mundo maravilhoso o Capitão Gancho e o marinheiro Popeye Mas Pedrinho e Peter Pan auxiliados por Emília conseguem derrotálos Ao introduzir uma personagem da história em quadrinhos Lobato tenta dialogar com esta linguagem é claro que não através dos dois códigos de signos gráficos que compõe o sistema narrativo dos quadrinhos a imagem obtida pelo desenho e a linguagem escrita em balões GAGNIN 1975 p25 mas pela descrição da ação da luta em movimento contínuo necessidade primordial dos José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 108 quadrinhos Popeye X Capitão Gancho Popeye X Peter Pan e Pedrinho Não podemos esquecer que a primeira aparição de Popeye no Brasil se dá justamente em 1936 GOIDANICH 1990 p 320 o que nos leva a concluir que Lobato dialoga com um fenômeno novo mas conhecido do público Popeye é duplamente ridicularizado primeiro por sua descrição de bêbado e segundo por sua derrota que coincide com o desmascaramento de seu próprio artifício o uso do espinafre que Emília troca por couve amassada Do capítulo terceiro ao nono o Visconde narra sem a interferência de Emília toda a estória do anjinho a vinda das crianças inglesas a luta de Popeye com o Capitão Gancho com os marinheiros do Wonderland e depois com Pedrinho e Peter Pan p42 No capítulo X a narrativa se desenvolve com o diálogo entre Emília e o Visconde Emília aprova os capítulos escritos admitindo que agora poderá dizer que sabe escrever memórias sob esta afirmação o Visconde interroga Sabe escrever memórias Emília Repetiu o Visconde ironicamente Então isso de escrever memórias com as mãos e a cabeça dos outros é saber escrever memó rias Perfeitamente Visconde Isso é que é o importante Fazer coisas com a mão dos outros ganhar dinheiro com o trabalho dos outros pegar nome e fama com a cabeça dos outros isso é que é saber fazer as coisas Olhe Visconde eu estou no mundo dos homens há pouco tempo mas já aprendi a viver Aprendi o grande segredo da vida dos homens na terra a esperteza Ser esperto é tudo LOBATO 1994 p42 A reação do Visconde é de indignação e insinua a interrupção do processo de escrita mas mostrase resignado diante dos argumentos da boneca de que qualquer outro poderá continuála inclusive o Quindim Destacase a crítica ferrenha à escrita da A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 109 memória encomendada prática comum na década de 1930 e que persiste até hoje Quem não lembra da crítica a Fernando Sabino quando da feitura das Memórias de Zélia Cardozo então ministra da economia do Brasil Não se discute aqui o papel de escriba pois o Visconde cumpre a dupla função não só redige como cria a memória O humor de Lobato leva o leitor a refletir e perceber a verdadeira condição humana velada pela prática capitalista e individualista do ter sempre mais dar um jeitinho a esperteza emiliana pela exploração do mais fraco a possibilidade de tomar do outro o que lhe é proveitoso caracteriza personagens ontológico como Macunaíma Mário de Andrade e Pedro Malazartes popular e a eles a boneca de pano foi muitas vezes comparada Ao transgredir os códigos tanto da língua como sociais Lobato aponta para as contradições do mundo Porém seu humor é de uma leveza quase que intransponível pelo leitor e muitas vezes foi ao nosso ver contraditoriamente entendido No capítulo XI o fluxo das memórias da boneca misturase com o do Visconde provocam a descontinuidade da narrativa e coloca em contradição a escrita da memória O próprio percurso seqüencial do relato é rompido com a terceira interrupção de Emília que vem espiar suas memórias mas sempre parte com a desculpa de estar ocupada deixando ao encargo do Visconde a continuidade do relato Outro fator que auxilia como suporte de interrupção bem que ilusória é a disposição da estrutura textual em capítulos Porém os subtítulos de cada capítulo orientam o leitor sobre o episódio a seguir como que exercendo a função de sinopse do que está por vir atamse os fios da narrativa e a sua ilusória descontinuidadeinterrupção No capítulo XII o Visconde descobre o poder da escrita e resolve ir contra o mandonismo e autoritarismo de Emília do Faça o que eu mando e não discuta descrevendo como ele realmente a vê José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 110 tirana de coração criatura mais interesseira do mundo criaturinha incompreensível Tais características no entanto revelam a ambivalência de Emília que se encontra no limiar da loucura e da sensatez diz asneiras e coisas sábias Na impossibilidade de definila o Visconde busca as próprias palavras da boneca no dia em que lhe perguntou o que realmente ela era Sou a independência ou Morte LOBATO 1994 p48 Emília ao descobrir que o Visconde quer lhe impingir uma mentira exige que leia o que realmente escreveu e para espanto deste ela não se zanga O senhor me traiu Escreveu aqui uma porção de coi sas perversas e desagradáveis com o fim de me des moralizar perante o público Mas pensando bem vejo que sou assim mesmo Está certo LOBATO 1994 p282 A preocupação com o leitor condição primeira de quem escreve é aludida por outra lógica pois a imagem o testemunho de vida do memorialista é aviltado e Emília aprova esquecendo a possível desmoralização No XIII capítulo a narrativa das memórias recebe o contorno das mãos de Emília que decide redigilas sob o prisma do que poderia ter acontecido se o anjo não tivesse retornado ao céu Emília ao descrever sua fuga no navio inglês subverte o estatuto do gênero memoralístico enquanto condição de documento do real vivido no seu caso o real ficcionalizado nas aventuras do Sítio O navio Wonderland que trouxe os personagens maravilhosos da Inglaterra pode transportar para outras terras o maravilhoso uma boneca falante um anjo do céu e um sabugo científico Esta aventura adquire foro de independência pois não traz nenhum outro personagem humano nem sequer Narizinho e Pedrinho presentes sempre nas aventuras escritas por Lobato A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 111 O destino de Emília na cidade americana é Hollywood e para alcançálo tem que ludibriar o Almirante que quer lhe apresentar o Presidente Roosevelt desviando o percurso da boneca para Washington Não discuti Fingi que ia para Washington e fui parar em Hollywood de avião LOBATO 1994 p51 Assim o universo do maravilhoso inserido em sua totalidade nas memórias abre a possibilidade de interferência do impossível daquilo que não exige explicações Como isso Perguntará alguém e eu responderei Não me amolem com comos Comigo não há como Fui e acabou se LOBATO 1994 p51 A boneca reinstaura a presença do público leitor ao antecipar sua indagação respondendolhe e ao mesmo tempo puxandolhe a orelha Alerta ao leitor desavisado para a construção do jogo imaginativo da narrativa A narrativa dessa forma não esquece o leitor a que se destina presentificase aqui a afirmação de Bakhtin de que todo discurso literário sente com maior ou menor agudeza o seu ouvinte leitor crítico cujas objeções antecipadas apreciações e pontos de vista ele reflete BAKHTIN 1981 p 170 Lobato admirador incondicional dos Estados Unidos entusiasta do cinema falado americano CAVALHEIRO 1955 dialoga com esse gênero introduzindo personagens da fábrica de sonhos nas memórias de Emília A inserção desses personagens bem como do diretor da Companhia cinematográfica Paramount multiplica o espaço do maravilhoso O contato com Shirley Temple não se faz à revelia Atriz mirim do cinema norte americano dos anos de 1930 assume características de um duplo maravilhoso o mundo da infância e o mundo do cinema ambos com o poder de subverter a lógica real pelo nonsense Questionada pela menina sobre o motivo da visita Emília conta os planos de empregarse na Paramount Shirley então sugere o ensaio José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 112 de uma fita e Emília por sua vez escolhe como enredo a história de Dom Quixote de la Mancha livro conhecido também de Shirley Os elementos cinematográficos como cenografia figurino e montagem aparecem no momento de ensaiar a fitinha A desmitificação picaresca do cavaleiro da triste figura é construída parodicamente uma tampa de lata vira o elmo lata de vagõezinhos quebrados a couraça mais lata para o escudo e um cabo de vassourinha como lança Instalamse assim elementos do sério cômico da caracterização do QuixoteVisconde já acontecido quando do travestimento em anjo Por outro lado presenciase o jogo imaginativo da infância que resignifica objetos e por meio do jogo simbólico anima o estático o inanimado O termo ensaio pode ser lido numa relação intrínseca com o fazer literário do escritor Monteiro Lobato que no mesmo ano da publicação de Memórias da Emília publica Dom Quixote das crianças Ensaio para a adaptação da obra ou divulgação de seu próximo trabalho A referência das memórias de Emília é sempre um real já ficcionalizado nos episódios aventurescos do sítio do Picapau Amarelo quando foge do duplo real sítiomemória para um duplo ficcional Hollywoodmemória seu registro é contestado tanto por Dona Benta o adulto quanto pelo Visconde a ciência No capítulo XIV Emília interrompe suas aventuras em Hollywood pela presença de Dona Benta que fica perplexa quando a boneca afirma estar concluindo suas memórias que o Visconde iniciou e descreve o episódio em Hollywood Emília exclamou Dona Benta Você quer nos ta pear Em memórias a gente só conta a verdade o que houve o que se passou Você nunca esteve em Holly wood nem conhece a Shirley Como então se põe a in ventar tudo isso A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 113 Minhas Memórias explicou Emília são diferentes de todas as outras Eu conto o que houve e o que devia haver Então é romance é fantasia São memórias fantásticas LOBATO 1994 p54 A instauração da memória fantástica permite que novas aventuras sejam interpoladas ao texto acomodandose na unidade do narrado A memória tornase um texto aberto O deslocamento para fronteiras além do vivido além do espaço do sítio acaba por provocar um deslocamento da narrativa Cansada de escrever as memórias a boneca pede novamente o auxílio do Visconde que questionando o ponto da narrativa fica espantado ao ouvir a história de Hollywood e argumenta a impossibilidade de falar de fatos que não viveu e nem lhe foram contados A boneca não se aperta e diz ao Visconde E que tem isso bobo Eu também não estive lá e estou contando tudo direitinho Quem tem miolo não se aperta LOBATO 1994 p55 Confirmando a inventividade do narrado A transgressão do Visconde em dar o fim à narrativa com ponto final após o juramento de Emília que poderia terminar de qualquer maneira é corrigida com um rabinho que transforma o ponto em vírgula Ele tenta novamente imporse à boneca pela escrita entrando agora no jogo do possível e registrando que Emília não foi contratada pela empresa cinematográfica e que somente ele e o anjinho ascenderam à constelação dos astros Contudo a boneca ao ler afirma ser sabotagem e faz com que pelas próprias mãos o Visconde registre o fim das aventuras de forma inversa ficando o Visconde fora dos estúdios da Paramount Agora sim Agora a coisa está direita exatinho como se passou José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 114 Passou nada disse o Visconde num resmungo Você nunca esteve em Hollywood Estive sim em sonho E tudo quanto vi em sonho foi exatamente como acabei de ditar Eu e flor das Altu ras viramos estrelas da tela Você foi para uma lata de lixo Isso não escrevo protestou o Visconde Escreva ou não foi o que aconteceu LOBATO 1994 p57 A persistência da boneca se torna condizente na medida em que o sonho ao ser registrado transformase em parte do vivido Emília nascida na comunidade singular do sítio do Picapau Amarelo não pode tecer a sua história de forma fechada haja vista que ela só pode ser reconstruída no plural ou seja inserida nos limites do grupo a que pertence Assim Emília levanta na sua autodefesa no último capítulo a descrição e idéias sobre cada elemento do grupo Monteiro Lobato escreve as memórias da Emília inter relacionadas com as memórias do Sítio ou melhor com a memória de sua própria produção literária para crianças pois enumera ao longo da narrativa seus outros livros escritos até ali Peter Pan 1930 Reinações de Narizinho 1931 Viagem ao Céu 1932 Emília no país da gramática 1934 Aritmética da Emília 1935 Geografia de Dona Benta 1935 aquele que seria publicado no mesmo ano de 1936 Dom Quixote das Crianças e suas traduções Alice no País das Maravilhas Alice através do espelho e Robinson Crusoé O discurso autoconsciente de Emília no último capítulo é um reflexo gerado pelo discurso do outro no caso o Visconde Esta autodefesa porém pode ser compreendida também como uma autodefesa do próprio Lobato no que diz respeito a insensibilidade da boneca e o preconceito étnicoracial na representação de Tia A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 115 Nastácia O discurso bivocal do último capítulo está inscrito no denominaríamos de polêmica velada onde a idéia do outro não entra pessoalmente no discurso apenas se refletindo neste e determinandolhe o tom e a significação BALHTIN 1981 p 170 Se considerarmos as colocações a falta de sensibilidade da boneca a questão étnicoraciais Podemos inserir as Memórias da Emília no contexto das narrativas de viagens na medida em que o narrado se entrecruza com suas aventuras além do espaço do sítio no Reino das Águas Claras a fala se instala da viagem ao céu traz o anjinho Flor das Alturas na geografia de Dona Benta o conhecimento de países distantes do País das Fábulas de La Fontaine emerge o burro falante na viagem à Hollywood aprende a arte e as artimanhas do mundo cinematográfico A linguagem utilizada por Lobato é pluridiscursiva porque abarca a linguagem da vida ideológica e verbal de sua época tanto no que se refere à camada social como à idade coexistindo também línguas de épocas e períodos diversos Destacamse no texto as gírias utilizadas pelas personagens mas é peta ali na batata cambada repimpadas pílulas munhecaços turumbamba peteleco patavina Vocábulos que contribuem para o tom coloquial da narrativa Os vestígios da oralidade se instalam pelas expressões populares Quando chega o nosso dia o gancho da morte nos pesca sejamos reis ou mendigos não sobrou uma só laranja para remédio bem como a inserção de provérbios gênero produzido e popularizado também pela linguagem oral em forma de citação literal sua alma sua palma Quem vai buscar lã sai tosquiado Boa romaria faz quem em casa fica em paz E o provérbio revestido de um novo sentido Quem moinhos apetece é isso que acontece José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 116 A língua em constante transformação dá vida a novas palavras daí a introdução de neologismos como quebramento descomem escrevedor mudador encouvado comedorias depenar em outro sentido que aquele de tirar penas e sim as pernas e os braços do visconde Ao vestir o anjo de Sancho Pança instalase o verbo sanchar Destaque também para as criativas justaposições dasno antes sesse homessa elissimo O diálogo com a língua estrangeira do outro por meio de introduções de palavras em inglês no discurso em português shocking yes oranges mariners shakehand good bye driver além da famosa frase do marinheiro Popeye I am sailor man A heterogeneidade de gêneros do discurso primário e secundário na construção literária de Lobato é representada no discurso filosófico de Emília com seus conceitos e filosofia de vida a vida é um piscapisca no discurso solene do Almirante Brown pelo discurso poético das definições da boneca Discursos diversos que entram em confronto no jogo da narrativa como no discurso cerimonioso de agradecimento do Almirante em choque com a sem cerimônia de Emília que lhe pede como gratificação pelo embate vencido contra Popeye uma caixa de leite condensado ÚLTIMAS IMPRESSÕES No Sitio do Picapau Amarelo brincar e aprender são sinônimos e essa aprendizagem se dá por dois caminhos o da erudição e o das coisas práticas o primeiro representado por Dona Benta e o segundo por Tia Nastácia como destaca Emília ao final de suas memórias A aprendizagem da língua pelo anjo se dá nos contextos informais do cotidiano do Sítio no pomar entre laranjeiras jabuticabeiras e pitangueiras na cozinha de Tia Nastácia entre panelas e bolinhos de frigideiras Uma aprendizagem que assume A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 117 forma de inserção cultural e de socialização do ser celestial nos usos práticos da língua A pluralidade de vozes inseridas no texto assinala uma diversidade de concepções de mundo que apresentam ao leitor um horizonte diverso do habitual oferecendolhe outros pontos de vista A relação dicotômica estabelecida por lobato entre linguagem escrita e linguagem oral é tecida na contramão dos estudos da gramática normativa que se detêm na supremacia da escrita em detrimento da oralidade enquanto ele por seu turno enaltece a linguagem oral No entanto aproximase do pensamento contemporâneo de que as línguas se constituem a partir de usos e práticas sociais A articulação do dialogismo em Memórias da Emília manifesta se pela representação da voz das personagens da voz dos narradores pela inclusão de gêneros diversos etc Enfim Lobato não purifica seu texto das intenções e voz do outro O texto se finda na indecisão de escolha entre as sugestões da bonequinha de pano do ponto final sinal de pontuação do FINIS língua latina ou do tenho dito expressão de cunho coloquial simplesmente se coloca como um interstício uma pausa repouso para reinício posterior REFERÊNCIAS ARISTÓTELES Poética Trad Eudoro de Souza São Paulo Abril Cul tural 1973 ASSIS Machado Memórias Póstumas de Brás Cubas São Paulo Sci pione 1994 BAKHTIN Mikhail Estética da criação verbal São Paulo Martins Fon tes 1992 Marxismo e filosofia da linguagem São Paulo HUCITEC 1992 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 118 Problemas da Poética em Dostoiévski Trad Paulo Bezerra Rio de Janeiro Forense Universitária 1981 Questões de Literatura e estética a teoria do romance Trad Aurora Fornoni Bernadini et all 3 ed São Paulo HUCITEC 1993 BENJAMIN Walter O narrador considerações sobre a arte de Nikolai Leskov Trad Sérgio Paulo Rouanet 7ed São Paulo Brasiliense 1994 BRASIL Padre Sales A literatura infantil de Monteiro Lobato ou co munismo para crianças Bahia Aguiar Silva 1957 CAGNIN Antônio Luiz Os quadrinhos São Paulo Ática 1975 CAGNETI Sueli de Souza A inventividade e a transgressão nas obras de Lobato e Lygia confronto Dissertação de Mestrado Florianópolis UFSC 1988 CAVALHEIRO Edgar Monteiro Lobato vida e obra Vol2 São Paulo Companhia editora Nacional 1955 DEBUS Eliane O leitor esse conhecido Monteiro Lobato e a forma ção de leitores Santa Catarina UNISULUFSC 2004 DEBUS Eliane Diálogo com o leitor escolar Cultura Diário Catari nense Sábado 8 de abril de 2006 Entre fios meadas e tramas Emília desafia a palavra escri ta e tece suas memórias In Revista LIBEC line Revista em Lite racia e BemEstar da Criança Universidade do Minho IEC n 1 p 1 15 2007 GOIDANICH Hiron Enciclopédia dos quadrinhos Porto Alegre LPM 1990 HALBWACHS Maurice A memória coletiva Trad Laurent León Scha effer 2ed São Paulo Revista dos Tribunais 1990 LAJOLO Marisa ZILBERMAN Regina Literatura infantil brasileira histórias e histórias São Paulo Ática 1987 LE GOFF Jacques História e memória 2ed Trad Bernardo Leitão et al Campinas São Paulo UNICAMP 1992 LOBATO Monteiro Prefácios e entrevistas São Paulo Brasiliense 1951 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 119 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs A Barca de Gleyre São Paulo Brasiliense 1944 Memórias da Emília 42ed São Paulo Brasiliense 1994 Dom Quixote das crianças São Paulo Brasiliense sd Emília no país da gramática São Paulo Brasiliense sd Negrinha São Paulo Brasiliense 1950 p117134 CARROLL Lewis Alice no País das Maravilhas Tradução adaptação e introdução de Monteiro Lobato 10 ed São Paulo Brasiliense 1969 PEREIRA Maria Teresa Gonçalves Processos expressivos na Literatu ra Infantil de Monteiro Lobato Dissertação de Mestrado Rio de Janei ro PUCRJ 1980 PLATÃO A república Trad Maria Helena da Rocha Pereira 6ed Lis boa Fundação Calouste Gulbenkian 1990 PORTELLA Eduardo Problemática do memoralísmo In Dimensões crítica literária Rio de Janeiro José Olympio 1958 ROCHA Pedro Alberice Monteiro Lobato reescritor de Kipling São José do rio Preto UNESP 2002 Tese de doutorado SANDRONI Luciana Minhas memórias de Lobato contadas por Emí lia Marquesa de Rabicó e pelo Visconde de Sabugosa Ilust Laerte São Paulo Companhia das Letrinhas 1997 ZAGURY Eliane A escrita do eu Rio de Janeiro Civilização Brasilei ra Brasília INL 1982 120 ESTÉTICA DO LABIRINTO NA PRODUÇÃO PARA CRIANÇAS E JOVENS DE ESTRATÉGIAS DE LEITURA AOS DESAFIOS PARA MEDIR A ASTÚCIA DO VIAJANTE Maria Zilda da Cunha NOTA INTRODUTÓRIA Vários autores revelaram sua predileção por labirintos Tema que Kafka em sua genialidade toma como favorito para retratar o ser humano angustiado na busca da identidade Os caminhos labirinticos desse autor são construídos por medos culpas terror paranóias O labirinto de Kafka nos invade e só podemos vencêlo se vencermos a ansiedade e só assim o mundo se oferecerá para ser mascarado Kafka apud Bloom 1994429 Jorge Luiz Borges em seus magníficos ensaios arquiteta uma obra que se confunde com a imagem do labirinto Tecidos de de fios diversos e imagens sombrias os labirintos de Borges nos falam de morte mas também falam do acervo da espécie e imaginação humana que se agregam ao mundo adensandolhe a complexidade Julio Cortázar em O jogo da amarelinha faz a revelação de labirintos virtuais que se escondem na escrita Lewis Carrol em uma produção para crianças arquiteta a partir do nonsense e de paradoxos caminhos labirínticos na justaposição de mundos entre o real e a fantasia Os labirintos em Alice desestabilizam noções de tamanho tempo espaço corrompem as molduras da lógica aristotélica na esteira de Deleuse destroem paradigmas esclerosados Os labirintos são imagens que persistem na história da humanidade e revelam profundas questões do imaginário e do pensamento humano São inúmeras as definições e várias as simbologias que a ele se vinculam Os recentes trabalhos com a hipermídia também apresentam uma estrutura labirintica com uma A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 121 construção intrincada tortuosa com estratagemas que sinalizam múltiplos caminhos bifurcações e múltiplos centros Neste artigo valendonos do labirinto como metáfora para nos acercar de alguns textos entre livros e telas literários para jovens e crianças textos cujas arquiteturas projetam desafios de modo a fazer o leitor imergir em intrincado espaço textual Percurso em que o viajante pode depararse com caminhos que engendram múltiplas possibilidades numa exploração em que a regra básica não é chegar rapidamente ao final mas visitar o maior número possível de lugares para conhecer o labrinto como um todo Entendemos o viajante como aquele que busca conhecimento numa aventura em que vive o trajeto de significações e ressignificandoas substancializa sua existência Quem viaja busca respostas e se depara sempre com novas perguntas O viajante leitor assim fazse na espessura do texto e no diálogo com o contexto Ao reencontrarse com o mundo na saída sentirseá transformado As reflexões que aqui empreendemos fazem parte de um projeto maior que visa ao aprofundamento das reflexões sobre leitura e procura dimensionar a produção artística contemporânea para jovens e crianças verificando em que medida as experiências que emergem na relação com novos ambientes hipermidiáticos se tornam capazes de articular a pluralidade em enlaces complexos não se submentendo a padrões unilaterais e hegemônicos LEITURA BREVES REFLEXÕES A leitura é alvo de estudos de diferentes campos vem ocupando parte muito significativa da preocupação educacional contemporânea Em seu conjunto os estudos explicitam a complexidade do processo as estratégias cognitivas e metacognitivas José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 122 mobilizadas pelo leitor a mediação para investiduras críticas e criativas em vários gêneros e também em obras literárias Considera se a leitura envolvendo situações de produção de sentido pois permeia o imaginário do receptor estabelecendo relações voltadas para o contextohistórico uma vez ser condição de produção discursiva Práticas de leitura sob tal orientação oferecem ao leitor possibilidades de estabelecer relações com seus próprios conhecimentos e experiências prévias com outros textos já lidos com o contexto histórico em exercício do pensamento e de adequação ao meio em que vive Em se tratando do texto literário cuja finalidade primeira é a fruição de uma mente criativa via sensibilidade e imaginação é um universo que muitas vezes traz como desafio o recriar de forma relacional meandros da realidade e da ficção possibilitando chegarse ao grau de ficcionalidade do texto à trama que as linguagens orquestram na composição da obra ao grau de literalidade procedimentos estilísticos caráter lúdico e a interação que estabelece com o leitor A leitura assim processase no engendrar de sensações imagens diagramas de compreensão hipóteses experimentações e raciocínio de forma a articular um complexo sígnico que consubstancia o texto literário em sua função social ideológica e estética Ler nessa perspectiva envolve um trabalho ativo do leitor e envolve busca das marcas do enunciador para representar o mundo projetadas no texto nas relações que estabelece com outros textos outras épocas e outros lugares e com outras vozes O texto assim é sempre tessitura das condições de produção do sujeito e seu mundo e suas práticas de linguagem Tessitura que face a revoluções que vivemos adensase A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 123 LEITURAS E LEITORES Vivemos uma revolução da informação da comunicação das linguagens e do conhecimento sem precedentes basta atentarmos para a velocidade das transformações históricas Há algum tempo com a desmaterialização do texto eletrônico passamos a ter um suporte dinâmico que distribui textos on line possibilitando às mensagens circularem por dispositivos múltiplos em arquiteturas hipertextuais com a introdução da escrita nos meios hipermidiáticos surgiram novas formas de recepção Na verdade em termos de leitura há uma dinâmica que providencia em diferentes sociedades e momentos históricos em função das tecnologias de que dispõem tipos específicos de leitores Em estudo recente sobre o perfil cognitivo do leitor contemporâneo Santaella 2007 resgata propriedades do leitor contemplativo próprio do iluminismo para quem o tempo não conta e que tem diante de si textos duráveis livros e que podem ser revisitados a todo e qualquer momento ao sinalizar as diferenças entre esse e o leitor fruto da revolução industrial do desenvolvimento do capitalismo que recebe grande apelo de informações simultâneas desafiado à decifração de textos híbridos em diferentes suportes a autora chama a atenção para a inevitável convivência do leitor do livro meditativo com o leitor movente leitor de formas volumes massas movimentos leitor cujo organismo mudou de marcha sincronizando se à aceleração do mundo A era digital surge com o poder dos dígitos para tratar toda e qualquer informação com a mesma linguagem universal bites de 0 e 1 permitindo que todo e qualquer signo possa ser recebido estocado tratado e difundido via computador Essa era faz nascer o leitor imersivo aquele que diante do texto eletrônico navega programando leituras num universo de José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 124 signos evanescentes e disponíveis Um leitor que desenvolve um estado de prontidão num roteiro multilinear multisequencial e labiríntico Santaella 2007 Esse leitor que está emergindo passa a conviver com leitor do livro meditativo e com o leitor movente leitor de formas volumes massas movimentos Ao fim e ao cabo temos hoje leitores múltiplos e ao mesmo tempo um leitor híbrido A utilização cada vez mais intensiva de redes hipermidiáticas de computadores na produção artística e intelectual de nosso tempo introduz problemas novos outros elementos se interpõem à imaginação criadora ao pensamento investigativo e à indagação estética que se opera em nosso tempo Como salienta Santaella 2007 outras respostas perceptivocognitivas são dadas ao hibridismo promovido pelas novas criações Enfim há outras atividades agora implicadas no ato de leitura posto que todo esse contexto consolida condições de produção do sujeito e seu mundo e suas práticas de linguagem Num contexto como esse qual será o lugar assinalado para o leitor contemporâneo Seu ponto de vista seu local de escuta Evidentemente o desafio é sempre maior que qualquer resposta Algumas obras foram selecionadas a fim de exemplificar modos construtivos que parecem marcar nas formas expressivas contemporâneas o lugar do leitor As escolhas devemse ao fato de a própria obra oferecerse como metáfora para a leitura O LUGAR DO LEITOR NAS FORMAS EXPRESSIVAS CONTEMPORÂNEAS para dizer do novo é preciso criar o novo e na busca de novas formas de feitura do tex to a eficácia estará em romper com o este reótipo e fabricar o inédito Um dis fazimento um dizer que faz o dito e desfaz o repetido Samira Chalhub A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 125 Uma nova consciência de linguagem da materialidade do signo artístico manifestouse na literatura infantil e juvenil a partir dos anos 70 consolidando vetores muito expressivos da criação literária dentre os quais a intertextualidade metalinguagem confluência de códigos resgate de formas de problemáticas diálogos entre palavra e imagem em produções que se constroem questionando ou explicitando o próprio processo de sua construção e convocando o leitor a assumir um posicionamento menos ingênuo nos atos de leitura e fruição Coelho 1998 Propõese desmontagem ativa dos elementos da obra para detectar processos de produção isto a faz ganhar dimensão mais dinâmica uma vez que nela ficam franqueados elementos que presidem sua gênese os diálogos e transformações A recepção por sua vez também tornase mais dinâmica pois modifica de forma constante a leitura desses processos desvelando processos de linguagem de que se reveste a realidade Os recursos ficcionais dessa forma promovem uma produção textual que se faz como tecido com fios de realidade e ficção como jogo de linguagens na configuração do objeto literário a ser disponibilizado para crianças e jovens como se estivessem preparando seus leitores para as próximas metamorfoses A partir dos anos 90 vêm se delineando modos construtivos pela inserção de novas tecnologias na produção recepção e consumo pela interface das linguagens verbais visuais e sonoras pelo estreitamento do tempo e espaço ao homem contemporâneo face ao desenvolvimento das telecomunicações Estas motivações associamse a outras de caráter cultural mais amplo como a consciência de uma complexidade cada vez maior do pensamento e da vida a descoberta do comportamento instável e caótico do universo o esfacelamento dos valores tidos como morais universais e das dicotomias clássicas da divisão social e política do planeta José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 126 Tomando como ponto de partida a observação concreta dos trabalhos literários para crianças e jovens produzidos nos últimos anos temos procurado detectar algumas formas de representação e algumas formas de expressividade que abarcando essa complexidade refletem novos conceitos estéticos A multiplicidade complexidade e metamorfoses aparecem como características essenciais de muitas obras bem como a disponibilidade instantânea de possibilidades articulatórias que o texto permite para a participação do leitor Enfim as obras contemporâneas passam a ser espaço de potencialidades tanto de sujeitos que a integram leitor e autor como dos componentes materiais de significação indeterminada que entram em sua discursivização As obras admitem o instável a imaterialidade sintonizandose com a física quântica a teoria do caos das fractais da cibernética Há obras concebidas de forma não necessariamente acabadas que existem em estado potencial pressupondo assim o trabalho de finalização provisória por parte do leitor ou espectador ou usuário Arquitetadas de modo nãolinear semelhante a das memórias de computador são compostas de textos em fragmentos que estariam ligados entre si por elos móveis e probabilísticos Nestes termos a metáfora do labirinto é bastante apropriada em primeiro lugar porque a arquitetura do texto reproduz a estrutura intricada e descentrada daquele bem como a complexidade que lhe é inerente A complexidade como diz Morin 19911718 é um tecido complexus aquilo que é tecido em conjunto cujos constituintes heterogêneos e contraditórios encontramse inseparavelmente associados Por suas bifurcações e proposições múltiplas em função das ligações ambíguas entre as partes a forma labiríntica permite representar lembrando Bakhtin uma verdade que tem sempre uma expressão polifônica A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 127 O labirinto cretense em sua forma é considerado representativo da complexidade que a imaginação do homem da Antiguidade poderia atingir Ele foi concebido também como um espaço para as festas e jogos De qualquer forma o labirinto possui uma estrutura que implica em uma participação muito intensa do leitorviajante Rosenstiehl 19882523 aponta três traços que seriam definidores do labirinto o convite à exploração a fascinação do percurso está em tentar esgotar a extensão de seus locais e voltar a pontos percorridos para obter alguma segurança a exploração sem um mapa previamente elaborado uma vez que não se tem a visão global a exigência de uma inteligência astuciosa para que o viajante prossiga e progrida sem cair em armadilhas permanecendo em constantes circunvoluções A beleza e a astúcia do labirinto estão na multiplicação das possibilidades e na vivência dos tempos e espaços simultâneos Arlindo Machado 20022545 considera a metáfora do labirinto perfeita para a hipermídia respeitadas as especificidades tal imagem pode ser tomada para textos impressos e videográficos cujos traços constitutivos assemelhamse LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS E AS ESTRATÉGIAS PARA MEDIR A ASTÚCIA DO VIAJANTE Literatura uma espécie de fio de Ariadne que poderia indicar caminhos não para sairmos do labirinto mas para conseguirmos transformálo em vias comunicantes que a concepção do mundo atual exige Nelly Novaes Coelho Realizado em um momento da literatura infantil e juvenil ao qual Nelly Novaes Coelho atribui forte consciência crítica e muita energia inventiva para a configuração de novos vetores estilísticos José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 128 ao que já fizemos referência O Problema do Clóvis de Eva Furnari lançado pela Vale Livros constitui um trabalho bastante original de metalinguagem e intertextualidade A obra retoma o conto dos Irmãos Grimm O Príncipe Sapo na tradução de Monteiro Lobato Pela originalidade no resgate constitui um metatexto uma narrativa que arquitetada de forma labiríntica perfaz um caminho que é sua própria construção A narrativa de Eva Furnari revela a perícia com que cada detalhe carrega significados Só leitores atentos compreendrão as pistas enganadoras O jogo labirintico é matéria constituinte do livro Os elementos dispostos na capa colocam o leitor mesmo antes de sua entrada no espaço textual tramado por diversas linguagens diante de uma situação de combatividade interpretativa uma vez que as pistas ali dispostas bifurcamse em possibilidades Há micro informações endereçadas ao olhar do leitor mas as pistas não estão em consonância com uma memória repertorial sobre o conto retomado Assim o encontrar a chave para a entrada no texto não está facilitado por nenhum processo de identificação Desse modo dependendo da escolha a surpresa ou o encontro com o enredar da estória é diverso Seja qual for a opção do leitor o convite à exploração é irrecusável e seu percurso acaba por ser o de um explorador com vista desarmada sem mapa de orientação posto que a terceira página do livro equivalente à primeira da estória está vazia Isto provoca um deslocamento do referente para o incógnito uma vez que ainda não se tem visão global desse espaço que se vai percorrer Dotado de percepção local o agora viajante leitor avança com atenção para não cair em mais armadilhas mas adiante deparase com alguém que trêmulo de espanto aflição pergunta Ué Cadê a estória O que aconteceu Ambos narrador personagem e A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 129 leitor compartilham o espaço e as aflições a decisão no entanto será do leitor em avançar ou não Ao folhear o livro o leitor vai seguindo por trilhas do estranhamento uma estória no lúdico da página e no lúdico do olhar cruzamse campos intertextuais A atenção redobra para a decifração de pistas e tomada de decisões agora quanto a predição de sentidos Criase um campo para o leitor no espaço imaginário pois os significantes ocultos estão à disposição de uma memória repertoriada Estória de amor De um homem Estória de fadas De um redator Talvez de alguns problemas do editor melhor ainda a estória de uma estória ou dos bastidores de uma história de como se faz um livro de estórias Bem em todos os casos o leitor vai encontrando pluralidade de enfoques com ocorrências paralelas em diagramas de espaço e tempo As sinalizações acionam a memória e provocam confrontação e possibilidades de representar para chegar ao reconhecimento Em uma paródia formal e temática tal livro faz o resgate do conto borrando fronteiras entre técnica e arte magia e trabalho construtivo desnuda o percurso criativo do maquinar desenhar escrever editar até mesmo coordenar a produção de arte de um livro convocandoo a participar desse percurso trabalhoso sujeito a muitas aflições mas divertido Em última instância confrontase o trabalho de criação com as determinações e exigências do mercado editorial Mas é somente ao final que o leitor tem a visão dessas múltiplas ocorrências Em 2007 Zubair e os labirintos foi lançado pela Companhia das Letrinhas A obra tem texto verbal ilustrações e concepção gráfica de Roger Mello Tempo e espaço verbal e não verbal ganham aspecto conceitual na fusão imagética de uma ampulheta na sinopse José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 130 Bagdá abril de 2003 Mísseis sem rumo atingiam ruas e mercados Feridos e mortos em uma confusão de bombardeios Prédios públicos como a Biblioteca Nacio nal e a universidade pilhados Durante três dias o Mu seu de Bagdá foi saqueado diante dos olhos das forças americanas e britânicas que ignoravam o apelo dos funcionários do museu e dos arqueólogos do mundo to do Entre os artefatos roubados relíquias da civilização mesopotâmica de até 7 mil anos de idade levadas de maneira organizada para ser vendidas no mercado de arte clandestino Quando o menino Zubair encontra um objeto entre os destroços depara com enigmas que o conectam a antiga Mesopotâmia onde surgiram a es crita o cálculo e o conceito de tempo Por caminhos tortuosos como labirintos Zubair alcança o tempo dos sumérios acádios assírios e babilônicos antigos povos que agora têm seu legado comprometido da mesma maneira que os atuais iraquianos em meio a guerra MELLO 2007 p2 No âmbito da temática evidenciase uma perspectiva crítica a respeito da violência da guerra e o impacto dessa experiência para a destruição de legados da história e projetos humanos Roger Mello com uma visão muito aguda por meio da ficção chega a um mundo demasiado real e que carece de sentido à semelhança de Borges ele cria fantasmagorias tão coerentes que nos faz duvidar a principio do que seja linguagem e do que seja realidade O artista reveste a realidade brutal por uma complexa trama de linguagens A obra sugere a viagem pelos labirintos e o faz no deslocamento de espaços diversos colocando os locais em confronto Espaços que como locais textuais reverberam perspectivas problematizam identidades A fragmentação dos múltiplos espaços e a intervenção do passado no presente através da memória leva à consciência da instância que narra ora observador ora imerso na narrativa A obra tecese em camadas de sentidos Produzida para crianças e jovens revestese do caráter dinâmico e lúdico do labirinto A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 131 O livro precisa ser desenrolado como um antigo papiro ou como um embrulho Assim como o faz Zubair na narrativa desembrulhando uma duas três vezes o tecido espesso abraçava um livro em que se lia Os treze labirintos Verificase então neste momento o livro dentro do livro e leitura dentro da leitura Roger Mello consegue cimentar ao redor do leitor camadas labirínticas que o prendem à história por meio da escrita das imagens e do construto do próprio livro como objeto Assim como as matryoshkas o aparecimento desse livro secundário traz à tona uma intricada relação de internarratividade O narrador em Os treze labirintos anuncia a estória de um quarto emissário que precisava entregar uma mensagem ao rei e para atravessar as esquinas enganosas do labirinto contava apenas com ajuda do mencionado livro Assim como o quarto emissário e os seus antecessores Zubair se aventura pelos corredores de Os treze labirintos e com ele acompanha os leitores do livro Zubair e os labirintos que também tentam decifrar as enigmáticas ilustrações de mapas e as suas igualmente obscuras descrições O leitor ao chegar ao final de Zubair e os labirintos não o encerra a página do labirinto perdido é o livro que se encontra em nossas mãos a saída do protagonista é a entrada do leitor para essa estória Zubair o quarto emissário do rei o terceiro o segundo o primeiro e outros que vieram antes são absorvidos pelo labirinto livro tornamse personagens dele É necessário resolver o labirinto para conhecêlo o livro ele mesmo colocase como um desafio para medir a astúcia do leitorviajante Em um projeto de videoarte Arnaldo Antunes realiza uma epopéia multimídia Nome Tratase de um projeto conceitual que expõe em espaço e tempo simultâneos discussões sobre José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 132 metalinguagem filosofia ciência tecnologia história cultura em diálogo relacional por meio micro clipes A consciência de linguagem e da materialidade do signo ganha visualidade e operacionalidade O próprio autor em certo momento aparece no vídeo deslizando a mão eroticamente sobre a pele de vogais e consoantes explorando a dimensão plástica da escrita em toque apaixonado pela físicalidade da letra No abc festeja eletronicamente o nascimento do calígrafo informático Remetenos à literatura infantil via qualidades elementares lúdicas e analógicas ao selecionar como referentes terra água ar bichos o corpo humano pode deixar entrever o poetainformático ambientalistaeco urbanistamísticointerestelar Mas é na vertigem dos signos que se criam as próprias referências É aí ma auto refrencialidade que convergem as temáticas modais da complexidade sistêmica das questões éticas do ambiente da percepção da racionalidade da centralidade do corpo da criação da vida entre o natural e o artificial Aí nessa vocação especulativa geral inserese a dimensão social no interior da qual uma coletividade informacional assumese como parte de um grupo sistêmico mais amplo mais articulado e global A centralidade da obra e do artista labirinticamente substitui a centralidade desse mundo A multiplicidade e a imprevisibilidade aparecem como dados a serem decodificados O leitor deve encarar o texto permutativo como obra em movimento São fragmentos poesia visual computação gráfica minimalismo música eletroacústica coreografia e recursos cênicos luz formas som e imagens se entrechocam intercambiam sentidos desafiando as interpretações lineares Cada texto assim é tecido labirinticamente e expõe um enigma a ser decifrado É a sensibilidade a disposição lúdica e inteligência astuciosa que não fará o leitor ouvinte expectador saltar para fora dos sentidos ali potenciais A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 133 Em Agora temse um diagrama temporal um labirinto no tempo encapsulando presente passado futuro em rede vertiginosa de tempos convergentes divergentes e paralelos formando uma imagem incompleta mas não falsa do movimento do universo No mesmo clipe o tartamudeio da voz que acompanha os flashs das palavras escritas e vão remetendo ao frágil da representação face a miríade de possibilidades que o real pode apresentar O que pensávamos estar separado ali aparece num jogo urdido de linguagem e realidade nós próprios e as questões de todos os tempos que engendram o homem Cultura em feixes complexos de cores desenhos estilizados sons e brincadeiras verbais inscreve na tela em palimpsexto a história da cultura humana fazendo conviver em simultâneos nós a nossa concepção de mundo a da criança e a de nosos ancestrais reverenciandoas esteticamente Os labirintos aqui evocam a dinâmica da vida o movimento de criação e expansão do mundo por meio de formas de espirais labirinticas que comportam dois sentidos de pensamento e praxis de evolução e involução Em cada entrecruzamento adensase o caráter revelador Para concluir uma experiência em hipermídia realizada por Ângela Lago Antes de entrarmos na animação vale considerar que a hibridização permitida pela digitalização e pela linguagem hipermidiática do ponto de vista do suporte consiste em dados transcodificados numericamente num espaço a n dimensões Esse suporte físico tem sua existência em telas de luz e sons codificados No caso dos textos em hipermídia o autor não constrói propriamente a obra mas concebe seus elementos e o algoritmo combinatório ficando a cargo do leitor a realização da obra ainda que cada um o faça de forma diferente O carater nãolinear das memórias de computador permite que os vários fluxos textuais estejam ligados entre si por elos probabilísticos e móveis e possam José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 134 ser configurados pelos receptores de modo a compor possibilidades instáveis Isto permite ao autor e leitor intercambiarem pólos de atuação de modo muito operativo O leitor trabalha com alternativas dadas mas de forma a recolocálas em circulação com as possibilidades virtuais do texto por meio desse processo devolvese o texto a uma fase anterior à seleção final de seus elementos constituintes restituindolhe variantes possíveis Desse modo o leitor opera com um número elevado de interações o que exige dele interferências diante de incertezas indeterminações e de fatores aleatórios Como o texto hipermidiático também não apresenta uma linha de raciocínio ele se abre para a experiência da percepção da imaginação do raciocínio do leitor como um processo que se modifica sem cessar adaptando se em relação ao contexto e jogando com dados disponíveis A leitura aqui ganha esse caráter lúdico mas exige esforço intelectual e a decisão de querer ou não imergir nesses meandros textuais com o risco de retornar a pontos mais complicados Segundo Arlindo Machado 2002254 a forma labiríntica da hipermídia repete a forma labiríntica do chip ícone por excelência da complexidade em nosso tempo Uma dessas produções é OH Um misto de desafio mistério e humor uma narrativa que é um jogo assombrado Entrando na animação flash vêse a silhueta de um rato a ossada de um cachorro a abanar o que um dia foi rabo e um esqueleto segurando uma vela vêse também um piano de meiacauda e no canto inferior direito da tela um pedaço de papel com um rato desenhado Apenas passeando com o apontador do mouse sem clicar em qualquer das figuras o rato põese a movimentar sua coluna chega mesmo a dobrarse completamente a fim de possa estufar o peito ou melhor as costelas a caveira por sua vez entoa um A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 135 aviso e quando o cursor é arrastado para o alto da tela ou fundo da cena soam trovões Nesse clima de mensagens cifradas não há quem resista a dedilhar o piano As teclas aparecem quase ao modo do instrumento convencional intercalandose entre brancas e pretas mas há uma a mais Cada qual vai desempenhar uma função É passando o cursor sobre a cauda do piano que ela se abre e duas mãosfantasma surgem de dentro uma segura a tampa a outra dedilha de forma persistente uma tecla enquanto se ouve uma risada Nesse instante o ratinho se move indo parar sob as pernas do cãoesqueleto Se o internautaleitorautor não decide o que fazer os olhos da caveira se movem para os lados ao mesmo tempo em que suas costelas arfam uma possibilidade é 1 tocar mais um pouco de piano e veremos o ratinho se movimentando sob os possíveis pés do esqueleto ou então 2 clicar sobre o desenho do rato e o rato irá saltar sobre o esqueleto humano guinchando Apenas passando o mouse o esqueleto treme na tentativa de livrarse do pequeno animal A decisão imediata pode ser um clique os remelexos continuam sem solução Podese solicitar auxílio do cachorro clicando sobre sua imagem De fato o cão abocanha o rato e o inevitável acontece ficar engasgado com um rato nem muito vivo nem morto a entrar e sair de sua boca O esqueleto humano cruza os braços sobre o rosto recusandose a olhar a regurgitação do cão com roedor semidevorado em sua boca O internauta pode intervir e o rato é salvo pelo mouse Passeando com o mouse os trovões permitem que se veja até o esqueleto do rato Um raio caindo duas vezes sobre o mesmo rato faz com que ele recupere suas carnes Como se livrar do roedor que parece não querer mais largar o mouse do internauta A única alternativa parece ser levantar a tampa do piano e clicar para ver o que acontece Ali dentro parece morar um monstro que papa o rato José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 136 para júbilo dos dois expectadores o cachorro põe a entoar mais um prolongado OH com a pose de cantor lírico enquanto o esqueleto aplaude a decisão do internauta Então era tudo uma armação para o rato uma mouse trap o papel onde há um desenho do rato é rapidamente riscado com um X vermelho então relemos esse pedaço de papel como um mapa ou o retrato de alguém que está condenado a ser mortodevorado pelo monstro do piano ou seria o pianista ou o próprio piano Há um som como guincho de rato que persiste em soar enquanto nada se faz Os olhos da caveira se inquietam É necessário reparar bem e ver que o desenhoretrato agora é de um cão e a folha tem o número 2 Mais uma estória já podemos imaginar o que fazer servir o cachorro para o piano mas há um inconveniente ele é apenas ossada o menor deslize do cursor faz por exemplo uma revoada de morcego preencher a cena saídos do piano temos que fechar sua tampa O cão lambe a perna do esqueleto Seria um mimo Clicando no desenho do cão no papel ou na imagem do personagem podese conferir sua intenção é fazer uma refeição o próximo clique faz com que o cachorro destaque o osso da perna do esqueleto e este pega o cão pelo rabo fazendoo de sanfona enquanto segura a vela com a boca Mais um clique e o cão espatifase sobre o piano é o fim do instrumento e do animal Só resta um aplaudindose É o fim último clique sobre o esqueleto que então se aproxima da tela do internauta com seus olhos móveis Olha bem para quem o olha Registrase uma simultaneidade comunicativa através do olhar pois o internauta que olha para a cena é quem assusta a caveira que agora o espiaO esqueleto recua para a cena o cão levantase e ambos correm apressados saindo pela esquerda O piano que também cria pernas sai pelo lado oposto O espetáculo enfim termina A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 137 O enredo é construído visual e sonoramente Sendo destinado a crianças o encadeamento vai se dando na medida em que se movimenta o mouse Desse modo a narrativa montase com a intervenção de seu receptor munido de um instrumento de comando o mouse A constituição sonora dessa hipermídia é feita de samplers onde os arquivos de áudio não se encontram disponíveis Há a predominância do visual no entanto a linguagem sonora é fundamental para marcar a sintaxe e a temporalidade da narrativa O receptor é colocado no jogo da sintaxe dos corpos sonoros CONSIDERAÇÕES FINAIS Distintas marcas históricas singularizam as formas artísticas as várias migrações e reinvenções de imagens concepções e estruturas se afirmam como metáforas para formulação de conceitos estéticos Os espaços textuais retecemse em fluxos operativos entre a participação do autor e do leitor Os distintos trânsitos e diálogos observados nos textos em análise atestam uma ecologia cultural de complexas semelhanças que se traduz por via do imaginário fertilizado pela própria inventividade de que o texto artístico é portador Nas obras inscrevemse elementos como absorções diálogos e transformações Multiplicidade complexidade aparecem como dados a serem decodificados O leitor deparase com um espaço labiríntico de traços permutativos que requer disposição lúdica e inteligência aventureira para os sentidos ali potenciais Cada obra assim passa a ser espaço de travessia potencialidades tanto de sujeitos que as integram leitor e autor como dos componentes materiais de significação que entram em sua discursivização A apreciação estética é lúdica ao mesmo tempo utópica e reflexiva tornandose capaz de regenerar sentimentos e engendrar José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 138 pensamentos críticos a respeito do concreto histórico posto que entram em jogo releituras da História do concreto social da herança cultural da literatura por meio de vozes dissonantes na apresentação de uma verdade agora polifônica Se os códigos verbais e não verbais tornamse essenciais para a construção dos sentidos códigos de sistemas sociais culturais e literários também constituem estratégias discursivas Fragmentação colagem montagem conceitual e fusão presidem a composição das obras Com a desritualização e dessacralização das formas canônicas fazse a entronizacão de formas ancestrais de experiências narrativas por conseguinte mais caóticas No entanto pela consciência de linguagem com que entram em operação esses elementos engendramse pelas vias da arte em novas ordenações formas mais rebuscadas Nesta época de poderosas tecnologias comunicacionais em que a sociedade humana vem desenvolvendo formas de socialização ciberculturais Começamos a nos deslocar por paisagens híbridas desterritorializadas que estão sendo colonizadas por um capitalismo perverso e cuja extensão pode abarcar e moldar culturas sob a égide de um modelo hegemônico É exatamente diante dessas constatações e dos enigmas que dos fatos derivam que pensamos a importância de nos colocarmos perto dos artistas Esses têm sido hoje os responsáveis pela humanização das tecnologias Daí lembramos que se por um lado os artistas tomam para si a tarefa de reconfigurar a sensibilidade humana em regeneração contínua o intelectual deve tomar para si o trabalho de modelagem de novos conceitos mais aptos aos enigmas que tem de deslindar No dizer de Nelly Novaes Coelho literatura é uma espécie de fio de Ariadne que poderia indicar caminhos não para sairmos do labirinto mas para conseguirmos transformálo em vias A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 139 comunicantes que a concepção do mundo atual exige Como intelectuais das letras devemos aguçar nosso olhar crítico para rotas de sensibilidade e inteligibilidade exploradas pelo artista Essas garantem tessituras mais criativas e responsáveis para o desenvolvimento do imaginário um território de múltiplas sínteses e tendências Com a profusão de processos signicos que derivam de misturas sem fim em vertigem essa forma cifrada de manifestação humana a literatura perpassa o tempo e atravessa diferentes culturas muito à vontade abrindo a possibilidade de se reencantar o mundo a vida as relações humanas e a relações homem máquina por que não REFERÊNCIAS ANTUNES Arnaldo Nome BMG Ariola 1993 BORGES JorgeLuiz Obras completas São Paulo Globo 1995 BLOOM H O cânone ocidental Os livros e a escola do tempo Rio de Janeiro Objetiva 1994 CARROL L Alice no país das maravilhas Sâo Paulo Ática 1982 COELHO Novaes Nelly A Literatura Infantil 7 ed São Paulo Mo derna 2000 COTÁZAR J O jogo da amarelinha Rio de Janeiro Paz e Terra 1987 CUNHA Maria Zilda A literatura infantil e o nascimento de uma nova linguagem a hipermídia Anais do 29th IBBY World Congress Books for África 2005 FURNARI Eva O problema do Clovis Vale Livros 1992 MACHADO Arlindo Pré cinema poscinema São Paulo Papirus 2002 MELLO Roger Zubair e os labirintos Companhia das Letrinhas 2007 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 140 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 MORIN Edgar Introdução ao pensamento complexo Lisboa Institu to Piaget 1991 ROSENSTIEHL P Labirinto Enciclopédia Einaudi v13 Lisbo aImprensa nacional 1988 SANTAELLA Lucia Navegar no ciberespaço o perfil cognitivo do lei tor imersivo São Paulo Paulus 2007 141 POLIFONIA E PERFORMANCE O EXPERIMENTALISMO ESTÉTICO EM RETRATOS DE CAROLINA DE LYGIA BOJUNGA Marta Yumi Ando INTRODUÇÃO O experimentalismo estético no âmbito da prosa infantil e juvenil brasileira encontra maior repercussão em obras produzidas a partir da década de 1970 embora suas raízes remontem aos anos 1920 com a obra lobatiana Em meio às tendências que se delineiam no período pós70 surge uma gama de obras inovadoras que agenciam procedimentos experimentais de várias maneiras entre as quais a polifonia a fragmentação os jogos temporais a metalinguagem a intertextualidade a mistura do verbal com o não verbal a miscelânea de gêneros Constatase através da autoreferencialidade um significativo espessamento do discurso literário o que possibilita a ruptura do horizonte de expectativas do leitor juvenil conduzindoo a reflexões acerca da matéria literária Observamos que em algumas obras autor e narrador se confundem de tal modo que o autor acaba por se tornar personagem e uma vez tornado ente ficcional passa a habitar o universo criado e a interagir com as demais personagens instaurando uma inusitada comunicação entre criador e criatura Isso é o que ocorre em Retratos de Carolina 2002 de Lygia Bojunga conforme veremos a seguir RETRATOS DE UMA PERSONAGEM Na obra em estudo o leitor se depara com a história de Carolina em diferentes momentos de sua vida o que é apresentado aparentemente de forma linear seguindo a ordem cronológica dos José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 142 acontecimentos Em vários momentos no entanto essa ordem é rompida através da inserção de digressões flashbacks e pela instauração do tempo psicológico em que se inspeciona a interioridade das personagens A par disso verificamse saltos temporais ou seja da Carolina aos seis anos passase para os quinze e depois para os vinte anos de modo a configurar retratos que marcaram a infância a adolescência e a maturidade da personagem Tratase como mais tarde revelaria a própria narradora de retratos em pretoebranco nos quais prevalecem vivências permeadas por paixões intensas mas sempre seguidas de frustrações profundas provocadoras de raiva ódio desespero Rompendo com as expectativas do leitor a segunda parte se abre com um capítulo metalingüístico intitulado Pra você que me lê em que deparamos com o inusitado corte da seqüência narrativa para dar espaço à outra história que todavia mantém estreitos laços com a história contada pelos retratos Tratase da história do embate entre escritor e personagem criador e criatura o que ocorre a partir da reivindicação pela personagem de retratos mais coloridos e menos frustrantes É nesse capítulo que surge um Autoretrato aos vinte e seis anos em que a personagem escreve um diário em que relata suas expectativas tece comentários a respeito de sua criadora e revela suas fantasias amorosas com outro personagem Discípulo ainda em processo de construção pela autora Convencendo enfim a escritora a lhe fazer um retratonão frustrante delineiase o último retrato de Carolina em que esta reencontra Priscilla a amiga de infância que a traíra mas que agora por uma ironia do destino é justamente quem lhe abre as portas para a realização profissional A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 143 A CONSTRUÇÃO POLIFÔNICA Em Retratos de Carolina o caráter polifônico observado no entrecruzar de diferentes vozes no discurso mostrase evidente Logo no início da narrativa é de notar a habilidade com que a autora altera o foco do narrador em 3ª pessoa passando do narrador onisciente neutro para a visão com e o monólogo interior em que se apresenta por intermédio do discurso indireto livre o deslumbramento de Carolina diante da nova amiga Por quase todo o texto constitutivo da primeira parte há o predomínio desse procedimento estético de modo que o narrador colocase no mesmo patamar da personagem filtrando seus pensamentos sentimentos e emoções mediante a fusão de vozes propiciada pelo discurso indireto livre Priscilla Carolina se encantou era a primeira vez que ela via uma Priscilla Achou o nome lindo Se fosse só o nome Mas que cara tão de Priscilla a Priscilla tinha Assim de olho verdeescuro e de riso fa zendo covinha no queixo e na bochecha Carolina se perturbou Ficou olhando pro cabelo em frente compri do encaracolado e ainda por cima avermelhado Era a primeira vez que ela via cabelo dessa cor p 910 Mediante o emprego do monólogo interior ocorre a passagem dinâmica do exterior para o interior e encenase o processo mental das personagens o que em termos estruturais pode configurarse em alterações sintáticas de modo que o texto ao transitar do estilo indireto para o indireto livre atenua seu caráter lógicodiscursivo E só agora a cara se afastando da cômoda a testa formando uma ruga Carolina se lembra que no caminho pra festa o Pai tinha contado uma história pra ela Como é mesmo que era a história Ah um cachorro era unha e carne com um gato e aí Mas se o Pai tinha José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 144 contado uma história pra ela feito ele sempre contava então ele continuava igual ao que ele sempre era É ou não é E se ele continuava igual ao que ele sempre era então ele não estava contra ela estava p 29 Em determinados momentos do texto o narrador se desvia de Carolina para voltar sua atenção para outras personagens através da onisciência seletiva múltipla Desse modo o narrador focaliza ora uma personagem ora outra dedicandolhes trechos em que nos são transmitidos seus pensamentos e sentimentos É o caso por exemplo das passagens em que se focaliza o pai O pai nota na superfície da escrivaninha uma mancha no couro que ele não se lembrava de ter visto antes Olha as manchas que tem no braço sol idade comparando as manchas que estão na pele e as que estão no couro p 88 A escrivaninha cuja imagem fora engenhosamente elaborada como a guardiã dos pensamentos do pai p 84 nos remete aos espaços bachelardianos relativos a casa e às transposições da função de habitar Tratase de espaços que podendo sugerir intimidade proteção e aconchego mostramse esquivos à perscrutação de olhares estranhos na medida em que se configuram como espaços onde é possível abrigar a memória e os segredos nela armazenados BACHELARD 1993 No que tange ao narrador em 1ª pessoa o foco se alterna entre narrador autodiegético o monólogo interior e o que denominamos arquinarrador intruso arquinarrador por se tratar de um narrador que fugindo das tipologias convencionais extrapola o plano diegético em um singular procedimento de autoreferencialidade e intruso porque tal como o narrador machadiano interpela o leitor levandoo a não se esquecer de que o mundo que tem perante os olhos embora se ancore no real é fictício A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 145 No capítulo que dá início à Segunda Parte há uma brusca mudança de foco da 3ª para a 1ª pessoa mas não se trata da simples interposição da voz de uma das personagens que vimos transitar pelo universo diegético Tratase da simulação da voz da própria autora artifício por meio do qual se confere maior verossimilhança à instância narradora e ao mesmo tempo imprime se feição marcadamente metalingüística ao texto Em Retratos de Carolina a princípio esse eu que se dirige ao leitor desde o título Pra você que me lê consiste em uma simulação do euautoral com o qual deparamos em menor ou maior grau em Livro um encontro com Lygia Bojunga Nunes 1988 Fazendo Ana Paz 1991 Paisagem 1992 O Abraço 1995 Feito à Mão 1996 e O Rio e eu 1999 Aliás é justamente através do recurso à intertextualidade com Feito à Mão que o leitor é remetido à autora real Na segunda versão do meu livro Feito à Mão em forma de introdução eu converso com você que me lê Hoje aqui nos Retratos de Carolina eu venho conversar de novo mas já disposta a mudar um pouco o feitio do nosso papo p 163 Tal feitio moldase desta vez a um espaço diferente se antes havia sido no início agora aparece quase no final do livro e a conversa toma a forma de históriaquecontinua p 164 que alerta o leitor para o fato de que a história de Carolina ainda não chegara ao fim Ao mesmo tempo a narradoraescritora revela que assim como procedera em Feito à Mão retomaria a prática de trazer suas moradas para dentro do seu texto Modificase contudo o propósito voltado agora não para falar das moradas em si e das vivências que nelas tiveram lugar como fizera em Feito à Mão mas sim para começar a integrar minhas personagens com os meus espaços encarando o fato de que agora a gente meus personagens e eu passamos fisicamente a morar juntos p 164 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 146 Nessa medida ao remeter o leitor a uma obra conhecida a identidade da narradora é conseqüentemente revelada Desvendando assim a própria máscara Lygia cria uma narradoraescritora que espelha a si mesma mesclando de modo extremamente original realidade e ficção como se a autora implícita tal como entende Booth 1980 se tornasse explícita ou como se autora implícita e narradora coincidissem ou se confundissem numa só voz Tratase de uma fusão entre realidade e ficção uma vez que a identidade autoral é revelada mas ao mesmo tempo a autora se ficcionaliza inserindose na própria diegese e interagindo com os entes ficcionais que aí transitam Foi por causa disso que um dia desses no Catavento ouvi a porta se abrindo e fechando lá embaixo Pensei qual deles está chegan do Mas quando escutei a cadência dos passos subindo a escada eu logo senti que era a Carolina p 164 Notese a presença do espaço em branco utilizado para marcar a transição temática e de ponto de vista Embora o foco permaneça em 1ª pessoa mudase o ângulo de visão que passa do euautoral supostamente real para um euautoral fictício vale dizer observase a transição da simulação da autora empírica para uma narradora que passa a integrar a diegese e à qual estamos chamando de autora ficcionalizada narradoraescritora ou arquinarradora Como se vê tratase de um ente ficcional de uma autora criada por Lygia à sua imagem e semelhança procedimento que encontra seu germe no conto A troca e a tarefa Tchau 1984 repetindose e ao mesmo tempo intensificandose de diferentes modos em outras obras da autora É como se a escritora de carne e osso Lygia Bojunga se desprendesse do mundo real e por vias mágicas virasse personagem da própria trama A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 147 Por outro lado se a autora convertese em matéria de ficção observase movimento inverso em relação à protagonista assim Carolina antes presa ao universo diegético elevase a um plano superior investindose do poder de invadir o universo em que se situa a autora que lhe deu vida Carolina recolheu a mão e disse eu queria te pedir pra fazer mais um ou dois retratos de mim Bom pra ser bem franca eu não me conformo da gente se separar assim só deixando retratos nega tivos de mim p 164165 Carolina transita portanto de uma diegese à outra sendo que a segunda diegese constituise em uma representação mimética mais próxima do real empírico do que a primeira Observase assim um desdobramento do simulacro platônico Nesse desdobramento mimético ao mesmo tempo em que a narradora simula ser a escritora real verificase a simulação da autonomia da personagem o que é reforçado adiante pelas palavras da própria autora Não forcei nada Carolina você já nasceu assim p 168 Por meio deste recurso além de o narrador adotar uma postura liberal frente aos entes criados a personagem criando vida própria rebelase contra os retratos negativos que lhe foram imputados e como que em uma aparição fantástica desprendese da diegese à que pertence para reivindicar retratos mais coloridos junto à escritora A mencionada hierarquia praticamente desintegrase no momento em que Carolina assume a voz narrativa o que ocorre à revelia da escritora Nem deixei ela falar mais nada vim membora pro Rio 8 de setembro Ela foi sembora e me deixou aqui Melhor que tivesse me deixado na Boa Liga lá a gente olha de cada janela José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 148 e só tem verdequetequeroverde Mas aqui Eu chego na janela e o meu olho de arquiteta tropeça logo num horror qualquer de tijolo e cimento p 170 Tratase do diário escrito na ausência da escritora que deixou Carolina pendurada no Catavento para ocuparse de outro personagem Desse modo tal diário surge de fato à revelia da autora como se esta não dominasse o manejo das teias com que tece a própria ficção Em termos de recursos estéticos convém notar o artifício utilizado para alternar as vozes narrativas Embora o foco permaneça em 1ª pessoa mudase o ponto de vista passando da narradoraescritora para a personagem central que por sua vez tornase narradora Em outras palavras poderíamos dizer que ocorre uma inversão de papéis a criatura assume o papel de criador e ao mesmo tempo a autora ficcionalizada tornandose personagem da narrativa escrita por sua personagem logra tornarse o foco para o qual se dirige o olhar dessa narradora Essa transição de foco marcada graficamente por um espaço em branco e pela mudança no formato da fonte para o itálico confere caráter dramático à obra uma vez que a distinção das vozes por parte do leitor ocorre não pela narração em si mas pela notação gráfica É assim que procede a construção do foco nessa segunda parte da narrativa ou seja mediante o movimento de contraponto de vozes em que se confronta o olhar da personagem com o da autora Esse recurso estético estendese até a página 208 já que a partir daí a autora enfim convencida pela personagem a lhe traçar um novo retrato retoma a narração em 3ª pessoa e o foco visão com É nesse momento que se delineia o retratonãofrustrante como tanto queria Carolina No final do último capítulo mudase mais uma vez de foco a voz onisciente neutra responsável por filtrar os movimentos interiores de Carolina se cala e agora quem toma a palavra é a narradora A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 149 escritora que retorna ao relato para finalmente despedirse de sua personagem Como em momentos anteriores esta transição enunciativa é marcada por uma breve pausa que se encontra no papel materializada por um espaço em branco A mão da Carolina até tremeu um bocadinho quando pegou a xícara Parei de escrever olhei pra janela o sol estava se pondo lá no mar hora pra andar na areia o pé rece bendo a onda que termina o olho flanando na vastidão do céu ainda incendiado de tudo que é vermelho e a marelo que vão pintando o fim da tarde p 225 Desse modo o euescritora novamente entra em cena dramatizando o próprio narrar e como se nota no trecho abaixo volta a interagir com sua personagem convertendose em personagem do próprio mundo que criara Essa transição entretanto não ocorre de modo suprareal mas de modo natural o que se nota através da forte integração entre a arquinarradora e a própria diegese Estava já no meu caminho de volta quando vi Carolina correndo ao meu encontro Chegou rindo Me abraçou e me puxou pra sentar na areia Eu estava curiosa Então gostou do seu almoço com a Priscilla Puxa você me pegou de surpresa nunca na vida eu pensei que ia me encontrar outra vez com a Priscila É isso foi legal p 226 É interessante notar a estratégia empregada imediatamente antes do encontro e por meio da qual Carolina toma contato com o novo retrato que lhe fora delineado Mas antes de sair imitei Carolina deixei meu caderno bem aberto no Carolina aos vinte e nove anos e escrevi um bilhete pra ela dizendo Gostaria de ouvir tua opinião sobre o teu novo retrato p 225226 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 150 Assim do mesmo modo como Carolina ao escrever seu auto retrato deixara o caderno escancarado sobre a mesa da escritora em um convite explícito para que esta o lesse desta vez é a autora que mimetiza o gesto de Carolina Mais do que isso ao deixarlhe um bilhete pedindo a opinião da personagem os papéis hierárquicos que convencionalmente moldam as relações entre narrador e personagem se desfazem para dar ensejo a um espaço aberto que não se reduz ao papel do escritor como aquele que mobiliza o destino das personagens uma vez que estas são convidadas a opinar sobre o rumo dado ao seu destino Conforme dissemos tratase da simulação da autonomia da personagem ou em outros termos de um fingimento poético do eu narrativo a fim de amenizar o próprio autoritarismo Como se trata daquele que é responsável por engendrar as teias da própria ficção e conseqüentemente dar vida às personagens criadas essa hierarquia queira ou não sempre estará presente Entretanto é possível atenuála sendo que o modo por meio do qual essa dissimulação adquire contornos mais definidos envolve a polifonia e o dialogismo mediante os quais ocorre o embate de vozes entre criador e criatura embaralhando as distinções entre realidade e fantasia vida e ficção É dentro desse projeto estético que Carolina assim como procedem outras personagens de Lygia Bojunga como Raquel e Ana Paz Fazendo Ana Paz 1991 desatase mais uma vez do mundo que lhe fora criado para questionar sua criadora Bom tem uma coisa que não me caiu bem lá no al moço Eu fiquei sem saber se a Priscilla tava sendo sincera quando disse que eu tinha me magoado com ela porque ela chamou a mamãe de puta E até agora eu tô sem entender porque que ela não disse nada quando eu falei da traição do caroço da ameixa p 226 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 151 O referido caroço adquire na narrativa duplo sentido assim se no plano diegético o caroço da ameixa fora motivo da dor da traição vivida na infância e revivida na vida adulta durante o almoço com Priscilla no plano metafórico esse caroço pode ser lido como algo difícil de engolir pela personagem e que se torna ainda mais difícil em função da resposta evasiva de sua criadora É verdade É verdade o quê Foi mesmo muito desconcertante aquela atitude da Priscilla A gente fica sem saber não é E afinal Afinal o quê Ela estava fingindo Ah Carolina isso eu não sei Mas isso não pode ser Você tem que saber Me impacientei Mas que mania vocês todos têm de que a gente tem que saber tintim por tintim de vocês Desde quando al guém sabe tintim por tintim de um outro alguém p 226228 Percebese assim que a escritora embora teoricamente dotada de um poder demiúrgico sobre a vida das personagens criadas mostra desconhecer os mistérios que regem a própria criação Desse modo o poder com que a arquinarradora é capaz de penetrar nas consciências de suas personagens é relativo ou melhor criase a ilusão de que inexiste onisciência autoral como se os entes criados fossem dotados de uma tal autonomia que lhes permitissem inclusive manterse impenetráveis Instado por Carolina o retrato positivo é pintado pela autora mas ainda assim a personagem não se dá por satisfeita querendo José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 152 viver uma história de amor com o Discípulo Carolina tenta mais uma vez convencer a escritora a lhe desenhar mais retratos positivos Mas uma história de amor pra você não custa nada num instantinho você faz Olha aqui você pega a Tâ nia bota ela numa missão Carolina vê se entende filha a tua história chegou ao fim Com esse teu retrato aos vinte e nove anos eu quis deslanchar a tua profissão a tua criatividade a tua independência econômica e acima de tudo a tua confiança nessa tua mão aí O resto Carolina inclusive essa tal história de amor que você tanto quer viver is so e o mais virão como conseqüência pode ter cer teza Mas o Discípulo Ele fica na tua fantasia eu já disse o papel dele aca bou sendo esse p 230 A narradoraescritora revela que já tinha outro no lugar do Discípulo que se perdera irremediavelmente na fantasia amorosa de Carolina E entre ver o mar e ver o céu eu vi ele também p 231 A revelação suscita a curiosidade da personagem mas desta vez a autora não se deixa seduzir por seus apelos Ah minha querida esse eu não vou te contar Senão você ainda me pega ele me bota ele na tua fantasia e aí começa tudo outra vez p 231 É nesse momento então que ocorre enfim a despedida entre criador e criatura E por um momento ficamos nos olhando Intensamente nos olhando E aí eu fui me afastando pra duna Espera ela gritou Mas eu continuei me afastando Sem querer olhar pra trás Eu não vou mais olhar pra trás A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 153 Eu não vou mais olhar pra trás p 231 Interessante o modo como ocorre a mudança do tempo verbal do pretérito perfeito para o presente dêitico A autora ficcionalizada transita assim do plano do enunciado para o da enunciação como se abandonando o narrado se inserisse no próprio espaço da narração E ao virar a página o leitor deparase com nova mudança gráfica no texto antes alinhado à esquerda agora encontrase centralizado com as palavras estrategicamente dispostas de maneira a desenhar uma imagem que se afunila Mas não resisti acabei me virando Carolina continuava no mesmo lugar A fisionomia dela estava resignada Resignada não serena Muito serena Respirei aliviada Levantei o braço e acenei com a mão Esperei Sem pressa mas sem nenhuma hesitação ela respondeu ao meu aceno me dizendo também tchau p 232 Desse modo a palavra tchau assim isolada na última linha da folha é também a palavra com que se encerra o texto verbal da narrativa Há entretanto na folha oposta um texto imagético uma foto em preto e branco de Lygia em uma praia deserta Certamente não foi por acaso que essa foto tenha sido escolhida e inserida estrategicamente ao lado do segmento final do texto pois a foto além de ambientarse em uma praia isto é o mesmo cenário do José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 154 Catavento parece exercer uma função ilustrativa como se estivesse ilustrando a cena imediatamente posterior à despedida Lygia Bojunga Foto Peter1 Examinando a imagem verbal que se afunila e termina com a palavra tchau o leitor poderá associála não apenas à performatização do fim mas também ao tempo que escoa incessantemente e que na obra é traduzido pela imagem da ampulheta sempre presente na escrivaninha do Pai É a vida que escoa e nos aproxima gradativamente da morte sempre à espreita mas que por outro lado também nos traz experiência e sabedoria PERFORMANCE A POIÉSIS E A CONSTRUÇÃO DÊITICA Em Retratos de Carolina falar sobre a performance textual em que o dizer coincide com o fazer levanos a deter nosso olhar sobretudo na Segunda Parte marcadamente de teor metalingüístico A começar pelo próprio título do capítulo que a inicia Pra você que me lê temse a encenação da escritura em que o texto deixa de dirigir seu olhar às peripécias da fábula para se deter no processo de sua construção Na segunda versão do meu livro Feito à Mão em forma de introdução eu converso com você que me lê Hoje aqui 1 Fonte BOJUNGA 2002 p 233 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 155 nos Retratos de Carolina eu venho conversar de novo mas já disposta a mudar um pouco o feitio do nosso papo p 163 Além de incorporar a intertextualidade com Feito à Mão observase aqui um processo de autoreferencialidade vale dizer o inclinar da obra sobre si mesma o que se configura por intermédio de recursos dêiticos que como sabemos funcionam como indicadores referenciais da enunciação Tratase como se vê de uma conversa da autora ficcionalizada com o leitor virtual e é como se tal conversa tomasse lugar no instante mesmo em que o texto é escrito performatizando assim a interação dialógica entre texto e leitor Nessa conversa virtual que se processa entre a instância da produção e a da recepção remetese não apenas à intertextualidade com outra obra da autora mas tematizamse também os impasses da criação que teriam envolvido o processo de escrita da obra Deixa ver se eu me explico se lá no Feito Mão eu uso o espaço da nossa conversa pra te contar como é que eu desenvolvi o projeto de um livro artesanal aqui nos Retratos eu uso um espaço diferente justo quando o livro vai acabando é que eu começo o papo pra te con tar a hesitação que me perseguiu até conseguir botar um ponto final na Carolina Só que dessa vez eu con verso com você em feitio de históriaquecontinua p 163 A autora tece uma reflexão metalingüística em torno da obra que está sendo produzida mas esta reflexão não se reduz a uma simples reflexão na medida em que o que era uma hesitação para botar um ponto final na Carolina transformase em uma nova história a história do encontro de Carolina com a autora ficcionalizada Esta reflexão em torno dos embates da criação também é encenada dramaticamente na passagem em que Carolina reivindica junto à autora uma história de amor com Discípulo José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 156 Mas como é que fica Ué fica como ficou no teu autoretrato Nem mais nem menos Mas não pode Por que que não pode É claro que não pode Lá ele não tem não tem his tória Não tem começomeioefim Lá ele ele só vive na minha imaginação não é feito o meu pai feito a minha mãe feito a Bianca O Discípulo fica sendo fruto do espaço da tua imaginação dos teus sonhos É só lá que ele vai viver p 205 Percebese que a escritora se refere indiretamente aos percalços encontrados no fazer literário quando se perde uma personagem de vista mas por outro lado seu dizer não se reduz a uma reflexão mas tratase de um vivo diálogo empreendido com a própria criatura Em outras palavras tratase de um dizer que se mostra fazendo o que diz Ainda no que concerne aos impasses inerentes à criação note se que a dificuldade encontrada pela arquinarradora em botar um ponto final na Carolina é reiterada adiante mas na voz da própria Carolina Quando ela chegou ela disse que tinha vindo me buscar falou que me deixou aqui descansando antes me dar tchau p 173 Se ela não me levou é porque ainda não me desligou p 173 Foi sembora e me deixou aqui de novo em banho maria Bom pelo menos eu sei que enquanto ela me deixa a qui pendurada é porque ela ainda tá hesitando no tal tchau p 191 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 157 Particularmente no primeiro exemplo temos duas vozes que se confundem no discurso a voz de Carolina em primeiro plano e a da autora em segundo já que se trata de um discurso reportado Nesse tchau hesitante nessa despedida protelada entre criador e criatura é interessante notar as imagens usadas para metaforizar a hesitação assim os verbos descansar não desligar e pendurar bem como a expressão banhomaria traduzem literariamente os entraves que envolvem a criação poética Mais adiante quando há o retorno da voz autoral que persuadida por Carolina concorda enfim em lhe delinear um novo retrato tais impasses são convertidos na imagem do papel em branco como se este indagasse o autor E agora eu estou aqui Olhando pro papel em branco p 207 Por esta via as dificuldades que envolvem o ato da criação literária convertemse em matéria artística ao serem trazidas para o mundo da ficção Outro recurso agenciado pela consciência operante para performatizar sua escritura é a referência feita a instrumentos próprios ao fazer literário como a mesa a caneta o lápis o papel e o computador que apontam não para a figura do narrador mas a do escritor da obra Nessa ordem de idéias muitas vezes em vez de se empregarem verbos discendi próprios do ato de narrar destacase a ação de escrever Acho que já que a Carolina se habituou no Catavento é melhor fazer o retrato aqui mesmo nesta mesa Pau sando o olho na lagoa No mar Nas dunas Continuo escrevendo à mão Agora usando mais caneta que lápis Às vezes experimento o computador Mas volto pro papel e pra caneta é feito voltar pra casa ti rar o sapato e botar o short p 207 Ela parou na porta e passeou um olhar atento pela mi nha mesa de trabalho Você estava escrevendo José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 158 Na cabeça quer dizer tava pensando p 164 Notese aí o emprego do verbo fazer associado à criação literária procedimento que também aparece em Fazendo Ana Paz a partir do próprio título Com efeito a performance da linguagem permeia todo o texto sendo que uma das formas por meio da qual se instaura consiste no emprego pela arquinarradora do verbo fazer para referirse à construção das personagens e às ações por elas empreendidas Esse recurso pode aparecer explicitamente Mas uma história de amor pra você não custa nada num instantinho você faz p 230 Ou de modo implícito Mas se eu não fecho a loja como é que depois você vai se enfiar num vestido da Eduarda E criar o impacto que criou no Homem Certo p 167 A utilização do verbo fazer por sua vez relacionase com a construção dêitica que percorre principalmente a Segunda Parte em que o tempo desligandose da sucessão privilegia o próprio momento da construção do relato Conforme elucida Octavio Paz não é o que foi nem o que está sendo mas o que estáse fazendo o que está sendo gerado 1982 p 77 Temse assim uma simulação de simultaneidade como se os movimentos de escrita e leitura coincidissem ou seja como se o leitor tivesse contato com o texto ao mesmo tempo em que este está sendo escrito Agora aqui nos Retratos retomo também essa prática a de trazer minhas moradas pro meu texto Mas com um propósito um pouco diferente o de começar a integrar minhas personagens com os meus espaços pensando assim se eu sou uns e outras por que dissociar uns das outras encarando o fato de que agora a gente meus personagens e eu passamos fisicamente a morar juntos p 163164 Além de haver a performatização do ato da escrita por meio da autoreferencialidade e da construção dêitica apontando para o A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 159 processo de construção do texto que por sua vez ocorre pelo emprego do presente do indicativo e de advérbios como aqui e agora temse a recuperação do contexto de produção das obras da autora por meio da integração de espaços reais à narrativa Fundindose às criaturas engendradas a escritora faz alusão a outro espaço extradiegético a Casa Lygia Bojunga para a qual migraram seus personagens É assim embaralhando vida e obra realidade e ficção que a escritura lygiana logra tornarse um espaço a ser habitado pela imaginação do leitor CONCLUSÃO Em vista da leitura empreendida podemos constatar que no que diz respeito à polifonia há uma multiplicidade de vozes e a constante alternância de foco Em um instigante procedimento de singularização a narradora se torna personagem do próprio universo diegético e em um procedimento inverso a personagem é elevada ao status de narrador Contudo essa transição não ocorre como no universo maravilhoso ou fantástico mas como dado instalado no real Nessa troca de máscaras verificase que se há vários narradores há todavia um principal a arquinarradora ou autora ficcionalizada responsável por costurar todos os fios da trama Como referimos essa arquinarradora em um singular procedimento de autoreferencialidade consiste na projeção da imagem da própria autora no mundo ficcional Desse modo fantasia e realidade se imbricam seres reais e imaginários se confundem e se entrelaçam no jogo da ficção demandando por parte do leitor um contínuo trabalho de semantização nos termos de Iser 2002 ou seja de produção e atribuição de significados aos espaços vazios que se insinuam e se disseminam nopelo texto José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 160 Por sua vez no que tange à performatização constatamos no texto a encenaçãodramatização da linguagem em um procedimento em que a escrita direciona o foco sobre si mesma Desse modo emerge um texto em que reiteradamente o dizer coincide com o fazer ou seja à medida que se narra colocase em relevo os mecanismos da narração evidenciando o processo de construção do texto Nesse procedimento autoreferencial a narrativa é construída ao mesmo tempo em que aponta os caminhos da própria construção resultando em um texto que se erige como dramatização como escritura encenada REFERÊNCIAS BACHELARD G A poética do espaço 1 reimp Trad Antonio de Páu da Danesi São Paulo Martins Fontes 1993 BOJUNGA Lygia Feito à mão Capa de Miriam Lerner Rio de Janeiro Agir 1999 O Rio e eu Il Roberto Magalhães Rio de Janeiro Salaman dra 1999 Livro um encontro com Lygia Bojunga 4 ed Fotos de Clo tilde Santoro e Cláudia Santana Rio de Janeiro Agir 2001 Paisagem 4 ed Il Regina Yolanda Rio de Janeiro Agir 2002 Retratos de Carolina Rio de Janeiro Casa Lygia Bojunga 2002 O Abraço Il Rubem Grilo 4 ed Rio de Janeiro Agir 2004 BOOTH W A retórica da ficção Trad Maria T H Guerreiro Lisboa Arcádia 1980 ISER Wolfgang Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcio nal In LIMA Luis Costa org Teoria da literatura em suas fontes v 2 Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2002 p 955987 NUNES Lygia Bojunga Tchau Il Regina Yolanda 3 ed Rio de Ja neiro Agir 1987 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 161 Fazendo Ana Paz Il Regina Yolanda Rio de Janeiro Agir 1992 PAZ O O arco e a lira Trad Olga Savary Rio de Janeiro Nova Fron teira 1982 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 162 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 A NAU CATARINETA EM DUAS VERSÕES INFANTIS A NARRATIVA POPULAR ATRAVÉS DAS ILUSTRAÇÕES Rhea Sílvia Willmer UFRJ INTRODUÇÃO A Nau Catarineta é um dos mais famosos poemas populares em língua portuguesa um episódio trágicomarítimo recolhido pela primeira vez em Lisboa no ano de 1843 por Almeida Garrett e publicado no Romanceiro e Cancioneiro Geral Possui atualmente várias versões escritas e embora não seja possível precisar a data de sua origem supõese devido à sua temática e linguagem que seja da segunda metade do século XVI logo após o auge das navegações portuguesas As versões desse poema conhecidas hoje são fruto de transmissões orais que por sua vez perpetuam parte do imaginário lusobrasileiro a respeito do mar e das navegações estabelecendo assim como afirma Walter Benjamin uma das formas narrativas clássicas exemplificada pela figura do marinheiro o homem que viaja e retorna tendo muitas histórias para contar A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores E entre as narra tivas escritas as melhores são as que menos se distin guem das histórias orais contadas pelos inúmeros nar radores anônimos Entre esses existem dois grupos que se interpenetram de múltiplas maneiras Se quisermos concretizar esses dois grupos através dos seus representantes arcaicos podemos dizer que um é exemplificado pelo camponês sedentário e outro pelo marinheiro comerciante BENJAMIN W 1994 pp 198 199 Ou seja para além de ser uma narrativa por ser amplamente difundido como metáfora para a jornada das grandes navegações portuguesas o poema Nau Catarineta tem caráter fundamental na formação do imaginário lusobrasileiro Se levarmos em consideração 163 o fato de boa parte da população tanto de Portugal quanto do Brasil ter sido iletrada até meados do século XX poderemos inferir a extensão da importância da conservação desse poema nas culturas desses países que provavelmente alcançou grande quantidade de leitores como Os Lusíadas principal obra poética no que diz respeito à formação da cultura lusófona É relevante aqui considerarmos que a sociedade que não sabe ler também tem as suas manifestações literárias a literatura é a verdadeira dimensão das sociedades do ponto de vista da identidade ROSÁRIO 2007 p316 Portanto esse poema popular apresentase como um episódio épicomarítimo uma vez que como nos antigos poemas épicos faz com que um povo não esqueça os grandes feitos dos seus antepassados ainda que não reproduza fielmente os acontecimentos históricos A NAU CATARINETA E A TRADIÇÃO ORAL LUSOBRASILEIRA O poema Nau Catarineta apresentase como veículo na propagação de parte da nossa herança cultural No fato de ser um relato poético a respeito das navegações consiste a peculiaridade dessa ode trágicomarítima uma vez que sua estrutura esquematizada de maneira a favorecer a memorização e recitação é concisa e clara para ser compreendida pelos ouvintes Ao contrário dos relatos em prosa da História trágicomarítima a narrativa não se estende em pormenores e particularidades portanto não serve hoje de documento histórico ou seja nessa narrativa não há nomes de pessoas ou de lugares pois condensa suas ações e personagens numa ação que apresentase como metáfora da História das navegações com alguns poucos personagenschave presentes na embarcação que está em altomar a caminho de Portugal ou da José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 164 Espanha Walter Benjamin em seu ensaio O narrador aborda essa questão da seguinte maneira O historiador é obrigado a explicar de uma ou de outra maneira os episódios com que lida e não pode absolu tamente contentarse em representálos como modelo da história e do mundo É exatamente o que faz o cro nista especialmente através dos seus representantes clássicos os cronistas medievais precursores da histo riografia moderna Na base de sua historiografia está o plano da salvação de origem divina indevassável em seus desígnios e com isso desde o início se libertaram do ônus da explicação verificável Ela é substituída pela exegese que não se preocupa com o encadeamento exato dos fatos determinados mas com a maneira de sua inserção no fluxo insondável das coisas BENJA MIN W 1994 p 209 A Literatura Popular tradicional de origem oral se aproximou da Literatura Infantil por causa da sua linguagem acessível e como afirma Câmara Cascudo Assim as estórias mais populares no Brasil não são as mais regionais ou julgadamente nascidas no país mas aquelas de caráter universal antigas seculares espalhadas por quase toda a superfície da terra CASCUDO 1978 p33 A exemplo do que ocorreu com os Contos de Fadas a Nau Catarineta é editada hoje para o público infantil talvez mais do que qualquer outro género o conto oral é universal e comum a todas as culturas e continentes LEITE 1998 p24 A partir do momento em que essas culturas tornamse majoritariamente letradas têmse uma modificação nas formas de transmissão da cultura popular que passa a ser vista como algo que deve ser salvo ou melhor preservado Ao mesmo tempo em que os conhecimentos passam a ser encontrados nos livros e não nas gerações mais antigas pais mães e avós já não sabem mais transmitir histórias receitas e outros tantos conhecimentos seculares A arte de narrar está definhando porque a sabedoria o lado épico da verdade está em extinção BENJAMIN W 1994 pp A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 165 200201 Tornase necessário a partir de então guardar os conhecimentos em livros e retransmitilos através de uma voz que possua autoridade voz que pode estar nos pesquisadores folcloristas historiadores ou acadêmicos dependendo das áreas de conhecimento envolvidas Isso ocorreu principalmente por causa das teorias evolucionistas do século XVIII que passou a identificar a cultura européia e letrada como o estado mais evoluído da civilização discriminando outras formas de saber As teorias evolucionistas contribuíram muito para a dicotomia entre oral e escrito A literatura oral era encarada como uma manifestação primária simples não sujeita a trabalho reflexivo e um produto de uma comunidade enquanto a literatura escrita revelava o oposto final conclusivo de um processo de desenvolvimento complexa e resultante do trabalho de um só autor LEITE 1998 p19 A Nau Catarineta conta a aventura que é descobrir novas terras Narra portanto um evento histórico as navegações com uma estrutura simples linguagem acessível e apresenta um conceito uma moral religiosa vigente na época que se traduz em perpetuação de um conhecimento Muito do conhecimento popular principalmente quando se trata de narrativas ou músicas de tradição oral é incorporado pelo público infantil principalmente por causa das suas estruturas lingüísticas simples antes para facilitar a memorização e agora para se adequar às capacidades cognitivas dos jovens leitores Contar histórias sempre foi a arte de contálas de novo e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas BENJAMIN W 1994 p 205 Dessa forma ainda que a narrativa não se perca há uma transformação na qual ocorre a aproximação entre o popular e o infantil uma vez que os adultos não contam mais essas histórias que agora estão nos livros e as crianças ainda não as conhecem Fazse necessário ressaltar que a Nau Catarineta não é José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 166 um texto escrito especialmente para o público infantil mesmo porque a Literatura Infantil é relativamente recente e o conceito de criança não existia tal como é conhecido hoje portanto os textos a que as criaças tinham acesso eram os mesmos dos adultos Participando as crianças nos serões e saraus com trovadores e contadores de histórias por certo que lhes não é vedado o acesso às representações teatrais sejam elas de temas religiosos ou profanos Os livros de cordel com textos de Gil Vicente podem ter chegado a ser lidos por um público infantil a quem realmente se não destinavam ROCHA Natércia 1992 p 36 A Nau Catrineta ilustrada por José de Guimarães Quetzal Editores 1983 apresenta texto recolhido diretamente da tradição oral em 1981 isto é quase 140 anos depois de Garrett ter transcrito o poema pela primeira vez o que indica que essa narrativa continuou a ser transmitida de geração em geração permanecendo viva e sujeita a pequenas mudanças e interferências de seus diversos narradores Essa é uma versão do Porto da Cruz Machico Ilha da Madeira recitada por Matilde Vieira à época com 78 anos e recolhida por Pere Ferré Já a versão da Nau Catarineta editada pela editora Manatti em 2003 na qual o poema e as ilustrações são fruto de pesquisa de Roger Mello sobre arte popular apresenta um claro trabalho de reapropriação dessa ode romanceada A ambientação do poema é feita de maneira a haver a identificação de elementos brasileiros na narrativa de origem portuguesa uma vez que toda literatura oral se aclimata pela inclusão de elementos locais no enredo central do conto da anedota da ronda infantil da adivinha CASCUDO 1978 p34 Através de uma escrita que reproduz a oralidade presente no poema em sua forma popular e de suas ilustrações que possuem um claro tom de dramaticidade e fazem alusão às formas encenadas da Nau Catarineta em território brasileiro tais como o fandango e a A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 167 marujada o ilustrador apresenta novas possibilidades de leitura do poema A METÁFORA DAS NAVEGAÇÕES NAS ILUSTRAÇÕES DE JOSÉ DE GUIMARÃES A versão da Nau Catrineta observese que a pronúncia portuguesa transparece no título recolhida em 1981 possui texto conciso que dialoga de maneira metafórica com as ilustrações do pintor José de Guimarães uma vez que suas referências culturais são universalistas e não nacionais ilustrações essas que não são realistas pois aproximamse de um traçado infantil Em sua apresentação de apenas dois versos pedese a atenção para a história que será contada mantendose um certo suspense evidenciado na palavra pasmar pela narrativa iminente as páginas do livro como em muitos livros direcionados para o público infantil não são numeradas Lá vem a Nau Catarineta que tem muito que contar ouvide agora senhores uma história de pasmar A representação pictórica da embarcação é curiosa uma vez que esta possui rodinhas e está sobre o mar que é uma serpente dessa forma estabelecese que aquela nau não navega de verdade tratase de uma representação lúdica a nau além disso possui rosto olho e boca ainda que isso nos remeta às carrancas ou aos rostros e olha em direção oposta ao marinheiro que mais tarde a criança descobre ser o Capitãogeneral É interessante observar que as cores em nenhum momento pretendem ser realistas o Capitão general por exemplo nessa primeira ilustração possui um braço lilás o rosto preto e o outro braço verde assim como a sua espada tendo ainda o topo de sua cabeça pintado de vermelho no que poderia ser seu cabelo um chapéu uma coroa ou ainda uma crista As cores José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 168 utilizadas quase sempre são primárias e secundárias As personagens são figuras antropormóficas com aparência de desenhos infantis do que poderiam ser pessoas bichos ou monstros monstrinhos na verdade pois são figurinhas simpáticas e não propriamente aterrorizantes e em algumas páginas parecem estar dançando A fome é um dos pontos de tensão do poema observese o verso Deitaram sola de molho para o outro dia jantar e as personagens aparecem colocando sapatos de molho notase que elas não usam sapatos E é a partir da fome que surgem o desespero e a tentação Deitaram sortes à ventura quem haviam de matar Surge uma personagem com a cara vermelha e a boca escancarada com fome ou talvez raiva e uma outra com o rosto de uma caveira por causa da fome ou num prenúncio de morte tocando um tambor que pode ser símbolo também do suspense pelo que há de vir a personagem que toca o tambor aparece ainda com a cabeça da serpente aproximandose de seu rosto serpente que estava presente na ilustração de abertura do livro e que agora parece estar representando a tentação demoníaca a que estavam sujeitos os marinheiros E como o rufar de tambores havia anunciado logo foi cair a sorte no capitãogeneral O Capitãogeneral é representado como uma figura imponente ocupando praticamente a página inteira do livro e traz uma espada que termina em cruz em seu rosto há outra cruz da figura que foi ungida simbolizando portanto o cristão português nas cruzadas marítimas Na página oposta surge a figura do gajeiro que deve subir ao mastro e verificar se há terra à vista mas esse marujo está possuído por uma serpente azul que o envolve junto ao mastro imagem que remete às mitologias cristã e clássica pois assim como a serpente pode simbolizar a tentação a que estão submetidos todos os marinheiros simboliza também a sabedoria e o A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 169 conhecimento notese que a serpente aqui está enrolada no mastro imagem do conhecimento e símbolo da medicina essa serpente figura recorrente nessas ilustrações do artista plástico português José de Guimarães pode ser tida como a representação do mar para os portugueses o mar que guarda todos os mistérios medos e conquistas As sete espadas que ameaçam o Capitãogeneral são sete serpentes entrelaçadas lembrando um monstro de sete cabeças como a Hidra de Lerna numa referência portanto à mitologia clássica Em seguida há a negociação entre o gajeiro e o Capitão general quando o Capitãogeneral para não ser morto pelos seus marinheiros oferece todos os seus bens materiais e imateriais para que o gajeiro indique onde há um porto seguro para a Nau Catrineta O gajeiro recusa todas as ofertas do Capitãogeneral e pede a sua alma pedido que o revela tratase do próprio demônio que é representado por uma figura com chifres de pés desproporcionais e três serpentes em seu corpo Observese que esse demônio possui lábios de mulher O Capitãogeneral se recusa a aceitar tal proposta e jogase ao mar A minha alma é só de Deus o meu corpo dou ao mar Há uma fragmentação da figura do Capitãogeneral como se ele estivesse a afogarse sua cabeça não aparece colada ao corpo suas pernas estão voltadas para cima seu rosto quase como numa representação cubista está de perfil ao mesmo tempo em que sua boca aparece escancarada e com um olho redondo que faz parte do perfil e outro quadrado mais de acordo com a cara de desespero que está voltada para frente o Capitãogeneral parece estar envolto em algas e sua espada mantémse intacta e firme opondose assim José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 170 a toda a configuração da página há ainda uma outra cabeça que está mais próxima ao pé da página cujo rosto parece observar o leitor Nesse momento há a representação da angústia e do medo mas na última ilustração do livro o anjo pega o capitãogeneral nos braços salvandoo dessa forma de um destino trágico Esse anjo aparece carregandoo de uma forma maternal como se fosse um bebê impressão realçada pelo olhar do anjo e pela presença de seios um dos quais voltado para o rosto do Capitãogeneral A DRAMATICIDADE DAS ENCENAÇÕES NAS ILUSTRAÇÕES DE ROGER MELLO A edição da Nau Catarineta de Roger Mello apresenta ilustrações carregadas de brasilidade suas cores fortes e quentes preenchem traços carregados de dramaticidade pois estão inseridos nessas ilustrações elementos que caracterizam a manifestação das representações dançadas e dramatizadas da Nau Catarineta Filho de raças cantadeiras e dançarinas o brasileiro instintivamente possui simpatias naturais para essa a tividade inseparável de sua alegria Canto e dança são expressões de sua alegria plena É a forma de comuni cação mais rápida unânime e completa dentro do país CASCUDO 1978 p35 As ilustrações feitas por Roger Mello remetem à arte naïf ou primitiva brasileira relacionada à arte popular Fazse necessário esclarecer que se convencionou chamar arte primitiva a que é produzida por artistas nãoeruditos a partir de temas populares normalmente inspirados no meio rural A palavra naïf vem do latim nativus que significa natural espontâneo Apresenta cores vivas imaginação estilização e poder de síntese levados para a tela com uma técnica aparentemente rudimentar Desta forma o artista que segue essa linha inspirase na vida do campo nas atividades de A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 171 plantar e colher e nas festas populares Seus personagens são os homens simples e os camponeses Para Jacques Ardies a arte naïf é um estilo que existe há milênios desde quando o homem desenhava cenas de caça nas paredes das cavernas Os artistas naïfs são forçosamente autodidatas no sentido que eles não receberam influência ou dirigismo de um professor de Belas Artes Eles começam a pintar por impulso e procuram resolver as dificuldades técnicas com meios próprios sendo perdoados quando as suas figuras não são perfeitamente desenhadas ou quando aparecem erros de simetria e perspectiva Porém a experiência da prática ao longo dos anos pode proporcionar ao pintor naïf uma técnica apurada e certeira ARDIES 1998 p15 Para Ardies o destaque da arte primitivista reside justamente na total liberdade de criação do artista que se expressa com espontaneidade e com inocência Em geral o artista naïf oferece uma visão interior repleta de cor criando um mundo para si próprio ARDIES 1998 p17 No entanto os artistas naïfs possuem a consciência da autonomia do espaço pictórico do uso expressivo e ornamental das cores e das diferenças entre o universo criado da realidade Roger Mello portanto nos apresenta um trabalho de pesquisa inspirado na arte pictórica popular unindo o traço aparentemente espontâneo a uma riqueza de detalhes que condensam a narrativa e a dramaticidade presentes no poema e nas encenações da Nau Catarineta ele nos apresenta novas cores com a elaboração inclusive de tonalidades de difícil reprodução gráfica distanciandose nesse particular de um típico artista primitivista embora os retratos da festa popular da Nau Catarineta sejam inspirados na arte naïf O texto de Roger Mello inclui vários elementos que remetem a outras festas populares e encenações dramáticas representadas no José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 172 Brasil o livro contém subtítulos Tripulação da Nau Catarineta Chegança Tempestade Calmaria Nau Catarineta e Despedida O poema propriamente dito está mais ou menos na segunda parte do livro é justamente a que se intitula Nau Catarineta Observando com atenção a capa do livro a primeira impressão que temos é a de estarmos diante daqueles tapetes feitos de retalhos utilizados para contar histórias O livro iniciase pela apresentação das convenções de representação pictórica das personagens a tripulação da Nau Catarineta notese que algumas dessas personagens são personagens típicas da Chegança Ração o cozinheiro Vassoura o zelador do navio o Reverendo que normalmente é chamado Capelão e os guardamarinha na Nau catarineta normalmente há apenas a figura do Capitãogeneral aqui temos o Piloto o Tenente e o Mestre ou Patrão Em seguida o texto começa com a apresentação da representação teatral em versos lembrando a apresentação de festas populares como a Folia de Reis por exemplo que ocorre no interior do país onde o grupo que está se apresentando passa de casa em casa chamando o público para o seu espetáculo observese que as páginas desse livro não são numeradas Entremos nesta nobre casa com estas vozes descansadas Louvores viemos dar Ao senhor dono da casa Os versos em redondilha maior assemelhamse aos versos de um cordel curtos com rimas simples o que facilita o ato de decorar essencial nas apresentações públicas Nas primeiras estrofes há a apresentação ao público quando o narrador esclarece que o poema trata de uma obra fictícia descrevendo a própria representação que está sendo prestigiada Nossa barca e os marinheiros navegando pela rua A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 173 Os marujos vão em linha e o fandango continua Ando roto esfarrapado mas hoje sou almirante desta barca de brinquedo amarrada num barbante Aqui hoje sou marujo com pandeiro e espadim Minha nau é de brinquedo ninguém tenha dó de mim A imagem que acompanha esse texto retrata provavelmente alguma cidade histórica brasileira com suas ruas de paralelepípedo e casinhas coloniais recuperando o caráter de um Brasil que todos temos no nosso imaginário Há a representação de uma festa popular que pode ser um fandango ou uma marujada com traços primitivistas nas figuras bidimensionais A ênfase para a figura do almirante é dada pela sua desproporcionalidade uma vez que é a maior figura da cena Está representado com roupas de almirante e espada embainhada portando um cone espécie de megafone em sua mão direita e puxando um barco de brinquedo com rodinhas por um barbante Fazse um paralelo com o texto com pandeiro e espadim o pandeiro do texto assim como o cone da ilustração representa a festa popular a representação propriamente dita já o espadim é um elemento cênico importante na caracterização da personagem do almirante À sua volta na ilustração estão os músicos representados com pandeiros e violas vestidos de marinheiros em linha ou seja enfileirados Há ainda a presença do público com vestes coloridas carregando bandeirinhas prestigiando a festança É curioso observar que as pessoas são representadas em José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 174 diversas tonalidades rosa marrom vermelho preto verde e amarelo o que sem dúvida nos remete ao próprio povo brasileiro miscigenado e colorido alegre e festivo Ou seja na representação do poema de origem portuguesa Roger Mello recria a narrativa regionalizandoa e colocandoa num contexto abrasileirado O mar está representado em algumas ilustrações por uma trama que se assemelha à tapeçaria talvez em alusão àquelas que poderiam estar sendo transportadas pela Nau Catarineta ou mesmo às tapeçarias de tear feitas no Nordeste caracterizando a ambientação do poema de origem portuguesa no Brasil Vemos ainda cravosdaíndia desenhados na proa da embarcação simbolizando as preciosas especiarias que motivaram boa parte das navegações dos séculos XV e XVI Nas ilustrações em que o mar não está representado dessa forma ele é indicado por meio da metonímia peixes arraias águasvivas monstros marinhos estão no lugar onde deveria estar o mar trazendo à tona o gigantesco imaginário existente a seu respeito lembremonos do Mar português de Fernando Pessoa Deus ao mar o perigo e o abismo deu Mas nele é que espelhou o céu Cabe ressaltar ainda que quando o Capitão general jogase ao mar é salvo por um anjo Há a apresentação de alguns momentoschave do poema em páginas inteiramente vermelhocarmim com a presença apenas de alguns personagens e elementos que representam os adereços dos atores como bandeirinhas panelas e o megafone do Mestre ou Patrão que ao que parece é o narrador do livro Nesses momentos de auge da dramaticidade o narrador cede a voz às personagens que condensam a tensão em suas falas afinal o vermelho traduz toda a tensão contida nesses episódios No segundo momento do texto há a Chegança com a apresentação da história que virá a seguir a Chegança é um Auto popular caracterizado pela presença de marujos e pelo embate entre A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 175 cristãos e mouros que culminava com a derrota e conversão dos mouros foi muito popular em Portugal no século XVIII tendo sido proibida por D João V Nesse momento da narrativa apresentase a nau do reino de Lisboa os primeiros versos são também os primeiros versos do poema popular da Nau Catarineta Lá vem a nau Catarineta que tem muito o que contar Ouçam agora senhores uma história de pasmar Esta nau é de Lisboa de Lisboa é esta barca Nela afronto tempestade para ver nosso monarca As personagens carregam instrumentos musicais violão cavaquinho e pandeiros que caracterizam a orquestra da Chegança e objetos cênicos vassoura panela balde e espadas há também sombrinhas coloridas como as que caracterizam a dança do frevo Há também nessa cena um elefante colorido provavelmente indiano O poema apresenta dois momentos de grande tensão o primeiro deles quando da tempestade que atingiu a Nau Catarineta e o segundo na disputa entre o Capitão e o Diabo Durante a tempestade há o desespero da tripulação e uma disputa de poder entre os diversos tripulantes nas ilustrações as personagens aparecem recolhendo as velas da embarcação e cada uma das velas aparece como se fosse um balão daqueles que representam as falas de um diálogo de história em quadrinhos em mais de um momento do livro aparecem referências aos quadrinhos o que é um contraste interessante com as figuras representadas na maior parte das vezes inspiradas na arte popular as personagens não estão com seus pés firmes na embarcação e o único que está com fisionomia tranquila é o José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 176 gajeiro Há um momento de humor nas falas quando as personagens criticam o piloto porque este gosta de beber cachaça o que poderia ter feito com que a nau saísse de sua rota original ao que o piloto responde eu bebo minha cachaça mas nâo é com seu dinheiro O mar está representado por figuras marinhas quase monstruosas O Contramestre o Patrão e o Tenente querem mandar na Nau Catarineta mas a questão é resolvida com a intervenção do Capitão general que surje na página seguinte com sua espada desembainhada ameaçando a tripulação com severos castigos A figura do Capitãogeneral aqui surge no alto da página acima da embarcação e desproporcionalmente maior que toda a tripulação desequilibrando a configuração da ilustração simétrica O Capitão general é ainda a única personagem reconhecível nessa página do livro Depois da tempestade passamse sete anos e um dia de calmaria Ao longo desse tempo em que permaneceram à deriva os marujos fazem do contar histórias o seu passatempo histórias como a da própria Nau Catarineta a página representa a noite o fundo é preto o mar é azulmarinho e tem águasvivas as personagens carregam lampiões e apresentamse com fisionomias serenas um dos marujos conserta uma das velas da embarcação enquanto vários dos marinheiros estão sentados escutando histórias contadas por senhor de cabelos e barba brancas observese que essa personagem segura em sua mão direita um barquinho de brinquedo assim como o Mestre nas primeiras páginas do livro Roger Mello apresenta nesse momento a figura do contador de histórias tanto na ilustração quanto no texto Um marujo de primeira viagem pediu a um outro enrugado Conta de novo o ataque do navio mouro O contador de histórias referese à Moura Torta Era uma moura torta era uma princesa nua um dos mais tradicionais contos populares portugueses no qual a vilã é a uma velha moura do título A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 177 as referências aos mouros como vilões faz parte de várias festas e narrativas populares A calmaria a princípio parece ser mais proveitosa que a tempestade e é num momento de calmaria que surge o poema da Nau Catarineta propriamente dito a partir desse ponto o texto aproximase bastante do poema tradicional no entanto a comida escasseia e a fome deixa toda a tripulação desesperada Situação comum e recorrente durante as navegações principalmente durante longas calmarias e após naufrágios quando os sobreviventes encontravam alguma terra que não lhes era familiar Já não tinham o que beber nem tampouco o que manjar senão sola de sapato uma fome de amargar Botamos as solas de molho para outro dia jantar Mas a sola era tão dura que não pudemos tragar A página dupla que apresentanos a tripulação faminta é fortemente amarelada o amarelo muitas vezes é tido como a cor do desespero por causa da fome a tripulação faz um sorteio para escolher quem será comido pelos demais e é sorteado o Capitão general que desesperado pede ao Gajeiro que suba ao mastro para tentar avistar alguma terra A página apresenta o mar estático como se fosse um tapete o gajeiro no alto do mastro à esquerda da nau e o Capitãogeneral desproporcionalmente maior que as outras personagens novamente com a boca escancarada e sua espada desembainhada ameaçado por sete marinheiros com suas pequenas espadas José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 178 O Capitãogeneral tenta uma espécie de barganha com o Gajeiro oferecendolhe a filha seu cavalo e seus bens para que este lhe mostre onde há terra firme mas o Gajeiro não quer quer a Nau Catarineta ao que o Capitão responde que não pode dar pois a nau pertence ao rei de Portugal A tripulação aparece se escondendo e tapando os olhos revelando para os leitores através das ilustrações o medo Durante esse diálogo entre o Capitãogeneral e o Gajeiro há uma sequência de ilustrações que lembram histórias em quadrinhos com a repetição do cenário mas com mudanças nas ações das personagens O Gajeiro então pede a alma do Capitãogeneral revelando ser o próprio Demônio que nessas ilustrações está representado como uma figura quase marinha com a presença de guelras no lugar onde deveriam estar as orelhas Ele vai se transformando em figura demoníaca enquanto fala com o Capitão isso fica bastante claro na representação das ilustrações na primeira vez em que o Gajeiro aparece ele está vestido de marinheiro depois mostra o seu corpo vermelho e por fim o seu enorme rabo No momento em que o Gajeiro finalmente se revela as páginas tomam um tom predominantemente avermelhado com a presença de vários diabinhos e de nuvens negras em torno da embarcação e com a tripulação escondida e escondendo os seus rostos como fazem as crianças quando amedrontadas Os mastros da Nau Catarineta nessa ilustração assumem a forma de cruzes demonstrando que a nau goza de proteção divina O Capitãogeneral ao constatar a verdadeira identidade do Gajeiro não aceita fazer acordo com o Demônio e se joga ao mar aparece portanto em meio a tubarões águasvivas e arraias no fundo de um mar bem escuro enquanto seus homens o avistam de cima do barquinho agora pequenino ao longe A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 179 Um anjo imponente salva o Capitãogeneral pegandoo do fundo do mar trazendoo de volta à embarcação Desta forma depois da derrota do Diabo a tripulação é representada muito alegre numa verdadeira comemoração junto aos anjos entre os quais aparece até mesmo uma figura que nos remete à imagem de Nossa Senhora Aparecida É interessante notar que nas ilustrações que representam o embate do Capitão com o Diabo depois que este se revela ou seja no embate entre o Bem e o Mal há a representação de diversas naus nau do cão nau horrorosa nau infernal nau tenebrosa nau celestial e nau divinal numa clara alusão aos Autos das Barcas de Gil Vicente autos teatrais assim como às representações da Nau Catarineta em território brasileiro na forma de fandango e de marujada A nau é levada de volta a Portugal com todos a salvo Termina assim com uma festa o episódio da Nau Catarineta Olhem como vem brilhando esta nobre infantaria Saltemos do mar pra terra ai ai festejar este dia Saltemos todos em terra todos com muita alegria louvores viemos dar a Deus Menino este dia Paralelamente à festa que começa por causa da chegada da nau a Portugal a festa popular fandango ou marujada chega ao seu fim assim como a tripulação da nau Catarineta todos voltam à sua vida cotidiana Triste vida do marujo de todas a mais cansada Mal ele chega na praia José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 180 A barca apita apressada Todos filhos da fortuna que quiserem se embarcar a catraia está no porto a maré está baixamar Os marujos voltam a Portugal a festa termina com a alusão a novas aventuras a todos que quiserem se embarcar e a ilustração de Roger Mello retorna ao cenário onde a festa começou agora com as pessoas indo embora as bandeirinhas esquecidas pelo chão e o Almirante de costas carregando seu cone debaixo do braço e puxando seu barquinho pelo barbante CONSIDERAÇÕES FINAIS O poema popular Nau Catarineta ou Nau Catrineta possui inúmeras versões escritas que partem de incontáveis narradores tradicionais afinal o poema foi recolhido da tradição oral No Brasil apresentase também na forma de festas populares de temática marítima tais como a Barca a Chegança o Fandango e a Marujada que contam com músicas danças e encenações dramáticas Nesse trabalho foram observadas duas edições ilustradas direcionadas para o público infantil uma recolhida diretamente da tradição oral na Ilha da Madeira e ilustrada por José de Guimarães e a outra ilustrada por Roger Mello que compila textos e cenas de festas populares no Brasil A partir da observação das ilustrações de cada artista plástico percebemos a diferença de interpretações de cada um deles para o poema que faz com que hajam leituras múltiplas de cada leitor e observador da narrativa em cada uma de suas edições o que ocorre principalmente porque as ilustrações não são realistas embora utilizemse de elementos figurativos de maneira lúdica A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 181 Na versão ilustrada por José de Guimarães percebese a presença de elementos figurativos em desenhos de traçado infantil com algumas figuras facilmente identificáveis algumas outras inferidas e ainda figuras enigmáticas e quase abstratas que no entanto podem ser interpretadas de maneira pessoal por cada leitor do livro o texto simples com versos curtos e com a temática de uma aventura é um chamariz para as crianças Talvez seja justamente devido à temática da aventura e ao imaginário provocado pela idéia do descobrimento de novas terras que tenha possibilitado a perpetuação desse poema Já na versão de Roger Mello há uma grande ela boração tanto do texto quanto das ilustrações que são extremamente dramáticas com diversas personagens inspiradas nos autos populares brasileiros bastante expressivas suas expressões estão em seus rostos e corpos que muitas vezes encenam uma dança de passos marcados Roger Mello utilizase de colorido inovador foge à palheta de cores simples e chapadas normalmente utilizadas nas publicações infantis para melhor explorar a dramaticidade das cenas Cabe ainda analizar melhor a presença da personagem do gajeiro que se transforma no Diabo com referências tanto aos Autos das Barcas de Gil Vicente quanto aos Contos do Diabo Logrado fortemente disseminados na tradição oral de língua portuguesa especialmente no Brasil na Literatura de Cordel REFERÊNCIAS ARDIES J A arte naïf no Brasil São Paulo Empresa das Artes 1998 BENJAMIN Walter O narrador In Magia e técnica arte e política São Paulo Editora Brasiliense 1994 CASCUDO Luis da Câmara Literatura Oral no Brasil Rio de Janeiro Livraria José Olympio Editora 1978 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 182 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 CORTESÃO Jaime O Que o Povo Canta em Portugal Rio de Janeiro Livros de Portugal 1942 GUIMARÃES José de A Nau Catrineta Viseu Quetzal Editores 1983 LEITE Ana Mafalda Oralidades e Escritas Lisboa Edições Colibri 1998 MEIRELES Cecília Problemas da Literatura Infantil 2 ed São PauloEditorial Summus 1979 MELLO Roger Nau Catarineta Rio de Janeiro Manati 2004 PERES Damião História dos Descobrimentos Portugueses Porto Vertente 1983 PIGAFETTA Antonio A Primeira Viagem ao Redor do Mundo O diário da expedição de Fernão de Magalhães Porto Alegre LPM 1985 ROCHA Natércia Breve História da Literatura para Crianças em Portugal 2 ed Lisboa Instituto de Cultura e Língua Portuguesa 1992 ROSÁRIO Lourenço do Singularidades II Maputo Texto editores 2007 183 O APELO À IDENTIDADE NACIONAL E AO UTÓPICO NA OBRA INFANTOJUVENIL DE LAURA INGALLS WILDER Fabiana Valeria da Silva Tavares INTRODUÇÃO Houve um tempo em que narrativas eram fonte de toda fantasia para as crianças e de toda a possibilidade de memória para os velhos que na ânsia de tornarem suas histórias conhecidas e mais do que isso lembradas registravamnas através da escrita Laura Ingalls Wilder é deste tempo Nascida nos Estados Unidos no ano de 1867 vivenciou nos primeiros vinte anos a fase final do conhecido movimento pioneiro de população do território oeste norte americano Descendente de escoceses imigrantes saiu com a família do estado de Wisconsin e rodou a carroça carregada de móveis de utensílios e do sonho americano através dos territórios mais inóspitos de Kansas de Minnesota e de Dakota Do lado leste do país explodia o crescimento industrial e econômico americano e o sonho de muitos morria nos salários insuficientes pagos aos pobres muitas vezes imigrantes recémchegados de países como Irlanda e Itália e nas lutas dos sindicatos que começavam a se formar como era o caso do Knights of Labor LIMONCIC 2003 A vida da família Ingalls porém estava distante do fervor e do crescimento urbano e prendiase principalmente aos preceitos jeffersonianos de que aquele território era na verdade uma nação de agricultores Assim em meio a todas as dificuldades impostas pelas intempéries pela falta de recursos financeiros e de recursos naturais e pela falta de uma estrutura social mais organizada a família Ingalls estabeleceuse finalmente em De Smet em Dakota do Sul Ali Laura conheceu o fazendeiro Almanzo Wilder originário do estado de Nova York e casouse com ele Após 4 anos de infrutíferas José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 184 tentativas de sucesso no plantio de grãos e na criação de carneiros e gado incluindo nesse período a doença que quase paralisou as pernas de Almanzo e a morte do segundo filho mudaramse para uma região mais próspera e ali fizeram sua fazenda Rocky Ridge onde ela ativamente trabalhou na fazenda contribuiu com artigos para o jornal local The Ruralist e durante os anos da Depressão escreveu a série de nove livros que hoje conhecemos como Little House Books Mistura de romanesco romance e autobiografia a série é o resultado daquilo que Miller 1994 denomina processo de ficcionalização da história da família Ingalls sob o ponto de vista da menina Laura e sua trajetória dos 3 aos 19 anos ao lado dos pais e das três irmãs Estruturada de forma episódica a série dá conta de narrar as pequenas aventuras da família Ingalls recheandoas com todos os valores arraigados na cultura norteamericana existentes desde o seu início e fortemente marcados por uma ideologia que pregava como ponto alto da luta humana a figura do selfmade man Com base em seu talento para filtrar as passagens que mais interessavam para criar as que seriam mais atraentes e para colocar tudo no papel Laura Ingalls prendeuse a um projeto pessoal de reconstrução não só de sua história pessoal mas da identidade nacional de um povo abalado pelas conseqüências severas de uma Depressão que assolou o país Como nos explica o historiador Miller a acuracidade histórica porém era somente uma con dição necessária e não uma garantia de boa história e Wilder desejava sacrificar a acuracidade caso fosse ne cessário em prol de um fluxo narrativo Datas ou nomes poderiam ser alterados idades poderiam ser modificadas ações poderiam ser inventadas ou recons truídas e episódios poderiam ser completamente recri ados Assim embora fosse acurado em muitos as pectos os romances de Wilder não poderiam ser enca rados como História factual Eles são ficção e responde ram às leis ditadas pelo gênero Os detalhes eram freqüentemente modificados para esclarecer a história A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 185 ou simplesmente para melhorála Ela queria se prender aos fatos tanto quanto fosse possível e à medi da que pudesse lembrálos mas ela rearranjaria em modificaria aqueles fatos onde fosse preciso para en caixálos nas necessidades dramáticas da narração MILLER 1994 pp 845 88 tradução nossa Entendemos então que não somente de história e de lembranças a narrativa da coleção foi feita ela contou com um expertise literário assaz refinado para que se pudesse produzir com grande sucesso o que décadas depois viria a se tornar toda sorte de material de consumo desde seriado de TV até livros impressos em papel jornal calendários e longasmetragem produzidos já nos anos 2000 para a televisão A CONSTRUÇÃO DE UMA IDENTIDADE A PERSONAGEM E SEU ESPAÇO Embora a série retrate em sua maioria a história da família Ingalls Wilder dedicou um volume da série para narrar a infância do garoto Almanzo e de sua família numa fazenda localizada no estado de Nova York na cidade de Malone Este é o volume publicado em 1933 e intitulado Farmer Boy O Jovem Fazendeiro O expediente de elaboração literária é o mesmo dos volumes dedicados à narrativa da família Ingalls Há ainda um volume postumamente publicado que não passou pelo crivo da revisão de Rose Wilder Lane filha de Wilder e escritora que colaborou mas não escreveu a série Little House Books como nos lembra Fraser 1994 A ausência da revisão e da discussão sobre seu teor resultou muito mais num romance do que no romanesco propriamente dito no derradeiro volume intitulado The First Four Years Os Primeiros Quatro Anos publicado somente em 1972 No entanto o espírito do que é conhecido como a experiência americana e que carrega através dos séculos toda a ideologia que José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 186 une a nação numa só voz está fortemente marcado nos oito primeiro volumes e vivamente destacado em Farmer Boy Este foi o segundo volume escrito por Wilder Após ter obtido sucesso com a primeira experiência seus editores pediram algo que representassem com mais intensidade o espírito da nação algo que como explica ROMINES 1994 fizesse a nação se lembrar dos valores que as tinham construído e que as fizessem resistir nos tempos desoladores da Depressão Naquele ano Herbert Hoover saía do comando e Roosevelt assumia a nação americana para colocar em plano o New Deal ditando os preços dos produtos controlando colheitas estendendo seus braços paternalistas sobre as associações artísticas que necessitavam de patrocínio e subliminarmente precisavam ficar sob as vistas para que não estendessem suas asas de tons avermelhados sobre uma economia democrática que mais tarde ainda nos anos 1930 iniciaria ainda de dentro dos departamentos do governo o trabalho de diluição do movimento socialista SCHLESINGER Jr 1958 WEINSTEIN 1975 Frente à baixa dos preços das colheitas e da carne proveniente da matança dos animais de corte a então fazendeira Laura Ingalls Wilder testemunhou a subversão de seu mundo e o que era um hobby tornouse profissão lucrativa que viria a compor sua principal fonte de renda Foi assim então que Farmer Boy tomou corpo literário e espírito nacionalista Muitas foram as estratégias de composição literária que formaram os Little House Books Vale a pena explicar em poucas linhas que se tratava então de uma literatura de resgate dos valores e cujo teor inspirava segurança e fé para seus leitores Falava não de fome desemprego e desespero mas de um espaço quase précapitalista onde o homem dependia de um pedaço de terra cedido pelo governo de seus músculos e de sua genuína vontade de trabalhar e de vencer não importando para tal que do outro lado do país houvesse um outro quadro social e econômico e outras lutas A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 187 travadas não com machados e arados mas com mãodeobra e com salários e ações na bolsa Numa palavra o espaço construído nas narrativas de Wilder é fechado em si e as comunidades ali descritas dependem de si mesmas ou no máximo das mercadorias vindas dos trens e pelas quais pagam com as mercadorias produzidas em suas terras e vendidas localmente Em tal estrutura fundamental é o papel desempenhado pela personagem Uma vez que eram livros destinados a jovens e crianças a autora construiu sua ficção em torno das personagens centrais Laura Ingalls para a maioria dos livros e Almanzo Wilder em Farmer Boy O cuidado tomado para que isso não fugisse do controle é comprovado pela correspondência entre Wilder e Lane Dizialhe a filha Você DEVE sempre se lembrar de escrever a coisa toda a partir do ponto de vista da Laura Lane lembrava à sua mãe Arranje o material de modo que ela possa de fato ver ouvir experimentar tanto quanto possível MILLER 1994 pp 945 A saída encontrada por Wilder foi bastante eficaz senão genial em vez de fazer uso do narrador onisciente seletivo mesclouo com a possibilidade de falar do ponto de vista de quem escreve uma autobiografia e adotou o que Mendilow in STEVICK 1967 ponto de vista restrito O autor apresenta tudo através da mente de uma única personagem ou pelo menos de uma personagem por vez durante uma parte considerável do livro As outras personagens são julgadas pelo seu exterior a partir de suas ações e de seu comportamento tal como vistos pela personagem central Este método é um modo de relacionar os métodos onisciente e autobiográfico a convenção artificial do autor onisciente fica limitada a uma única pessoa no romance por outro lado a inflexibilidade e as várias desvantagens pertencentes à primeira pessoa são evitadas José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 188 O uso do ponto de vista restrito não apenas torna a identificação entre leitor e personagem mais fácil ele também promove uma apresentação direta e imediata devido ao fato de ser assim que as pessoas parecem agir na vida real Nós não nos vemos como os outros nos vêem Estamos conscientes da pressão total do passado em nosso presente Conhecemos a nós mesmos a partir de dentro somos em maior ou menor grau oniscientes de nós mesmos Com relação aos outros porém somos meros espectadores podemos apenas adivinhar os motivos de suas ações e de seu comportamento não podemos ter evidência direta de dentro de suas mentes Eis o motivo pelo qual as pessoas nos parecem tão mais simples do que nós mesmos Sabemos apenas o resultado das forças que trabalham sobre elas uma vez que se expressam em sua parte externa Em nós mesmos estamos cientes do equilíbrio complexo e inconstante de forças conflitantes ao mesmo tempo antes que alcancem sua expressão na ação Mendilow in STEVICK 1967 pp 279280 nossa tradução As narrativas de Wilder então produzem um narrador que consegue facilmente transitar do papel onisciente para o de alguém que narra convincentemente como se fosse testemunha ocular do acontecimento de forma a tornar ainda mais eficiente a identificação entre leitor e personagem Não nos esqueçamos pois do fato de que estamos tratando de personagens infantis cujo alvo primordial era crianças leitoras A estratégia dá ao leitor a ilusão de realismo porque ele não percebe que existe ali a mediação do narrador que como nos explicou Miller 1994 tinha um projeto narrativo a construir e a manter Do mesmo modo o olhar de Almanzo e de Laura cada qual a seu turno sobre seus pais os grandes heróis selfmade men era restrito e exaltava somente as qualidades e o caráter de cada um Uma vez que o olhar dos protagonistas tornase base para o recorte das personagens ele evita dramas de ordem A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 189 pessoal e psicológica que não lhes pertencem E dado que eram personagens infantis em uma realidade de família estruturada e calcada nos valores sociais econômicos e religiosos norte americanos seus dramas e suas dúvidas restringiamse a males menores e não atingiam a extensão de problemas que a falta de dinheiro ou o granizo que atingiu uma plantação poderiam acarretar a um agricultor Claramente o processo de criação da personagem e da narrativa passa pela estrutura escolhida para narrar Nesse sentido o romanesco tal como colocado pro FRYE 1957 dá conta de explicar a visão arquetípica dos adultos da narrativa que compõe o lado branco do tabuleiro do xadrez narrativo e duelam contra todos os males que os inimigos o cansaço a falta de recursos as tempestades e secas a doença trazem ao longo da série Little House Books para no final vencerem tudo e desbravarem nos horizontes do tempo e não mais do espaço os valores ali tão fortemente explorados e reafirmados Excertos que dão conta dessa construção generalizada do caráter americano versus outras nações são claros em várias passagens Vale a pena destacar duas neste artigo A primeira resgata de forma bastante evidente a sobrepujança do homem americano No final da comemoração do Dia da Independência o menino Almanzo pergunta a seu pai rico e próspero fazendeiro como é que machados e arados construíram o país Vejamos Naquela noite a caminho da casa com o leite Almanzo perguntou ao Pai Pai como foi que machados e arados fizeram esse país Não lutamos contra a Inglaterra para ganhálo Lutamos pela Independência filho disse o pai Mas toda a terra que nossos antepassados tinham era uma pequena faixa entre as montanhas e o oceano Daqui até o Oeste era região dos índios dos espa José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 190 nhóis dos franceses e dos ingleses Foram os lavrado res que tomaram toda essa região e dela fizeram a América Como perguntou Almanzo Bem filho os espanhóis eram soldados cavalheiros altivos e poderosos que somente queriam ouro Os franceses eram negociantes de peles querendo fazer dinheiro rápido E a Inglaterra estava ocupada fazendo guerras Mas nós éramos lavradores filho queríamos a terra Foram os lavradores que subiram as montanhas e limparam a terra e a trabalharam e a cultivaram e se apegaram às suas lavouras Esta região se estende agora por quatro mil quilômetros até o Oeste Vai além de Kansas e além do Grande Deserto Americano sobre montanhas maiores do que essas descendo até o Oce ano Pacífico É o maior país do mundo e foram os la vradores que tomaram toda esta região e dela fizeram a América filho Nunca esqueça isto WILDER 1933 pp 1367 Da mesma forma clara a superioridade americana de caráter e de discernimento tornase explícita na comemoração do Dia da Independência à personagem Laura então com 14 anos no sétimo volume da série Little Town on the Prairie A multidão já se dispersava mas Laura continuava i móvel De repente veiolhe um pensamento inteira mente novo para ela Lembrouse das palavras da De claração e da letra da canção ao mesmo tempo e pen sou Deus é o rei da América Os americanos não obe decerão a nenhum rei da terra Os americanos são li vres Isto quer dizer que eles devem obedecer às suas próprias consciências Nenhum rei manda em Pa ele tem que mandar em si mesmo Puxa pensou ela quando eu crescer Pa e Ma já não me dirão o que fazer e o que não fazer e não haverá ninguém com direito a me dar ordens Eu mesma é que terei de esforçarme para ser boa Sua mente iluminouse com esse pensamento Isso é que queria dizer ser livre Quer dizer ser bom Deus nosso Pai criador da Liberdade As leis naturais e as leis divinas nos garantem o direito à vida e à liberdade Então devemos obedecer às leis de Deus pois só elas é que nos dão o direito de sermos livres WILDER 1941 pp 689 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 191 O que vemos nesses dois trechos vai além da exaltação dos valores e da crença americanas tratase da ideologia presente e que resgata uma época nostálgica e de ouro num momento de crise quando as condições de figuração de tal ideologia se fazem presentes porque a História assim o dita Wilder havia escrito a história da sua infância anos antes sob a forma mais resumida e completamente autobiográfica e tentado publicála durante os anos 1920 explodiam as novidades do mercado e da tecnologia e o dinheiro era farto Em tal contexto nostalgia seria sinônimo de coisas menores e o passado ficaria latente Os anos 1930 propiciaram então a chance de recontar aquilo em que ela acreditava porém de modo reconstruído estética e ideologicamente elaborados para que o leitor sorvesse aquilo como fonte não só de distração mas de reafirmação das crenças abaladas pela crise financeira Nesse sentido ideologia é a o termo que designa a importância desse material o fato de que a estrutura de sentimento da época surgido desse contexto histórico era fator primordial para o sucesso de livros num mercado editorial que carecia de produtos altamente consumíveis Para os leitores estabelecer identidade com o que liam era fundamental e por isso a ideologia no sentido dado por Williams 1977 de um sistema de crenças ilusórias falsas idéias ou consciência que podem ser contrastadas com a verdade ou o conhecimento científico e do processo geral da produção de significados e de idéias p55 não era acaso e sim ingrediente fundamental na receita criada por Wilder para que seus livros fizessem sucesso e não parassem nas prateleiras Assim para que isso acontecesse a ideologia realizou sua função de tornar a narrativa já romanesca em grande parte e portanto exaltada pelos feitos heróicos de suas personagens e autobiográfica em outro tanto e por isso restrita à formação de personagens menos complexas e mais generalizadas para estabelecer positivamente a identificação José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 192 entre leitor e narrativa O sociólogo Terry Eagleton explica o processo pelo qual a ideologia opera este feito Um importante expediente utilizado pela ideologia para alcançar legitimidade é a universalização ou eternali zação de si mesmas Valores e interesses que são na verdade específicos de uma determinada época ou lu gar são projetados como valores e interesses de toda a humanidade Supõese que do contrário a natureza interesseira e setorizada da ideologia revelarseia em baraçosamente ampla demais o que impediria sua a ceitação geral EAGLETON 1997 p 60 Desta forma uma ideologia que interessava ao setor não só editorial mas sobretudo governamental vinha em um ótimo momento para restabelecer a crença numa identidade que reconstruísse uma nação alquebrada e tornasse a unila em torno de ideais que eram verdadeiros para muitos mas de cuja realidade de sucesso e de independência no sentido jeffersoniano poucos partilhavam A pesquisadora das obras de Wilder Ann Romines colabora com um excerto bem interessante do modo como esta ideologia operou nos anos 1930 na nação norteamericana A Depressão cortou muito fortemente as atividades que aconteciam fora do âmbito doméstico e forçou famílias a concentrar seus recursos e a encontrar conforto uns nos outros Os índices de divórcio realmente caíram du rante a Depressão e nas revistas populares uma nova ênfase familiar de camaradagem compreensão mútua afeição simpatia facilitação acomodação integração e cooperação era aparente As famílias começaram a jogar novos jogos juntas e a ouvir ao rádio ou ir ao ci nema juntas Tal como um jornal de Muncie em India na publicou Muitas famílias que perderam seu carro encontraram sua alma Mintz and Kellogg apud ROMI NES 1994 p 113 A ideologia vinha de fora e infiltravase pelos canais de comunicação fosse o cinema fosse o jornal ou o rádio ou as conversas nas ruas e era eficaz como lemos acima no que se propunha restringir as famílias unindoas positivamente em suas A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 193 casas isoladas onde homens descontentes com o desemprego e mulheres que suportavam a situação em casa não pudessem juntos conversar refletir e quiçá chegar às raias de uma temida revolução uma vez que nas ruas circulavam como nunca antes haviam circulado as bandeiras vermelhas em movimentos artísticos e sindicalistas Se a intenção era fazer a apologia de um espaço perfeito em que tudo funcionava como uma máquina engrenada num espaço utópico em que o dinheiro não era elemento essencial para a sobrevivência e sim o esforço da labuta na terra nada era melhor do que o mundo utópico construído por Wilder em sua série principalmente em Farmer Boy A fazenda dos Wilders era sem favor algum o símbolo da prosperidade e a exaltação do trabalho protestante cujo lucro agradava ao Senhor O narrador assim descreve o espaço externo da fazenda onde o trabalho era executado O teto da alta casa pintada de vermelho estava rodeado de neve e em todos os beirais havia uma franja de grandes pingentes de gelo A frente da casa estava es cura mas uma trilha de trenó ia até os grandes celeiros e um caminho fora aberto até a porta lateral Nas jane las da cozinha brilhava a luz da vela Havia três celeiros compridos e enormes em três lados do terreiro quadrado Todos juntos eram os melhores celeiros de toda a região Almanzo entrou primeiro no Curral dos Cavalos Ficava de frente para a casa e tinha trinta e cinco metros de comprimento A fileira de baias dos cavalos ficava no meio num dos extremos achava se a divisão dos bezerros e depois dela o acolhedor ga linheiro no outro extremo ficava a Casa das Carroças Era tão grande que duas carroças e o trenó podiam ser guardados nela restando ainda muito espaço para de satrelar os cavalos Daí os cavalos iam para suas baias sem tornarem a sair para o frio O Celeiro Grande começava no estremo oeste do Curral dos Cavalos e formava o lado oeste do pátio No meio do Celeiro Grande ficava o Pátio Grande Enormes por tes abriam para ele do lado da campina deixando en trar as carroças carregadas De um lado ficava a gran José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 194 de baia de feno com quinze metros de comprimento e seis de largura cheia de feno até o teto Além do Pátio Grande havia quatorze estábulos para as vacas e os bois Mais adiante ficava o abrigo das má quinas e a seguir o abrigo das ferramentas Dobrava se então à esquina chegando ao CeleiroSul Nele ficavam a sala de forragem o chiqueiro o curral dos bezerros depois o Pátio do CeleiroSul Era o pátio de debulhar Era ainda maior que o Pátio do Celeiro Grande e o moinho de vento ficava ali Além do Pátio do CeleiroSul havia um abrigo para os bezerros e depois dele o curral das ovelhas No Celei roSul só havia isto Uma cerrada cerca de madeira com três metros e meio de altura erguiase no lado leste da área Os três celei ros enormes e a cerca circundavam acolhedoramente o pátio O vento uivava e a neve batia contra eles mas não conseguiam entrar Por mais tempestuoso que fos se o inverno a neve nunca se acumulava mais de meio metro no pátio abrigado WILDER 1933 pp202 Vista de fora a estrutura da fazenda de Wilder era uma paliçada contra as intempéries contra os ladrões e malfeitores e contra tudo e todos que ousassem interferir de modo não previsto na rotina de produção artesanal da fazenda Dali os familiares saíam apenas para a escola e o culto dominical onde mais uma vez o Pai como era chamado a personagem de James Wilder era reverenciada pelo seu status e pela fortuna que possuía e que decorria da vida na fazenda As palavras que encontramos nas páginas finais do livro são a síntese dessa ideologia do selfmade man jeffersoniano Um fazendeiro depende de si mesmo e da terra e do clima Se você for um fazendeiro vai criar o que come o que veste e se manterá aquecido com a madeira que corta da floresta Você trabalhará duro mas o fará quando tiver vontade e ninguém lhe dirá para ir ou vir Você será livre e independente numa fazenda filho WILDER 1933 p 371 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 195 Ao encerrar o volume com uma lição de liberdade e independência que durante a Depressão era encontrada somente no nível simbólico Wilder corrobora para o propósito de Roosevelt de reconstruir o modelo de nação estável mas não porque acreditasse nisso na verdade ela era particularmente contra o governo vigente naquela época mas porque ela enquanto pessoa constituída e que usufruía dessa ideologia acreditava no que dizia Como nos explica Eagleton pelas palavras de Althusser A ideologia proclama Louis Althusser não tem exte rior Essa dimensão global abrange tanto o espaço quanto o tempo Uma ideologia reluta em acreditar que um dia nasceu pois isso seria o mesmo que reconhecer que pode mor rer a presença de duas ideologias também consti tui estorvo para ela uma vez que define suas fronteiras finitas delimitando assim seu domínio Ver uma ideolo gia de fora é reconhecer seus limites mas de dentro as fronteiras desaparecem no infinito deixando a ideologia curvada sobre si mesma como o espaço cósmico EA GLETON 1997 p 61 Para Wilder assim como para seus leitores o que escreve não é proposital no sentido de declarada defesa política Podemos considerar que assim pudesse ser para sua filha com quem discutia sobre o que escrevia mas não para ela e tampouco para seus leitores Inserida que estava dentro dessas condições que lhe permitiram produzir tal material aquilo em que ela acreditava era de certo modo muito mais ingênuo limitado por sua formação e por seu contexto Eu tinha visto e vivido tudo aquilo todas as sucessi vas fases da fronteira primeiro com o homem de fron teira e então com o pioneiro e depois com os fazen deiros e as cidades Então eu entendi que na minha própria vida eu tinha representado todo um período da História Americana Que a fronteira tinha ido embora e que as concessões rurais tinham tomado seu lugar Eu queria que as crianças de hoje entendessem mais sobre José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 196 o início das coisas que soubessem do que é feita a América que eles conhecem hoje Discurso da Feira do Livro 217 apud ERISMAN 1993 p 127 A declaração de Wilder explica que a ideologia americana da predestinação ao sucesso do isolamento utópico e da independência já estava desistoricizada e arraigada nela mesma antes que o estivesse em sua narrativa Esta é senão o produto daquilo em que acreditava Pensamos entretanto que as escolhas são ilusórias porquanto o indivíduo advém de um contexto que não cabe a ele escolher ou determinar como ou se muda A consciência tornase portanto falta assim como a escolha de acreditar ou não nessa crença porque ela é a única escolha que lhes vem aos olhos Ela pode até parecer autônoma mas é senão o escape de uma forma de repressão causada pelo contexto da Depressão como vimos e é isso o que pode ter contribuído de forma considerável para o apagamento dos episódios difíceis e infelizes da história real da vida de Wilder como a morte do irmão ou o fato de ter trabalhado como atendente de hotel quando ainda era uma criança Mesmo assim não deixa de ser como dissemos eternalizante generalizante e certamente eficaz no propósito de reafirmar uma nação sem deixar de controlála e de moldála de acordo com os interesses da classe dominante CONCLUSÃO A coleção Little House Books originalmente publicada entre os anos de 1932 e 1943 cumpriu o propósito da autora de reafirmar uma série de crenças e de valores bem como de um caráter de resistência que estão presentes na sociedade norteamericana desde seu início e que vem sendo reafirmadas a cada momento de abalo que ela sofre Assim foi durante os anos da Depressão Assim foi durante os anos da Guerra Fria como lemos em nossa pesquisa A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 197 Não se trata porém de uma literatura infantil inconseqüente ou de pura fantasia no sentido redutor ou limitante que se costuma atribuir à literatura do gênero Tratase na verdade de um poderoso instrumento de formação social e política que acaba por redefinir a estrutura da sociedade Embora se trate de um tempo nostálgico e de um espaço utópico a literatura de Wilder certamente escapista numa época em que a crise assolava a vida de todos encontra suas condições de produção justamente a partir dessas fissuras e vem para atar as pontas que pendem incertas na realidade propondo que a partir da trama da sua estrutura literária híbrida o leitor consiga reconstruir sua realidade Como nos explica Rosemary Jackson O fantástico é uma compensação que o homem fornece a si mesmo no nível da imaginação limaginaire para aquilo que ele perdeu no nível da fé JACKSON 1983 18 Ora a sociedade que primeiro se deparou com esta série de narrativas consumiua vorazmente num mercado insipiente para tudo mais que não os alimentasse Do mesmo modo ainda que não tenhamos realizado uma pesquisa dessa natureza cremos que seja muito provável que o índice de consumo dos Little House Books hoje esquecida por muitos tenha voltado a se elevar após os atentados de 11 de setembro de 2001 Porque ainda que seja a falsa consciência que estabeleça o forte vínculo de identidade entre obra e leitor ela é mais duradoura do que Wilder pôde viver para testemunhar REFERÊNCIAS EAGLETON Terry Ideologia São Paulo Boitempo UNESP 1997 ERISMAN Fred Farmer Boy the forgotten little House book In Western American Literature Logan UT WAL 1993 Aug 282 pp 12330 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 198 FRASER Caroline The Prairie Queen In The New York Review of Books Palm Coast FL NYRB 1994 Dec 22 4121 pp 3845 FRYE Northrop Anatomy of Criticism Princeton Princeton University Press 1957 393 p HOLTZ William Closing the Circle the American Optimism of Laura Ingalls Wilder IN Great Plains Quarterly Lincoln NE GPQ 1984 Spring 42 pp 7990 JACKSON Rosemary Jackson Fantasy the Literature of Subversion London New York Methuen 1981 vii 211p LIMONCIC Flávio Os inventores do New Deal Estado e sindicato nos Estados Unidos dos anos 1930 Rio de Janeiro mimeo tese de dou toramento 2003 MILLER John Laura Ingalls Wilders Little Town Where History and Literature Meet Lawrence UP of Kansas 1994 xii 208p ROMINES Ann Little House Books Gender Culture and Laura In galls Wilder Massachusetts The University of Massachusetts Press 1994 287 p SCHLESINGER Jr Arthur The Coming of New Deal Boston Hough ton Mifflin Company The Age of Roosevelt 1958 WEINSTEIN Michael Ambiguous Legacy the Left in American Poli tics New York View Piint 1975 STEVICK Philip The Theory of the Novel New York Free Press 1967 vii 440 p WILDER Laura Ingalls 1933 and WILLIAMS Garth illust 1953 Farmer Boy New York HarperCollins Publishers 1994 372p 1941illust 1953 Little Town on the Prairie New York HarperCollins Publishers 1994 307p WILLIAMS Raymond Ideology In Marxism and Ideology Oxford Oxford University Press 1977 pp 5571 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 199 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs ENTRE SÓTÃOS RUAS E REIS UM OLHAR SOBRE A PRODUÇÃO LITERÁRIA INFANTOJUVENIL DE RICARDO AZEVEDO Penha Lucilda de Souza Silvestre CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES Falar em literatura como sabemos significa falar em ficção e em discurso poético mas muito mais do que isso Significa abordar assuntos vistos invariavelmente do ponto de vista da subjetividade Ricardo Azevedo 2003 Conforme estudos realizados pela crítica literária sobre a literatura infantojuvenil brasileira demonstram que depois de Monteiro Lobato somente na década de setenta algumas obras voltaramse para as raízes lobatianas textos com uma linguagem inovadora poética ao abordar os problemas do homem moderno Assim em 1980 Ricardo Azevedo escritor e ilustrador iniciou sua trajetória voltado para um público diverso sobretudo infantojuvenil Nesse sentido propomos a leitura dos títulos Um homem no sótão 1982 Nossa rua tem um problema 1986 O rei das pulgas 1990 e Uma velhinha de óculos chinelos e vestido azul de bolinhas brancas 1998 por configurarem narrativas emancipadoras Ricardo Azevedo escreveu ilustrou e organizou mais de cem livros por várias editoras publicou ensaios e concedeu diversas entrevistas para revistas literárias contando com uma produção significativa do ponto de vista quantitativo ganhou prêmios literários importantes e foi traduzido para diversas línguas O conjunto de sua obra abrange um grande número de títulos que incluem narrativas em prosa e em verso que chegam ao mercado livreiro em constantes edições O escritor realiza incessantes pesquisas sobre o folclore que 200 resultam em várias antologias sobre a cultura popular A partir da intensa produção literária interessamonos pelo trabalho que vem realizando Para tanto realizamos uma crítica integradora ao abordarmos os aspectos estruturais e temáticoformais ligados à narrativa como também o seu efeito na concepção de Wolfgang Iser e sua recepção sob a ótica de Hans Robert Jauss A literatura de modo geral é a arte que rompe com o tempo e cumpre um papel peculiar ao representar a realidade a partir da construção subjetiva do personagem que participa do evento ficcional tal como a presença do leitor Assim dentre as diversas produções artísticas contemporâneas atemonos à literatura infanto juvenil Notamos que o estudo de narrativas nacionais tem encontrado espaço significativo nos ambientes acadêmicos tal como no mercado livresco perceptível pelo número crescente de livros e novos escritores como também premiações e organizações preocupadas com a qualidade do texto literário Constatamos a superação à tradição pedagogizante ligada ao gênero em questão porém há a necessidade de analisarmos cuidadosamente textos comprometidos com uma literatura de qualidade visto pelo número crescente que chegam as livrarias Nesse sentido apropriamonos de um corpus limitado da produção de Ricardo Azevedo a fim de observarmos como se dá a construção do narrador liberal nos textos citados do escritor em questão Desse modo chamamos atenção para a importância de desvelar os elementos constitutivos das narrativas sobretudo no que se refere à organização do narrador pois são como fios que se entrecruzam e geram sentidos Segundo Iser 1996 o texto narrativo apresenta algumas perspectivas importantes como a do narrador dos personagens do enredo e do leitor ficcional Constatamos que nos textos de Azevedo esses pontos perspectivísticos se entrelaçam e oferecem através dos pontos de A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 201 vista presentes neles a elaboração de diferentes visões Então a participação efetiva do leitor nesse processo comunicativo forma a constituição do sentido e os elementos de indeterminação revelam condições favoráveis para a realização da comunicação sobretudo quando o leitor experimenta outro universo apresentado no texto literário O texto Um homem no sótão 1982 narra a história de um autor de contos para crianças que morava num sótão na rua da Consolação e que raras vezes saía de casa Um dia tentando escrever a história Aventuras de três patinhos na floresta inesperadamente aparece uma raposa muito nervosa inconformada com o rumo da história reclamando de sua eterna vilania Afinal era carnívora o que justificava a sua atitude comer os patinhos da história Estes por sua vez também saem da cabeça do autor e o alertam de que sempre caçaram minhocas peixes e besouros Em seguida numa noite de lua cheia depois que o escritor se recuperara do susto teve a idéia de escrever A linda princesa do castelo E assim sucessivamente outros personagens saem de sua cabeça e contestam suas histórias como o sapo a princesa os anõezinhos e a bruxa O autor de contos procurou um médico tirou férias e ao retornar começou a escrever uma história bem diferente mas a confusão repetiuse O escritor adoeceu trancouse dentro de casa e deixou de viver Passado um longo tempo ao ver um passarinho ciscando em cima do armário perguntou qual era a história abriu a janela espantou a passarada e percebeu que a vida continuava Então retornam a vida e a vontade de escrever história de gente como ele escrever coisas de seu tempo Finalmente começa a escrever Um homem no sótão O texto é organizado em cinco capítulos numerados e não titulados e na abertura de cada um há uma vinheta representativa A estrutura da obra aparentemente é José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 202 linear Mas essa linearidade é relativizada pelas diversas histórias encaixadas e caracterizase pela metaficção A página de abertura do texto por exemplo corresponde ao número cinqüenta e sete e a última ao número um O final da história é aberto Em Um homem no sótão a criação narrativa fala sobre si mesma O escritor personagem revela ao leitor o processo de inventar histórias Nessa obra a metaficção é uma das características predominantes Era uma vez um autor de contos para crianças que passava o tempo inteirinho inclusive sábados domingos e feriados escrevendo histórias para crianças AZEVEDO 2001 p57 No decorrer da narrativa o narrador relata o fazer literário Além desse aspecto o texto trata também da angústia espiritual das impressões emocionais e sentimentais dos conflitos interiores e com veemência relativiza pontos de vista O texto intitulado Nossa rua tem um problema 1986 conta a história de Zuza e de Clarabel Ambos escrevem um diário e relatam fatos ocorridos na rua em que moram O texto organizase através de dois narradores Clarabel e Zuza e cada qual começa em uma das capas do livro isto é não há contracapa cada capa mostra o início de uma versão diferente dos fatos da narrativa As divergências e o modo de ser dos dois personagens ao invés de distanciálos aproximamnos visto que no final eles passam a fazer parte da mesma turma de amigos e trocam seus diários Essa troca é percebida através da ilustração no meio do livro no qual se dá o fim da história No que se refere à temática central observamos o relacionamento e a interação entre as crianças que registram fatos ocorridos na rua em que moram e que de alguma forma acabam por transformar os respectivos modos de vida dos personagens principalmente o modo que cada um vê o outro A obra O rei das pulgas 1990 narra a história de um mendigo escritor o Marinheiro Rasgado que vivia experiências A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 203 surpreendentes Ele morava havia muito tempo em uma praça era amigo de toda a vizinhança sobretudo das crianças Entretanto o senhor Otto também morador do mesmo bairro sentiase incomodado pela presença do mendigo culpandoo pela infestação de pulgas na igreja na praça nas casas e no Cine Bijou por isso tentava de todas as maneiras expulsálo daquele lugar resultando em constantes e frustradas reuniões na comunidade local Todavia os demais moradores não tinham a mesma opinião de seu Otto ou seja para eles o mendigo era uma pessoa limpa e amigável Paralela a essa situação as crianças elaboram um plano para unirem Sicupira uma espécie de cachorro selvagem brasileiro nadador e caçador de pacas que pertencia ao mendigo e Diana a cachorra de purosangue de seu Otto Quando seu Otto descobre tal façanha simplesmente fica enfurecido As crianças assustadas relatam ao Marinheiro o plano executado O mendigo ao contrário de seu Otto ficou muito feliz e tentou conversar com o dono da cachorra Dona Úrsula esposa de seu Otto intromete na discussão e acaba por expulsar o marido de casa além de cuidar dos filhotes de Diana No final as crianças e o mendigo vão à Doceria Holandesa onde o Marinheiro pagou sonho para todo mundo Daqueles redondos com açúcar em volta e assim de creme dentro AZEVEDO1990 p 45 O rei das pulgas compõese de treze capítulos curtos numerados e não titulados Apresenta uma organização narrativa linear porém a linearidade é relativizada Os acontecimentos são apresentados ao leitor em ordem cronológica Entretanto há interrupções repentinas pois o narrador cede a voz para o mendigo visto que ele é um escritor Isso provoca uma certa fragmentariedade no texto O mendigo escreve sobre raças de cães e os textos são encaixados no interior da narrativa Apesar de o texto apresentar caráter de informação científica e enciclopédica contradiz esta José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 204 tipologia pelas marcas pessoais do autor Dá gosto de ver um chihuahua dizendo Chega e lutando para mudar a vida mas isso leva tempo AZEVEDO 1990 p27 grifo do autor Nos encaixes posteriores são apresentados os seguintes textos A milagrosa arte das pulgas e A arte milagrosa das pulgas O tema do texto é marcado pelas relações pessoais e as suas diferenças o relacionamento entre as pessoas as impressões sociais e afetivas O mendigo metaforicamente registra essas impressões Vivendo afastadas as raças caninas não se conheciam direito Umas achavam as outras meio estranhas Ou tras achavam umas meio esquisitas Essa ignorância levou à desconfiança A desconfiança ao desprezo e este ao ódio e ao medo São conhecidas na História U niversal Canina as guerras entre cães páginas san grentas de uma história que podia ser outra AZEVE DO 1990 p 39 A reunião e a vitória das pulgas lembramnos da conquista pela democracia brasileira e da liberdade de ser na sociedade Além disso o texto aborda a hipocrisia humana as semelhanças e diferenças entre sujeitos e enfatiza que nenhum ser é igual ao outro A única semelhança entre os viralatas é que todos são diferentes uns dos outros Cada um tem sua beleza própria seu tamanho seu cheiro sua cor seu pêlo seu jeito de ser ver latir e sentir a coisas As últimas pesquisas e profecias dizem que até o final ou no mais tardar até meados do século que vem só haverá vira latas no planeta Terra Essa revolução de hábitos e cos tumes foi um passo precioso na direção de um futuro melhor e cheio de paz para toda espécie canina e acon teceu graças à arte milagrosa desses pequenos tími dos humildes e delicados seres que atendem pelo no me de pulgas AZEVEDO 1990 p40 A peculiaridade individual é uma questão fundamental presente no campo das idéias uma vez que o mendigo procura ressaltar a subjetividade da alma humana a ambiguidade que permeia o homem enquanto ser social e espiritual O Marinheiro rompe com situações A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 205 mecânicas por não viver ordens preestabelecidas e institucionalizadas pelo grupo de poder daí o relativismo e os diferentes pontos de vista O mendigo acrescenta que Homens e mulheres pulguentas em geral são pessoas que não acreditam no futuro nem na natureza e pas sam a vida resmungando de tudo Se uma pessoa não fez nada e ainda por cima gosta de cães e de repente descobre uma pulga atrás da orelha não precisa se preocupar Há casos em que o cachorro envia pulgas de estimação para fazer cafuné e outros carinhos É um sinal de amizade que deve ser recebido com orgulho e alegria AZEVEDO 1990 p 32 Nesse sentido as inquietações provocam mudanças no relacionamento entre as pessoas mas estas precisam desprenderse de preconceitos diversos sobre o outro Uma velhinha de óculos chinelos e vestido azul de bolinhas brancas 1998 conta a história de seis amigos que estão sentados na calçada no final da tarde quando surge do outro lado da rua no portão de uma casa uma velhinha de óculos chinelos e vestido azul de bolinhas brancas Não a conhecem e cada um imagina quem ela poderia ser Um dos meninos diz que ela é uma escritora de histórias infantis imagina um montão de aventuras contos de fadas reis gigantes amores e piratas que acabaram virando livros 1998 Outro diz que é uma feiticeira que lê livros de magia e tem objetos variados para fazer feitiços e seu companheiro provavelmente é um vampiro Em seguida outro comenta que a velhinha sempre foi uma dona de casa casada há anos com um velhinho de nariz torto Para outro a velhinha é professora de ginástica e deve ser formada e diplomada em educação física AZEVEDO 1998 casada com um atleta Outro menino diz que a velhinha é viúva e solitária Outra opinião sugere que a velhinha é artista de teatro dessas que sobem no palco e se transformam completamente AZEVEDO 1998 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 206 A narrativa apresenta várias histórias dentro de uma história maior enfocando e desdobrando as várias possibilidades e hipóteses de construção da identidade da velhinha As opiniões veiculadas pelos meninos desfilam sucessivamente num espaço comum no qual narram e descrevem fatos passados e presentes da vida da velhinha A independência dos episódios imaginados por eles reforça a arquitetura fragmentária da obra pois não existe uma transição entre as sugestões enunciadas Conforme Maria Alice Faria no texto intitulado A questão da literatura infantojuvenil o autor não nos dá uma história propriamente dita mas estimula o leitor a apreciar várias histórias a partir de um único ponto e por fim dar a sua versão FARIA 1999 p 99 A história está organizada em dois planos no primeiro a reunião de um grupo de amigos que estão conversando sentados na calçada Em outro plano a criação de diversas histórias imaginadas pelos meninos Uma velhinha de óculos chinelos e vestido azul de bolinhas branca aborda a questão da identidade e os diferentes pontos de vista E a partir da construção imaginada pelos personagens outros temas se destacam como a invenção de histórias a música a saudade a imaginação a fantasia a rotina a dança a relação familiar a relatividade das coisas Passemos então a leitura dos textos UMA POSSÍVEL LEITURA é imprescindível que entre a pessoa que lê e o texto se estabeleça uma espécie de comunhão baseada no prazer na identifica ção no interesse e na liberdade de interpre tação Ricardo Azevedo 2004 O narrador de Um homem no sótão usa a 3a pessoa do discurso para narrar Ele demonstra ter conhecimento de toda a A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 207 história Embora não participe do conflito dramático nem da história narrada apresenta voz tão próxima às vozes do interior da narrativa que muitas vezes parece que vive o episódio com elas Desse modo considerando o papel essencial que tem na obra literária o narrador estrutura o texto discursivo e atua como mediador no ato de produção da narrativa definindose como heterodiegético Está fora da história que conta mas conhece tudo sobre o personagem protagonista e sobre os secundários portanto é onisciente e coloca se numa posição de transcendência Foi numa sextafeira mês de agosto Fazia um frio de rachar O autor passara a noite tentando inventar uma história nova e nada Estava sem um pingo de inspiração AZEVEDO 2002 p 56 Nesse sentido a focalização corresponde à visão do narrador onisciente que faz uso de sua capacidade de conhecimento praticamente ilimitada Por meio do discurso direto e do indireto livre o narrador faz com que as cenas sejam focalizadas sob a ótica dos personagens Às vezes sua voz se confunde com a do personagem protagonista estabelecendose assim estreita sintonia com a estrutura fragmentária do texto Sentado em sua poltrona enorme passava horas pensando e meditando Lembrava dos patinhos da raposa da discussão em que se metera dos patinhos defendendo logo quem e da raposa fazendo o que fez AZEVEDO 2002 p6 Os ângulos de visão parcial vão se justapondo ao longo da história através do narrador que ora parece assumir o ponto de vista do personagem manifestandose como intruso registrando posições ideológicas ora abre espaço para o escritor de contos Assim vão se acumulando flagrantes aparentemente desconexos que registram o cotidiano dramático do escritor em plena atuação na construção de uma obra literária Lá dentro no fundo profundo do coração José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 208 continuava cheio de dúvidas Não conseguia se conformar com o sapo virando príncipe desencantado AZEVEDO 2002 p 6 O narrador deixa a impressão de que dialoga com o escritor como se fosse a sua consciência Um exemplo dessa situação acontece quando o escritor vai ao médico devido às perturbações provocadas pelos personagens que saíam de sua cabeça O senhor está é precisando de umas boas férias Ago ra com licença até logo e passar bem disse sumin do sem se despedir Mas claro Há quanto tempo o pobre escritor não tirava férias Deixa eu ver calculou ele contando nos dedos Puxa Sete anos e lá vai pancada AZEVEDO 2002 p34 Os discursos diretos são seguidos por verbos dicendi e anunciam mudança de nível discursivo Também são assinalados por indicadores grafêmicos adequados o uso de dois pontos e travessão Há várias ocorrências do discurso direto no qual os personagens manifestam o seu ponto de vista em relação aos fatos que os circundam Além desse recurso percebemos a aproximação do monólogo interior uma das técnicas utilizadas pelos escritores contemporâneos a fim de representar implicações psicológicas dos personagens Todavia há ocorrências que provocam o afastamento da forma convencional Além de descrever o tempo interior que também é uma estratégia de relato de fala Ia fazer uma história diferente de tudo o que fizera an tes As personagens seriam uma bruxa e alguns anões mas aí estava a grande diferença tanto a bruxa como os anõezinhos iam se dar bem ser amigos e viver às mil maravilhas Seu plano em resumo era escrever uma história sem bandidos nem mocinhos Chega de confusão pensou o escritor com um brilho esperto nos olhos AZEVEDO 2002 p22 grifo do autor A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 209 Se não fosse a presença do pronome possessivo seu na 3a pessoa em vez de meu seria um monólogo O narrador e o personagem se fundem numa espécie de interlocutor híbrido então a presença do discurso indireto livre Vestiu a camisa penteou o cabelo passou perfume saiu mas quando chegou na praia cadê a moça bonita Tinha ido embora Que azar AZEVEDO 2002 p33 Ou então Escreveu escreveu escreveu durante longo tempo sem ser incomodado Que bom fazer aquilo que a gente gosta sem ninguém para atrapalhar AZEVEDO 2002 p 22Vale assinalarmos que o discurso indireto livre podese fazer ouvir na voz de quem conta os ecos de outra voz Há uma mistura de vozes resultado de uma associação do discurso direto e do discurso indireto os quais permitem ao leitor visualizar as condições intrínsecas do personagem Isso porque o narrador não utiliza apenas a sua voz como canal de informação mas abre espaço para outras vozes especialmente das histórias encaixadas O texto Nossa rua tem um problema 2002 cuja história apresenta aparentemente duas perspectivas opostas abrem lacunas e contribuem para a participação do leitor no mundo ficcional Ele se depara com visões diferentes de um objeto comum Assim a modificação das posições provocada pela mudança das perspectivas não se perde ao contrário a multiplicidade das interpretações se potencializa ISER 1996 p185 v1 Cada perspectiva revela um aspecto que dá oportunidade ao leitor de construir seu próprio ponto de vista Há dois narradores protagonistas Clarabel e Zuza ambos da mesma faixa etária Cada um conta fatos que acontecem na rua em que moram A menina pontua seus julgamentos a partir daquilo que o pai e a mãe pensam dos meninos Portanto ela traduz a imagem dos garotos sustentada pela opinião dos adultos Já Zuza apresenta como problema da rua o menino Chico diz ele Nossa rua tem um José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 210 problema É o Chico O pai dele é daqueles que não deixam ninguém botar o nariz pra fora de casa Jogar bola na rua Não pode AZEVEDO 2002 p 3 Clarabel vê o grupo de Zuza como um bando de meninos mal educados que dizem palavrão sem responsabilidade e que não fazem lição de casa Zuza vê a família da menina constituída de pessoas preocupadas com a aparência pois saem de casa penteados perfumosos impressionando a vizinhança Assim a organização da narrativa está estruturada a partir de dois focos e concebe o leitor não como mero decodificador mas sim como um ponto de intersecção entre os personagens pois cada qual levanta um ponto de vista diferente O modo de narrar dos dois personagens é fortemente marcado por características subjetivas e emocionais Eles narram o que vêem observam e sentem os fatos passam pelo filtro das suas emoções e das percepções Os protagonistas revelam a posição de cada um em relação ao contexto social em que estão inseridos e à maneira como captam os acontecimentos no mundo narrado No entanto não há transferência direta do conteúdo do texto para o leitor Há um jogo de perspectiva que se movimenta continuamente e conforme Iser 1996 inclui o leitor nesse jogo No que se refere aO rei das pulgas apresenta vozes diferentes que se intercalam no decorrer da narrativa narrador observador e apresentação dramática o discurso pertence a diversas vozes ou seja das crianças e de outros personagens que vivem no mundo narrado Observemos um trecho do capítulo quatro intitulado Afgans Os afgans formam uma raça de cachorros muito distintos Altos magros e elegantes possuem um olhar frio e impenetrável AZEVEDO 1990 p 14 Nesse fragmento é a voz do escritor ou seja a voz do mendigo Já no capítulo cinco o narrador observador é quem relata Seu Otto Seu Otto Rittler Professor particular de A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 211 aritmética e ginástica rítmica AZEVEDO1990 p15 O texto é construído pela pluralidade de vozes e há uma oscilação e um jogo perspectivístico das vozes na narrativa A intercalação de diferentes narradores estimula a atividade de formação de representações no leitor Podemos reconhecer que a voz narrativa está fora dos eventos que narra ou seja o narrador não participa das situações vividas pelos personagens O narrador é onisciente e podemos perceber a proximidade dele junto ao mendigo e também das crianças As crianças encontraram o Marinheiro Contaram que tinha levado várias vezes o Sicupira para se encontrar com Diana Tudo sem seu Otto saber Disseram que a Diana estava esperando um filho Os olhos do mendigo marejaram Pegou o Sicupira Bei jou AZEVEDO 1990 p35 O narrador constantemente cede a voz aos persona gens inclusive no primeiro capítulo ocorre apenas o discurso direto O Sicupira apaixonado pela Diana Não viu a cara dele outro dia Coitados A gente podia fazer alguma coisa Tá louco Se ele souber vai dar o maior bode A gente precisa fazer alguma coisa AZEVEDO 1990 p 7 A citação dos personagens é literal próxima a linguagem teatral como não há mediação do narrador elas revelamse diretamente ao leitor Desse modo suas peculiaridades são construídas na relação entre texto e leitor Como vimos as falas restringem a um diálogo rápido mas que exteriorizam a José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 212 particularidade de cada um deles desdobrandoas em vozes que se alternam e direcionam a reflexão da condição de vida do mendigo As crianças procuram compreender a vida às vezes aliamse as opiniões dos adultos E os bundos Quase fiquei roxa de tanto rir Falei com meu avô Ele achou gozado A gente viu na enciclopédia É verdade pura Minha mãe acha melhor a gente não andar mais com o Marinheiro Meu pai também Ele é tão legal Só por causa daquela meia de jogar futebol cheia de coisa dentro que ele usa enfiada na cabeça Agora vai ser mentiroso assim lá longe Ninguém tem certeza AZEVEDO 1990 p11 Neste fragmento também podemos observar a ausência do narrador e as várias vozes que se manifestam na busca de compreender o Marinheiro De um lado percebemos a influência dos familiares nas falas das crianças outras indiferentes às observações dos adultos O narrador não bloqueia o pensamento infantil pois as crianças possuem livre arbítrio para tomarem suas decisões Por outro lado o adulto autoritário é alvo de ironia e comicidade como no caso de seu Otto Assim o narrador aliase ao mendigo e aos infantes visto que ele faz questão em manifestarse principalmente quando as crianças estavam totalmente envolvidas com as histórias do Marinheiro Vejamos a passagem em que o mendigo contava uma de suas aventuras acontecidas na África A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 213 Quê Sim É chocante Eu sei Vocês são crianças Descul pem Vou dizer mesmo assim estava prisioneiro dos bundos uns canibais malditos que vivem em Angola e o que é pior eles estavam justamente se preparando para me comer Uma ambulância passou a toda pela praça tocando si rene Tive medo Tremi feito vara verde Aquela água es quentando cada vez mais Veio um cheirinho gostoso de carne assada Era a minha própria carne Quem leu I Juca Pirama Juca o quê AZEVEDO 1990 p 22 O narrador acrescenta detalhes para enfatizar fatos que aconteciam ao redor do grupo Uma ambulância passou a toda pela praça tocando sireneAZEVEDO 1990 p 22 Os fatos que aconteciam ao redor do grupo eram indiferentes nada tirava a atenção das crianças o Marinheiro era um contador de histórias e contagiava seus ouvintes Em determinados momentos o narrador manipula os eventos em outros afastase completamente permitindo ao leitor que compartilhe como espectador da relação entre crianças e mendigo e que se adentre naquela praça e alcance uma interpretação dos fatos que acontecem Sabemos qual é a perspectiva do narrador mas a do leitor pode ser unicamente dele devido as lacunas presentes no texto No último parágrafo do texto em questão há o registro da grande vitória o Marinheiro Rasgado e as crianças dirigemse à doceria Foram para a Doceria Holandesa O Marinheiro pagou sonho para todo mundo Daqueles redondos com açúcar em volta e assim de creme dentro AZEVEDO 1990 p 45 O narrador enuncia os fatos e as palavras traduzem não o mero sabor de um doce mas sonhos que poderiam se vividos Como pudemos perceber as José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 214 crianças não aceitam os padrões impostos a partir da visão dos adultos ao contrário constroem seu mundo pessoal livre da interferência maniqueísta dos mesmos Além do mais elas tinham modelos diversos de comportamento e atitudes e coubelhes fazer suas opções O Marinheiro por sua vez recebia as crianças e correspondialhes carinhosamente espontaneamente sem implicações ou alguma exigência apenas partilhava parte de seus sonhos O narrador de Uma velhinha de óculos chinelos e vestido azul de bolinhas brancas usa a 3a pessoa do discurso para narrar O texto apresenta uma série de perspectivas como a do narrador observador e dos personagens que protagonizam a velhinha Essas perspectivas se entrelaçam e cabe ao leitor a atualização da história a partir de sua imaginação Ele demonstra ter conhecimento da história introduz e estrutura o texto discursivo não participa do conflito dramático mas atua como mediador no ato de produção da narrativa definindo se como heterodiegético isto é a voz narrativa está fora dos eventos que narra Seis amigos estão sentados na calçada A tarde vai chegando ao fim No portão de uma casa do outro lado da rua aparece uma velhinha de óculos chinelos e vestido azul de bolinhas brancas Os amigos começam a conversar Cada um diz o que pensa Surgem seis o piniões diferentes a respeito da mesma vizinha AZE VEDO 1998 Em seguida cada opinião é apresentada uma após a outra sem interrupção ou alguma observação do narrador que se afasta da história cedendo lugar aos meninos dandolhes a voz portanto privilegiando o falar das crianças Desse modo dispensa o restante da narrativa para que elas relatem e expressem suas suposições alterando a posição da focalização da narrativa Essa mudança de perspectiva não é prejudicial ao contrário provoca a multiplicidade e A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 215 a potencialização de interpretações Por conseguinte cada amigo conta ou melhor cria a imagem da velhinha a partir de seus respectivos pontos de vista uma escritora uma feiticeira disfarçada uma dona de casa uma professora de ginástica uma viúva ou uma artista de teatro Como percebemos as seis opiniões apresentam inicialmente a locução pra mim e em seguida as imaginações são relatadas sob a ótica de cada um dos garotos revelando suas suposições permitindo possíveis construções da imagem da velhinha totalmente diversas Desse modo há uma mudança na focalização Pra mim ou seja o texto passa a ser narrado em primeira pessoa De acordo com Iser Cada perspectiva não apenas permite uma determinada visão do objeto intencionado como também possibilita a visão das outras ISER 1996 p179 As seis opiniões articuladas organizam um quadro variado e as diversas perspectivas marcam um ponto em comum Todavia a identidade tanto dos meninos como da velhinha não é dada explicitamente mas imaginada Ela se atualiza portanto nos atos da imaginação do leitor Segundo Iser é nesse ponto que o papel do leitor delineado só na estrutura do texto ganha seu caráter efetivo ISER 1999 p75 Assim reconhecemos a função emancipatória do texto literário pois estabelece uma situação comunicativa com o leitor infantil instigandoo a realizar outras construções da imagem da velhinha Nesse sentido Jauss comenta que a compreensão estética leva o leitor a uma mudança de expectativas em relação a si mesmo e ao mundo que o cerca Tanto para Iser como para Jauss o leitor é o elemento responsável pelo ato da leitura porque ativa e alarga os significados do texto Se há um alargamento de expectativa por conseguinte há a emancipação do leitor De acordo com Iser a Estética da Recepção José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 216 sempre lida com leitores reais concretos por as sim dizer leitores cujas reações testemunham experi ências historicamente condicionadas das obras literá rias Uma teoria do efeito estético se funda no texto ao passo que uma estética da recepção é derivada de uma história dos juízos de leitores reais ISER 1999 p21 O leitor proposto nessa concepção é real mas vale assinalar que a recepção do texto literário não é uniforme para toda leitura realizada por diferentes receptores O resultado da interação entre o texto e o leitor depende da experiência de leituras prévias do conhecimento de tipologias textuais e de estratégias de leitura Por fim observamos que desfilam nos textos de Ricardo Azevedo narradores que podem exercer influência maior ou menor na atuação dos personagens e do leitor Há narradores que omitem informações examinam reações dos personagens identificamse com a visão do protagonista ou opõemse a eles compartilham com o espectador ou relatam fatos de forma que o espectador teça uma interpretação própria sem a intervenção dos comentários do narrador Esse processo de organização da narrativa desfaz a perspectiva unívoca do texto e resulta numa construção plurissignificativa Assim o leitor assegura o seu lugar no mundo ficcional criado pelo escritor pois sua participação ocorre naturalmente em decorrência da organização estrutural e lingüística porque há lacunas que instigam a sua presença na formulação de sentidos da história relatada O modo como as narrativas são organizadas permitemlhe estabelecer a interação comunicativa com a situação ficcional constituindose na experiência estética resultado do processo dialógico e do caráter emancipador do texto literário A interação entre texto e leitor permite que o receptor viva experiências alheias e se o texto possibilitalhe vivenciar outra realidade que não a sua A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 217 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs ele pode romper com a práxis do cotidiano experimentando uma nova visão da realidade Em síntese é um convite ao leitor REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AZEVEDO R Um homem no sótão São Paulo Cia Melhoramentos 1982 Nossa rua tem um problema São Paulo Paulinas 1986 O rei das pulgas São Paulo Moderna 1990 Uma velhinha de óculos chinelos e vestido azul de bolinhas brancas São Paulo Companhia das Letrinhas 1998 FARIA Maria Alice Parâmetros curriculares e literatura as persona gens de que os alunos realmente gostam São Paulo Contexto 1999 ISER W O ato da leitura uma teoria do efeito estético Tradução Johannes Kretscmer 2 v São Paulo Editora 34 1999 JAUSS H R A história da literatura como provocação à teoria literá ria Tradução Sérgio TellaroliSão Paulo Ática 1994 218 EXPELLIARMUS O UTÓPICO O PÓSUTÓPICO E A CAMBIÂNCIA DAS IDENTIDADES EM HARRY POTTER DE J K ROWLING Marco Medeiros INTRODUÇÃO Em texto constante de O arcoíris branco ensaios de literatura e cultura 1997 Haroldo de Campos ao refletir sobre o panorama posterior à década de 60 do século passado no qual a última tentativa vanguardista em nossa poesia o Concretismo chegava ao fim afirma que os tempos que então se iniciavam seriam definidos com mais precisão através do conceito de pósutopia Embora suas observações se detivessem especificamente no contexto da produção poética tal referencial teórico se ajusta também às produções em prosa da literatura contemporânea além de permitir que se desfaçam alguns questionamentos conceituais trazidos pela noção usual de pósmoderno Na acepção de Flávio Carneiro 2005 a designação pósutopia se imporia à noção de pósmoderno por dois motivos Primeiro porque evita certas ambigüidades por exemplo supor que se trata de um período cujo objetivo é encerrar definitivamente a modernidade o pós sugerindo a ruptura radical e não como quer Lyotard uma redefinição de caminhos Depois porque aponta para a diferença principal entre o imaginário estampado na produção estética não só a literária da primeira metade do século e um pouco além daquele que a partir pelo menos do final dos anos 60 temos vivenciado CARNEIRO 2005 p13 Para diferenciar as pósutopias das utopias Campos se vale de uma expressão cunhada por Ernst Bloch na caracterização destas o A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 219 princípio esperança uma espécie de esperança programática que permite entrever no futuro a realização adiada do presente CAMPOS 1997p265 Assim os projetos utópicos carregam intrinsecamente a si algo de missionário pois são construções coletivas de um grupo que abrindo mão da singularidade individual deseja atingir a implantação de um mundo novo Já as pósutopias substituem tal princípio pelo princípiorealidade um foco no presente produto de uma época marcada pelo estigma de perene crise na qual qualquer valor que se deseje impor como estabelecido é imediatamente questionado O contemporâneo se afirma então como um período crítico indagador por princípio Conseqüentemente a noção de identidade será permanentemente discutida afinal tempos como esses põem em xeque qualquer tentativa de definição fazendo com que a velha pergunta Quem sou eu seja revestida de possibilidades múltiplas de respostas Mas sempre múltiplas nunca definitivas Este trabalho propõese a discutir a problemática da representação das identidades pósutópicas na série de livros infanto juvenis mais bemsucedida em vendas dos últimos tempos Harry Potter da escritora inglesa JK Rowling Proporcional ao sucesso de público foi a reação da crítica acadêmica aos livros Harold Bloom por exemplo um dos mais respeitados teóricos norteamericanos em artigo ao The Boston Globe 24092003 chama o primeiro livro da série de dreadful terrível afirmando que tal obra não levaria o leitor a buscar outras obras mais canônicas como os textos de Kipling ou Lewis Carroll além de exibir uma escrita cheia de clichês e metáforas gastas Particularmente não concordo com a idéia defendida pelo crítico de que uma das características determinantes para a valorização de uma obra literária seja a capacidade de formar leitores para outros textos embora acredite que isso aconteça com muitas José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 220 obras incluindo aí a referida série Também não é objetivo deste artigo oferecer uma análise estilística da escrita de Rowling Propõe se então um olhar desarmado embora apoiado em teorias críticas respeitadas acerca do contemporâneo Explicase assim a primeira palavra do título desse escrito Expelliarmus No universo de Harry Potter esse é o feitiço de desarmamento Dito isso passemos a analisar os romances propriamente referidos HARRY POTTER E OS LIVROS CAMBIANTES Em 1997 a britânica JK Rowling lançou Harry Potter e a pedra filosofal primeiro livro de uma série de sete finalizada no ano passado com o lançamento de Harry Potter and the deathly hallows De lá para cá mais de trezentos e vinte milhões de exemplares foram vendidos cinco longasmetragens campeões de bilheteria baseados nos livros foram produzidos além de uma infinidade de produtos publicações e material acerca das aventuras do jovem bruxo Os romances narram a trajetória de um órfão inglês que aos onze anos de idade se descobre bruxo e junto com tal revelação sabe também que seus pais foram mortos pelo mais terrível feiticeiro das trevas Lord Voldemort que misteriosamente perdeu os poderes e desapareceu ao tentar matálo ainda bebê Desse embate restou uma cicatriz em forma de raio na testa do menino Admitido na escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts Potter irá se deparar com o retorno de seu grande inimigo além de lidar com os conflitos naturais da adolescência Contextualizado o enredo pensemos a questão da identidade hoje Segundo Zygmunt Bauman 2001 estaríamos vivendo tempos líquidos fluidos nos quais pensar a identidade é penetrar em um ambiente instável no qual qualquer solidez sugerida pela experiência biográfica aponta para a fragilidade e vulnerabilidade de tal conceito A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 221 lacerado constantemente por forças que expõem sua fluidez e por contracorrentes que ameaçam fazêla em pedaços e desmanchar qualquer forma que possa ter adquirido BAUMAN 2001p98 Dessa forma a identidade seria hoje uma celebração móvel HALL 2004p12 Alijado de um núcleo o sujeito contemporâneo passa a assumir variadas identidades diferentes a cada diferente momento Assim a contemporaneidade é palco para eus cambiantes MEDEIROS 2007 identidades que transitam vagam ressignificamse díspares e complementares ao mesmo tempo A série Harry Potter é lócus interessante para pensarmos no âmbito da literatura a cambiância das identidades Para João Alexandre Barbosa 1983 é impossível separar a noção de Modernidade da de insegurança Por conseguinte as artes a partir de então assumem a tensão que na literatura será consumada através da problematização e da desconfiança entre a representação e a realidade Assim a crise real passa a ganhar um rendimento literário consciente Que na obra em análise já se manifesta na configuração do herói da história UM HERÓI CAMBIANTE Harry Potter é uma personagem cuja delineação identitária é marcadamente cambiante Já no primeiro livro da série ele é confrontado com o choque de identidades atribuídas a si as quais ele não consegue em princípio assumir Assim no momento em que Rúbeo Hagrid o gigante mandado pela escola lhe revela que ele Harry é um bruxo o menino nega o papel mas Harry ao invés de se sentir contente e orgulho so teve a certeza de que tinha havido um terrível en gano Bruxo Ele Como era possível Passara a vida dominado por Duda e infernizado pela tia Petúnia e pelo tio Valter se era realmente um bruxo por que eles não tinham se transformado em sapos toda vez que tenta José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 222 ram prendêlo no armário Se uma vez derrotara o maior feiticeiro do mundo como é que Duda sempre pudera chutálo para cá e para lá como se fosse uma bola de futebol ROWLING 2000p54 Para logo depois assumilo Não é bruxo hein Nunca fez nada acontecer quando estava apavorado ou zangado Harry olhou para o fogo Pensando bem cada coisa estranha que deixara os seus tios furiosos tinha aconte cido quando ele Harry estava perturbado ou com rai vaperseguido pela turma de Duda puserase de re pente fora do seu alcancereceoso de ir para a escola com aquele corte ridículo conseguira fazer os cabelos crescerem de novoe da última vez que Duda batera nele não fora à forra sem perceber que estava fazendo isto Não mandara uma cobra atacálo ROWLING 2000p545 Uma das marcas da pósutopia é a retomada crítica da utopia Harry Potter é uma personagem que traz em sua configuração características utópicas afinal ele se sustenta na narrativa como um herói tradicional sua missão é derrotar o grande vilão e salvar não apenas a sua vida mas também a de toda comunidade bruxa e não bruxa também Dessa forma ele se insere no que Joseph Campbel 1990 chama de a saga do herói não o autoengrandecimento mas diferente da celebridade que vive para si a redenção de toda a humanidade No entanto essa visão utópica do herói perfeito que sozinho engrandece a todos é desfeita no texto Durante toda a saga Harry atinge seus objetivos amparado por seus dois melhores amigos Hermione Granger a aluna perfeita devoradora de livros e Rony Weasley o garoto atrapalhado que com senso prático e lealdade aos amigos ajuda a resolver os conflitos Nelly Novaes Coelho 2000 aliás aponta essa característica socializante do protagonista a substituição do herói infalível e individual pelo grupo como uma A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 223 marca poderosa dos valores novos na literatura infanto juvenil contemporânea Mas longe de exibir uma caracterização adocicada acerca da amizade como se esta fosse capaz de apagar qualquer frustração individual ou fazer com que as personagens abjurassem de suas frágeis individualidades em prol do grupo o texto de Rowling problematiza a questão A crise contemporânea leva a relativização total inclusive a da amizade Desse modo é revelador entre outros momentos da trama o trecho no qual Rony Weasley frente a uma horcrux objeto mágico que guarda parte da alma de Lord Voldemort encara um de seus maiores medos o de saber que fora eclipsado o tempo todo pelo amigo famoso o de ter se inserido num mundo no qual o único papel oferecido a ele foi o de coajuvante Then a voice hissed from out of the Horcrux I have seen your heart and it is mine Dont listen to it Harry said harshly Stab it I have seen your dreams Ronald Weasley and I have seen your fears All you desire is possible but all that you dread is also possible Stab shouted Harry his voice echoed off the sur rounding trees the sword point trembled and Ron gazed down into Riddles eyes Least loved always by the mother who craved a daughterLeast loved now by the girl who prefers your friendSecond best always eternally oversha dowed ROWLING 2007 p 3756 Em consonância com o cenário cambiante da contemporaneidade Potter exibe também um tom peculiar de desrespeito às regras e ao autoritarismo Consciente de que tal como as identidades tudo se relativiza hoje o herói da história encarna a dialética como caminho repudiando concepções maniqueístas do mundo e percebendo que as pessoas são muito mais complexas que José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 224 os clichês atribuídos a elas Nesse sentido o protagonista atinge algumas de suas metas a partir do momento em que questiona o poder instituído É o que se dá por exemplo já na primeira parte da saga quando Potter frustra os planos de Voldemort justamente por desobedecer a ordem que dizia que alunos não poderiam se aproximar do corredor do terceiro andar ROWLING 2000 p 112 Essa concepção libertária do indivíduo gera em consonância na narrativa uma elaboração fortalecedora das responsabilidades individuais Dessa forma o texto destoa das narrativas utópicas nas quais a moral da história era imposta ao texto e às personagens Aqui o eu é forçado a agir de maneira consciente É claro que não se pode afirmar que há um desaparecimento dos valores morais afinal a literatura é cronotópica mas podese dizer que em narrativas desse tipo surge o que Coelho 2000 chama de moral espontânea mas responsável COELHO 2000 p 22 É o que transparece por exemplo nesse fragmento de um diálogo entre Harry e o diretor da escola Alvo Dumbledore constante do segundo livro da série No trecho em questão Potter está em dúvida se realmente foi colocado na Casa certa os alunos são distribuídos em casas a partir das qualidades que o Chapéu Seletor lê em suas mentes Contudo o Chapéu Seletor colocou você na Grifinó ria E você sabe o porquê Pense Ele só me pôs na Grifinória disse Harry com voz de derrota porque pedi para não ir para a Sonserina Exatamente disse Dumbledore abrindo um grande sorriso O que o faz muito diferente de Tom Riddle São as nossas escolhas Harry que revelam o que realmente somos muito mais do que as nossas qualidades ROWLING 2000 p280 grifos meus Aliás o fator que o trecho grifado deixa transparecer em tempos de identidades múltiplas as escolhas prevalecem sobre a não A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 225 mais possível essência é preponderante para o desfecho da saga No último dos romances a batalha entre Harry e seu arquiinimigo acontece de fato Voldemort atinge Potter com um feitiço mortal Nesse momento o adolescente vai para uma espécie de limbo onde descobre através de Dumbledore que parte do vilão vivia dentro de si Nesse ponto as escolhas tornamse cruciais But you want me to go back I think said Dumbledore that if you choose to re turn there is a chance that he may be finished for good I cannot promise it But I know this Harry that you have less to fear from returning here than he does Do not pity the dead Harry Pity the living and above all those who live without love By returning you may ensure that fewer souls are maimed fewer families are torn apart If that seems to you a worthy goal then we say goodbye for the present RO WLING 2007 p 722 Um ponto merece ser destacado do trecho acima Harry tem direito de escolha Dumbledore deixa claro que a decisão deve partir dele Ele é quem deve determinar que referencial identitário tomar o de herói salvador ou o de quem evita o sofrimento e se preserva É a tal moral espontânea o conflito ético é um conflito identitário Aliás retomase nesse encerramento uma questão levantada em Harry Potter e o Cálice de Fogo 2001 a escolha entre o que é certo e o que é fácil ROWLING 2001 p 575 Aliás a escolha de Potter é uma escolha de essência hamletiana Sua identidade é plasmada a partir do trauma de ter os pais assassinados quando ainda era um bebê ou seja quando ainda não era capaz de reter memórias Note que assim o núcleo do conflito é utópico mítico até No entanto o caráter angustiado que se encerra nele é como sinaliza Slavoj Žižek 2003 marca contemporânea logo pósutópica Para o teórico esloveno hoje José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 226 somos mais assombrados pelos traumas que não estamos dispostos ou não somos capazes de relembrar pois eles nos perseguem através do que não houve daquilo que deveria ter sido feito mas não foi Desse modo a angústia da nãoação bem diferente de omissão de ter os pais mortos e nada poder fazer contra isso passa a ser um espectro contínuo que determinará as opções identitárias da personagem Mais ainda Potter será obrigado a lidar com a angústia da perda ao longo da série quando encarará outras mortes extremamente significativas a de seu padrinho Sirius Black Harry Potter e a Ordem da Fênix a de seu protetor Alvo Dumbledore Harry Potter e o enigma do Príncipe além das múltiplas mortes de Harry Potter and the deathly hallows incluindo até mesmo sua coruja de estimação Edwiges Após tecermos essas considerações acerca do protagonista da história sugiro que façamos um vôo panorâmico por outros aspectos do texto que nos ajudarão a continuar pensando as ligações entre literatura cambiância das identidades e Harry Potter Peguem suas vassouras e pousemos em Hogwarts UM MUNDO CAMBIANTE Rowling cria em seus livros um universo mágico e insólito No entanto esse mundo peculiar diferente dos espaços idílicos das narrativas tradicionais nos quais cada personagem transita em segurança é área na qual as identidades são interpeladas e ressignificadas o tempo todo assumindo assim o caráter fluido da atualidade Um item atraente nessa discussão é a divisão dos alunos de Hogwarts em Casas Retomase aqui um sinal das pósutopias a substituição do olhar unificador pelo particularizado o A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 227 individualizado Dessa maneira a escola não é representada na narrativa como uma instituição que enxerga seus alunos como uma massa unitária mas sim como indivíduos possuidores de identidades que os ligam a certas personagens e os separam de outras A própria gênese das Casas é explicada na narrativa através do conflito de identidades Os quatro fundadores da escola divergiam sobre que tipo de alunos deveria ser aceito na instituição Dessa celeuma nasceram as Casas Godrico Grifindor fundou a Grifinória casa onde habitam os corações indômitos e cujos alunos se diferem pela ousadia sanguefrio e nobreza Helga Hufflepuff a Lufalufa onde os moradores são justos e leais pacientes sinceros sem medo da dor Rowena Ravenclaw foi a mentora de Corvinal a casa dos que tem a mente sempre alerta onde os homens de grande espírito e saber sempre encontrarão seus iguais e por fim Salazar Slytherin da Sonserina Casa onde se encontram homens de astúcia que usam quaisquer meios para atingir os fins que colimaram ROWLING 2000 p 105 Outro quesito problematizador da noção da identidade é a escolha que a narrativa faz em não se valer de maniqueísmos na conformação de certas personagens É claro que estão presentes no texto os arquétipos clássicos do herói e do vilão No entanto alguns sujeitos narrativos serão abordados em uma perspectiva mais profunda É o que se dá por exemplo com Duda Dursley o primo trouxa trouxa é o nome que os bruxos dão aos nãobruxos de Harry Ao longo dos romances Harry é humilhado e abusado por ele e seus pais No último porém Duda demonstra gratidão e afeto por Potter que uma vez salvara sua vida Outras personagens como Draco Malfoy e sua família não serão capazes de substituir o orgulho pela gratidão mesmo tendo sido salvos pelo protagonista José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 228 Nenhuma dessas personagens é mais conflituosa contudo do que Severo Snape O rigoroso professor de Poções é uma figura desagradável que no passado foi seguidor de Lord Voldemort e que agora se diz arrependido Diretor de Sonserina ele protege os alunos de sua Casa e persegue os das outras especialmente Harry Potter mesmo quando aqueles estão comprovadamente errados Em Harry Potter e o enigma do príncipe 2005 Snape assassina um dos maiores protetores de Harry o diretor Dumbledore No entanto quando a série se encerra descobrese que Snape era na verdade um herói alguém capaz de dar a própria vida o que acontece de fato pela defesa do Bem e que a morte de Dumbledore havia sido traçada pelo próprio Dumbledore para defender os alunos da escola O texto porém não retrata Severo como um mocinho padrão Ele experimenta a cambiância das identidades em si quando traz em seu interior uma série de conflitos Assim o mesmo bruxo que persegue Potter por mágoas não digeridas pelas humilhações que passou nas mãos do pai do menino é o bruxo que também morrerá por Potter e pelo amor não correspondido que tinha pela mãe do rapaz Utópico e pósutópico Múltiplo Por outro lado além da multiplicidade as identidades da narrativa também são obrigadas a conviver com as limitações e fragilidades Assim nem mesmo os bruxos que em um primeiro olhar estariam a salvo das crises pelos seus poderes mágicos escapam do desamparo contemporâneo Por exemplo não podem através de sua magia trazer os mortos de volta A perda deve ser vivida Um momento interessante dessa fragilidade é o encontro do Ministro da Magia com o Primeiro Ministro da Inglaterra Grandes catástrofes estavam atingindo até o mundo trouxa e o premier inglês interpela o bruxo dizendo que eles poderiam fazer qualquer coisa afinal são bruxos A resposta de Cornélio Fudge expõe a desproteção A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 229 pósutópica O problema é que o outro lado também sabe fazer bruxarias PrimeiroMinistro ROWLING 2005 p 20 Portanto o texto de Rowling se apóia em cambiâncias Toda a configuração da narrativa aponta para o pluralismo para a fluidez Essa cambiância atinge inclusive o leitor UM LEITOR CAMBIANTE Para pensarmos a questão da recepção do leitor em Harry Potter evocase a perspectiva de Umberto Eco em Lector in fabula 1994 O pensador italiano afirma que o texto é uma espécie de estrutura preguiçosa que necessita de sentidos atribuídos a ele pelo destinatário o leitor Assim o papel do leitor é interferir na obra para trazerlhe significado Da mesma maneira Maurice Blanchot 1987 não enxerga a obra literária como uma estrutura fechada Para ele o ato da leitura faz parte da obra contribuindo inclusive para a feitura da própria obra Em sua concepção ler é fazer com que a obra se comunique BLANCHOT 1987 p 199 Essa postura se coaduna com a de Jauss 1994 que afirma que o texto se atualiza através da leitura podendo inclusive conter significações potenciais que só serão decodificadas em momentos históricos distintos e posteriores à sua primeira recepção O leitor potencial de Harry Potter assume essas características sugeridas pela estética da recepção Como aponta Therezinha Barbieri 2003 a literatura contemporânea é palco de uma relação nova entre letras e mercado Assim a cultura de massa com seus estímulos múltiplos e sensoriais toca a obra literária indelevelmente No caso da série em questão isso é elevado à potências astronômicas afinal tratase de obras que geraram lucros de bilhões José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 230 de dólares além de atingirem também outras mídias como o cinema amparada por intensa campanha de marketing O fenômeno que esses livros causaram foi interessantíssimo para se pensar os limites entre leitorprodutor e a obra O leitor foi levado à cambiância de identidades em relação à obra oscilando entre ser receptor e ter papel ativo sobre o texto Para aprofundarmos essa questão destacamse três pontos interessantes as traduções nãooficiais dos livros as chamadas fanfics e a influência de aspectos extratextuais na produção de significação dos textos Cada lançamento de um novo livro da série era sucedido por um fato peculiar Leitores de países nãofalantes de língua inglesa não suportando esperar pelas edições oficiais em suas línguas pátrias disponibilizavam na internet traduções alternativas feitas por eles Dessa forma o papelleitor é ampliado já que assim ele também assumese enquanto tradutor logo produtor de certa forma da narrativa As muitas páginas dedicadas a essas traduções na Internet exibiam inclusive discussões muito abrangentes acerca do espaço da tradução em relação ao texto original contestando até mesmo estratégias utilizadas pela tradutora oficial Lia Wyler Uma ampliação dessa questão se deu com as chamadas fanfics abreviatura do inglês fan fictions ficções produzidas por fãs Muitos leitores de Harry Potter escreviam narrativas que valendose das tramas criadas por Rowling ofereciam caminhos alternativos para o leitor atuar sobre elas Aliás alguns desses ficcionistas conseguiram inclusive amealhar um número considerável de leitores na web aumentando o alcance dos livros originais Além disso a produção de sentidos que o leitor exerce em relação à obra sofreu no caso da série uma interessante reviravolta Cercado por uma multiplicidade de mídias o leitor de Harry Potter foi adicionando à sua recepção da narrativa elementos trazidos de fora A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 231 dos textos Por exemplo o relacionamento amoroso entre Rony Weasley e Hermione Granger só começa a ser sugerido nos livros a partir do sexto volume No entanto uma cena no segundo filme da série já explicitava essa questão Assim a leitura do livro passou a ser então alterada pelas imagens dos filmes Outra ocasião polêmica acerca da influência extratextual na formação de sentidos foi a badalada declaração de JK Rowling quando em encontro com leitores norteamericanos no lançamento do último livro revelou que Albus Dumbledore era homossexual informação que ausente da narrativa oferece a ela um olhar completamente novo e aprofundado pois explica algumas ações que em princípio pareceriam inverossímeis na figura de Dumbledore mas que se tornam verossímeis quando o leitor pensa que provavelmente ele estaria apaixonado por um outro bruxo que depois se revelaria um ser das trevas Com isso o leitor se depara criativamente com a crise de identidade Quanto mais ele se assume enquanto leitor ou seja quanto mais ele se torna receptivo à obra mais ele também se assumia como produtor de significação para o texto CONCLUSÃO Harry Potter faz parte hoje do imaginário da sociedade contemporânea A controvérsia causada pelos livros e por tudo que se relaciona a eles está longe de ser e nem deve ser calada Usemos então por um segundo nossa vassoura e voemos acima dos defensores e dos detratores Olhando do alto pairando no panorama mais amplo do universo da literatura infantojuvenil uma conclusão nos assalta ainda é cedo para nós sem o conforto do distanciamento histórico em relação à produção do texto produzirmos um juízo definitivo acerca da obra de Rowling Se ela José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 232 será eterna ou se esvairá como tantas modas que vemos passar dia adia não se sabe O que nós sabemos é que por ora o bruxo adolescente se vale da magia que a literatura conhece há tempos imemoriais a de fornecer com saber e sabor material para o pensamento REFERÊNCIAS BARBIERI Therezinha Ficção impura prosa brasileira dos anos 70 80 e 90 Rio de Janeiro EdUERJ 2003 BARBOSA João Alexandre A modernidade no romance In PROENÇA FILHO org O livro do seminário São Paulo LR 1983 BAUMAN Zygmunt Modernidade líquida Trad Plínio Dentzien Rio de Janeiro Jorge Zahar 2001 BLANCHOT Maurice O espaço literário Trad Álvaro Cabral Rio de Janeiro Rocco 1987 BLOOM Harold Dumbing down American readers In The Boston Globe Boston MAsn 24092003 Disponível em httpwwwbostoncomnewsglobeeditorialopinionopedarticles 20030924dumbingdownamericanreaders acessado em junho de 2008 CAMPBEL Joseph O poder do mito Trad Carlos Felipe Moisés São Paulo Palas Athenas 1990 CAMPOS Haroldo de Poesia e Modernidade da morte da arte à constelação O poema pósutópico In O arcoíris branco ensaios de literatura e cultura Rio de Janeiro Imago 1997 CARNEIRO Flávio No país do presente Ficção brasileira no início do século XXI Rio de Janeiro Rocco 2005 COELHO Nelly Novaes Literatura infantil Teoria Análise Didática São Paulo Moderna 2000 ECO Umberto Lector in fabula a cooperação interpretativa nos tex tos narrativos Trad attílio Cancian São Paulo Perspectiva 1986 GROSSI Gabriel Pillar ed O guia completo da saga Harry Potter São Paulo Abril 2005 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 233 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs HALL Stuart A identidade cultural na pósmodernidade 9 ed Trad Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro Rio de Janeiro DPA 2004 JAUSS Hans Robert A história da literatura como provocação à teo ria literária Trad Sérgio Tellarolli São Paulo Ática 1994 MEDEIROS Marco O labirinto dos euscambiantesa questão da iden tidade In Eles eram muitos cavalos de Luiz Ruffato Dissertação de mestrado Rio de Janeiro Programa de Pósgraduação em Letras Universidade do Estado do Rio de Janeiro 2007 ROWLING JK Harry Potter and the deathly hallows New York NY Arthur A Levine Books Scholastic 2007 Harry Potter e o enigma do Príncipe Trad Lia Wyler Rio de Janeiro Rocco 2005 Harry Potter e a Ordem da Fênix Trad Lia Wyler Rio de Ja neiro Rocco 2003 Harry Potter e a o Cálice de Fogo Trad Lia Wyler Rio de Janeiro Rocco 2001 Harry Potter e o prisioneiro de Azkaban Trad Lia Wyler Rio de Janeiro Rocco 2000 Harry Potter e a câmara secreta Trad Lia Wyler Rio de Ja neiro Rocco 2000 Harry Potter e a pedra filosofal Trad Lia Wyler Rio de Ja neiro Rocco 2000 ŽIŽEK Slavoj Bemvindo ao deserto do real Cinco ensaios sobre o 11 de setembro e datas relacionadas Trad Paulo Cezar Castanheira São Paulo Boitempo 2003 234 MANOEL DE BARROS INFÂNCIA IMAGEM E CONHECIMENTO Mara Conceição Vieira de Oliveira Nada há de mais prestante em nós senão a infância O mundo começa ali Manoel de Barros INTRODUÇÃO O mundo começa na infância e será conhecido pela criança de acordo com a experiência vivida por ela Relacionando experiência humana e pobreza Benjamin fará menção à infância Lerseá Exercícios de ser criança considerando a narrativa ficcional um espaço singular para a construção do conhecimento Essa obra propicia uma conversa infinita um modo de conhecer o mundo descrito por Maurice Blanchot para o qual não há um ponto de chegada definido Um modo em que o conhecimento se dará no percurso sempre inacabado inscrevendo uma razão outra Lançando o olhar para essas teorias e percebendo a recepção do texto Exercícios de ser criança de Manoel de Barros por 30 alunos do 6ºano5ªsérie é que proponho a presente reflexão INFÂNCIA E EXPERIÊNCIA Benjamin 1994 desde o início do século XX já apontara uma forte preocupação em relação à pobreza de experiência Segundo ele o capitalismo homogeneíza a experiência humana que será substituída progressivamente por um padrão coletivo de comportamento de modo que verá a linguagem como forma de tentar escapar das discrepâncias do utilitarismo e da praticidade que caracterizam a sociedade capitalista De acordo com ele uma nova forma de miséria surgiu com o monstruoso desenvolvimento da A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 235 técnica sobrepondose ao homem 1994 p115 Convencido da pobreza da experiência humana Benjamin passa a fazer alusão à infância fase esta que também é solapada pelas terríveis histórias de experiência dos adultos pois aos poucos somos tomados pelo sentimento de que nossa juventude não passa de uma curta noite vivea plenamente com êxtase depois vem a grande experiência anos de compromisso pobreza de idéias lassidão Assim é a vida dizem os adultos eles já experimentaram isso BENJAMIN 2002 p22 Desse modo é conhecida mais uma terrível experiência a de aniquilar os sonhos da infância eou da juventude Porém para Benjamin a verdadeira experiência jamais estará privada de espírito se nós permanecermos jovensBENJAMIN 2002 p24 ou seja empreendendo o exercíco de ser criança sugerido por Barros Permanecendo jovem o homem não abandonaria o espírito O jovem vivenciará o espírito e quanto mais difícil lhe for a conquista de coisas grandiosas tanto mais encontrará o espírito por toda parte em sua caminhada e em todos os homens BENJAMIN 2002 p24 Por isso a necessidade de se admitir uma experiência que exceda a própria realidade fenomenológica uma experiência que ao esbarrar nos limites do real situase no espaço do vir a ser aceitando fundar a coragem e o sentido naquilo que não pode ser experimentado BENJAMIN 2002 p23 Ou ainda como diz o poeta uma experiência que faça compreender que as coisas que não existem são mais bonitas BARROS 2001a p 77 Olhar o mundo e buscar o conhecimento naquilo que não pode ser experimentado eou compreender que as coisas que não existem são mais bonitas seriam gestos que não apenas fundam uma outra razão a poética mas encenam atitudes próprias da infância Se entendemos que ao ouvirem ou lerem histórias as crianças relacionam seus mundos ficcionais e reais é imprescindível saber que José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 236 histórias são oferecidas a elas e como são lidas Segundo Benjamin a criança exige do adulto uma representação clara e compreensível mas não infantil 2002 p55 Porém contrariando esta expectativa da criança foramlhe oferecidos durante muitos anos de história brinquedos roupas e historinhas que antes de satisfazêla atendiam aos interesses dos adultos ou à vontade da ideologia dominante Vários contos e fábulas foram durante séculos usados como cartilha comportamental e até mesmo serviram como orientação nas aulas de catequese nesse uso elidiramse seus aspectos fabulosos e maravilhosos reconhecidos hoje pela psicopedagogia como importantes para o desenvolvimento cognitivo bem como para a formação integral da criança Tendo uma função pedagogizante e servil a uma filosofia positivista os brinquedos eou livros demasiadamente enfeitados coloridos e bem acabados tinham um valor mercadológico atendendo primeiro à sociedade de consumo pois ao contrário disto as crianças são especialmente inclinadas a buscarem todo local de trabalho onde a atuação sobre as coisas se processa de maneira visível Sentemse irresistivel mente atraídas pelos detritos Nesses produtos re siduais elas reconhecem o rosto que o mundo das coi sas volta exatamente para elas e somente para elas Com isso as crianças formam o seu próprio mundo de coisas um pequeno mundo inserido no grande Um tal produto de resíduos é o conto maravilhoso talvez o mais poderoso que se encontra na história espiritual da humanidade resíduos do processo de constituição e decadência da saga A criança consegue lidar com os conteúdos do conto maravilhoso de maneira tão sobe rana e descontraída como o faz com retalhos de tecidos e material de construção Ela constrói o seu mundo com os motivos do conto maravilhoso ou pelo menos estabelece vínculos entre os elementos do seu mundo BENJAMIN 2002 p5758 Esta maneira despretensiosa como a criança lida tanto com os conteúdos dos contos maravilhosos quanto com os resíduos é similar A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 237 à atitude revelada na poesia de Barros o poeta que aprecia aquilo que convencionalmente fora denominado inútil É pois do inútil do resíduo que a criança e Barros buscam formas para compreender o mundo que os circundam A relação com a coisa residual fará com que ela seja ressignificada tendo uma significância singular aos olhos daquele que a contempla Assim surge uma razão que compreenderá a passagem do dia para a noite pela música e deixará a lata objeto inútil se transformar em maravilhoso brinquedo O mundo meu é pequeno Senhor Tem um rio e um pouco de árvores Nossa casa foi feita de costas para o rio Formigas recortam roseiras da avó Nos fundos do quintal há um menino e suas latas ma ravilhosas Seu olho exagera o azul Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas com aves Aqui se o horizonte enrubesce um pouco os besouros pensam que estão no incêndio Quando o rio está começando um peixe Ele me coisa Ele me rã Ele me árvore De tarde um velho tocará sua flauta para inverter os ocasos BARROS 2001a p 75 O papel da imaginação é fundamental para o desenvolvimento cognitivo da criança e de sua atividade criadora Quando brinca a criança vive revive elabora e reelabora suas necessidades desejos José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 238 e conflitos organizando o mundo que aparentemente lhe parece caótico A brincadeira por mais infantil que pareça tem suas regras de modo que a criança também pode aprender eou organizarse por meio dela Pelas brincadeiras e histórias a criança realiza a experiência da linguagem e diferente do adulto arriscase na imaginação em busca de soluções que possam lhe auxiliar no conhecimento de si dos outros e do mundo Para Benjamin a infância é extremamente reveladora do homem e embora possa haver uma desfiguração das imagens da infância em função da terrificante experiência adulta o comportamento adulto está intrinsecamente ligado a sua vivência infantil pois o sujeito da história sempre é ao mesmo tempo a criança perdida o adulto preocupado de hoje e o desconhecido de amanhã GAGNEBIN 1999 p 89 Além da distância de tempo entre a criança e o adulto a qual paulatinamente passará a exigir do adulto uma postura outra há um malentendido a respeito da infância Muitos adultos entendem a infância como uma fase tola desimportante na qual os conteúdos são insignificativos e as falas inadequadas porém de acordo com a análise de Gagnebin sobre a Infância Berlinense de Benjamin as deformações e os deslocamentos lingüísticos infantis são sempre mencionados como apontando para aspectos desconhecidos negados ou recalcados que as coisas e as palavras se cessarmos de considerálas unicamente no seu contexto instrumental nos lançam à cara GAGNEBIN 1999 p82 Logo considerar as palavras e as coisas em seu sentido unicamente instrumental pode significar a negação de uma experiência ou ademais a constatação de que nossas expectativas da infância não foram realizadas à medida que o tempo passou De acordo com Benjamin o sujeito não se construiria apenas pela afirmação consciente de si mas se abre para uma dimensão A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 239 involuntária inconsciente da qual participam a vida da lembrança e do esquecimento Segundo Gagnebin a ação de Benjamin em visitar sua infância berlinense não é apenas um gesto que retrata lembranças ou esquecimentos mas é também uma atitude política ou seja uma atitude de alguém que participa de seu tempo e de sua história A infância é um momento rico na busca do conhecimento em relação à natureza animal vegetal e material do mundo e à própria linguagem Ao procurar respostas a criança não se prende ao convencionalismo do mundo adulto prático e utilitário O adulto talvez saiba que é menos possível conhecer de fato e mais possível sentir embora muitas vezes iniba as percepções do mundo chegando a se incomodar com elas Porém o excesso de racionalismo faz com que a razão humana apenas considere os acontecimentos dentro de uma relação de causa e efeito Por sua parte a criança parece não se indispor com a incerteza acerca de algumas questões Ela aceita o jogo do faz de conta e acaba experimentando aquilo que para o homem adulto é fugidio O mundo infantil cheio de falas e imagens altamente poéticas revela ao aceitar o faz de conta os aspectos fantásticos e maravilhosos da experiência Aceitar o jogo é a maneira de a criança compreender o mundo transformando pois em brincadeiras aquilo que não pode conhecer Pela brincadeira a criança aceita adiar as respostas admite o irreal mergulha no imaginário e experimenta as sensações do fabuloso Criase uma possibilidade de conhecer o mundo por meio daquilo que não é real ou por meio de uma experiência apofática uma vez que a explicação para a língua da criança pode ser entendida pelo poeta como a desexplicação José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 240 Desexplicação Língua de criança é a imagem da língua primitiva Na criança fala o índio a árvore o vento Na criança fala o passarinho O riacho por cima das pedras sole tra os meninos Na criança os musgos desfalam desfazemse Os nomes são desnomes Os sapos andam na rua de chapéu Os homens se vestem de folhas no mato A língua das crianças contam a in fância em tatibitati e gestos BARROS 2001b Haveria nisso algo que não seria conhecido realmente mas depreendido da imagem que a palavra não consegue escrever senão conjugada com outras na composição de uma imagem Talvez em conformidade com Benjamin seja assim a revelação do inexpressável A língua da criança ao ser a imagem da língua primitiva não manteria as relações semânticas préestabelecidas entre os signos lingüísticos e nem mesmo pragmáticas de modo que os sapos podem andar de chapéu pelas ruas ou os homens se vestirem de folhas no mato Ao transitar entre o real e o irreal a criança satisfaz provisoriamente seu desejo de conhecer A saída da realidade dá a ela uma outra razão uma outra lógica para a compreensão do mundo Em relação a isso os contos de fadas servem como exemplo Eles apresentam um enredo com estrutura fixa e de uma situação problema vinculada à realidade a história passa por um desequilíbrio No desenvolvimento está presente a busca de soluções A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 241 com a ajuda de personagens mágicos voltando ao equilíbrio no final da narrativa ou seja retomando uma condição mais próxima da realidade A experiência da linguagem nas narrativas e nas brincadeiras infantis é marcada pela aceitabilidade do jogo e sem que ninguém previamente a oriente a criança permite este acontecimento Uma vez que a criança recebe tão despretensiosamente o inacabado a nãoresposta o faz de conta eu diria que na infância a busca pelo conhecimento poderia ser inscrita também no contexto derridiano da promessa pois ela ao vivenciar o universo desconhecido não exige dele uma resposta definitiva Suas perguntas acabam por aceitar outras perguntas como respostas que anunciam freqüentemente o porvir delineando um discurso no qual se cria o espaço do indecidível e de acontecimentos experimentados pelos contos e brincadeiras que se revelam pela marca da nãopresença Neste contexto o termo nãopresença representaria toda a inventividade mágica e fantástica dos contos e brincadeiras aquilo que estaria presente apenas no imaginário ou na linguagem que sustentará a fantasia Benjamin discute a linguagem também a partir de uma teoria mimética A compreensão da linguagem pela capacidade mimética faria com que o homem descobrisse na natureza analogias e correspondências Historicamente supõese que a linguagem surgiu de uma mímica gestual primitiva e gradativamente o som que representava um simples acompanhamento do gesto separouse dele Segundo comenta Benjamin em A Doutrina das Semelhanças a faculdade mimética consiste em um processo engendrador das semelhanças e o homem tem a capacidade suprema de produzir semelhanças ou seja de imitar Mesmo reconhecendo que a noção de semelhança seja vasta e amplamente discutível Benjamin propõe alguns exemplos para pensála e entende que ela determina os homens de dois modos consciente e inconscientemente Na José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 242 exposição desses exemplos Benjamin diz que a brincadeira infantil constitui a escola da faculdade ontogenética Os jogos infantis são impregnados de comportamentos miméticos que não se limitam de modo algum à imitação de pessoas A criança não brinca apenas de ser comerciante ou professor mas também moinho de vento e trem BENJAMIN 1994 p 108 Além de compreender os jogos infantis como uma manifestação do comportamento mimético Benjamin verifica a influência da faculdade mimética sob a linguagem A linguagem permite uma compreensão do conceito de semelhança extrasensível ou seja da semelhança que não se define exclusivamente por um modo de aproximação baseado em fundamentos sólidos Assim a linguagem não é apenas um sistema convencional de signos e por isso as semelhanças estabelecidas por ela serão relativas isto é sensíveis dependendo é claro de um referente De modo que a leitura pode ser instrumental ou mágica mas apenas a mágica corresponderia às possibilidades de interpretações e de uma experiência extrasensível Todavia notase uma certa falta de prestígio em relação à leitura nãoinstrumental O caráter mimético da linguagem assume formas diretas e convencionais que correspondem sem qualquer reflexão aos seus significantes porém a leitura mágica submete se a um tempo necessário ou antes a um momento crítico que o leitor por nenhum preço pode esquecer se não quiser sair de mãos vazias BENJAMIN 1994 p113 Esse momento mágico parece se realizar mesmo que de modo inconsciente nos jogos infantis nos quais a experiência sensível não se deixa anular Atento a essas duas leituras a instrumental e a mágica Benjamin indaga se a capacidade mimética teria se extinguido ou se transformado na sociedade moderna Podemos supor que Benjamin se refere à infância ou à linguagem pensada pela criança porém é preciso acrescentar e A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 243 salientar aqui a ideia de uma infância da linguagem ou seja da procura por uma linguagem menos gasta contrária ao convencionalismo e à lógica instrumental mas que não se revela apenas nas falas infantis reportome pois à linguagem da narrativa em Barros da qual algumas imagens representariam essa possível maneira de voltar ao passado ou de realizálo no presente percebida por Benjamin COMO OS ALUNOS EXPERIMENTARAM O EXERCÍCIO DE SER CRIANÇA As narrativas ficcionais oferecem às crianças e jovens uma outra perspectiva para se olhar o mundo na qual o papel do professor é muitas vezes determinante Até o 5ºano a perplexidade da criança diante do texto literário é mais intensa porém a partir dessa época ela parece se encantar menos com os narrativas ficcionais Ler Exercícios de ser criança pretendia de fato exercitar o ser criança o permanecer se encantando com o jogo da linguagem na construção do fabuloso Não abordarei aqui as complicadas relações entre práticas de leitura e escola Tomarei como referência o texto Exercícios de ser criança os alunos e algumas intervenções feitas por mim em sala Resistindo em serem considerados crianças alguns alunos já se inquietaram com o título Porém ao adentrarem no texto alguns consideraramno difícil e perceberam que não se tratava de um material dirigido especificamente a criançinhas Essa foi a primeira dificuldade facilmente superada para então começarmos efetivamente a análise do texto que busca uma forma de conhecimento outra verificando sobretudo em que medida a linguagem permite a referida experiência sensível Revestidas daquilo que é ditado pelo imaginário as imagens poéticas expressam características próprias da criança e em José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 244 conformidade com Breton podemos perceber que de fato a poesia pode fazer reviver com exaltação a melhor parte da infância BRETON 2001 p56 Assim os epsódios que a princípio foram por alguns considerados absurdos foram se tornando familiares de modo que os leitores desta pesquisa diziam Ah Eu já fiz isso e reviviam partes de sua infância ainda bem presente A maior dificuldade deles foi decodificar as metáforas por isso eu ofereci algumas chaves de leitura Dentre as duas histórias O menino que carregava água na peneira e A menina avoada eles destacaram maior interesse pela primeira de modo que passarei a considerála a partir das análises desses leitores Disseramme que carregar água na peneira é como viver pois nunca conseguimos realizar tudo que queremos Na peneira não carregamos a água toda mas apenas algumas gotinhas O entendimento rigorosamente literário fez com que alguns alunos desejassem ser filhos da mãe de Manoel de Barros Essa mãe não dizia que era absurdo as ideias do filho mas esticava as imagens metafóricas dando asas à imaginação do menino Viu professora A mãe dele entende ele Surgiam assim as associações e é claro a reflexão sobre uma condição pessoal a partir da narrativa ficcional Outra aluna disse que deixou de ter medo do vento depois de escrever uma narrativa sobre vento e fantasmas segundo ela pela experiência da escrita entendera que as coisas das quais tinha medo só existem na invenção ou seja quando escritas Entender a narrativa ficcional como solução dos conflitos não é mais uma ilusão de muitos préadolescentes Alguns consideram que esse texto não resolva seu problema mas alivia sua mente tendo a função de entretenimento escrevendo podemos soltar a nossa imaginação porque na escrita você pode ser tudo Foi o que fizemos no Museu Vivo na Mostra Cultural do Colégio foi como se representássemos os personagens saindo do livros Foi maravilhoso A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 245 Isso nos fez esquecer os problemas do mundo real Porém a noção de totalidade própria da estrutura narrativa não deixa de organizar o mundo e talvez mostrar um sentido para a vida aparentemente tão precária comenta um leitor que Carregar água na peneira é impossível não teria fim mas escrever é uma coisa que tem fim A imagem da água na peneira fixouse e precisei apontar outras Os leitores pareciam encantados com a possibilidade de peraltagens virar poesia Um deles perguntoume se poderia levar uma peneira na próxima aula para fazermos testes Mas a imagem do vazio interessavame e eles não a citaram por isso perguntei Por que os vazios são maiores e até infinitos Para minha surpresa resposta imediata Porque dá para fazer mais coisas tem mais espaço espaço para escrever o que quiser inventar nós não inventamos o Pinóquio tecnológico e ainda é assim você dá espaço para nossas maluquices igual esse menino aí do pantanal E assim alguns reconheceram que pela escrita podem criar os mundos que desejarem pois No escrever o menino viu que era capaz de ser noviça monge ou mendigo ao mesmo tempo O menino aprendeu a usar as palavras BARROS 1999 Tais imagens constatariam uma forma de conhecimento que escapa dos limites de uma experiência objetiva A experiência revelada nestes versos de Barros se excede pela linguagem de modo que podemos dizer com ele que Imagens são palavras que nos faltaram BARROS sd p 296 Aproximando pois o olhar da criança do olhar do poeta eles puderam perceber que os despropósitos não são tão absurdos Assim pretendeuse aqui relatar a experiência de uma observação e de uma possibilidade de se lidar com alguns textos literários que possam favorecer leituras desconstrutoras e produtoras de um conhecimento que possa delinear uma outra lógica talvez menos preconceituosa para os jovens leitores José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 246 Em Exercício de ser criança há uma crítica implícita ao enrijecimento do qual nos revestimos e muitas vezes revestimos nossos alunos Lemos reescrevemos e falamos tão sofisticadas teorias mas como lemos e percebemos os despropósitos dos alunos Em que medida deixamos de criar espaços de leitura que favoreçam a subjetividade e valorize os perfis identitários Em que medida as crianças perdem a perplexidade pelas coisas Quando isso acontece Quando deixamos de olhar o mundo de azul Na quinta série há um discurso comum de que a brincadeira acabou de que a partir dali é para valer como se antes não fosse Pareceme que toda a leitura mágica pensada por Benjamin teria data marcada para acabar a 5ªsérie pois a partir dela a infância acabaria Mas o homem não deixaria de se encantar de se perplexibilizar realizando o exercício de ser criança uma atitude que convida o leitor a continuar atravessando rios inventados e por essas travessias entender que tambem é possível saber das coisas Tal é a aceitabilidade do conhecimento por meio de uma experiência da linguagem Barros revela a pobreza da experiência humana sim mas também aponta uma outra possibilidade para conhecermos a vida e a arte Ele cria uma série de neologismos e sinestesias usando também um vocabulário coloquial e prosopopéias vai desnomeando as coisas e alimentando sua poesia de imagens A sua proposta de poesia é se aproximar das coisas chãs e da natureza desvestindo as palavras de seus significados gastos e de seus nomes que as aprisionam num mundo de conceitos cada vez mais fechados Tal como as crianças Barros muda a função da palavra e de seus significados até chegar segundo ele ao estado de coisa de pedra de árvore Dessa forma ele chega até a coisa não pelo nome mas pela coisidade pela coisa em si mesma e renovando o mundo dos A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 247 objetos diz querer avançar para o começo a fim de chegar ao criançamento das palavras Carrego meus primórdios num an dor Minha voz tem vício de fontes Eu queria avançar para o começo Chegar ao criançamento das pala vras Lá onde elas ainda urinam na per na Antes mesmo que sejam modela das pelas mãos Quando a criança garatuja o verbo para falar o que não tem Pegar no estame do som Ser a voz de um lagarto escureci do Abrir um descortínio para o arcano BARROS 2004 p47 Notase com isso que antes de sensibilizarmonos com uma experiência permitida pela linguagem poética antes de aceitarmos a criança em nós obedecendo à desordem das falas infantis BARROS 2005 entrevista ou até mesmo de algumas atitudes antes de deixar vir o incognoscível é preciso desejar pois as palavras e as coisas estão acostumadas A poesia permitindo o resgate da palavra a visita ao passado a percepção da criança adormecida na memória do adulto talvez possa servir para que o homem encontre consigo e com os outros na busca da mais autêntica forma de existência da contemplação e é claro de uma experiência bem menos pobre José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 248 CONCLUSÃO Em Barros a poesia pode representar a critica à experiência pobre de que nos fala Benjamin Adornada pelo requinte e pela sensibilidade do espírito jovem a poesia deixa vir a voz da criança marcada por uma experiência que se expõe como revelação exatamente por acreditar em milagres e não duvidar do que é mistério Os milagres estéticos são milagres Eles hão de não ter explicação como todos os milagres Porque são mistérios BARROS 2005 entrevista A arte embora utilize técnicas desvenda o mundo e recriao em outra dimensão na qual os conhecimentos mágicos ilusórios e irreais tomam parte assim ela está sempre disposta a experimentar o novo e a se arriscar nos deslimites dos mistérios A imagem poética fugiria de qualquer tentativa formalista de interpretação total dando ao homem a condição de resgatar sua liberdade Tratase de um conhecimento que se arrisca naquilo que não se mede a sensibilidade a percepção o sentido mas que é intrínseco ao homem Num movimento de busca incessante e sempre provisória a poesia abre espaço para outras possibilidades do nosso conhecer as quais às vezes são tomadas por um gesto parecido com atitudes próprias da infância As imagens em Barros têm uma função reveladora mesmo que ficcionalizante de distintos locais de enunciação os quais permitem uma passagem pela experiência do outro e pela representação cultural identitária REFERÊNCIAS AMARILHA M Estão mortas as fadas 3 ed Petrópolis Vozes 1997 BARROS Manoel Exercícios de ser criança Rio de Janeiro Salaman dra 1999 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 249 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs O livro das ignorãças 10ª ed Rio de Janeiro Record 2001a Poeminhas pescados numa fala de João Rio de Janeiro São Paulo Record 2001b Livro sobre nada 11 ed Rio de Janeiro Record 2004 Entrevista concedida a Mara Conceição Vieira de Oliveira em 2005 durante o curso de doutoramento em Letras pela Universidade Federal Fluminense 2005 Gramática expositiva do chão poesia quase toda Rio de Janeiro Civilização Brasiliense sd BENJAMIN W Magia e Técnica arte e política ensaios sobre literatu ra e história da cultura 7 ed vI Obras escolhidas Tradução Sér gio Paulo Rouanet São Paulo Brasiliense 1994 Rua de mão única 5 ed vII Obras escolhidas Tradução Rubens Rodrigues Torres Filho José Carlos Martins Barbosa e Pierre Paul Michel Ardengo São Paulo Brasiliense 1995 Reflexões sobre a criança o brinquedo e a educação Tradu ção Marcus Vinicius Mazzari São Paulo Duas Cidades Editora 34 2002 BLANCHOT M A conversa infinita tradução Aurélio Guerra Neto São Paulo Escuta 2001 BRETON A Manifesto do Surrealismo Tradução Sergio Pachá Rio de Janeiro Nau Editora 2001 DERRIDA J Salvo o nome Tradução Nícia Adan Bonatti Campinas Papirus 1995a Khôra ensaio do nome Tradução Nícia Adan Bonatti Cam pinas Papirus 1995b GAGNEBIN J M História e Narração em Walter Benjamin 2 ed São Paulo Perspectiva 1999 250 CARA DE CORUJA A EXPERIÊNCIA DE LEITURA COMO RECURSO PARA A RENOVAÇÃO DOS CONTOS DE FADAS DE CHARLES PERRAULT NO CONTO DE MONTEIRO LOBATO Geovana Gentili Santos INTRODUÇÃO Durante a leitura dos livros infantis de Monteiro Lobato o leitor familiarizase com sua criação presente em quase todas as aventuras Emília a boneca de pano Visconde de Sabugosa o boneco de sabugo de milho Rabicó o porco Marquês as crianças Narizinho e Pedrinho e as duas senhoras Dona Benta e Tia Nastácia Além dessas personagens que moram no Sítio do Picapau Amarelo verificase a presença de outras figuras ficcionais provindas de outras obras Esse diálogo dáse com a Mitologia nas aventuras ocorridas na Grécia Antiga na Grécia de Péricles e naquelas em companhia de Hércules com a História nas peripécias vividas ao lado de Hans Staden Alexandre o Grande César com o Folclore na retomada de figuras como o Saci a Iara a Cuca e com a Literatura na relação estabelecida com outras personagens como o Dom Quixote a Branca de Neve o Príncipe Codadade o Gato de Botas o Peter Pan a Cinderela a Chapeuzinho Vermelho o Capitão Gancho a Rosa Branca e a Rosa Vermelha o Pequeno Polegar o Lobo Mau o Barba Azul o Gato Félix a Alice dentre outros Desse rol de figuras ficcionais pertencentes a outras obras literárias destacase a assídua presença das personagens de Histoires ou contes du temps passé avec des moralités Contes de ma mère loye 1697 do escritor francês Charles Perrault nos diversos contos de Lobato Com base no diálogo estabelecido entre essas duas produções o presente trabalho A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 251 pretende analisar o quanto a experiência de leitura das personagens lobatianas no conto Cara de Coruja em Reinações de Narizinho 1931 tornase um meio viabilizador para a concretização do projeto literário de Monteiro Lobato cuja prosposta central incide na renovação das histórias destinada à nossas crianças Ando com varias ideias Uma vestir á nacional as velhas fabulas de Esopo e La Fontaine tudo em prosa e mexendo nas moralidades Coisa para crianças LOBATO 1964 p104 Pretendese ainda verificar as transformações eou adaptações sofridas pelas personagens dos contos de fadas de Perrault ao serem introduzidas no universo ficcional do escritor brasileiro CARA DE CORUJA UMA FESTA NO SÍTIO DE DONA BENTA O conto Cara de Coruja iniciase com os preparativos da festa que as crianças do Sítio vão oferecer aos amigos do País das Maravilhas Que reinação vamos ter hoje Narizinho Nem é bom falar vovó Vai ser uma festa linda até não poder mais Só reis e príncipes e princesas e fadas LOBATO 1957 p175 A reinação começa e a ansiedade pela chegada dos amigos maravilhosos era grande o Visconde de Sabugosa observava da janela qualquer aproximação e o Marquês de Rabicó ocupava seu posto para recepcionar os convidados De maneira diferente do habitual ou tradicional Rabicó anuncia a chegada de uma das princesas Senhorita Cinderela a princesa das botinas de vidro LOBATO 1957 p176 O modo de o Marquês referirse à Cinderela rompe com a caracterização típica conferida a essa personagem a princesa dos sapatinhos de cristal Essa ruptura dáse por meio da troca dos termos sapatos por botinas e cristal tradução comumente empregada por vidro tradução literal da palavra francesa verre Além de conferir um José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 252 tom humorístico ao texto essa substituição realizada por Rabicó evidencia o processo de dessacralização que esse objeto fruto da mágica da fadamadrinha e que particulariza a personagem sofre ao ser retomado no universo ficcional lobatiano Narizinho por sua vez recepciona sua convidada de um modo inovador Asalam alekum Cinderela admirou aquele modo oriental de saudação que Narizinho tinha aprendido num volume das Mile UmaNoites e como também entendesse muito de coi sas orientais porque ia a muitas festas do Príncipe Co dadade e outros respondeu na mesma língua Alekun asalam LOBATO 1957 p177 Informações que não configuram no conto francês a respeito de Cinderela são apresentadas quando esta é inserida na obra lobatiana seu conhecimento dos costumes orientais e sua amizade com o Príncipe Codadade Essas duas novidades revelam o princípio da composição da produção ficcional infantil de Monteiro Lobato não há fronteiras no Mundo das Fábulas ou seja sob a óptica de Lobato o universo maravilhoso é concebido como um único Livro no qual todas as personagens se conhecem e se relacionam Essa formulação assemelhase ao imaginário infantil em que todas as personagens fazem parte do mesmo universo do fazdeconta Por meio desse procedimento literário Monteiro Lobato aproxima o universo ficcional à realidade da criança além de revelar sua concepção de literatura Ainda na citação acima é possível observar outro aspecto fundamental na construção da obra de Lobato a constituição de suas personagens como leitoras Com a leitura da obra MileUmaNoites clássico oriental amplamente difundido na tradição ocidental Narizinho aprende um cumprimento típico daquela cultura O que se pode verificar não apenas por essa passagem mas também por outras presentes no decorrer das demais aventuras é que a leitura A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 253 adquire um papel formador auxiliando de modo direto na aquisição de novos conhecimentos e contato com outras culturas Após as apresentações Emília esqueceu todas as recomendações e enfiouse debaixo da cadeira de Cinderela LOBATO 1957 p177 Com toda sua irreverência a boneca não se submete às normas e às etiquetas e age com espontaneidade de acordo com sua vontade Nesse encontro com Emília Cinderela lhe afirma Já a conheço de fama LOBATO 1957 p177 apontando o reconhecimento das personagens criadas por Lobato no universo maravilhoso Com relação a este aspecto cabe lembrar as palavras de Dona Carochinha guardiã das histórias das personagens clássicas no conto Narizinho Arrebitado a respeito da revolta de suas personagens tenho notado que muitos dos personagens das minhas histórias já andam aborrecidos de viverem toda a vida presos dentro delas Querem novidade Tudo isso continuou Dona Carochinha por causa do Pinocchio do Gato Félix e sobretudo de uma tal menina do narizinho arrebitado que todos desejam muito conhecer LOBATO 1957 p1112 Emília que também conhecia a história da princesa questiona alguns pontos que lhe causam dúvidas Também eu conheço toda a sua história Mas há um ponto que não entendo bem É a respeito dos tais sapatinhos Um livro diz que eram de cristal outro diz que eram de cetim Afinal de contas estou vendo você com sapatinhos de couro LOBATO 1957 p177 Ao indagar a respeito do verdadeiro material dos sapatos de Cinderela a boneca de pano põe em xeque as diferentes versões ou traduções de sua história e revela sua postura crítica diante dos livros sem aceitar passivamente todas as proposições apresentadas Cinderela riuse muito da questão e respondeu que na verdade fora de sapatinhos de cristal no famoso baile onde se encontrou com o Príncipe pela primeira vez José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 254 Mas que esses sapatinhos não eram nada cômodos fa ziam calos por isso só usava agora sapatinhos de ca murça LOBATO 1957 p177 Nessa passagem observase que a história da personagem dos contos de fadas ao ser retomada na aventura no Sítio do Picapau Amarelo adquire flexibilidade ou seja rompese os limites do conto na versão francesa e novos detalhes são apresentados pela a própria protagonista da história por intermédio do narrador Com a inclusão dessas curiosidades constatase portanto a continuidade e a renovação dos contos de fadas além de ser uma maneira de o escritor brasileiro brincar com o leitor empírico possível leitor e conhecedor dos clássicos Contos da Mamãe Gansa Emília que ainda tinha outra dúvida pergunta à prin cesa Há outro ponto que me causa dúvidas continuou a boneca Que é que aconteceu para sua madrasta e suas irmãs afinal de contas Um livro diz que foram conde nadas à morte pelo Príncipe outro diz que um pombi nho furou os olhos das duas Nada disso aconteceu disse Cinderela Perdoeilhes o mal que me fizeram e hoje já estão curadas da maldade e vivem contentes numa casinha que lhes dei bem atrás do meu castelo LOBATO 1957 p178 Cinderela nega as diferentes versões de sua história e apresenta os acontecimentos na sua própria perspectiva Apesar da semelhança com o final presente no conto Cinderela Cendrillon de Charles Perrault no qual Cinderela perdoa sua madrasta e suas irmãs e as casa com dois nobres Senhores notase uma modificação no que diz respeito à casa atrás do castelo Na continuidade da narrativa mais um convidado é anunciado pelo Visconde de Sabugosa Estou vendo outra poeirinha lá longe A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 255 Deve ser a minha amiga BrancadeNeve disse a Princesa Cinderela Branca mora perto de mim e quan do passei por lá vi que sua carruagem já estava na por ta do castelo LOBATO 1957 p178 No trecho acima fica evidente a concretude do Reino Encanto espaço ficcional em que as mais diversas personagens habitam em suas casas ou castelos mantendo relações de amizade e tornandose vizinhas Observase assim que Monteiro Lobato reúne essas personagens clássicas da literatura infantil em um único espaço rompendo com a idéia de que cada uma delas pertence a um livro e a um autor específico Outro caso de amizade na narrativa ocorre entre Rosa Branca e Bela Adormecida que envia por sua amiga um comunicado para as crianças do Sítio A Bela Adormecida manda comunicar que não pode vir LOBATO 1957 p180 Mais um convidado chega e o Visconde anuncia Vem vindo uma poeirinha tão pequenininha que até parece poeira de camundongo Quem poderá ser exclamaram as princesas inter rompendo a conversa Logo depois ouviuse um tique tique tique na porta e Rabicó anunciou Um senhor pingo de gente com umas botas maiores do que ele O Pequeno Polegar gritaram as princesas e acerta ram Esquecidas de que eram famosas princesas foram cor rendo receber o pequenino herói Era ele o chefe da conspiração dos heróis maravilhosos para fugirem dos embolorados livros de Dona Carocha e virem viver no vas aventuras no sítio de Dona Benta Polegar já havia fugido uma vez e apesar de capturado estava prepa rando nova fuga dele e de vários outros Emília ficou num assanhamento jamais visto LOBATO 1957 p181182 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 256 Novamente é perceptível a ruptura na apresentação do Pequeno Polegar feita por Rabicó ao referirse a ele como senhor pingo de gente com umas botas maiores do que ele Valendose de uma personagem atrapalhada e que só pensa em comida Monteiro Lobato subverter o tradicionalismo com que essa figura tradicional é abordada e confere um tom humorístico ao seu texto tornandoo leve em relação à linguagem e divertido Ainda nessa passagem fica nítida a veiculação da idéia do Sítio como um espaço aberto onde reina a liberdade de ação visto que as princesas do Mundo Maravilhoso ao verem Polegar rompem com certo padrão de comportamento e agem com espontaneidade Esquecidas de que eram famosas princesas foram correndo receber o pequenino herói De forma similar às passagens anteriores a conduta das princesas ganha uma conotação significativa no fazer literário de Lobato pois apesar de ser à primeira vista algo simplório esse comportamento pode ser lido também como a ruptura com a tradição e com o conservadorismo na caracterização dessas personagens que compõem o acervo literário infantil Outro aspecto a ser observado referese à capacidade de liderança do Pequeno Polegar No conto de Perrault o pequeno herói desempenha o papel de líder dos seus irmãos na floresta tomando as decisões necessárias para retornarem à casa de seus pais Na narrativa de Lobato Polegar também desempenha essa função entretanto tornase o chefe das demais personagens do Mundo das Fábulas na conspiração contra Dona Carochinha o que resultará na fuga para outro espaço literário Novamente a propagação da idéia da fuga dos livros embolorados e do desejo das personagens dos contos de fadas de viverem novos acontecimentos no Sítio de Dona Benta tornase explícita A constante presença desse tema nas histórias lobatianas pode ser vista não só como uma forma de anunciar um episódio que se efetivaria posteriormente no livro O A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 257 Picapau Amarelo 1939 mas também como uma maneira de cultivar no leitor a curiosidade e até mesmo o desejo da fuga dessas famosas figuras para o Picapau Amarelo Emília quando vê que o pequeno herói está no Sítio fi ca num assanhamento jamais visto e demonstra fa miliaridade com a personagem Ela agarrao botao no colo e o faz contar toda a sua vida além disso ela lhe mostra seus brinquedos Das botas passou aos seus brinquedos Mostroulhe uma coleção de feijões pintadinhos que Tia Nastácia lhe dera o pincel de gomaarábica que lhe servia de vas soura e mil coisas Polegar gostou de tudo principal mente dum pito velho que tinha sido de Tia Nastácia um pito sem canudo Gostou tanto que a boneca lhe disse Pois se gosta leve que arranjo outro Mas com per dão da curiosidade para que é que o senhor quer esse pito Para brincar de esconder respondeu o pingo de gente dando um pulo para dentro do pito e ficando tão bem escondidinho que ninguém seria capaz de o des cobrir LOBATO 1957 p183 A atitude de Emília e a de Polegar descritas no fragmento acima as caracteriza como típicas representantes do universo infantil fato este que evidencia a mudança na perspectiva da personagem Em outras palavras podese afirmar que sob o olhar de Lobato as atitudes tomadas por Polegar colocamno mais próximo do mundo infantil diferentemente do que ocorre no conto francês no qual Polegar tem um comportamento mais próximo do mundo adulto ao tomar para si a responsabilidade de conduzir seus irmãos de volta para casa Esse comportamento mais infantilizado revelase na escolha do pito feita pelo herói e pela utilidade dada ao objeto brincar de esconder Emília que também representa esse universo logo sugere uma nova função para as botas de sete léguas Eu se fosse o senhor deixavaas aqui no sítio por uma semana Que bom José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 258 Poderíamos brincar o dia inteiro de estar aqui e estar lá no mesmo instante LOBATO 1957 p182 Constatase portanto que a brincadeira e a diversão são fatores centrais no projeto literário de Monteiro Lobato no qual se processa a valorização da inteligência da criança e a riqueza do seu mundo imaginário Além disso verificase a aproximação entre o universo da personagem e o do leitor propiciando uma maior interação entre a obra e o leitor Emília demonstra grande afetividade por Polegar haja vista ele ser o único a ganhar um presente da boneca de pano Emília era interesseira Gostava de receber presentes mas não de dar O único presente que deu em toda sua vida foi aquele pito LOBATO 1957 p183 Observase ainda que a presença de Polegar nessa parte da narrativa lobatiana tornase significativa para revelar algumas características da própria criação de Lobato como no caso o egoísmo de Emília Nesse encontro com a boneca Polegar reconhece a sua fragilidade e a sua dependência do objeto maravilhoso Antes de mais nada tire as botas Não sei como o senhor tem coragem de andar com tamanho peso nos pés É que sem elas eu não valho nada Sou pequenino demais e fraco mas com estas botas não tenho medo nem de gigante LOBATO 1957 p182 Inserido no universo lobatiano Polegar fala de si mesmo e de suas limitações diferentemente do que se passa no conto francês no qual é o narrador quem se incumbe de descrever as suas características e seus sentimentos Dessa maneira concluise que pela mudança de técnica narrativa na abordagem da pequena personagem Monteiro Lobato confere às personagens liberdade concedendolhes a oportunidade de se expressarem diretamente sem a necessidade de uma voz intermediadora A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 259 Logo após a chegada de Polegar ouvese um grande rumor e BrancadeNeve diz Não abra É o malvado que matou seis mulheres LOBATO 1957 p183 Por curiosidade Narizinho também havia convidado para a festa o Barba Azul fato que deixa as princesas bastante furiosas É azul mesmo exclamou Azul como um céu Que horrendo monstro Imaginem que traz na cintura um colar de seis cabeças humanas LOBATO1957 p183 Confrontando essa descrição feita por Narizinho do Barba Azul com aquelas presentes no conto O Barba Azul La Barbe Bleue de Charles Perrault constatase que neste não há qualquer referência à quantidade de mulheres com as quais o rico homem das barbas azuis havia se casado além disso os corpos dessas mulheres são encontrados em um quarto na parte inferior da casa Dessa maneira verificase que tanto a personagem quanto a sua história sofrem alterações no universo ficcional lobatiano A primeira alteração seria portanto a precisão na quantidade de mulheres mortas por Barba Azul e a segunda a incorporação de um adereço na caracterização da protagonista um cinto com seis cabeças humanas objeto que lhe confere uma aparência mais aterrorizante Na continuidade da narrativa Cinderela demonstra conhecer bem a história da indesejada personagem ao questionar É esquisito isto Sempre supus que o irmão da sétima mulher de Barba Azul o houvesse matado LOBATO 1957 p184 Evocando o final presente no conto O Barba Azul La Barbe Bleue em que os irmãos da última mulher o matam Cinderela não compreende como tal figura ainda encontravase viva Para justificar essa aparente incongruência a boneca de pano lança sua resposta É que não matou bem matado Explicou Emília Outro dia aconteceu um caso assim aqui no sítio Tia Nastácia matou um frango mas não o matou bem matado e de repente ele fugiu para o terreiro LOBATO 1957 184 A partir da associação com um caso ocorrido no diaadia do José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 260 Sítio a boneca logo apresenta uma explicação para o reaparecimento do Barba Azul Furioso por não permitirem sua entrada Barba Azul faz suas ameaças e é a boneca de pano quem o enfrenta Emília perdeu a paciência botou a boquinha no buraco da fechadura e berrou Pois case se for capaz Mando PédeVento te ventar pra os confins do Judas Vá pintar essa barba de preto que é o melhor seu carade coruja LOBATO 1957 p184 Constatase que a participação de Barba Azul na festa tornase um meio viabilizador para conhecer um pouco mais a própria criação literária de Lobato no caso Emília uma boneca de pano que com seu jeito birrento e nada educado desconsidera as ameaças de Barba Azul e o põe para correr É desse modo que Emília vai constituindose criando sua própria identidade e gritando sua independência Logo que o Gato de Botas chega à festa ele é informado da história do falso Gato Félix que afirmava ser seu cinqüentaneto Nessa parte da narrativa há a retomada de um episódio passado narrado no conto O Gato Félix em Reinações de Narizinho 1931 E o gato Félix começou Houve na França um gato muitíssimo ilustre que era escudeiro do Marquês de Carabas tão ilustre que não há no mundo inteiro criança que não o conheça Até eu gritou Emília Era o tal GatodeBotas Justamente menina Esse famoso gato era o escu deiro do Marquês de Carabas Fez coisas do arcoda velha como se sabe até que se casou com uma linda gata amarela e teve muitos filhos Esses filhos tiveram outros filhos Estes outros filhos tiveram novos filhos e veio vindo aquela gataria que não acabava mais até que nasci eu Que bom exclamou Narizinho Então você é bisneto ou tataraneto do Gatodebotas A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 261 Sou cinqüentaneto dele disse o gato Félix Mas não nasci na Europa Meu avô veio para a América no navio de Cristóvão Colombo e naturalizouse americano Eu ainda alcancei meu avô Era um velhinho muito velho que gostava de contar histórias da sua viagem LOBA TO 1957 p150 Para enganar a turma do Sítio o falso Gato Félix cria uma história absurda a respeito do Gato de Botas conferindolhe um novo estado civil de solteiro para casado e uma enorme descendência A estrutura dada a essa narrativa faz com que tanto as personagens quanto o leitor permaneçam enredados nas falsas informações dadas pelo mentiroso Félix de modo que a história do famoso gato do Senhor Marquês de Carabás seja atualizada com a apresentação de novos aspectos até então totalmente desconhecidos Todas essas novas informações são recuperadas e contraditas pelo próprio Gato de Botas no conto Cara de Coruja Mentira cínica disse o GatodeBotas Nunca me casei Não tive nem filho quanto mais cinqüentaneto LOBATO 1957 p184 Nesse ponto da história um aspecto comum e constante na obra infantil de Monteiro Lobato fica evidente a contínua retomada de episódios já vividos pela turma do Sítio A esse respeito Marisa Lajolo em Monteiro Lobato um brasileiro sob medida afirma que uma história faz referência a outra sublinhando com isso o caráter circular de sua obra conjunto de livros cuja leitura pode recomeçar infinitamente de qualquer ponto LAJOLO 2000 p63 Além dessa possibilidade de começar a leitura de qualquer ponto da obra verificase que esse procedimento literário evidencia outro aspecto significativo da produção infantil lobatina sua composição é contínua Ou seja as aventuras do Sítio estão em permanente processo de construção e extrapolam os limites dos seus contos pois cada retomada evoca uma reinação já anteriormente narrada e acrescentalhe novas informações que vão complementando e vinculando uma história à José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 262 outra Esse modo de organizar e de vincular os fatos revela a coerência interna que a obra adquire ao longo de sua constituição compondo ao fim uma extensa narrativa a saga do Picapau Amarelo formada por outras narrativas menores cada conto Somase a esse aspecto um outro que também contribui para a manutenção da coerência interna da produção literária infantil lobatiana a incessante retomada do desejo de renovar as histórias emboloradas e trazer as personagens do Mundo das Fábulas para viverem novas aventuras no Sítio do Picapau Amarelo Em Cara de Coruja este assunto reaparece em dois momentos na chegada do Gato de Botas e na hora da despedida O Pequeno Polegar veio cochicharlhe ao ouvido alguma coisa com certeza a respeito da tal conspiração contra Dona Carocha LOBATO 1957 p184 Quando chegou o momento de despedirse do Pequeno Polegar Emília cochichoulhe ao ouvido uma porção de coisas sobre Dona Carocha e aconselhouo a fugir novamente e vir morar com eles ali no sítio LOBATO 1957 p196 Observase pelos trechos recuperados que essa constante referência à insatisfação das personagens em relação à mesmice de suas histórias apresentase como uma estratégia de Monteiro Lobato para efetuar qualquer alteração nas narrativas clássicas da literatura infantilem outras palavras podese dizer que toda modificação ocorre de acordo com a vontade das próprias personagens Inseridos no episódio da festa no Sítio o Pequeno Polegar e o Gato de Botas têm a oportunidade de desenvolver uma nova ação Os dois heróis vão ao castelo de Cinderela buscar a varinha de condão que a princesa havia esquecido em cima do criadomudo Minutos depois voltavam os dois cada qual segurando a vara por uma ponta LOBATO 1957 p185 O Gato de Botas ainda tem o ensejo de dançar com Rosa Branca além de disputar valentias com Pedrinho e Aladino Quero ver o que vale mais se esse bodoque e essa A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 263 lâmpada ou as minhas botasdeseteléguas LOBATO 1957 p191 Nessa afirmação o fato de as botas serem de sete léguas tornase instigante pois no conto O Gato de Botas Le Maître Chat ou Le Chat de Bottée não há qualquer referência a essa excepcionalidade do calçado Na narrativa francesa o Gato pede ao seu dono que lhe mande fazer um par de botas Ne vous affligez point mon maître vous navez quà me donner un Sac et me faire faire une paire de Bottes pour aller dans les broussailles PERRAULT 1990 p221222 Pelo trecho recuperado as botas parecem ser comuns sem qualquer recurso mágico entretanto vemos que no Sítio de Dona Benta o próprio Gato afirma excepcionalidade de suas botas Verificase novamente que Monteiro Lobato além de se valer da famosa personagem se sente na liberdade de alterar alguns de seus aspectos servindose estrategicamente do próprio Gato de Botas como uma forma de conferir maior veracidade à nova característica apresentada Chapeuzinho Vermelho também comparece na festa e é recebida por todos com muita alegria Boatarde para todos os presentes ausentes e parentes LOBATO 1957 p188 Emília como leitora e conhecedora da história da menina do capuz vermelho questiona Antes de mais nada foi dizendo Emília quero saber o seu verdadeiro nome porque uns dizem Capinha Vermelha e outros Capuzinho Vermelho Qual é o cer to Meu verdadeiro nome é Capinha Vermelha porque depois que vovó me fez esta capinha todos que me vi am ir para a casa dela diziam Lá vai indo a menina da capinha vermelha Mas como vocês podem ver esta capinha tem um capuz que eu às vezes uso De modo que tanto podem chamarme Capinha como Capuzi nho ou mesmo Chapeuzinho Vermelho LOBATO 1957 p189 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 264 Pelo fragmento acima fica novamente explícito que as personagens de Lobato são leitoras e conhecedoras do acervo literário Esse repertório de leitura e a postura crítica perante os textos que lêem ou ouvem permitelhes questionar aspectos que lhes parecem contraditórios No caso Emília problematiza as diferentes traduções dadas ao nome da personagem dos contos de fadas e para sanar sua dúvida aproveita o oportuno encontro com a própria Chapeuzinho A resposta dada pela menina à questão de Emília é bem similar àquela dada pelo narrador no conto Chapeuzinho Vermelho Le Petit Chaperon Rouge Cette bonne femme lui fit faire un petit chaperon rouge qui lui seyait si bien que partout on lappelait le Petit chaperon rouge PERRAULT 1990 p195 Com essa similaridade verificase que Monteiro Lobato ao valerse dessas personagens e ao incorporálas em seu universo sentese na liberdade de ora retomar uma das versões já existente e de ora acrescentar ou modificar alguns aspectos Com toda sua irreverência Emília faz outra pergunta Digame sua avó era muito magra Capinha estranhou a pergunta mas respondeu que sim Muito magra ou meio magra Bem magra Então não entendo aquele lobo disse Emília por que uma velha muito magra não é alimento Só osso LOBATO 1957 p189 Com espontaneidade em suas ações Emília transgride as normas e fala o que sente vontade criando assim por várias vezes uma dimensão cômica nos textos No trecho a comicidade surge da natureza da questão feita pela boneca visto que inicialmente não se compreende no que a magreza ou não da avó de Chapeuzinho A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 265 interessaria Pautandose na resposta dada pela menina Emília desconstrói a imagem da figura da vovó da maneira como se refere a ela uma velha muito magra não é alimento Só osso Essa caracterização da figura da vovó feita por Emília somase àquelas feitas anteriormente pelo Marquês de Rabicó em que ele também assinala de forma mais despojada ou dessacralizadora os aspectos particularizadores de cada personagem dos contos de fadas Outros convidados aparecem no Sítio tais como Ali Babá Patinho Feio Peter Pan Soldadinho de Chumbo Hansel e Gretel heróis das MileUmaNoites Sindbade os heróis gregos Perseu Teseu Minotauro Tantos personagens maravilhosos vieram que o terreiro de Dona Benta ficou de não caber um alfinete LOBATO 1957 p187 Na hora do lanche mais uma novidade Todos tomaram café menos Cinderela Só tomo leite explicou a linda princesa Tenho me do de que o café me deixe morena Faz muito bem disse Emília Foi de tanto tomar café que tia Nastácia ficou preta assim LOBATO 1957 p190 Curiosamente Cinderela não toma uma bebida tipicamente brasileira com medo de sua pele escurecer A retomada dessa superstição mostra que as crendices populares também são incorporadas no espaço ficcional do Sítio do Picapau Amarelo Brincando com essas especificidades Monteiro Lobato alimenta a imaginação de seus leitores dando continuidade à caracterização dessas famosas personagens dos contos de fadas Após brincarem de transformar e destransformar com a varinha de condão da Cinderela uma situação inesperada acontece E estavam ainda nessa brincadeira quando ouviram na porta uma batida esquisita muito diferente das demais As princesas assustaramse LOBATO 1957 p192 eram batidas do Lobo José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 266 É a própria Chapeuzinho Vermelho quem confirma a chegada do Lobo É o lobo mesmo exclamou de lá da fechadura da porta arregalando os olhos de pavor Justamente o malvado que comeu a vovó LOBATO 1957 p192 Nesse ponto da narrativa instaura se certa tensão Narizinho tenta acalmar as princesas mas ela mesma não entendia o reaparecimento daquele Lobo Não pode ser disse ela O lobo que comeu a avó de Capinha foi morto a machadadas por aquele homem que entrou É o que dizem os livros LOBATO 1957 p192 Como leitora dos contos de fadas a menina Lúcia retoma em sua fala a versão presente nos contos recolhidos e publicados pelos Irmãos Grimm na qual um Lenhador aparece e mata o Lobo salvando a vovó e a Chapeuzinho A boneca que sempre acha respostas para essas questões difíceis afirma Deve ser erro tipográfico sugeriu anasticamente Emília que também fora espiar o lobo É lobo sim e magríssimo Bem se vê que só se alimenta de velhas bem velhas Com certeza soube que Dona Benta morava aqui e LOBATO 1957 p192 Com sua agudeza de espírito Emília dá uma resposta inapropriada à situação de temor ao reparar na magreza do Lobo e associála a da Avó conforme lhe havia informado Chapeuzinho gerando por meio dessa inadequação comicidade De tanto pavor Narizinho e as princesas desmaiam restando apenas Emília e o Visconde na sala O Lobo já estava com meio corpo para dentro da casa quando a boneca grita por Tia Nastácia que coloca imediatamente o Lobo para correr Lobo sem vergonha Vá prear no mato que é o melhor Dona Benta nunca foi quitute pra teu bico seu cão sarnento LOBATO 1957 p194 Apesar do Lobo mau ter suas características conservadas ao ser incorporado no universo ficcional lobatiano notase que este é posto a serviço de uma nova proposta literária e que desempenha outra ação apesar de A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 267 similar a do conto Chapeuzinho Vermelho Le Petit Chaperon Rouge tenta comer a avó Dona Benta Quando o relógio bate seis horas as personagens começam a ir embora foi um rodopio de abraços e beijos e palavras de despedidas tudo num grande atropelo LOBATO 1957 p195 Na pressa Aladino Cinderela e o Gato de Botas esquecem seus objetos mágicos e Narizinho Pedrinho e Emília já imaginavam as diversas brincadeiras que fariam com a lâmpada a varinha de condão e as botas de sete léguas quando ouvem bater na porta Boa tarde disse a velha fingindo não reconhecer a boneca e sentandose para descansar Sou Dona Carocha a que toma conta de todos esses personagens do mundo maravilhoso Vim buscar a lâmpada do Aladino a vara de condão de Cinderela e as botas do Gato de Botas LOBATO 1957 p197 A velha baratinha põe fim à alegria dos meninos e leva consigo os objetos esquecidos até mesmo o espelho mágico que Branca de Neve havia dado à boneca Muito insatisfeita com a situação Emília não deixa a saída da velha por menos e lhe diz Caradecoruja seca Cara de jacarepaguá cozinhada com morcego e misturada com farinha de bicho cabeludo ahn e botoulhe uma língua tão comprida que Dona Carochinha foi arregaçando a saia e apressando o passo LOBATO 1957 p197 Essa atitude de Emília além de revelar um pouco mais do seu caráter e temperamento pode ser lida também como o choque entre a tradição e a renovação pois ao ir buscar os objetos maravilhosos esquecidos no Sítio Dona Carocha procura evitar qualquer alteração nessas histórias consagradas ao contrário de Emília que sempre incentiva a fuga das personagens para o Sítio Quase que uma antecipação da aventura vivida em O Picapau Amarelo 1939 no qual as personagens do País das Maravilhas mudamse definitivamente para as terras vizinhas das do Sítio de José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 268 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 Dona Benta o conto Cara de Coruja já conta com a participação das mais diversas figuras dos contos de fadas CONCLUSÃO Com o desenvolvimento deste trabalho verificouse que a experiência de leitura tornase um meio viabilizador para a renovação das histórias clássicas da literatura infantil Assim conhecedoras dos contos de fadas as personagens lobatianas são capazes de questionar as diferentes versões ou traduções dessas narrativas buscando nas próprias protagonistas as respostas para suas dúvidas Notouse também que a experiência de leitura do leitor de Lobato é fundamental para que este possa perceber as alterações realizadas pelo escritor brasileiro ao incorporar as personagens clássicas em sua obra Além disso constatouse que a presença das personagens estrangeiras nos contos de Monteiro Lobato contribui no processo de caracterização e construção de suas figuras ficcionais REFERÊNCIAS GRIMM Irmãos Contos de fadas 5 ed 1 reimpressão Tradução Celso M Paciornick São Paulo Iluminuras 2006 LAJOLO Marisa Monteiro Lobato um brasileiro sob medida São Paulo Moderna 2000 LOBATO Monteiro Reinações de Narizinho São Paulo Brasiliense 1957 Caçadas de Pedrinho São Paulo Brasiliense 1986 Barca de Gleyre São Paulo Brasiliense 1964 PERRAULT Charles Contes Paris Librairie Générale Française 1990 Histórias ou contos de outrora Tradução Renata Maria Par reira Cordeiro São Paulo Landy 2004 269 UM PAPO DE ARANHA SOBRE TEXTOS E LEITURAS A ESCOLA BRASILEIRA ENSINA A LÍNGUA DA INTERTEXTUALIDADE Regina Chamlian INTRODUÇÃO No intuito de senão responder pelo menos ensaiar algumas possíveis respostas à perguntatítulo deste trabalho julgo necessário primeiro definir brevemente através da bibliografia consultada ou de uma compreensão própria do tema certos conceitos como texto leitura leitor mediador de leituras e intertextualidade BUSCANDO DEFINIÇÕES Texto O nosso mais famoso dicionário define texto como conjunto de palavras de frases escritas ou obra escrita ou qualquer texto a ser dito ou lido em voz alta ou toda e qualquer expressão ou conjunto de expressões que a escrita fixou como ainda em sentido restrito palavras bíblicas que o orador sacro cita fazendoas tema de sermão e também manuscrito ou impresso por oposição a ilustração Fora do texto nos explica o verbete seria qualquer material ilustrativo impresso à parte ger em papel especial e em folhas não numeradas ou com numeração própria que se intercalam entre os cadernos de um livro Dicionário Aurélio século XXI Destaquese a orientação completa e conclusivamente verbal logocêntrica que o citado dicionário confere ao conceito que embora inclua o texto falado exclui o texto visual e ainda tem uma conotação de sagrado José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 270 Não muito diferente da orientação do dicionário acima citado é o que lemos a seguir texto é o produto da atividade discursiva oral ou escrita que forma um todo significativo e acabado qualquer que seja sua extensão É uma seqüência verbal constituída por um conjunto de relações que se estabelecem a partir da coesão e da coerência Esse conjunto de relações tem sido chamado de textualidade Dessa forma um texto só é um texto quando pode ser compreendido como unidade significativa global quando possui textualidade Caso contrário não passa de um amontoado aleatório de enunciadosParâmetros Curriculares Nacionais p 25 26 A noção contemporânea de texto no entanto não se restringe à sua configuração verbal Segundo Barthes Texto quer dizer Tecido mas enquanto até aqui esse tecido foi sempre tomado por um produto por um véu todo acabado por trás do qual se mantém mais ou menos oculto o sentido a verdade nós acentuamos agora no tecido a idéia gerativa de que o texto se faz se trabalha através de um entrelaçamento perpétuo perdido neste tecido nessa textura o sujeito se desfaz nele qual uma aranha que se dissolve ela mesma nas secreções construtivas de sua teia CardosoSilva 2006 p 19 O inacabamento e o ir se entrelaçando perpetuamente do texto na definição do crítico francês já prefiguram a idéia de intertextualidade e de rede cultural presentes a primeira nos estudos literários em geral e a segunda na Semiótica da Cultura entre outras correntes Laurent Jenny credita à Julia Kristeva o alargamento da noção de texto que seria sinônimo de sistema de signos quer se trate de obras literárias de linguagens orais de sistemas simbólicos sociais ou inconscientes JENNY 1979 p 13 Com o conceito assim redimensionado à compreensão e práticas contemporâneas podemos dizer que são textos assim no A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 271 plural os poemas os espetáculos de dança as peças teatrais filmes pinturas o traçado das cidades urbanismo música moda romances histórias em quadrinhos livros de imagem ilustrações programas de rádio e televisão notícia de jornal páginas da Internet performances relatos orais fotografias Leitura No Dicionário Aurélio Eletrônico para ficarmos só com a primeira acepção leitura é o ato ou efeito de ler E para o mesmo dicionário ler não só seria percorrer com a vista o que está escrito proferindo ou não as palavras mas conhecendoas pronunciar em voz alta recitar o que está escrito e ver e estudar coisa escrita como também perceber sinais signos mensagem com a vista ou com o tato compreendendolhes o significado observar algo ou certos sinais características etc percebendo intuindo ou deduzindo a significação decifrar ou interpretar o sentido de reconhecer perceber sentir adivinhar predizer dessa maneira Dicionário Aurélio século XXI Se somarmos as diversas acepções do verbete creio que nos aproximaríamos de uma compreensão inicial de leitura Entre as diversas acepções mencionadas acima destaco a que nos diz que ler é adivinhar predizer dessa maneira Ela nos leva ao texto onde Paulo Freire nos diz que a leitura do mundo precede a leitura da palavra FREIRE 2006 p 11 Da frase de Paulo Freire se depreendem pelo menos duas idéias centrais para a compreensão de questões relativas à leitura 1 a necessidade de conhecimentos prévios para se efetuar leituras penso que só assim adivinharíamos porque tivemos antes experiências que agora podem orientar nossa intuição 2 a capacidade leitora ser inerente à condição humana que se lançaria em busca pelo José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 272 significado mesmo antes de ser letrada o que ampliaria a noção de leitor leitura e texto incluindo idéias e práticas anteriormente não consideradas como leitoras Segundo Maria Helena Martins as inúmeras concepções sobre leitura resumemse a duas posições como decodificação mecânica de signos lingüísticos por meio de aprendizado estabelecido a partir do condicionamento estímuloresposta 2 como processo de compreensão abrangente cuja dinâmica envolve componentes sensoriais emocionais intelectuais fisiológicos neurológicos tanto quanto culturais econômicos e políticos perspectiva cognitivosociológica esta última concepção dá condições de uma abordagem mais ampla e mesmo mais aprofundada do assunto mas o debate decodificação versus compreensão parece estar se esvaziando Ambas são necessárias à leitura Decodificar sem compreender é inútil compreender sem decodificar impossível Há que se pensar a questão dialeticamenteMARTINS 1994 p 3132 Convém citar aqui que a autora acima mencionada considera leitura como um processo de compreensão de expressões formais e simbólicas não importando por meio de que linguagem MARTINS 1994 p 30 o que sem dúvida condiz com a noção ampliada de texto que aqui nos interessa Voltando no entanto à questão da necessidade de conhecimentos prévios para se efetuar a leitura hoje se sabe que ensinar leitura e aqui falamos da leitura do texto verbal significa não só iniciar os aprendizes no código lingüístico mas também e principalmente e mesmo até anteriormente levar em conta os conhecimentos que eles já trazem de sua vivência extraescolar o que incluiria aqueles que são específicos de seu contexto sócio cultural os textos que eles já dominam ou têm contato mais freqüente como os da oralidade os da linguagem visual os da linguagem musical os da linguagem corporal os da televisão que A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 273 parece ser em nosso país a língua geral e de outras linguagens as quais porventura eles tenham acesso A partir dessa diversidade textual que circularia fora da escola e que os alunos trazem consigo ou dizendo de outro modo a partir destes seus conhecimentos prévios se estabeleceriam pontes com os textos que nela circulam tornando a leitura algo a que se tem acesso porque menos distanciada do universo destes alunos e menos artificial notadamente às camadas oriundas de meios com baixo letramento Entender a leitura como um processo no qual o leitor participa com uma aptidão que não depende basicamente de sua capacidade de decifrar sinais mas sim de sua capacidade de dar sentido a eles compreendêlos Mesmo em se tratando da escrita o procedimento está mais ligado à experiência pessoal à vivência de cada um do que ao conhecimento sistemático da língua A leitura vai portanto além do texto seja ele qual for e começa antes do contato com ele MARTINS 1994 p 32 parece ser o modo de senão formar pelo menos atrair potenciais leitores Leitor O leitor não é uma instância de recepção passiva dos textos mas interage com eles produtivamente A obra precisa em sua constituição da participação do destinatário JOUVE 2002 p 61 Para Jauss o leitor se relaciona com o texto sempre e ao mesmo tempo receptiva e ativamente O leitor só pode fazer falar um texto isto é concretizar numa significação atual o sentido potencial da obra desde que insira seu préentendimento do mundo e da vida no espaço de referência literária envolvido pelo texto Esse préentendimento do leitor inclui as expectativas concretas que correspondem ao horizonte de seus interesses desejos necessidades e José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 274 experiências tais quais são determinadas pela sociedade e classe à qual pertence como também por sua história individual e também por experiências literárias anteriores JOUVE 2002 p 139 Se ler é buscar significado CARDOSOSILVA 2006 p 30 o leitor é um buscador E aquele que busca se movimenta investiga se esforça trata de descobrir se empenha a fundo aciona todo o seu íntimo para atingir um fim tentando superar as muitas dificuldades que o buscar pressupõe Tamanho investimento psíquico só pode acontecer quando motivado por um profundo desejo por um continuado entusiasmo por uma viva paixão Porque o ato de ler o ser leitor é impulsionado pelo desejo pelo entusiasmo pela paixão Desejo de saber Desejo de viver intensamente De conhecer a si mesmo De conhecer o outro De se sentir um outro De dar prazer ao cérebro De sentir emoções De compreender de se inserir na sociedade de forma autêntica De criticar a sociedade De escapar de uma vida medíocre e prédeterminada por ideologias espúrias De experimentar a beleza Para se formar leitores é necessário transmitir então o desejo o entusiasmo a paixão pela leitura Este papel é desempenhado na maioria dos casos dessa transmissão bem sucedida pelo mediador de leituras O mediador de leituras Mediador de leituras seria antes de tudo alguém que goste de ler e que leia muito e tenha interesse em compartilhar suas experiências leitoras seu repertório cultural A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 275 Qualquer um que se encaixe no perfil acima poderia ser este mediador um tio uma vizinha uma mãe um avô uma amiga um bibliotecário No entanto levandose em conta a situação sócioeconômica dominante no Brasil a escola é para a maioria das pessoas a única oportunidade de uma inserção ainda que mínima na cultura letrada Devido a estas circunstâncias mediador de leituras efetivamente em nosso país é o professor Cabe lembrar pelo exposto até aqui a necessidade deste mediador levar em conta os conhecimentos prévios de seus alunos Misto de leitor apaixonado pesquisador e agitador cultural sua função seria nãoprecisamente de ensinar a ler mas a de criar condições para o educando realizar a sua própria aprendizagem conforme seus próprios interesses necessidades fantasias segundo as dúvidas e exigências que a realidade lhe apresenta Assim criar condições de leitura não implica apenas alfabetizar ou propiciar acesso aos livros Tratase antes de dialogar com o leitor sobre sua leitura isto é sobre o sentido que ele dá repito a algo escrito um quadro uma paisagem a sons imagens coisas idéias situações reais ou imaginárias Enquanto permanecermos isolados na cultura letrada não poderemos encarar a leitura senão como instrumento de poder dominação dos que sabem ler e escrever sobre os analfabetos ou iletrados MARTINS 1994 p 3435 Este mediador de leituras ideal que por falar nisso existiria numa escola também ideal seria aquele que além de acolher os objetos culturais trazidos à escola pelos próprios alunos seus relatos orais inquietações conhecimentos e obras se investisse de espírito pesquisador inquieto e independente não se restringindo ao selecionar textos de qualquer natureza para a atividade de leitura José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 276 quer ao cânone quer apenas a seu gosto pessoal ou ao de seus alunos mas somando todas estas possibilidades dialeticamente Tal mediador que antes de tudo como anteriormente dissemos é alguém que gosta muito de ler e lê grande diversidade de textos livros quadros filmes peças teatrais poesia fotos canções por sua própria prática leitora consistente e inquieta teria condições de ensinar a língua da intertextualidade Intertextualidade A noção de intertextualidade diz respeito ao conjunto de relações que os textos mantêm entre si A intertextualidade envia tanto a uma propriedade constitutiva de todo texto como ao conjunto das relações explícitas ou implícitas que um texto mantém com outros textos MAINGUENEAU 1998 Por conseguinte deve ser entendida em sentido amplo e num sentido estrito Em sentido amplo a intertextualidade está presente de modo implícito em todo e qualquer texto pois na verdade o processo discursivo se estabelece sempre sobre um discurso prévio No dizer de Maingueneau retomando Gerard Genette todo texto hipertexto está implantado pela marca de seu gênero Já em sentido estrito a intertextualidade pode darse explicitamente através de citações referências resenhas paráfrases ou implicitamente através de certos operadores lingüísticos que permitem uma identificação sócio historicamente situada CARDOSOSILVA 2006 p 50 A intertextualidade no sentido amplo é o que garantiria a própria legibilidade dos textos Porque já li poemas anteriormente reconheço um poema quando me vejo diante de um e leioo como se lê um poema e não como leria por exemplo um manual de instruções para instalar uma impressora num computador um livro de receitas culinárias a coluna de horóscopos de uma revista ou um romance policial Cada um desses tipos de texto se organiza mais ou A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 277 menos conforme o seu gênero o que acaba por orientarlhes sua configuração e também a nossa compreensão Já no sentido estrito diz respeito às relações sejam elas explícitas ou implícitas como vimos nas citações acima que os textos mantêm com outros textos de qualquer natureza e que permitiriam sua identificação Tanto num caso como no outro para se poder exercer a leitura intertextual percebese a necessidade de leituras anteriores e de leitura constante A intertextualidade diz respeito aos fatores que tornam a utilização de um texto dependente do conhecimento de um ou mais textos previamente existentes compreendendo as diversas maneiras pelas quais a produção e a recepção de dado texto depende do conhecimento de outros textos CARDOSOSILVA 2006 p 48 A leitura intertextual por conseguinte pressupõe um leitor familiarizado com uma grande diversidade de textos Como diz Laurent Jenny A intertextualidade introduz um novo modo de leitura que solapa a linearidade do texto Cada referência textual é o lugar que oferece uma alternativa seguir a leitura encarandoa como um fragmento qualquer que faz parte da sintagmática do texto ou então voltar ao texto de origem operando uma espécie de anamnésia isto é uma invocação voluntária do passado em que a referência intertextual aparece como elemento paradigmático deslocado e provindo de uma sintagmática esquecida Esses dois processos operando simultaneamente semeiam o texto com bifurcações que ampliam o seu espaço semântico NITRINI1997164 165 Para que ocorra esta ampliação do espaço semântico este enriquecimento cultural proporcionado pela leitura intertextual a escola que como vimos anteriormente é para a maioria o único local onde seria possível se ter contato com uma grande diversidade José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 278 de textos deveria ser um espaço de ação cultural intensa local de acesso a livros a filmes a obras de arte das mais diversas linguagens local de discussão das obras local onde a expressão dos alunos é respeitada e estimulada local não apenas aonde se chega mas de onde se parte Mas para que tal ocorra seria necessário remover as pedras do meio do caminho As pedras do meio do caminho Como se sabe um dos objetivos mais importantes senão de todas pelo menos de grande parte das escolas particulares brasileiras é o treinamento de crianças e jovens para o competitivo mercado de trabalho tendo como alvos desse investimento o vestibular e consequentemente a futura faculdade que prometa uma colocação profissional rendosa A escola pública em sua grande maioria ainda se pauta por motivações alheias aos verdadeiros interesses de seus usuários Sendo assim não é de se estranhar a pouca importância que se dá nestas instituições à formação de leitores permanentes críticos reflexivos intertextuais e criativos afeitos às questões culturais de grande alcance Certamente no entanto a escola que temos não nasce por geração espontânea ela é uma construção social Imputarlhe todo o ônus do processo pode ser confortável mas inoperante Instituição da sociedade ela é seu retrato fiel Seria necessário para falar de promoção de leitura em nossa sociedade pensar a relação que esta mantém com o conhecimento como um todo Como escreveu Edmir Perrotti Separar a promoção da leitura dos processos gerais do saber como se os caminhos pudessem não se cruzar como se leitura e conhecimento não fizessem parte de A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 279 um mesmo quadro global de operações simbólicas de uma mesma trama de sentidos corresponde a uma visão compartimentada da cultura que parece não conseguirá ir muito longe enquanto fonte inspiradora de práticas promocionais qualquer tentativa de mudança nos rumos atuais deve perguntar em que medida o conhecimento o desejo de saber de descobrir é valorizado nas instituições de educação e cultura e na sociedade e entendido como desafio capaz de arrebatar o espírito conduzindo naturalmente crianças e jovens à pesquisa ao conhecimento logo à leitura PERROTTI 1990 p 74 Fazse necessário como continua o prof Perrotti a discussão aprofundada dessas questões para que não só se altere a representação social da leitura como se questione o descaso e a desconfiança com que se tratam em nossa sociedade o conhecimento o desejo de saber PERROTTI 1990 p 74 CONCLUSÃO Se conforme se lê na epígrafe deste trabalho a intertextualidade fala uma língua cujo vocabulário é a soma de textos existentes ensinar a língua da intertextualidade pressupõe como vimos até aqui o convívio intenso com grande variedade de textos de natureza variada Conforme dissemos anteriormente o local privilegiado para a prática desse convívio é a escola e o grande personagem desta aventura é o professor transformado aqui em mediador de leituras O mediador de leituras ideal como já mencionado seria aquele que lê muito e variadamente tendo por isso condições de relacionar textos entre si e de fazêlos falar aos novos leitores Seria aquele também capaz de acolher e respeitar o conhecimento prévio de seus alunos e de não só discutir como garantir e promover espaços de discussão das variadas leituras dos textos do mundo que seus alunos realizam José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 280 Esse mediador por sua vez só poderia existir numa escola que se concebesse como espaço de ação cultural intensa O que vale dizer só poderia existir numa escola inserida numa sociedade que valorizasse o conhecimento Não que não existam professores ou mediadores de leitura trabalhando com propósitos elevados em ambientes adversos como é a nossa sociedade Mas nesta como em outras questões uma andorinha só não faz verão ela se sai melhor voando em rede Por outro lado uma escola que se compreendesse como um autêntico centro de cultura como o local privilegiado de ação cultural intensa com objetivos para além de um pragmatismo redutor reeducaria transformaria a sociedade E é com uma escola assim que alguns de nós muitos de nós sonhamos REFERÊNCIAS CARDOSOSILVA Emanuel Prática de leitura sentido e intertextualidade São Paulo Associação Editorial Humanitas 2006 FERREIRA Aurélio Buarque de Holanda Dicionário Aurélio século XXI Versão 3 CDROM Rio de Janeiro Nova Fronteira Lexicon1999 FREIRE Paulo A importância do ato de ler em três artigos que se completam São Paulo Cortez 2006 JENNY Laurent A estratégia da forma In Intertextualidades Poétique nº 27 Coimbra Livraria Almedina 1979 JOUVE Vincent A leitura São Paulo Editora Unesp 2002 MAINGUENEAU D Termoschave da análise do discurso Belo Horizonte Editora da UFMG 1998 MARTINS Maria Helena O que é leitura São Paulo Brasiliense 1994 NITRINI Sandra Literatura Comparada história teoria e crítica São Paulo Editora da Universidade de São Paulo 1997 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 281 SECRETARIA de Educação Fundamental Parâmetros Curriculares Nacionais língua portuguesa Brasília MECSEF1997 PERROTTI Edmir Confinamento cultural infância e leitura São Paulo Summus editorial 1990 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 282 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 A ADAPTAÇÃO NA TRADUÇÃO DE LITERATURA INFANTOJUVENIL NECESSIDADE OU MANIPULAÇÃO Renata de Souza Dias Mundt INTRODUÇÃO Meu trabalho como tradutora de literatura infantojuvenil LIJ e a reflexão sobre essa atividade me levaram a rever alguns conceitos entre eles o de adaptação em tradução A distinção entre tradução e adaptação é controversa e tem sido discutida por vários autores No Brasil a prática editorial contudo já se antecipou ao desfecho desta discussão teórica a Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil FNLIJ por exemplo fundiu numa só categoria em 2005 as premiações de tradução e adaptação entendendo que não se pode estabelecer a priori fronteiras rígidas entre uma e outra Não é objetivo deste trabalho entrar no mérito dessa discussão Aqui o conceito de adaptação não é aquele adotado pelo mercado editorial em que uma obra adaptada traz expressamente essa indicação em sua folha de rosto e com isso se exime de qualquer compromisso que se possa estabelecer com um conceito de tradução de uma obra original Neste trabalho o termo adaptação referese exclusivamente a um procedimento de tradução que será detalhado a seguir mas que se poderia resumidamente definir como aquele em que a opção pela literalidade na tradução cede lugar a uma interferência e a uma alteração mais profundas Em se tratando da tradução de LIJ tais interferências não têm sua origem contudo exclusivamente em aspectos lingüísticos do par de línguas em questão qualquer que seja ele Como ocorre também com qualquer outra tradução há na tradução de LIJ várias instâncias participantes desse processo e nele interferentes leitores 283 críticos editores revisores ilustradores distribuidores educadores pais professores etc Cada uma dessas instâncias e não apenas o tradutor realiza adaptações na obra de LIJ traduzida de acordo com seus interesses sua visão da criança e da cultura de partida Um tematabu por exemplo pode ser eliminado ou alterado dentro de uma obra Jogos de palavras e brincadeiras com a língua também obrigam freqüentemente o tradutor a realizar adaptações Questões culturais costumam sofrer adaptações seja porque as instâncias acima citadas consideram que o leitor não vai compreendêlas seja porque elas diferem da visão que as mesmas têm da cultura de partida ou porque as próprias instâncias não as compreenderam Outro importante elemento da LIJ que costuma sofrer adaptações são as ilustrações muitas vezes refeitas de forma a refletir a visão que se tem da cultura de partida reforçando clichês e preconceitos além dos títulos quase sempre alterados por questões de mercado O presente texto não pretende esgotar a discussão de tema tão polêmico e extenso mas apenas apresentar alguns exemplos extraídos da prática incitando a reflexão crítica sobre o assunto CONCEITO DE ADAPTAÇÃO A adaptação é um procedimento adotado por tradutores quando surgem alguns elementos do texto original que seriam intraduzíveis literalmente e precisam ser então adaptados Schreiber 1998 define a adaptação como adequação à cultura de chegada com manutenção de equivalência situativa Na enciclopédia de Mona Baker o procedimento aparece definido como a seguir adaptation is a procedure which can be used whenever the context referred to in the original text does not exist in the culture of the target text thereby necessitating some form of recreation BAKER 2005 p 6 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 284 Alguns exemplos de elementos que podem exigir a adaptação por parte do tradutor são dados específicos de uma cultura como nomes títulos comidas costumes e hábitos jogos versos mitologia e folclore referências históricas e literárias Além disso podem exigir adaptação título aspectos estilísticos ritmo estilo e comprimento da frase dialetos socioletos e linguagem corrente jogos de palavras Algumas formas de adaptação possíveis são quando se trata apenas de um termo ou expressão a utilização do termo acrescentando uma explicação no próprio texto a substituição do termo expressão por um conteúdo explicativo tradução explicativa a omissão do termoexpressão o que pode ser problemático e obrigar à reformulação do conteúdo no qual ele está contido a utilização de uma explicação externa ao texto o uso de um termo equivalente o uso de um termo semelhante a simplificação ou seja o uso de um conceito mais geral no lugar de um específico a localização ou domesticação processo em que todo o conteúdo é aproximado do ambiente cultural do leitor da tradução Quanto a esse último método ele implica em um conceito mais geral que inclui a postura geral do tradutor eou de outras instâncias frente à tradução Ele pode optar por domesticála ou estrangeirizála when a reader is taken to the foreign text the translation strategy in question is called foreignization whereas when the text is accommodated to the reader it is domesticated PALOPSKI e OITTINEN apud COILLIE 2006 p 42 Umberto Eco 2007 por sua vez afirma logo na introdução ao seu livro na verdade já no título Quase a mesma coisa que praticamente não há tradução sem adaptação no sentido aqui adotado Eis o sentido dos capítulos que se seguem tentar compreender como mesmo sabendo que nunca se diz a mesma coisa se pode dizer quase a mesma coisa A essa altura o problema já não é tanto A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 285 a idéia de mesma coisa nem a da própria coisa mas a idéia de quase Quanto deve ser elástico esse quase Estabelecer a flexibilidade a extensão do quase depende de alguns critérios que são negociados preliminarmente Dizer quase a mesma coisa é um procedimento que se coloca como veremos sob o signo da negociação ECO 2007 p 1011 A definição dessa flexibilidade e da extensão do quase resultado da negociação do tradutor consigo mesmo e com as instâncias participantes do processo tradutológico dará o limite entre adaptação e manipulação A adaptação tem variações porém seu princípio máximo é ou deveria ser a manutenção de um aspecto essencial do original o seu conteúdo o seu aspecto lúdico informativo ancoragem em elementos conhecidos etc Uma das tarefas de um tradutor de LIJ é decidir quando fazer adaptações em respeito e consideração pelas limitações impostas pela faixa etária de seu leitor sem deixar de ser fiel ao original A fidelidade ao original é pressuposto imprescindível de qualquer tradução Fidelidade neste caso poderia ser traduzida por respeito e não deve ser confundida com a literaridade fidelidade à letra apud AUBERT 1993 A partir das definições acima podemos delimitar mais facilmente o que seria manipulação ou adaptação manipuladora aquela que se descola do original não é fiel a ele mas sim determinada por interesses preconceitos e muitas vezes desconhecimento das instâncias participantes do processo tradutológico ALGUMAS CARACTERÍSTICAS ESPECÍFICAS DA LITERATURA INFANTO JUVENIL E DE SUA TRADUÇÃO Antes de iniciar uma conceituação teórica do que seja literatura infantojuvenil gostaria de salientar que para a presente comunicação por questões práticas considero literatura infanto José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 286 juvenil aquela que foi escrita publicada para eou lida por crianças e jovens Como tratamos aqui da tradução de LIJ ela só pode ser analisada e discutida com base em livros que já estão no mercado mesmo que no estrangeiro e já foram firmados como LIJ mesmo que não tenham sido publicados como tal Público Como já constataram citaram e definiram vários teóricos a primeira e mais básica diferença entre a literatura adulta e a infanto juvenil é o público ao qual elas se dirigem Assim o produtor do texto seja o autor ou o tradutor deve conhecer as peculiaridades de seu leitor seu nível de desenvolvimento cognitivo sua bagagem cultural suas características dentro de sua cultura e a visão que a própria cultura e sociedade nela inserida têm dessa criança no caso do tradutor é preciso conhecer a visão das duas culturas Devido ao caráter de seu público podese dizer que a adaptação é mais freqüente na tradução de LIJ o nível cognitivo e a bagagem de conhecimento do leitor muitas vezes obrigam o tradutor a realizar adaptações do texto original que não seriam necessárias na literatura adulta pois freqüentemente um elemento de outra cultura não é conhecido nem compreendido pela criança Frank comenta essa dificuldade The affective and intellectual effort required to understand cultural difference is often beyond the capabilities of young readers necessitating interventions that focus on making the narrative transparent FRANK 2007 p 20 A fim de realizar essas adaptações quando necessário e ainda manter o seu caráter lúdico o tradutor de LIJ muitas vezes tem de usar de grande criatividade para adaptando um aspecto do texto conseguir ainda se manter fiel a outro Por outro lado freqüentemente os adultos participantes do processo tradutológico e A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 287 não apenas o tradutor tendem a ver a criança como um ser mais incapaz do que realmente é tomando a liberdade de realizar adaptações talvez desnecessárias que podem mesmo involuntariamente ser manipuladoras Fernando de Azevedo comenta um boom de LIJ medíocre nos anos 1950 como o surto de uma literatura banal vulgar e insuportável quer pela escassez de escritores de verdade que se dediquem a esse gênero quer pela suposição ilusória de ser fácil escrever para crianças AZEVEDO 1988 p 338 No livro de RiekenGerwing percebemos que essa postura não é exclusiva do mercado editorial brasileiro eocorre também na Europa Die niedrigere Bezahlung von KJl Übersetzungen resultiert vermutlich aus de Auffassung der Verlage dass zwischen KJl und EWl nicht unbedingt Kongenialität vorliege und dass es einfacher sei KJBücher zu übersetzen RIEKENGERWING 1995 p 165 Assimetria Pelo fato de seu público ser de faixa etária diferente de seus produtores a tradução de LIJ é um processo assimétrico do qual participam diversas instâncias Um adulto escreve um livro para crianças jovens o qual é selecionado e editado por adultos traduzido por um ou mais adultos revisado por adultos e por fim comprado também por adultos São sempre adultos produzindo para crianças Essa assimetria do processo tradutológico tem conseqüências para o trabalho do tradutor na medida em que ele tem de negociar com todas as instâncias participantes desse processo cada qual com sua visão da criança tentando sempre respeitar o princípio máximo de qualquer tradução que é o respeito ao original Além disso naturalmente a tradução também inclui a imagem que o tradutor José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 288 adulto tem da criança de sua cultura e da cultura de partida pois esta vai influenciar várias de suas decisões tradutológicas Além da imagem que cada instância tem da criança é preciso lembrar que a LIJ é publicada e traduzida apenas indiretamente para a criança os adultos que compram e recomendam os livros para as crianças funcionam como um filtro sendo que o que chega ao público final em princípio não são os livros escolhidos pelas crianças mas aqueles que os adultos consideram bons para elas KJBücher werden nur indirekt für Kinder und Jugen dliche übersetzt Vermittlergruppen wie Bibliothekare Eltern Lehrer etc üben indirekt oder direkt einen enormen Druck auf den Übersetzer hinsichtlich der Beachtung pädagogischer Prinzipien sowie Tabus aus so dass er sich in einigen Fällen zu Adaptionen und Auslassungen gezwungen sieht RIEKENGERWING 1995 p 88 Todos esses fatores fazem com que editores e outras instâncias desse processo muitas vezes atentem mais aos desejos e visão de mundo das escolas e pais do que aos das crianças seu público propriamente dito Realizando cortes mudanças omissões e outros tipos de adaptações manipuladoras apenas para satisfazêlos esquecendo a fidelidade ao original e conceitos de tradução Vejase o exemplo citado abaixo no item sobre ilustração da tradução do livro de Ricardo Azevedo Pobre Corinthiano Careca Função A função é um importante diferencial da LIJ Como em toda literatura sua função primordial é entreter informar provocar prazer estético A LIJ tem ainda a função de iniciar e socializar a criança leitora em uma cultura apud FRANK 2007 A fim de cumprir todas as suas funções a LIJ precisa antes de mais nada cativar o interesse do leitor infantil e para tanto deve ter sempre presente o A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 289 elemento lúdico Este muitas vezes está calcado em fatores culturais já conhecidos da criança pois para ela é mais fácil partir do conhecido para então chegar ao desconhecido novas informações o riso a crítica etc e como já comentado acima freqüentemente dados culturais específicos precisam ser adaptados O lúdico pode se dar também por meio de um jogo lingüístico como um jogo de palavras rimas deslocamento de significados significantes Um exemplo interessante e bastante ilustrativo é o da tradução feita por mim do livro de Paul Maar para o português Uma semana cheia de sábados 2001 2004 O autor desconstrói a linguagem em seu livro para que a criança possa entender os seus mecanismos de funcionamento Esse é o caso por exemplo do fio condutor do livro uma brincadeira com os dias da semana Para que Ábado personagem central do livro apareça em um sábado é preciso que haja uma série de coincidências no decorrer de uma semana Estas referemse aos nomes dos dias da semana os quais em alemão podem ser secionados em partes significativas Ábado só aparece em uma semana especial na qual cada dia da semana transcorre de acordo com o que seu nome sugere Paul Maar desmonta os substantivos referentes a cada dia da semana criando um novo significado para cada um explicando ao leitor que tais vocábulos são compostos por morfemas que têm significado próprio isoladamente Ele não se reporta em seu jogo ao significado etimológico de cada parte componente dos nomes dos dias da semana mas se põe no lugar da criança e alude ao significado aparente e imediato das palavras que nem sempre coincide com o seu significado histórico Por exemplo Sonntag seria dia de sol Dienstag dia de trabalho Donnerstag dia de trovão e assim por diante Como seria impossível se reproduzir este jogo em português optei pela rima com a anuência do autor recurso recorrente e traço marcante da narrativa José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 290 Original Tradução literal Tradução final Jetzt sagte sich Herr Taschenbier konnte es kein Zufall mehr sein Am Sonntag Sonne Am Montag Herr Mon mit Mohnblumen Am Dienstag Dienst Am Mittwoch Mitte der Woche Am Donnerstag Donner und am Freitag Frei Deshalb saß Herr Taschenbier am Samstag erwartungsvoll in seinem Zimmer und fragte sich was der Tag bringen würde MA AR 1994 pg 11 Agora disse seu Ce reja para si mesmo não podia mais ser coincidência no domingo sol Na segunda seu Mon com papoulas Na terça trabalho Na quarta meio da semana Na quinta trovão e na sexta dia livre Por isso no sábado seu Cere ja estava sentado ansioso em seu quarto e se perguntava o que aconteceria naquele dia Agora não podia mais ser coincidência domingo estava um dia lindo sem nem um pingo e ele encontrou seu cachimbo segunda seu Ca tunda vem lhe fazer uma visi ta e cai de bunda na terça foi tomar a fresca teve dor de cabeça e pulou a cerca na quarta recebeu uma carta e encontrou uma lagarta na quinta ficou cheio de pintas que eram manchas de tinta na sexta foi picado por uma vespa e seu chefe estava com cara de besta Por isso seu estava sentado em seu quarto no sábado cheio de expecta tivas tentando imaginar o que o aguardava naquele dia MAAR 2004 pg 9 Outro exemplo de um livro ainda não traduzido mas que representaria um grande desafio ao tradutor é Chiquinho quinta feira IACOCCA 2004 de Liliana Iacocca A autora baseia toda a narrativa num jogo de palavras que exigiria grande criatividade de seu tradutor a fim de manter a intenção da autora É interessante observar que o livro foi republicado em 2004 mas originalmente escrito em 1985 numa época em que sua autora trabalhava como jornalista especializada em criar enigmas charadas palavras cruzadas e passatempos Sem me ater a todas as situações e trechos do livro que poderiam representar problemas em uma tradução gostaria de citar um trecho bastante significativo para reflexão Entre todas as metáforas e simbolismos presentes no livro destaco o capítulo chamado A mulher descarada Aqui entra voando pela janela do A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 291 quarto de Chiquinho uma mulher com uma panela cheia de sopa na mão que fala sem parar Fiquei pensando a mulher não tinha cara e não tendo cara não poderia ter boca e se é da boca que saem as palavras por onde saíam as palavras da mulher Fiquei tão encucado com isso que nem ouvia mais o que a mulher estava falando E ela falava pelos cotove los Era isso mesmo Que incrível A mulher falava pelos co tovelos A descoberta me deixou curioso e como eu nunca tinha visto alguém falar pelos cotovelos comecei a prestar atenção As palavras iam saindo dos dois cotovelos da mulher como se eles fossem os altofalantes de um aparelho de som e eu fiquei ouvindo muitas receitas de sopa Até que comecei a ficar enjoado era sopa demais e decidi acabar com aquela conversa Perguntei de re pente Cadê a sua cara Acho que ela não escutou pois continuou falando como se nada tivesse acontecido contando sobre uma sopa que tinha inventado com restos de outras sopas Então gritei bem forte na frente da cara que ela não ti nha Cadê a sua cara O que é que tem a minha cara perguntou ela Apoiou a panela em cima da cadeira da minha escriva ninha levantou os braços passou as duas mãos pelo rosto pelado e quase teve um ataque Cadê a minha cara Onde foi que deixei a minha cara Ah Eu sei eu sei foi a minha filha Eu sei que foi ela quem pegou a minha cara só para ficar parecida comi go Ela sempre quis ter a cara que eu tenho Enquanto a mulher falava da filha eu de curioso fui espiar e investigar a panela para ver a cara da sopa José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 292 Foi incrível Eu não fazia idéia de como era a cara da mulher antes de ela perder a cara na panela de sopa mas achei que a nova cara era a cara dela IACOCCA 2004 p 57 ss Todo o trecho aqui apresentado é baseado na interpretação literal de expressões convencionais e idiomáticas Seria impossível traduzilo para qualquer outra língua sem realizar adaptações Provavelmente todo o conteúdo teria de ser mudado a fim de se manter o jogo entre significado literal e idiomático das expressões pois caso contrário seria perdido todo o caráter lúdico surreal e crítico da narrativa Gostaria de salientar ainda que as ilustrações do livro acompanham a narrativa portanto a adaptação de seu conteúdo obrigaria também a adaptação refação das mesmas Ilustração Um outro elemento bastante característico da LIJ é a ilustração Ela não apenas enfeita a obra infantil mas facilita a sua leitura e é parte integrante da obra Algumas vezes a ilustração espelha o conteúdo do livro outras completao e complementao trazendo novas informações e novos níveis de leitura e interpretação ao leitor Seu papel é essencial nesse tipo de literatura e portanto não pode ser ignorado pelo tradutor Algumas vezes o tradutor precisa apenas atentar a ilustrações em que há inscrições na língua estrangeira outras vezes a alteração do conteúdo de uma obra pode entrar em conflito com a ilustração vide comentário acima sobre o livro de IACOOCA Há também o caso dos chamados livros ilustrados nos quais a ilustração tem mais força que o texto Um exemplo interessante de tradução é o livro de Brigitte Minne e An Candaele Bons sonhos Rosa 2003 um A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 293 típico livro ilustrado traduzido do holandês e no qual a lua personagem central é um homem pois em holandês essa palavra pode ser tanto masculina quanto feminina Figura Senhor Lua Como a ilustração é elemento essencial do livro optouse por mantêla o que obrigou a tradutora a transformar a lua2 em senhor lua o que causou grande estranhamento entre o público leitor Não pretendo aqui discutir se a decisão da editora foi acertada ou não mas apenas chamar a atenção para a importância e as conseqüências que podem advir da adaptação ou não de um elemento da obra e de como ela é feita A solução encontrada foi inserir uma explicação da tradutora na contracapa do livro Há casos em que a alteração da ilustração pode acarretar mudanças em uma tradução ou em sua interpretação Este é o caso do livro de AZEVEDO 1998 Pobre Corinthiano Careca premiado pela APCA e traduzido na Alemanha AZEVEDO 2000 A editora alemã Elefanten Press por uma decisão do ilustrador Silvio Neuendorf e da 2 NOTA DA TRADUTORA A palavra Lua na língua holandesa original do livro pode ser considerada tanto do gênero masculino quanto do feminino Nesta obra foi opção do ilustrador caracterizála como masculino MINNE e CANDAELE 2003 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 294 editora Marion Schweizer como ela mesma me informou por email transformou José Pedro a personagem central do livro num menino mulato Todas as ilustrações do livro foram refeitas todas as personagens se tornaram mulatas Além disso foram feitas também outras pequenas alterações e omissões no texto que corroboram a mesma visão clichê do Brasil transmitida pelas novas ilustrações Tais interferências acarretaram uma interpretação bastante diferente do texto pelo leitor alemão Este é um caso típico em que editores ao invés de utilizarem o livro como transmissor de dados a respeito de uma nova cultura interpretaramno segundo a sua própria visãoclichê da cultura brasileira apresentandoa ao seu leitor sem respeitar a visão certamente mais rica e multifacetada do autor e ilustrador da obra original Aqui não há nenhuma justificativa tradutológica para essa alteração mas apenas manipuladora Seguem as ilustrações de capa do original e da tradução Figuras capas do livro de Azevedo publicadas na Alemanha e no Brasil A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 295 CONCLUSÃO Devido ao perfil de seu público que torna o lúdico as brincadeiras os jogos e as referências a dados culturais quase sempre presentes na LIJ o conceito de tradução para a criança e o jovem engloba necessariamente a adaptação Além disso esse mesmo público muda a relação das instâncias interferentes com a obra e acrescenta novas inexistentes no caso da literatura publicada para adultos por exemplo Refirome aqui aos intermediadores como escola pais mentores etc que levam a obra até a criança Ou seja raramente esse leitor escolhe o que vai ler Sendo assim o mercado editorial ao publicar um livro para crianças considera não só o seu público leitor mas também o público intermediador Essas duas características podem criar duas distorções no processo tradutológico com a mesma conseqüência a manipulação de seu conteúdo Por considerar a criança um ser menos sabedor em fase de aprendizagem muitos adultos consideram a literatura dirigida a ela mais fácil e menos importante ou de menor valor Isso leva a que sejam menos cuidadosos ao escrevêla ao traduzila revisála ao escolhêla e mesmo ao escolher seus tradutores por exemplo Muitas vezes a escolha de um excelente tradutor de literatura adulta não é a mais acertada para um livro infantil pois ele não obrigatoriamente conhecerá as fases de desenvolvimento e o universo da criança a ponto de saber julgar por exemplo quando e como adaptar Da mesma forma a assimetria do processo faz com que os adultos participantes do mesmo quando partilham da visão acima mencionada se sintam à vontade para interferir no texto traduzido manipulandoo a fim de transmitir às crianças sua visão de mundo ou eliminando conceitos que considerem tabu com os quais não José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 296 concordem ou mesmo alterandoos em função dos seus compradores pais educadores mentores etc e não de seus leitores Assim a discussão e os exemplos aqui apresentados de adaptações necessárias desnecessárias nãoadaptações e suas conseqüências pretende apenas lançar uma primeira semente para a reflexão sobre a ética na tradução de LIJ que deve ser conseqüência do respeito pelo seu leitor um ser em formação mas nem por isso desprovido de perspicácia e capacidade de discernimento e pelos seus tradutores que a fim de realizar bem seu trabalho têm de conhecer os fundamentos da tradução e o universo infantil Esse tradutor certamente ao negociar com todas as instâncias envolvidas no processo tradutológico terá como base o respeito e a fidelidade ao original e ao público leitor gerando uma obra final que realmente seja quase a mesma coisa na acepção de Eco que a original REFERÊNCIAS AMORIM L M Tradução e adaptação Entre a Identidade e a Diferen ça os Limites da Transgressão São Paulo Ed UNESP 2006 AUBERT F H As InFidelidades da Tradução Servidões e Autonomia do Tradutor Campinas Editora da UNICAMP 1993 AZENHA Jr J A tradução para a criança e para o jovem a prática como base da reflexão e da relação profissional Pandaemonium Germanicum Revista de Estudos Germânicos São Paulo Humanitas 2005 p 367392 AZEVEDO F de A formação e a conquista do público infantil In LA JOLO M e ZILBERMAN R Literatura infantil brasileira história e his tórias 2 ed São Paulo Ed Ática 1988 p 334341 AZEVEDO R Pedro träumt vom großen Spiel Trad Nicolai von SchwederSchreiner ilustr Silvio Neuendorf 2ª ed SL Elefanten Press 2000 Pobre Corintiano Careca São Paulo Ática 1998 BAKER M ed Routledge Encyclopedia of Translation Studies Lon don New York Routledge 2005 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 297 BELL R T Translation and Translating Theory and Practice London New York Longman 1991 CANDAELE A e MINNE B Bons sonhos Rosa TradVania Maria Ara újo de Lange 3ª reimpres São Paulo Brinquebook 2006 COELHO N N A Tradução Núcleo Geratriz da Literatura Infan tilJuvenil Ilha do Desterro Florianópolissn n17 1 sem 1987 p 2132 Literatura Infantil Teoria análise didática 6 ed revista São Paulo Ática 1993 COILLIE J V e VERSCHUEREN W P ed Childrens Literature in Translation challenges and strategies Manchester St Jerome 2006 COLOMER T A formação do leitor literário narrativa infantil e juvenil atual Trad Laura Sandroni São Paulo Global 2003 ECO U Quase a mesma coisa Trad Eliana Aguiar Rio de Janeiro Record 2007 IACOCCA L Chiquinho quintafeira Ilustr Michele Iacocca São Pau lo Edições SM 2004 LAJOLO M e ZILBERMAN R Literatura infantil brasileira história e histórias 2 ed São Paulo Ed Ática 1988 MAAR P Eine Woche voller Samstage Hamburg Friedrich Oetinger 2001 MAAR P Uma semana cheia de sábados Trad Renata Dias Mundt São Paulo Ed 34 2004 NORD C Ausrichtung an der zielkulturellen Situation In SNELL HORNBY M et al Handbuch Translation Tübingen Stauffenburg Verlag 1998 p 144146 OSULLIVAN E Kinderliterarische Komparatistik Heidelberg Winter 2000 OITTINEN R No Innocent Act On the Ethics of translating for Child ren In COILLIE J V e VERSCHUEREN W P ed Childrens Litera ture in Translation Challenges and Strategies Manchester St Jero me Publishing 2006 p 3545 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 298 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 PIAGET J A formação do símbolo na criança Imitação jogo e sonho imagem e representação 2 ed trad Álvaro Cabral Rio de Janei roZahar Editores 1975 REISS K e VERMEER H Grundlegung einer allgemeinen Translationstheorie 2 ed TübingenMax Niemeyer Verlag 1991 RIEKENGERWING I Gibt es eine Spezifik kinderliterarischen Übersetzens Frankfurt am Main Berlim Bern Nova York Paris Wien Peter Lang 1995 SCHREIBER M Übersetzungstypen und Übersetzungsverfahren In SNELLHORNBY M et al Handbuch Translation Tübingen Stauffen burgVerlag 1998 p 151154 SNELLHORNBY M et al Handbuch Translation Tübingen StauffenburgVerlag 1998 299 O ATRATIVO E O NUTRITIVO A IMAGEM DO ALIMENTO NA LITERATURA PARA CRIANÇAS Daniela Bunn INTRODUÇÃO Numa sociedade de consumo que se alimenta pouco de literatura podemos pensar no valor nutritivo do alimento em relação ao texto literário Precisamos primeiramente acordar os sentidos para a boa degustação Como levar o texto para ser saboreado pela criança é um grande desafio função na maioria das vezes desempenhada somente pelo professor Escolhemos alguns textos que de forma lúdica e muitas vezes surreal contribuem para o processo de sedução do leitor principalmente pelo foco de suas narrativas o campo semântico do alimento Procuramos ao pesquisar a imagem do alimento na literatura analisar a interface entre o atrativo o livro e o nutritivo o ato de ler e mostrar como esta se processa por meio dos jogos de linguagens A idéia de trabalhar com a temática do alimento surgiu de uma metáfora utilizada por Cyana LeahyDios A autora utilizou uma imagem alimentar para mostrar a situação de professores de literatura que na maioria das vezes oferecem aos alunos uma alimentação pouco nutritiva O quadro atual mostra professores de literatura simplesmente arrumando em uma bandeja didática a refeição pouco nutritiva imposta em sua formação e preparada pelos livros didáticosi A partir dessa metáfora usada por LeahyDios e do interesse prévio em pesquisar a produção brasileira contemporânea voltada para a infância passamos a recolher textos literários e críticas que usassem tal imagem Vejamos uma pequena fatia dessa pesquisa diluída nos dois itens subseqüentes um faz uma breve José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 300 análise da ocorrência e do uso da metáfora alimentar e o outro costura fragmentos de críticas e de textos literários O USO DA METÁFORA ALIMENTAR Vários dos sermões analisados no Brasil entre os séculos XVII e XVIII eram baseados fundamentalmente em metáforas alimentares Em uma sociedade na qual a oralidade era a principal forma de difusão do conhecimento tais metáforas eram muito recorrentes Pe Antônio Vieira no Sermão de Nossa Senhora do Rosário no ano de 1654 fundamenta seu sermão numa analogia do corpo o corpo de Cristo que é alimento para alma chamando a atenção para o ato de ruminar ao modo de alguns animais comer remoer muito devagar o que comeram A analogia entre o ato de comer e o ato de pregar remonta à tradição medieval que oferece a palavra do pregador como alimento espiritual para as almas necessitadas e famintas São Bernardo 10901153 Abade de Claraval afirma que um alimento indigesto mal cozinhado produz maus humores e em vez de nutrir o corpo corrompeo assim também pode darse o caso de o estômago da alma que é a memória ao ingerir muitos conhecimentos que não foram cozinhados pelo fogo do amor e nem passaram pelo aparelho digestivo da alma apud MASSIMI 2006 p 259 Marina Massimi 2006 afirma que o uso dessas metáforas baseavase em dois pilares fundamentais Aristóteles e Platão Desse modo segundo a autora os sermões constituíramse numa modelagem dos comportamentos sociais e adquiriram grande significação em relação à história do uso de metáforas alimentares com função antropológica pois comparam o processo de conhecer ao de ingerir alimentos Neste sentido essas metáforas ajudavam a fundamentar o ciclo pedagógico dos sermões Na hierarquia da primeira Idade Moderna a comida era destinada e classificada A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 301 segundo o grau de nobreza do consumidor pois se acreditava que cada um deveria consumir o alimento adequado à sua natureza Assim alimentos próximos da terra eram considerados inferiores e destinados às classes sociais mais pobres em oposição aos alimentos elevados na direção do céu que eram considerados superiores Os voláteis por exemplo eram considerados comida adequada para príncipes e reis os nobres consumiam mais perdizes e carnes delicadas pois acreditavase que isso conferia mais inteligência e sensibilidade em comparação aos que comiam porco por exemploii Para Flandrin Montanari em História da alimentação 1996 a função religiosa da alimentação remonta ao terceiro milênio antes de Cristo na Mesopotâmia onde a homenagem aos deuses era feita por meio de oferendas alimentares carnes pão leite cerveja e vinho Segundo os autores a função social do banquete muito ressaltada no mundo grego e romano girava em torno do convívio e da troca de cortesias ocasionando um importante elemento de distinção entre o homem civilizado o bárbaro e os animais O homem civilizado come não somente e menos por fome para satisfazer uma necessidade elementar do corpo mas também e sobretudo para transformar esta ocasião em um ato de sociabilidade em um ato carregado de forte conteúdo social e de grande poder de comunicação nós não nos sentamos à mesa para comer lemos em Plutarco mas para comer jun tos Segundo certa etimologia o termo cena deriva da idéia de comer em comum O convivium é a própria imagem da vida em comum cum vivere FLANDRIN MONTANARI 1996 p 108 Nesse contexto o Banquete ou Simposium de Platão como lembra Massimi 2006 é caracterizado como expressão da função social e cultural do convívio à mesa Alberto Magno em De nutrimento et nutribili enfatiza que a questão mais importante em relação à alimentação é a qualidade do alimento para tanto fazse necessário conhecer o processo alimentar e seus efeitos Se José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 302 pensarmos na literatura não é muito diferente somos este homem civilizado que come ou lê não somente por necessiade Quando comemos pensamos sim na qualidade do alimento mas a pergunta é e quando damos de comer aos nossos alunos somos também criteriosos No primeiro e segundo tomo de História da alimentação no Brasil 1967 1968 Câmara Cascudo expõe o percurso da sociologia do alimento no cardápio tradicional indígena africano e português em relação à constituição do comum na comida nacional porém referese sempre à alimentação e não à nutrição Na Antologia da alimentação no Brasil publicado em 1977 os textos recolhidos dão ênfase desde a higiene da mesa às iguarias regionais do Brasil e falam da digestibilidade dos alimentos dos regimes alimentares mistos dos condimentos das cantigas entoadas na feitura da comida das descrições de Frei Manuel de Santa Maria Itaparica 17041768 sobre os limões melões araçás e ananás dos comentários de Debret da Viagem em redor do almoço de João Chagas 1863 1925 Os trabalhos de Câmara Cascudo e de Flandrin e Montanari nos ajudaram a montar um panorama da história e da sociologia alimentar e servem como aporte teórico para adentrar no estudo da imagem do alimento na literatura e na sua relação com a infância Para tanto optamos por privilegiar textos curtos de autores brasileiros que não escreveram somente para crianças mas que podem ser lidos por crianças A metáfora do alimento parecenos apropriada sendo que nos alimentamos também da leitura devoramos livros quando estamos com fome salivamos ao ler a descrição de uma cena podemos até sentir o cheiro das gostosuras da Dona Benta No emaranhado de emoções e lembranças de uma infância que não nos abandona é que se mistura o alimento como ingrediente de muitas histórias a cesta levada à vovó por A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 303 Chapeuzinho Vermelho a casa comestível em João e Maria o banquete servido pelo Rei ao sapo em Henrique de Ferro mais conhecido como A princesa e o sapo as ceias de Ano Novo vistas pelas janelas pela Pequena vendedora de fósforos dentre outras Assim a imagem do alimento permeia não só as antigas histórias da tradição oral que segundo Cecília Meireles são os primeiros livros da criança e os contos contemporâneos como também a própria crítica literária OS HÁBITOS ALIMENTARES DOS PEQUENOS Cecília Meireles em Problemas da literatura infantil livro que reúne três conferências proferidas em Belo Horizonte em 1949 usa se de metáforas alimentares em suas considerações a literatura não é como tantos supõem um passatempo É uma nutrição grifo da autora Ao falar da literatura de tradição oral Meireles afirma que era dela que se nutria a criança antes do livro recebendoa como um alimento natural nos primeiros anos da vida grifo nossoiii Usando termos como nutrição receita e alimento a autora aproxima do leitor suas idéias como os sermões tentavam se aproximar do quotidiano de seus expectadores Como já apontava a escritora nos fins da década de quarenta o problema não era muito menos hoje de carência e sim de abundância de livros o que em nosso texto chamamos de atrativos Títulos multiplicamse nas prateleiras mas a nossa preocupação é se eles chegam efetivamente à mesa do leitor e se tornam nutritivos por meio da leitura Werner Zotz em Livro que te quero livre escreve sobre a preferência do pequeno leitor pois tão importante quanto desenvolver e melhorar o paladar literário no jovem leitor é entregar lhe um livro do qual goste 2005 p 25 e completa sobre o prazer da leitura não existe uma receita pronta pelo menos eu não a José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 304 conheço O educador vai precisar usar toda sua sensibilidade tendo em mente que cada situação e ocasião têm aspectos muito particulares p 31 Bordini e Aguiar em Literatura a formação do leitor 1988 trabalham os interesses do leitor na escolha do texto literário como ponto fundamental para a aquisição do gosto pela leitura Além disso é necessária a provocação de novos interesses a fim de aguçar o senso crítico e a preservação do caráter lúdico do jogo literário O lúdico é indispensável na relação entre leitor e obra literária pois precede e facilita a desconstrução do conhecimento estimula a percepção e atua nas descobertas nas relações a serem estabelecidas e nas funções a serem conhecidas Benjamim lembranos nos textos recolhidos em Reflexões sobre a criança o brinquedo e a educação 2004 que as crianças sabem jogar e brincar e atribui aos adultos convencido sobre a pobreza da experiência uma certa incapacidade de magia O escritor ainda adverte sobre a polissemia do jogo o duplo sentido tanto jogo como brincadeira a essência do brincar não é um fazer como se mas um fazer sempre de novo transformação da experiência mais comovente em hábito assim comer dormir vestirse lavarse devem ser inculcados no pequeno irrequieto de maneira lúdica com o acompanhamento do ritmo de versinhos 2004 p 102 Compactuando com essa idéia Gianni Rodari escritor italiano discute sobre o jogo que se põe à mesa na hora das refeições e os personagens criados pelos pais o que dá ao ato de comer um significado simbólico comer tornase um ato estético Com os capítulos Comer e brincar de comer e Histórias à mesa do livro Gramática da Fantasia 1985 Rodari sugere o híbrido de fábulas que podem ser criadas à mesa como a Madame colher e suas aventuras românticas com um garfo e sua terrível rival a faca Nessa nova situação a fábula se duplica de um lado sugere ou provoca os movimentos reais da colher A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 305 objeto de outro cria a madame colher na qual o ob jeto é reduzido a um outro nome apenas com uma vir tude evocadora Madame Colher era bem alta e muito magra e tinha uma cabeça tão grande e tão pesada que não parava em pé e achava mais cômodo andar de pontacabeça Assim via todo mundo ao contrário e só tinha idéias do avesso 1982 p 96 Rodari escritor que sofreu um certo reducionismo no âmbito escolar por ser estudado apenas pelos seus textos de cunho pedagógico assinala a fome como uma das grandes tragédias do século XX fome tanto do corpo como da alma O escritor afirma que ambos corpo e alma precisam ser nutridos talvez por isso seus textos reflitam essa profunda ligação com o alimento Rodari envolve o leitor no saboroso mundo da leitura por intermédio de uma escrita lúdica e surreal Prosa e verso unemse aos textos críticos e contribuem para tornar o ato da leitura uma degustação nos termos do escritor fantástica O livro Fábulas por telefone com uma edição brasileira em 2006 apresenta histórias curtas porque são contadas por um caixeiro viajante pelo telefone à sua filha antes de dormir No livro temos a ocorrência de uma mansão de sorvete uma cozinha espacial os homens de manteiga a febre comilóide a senhora Apolônia de geléia a rua de chocolate a história do reino da comilança o caramelo instrutivo No conto Os homens de manteiga Rodari conta a história de um grande viajante que explorou um país no qual todos os homens eram de manteiga esses homens derretiam ao se expor ao sol eram obrigados a viver sempre na sombra e moravam numa cidade em que no lugar de casa havia um monte de geladeiras 2006 p 38 Em A mansão de sorvete o teto era de chantili a fumaça das chaminés de algodãodoce as portas as paredes e os móveis de sorvete Um menino bem pequenininho agarrouse aos pés de uma mesa e lambeu um de cada José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 306 vez até que a mesa caiu em cima dele com todos os pratos RODARI 2006 p 21 Ferreira Gullar no poema A Jia e a Jibóia em Dr Urubu e outras fábulas 2005 p 42 conta a história de um sapo ou uma sapa que se vendo a ponto de ser devorada pela jibóia decide convencêla do contrário Responde a cobra Tolice Tou nem aí pra crendice Matar a fome é um direito de todo e qualquer ser vivo Tudo o mais é preconceito Passar fome é que é afronta Eu de comer não me privo E você que come inseto Acha que isto é correto Outra sugestão apetitosa é o livro de Jonas Ribeiro Poesias de dar água na boca com ilustrações de André Neves que nos oferece um cardápio poético para a semana inteira desde comida japonesa até uma sobremesa mineira passando pela Vila da comilança e pela Escola Água na Boca Pensando nas relações familiares temos o livro de Simone Schapira Wajman intitulado O ovo e o vovô 2001 com ilustrações de André Neves que compara o vovô à frágil vida de um ovo por fora parecia duro como a casca do ovo mas por dentro era mole mole como a clara e a gema o vovô brilhava como a gema dava beijo estrelado como ovo Já no poema Hortifrutigranjeiros Sérgio Capparelli 2007 p 96 lembra principalmente da alface Ajuntar alface com jaca Dá pepino por aqui A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 307 Não somos bananas Ou conversamos abobrinha E se quiser saber plantamos bata ta sim mas pra quebrar um galho ou descascar abacaxi Ajuntar alface com jaca dá pepino por aqui Murilo Mendes em Amostra da poesia local 1994 p 185 também nos fala da alface Tenho duas rosas na face Nenhuma no coração No lado esquerdo da face Costuma também dar alface No lado direito não Em outro poema A alface aérea Ricardo da Cunha Lima 2007 p 37 narra um fato amalucado Este fato amalucado Ocorreu no mês passado Uma alface bem verdinha Já lavada pra salada E que estava repousada Sobre a mesa da cozinha De repente se mexeu Suas folhas agitou E a seguir se debateu Bateu folhas e voou Sabor de Sonho 1997 de Cláudio Feldman conta a história de um sonho que conto neste momento Sonhei que estava na terra em que tudo era alimento José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 308 O chão com trechos de paço quinha tinha buracos de queijo e pedras de batatinha Os sítios eram cercados Por muros de pirulitos E os galos dos cataventos Que delícia estavam fritos Em Traças de regime poema de Sérgio Capparelli do livro 111 poemas para crianças 2007 p 34 As traças gostam de suspense Lêem com cuidado E de olhos fechados Se estão com pressa Comem sanduíches de escritores importantes Cecília Meireles Lygia Bojunga Hesíodo e os deuses gregos Elas dão conselhos as histórias lacrimejantes são me lhores Porque facilitam a digestão E estamos conversados Traças iletradas são sem cerimô nia Comem heróis heroínas enredos E no fim devoram o autor Ah as traças como evitálas Comem Mario Quintana devoram os dois A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 309 Verissimos Pai e filho E de sobremesa encomendam es critores bem Românticos Olha lá vai uma arrotando Lobato A partir dessa pequena amostragem de textos que se relacionam com a questão alimentar identificamos algumas categorias o alimento como personagem que ganha vida bate asas e voa como no poema A alface voadora de Ricardo da Cunha Lima o alimento sendo comparado a um personagem como no livro de Wajman O vovô e o ovo ou no poema Hortifrutigranjeiro de Sérgio Capparelli no qual o escritor usase dos jogos de linguagens e dos ditos populares para montar o poema o alimento compondo objetos como em Sabor de Sonho de Cláudio Feldman que fala de um delicioso sonho num lugar em que tudo era comestível assim como no conto A mansão de sorvete de Rodari o alimento implícito no próprio ato de devoração animal no ato de comer no poema de Ferreira Gullar Podemos individuar ainda pensando num prato bem nutritivo personagens vegetarianos como em Pequenos Assassinatos de Affonso Romano de SantAnna os gostos da terra da batata e do mingau de cará em Eloí Bocheco o almoço no Tchau de Lygia Bojunga o pato na panela ou a Feijoada à minha moda de Vinicius de Moraes a vontade da faminta princesa Tiana de comer pizza de maçã no livro de Márcio Vassallo as frutas do pomar de palavras de Werner Zotz o prato de macarrão em Elias José uma limonada em Ana Maria Machado ou ainda as saudades em Ruth Rocha que na aurora da vida não gostava da comida mas tinha que comer mais O ato de comer nessas histórias poderia ser dividido em dois momentos personagens que comem e que são comidos neste ponto cabe revisitar os clássicos e também fazer tal distinção José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 310 Pensando na relação nutritivoatrativo não podemos deixar de mencionar o papel do professor Segundo Di Santo 2007 p 4 Falando em aprendizagem como alimentação podemos traçar um paralelo com a famosa história da Branca de Neve e os sete anões onde a maçã embora com uma aparência apetitosa estava envenenada e deixou a he roína num sono profundo por muito tempo Da mesma forma se for oferecido ao aluno um conhecimento des contextualizado que não desperte sua curiosidade e vontade de aprender ele permanecerá desligado No entanto se a aprendizagem for como uma maçã re almente saborosa e sadia o aluno a comerá com prazer e sua digestão será leve e rápida Ele sempre se lem brará com satisfação desse momento prazeroso e pro curará aplicar o que aprendeu em outras circunstâncias de sua vida E isso tem a ver com a didática do profes sor Se aprender é como se alimentar tanto o educan do quanto o educador se alimentamaprendem O professor segundo Di Santo deve estimular o apetite do aluno pois mesmo quando não estamos com fome sentimos vontade de comer ao vermos algo que nos estimula Realmente para cada aluno que o professor ofertar o seu conhecimentomaçã a forma de mastigar e engolir será diferente única Para um aluno a maçã dará dor de barriga para outros provocará alguns quilos a mais para alguns a quantidade de maçã será pouca e para outros suficiente Há os que vão considerar a quantidade excessiva não conseguindo engo lirabsorver tudo Os conhecimentos precisam ser mastigados engolidos e digeridos 2007 p4 PerroneMoisés lembra que a leitura exige tempo e esforço que não condizem com a vida cotidiana atual os novos escritores afinados com os hábitos alimentares deste fim de século publicam livros light para serem consumidos rapidamente 1998 p 178 e com isso muitos livros tornamse meramente atrativos Na relação do alimento com o ensino Rubem Alves em Conversas sobre Educação 2003 utilizase da cebola do queijo da pipoca para falar de escolas alunos pais e professores Em Sobre cebolas e escolas p A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 311 6367 o escritor afirma ocupar a cebola um lugar de destaque no seu pensamento tanto de forma científica culinária entidades acidentalmente lacrimogêneas de tamanhos variados cheiro característico e gosto saboroso que se prestam a ser usadas em molhos saladas conservas e sopas como poética a cebola o faz pensar filosófica e pedagogicamente Rubem Alves equipara a cebola ao pensamento de Piaget e seus ciclos de desenvolvimento como os círculos das cebolas as escolas e a sociedade que formam camadas sobrepostas que por vezes isolam o aluno Para ele a cebola é metáfora da aprendizagem aquele círculo mínimo central é o corpo do aluno O corpo a que Nietzsche dava o nome de grande razão procura entender o mundo que o cerca a fim de poder apreendêlo o meio ambiente deve se tornar comida Para que o corpo viva O que não vira comida o que não é vital para o corpo não é aprendido 2003 p 64 Bakhtin em O banquete em Rabelais 1996 p 245 afirma que o homem degusta o mundo sente o gosto do mundo o introduz no seu corpo faz dele uma parte de si O banquete como já visto não se trata do beber e comer quotidiano mas sim da boa mesa da abundância o papel das imagens de banquete no livro de Rabelais é enorme Quase não há página onde essas imagens não figurem pelo menos no estado de metáforas e de epítetos tomados do domínio do beber e do comer BAKHTIN 1996 p 243 Ao falar do corpo grotesco do qual as imagens dos banquetes estão estreitamente mescladas Bakhtin caracterizao como um corpo aberto inacabado em interação com o mundo o corpo escapa às suas fronteiras ele engole devora despedaça o mundo fálo entrar dentro de si enriquecese e cresce às suas custas O homem degusta o mundo sente o gosto do mundo o introduz no seu corpo faz dele uma parte de si 1996 p 245 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 312 Benjamin usa uma imagem muito interessante que é da criança lambiscando pela fresta do guardacomida entreaberto sua mão avança como um amante pela noite como o amante abraça a sua amada da mesma forma o tato tem um encontro preliminar com as guloseimas antes que a boca as saboreie 2004 p 105106 Esse encontro entre a criançaleitora e o alimento ou seja o livro parece cada vez menos apaixonado com o passar dos anos escolares é preciso como dito antes acordar os sentidos para a boa degustação o tato ao pegar um livro a visão ao apreciálo a audição ao ouvir uma história o paladar ao saborear um texto literário é preciso lambiscar mais devorar mais Quem sabe dar voz ao livro pelas palavras de Quintana deciframe ou te devoro CONCLUSÃO Entendemos ser o uso da imagem alimentar no texto literário um elemento que seduz independente da faixa etária e contribui para estimular o gosto pela leitura por ser algo que gera facilmente uma identificação do leitor com seus gostos ou desgostos alimentares Estes gostos ou desgostos se resignificam no campo da experiência mesmo que com características surreais alfaces que batem asas sanduíches de escritores ou ruas de chocolate que despertam a imaginação ardente da criança e da criança em cada adulto Embora tenhamos visto exemplos de narrativas contemporâneas cabe lembrar que tal imagem sempre percorreu as narrativas da tradição oral mesmo que em um papel secundário Atualmente os jogos de linguagens propostos pelos escritores atualizam cada vez mais a inserção do alimento no texto é algo muito próximo da criança e do adulto pois faz parte de nosso quotidiano Procuramos assim perante o livro infantil atrativo mostrar como seria nutritivo estimular o ato de ler de saborear um A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 313 texto que trabalhe com tais imagens Enquanto na crítica literária ou educacional a imagem do alimento aparece como metáfora nas narrativas ou nos poemas para crianças destacamos algumas categorias O alimento serve como isca para o leitor Podemos ainda falar de outra categoria de leitor o adulto que não procura mais livros somente para a sala de aula ou somente para os filhos mas que se deleita e consome da literatura por um bom tempo chamada de infantil Para sua próxima leitura sem pretensões didáticas uma boa degustação REFERÊNCIAS ABRAMOVICH Fanny Literatura Infantil gostosuras e bobices São Paulo Scipione 1997 ALVES Rubem Conversas sobre Educação São Paulo Versus 2003 BAKHTIN Mikhail O banquete em Rabelais In A cultura popular na idade média e no Renascimento SP HUCITEC 1993 BENJAMIN W Reflexões sobre a criança o brinquedo e a educação Trad Marcus Vinicius Mazzari São Paulo Duas Cidades Editora 34 2002 Rua de mão única 5 ed Trad Rubens Rodrigues Torres Fi lho José Carlos Martins Barbosa e Pierre Paul Michel Ardengo São Paulo Brasiliense 1995 BORDINI Maria da Glória AGUIAR Vera Teixeira Literatura a forma ção do leitor alternativas metodológicas Porto Alegre Mercado A berto 1988 CAPPARELLI Sérgio 111 poemas para crianças 7 ed Il Ana Gruszynski Porto Alegre LPM 2007 CASCUDO Luís Câmara Org Antologia da alimentação no Brasil Rio de Janeiro Livros Técnicos e Científicos Ed SA 1977 História da alimentação no Brasil Belo HorizonteSão Paulo Editora Itatiaia Editora da Universidade de São Paulo 1983 COELHO Nelly Novaes A Literatura Infantil História Teoria e Análi se 2 ed São Paulo Quiron 1982 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 314 DI SANTO Joana Maria R A metáfora da maçã alimen toconhecimento e a avaliação da aprendizagem Disponível em httpwwwcentrorefeducacionalprobrmetaprdzhtm Acessado em set2007 FELDMAN Cláudio Sabor de Sonho II Ilustração Claudia Scata macchia São Paulo Moderna 1997 FLANDRIN J MONTANARI M Org História da alimentação São Paulo Estação Liberdade 1996 GULLAR Ferreira Dr Urubu e outras fábulas Rio de Janeiro José Olympio 2005 LEAHYDIOS Cyana Signos Brasileiros de Educação Literária In E ducação Literária como metáfora social EdUFF 2000 LIMA Ricardo da Cunha De cabeça para baixo 5 reimpressão São Paulo Cia das Letrinhas 2007 MASSIMI M Alimentos palavras e saúde da alma e do corpo em sermões de pregadores brasileiros do século XVII In Revista Histó ria Ciências Saúde Manguinhos v 13 n 2 p 25370 abrjun 2006 Capítulo da Tese de Doutorado MEIRELES Cecília Problemas da literatura infantil 4 ed Rio de Ja neiro Nova Fronteira1984 MENDES Murilo Amostra da poesia local In Poesia completa e pro sa Rio de Janeiro Nova Aguilar 1994 PERRONEMOISÉS Leyla Altas literaturas São Paulo Companhia da Letras 1998 RIBEIRO Jonas Poesias de dar água na boca Il André Neves São Paulo AveMaria sd RODARI Gianni Gramática da Fantasia Trad Antonio Negrini São Paulo Summus 1982 Fábulas por telefone Trad Silvana Cobucci Leite São Paulo Martins Fontes 2006 WAJMAN Simone Schapira O ovo e o vovô Il André Neves São Paulo Paulinas 2001 ZOTZ Werner CAGNETTI Sueli de Souza Livro que te quero livre 3 ed Florianópolis Letras brasileiras 2005 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 315 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs OLHARES PARA A INFÂNCIA E PARA A EDUCAÇÃO NO CONTO NEGRINHA E EM OUTRAS HISTÓRIAS DE MONTEIRO LOBATO Eloísa Porto Corrêa Monteiro Lobato é considerado por alguns estudiosos como uma figura ambivalente dentro do PréModernismo brasileiro ora demolidor de tabus ora crítico das correntes irracionalistas que integraram a primeira geração modernista ora o escritor de uma prosa que não rompe no fundo nenhum molde convencional ou como o modelo não atingido de Eça de Queirós pela carga irônica e o gosto da palavra pitoresca BOSI 2006 p 216 Mas no que tange à obra infantil e juvenil a crítica costuma aclamar Monteiro Lobato Bosi reconhece a inovação e o valor da parte infantojuvenil da obra de Lobato que não comenta muito mas na qual observa originalíssima fusão de fantasia e pedagogia BOSI p 216 Nelly Novaes Coelho em Monteiro Lobato O Inovador 1987 e em Lobato e a fusão do real com o maravilhoso 2000 considera a produção artística para crianças e jovens de Lobato como um salto qualitativo comparada aos autores que o precederam COELHO 1987 p 48 Fanny Abrimovich lembra que foi Lobato o primeiro a criar em muitas obras como no Sítio do PicaPau Amarelo uma lógica que não é a do adulto mas onde o adulto entra no jogo da criança 2005 p 61 como se observa no Sítio do PicaPau Amarelo O conto Negrinha que não se dirige preferencialmente às crianças logo não integra a produção infantojuvenil de Lobato mas que foi escolhido por Ítalo Moriconi como um dos Cem Melhores Contos Brasileiros do Século XX 2001 p 7884 condena justamente a incapacidade de alguns adultos entrarem no jogo da 316 criança impondo a elas uma lógica materialista e perversa que sufoca suas fantasias e sonhos causando a degradação do infante e da infância Com isso mesmo nesse conto produzido para adultos o criador da boneca de pano Emília inovou na maneira de focalizar a infância na postura infantil nas concepções de educação de pedagogia de arte para as crianças e na crítica ao autoritarismo do adulto no processo de educação das crianças Deste modo dentro de sua proposta estética é claro Lobato foi sim um dos mais inovadores e ousados escritores prémodernistas não apenas em busca de progresso social e mental como de mais autonomia e voz para as crianças bem como de liberdade direito ao deleite estético e à imaginação para os infantes Neste sentido o conto Negrinha funciona como um contraponto das aventuras do Sítio do PicaPau Amarelo Dona Inácia patroa da falecida mãe de Negrinha e responsável pela educação da órfã pratica uma espécie de pedagogia noturna opressora e perversa que se contrapõe à pedagogia luminosa libertadora e democrática praticada por Dona Benta e Tia Nastácia responsáveis pela educação dos personagens infantis do Sítio do PicaPau Amarelo Muitos dos saberes apontados por Paulo Freire como imprescindíveis para a prática educativa são denunciados como ausentes na educação dispensada aos infantes no conto Negrinha Por outro lado esses mesmos saberes são focalizados nas posturas das personagens do Sítio do PicaPau Amarelo adultos e crianças educadores e educandos em situações educativas que são verdadeiros exemplos da pedagogia da autonomia posta em prática ficcionalmente anos antes de o mestre Paulo Freire a conceber Segundo Freire ensinar exige respeito aos saberes dos educandos 2001 p 33 No conto Negrinha o narrador entre comovido e indignado denuncia que a menina é a todo tempo A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 317 silenciada humilhada e desprezada pelos adultos Cala a boca diabo LOBATO 2001 p 78 O que ela tem a dizer não interessa aos responsáveis por sua educação A criticidade FREIRE 2001 p 34 portanto que também é um dos saberes necessários à prática pedagógica encontrase ausente do processo educativo opressor imposto a Negrinha já que seu senso crítico não é desenvolvido no conto mas reprimido Como ensinou Paulo Freire não há docência sem discência a postura assumida pelo educador implicará automaticamente numa postura de discente que pode conservar em si o gosto pela rebeldia a curiosidade a capacidade de arriscarse de aventurarse FREIRE 2001 p 28 grifos nossos como ocorre com os personagens do Sítio do PicaPau Amaelo ou uma inclinação para a repetição bancária como desejava D Inácia Desta forma a pedagogia da autonomia executada por Dona Benta contrasta com a educação bancária e opressora aplicada pela D Inácia senhora de escravos e mestra na arte de judiar de crianças Enquanto isso a avó e a empregada idosa oferecem liberdade e até se identificam com os comportamentos e posturas infantis rompendo com muitas regras e paradigmas sociais em parte pelo afastamento que o Sítio espécie de refúgio oferece O final das fábulas e a costumeira moral da história são sempre discutidos e problematizados por Pedrinho Narizinho Emília Visconde e os outros personagens do Sítio do PicaPau Amarelo de forma que a criança reflita pense e critique sempre tudo o que lhe é proposto nunca acatando nada passiva e acriticamente No Sítio Dona Benta não apenas escuta o que as crianças têm a dizer como estimula a autonomia a criatividade dos infantes e permite que discordem dos finais das histórias desenvolvendo uma educação libertadora estimulando a leitura a pesquisa a experimentação e o olhar crítico É o que se percebe neste fragmento José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 318 em que Narizinho e Emília protestam contra o final da fábula A cigarra e as formigas Esta fábula está errada gritou Narizinho Isso não protestou Emília e Dona Benta aceitou a objeção LO BATO 1964 p 14 Mas se há por vezes um relativo caráter didático em várias obras de Monteiro Lobato devido muito ao fato de resgatar e trabalhar com a fábula texto irremediavelmente moralizante também são sempre reconhecidos o direito ao prazer a necessidade do deleite estético e a importância do desenvolvimento da imaginação para a formação de indivíduos inteiros e íntegros como se observa na opinião da Emília sobre qual seria melhor o útil ou o belo Acho melhor os dois encangados assim como uma espécie de banana inconha Útil e belo ao mesmo tempo Não só na fala da boneca como também no título da fábula O Útil e o Belo a dupla articulação dos seres e das obras humanas ou da própria obra de arte fica reconhecida como inerente à existência material presente na natureza e na condição humana e em tudo o que o homem faz As coisas se dividem entre úteis eou belas nesse conto como observa o veado personagem da fábula que se divide entre o orgulho de seus formosos chifres e a utilidade de suas pernas finas velocíssimas LOBATO 1964 p 64 grifos nossos O direito à fruição estética e ao brinquedo bem como a necessidade de desenvolver a imaginação são defendidos em muitas obras de Monteiro Lobato apontando a importância do caráter lúdico da literatura e da arte infantil Prova disso é que no Sítio do PicaPau Amarelo brinquedos e brincadeiras fazem parte do cotidiano personagens são animais Rabicó e Quindim e bonecos de pano e de sabugo de milho confeccionados pelos adultos Emília e Visconde de Sabugosa com quem adultos e crianças conversam e convivem de forma fantasiosa e democrática Os adultos libertam a imaginação portanto para que se desenvolva melhor a criatividade dos infantes A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 319 É reconhecido na obra de Lobato que não apenas o objetivo pedagógico deve nortear a arte destinada às crianças e adolescentes que carecem de deleite estético também ou sobretudo Exemplo disso é a defesa da música da cigarra e o combate à avareza feito pelo narrador e pelos personagens do Sítio do PicaPau Amarelo após a audição da fábula A cigarra e as formigas quando voltou a primavera o mundo apresentava um aspecto mais triste É que faltava na música do mundo o som estridente daquela cigarra morta por causa da avareza da formiga e depois gritou Narizinho Formiga má como essa nunca houve LOBATO 1964 p 14 No conto Negrinha também é reconhecida a necessidade do brinquedo da brincadeira e do desenvolvimento da imaginação e da criatividade já que diferentemente do que ocorre no Sítio a carência de recursos e de atividades lúdicas não só prejudicam o desenvolvimento da personagem título como deprimemna levando a à morte depois do definhamento como se observa nos fragmentos a triste criança encorujouse no cantinho de sempre e Como seria bom brincar refletiu com suas lágrimas num canto a dolorosa martirzinha que até ali só brincara em imaginação com o cuco mas percebeu nesse dia da boneca que tinha uma alma Divina eclosão Surpresa maravilhosa do mundo que trazia em si e que desabrochava afinal como fulgurante flor de luz LOBATO 2001 p 8183 Por outro lado o contato com o brinquedo a brincadeira proibida e o exercício da imaginação antes reprimida favorecem o desenvolvimento das potencialidades da menina fazem desabrochar nela potencialidades imaginativas e o sorriso esperançoso tão ressaltados por Paulo Freire como necessários à formação integral do indivíduo FREIRE 2001 p 80 Era de êxtase o olhar de Negrinha Nunca vira uma boneca e nem sequer sabia o nome desse brinquedo José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 320 Mas compreendeu que era uma criança artificial LOBATO 2001 p 82 Mas a nova proibição que interrompe o processo de desenvolvimento iniciado levaa não apenas à retomada do processo de atrofia mas a um severo e novo processo de definhamento causado pela depressão pelo desencanto pela desesperança e pela frustração de ter conhecido o prazer e de têlo perdido Aquele dezembo de férias luminosa rajada de céu tre vas adentro do seu doloroso inferno invenenaraa Brincara ao sol no jardim BrincaraAcalentara dias seguidos a linda boneca loura tão boa tão quieta a dizer mamã a cerrar os olhos para dormir Vivera rea lizando sonhos da imaginação Desabrocharase da alma Morreu na esteirinha rota abandonada de todos como um gato sem dono Jamais entretanto alguém morreu com maior beleza O delírio rodeoua de bo necas E de anjosE bonecas e anjos remoinha vamlhe em torno numa farândola do céu Sentiase agarrada por aquelas mãozinhas de louça abraçada rodopiada LOBATO 2001 p 83 grifos nossos Negrinha sofre de mal semelhante ao que Inês nas Trovas à morte de Dona Inês de Castro de Garcia de Resende definiu como A minha desaventura não contente de acabarme por me dar maior tristura me foi pôr em tanta altura para dalto derribarme ou como no poema lírico de Camões Perdigão perdeu a pena em que o pássaro subiu a um alto lugar mas achouse desasado e de puro penado morre mais ou menos como morrerá Negrinha depois de sentir o doce sabor da brincadeira e ser novamente proibida de brincar percebeu nesse dia da boneca que tinha uma alma Sentiuse elevada à altura de ente humano Cessara de ser coisa e doravante serlheia impossível viver a vida de coisa LOBATO 2001 p 83 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 321 A necessidade de imaginação e da brincadeira no processo de construção de conhecimentos bem como a carência de afeto de companhia e de convívio social ficam explícitos como principais motivos da depressão e do definhamento da criança abandonada A obra de Lobato se ocupa de libertar a criatividade sem esquecer de aguçar o senso crítico e de conduzir à reflexão sobre os valores por trás dos textos lidos criticados a todo tempo pelos personagens do sítio Deste modo concretiza o que o mestre Paulo Freire pregaria mais tarde A necessária promoção da ingenuidade à criticidade não pode ou não deve ser feita à distância de uma rigorosa formação ética ao lado sempre da estética FREIRE 2001 p 36 D Benta estimula o senso crítico dos infantes sem abrir mão da criatividade e da fruição estética e sem deixar de buscar o desenvolvimento de valores éticos A liberdade gozada pelos educandos do Sítio contrasta com a prisão em que Dona Inácia encerra Negrinha e as torturas que pratica contra a pequena órfã Negrinha imobilizavase no canto horas e horas Cruzava os bracinhos a tremer sempre o susto nos olhos E o tempo corria LOBATO 2001 p 79 Desamorosa e autoritária a educadora oprime e castiga não colaborando em nada para o desenvolvimento das potencialidades da educanda mas pelo contrário imobilizaa impedindoa de desenvolver sadiamente todos os seus potenciais físico psicomotor emocional social e intelectual Com isso contraria o que Paulo Freire concebeu como recomendável e que D Benta põe em prática no Sítio do PicaPau Amarelo Ao invés de dialogar com a criança e os demais personagens para tentar resolver problemas e impasses surgidos durante o diaa dia Dona Inácia prefere apelar para a tortura física e psicológica aplicando terríveis castigos para reprimir qualquer manifestação de descontentamento por menor que seja É o que se percebe nesta José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 322 passagem em que a patroa deleitase durante uma sessão de tortura à pequena órfã imobilizada só porque a menina chama de peste menos ofensivo dentre os xingamentos que constantemente usam contra a criança uma empregada que lhe rouba a carne do prato durante uma refeição Quando o ovo chegou a ponto a patroa chamou Venha cá Negrinha aproximouse Abra a boca Negrinha abriu a boca como o cuco e fechou os olhos A patroa então com uma colher tirou da água pulan do o ovo e zás na boca da pequena E antes que o ur ro de dor saísse suas mãos amordaçaramna até que o ovo arrefecesse Negrinha urrou surdamente pelo nariz Esperneou Mas só Nem os vizinhos chegaram a per ceber aquilo LOBATO 2001 p 81 É evidente o prazer e o deleite que a tortura calculada planejada e preparada minuciosa e friamente traz a essa personagem como exercício e confirmação de um poder ilimitado incontestável e irrefreável Veio o ovo Dona Inácia mesma pôlo na água a ferver e de mãos à cinta gozandose na prelibação da tortura ficou de pé uns minutos à espera Seus olhos conten tes envolviam a mísera criança que encolhidinha a um canto aguardava trêmula alguma coisa de nunca visto LOBATO 2001 p 81 Para asseverar a covardia da tortura as características físicas psicológicas e sócioeconômicas da menina contrastam radicalmente com as da patroa poderosa no porte na condição financeira e no status contando com a conivência de autoridades inclusive religiosas e com a vista grossa da sociedade Enquanto a patroa é gorda rica dona do mundo amimada dos padres com lugar certo na igreja e camarote de luxo reservado no céu a menina é magra A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 323 atrofiada com olhos eternamente assustados órfã aos quatro anos como gato sem dono levada a pontapés chorando de fome quase sempre ou de frio desses que entanguem pés e mãos e fazemnos doer LOBATO 2001 p 7879 Para o narrador parte da intolerância da patroa e da sua revolta contra a menina se devem ao recalque por não ter filhos como se pode notar no seguinte fragmento Ótima a Dona Inácia Mas não admitia choro de criança Ai Punhalhe os nervos em carne viva Viúva sem filhos não a calejara o choro da carne da sua carne e por isso não suportava o choro da carne alheia LOBATO 2001 p 7879 Não se trata apenas de falta de prática ou de falta de admiração por crianças nem de indisposição para a maternidade mas de um somatório de tudo isso à uma frustração já que com suas sobrinhas da sua genealogia demonstra admiração maternal paciência e alegria a sinhá riase também LOBATO 2001 p 81 No entanto ainda que esse recalque intensifique a repulsa e a ação da patroa contra a menina não se resumem ao recalque os motivos da violência de Dona Inácia já que antes da menina muitos outros são torturados e mortos pela dama de grandes virtudes apostólicas como é chamada Dona Inácia pelos padres e ironicamente pelo narrador A excelente Dona Inácia era mestra na arte de judiar de crianças Vinha da escravidão fora senhora de es cravos e daqueles ferozes amiga de ouvir cantar o bolo e estalar o bacalhau Nunca se afizera ao regime novo essa indecência de negro igual ao branco e qualquer coisinha a polícia Qualquer coisinha uma mucama assada ao forno porque se engraçou dela o senhor uma novena de relho porque disse Como é ruim a sinhá LOBATO 2001 p 81 As únicas ocupações de Dona Inácia são a tortura e o exercício do poder que impedemna de mergulhar na abulia e na acídia seu José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 324 único remédio contra o tédio Prova disso é que essa senhora que possui uma tropa de servas em todo o conto só se levanta do seu trono para presidir sessões de tortura normalmente contra a menina Nem para receber visitas levanta Entaladas as banhas no trono uma cadeira de balanço na sala de jantar ali bordava recebia amigos e o vigário dando audiências e discutindo o tempo LOBATO 2001 p 78 Tudo isso torna Dona Inácia incapaz de ser uma educadora afetuosa incapaz de exercer uma pedagogia da esperança e para a autonomia dos educandos como pregou Freire e antes dele pregava já Lobato e sua obra infantojuvenil através das figuras de Dona Benta e Tia Nastácia Diferentemente da exsenhora de escravos mas sem perder sua autoridade de mediadora do processo educacional Dona Benta ensina o valor da liberdade dando liberdade aos educandos Vocês sabem tão bem o que é liberdade que nunca me lembro de falar disso LOBATO 1964 p 87 Desta forma demonstra que a competência e o rigor de que o professor não deve abrir mão no desenvolvimento do seu trabalho não são incompatíveis com a amorosidade necessária às relações educativas FREIRE 2001 p 11 A maneira democrática e igualitária com que Dona Benta trata os personagens do Sítio crianças bonecos animais funcionários e convidados contrasta com o autoritarismo e a desigualdade de tratamentos dispensados aos demais personagens do conto Negrinha Enquanto as sobrinhas da patroa são tratadas como princesinhas e são mimadas Negrinha é humilhada e desprezada assim como os empregados que ajudam a torturar a pequena órfã ao mesmo tempo em que sofrem também os maus tratos da patroa A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 325 Certo dezembro vieram passar férias com Santa Inácia duas sobrinhas suas pequenotas lindas meninas lou ras ricas nascidas e criadas em ninho de plumas Do seu canto na sala do trono Negrinha viuas irrom perem pela casa como dois anjos do céu alegres pu lando e rindo com a vivacidade de cachorrinhos novos Negrinha olhou imediatamente para a senhora certa de vêla armada para desferir contra os anjos invasores o raio dum castigo tremendo Mas abriu a boca a sinhá riase também Quê Pois não era crime brincar Estaria tudo mudado e findo o seu inferno e aberto o céu No enlevo da doce ilusão Negrinha levantouse e veio para a festa infantil fasci nada pela alegria dos anjos Mas a dura lição da desigualdade humana lhe chicoteou a alma Beliscão no umbigo e nos ouvidos ao som cruel de todos os dias Já para o seu lugar pestinha Não se enxerga LOBATO 2001 p 81 No conto Negrinha classificado por Bosi como um exemplo do pendor para a militância de um intelectual que empunhou a bandeira do progresso onde reponta com maior insistência o documento social e a vontade de doutrinar e reformar 2006 p 215217 notase forte comoção para com os dramas dos menos favorecidos mas também é clara a crítica ao tratamento dispensado aos infantes pobres ou ricos que nas duas situações é contestável e desqualificado Com maus tratos às crianças pobres e mimos excessivos às ricas a educação não apenas reflete e duplica uma hierarquia social injusta como também trabalha pela sua perpetuação legitimando o direito do dominador à exploração e à perversidade e também endossando e estimulando uma postura passiva e resignada no oprimido No conto Negrinha aos filhos e filhas das camadas menos favorecidas representados pela personagem título é destinada uma educação opressora para a subserviência mansa O corpo de Negrinha era tatuado de sinais cicatrizes vergões Batiamlhe os da José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 326 casa todos os dias houvesse ou não houvesse motivo LOBATO 2001 p 79 Dela é exigida passividade e conformação sempre pela excelente dona Inácia Braços cruzados já diabo LOBATO 2001 p 79 À criança pobre é negado o inquietante direito à imaginação ao lazer ao deleite estético e ao desenvolvimento do senso crítico que depois poderiam resultar em inconformação e atentado contra o poder ou o poderoso e a hierarquia social Assim o potencial transformador e revolucionário da menina das classes menos favorecidas é extinto O potencial revolucionário por trás de uma educação libertadora como a de Dona Benta é evitado por Dona Inácia O drama de Negrinha representa uma situação indesejável na educação não apenas para muitos narradores de contos de Lobato mas também para Paulo Freire que mais tarde combaterá a pedagogia tradicional educação exige curiosidade alegria esperança e a compreensão de que a educação é uma forma de intervenção no mundo FREIRE 2001 p 110 Negrinha por culpa de seus educadores acaba se tornando passiva e abúlica A criança antes vivaz e alegre uma vez violentada física emocional e psicologicamente é assassinada não somente no sentido literal da palavra mas também assassinada em seus potenciais criativos e intelectuais encarnando uma das configurações indesejáveis de cidadão para Freire O definhamento e a morte da menina simbolizam a morte dos seus potenciais revolucionários e a perpetuação do mesmo cenário social no conto Narizinho Pedrinho Visconde e Emília mesmo estes últimos sendo bonecos reforçam uma postura possível e desejável da criança contestadora transgressora inquieta e revolucionária inconformandose com a moral de muitas fábulas recriando os finais de muitas histórias defendendo até as últimas conseqüências seu direito de escolha seguindo suas opiniões e convicções discordando A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 327 francamente e enfrentando os adultos em defesa de seus pontos de vista A boneca livre das sanções e regras impostas às crianças criada num ambiente afetuoso e libertador exerce direitos que são tirados da personagem título do conto Negrinha As crianças protegidas por um ambiente familiar amistoso e provocador ao contrário do ambiente hostil em que vai crescendo Negrinha Entretanto mesmo submetida a um processo educativo opressor e violento Negrinha encontra mecanismos por algum tempo para preservar sua integridade cultivar sua criatividade e providenciar o lazer que lhe são negados no íntimo ou aproveitando as poucas oportunidades que se lhe apresentam É o que se percebe neste fragmento em que a menina usa a imaginação e se diverte como pode dentro do cativeiro apreciando o cuco do relógio o relógio batia uma duas três quatro cinco horas um cuco tão engraçadinho Era seu divertimento vêlo abrir a janela e cantar as horas com a bocarra vermelha arrufando as asas Sorriase então por dentro feliz um instante LOBATO 2001 p 79 A imobilização de mais de cinco horas não é capaz de imobilizar a mente de Negrinha nem de esterilizar sua criatividade por enquanto Essa postura demonstra a possibilidade que sempre há de um educando desenvolverse e libertarse contrariando um processo educativo bancário e opressor que lhe é imposto Mas no conto os mecanismos de tortura de silenciamento de esterilização e de eliminação dos potenciais transformadores atingirão requintes crescentes de crueldade até que Negrinha não resiste mais e deprimida entregase à abulia e sucumbe à tristeza Isso demonstra a dificuldade de um educando resistir a uma educação opressora ainda que haja a possibilidade As figuras adultas do sítio são transgressoras e escapam dos padrões de comportamento tradicionais para o adulto enquanto as do conto Negrinha encarnam paradigmas tradicionais de José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 328 comportamento social Se ensinar exige a corporeificação das palavras pelo exemplo FREIRE 2001 p 28 tanto num caso como noutro o exemplo endossa as ações No Sítio os adultos também embarcam nas aventuras aceitam as opiniões e divergências das crianças são tolerantes Dona Benta explicou que a sabedoria popular é uma sabedoria de dois bicos Muitos ditados são contraditórios LOBATO 1964 p 116 Assim dando mais um exemplo de saber necessário à prática da pedagogia da autonomia os educadores do sítio conscientes do inacabamento do mundo e de si mesmos aceitam o saudável risco o novo e rejeitam qualquer forma de discriminação FREIRE p 39 tratando bonecos e netos sem distinção e tratando empregados com respeito Bem como pregará mais tarde o educador e pedagogo da autonomia e da esperança Paulo Freire Dona Benta olha carinhosamente a entrada e saída de personagens de diferentes épocas idades meios culturas raças nacionalidades e credos promovendo aquilo que Abrimovich chamou de misturança despreconceituosa de adultos crianças bichos gangsters professores padres etc 2005 p 58 Ao contrário a preconceituosa D Inácia do conto Negrinha diminui e humilha empregados e aqueles que são diferentes de sua raça e de sua condição social dando o exemplo de dominação dona do mundo amimada dos padres de discriminação social e racial Aliás o exemplo geral dado pela sociedade na ficção é o da paparicação ao rico e humilhação ao pobre legitimando o poder e a perversidade do rico e a passividade e subserviência mansa do pobre como se observa no tratamento que os padres dispensam a D Inácia Muitos representantes da igreja aparecem inclusive como legitimadores e perpetuadores duma hierarquia social injusta gozando das benesses que o rico pode lhe oferecer em troca de fazer vista grossa para seus desmandos e explorações dama de grandes virtudes apostólicas esteio da religião e da moral dizia o reverendo A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 329 O reverendo reverencia assim ao dinheiro e ao rico e não a Deus negligenciando os pobres oprimidos ao invés de defendêlos como pedem os ensinamentos bíblicos Quem dá aos pobres empresta a Deus LOBATO 2001 p 81 clichê que repetem de forma hipócrita enquanto espancam a criança pobre e exploram os empregados Por outro lado D Benta não só respeita os empregados e exaltálhes os gestos e saberes como também reconhece o tão pregados por Freire valor da cultura popular e da assunção da identidade cultural 2001 p 46 Mas sempre de forma crítica e nunca ingenuamente ou de forma ufanista levando as crianças a não se envergonharem de suas raízes mas refletirem sobre ela e vivenciaremna D Benta explicou um diz Quem espera sempre alcança e outro Quem espera desespera Conforme o caso a gente escolhe um ou outro e quem ouve elogia a sabedoria da sabedoria popular LOBATO p 116 grifos nossos Além disso na passagem D Benta usa seu bom senso e ensina que a vida e as decisões humanas exigem bom senso exatamente como Paulo Freire 2001 p 67 pregará mais tarde e como se pode observar em diferentes passagens espalhadas pela obra de Lobato como esta outra Devemos fazer o que nos parece mais certo mais justo mais conveniente E para nos guiar temos a nossa razão e a nossa consciência LOBATO 1964 p 30 Como se observa no fragmento acima e nos anteriores a vovó de Narizinho crê bem antes de Freire formular suas teorias que ensinar não é transferir conhecimento mas criar possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção FREIRE 2001 p 52 grifos nossos por isso estimula o diálogo crítico e insubordinado com a tradição e não a impõe de maneira arbitrária como faz a patroa opressora de Negrinha D Benta não apenas ensina como também aprende com as reflexões dos personagens infantis do sítio como numa José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 330 passagem em que depois de umas reflexões da Emília sobre a brutalidade do mundo Dona Benta calouse pensativa LOBATO 1964 p 195 A educação mediada por D Benta é altruísta inclusiva esperançosa e alegre apostando sempre na democracia na libertação na ação no crescimento individual e social através da participação ativa de todos em todas as decisões e projetos empreendidos no Sítio incluindo infantes ou adultos pobres ou ricos todos ativos esperançosos e alegres como a educação e as relações travadas Essa educadora aposta na diferença e na diversidade como engrandecedores e enriquecedores não apenas do processo ensino aprendizagem como também de toda a sociedade e da nação brasileira Por outro lado no conto Negrinha não apenas a dominadora Dona Inácia oprime como muitos dos próprios oprimidos ignorantes deseserançosos e ressentidos maltratamse uns aos outros Conformados com sua condição e sem perspectivas mínimas de transformação do quadro de dominação endossam o processo de exploração e operam pela opressão de outros subalternos torturando a menina e corroborando as atitudes da déspota exploradora Exemplos como esse aliás de empregados torturando ou denunciando a menina para a Dona Inácia são fartos no conto Ao invés de protegeremse uns aos outros e uniremse contra o opressor auxiliamno legitimandolhe o poder e comprovando que suas técnicas de opressão de tortura e de exploração são terrivelmente eficientes A menina Negrinha assim parece condenada não apenas a viver para sempre oprimida e humilhada pela patroa como também condenada a repetir o perverso círculo de relações destrutivas entre os personagens subalternizados por Dona Inácia no conto inclusive xingando uma empregada que lhe agride e humilha de peste A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 331 LOBATO 2001 p 80 menor dos xingamentos dirigidos a ela Esse gesto representaria bem a probabilidade ou a possibilidade da repetição eterna do ciclo de dominação se a personagem não tivesse optado pela morte como saída para dar fim à vida oprimida e triste que levava Deixandose morrer a menina manifesta sua escolha prefere morrer a existir num meio perverso em que às crianças pobres são negados os mínimos direitos de brincar de imaginar de se expressar e de se alegrar onde existir já parece um favor feito pelos dominadores O gesto desesperado da menina mas também insubordinado aponta senão para uma possibilidade de combate pelo menos para o desejo da menina e do narrador comovido de eliminação dessa pedagogia perversa e dessa educação amansadora imposta à criança sobretudo à das classes pobres Além disso esse gesto demonstra já uma possibilidade de resistência por menor que seja portanto mais do que um simples desejo de mudança dessa pedagogia tradicionalista e da hierarquia social rígida pautada na exploração e na opressão que ela ajuda a perpetuar Um pequeno gesto mas um passo rumo à transformação dado por uma criança que representa o novo Assim a sua morte da menina demonstra não apenas a possibilidade da transformação mas a dificuldade assustadora e os inúmeros sacrifícios exigidos para que um desejo de transformação social se concretize bem como a impossibilidade de um indivíduo sozinho vencer essas dificuldades e barreiras Por outro lado a união e o trabalho em equipe observados no Sítio do PicaPau Amarelo promovem a transformação que Negrinha não poderia conseguir sozinha e representam a materialização de seu sonho de comunidade solidária democrática e alegre confirmando a possibilidade da mudança José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 332 Metaforicamente Dona Inácia e a educação tradicional pautada em castigos físicos estão condenadas felizmente já que ela não tem filhos e ninguém que lhe perpetue o legado de terror e tortura Mas as sobrinhas de Dona Inácia que não são diretamente educadas por ela para a tortura já que aparecem só em férias notam diferenças na aparência e no comportamento da menina pobre e também tratamna como uma coisa um brinquedo a bobinha da titia LOBATO 2001 p 84 como faz a tia porém mais sutil e menos violentamente Isso demonstra que provavelmente as duas duplicarão o papel de Dona Inácia de forma menos sangrenta desfrutando de benesses entretanto não criadas como a tia em um regime escravocrata e para a prática de torturas Em outras palavras seus mecanismos de dominação serão mais sutis e menos sangrentos Enquanto isso Dona Benta é multiplicadora da pedagogia da autonomia e de cidadãos livres e atuantes tendo netos muitos discípulos e assistentes que lhe perpetuem a pedagogia da autonomia e também pratiquem depois dela uma educação amorosa e libertadora em prol do progresso do engajamento e da democracia REFERÊNCIAS BOSI Alfredo História Concisa da Literatura Brasileira 43ª Edição São Paulo Cultrix 2006 COELHO Nelly Novaes Literatura Infantil teoria análise didática São Paulo Moderna 2000 FREIRE Paulo Pedagogia da Autonomia Rio de Janeiro Paz e Terra 2001 LOBATO José Bento Monteiro Fábulas São Paulo Brasiliense 1964 Negrinha In MORICONI Ítalo Os Cem Melhores Contos Bra sileiros do Século XX Rio de Janeiro Objetiva 2001 p 7884 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 333 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs MICHELLI Regina Silva A Fábula e suas Armadilhas In 16º COLE Congresso de Leitura do Brasil CampinasSão Paulo Unicamp 2007 SILVA Vitor Manuel de Aguiar e Teoria da Literatura 3 ed Portu guesa Coimbra Martins Fontes 1976 SOARES Angélica Gêneros Literários 3 ed São Paulo Ática 2001 ZILBERMAN Regina et alii Literatura Infantil autoritarismo e eman cipação São Paulo Ática 1987 ABRAMOVICH Fanny Literatura infantil gostosuras e bobices São Paulo Scipione 2005 LAJOLO M e ZILBERMAN R Literatura infantil brasileira história e histórias São Paulo Ática 1988 MARIN Alda Junqueira Educação Arte e Criatividadesl Pioneira 1976 PONDÉ Glória A arte de fazer artes Rio de Janeiro Editorial Nórdi ca 1985 334 A ESCOLA NA LITERATURA INFANTOJUVENIL PNBE1999 Fátima de Oliveira Ferlete Célia Regina Delácio Fernandes INTRODUÇÃO O presente trabalho tem como pergunta norteadora a questão como é construída a imagem de escola nas obras de literatura infantojuvenil que compõem o acervo do Programa Nacional Biblioteca da Escola de 1999 Propomos a análise de tal tema porque notamos uma grande quantidade de obras de literatura infantojuvenil do Programa Nacional Biblioteca da Escola PNBE que tematiza ou retrata situações e cenários vividos na escola Diante da recorrência e importância do tema escolar esta pesquisa pretende contribuir em dois aspectos social e acadêmico No caráter social pretendemos estudar como a escola é representada pela literatura infantojuvenil procurando possíveis imagens desta instituição se positiva ou negativa para compreender as relações entre a produção literária destinada ao público de menor idade e a escola Em relação à relevância acadêmica temos como objetivo contribuir com o avanço das pesquisas nessa área pois de acordo com Fernandes 2007 ainda existe um número pequeno de estudos que mostram como a literatura vê a escola Dadas a complexidade e a amplitude do tema na literatura infantojuvenil foi necessário um recorte a partir da escolha de um corpus significativo de obras Em vista disso as obras selecionadas para esta pesquisa pertencem ao Programa Nacional Biblioteca da Escola PNBE1999 adquiridas com as ações do governo federal A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 335 cujo objetivo é a distribuição de acervos em escolas públicas do Brasil e a promoção de políticas de incentivo à leitura Para receber as coleções de obras de literatura infantojuvenil no entanto um dos requisitos era atender escolas com 150 ou mais alunos de 1a a 4a séries ou no caso de algum município não atender a este requisito contemplouse aquelas com maior número de estudantes Fernandes 2007 p65 comenta Tornase necessário esclarecer que enquanto as pro pagandas e os documentos oficiais anunciam que ne nhum município foi excluído pelos critérios de atendi mento as escolas com um número menor do que o e xigido acabam sendo Ainda passa despercebido um importante critério presente na resolução do MECFNDE no 008 de 23 de março de 1999 que exclui do aten dimento as escolas já contempladas com acervos compostos pelos títulos relacionados na Portaria no 652 de 16 de maio de 1997 Ou seja embora os a cervos sejam diferentes não são cumulativos na mes ma escola O acervo do PNBE1999 é formado por cento e dez títulos sendo 106 selecionados pela Fundação Nacional do Livro Infanto juvenil FNLIJ e 4 indicados pela Secretaria de Educação Especial do MEC SEESP comprados pelo Ministério da Educação com recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação FNDE para formar o acervo básico das bibliotecas de 36 mil escolas públicas brasileiras de 1a a 4a série FERNANDES 2007 p65 Ao compor o acervo houve a preocupação de reunir obras dos mais diversos gêneros literários A seleção do PNBE1999 engloba gêneros como poesias contos e crônicas novelas peças teatrais textos de tradição popular ficção e não ficção fábulas contos de fadas livros de imagens literatura policial e romance Fernandes e outros 2001 p19 afirmam Esses livros falam de diferentes coisas têm tamanhos diferentes são escritos em diferentes estilos Uns têm séculos de idade outros foram publicados recentemen José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 336 te A maior parte é brasileira mas alguns provêm de diferentes partes do mundo Em suas centenas de pá ginas delineiase uma amostra bem ampla do que hoje há de melhor para a leitura no acervo encontramse biografias livros de poema clássicos lendas histórias para rir e histórias para chorar para brincar e para a prender São histórias dos muitos brasis que vivem no Brasil histórias de índio e de caipora de branco e de negro de bicho e de planta histórias de pai de mãe de pai novo e de mãe nova de avô e de avó e até de bisavó histórias de letras e de números de reis e de fadas de meninas e meninos de professores e de alu nos Enfim há de tudo Esta preocupação em abordar obras dos mais diferentes gêneros literários se deve segundo Serra 2003 p 73 a preocupação de que o currículo em geral está desprovido de oportunidades de leituras variadas que possibilitem desenvolver o exercício intelectual que promovam perguntas relacionem fatos e agucem a curiosidade Cunha 1995 p6 afirma que o fundamental é que o acervo apresente a maior diversidade possível de tendências dificuldades formas tamanhos gêneros Também a Fundação Nacional do Livro Infantojuvenil 2007 comenta A variedade do acervo se expressa por meio dos vários temas tratados pelas linguagens e estilos característicos de cada autor pelos tipos de técnicas das ilustrações dos diferentes projetos gráficos do formato de cada livro das várias expressões culturais nacionais e internacionais pela variedade de escritores e ilustradores abarcando os clássicos e contemporâneos brasileiros e estrangeiros além de várias editoras especializadas Na presente seleção foram contempladas 41 editoras 87 escritores nacionais 19 estrangeiros 64 ilustradores nacionais 16 ilustradores estrangeiros e 15 tradutores Assim tanto crianças e jovens quanto adultos em contato com esta diversidade tem maiores possibilidades de escolhas e direito à opinião pois se tiver pouca opção menor será a a possibilidade de descoberta e de crescimento CUNHA 1995 p7 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 337 Para a escolha das obras selecionadas pelo PNBE segundo Fernandes 2007 p66 a FNLIJ mostra que existe a necessidade de se levar em consideração que estas devem oferecer e despertar nos alunos o prazer e o interesse pela leitura por meio da qualidade literária e gráfica valorizando o livro que possua a edição texto e imagem articulados A escolha do acervo além de se basear na qualidade das obras também considera as diretrizes expostas nos documentos oficiais tais como os Parâmetros Curriculares Nacionais a Declaração Universal dos Direitos Humanos a Declaração dos Direitos da Criança a Constituição Brasileira e o Estatuto da Criança e do Adolescente FERNANDES 2007 p 67 Com a conclusão do levantamento de dados e dos critérios utilizados para a escolha de obras selecionamos dezessete títulos em que o principal objetivo é analisar como a escola é construída nessas obras O corpus selecionado para esta pesquisa é constituído pelos seguintes títulos A casa da madrinha de Lygia Bojunga Nunes Alice no país das maravilhas de Lewis Carroll A senha do mundo de Carlos Drummond de Andrade A televisão da bicharada de Sidónio Muralha Atrás da porta de Ruth Rocha Bisa Bia Bisa Bel de Ana Maria Machado CartãoPostal de Luis Raul Machado Coisas de menino de Eliane Ganem De surpresa em surpresa de Fanny Abramovich Lucas de Luís Augusto Gouveia Minhas memórias de Lobato de Luciana Sandroni O escaravelho do diabo de Lúcia Machado de Almeida O gênio do crime de João Carlos Marinho O homem que calculava de Malba Tahan O menino poeta de Henriqueta Lisboa O rei da fome de Marilda Castanha e Serafina e a criança que trabalhava de Jô Azevedo Iolanda Huzak e Cristina Porto José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 338 É importante notar que o acervo do PNBE de 1999 é dotado de uma particularidade Enquanto os acervos de outros anos são marcados por uma padronização do projeto gráfico e pela mesma data de impressão este acervo foi adquirido pelo governo da maneira como as editoras lançaram esses livros no mercado por isso as datas de publicação não são necessariamente de 1999 Algumas obras analisadas no entanto são de data posterior a 1999 pois obtivemos a informação em algumas das escolas pesquisadas de que pelo estado precário muitas destas foram descartadas ou não foram recebidas Desse modo para não prejudicar a pesquisa optamos por englobálas juntamente com as outras Neste estudo temos como objetivo estudar a representação da escola nas obras do PNBE1999 analisando as seguintes categorias escola pública ensino fundamental localização das escolas classe social espaço físico e estrutura biblioteca escolar importância do estudo e perfil das escolas A ESCOLA PÚBLICA A escola enquanto instituição onde se espera que toda a população tenha acesso além de ser um meio social presente na dia adia desta também veicula valores que podem convergir ou conflitar com os dos educandos Como já afirmado em Fernandes e outros 2001 a diversidade presente nas obras explicita o compromisso de formar os seus leitores dentro dos princípios democráticos BRASIL 1998 p63 O espaço escolar caracterizase como um espaço de di versidade por princípio O caráter universal do ensino fundamental definido em lei torna a escola um ponto de convergência de diversos meios sociais traz para seu seio os mais variados valores expressos na diversi A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 339 dade de atitudes e comportamentos das pessoas que a integram BRASIL 1998 p75 A imagem predominante no acervo do PNBE1999 é da escola pública como podemos constatar em Azevedo Huzak Porto 2000 Ganem 1999 Marinho 2000 e Nunes 1999 Em alguns casos esta informação aparece de forma implícita no texto sendo o leitor responsável pela dedução como por exemplo em Serafina e a criança que trabalhava Hoje eu cheguei em casa às oito da manhã e dormi só até meiodia pois antes de almoçar e ir para a escola eu ainda tinha de fazer a lição de casa AZEVEDO HUZAK PORTO 2000 p29 Nessa obra as autoras não especificam a qual tipo pública ou particular a escola se enquadra Contudo pelo fato de a personagem ter de trabalhar vendendo alguns artigos nas ruas entendemos que ela não teria condições financeiras adequadas para pagar uma escola particular O mesmo se passa no âmbito da história narrada em A casa da madrinha Esta obra mostra a realidade de Alexandre um menino pobre morador de favela e trabalhador que freqüenta a escola por um curto período O menino é obrigado a ajudar na renda familiar vendendo sorvete e amendoim na praia Alexandre saiu da escola Foi vender sorvete em vez de amendoim Era mais pesado de carregar mas pagava mais De noite ficava pensando nos colegas na Professora acabava perdendo o sono NUNES 1999 p41 Percebemos nesta obra que a escola marca profundamente o personagem Alexandre e mesmo quando vai embora e não a freqüenta mais tem seu pensamento fixo nas lembranças por ela produzidas É neste local onde o garoto encontra apoio de uma professora que acredita no potencial de cada aluno e foge do currículo tradicional proporcionando aprendizagem com alegria FERNANDES 2007b p49 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 340 O apreço do personagem pela escola pública também está relacionado à questão da escola como fornecedora de alimentos Pronto garoto agora bota a cuca pra funcionar E Alexandre botou Gostava da escola Davam merenda NUNES 1999 p36 Em Coisas de Menino Ganem 1999 p118 comenta sobre a obrigatoriedade das escolas públicas e da merenda escolar Ah mas já tem tanta escola pública Só não estuda quem não quer E dizer que o pessoal não estuda porque tá de barriga vazia é mentira E escola dá comida não dá Dá me renda escolar não é É obrigatória Pois então O narrador reforça a idéia de um ensino público e gratuito já assegurado na Constituição Federal Desta forma Babette 1980 p32 afirma o ensino público gratuito e obrigatório é visto como a melhor maneira de alcançar uma verdadeira democratização dos estudos Assim a escola deve ajudar o aluno a ser capaz de crescer e produzir A escola em O gênio do crime MARINHO 2000 tem uma representação dual Os personagens Bolacha Pituca e Edmundo têm um poder aquisitivo razoáveis tendo condições durante a investigação sobre a clonagem das figurinhas de pagar o transporte e manter um pequeno acampamento Em vista disso é difícil dizer se a escola que eles freqüentam é pública ou particular Porém grande parte da história se passa em uma favela no colégio fictício chamado de Ateneu Nosso Brasil Às sete horas o filho menor saiu do barraco com uni forme de escola A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 341 Foi para a escola mesmo estuda no Ateneu Nosso Bra sil na Casa Verde Parece que no segundo ano MARI NHO 2000 p52 Em geral ao investigar a representação da escola nas obras verificamos que o acervo dialoga com as diretrizes educacionais da Constituição Federal e dos Parâmetros Curriculares Nacionais mostrando a necessidade de um ensino público gratuito obrigatório e de qualidade em um espaço escolar caracterizado como um espaço que engloba uma grande diversidade cultural e social ENSINO FUNDAMENTAL Em grande parcela das obras analisadas a escola é de ensino fundamental assim como as séries atendidas pelo PNBE Com exceção da obra O escaravelho do diabo de Lúcia Machado de Almeida 1999 p6 que trata da representação do ensino superior Pouco depois do meiodia Alberto chegou da Faculdade de Medicina e foi diretamente para o quarto do irmão a fim de comentar com ele a prova que acabara de fazer Em Castanha 1999 Gouveia 1999 Marinho 2000 Muralha 1997 Rocha 1997 e Sandroni 1997 percebemos com clareza a opção pela tematização do ensino fundamental A narrativa de O rei da fome CASTANHA1999 evidencia que a escola do Reino é de ensino fundamental porque o protagonista precisa ser alfabetizado Desmascarado o rei não teve outra saída ou melhor naquele mesmo dia teve entrada na escola do Reino com direito a matrícula caderno lápis e dever de casa Quanto a Fiel quando soube da boanova sarou rapi dinho pois estava doente era de tanto ver estrago E Vocabulário Está rindo à toa feliz da vida CASTA NHA 1999 sp José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 342 A autora reforça a questão do direito e da obrigatoriedade do ensino para todas as pessoas independente da idade ou condição financeira pois o personagem da obra é o rei que comia livros por não saber ler Em A televisão da bicharada Muralha 1997 torna lúdico o cotidiano escolar Neste poema o autor mostra uma criança realizando suas atividades escolares e com o auxílio do vocábulo menino revela que se trata de um estudante da educação básica E a borboleta para agradecer abriu a sacola e ajudou o menino a fazer os exercícios da escola MURALHA 1997 p30 A obra Lucas de Luis Augusto Gouveia 1999 sp também retrata o ensino fundamental Mateus tem cinco anos e até o ano passado estudava numa escola especial Agora está numa classe aqui mesmo junto de outras crianças e pode aprender com elas Nesta obra notamos ainda a questão da inclusão de alunos portadores de necessidade especial Convém lembrar que conforme mencionamos na introdução o acervo do PNBE1999 possui quatro obras voltadas às crianças portadoras de necessidades especiais que abordam essa temática Atrás da porta ROCHA 1997 p4 descreve mas de forma implícita a escola do ensino fundamental e a importância de contar histórias para a formação do leitor Dona Carlotinha era aquele tipo de avó que todo mundo quer ter Brincava com os netos de teatrinho de acampamento no quintal de amarelinha tocava vio lão cantava e contava histórias E que histórias Dava A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 343 impressão de que ela sabia todas as histórias do mun do Sabese que o personagem Carlinhos estuda em uma escola onde sua avó fora professora por muitos anos e por ela realizar diversas brincadeiras dinâmicas e a contação de história o estudo se torna uma atividade marcante na infância do garoto conduzindoo por um caminho que o levará a um crescimento intelectual Podemos observar que nesta obra a representação de escola é aquela cujas ações pedagógicas são balanceadas não forçando a criança a ser um adulto antes da hora Cabe a escola encontrar um ponto de equilíbrio entre a criança como futuro adulto e a criança como atualmente criança SNYDERS 1993 p 29 Por tudo isso Snyders afirma A convivência com a cultura cultivada que culmina na relação entre o aluno e os mais belos resultados atingi dos pela cultura as grandes conquistas da humanidade em todos os campos desde poemas até descobertas prodigiosas e tecnologias inacreditáveis Alegria cultu ral alegria cultural escolar SNYDERS 1993 p 32 Sandroni 1997 p5 ao descrever Emília e a turma do Sítio do Picapau Amarelo faz alusão à escola de ensino fundamental já que Narizinho e Pedrinho são crianças Por incrível que pareça Emília andava muito quieta Pensava o dia inteiro em que aventura ia se meter desta vez Pedrinho e Narizinho estavam na escola e ela não poderia esperar para aprontar alguma Contudo Marinho 2000 p7 é o autor que mais explicitamente representa o ensino fundamental nas obras analisadas Na Escola Primária Inês Bandeiras o sino anunciou o recreio e o Edmundo saiu voando da classe para encontrar o Pituca no pátio Dessa maneira podemos dizer que o nível de ensino enfocado é o fundamental com a clientela da mesma faixa etária atendida pelo José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 344 PNBE 1999 Nas obras vemos certa recorrência de um ensino diferenciado inovador com professores que buscam colocar os alunos em contato com uma cultura letrada cujos conhecimentos façam sentido no cotidiano destes LOCALIZAÇÃO DAS ESCOLAS Todas as obras do PNBE1999 localizam suas escolas no meio urbano Dentro desse espaço urbano duas obras mencionam a localização de escolas em favelas Ganem 1999 e Marinho 2000 Ganem 1999 p120 mostra o preconceito da sociedade em relação à favela Lembrou de Vera Já tinha até trabalhado em favela uma vez como professora primária O uso da preposição até parece querer dizer que a favela seria o último local onde se pensaria em lecionar Em outro trecho o narrador vai além Passaram por uma escola Ela não sabia que no morro tinha escola GANEM 1999 p127 A favela parece ser o tipo de local onde as pessoas não conseguem encontrar aspectos positivos Observase apenas a violência a venda de drogas mas não vêem que há certas iniciativas geradoras de estímulos positivos como por exemplo desenvolvimento de projetos sociais educacionais e econômicos Marinho 2000 p52 também situa uma das escolas na favela Às sete horas o filho menor saiu do barraco com uniforme de escola Porém aqui não há o ceticismo revelado por Ganem 1999 com relação à localização da escola na favela Mas a instituição descrita por Marinho é o cenário de uma prática ilegal porque é o lugar em que o filho de um homem repassa a lista com as figurinhas a serem clonadas No que tange às escolas rurais em apenas uma obra há menção à vida escolar das crianças ligadas ao trabalho infantil e às A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 345 dificuldades de elas freqüentarem a escola Serafina e a criança que trabalhava Na roça desde cedo as crianças ajudam os pais a plan tar e colher Como os pais não estudaram muitas delas encontram uma dificuldade a mais para ir à escola pois os pais nem sempre acham importante ter estudo E quando acham a escola fica longe Ou então nem exis te escola na região como as crianças de nossas histórias de verdade também ajudam os pais a cuidar das galinhas dos pa tos De vez em quando também ajudam na colheita do café milho Mas eles estudam na escola da ci dade AZEVEDO HUZAK PORTO 2000 p22 Desta forma parece ser possível dizer que é praticamente nulo o número de escolas ficcionais no espaço rural As crianças que moram em zonas rurais quando conseguem estudar estudam na escola da cidade Ou seja não há representação de escola rural no acervo analisado A CLIENTELA ESCOLAR CLASSE SOCIAL Com relação à condição financeira da clientela atendida pelas escolas ficcionais podemos afirmar que de certa maneira oscila entre uma classe baixa e média até pelo fato de estes alunos freqüentarem uma instituição pública Apesar dessa oscilação a descrição de uma classe baixa predomina nos textos analisados No conjunto a classe social dos alunos pobres está problematizada em Abramovich 1998 Azevedo Huzak e Porto 2000 Ganem 1999 Marinho 2000 e Nunes 1999 Jô Azevedo Iolanda Huzak Cristina Porto 2000 p29 retratam a situação de muitas crianças e adolescentes brasileiras o trabalho informal que colabora com o orçamento familiar Daí é só José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 346 canseira o resto do dia Não dá nem pra prestar atenção direito na explicação da professora Nesse fragmento notamos que o trabalho influencia negativamente o desenvolvimento intelectual dos alunos e estes não têm disposição para prestar atenção nas explicações da professora Nunes 1999 assim como Azevedo Huzak Porto 2000 também tematiza o trabalho infantil e a evasão escolar O protagonista Alexandre é obrigado a sair da escola para trabalhar vendendo amendoim e sorvete na praia e depois o personagem vai trabalhar na Avenida Rio Branco parando os táxis para os fregueses Em uma das atividades realizadas pela professora da maleta os alunos deveriam dar uma aula e Alexandre quando escolhido comenta sobre seu trabalho Contudo os pais das outras crianças não entendem esse tipo de aula e reclamam com a direção A Professora explicou que Alexandre só estava contando pros colegas como era o trabalho dele pra todos ficarem sabendo como é que ele vivia NUNES 1999 p 38 A recusa desse tipo de prática na escola é explicada por Babette 1980 Ao mesmo tempo outras experiências e vivencias adquiridas por exemplo por crianças que são obrigadas a trabalhar desde pequenas embora possam conter uma extraordinária riqueza não são levadas em conta pela escola BABETTE 1980 p77 Também Ganem 1999 mostra os alunos pertencentes a uma classe econômica desfavorecida O personagem Olho de Boi menino de rua parece ter mais medo de ir à escola que para a prisão Sei não Olho de Boi ficou pensando Embaralhado Tô cum medo do juiz me mandar pro colégio GANEM 1999 p67 Abramovich 1998 delineia uma família provavelmente de classe baixa Na obra a autora descreve a personagem Camila que ganha um convite de Silvia sua amiga para uma peça teatral com A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 347 fantoches no Teatro Municipal A personagem fica extasiada quando chega ao teatro pois aquilo tudo para ela é novidade mesmo que a mãe tenha tentado lhe explicar como era uma peça com fantoches A coisa mais imponente que já tinha visto na sua vida Daí olhou pra cima Um lustre imenso preso no teto iluminando de levinho o teatro Todo brilhante faiscan te radiante Parecia cristal Um milhão de vezes maior que o globo terrestre que tinha na escola ABRAMOVI CH 1998 sp Mas ao terminar a apresentação Camila faz o seguinte comentário Tadinha da mãe que achava que era parecido com o teatro de fantoches da escola Ela não sabia de nada ABRAMOVICH 1998 sp A representação da clientela escolar em O gênio do crime MARINHO 2000 como já comentado na categoria sobre a escola pública é dual Os protagonistas possuem condições econômicas razoáveis entretanto os filhos do cambista que clona as figurinhas de seu Tomé são pobres e estudam em um colégio na favela onde moram No que se refere à classe social dos alunos há grande recorrência de uma classe baixa e média Porém este fato nos mostra que a condição social influencia em alguns casos na saída destes alunos da escola para contribuírem na renda familiar Mas em geral os estudantes acreditam na escola como forma de ascensão social e se esforçam para vencer na vida A ESCOLA ESPAÇO FÍSICO E ESTRUTURA Um aspecto que merece ser destacado é o fato de que são poucas as descrições do espaço físico e da estrutura das escolas ficcionais presentes no PNBE1999 Encontramos apenas algumas José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 348 alusões em Lisboa 1999 Andrade 1999 Marinho 2000 e Ganem 1999 Em Colégio LISBOA 1999 há uma descrição poética da escola a partir do movimento da fila dos alunos que vai desenhando a arquitetura escolar Colégio Dois a dois dois a dois E a fila serpentina escorrega nas escadas esticase nos corredores projetase nos pátios LISBOA 1999 p39 Outro exemplo é o poema Fruta Furto ANDRADE 1999 que desvia o interesse do prédio escolar para o interesse dos alunos ou seja o que está do lado de fora O poeta rompe com o discurso pedagógico a ação de estudar parece ser recompensada com o convite para furtar jabuticabas Fruta Furto Atrás do grupo escolar ficam as jabuticabeiras Estudar a gente estuda Mas depois ei pessoal furtar jabuticaba ANDRADE 1999 p36 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 349 Também Marinho 2000 insere em sua narrativa a presença do pátio escolar local mais preferido pelas crianças que funciona como um ponto de encontro de alunos das diferentes séries Na Escola Primária Três Bandeiras o sino anunciou o recreio e o Eduardo saiu voando da classe para encon trar o Pituca no pátio p 7 Encontrou o Pituca risonho embaixo do abacateiro do pátio MARINHO 2000 p8 Ganem 1999 mostra em sua obra como o espaço da escola pode ser bem aproveitado em atividades incentivadoras aos alunos No trecho abaixo percebemos um colégio amplo onde professores e direção trabalham em conjunto promovendo a integração e a interdisciplinaridade O filme era pra ser passado na escola na Feira de Arte O colégio dividido em grupos com um trabalho diferen te teatro de fantoche exposição de pintura livro escri to e desenhado conjunto de música com piano bateri a violão e o filme surpresa que o pessoal estava pre parando GANEM 1999 p131 No que diz respeito à biblioteca algumas obras analisadas mostram imagens de biblioteca não escolar Almeida 1999 Marinho 2000 Sandroni 1997 e Tahan 1999 E das cento e dez obras lidas do acervo do PNBE1999 apenas duas enfocam a biblioteca escolar Minhas memórias de Lobato de Luciana Sandroni 1997 e Atrás da porta de Ruth Rocha 1997 Em Minhas Memórias de Lobato 1997 Sandroni relata um episódio que parece ter a mesma preocupação do PNBE Só que o Doutor Washington Luís então governador de São Paulo tendo ido visitar um dia as escolas notou que em todas as bibliotecas havia um livro bem gasto já bem acabado era A Menina do Narizinho Arrebitado que o Lobato tinha ofertado as escolas O Doutor Wa shington Luís pensou que aquele livro devia ser muito José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 350 querido pelas crianças e resolveu mandar comprar no vos exemplares para todas as escolas de São Paulo SANDRONI 1997 p66 Destacase o interesse do governo estadual da época em realizar compras de obras literárias para as bibliotecas e por meio do desgaste de um livro de Monteiro Lobato entendeu que a leitura daquele livro era freqüente e intensa merecendo adquirir novas obras para todas as escolas de São Paulo Já a narrativa de Atrás da porta ROCHA 1997 única obra a tematizar exclusivamente a questão da biblioteca escolar mostra que este espaço muitas vezes é negado ao convívio dos alunos Na história a biblioteca vive trancada e os alunos ignoram sua existência na escola Uma porção de crianças estavam sentadas às mesas deitadas nos tapetes recostadas nas poltronas com pequenas velas acesas lendo Ora essa O Antonio exclamou Que ótima surpresa essa criançada toda lendo Mas Joana não estava entendendo Ué Por que é que vocês não vêm ler todo dia Carlinhos respondeu por todos A gente pode Claro que pode Joana respondeu Para isso são as bibliotecas Ainda mais as bibliotecas das escolas Mas aqui não é a biblioteca da escola o João falou É sim disse Joana Ninguém sabia desta passagem mas aqui é a biblioteca da escola Vocês não conheci am ROCHA 1997 p23 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 351 Rocha leva o leitor a pensar como pode ser uma biblioteca escolar por meio do personagem Carlinhos que inicialmente se nega a acreditar que aquele espaço é parte da escola Assim percebemos que a biblioteca escolar vem sendo deixada de lado ou a ela está sendo atribuídas falsas finalidades Silva 1991 p111 afirma Por vezes o espaço da biblioteca escolar vem servir de local de castigo aos alunos indisciplinados transformandose em verdadeira sala de tortura ou de inculcação das normas da instituição Ao contrário de tudo isso a biblioteca tem de ser o cérebro da escola e construir o conhecimento a fim de se tornar um recurso básico para as decisões curriculares permitindo a atualização pedagógica dos professores a aprendizagem significativa dos estudantes e a participação da comunidade em termos de indagações SILVA 1991 p112 Por isso Serra 2003 p79 afirma Negar à escola das crianças brasileiras o direito à biblioteca é negar o direito ao caminho democrático que leva ao conhecimento ESCOLA E A IMPORTÂNCIA DO ESTUDO Um ponto interessante a ser discutido é como a importância do estudo é retratada nas obras literárias do acervo do PNBE Em duas obras podemos notar esse tema Azevedo Huzak Porto 2000 e Ganem 1999 Em outras aparecem algumas alusões a essa temática tais como Nunes 1999 Sandroni 1997 e Tahan 1999 Em Serafina e a criança que trabalhava as autoras dialogam diretamente com os alunos falando da importância do estudo Você e todas as outras crianças que estão podendo fre qüentar uma escola não devem esquecer jamais que o estudo é um trabalho que prepara para o futuro Mas o trabalho que impede as crianças de irem para a escola José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 352 só está tirando delas a possibilidade de um futuro me lhor AZEVEDO HUZAK PORTO 2000 p37 Comparam a aprendizagem ao trabalho indicando que o estudo ao contrário do trabalho que provoca a evasão escolar prepara para um futuro mais tranqüilo Isso vai de encontro a Snyders 1993 p27 ao comentar algumas das funções da escola Afirmo que a escola preenche duas funções preparar o futuro e assegurar ao aluno as alegrias presentes durante esses longuíssimos anos de escolaridade que a nossa civilização conquistou para ele Ganem 2000 p118 vai além Produz a seguinte crítica Eu acho que o maior problema do Brasil é a falta de educação O sujeito às vezes não arruma emprego porque é analfabeto A educação é importante deviam dar educação pro povo Nesta obra o estudo é visto como algo que pode promover uma mobilidade social pois mesmo com tantos outros problemas a educação é apontada como um dos primeiros a serem sanados Neste mesmo sentido Sandroni 1997 escreve Lobato achava que o caboclo resumia tudo de ruim que possa ter o ser humano só depois ele foi perceber que o caboclo era ignorante porque o governo não oferecia educação e saúde SANDRONI 1997 p51 Convém ressaltar nessa passagem como a falta de educação afeta a imagem pessoal do homem que corre o risco de perder seu valor enquanto ser humano NUNES 1999 trata da escola como promotora da mobilidade social na visão do protagonista Alexandre Num instante aprendeu um monte de coisas E se o Augusto não chegava em casa muito cansado ele cismava de ensinar pro irmão tudo que tinha aprendido E contava que ia estudar muitos anos que nem o pes soal lá debaixo estava numa dúvida danada se ia ser médico do coração ou dos dentes também ainda não sabia direito onde é que ia comprar apartamentos se Ipanema ou Leblon NUNES 1999 p36 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 353 Como se vê a autora explicita a importância do estudo mostrando os sonhos do personagem Alexandre morador da favela que acredita na capacidade de mudança produzida pela educação Tahan 1999 p71 demonstra o valor do conhecimento O homem só vale pelo que sabe Aqui como em Sandroni 1997 fica claro o valor atribuído ao homem por seu conhecimento Em suma observase o apreço das obras literárias analisadas em relação à importância do estudo Nelas fica claro que com estudo é possível uma mudança tanto econômica e social quanto cultural PERFIL DAS ESCOLAS Neste acervo do PNBE1999 percebemos que o perfil da escola oscila entre uma representação ora positiva ora negativa No balanço geral predomina a representação positiva da instituição escolar porque mesmo nas obras em que ocorrem uma imagem negativa Machado 1999 Machado 1996 Carroll 2000 e Bojunga 2002 é possível vislumbrar uma proposta de mudança Em Bisa Bia Bisa Bel MACHADO 1999 p 61 é visível a crítica à escola apegada exclusivamente aos conhecimentos do passado o que não quer dizer que o estudo deste não seja importante Estudar o futuro já imaginou Muito melhor do que ficar sempre amarrada no passado feito a escola está sempre fazendo CartãoPostal MACHADO 1996 p15 fala da escola como um lugar que parece um local sem alegria E se você fugisse de casa não fosse mais para a escola saísse pelo mundo Será que você encontrava a alegria Alice no país das maravilhas CARROLL 2000 p106 aponta o lado autoritário da escola Como esses bichos gostam de dar ordens e mandar a gente recitar por aqui pensou Alice Até parece que José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 354 estou na escola p106 Nesta passagem observase a representação da escola atrelada as práticas de ensino conservadoras e autoritárias A narrativa de A casa da madrinha NUNES 1999 p23 também expõe esse lado obscuro da escola aí perderam a paciência e resolveram Vamos acabar de uma vez com essa mania desse cara se soltar E então levaram o Pavão pra uma escola que tinha lá perto e que era uma escola feita de propósito pra atrasar o pensamento dos alunos Em contrapartida há a representação de uma escola solidária capaz de fazer o aluno interagir com o conhecimento construindo saberes que façam sentido em sua vida Em Machado 1999 p 62 63 as práticas escolares ultrapassadas passam por transformações positivas Dessa vez a pesquisa do colégio não é só em livro nem fora de mim É também na minha vida mesmo dentro de mim Em Lucas GOUVEIA 1999 sp podemos perceber como o aluno pode gostar da escola Adoro a escola Na visão de Lucas escola é lugar de alegria As práticas de ensino realizadas na escola OSARTA a traso escrito de trás para frente onde atrasaram o pensamento do Pavão podem ser contrapostas às de outra escola que marca o personagem Alexandre tan to pelas aulas criativas da professora da maleta quanto pela merenda ofertada NUNES 1999 No conjunto ressaltase a dualidade de imagem da escola Se por um ângulo a vemos de maneira negativa por outro a face positiva também se revela A representação autoritária da escola é sempre mostrada de maneira negativa como algo que precisa ser mudado enquanto a representação democrática é positiva cuja vivência faz com que o aluno seja capaz de dar significado e aplicabilidade aos conhecimentos adquiridos A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 355 Enfim nas obras do PNBE parece predominar uma representação positiva da escola Conforme averiguamos em outros exemplos as narrativas assinalam que a escola traz alegria aos alunos tanto pelas atividades desenvolvidas quanto pelos acontecimentos em seu pátio ou arredores onde os estudantes podem andar se encontrar conversar ou simplesmente como em Andrade 1999 colher fruta no pé CONSIDERAÇÕES FINAIS Tendo em vista os dados expostos a seleção e descrição dos fatos mais significativos ao objeto da pesquisa podemos constatar que a imagem de escola na maioria das obras do Programa Nacional Biblioteca da Escola de 1999 representa a escola pública brasileira ou seja o local onde estas obras foram distribuídas Estas obras deixam clara a grande diversidade encontrada na instituição escolar em consonância com o exposto nos PCNs Na escola temse oportunidade de conviver com pes soas diferentes Uns são brancos outros negros outros mestiços há meninos e meninas alguns com limitações no desempenho outros talentosos em algumas habili dades pessoas de renda familiar desigual oriundas de famílias de diversas regiões e opiniões políticas etc To dos os alunos estão na sala de aula usufruindo do mesmo direito à educação BRASIL 1998 p97 Conviver com o diferente na escola é um desafio enriquecedor A pluralidade está presente no cotidiano escolar assim como na produção cultural que o governo federal disponibiliza por meio do PNBE De modo geral os alunos descritos no acervo pertencem à parte da população que se encontra entre a classe média e baixa sendo esta a clientela que as escolas públicas normalmente atende Nesse sentido as obras dialogam com uma realidade já conhecida José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 356 pelos alunos brasileiros as dificuldades encontradas para aprender o trabalho para ajudar a família a evasão escolar entre outros problemas Na escola pública tanto real quanto ficcional muitos alunos são dela retirados porque os pais não têm consciência sobre as possibilidades que a educação pode trazer às crianças e aos adolescentes Eles não sabem como a educação pode e faz a diferença na vida de milhares de estudantes Para notar isso bastar lermos o trecho da obra de Azevedo Huzak e Porto 2000 Como os pais não estudaram muitas delas crianças encontram uma dificuldade a mais para ir à escola pois os pais nem sempre acham importante ter estudo AZEVEDO HUZAK E PORTO 2000 p 29 Outra observação digna de atenção é que a representação da biblioteca escolar aparece apenas em duas obras fato que estranhamos em função de haver muitas obras retratando a escola mas poucas falando de um espaço de suma importância onde o professor pode desenvolver as mais diversas atividades Para finalizar observando a relação entre literatura infanto juvenil e escola principal preocupação deste trabalho podemos dizer que a escola representada neste acervo do Programa Nacional Biblioteca da Escola de 1999 em linhas gerais revela uma imagem positiva Mesmo com a visualização de aspectos negativos percebemos que a escola é um local onde os alunos encontram alegria e estímulos para a aquisição de conhecimento de crescimento cultural e intelectual A escola é vista portanto como local onde os alunos podem adquirir ferramentas e conhecimentos para a mobilidade social promovendo uma socialização dos saberes produzidos pelo homem e a construção de novos saberes A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 357 REFERÊNCIAS BABETTE Happer et al Cuidado escola Desigualdade domesticação e algumas saídas São Paulo Brasiliense 1980 BRASIL Secretaria de Educação Fundamental Parâmetros curricula res nacionais terceiro e quarto ciclos apresentação dos temas transversais Secretaria de Educação Fundamental Brasília MECSEF 1998 CUNHA Maria Antonieta Antunes Cunha consultoria e elaboração Critérios de seleção e composição de acervo Minas Gerais Diart 1995 caderno 3 FERNANDES Célia Regina Delácio Leitura literatura infantojuvenil e educação Londrina EDUEL 2007 et al História e histórias guia do usuário do Programa Na cional Biblioteca da Escola PNBE 99 literatura infantojuvenil Se cretaria de Educação Fundamental Brasília MEC 2001 Quem é a professora na literatura infantojuvenil In Raído Revista do Programa de PósGraduação em Letras da UFGD n1 Janjul 2007 Dourados MS UFGD 2007b p 4353 FUNDAÇÃO NACIONAL DO LIVRO INFANTIL E JUVENIL Programa Na cional Biblioteca da Escola PNBE 1999 Disponível em httpwwwfnlijorgbr Acesso em 15 nov 2007 SERRA Elizabeth DAngelo Políticas de promoção da leitura In RI BEIRO Vera Masagão Org Letramento no Brasil São Paulo Glo bal 2003 p 6585 SILVA Ezequiel Theodoro da De olhos abertos reflexões sobre o de senvolvimento da leitura no Brasil Série Educação em ação São Paulo Ática 1991 SNYDERS Georges Alunos felizes reflexão sobre a alegria na escola a partir de textos literários Tradução de Cátia Ainda Pereira da Silva Rio de Janeiro Paz e terra 1993 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs 358 CORPUS PNBE1999 ABRAMOVICH Fanny De surpresa em surpresa Ilustrador Salmo Dansa 2 ed Curitiba Editora Braga 1998 ALMEIDA Lúcia Machado de O escaravelho do diabo Ilustrações Mário Cafiero 24 ed Vagalume São Paulo Ática 1999 ANDRADE Carlos Drummond de A senha do mundo Rio de Janeiro Record 1999 Coleção Verso na prosa prosa no verso 3 Ilustra ções incluídas nesta obra foram publicadas nos periódicos ingleses Chatterbox 188499 e British Workwoman 1874 AZEVEDO Jô HUZAK Iolanda PORTO Cristina Serafina e a criança que trabalhava Ilustrações de Michele Fotos Iolanda Huzak 12 ed São Paulo Ática 2000 CARROLL Lewis Alice no país das maravilhas Ilustrações de Jô de Oliveira Tradução de Ana Maria Machado 3 ed coleção Eu Leio São Paulo Ática 2000 CASTANHA Marilda O rei da fome Ilustrações de Marilda Castanha 6 ed Rio de Janeiro Ediouro 1999 GANEM Eliane Coisas de menino Ilustrações Jaime Leão 8ed Rio de Janeiro José Olympio 1999 GOUVEIA Luís Augusto Lucas Ilustração Luís Augusto Gouveia Coleção Fala Menino Salvador Press Color 1999 LISBOA Henriqueta O menino poeta Capa e ilustrações Leonardo Menna Barreto Gomes 13 ed série o menino poeta Porto Alegre Edelbra 1999 MACHADO Ana Maria Bisa Bia Bisa Bel Ilustrações de Regina Yo landa 8 ed Rio de Janeiro Salamandra 1999 MACHADO Luis Raul CartãoPostal Ilustrações Anna Göbel Belo Horizonte Formato Editorial 1996 MARINHO João Carlos O gênio do crime 51 ed São Paulo Global 2000 A Literatura infantil e juvenil hoje múltiplos olhares diversas leituras ISBN 9788586837777 359 José Nicolau Gregorin Filho Patrícia Kátia da Costa Pina Regina da Silva Michelli orgs MURALHA Sidónio A televisão da Bicharada Ilustrações de Cláudia Scatamachia 9 ed coleção Sidónio Muralha São Paulo Global 1997 NUNES Lygia Bojunga A casa da madrinha Ilustrações de Regina Yolanda Capa de Elifas Andreato 18 ed Rio de Janeiro Agir 1999 ROCHA Ruth Atrás da Porta Ilustração Elisabeth Teixeira Rio de janeiro Salamandra 1997 SANDRONI Luciana Minhas memórias de Lobato São Paulo Com panhia das Letrinhas 1997 TAHAN Malba O homem que calculava Rio de Janeiro Record 1999 360 QUEM SOMOS NÓS JOSÉ NICOLAU GREGORIN FILHO possui graduação em Português e Inglês pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras Barão de Mauá 1987 Mestrado em Linguística e Língua Portuguesa pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho 1996 e Doutorado em Linguística e Língua Portuguesa pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho 2002 Atualmente é professor doutor da Universidade de São Paulo Tem experiência na área de Letras com ênfase em LITERATURA INFANTIL Atua nas áreas de literatura infantil estudos comparados de literatura leitura cultura e sociedade PATRÍCIA KÁTIA DA COSTA PINA é graduada em Letras pela Universidade Santa Úrsula 1982 é Mestra em Literatura Brasileira pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro 1995 e Doutora em Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro 2000 Foi professora adjunta de Literatura Brasileira da Universidade Estadual de Santa Cruz em Ilhéus onde desenvolveu projeto de pesquisa relacionado às questões sobre leitor e leitura bem como à literatura sul baiana Atualmente é professora adjunta de Literatura Brasileira da UNEB Campus XX BrumadoBA onde desenvolve projeto de pesquisa ligado às adaptações de obras literárias para HQ e a formação do gosto pela leitura literária Tem experiência na área de Letras com ênfase em Literaturas de Língua Portuguesa atuando principalmente nos seguintes temas literatura oitocentista e novecentista formação do público leitor história da leitura HQ literatura infantil e juvenil história cultural e jornalismo REGINA SILVA MICHELLI é graduada e licenciada em Letras pela Faculdade de Humanidades Pedro II 1977 psicóloga com 361 graduação e licenciatura pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro 1979 mestre em Letras Letras Vernáculas Literatura Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro 1994 e doutora em Letras Letras Vernáculas Literatura Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro 2001 Atualmente é professora adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro UERJ e do Centro Universitário Augusto Motta UNISUAM Tem experiência na área de Letras com ênfase em Literatura Portuguesa e Literatura InfantoJuvenil ELIANE SANTANA DIAS DEBUS possui graduação em Letras Licenciatura Português e Inglês pela Fundação Educacional de Criciúma 1991 mestrado em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina 1996 e doutorado em Lingüística e Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul 2001 Professora do Programa de PósGraduação em Ciências da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina Tem experiência na área de Letras com ênfase em Literatura Brasileira atuando principalmente nos seguintes temas literatura infantil e juvenil literatura e ensino mediadores de leitura leitura literária e formação de professores MARIA ZILDA DA CUNHA possui graduação em Pedagogia pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras Nossa Sra do Patrocínio 1977 graduação em Letras pela Faculdade de Ciências e Letras de Bragança Paulista 1973 em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo 1972 pós graduação em Psicopedagogia pelo Instituto Sedes Sapiense 1989 especialização em Psicomotricidade pelo Instituto GAE 1991 mestrado em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo 1997 e doutorado em Letras EstComp de Liter de Língua Portuguesa pela 362 Universidade de São Paulo 2002 Atualmente é professor doutor da Universidade de São Paulo MARTA YUMI ANDO Doutoranda em Letras pela Universidade Estadual Paulista possui graduação e mestrado em Letras pela Universidade Estadual de Maringá Tem experiência na área de Letras com ênfase em Literatura atuando principalmente com Prosa experimental Literatura Infantojuvenil e Leitura RHEA SÍLVIA WILLMER possui mestrado em Letras Letras Vernáculas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro 2009 Especialização em Literatura Infantojuvenil 2005 pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e graduação em Licenciatura e Bacharelado em Letras pela Universidade Estadual de Campinas 1999 FABIANA VALÉRIA DA SILVA TAVARES possui duas graduações e mestrado em Letras pela Universidade de São Paulo 1998 2003 2007 Atualmente desenvolve seu projeto de doutorado pela Universidade de São Paulo Tem experiência na área de Letras com ênfase em Estudos de Cultura Literaturas de Língua Inglesa e Literatura Infantil e Juvenil atuando principalmente nos seguintes temas história dos Estados Unidos estudos de cultura e literatura infantil e juvenil PENHA LUCILDA DE SOUZA SILVESTRE possui graduação em Letras pela Faculdade Estadual de Filosofia Ciências e Letras de Jacarezinho PR 1989 graduação em Pedagogia pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Piraju 1998 mestrado em Letras pela Universidade Estadual de Maringá PR 2005 doutoranda em Letras pela Universidade Estadual Paulista UNESP Assis SP 2007 e cursando graduação em Psicologia Clínica na Fio Faculdades 363 Integradas de Ourinhos 2007 Atualmente é professora de Educação Básica II da Escola Estadual Nicola Martins Romeira orientadora no curso de Especialização em Estudos lingüísticos e literários FAFIJA Tem experiência na área de Letras com ênfase em Letras atuando principalmente nos seguintes temas Ricardo Azevedo literatura literatura infantojuvenil e leitura MARCO MEDEIROS Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro UERJ e atua na docência na Faculdade de Formação de Professores FFP MARA CONCEIÇÃO VIEIRA DE OLIVEIRA possui graduação em Letras pela Universidade Federal de Juiz de Fora 1995 mestrado em Letras pela Universidade Federal de Juiz de Fora 2000 doutorado em Letras pela Universidade Federal Fluminense 2003 Tem experiência na área de Letras com ênfase em pesquisas sobre Teoria Literária e Literatura Comparada atuando principalmente nos seguintes temas análise crítica de poesia e análise crítica teórica comparativa entre os discursos literários e filosóficos e no ensino de Língua Portuguesa como docente em cursos de graduação GEOVANA GENTILI SANTOS é doutoranda pela Universidade de Santiago de Compostela USC Espanha junto ao Programa Literatura y construcción de la identidad en Galicia e pela Universidade Estadual Paulista UNESPAssis junto ao Programa de PósGraduação em Letras Literatura e Vida Social Mestre 2009 e Graduada por essa mesma Instituição em Letras PortuguêsFrancês 2005 e em PortuguêsEspanhol 2007 Tem experiência na área de Letras com ênfase em literatura comparada e literatura infanto juvenil brasileira 364 LUCI REGINA CHAMLIAN é mestranda na Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo FFLCH USP na área de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa RENATA DE SOUZA DIAS MUNDT possui graduação em Português e Alemão pela Universidade de São Paulo 1990 graduação em Licenciatura em alemão pela Universidade de São Paulo 1994 e mestrado em Letras Língua e Literatura Alemã pela Universidade de São Paulo 2001 Atualmente é doutoranda da Universidade de São Paulo atuando principalmente nos seguintes temas tradução de literatura alemã infantojuvenil e adulta tradução de artigos jornalísticos DANIELA BUNN atualmente desenvolve pesquisa de Doutorado na área de Literatura Literatura e Artes Leitura Literatura e Infância Literatura e Ensino Literatura Italiana realiza oficinas e minicursos Possui graduação em Letras PortuguêsItaliano 2001 e Mestrado em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina 2003 onde trabalhou como professora de Metodologia e Prática do Ensino de Português 20042006 professora de italiano no Curso Extracurricular 20012009 e tutora no EadLetrasEspanhol Atualmente é professora substituta do Centro de Ciências da Educação da UFSC trabalhando nos cursos de Letras e Pedagogia ELOÍSA PORTO CORREIA concluiu o Doutorado em Letras Vernáculas Literatura Portuguesa em 2008 na UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro onde cursou também o Mestrado na mesma área entre 2003 e 2005 Possui graduação em Letras pela UERJ Universidade do Estado do Rio de Janeiro concluída em 2003 Atualmente é Professora Substituta da UERJ Universidade do Estado 365 do Rio de Janeiro Coordenadora do Curso de Letras da USS Universidade Severino Sombra Professora de Português Literatura e Produção Textual da Prefeitura Municipal de Itaboraí e do Governo do Estado do Rio de Janeiro Tem experiência nas áreas de Letras com ênfase em Literaturas Portuguesa Brasileira e Africanas e de Artes com ênfase em Teatro CÉLIA REGINA DELÁCIO FERNANDES possui graduação em Filosofia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho 1990 mestrado em TEORIA LITERÁRIA E LITERATURA COMPARADA pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho 1996 e doutorado em TEORIA e HISTÓRIA LITERÁRIA pela Universidade Estadual de Campinas 2004 Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal da Grande Dourados Tem experiência na área de Letras com ênfase em Literatura e Ensino atuando principalmente nos seguintes temas história da leitura formação de leitores letramento literário literatura infantojuvenil representações de leitura e de escola na literatura brasileira e políticas públicas de leitura FÁTIMA DE OLIVEIRA FERLETE possui graduação em Letras pela Universidade Federal da Grande Dourados 2007 galeria de fotos Foto 1 Patrícia Pina José Nicolau Gregorin Filho e Regina Michelli Orgs Foto 2 Mara Conceição Vieira de Oliveira Patrícia Pina Eliane Debus Regina MIchelli Regina Chamliam Daniela Bunn Célia Regina Delácio Fernandes e Renata Mundt Foto 3 Regina MIchelli Rhea Wilmer Marco Medeiros Fabiana V da S Tavares Eliane Debus Patrícia Pina Malumonitora e José Nicolau Gregorin Filho Conheça os autores da esquerda para a direita httpgroupsgooglecomgroupdigitalsource Jason Prado e Paulo Condini Organizadores A FORMAÇÃO DO LEITOR Pontos de Vista Rio de Janeiro Argus 1999 Projeto Gráfico Eduardo Machado e Renata Vidal Composição Argus Revisão Paulo Corga Copyright 1999 ARGUS Todos os direitos de reprodução divulgação e tradução são reservados Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida por fotocópia microfilme ou qualquer outro processo As opiniões expressas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade dos autores não expressando necessariamente a opinião dos editores PRADO Jason Org CONDINI Paulo Org A formação do leitor pontos de vista Rio de Janeiro Argus 1999 320 p LEITOR LEITURA CONHECIMENTO COMUNICAÇÃO CULTURA ISBN n 85874560106 CDD 0281 P882 f Edição 1999 Todos os direitos reservados pela ARGUS PARTICIPAÇÕES COMERCIAIS LTDA Rua Santo Cristo 148150 22220300 RIO DE JANEIRO RJ Fone 212637449 wwwleiabrasilcombr argusleiabrasilcombr CONTRA CAPA Criado especialmente para o 12º COLE pelo Leia Brasil Programa de Leitura da Petrobras A FORMAÇÃO DO LEITOR PONTOS DE VISTA reúne as reflexões de trinta personalidades entre elas os Ministro de Estado da Cultura e o da Educação que têm dedicado seus melhores esforços além de outras atividades intelectuais à questão da leitura em todas as suas instâncias Sua publicação portanto representa importante contribuição para todos os interessados nesta área quer pela conhecida experiência de seus participantes quer pela diversidade de visões do problema o que por si só a justifica que abre caminho para a percepção de que a leitura e a formação do leitor não são questões oriundas de uma única vertente mas frutos de inúmeros fatores que as determinam Para os professores e bibliotecários em cujas mãos repousa a enorme responsabilidade de contagiar nossas crianças com o amor aos livros Sumário Apresentação Affonso Romano de SantAnna Arnaldo Niskier Bartolomeu Campos Queirós Carlos Jacchieri Edmir Perrotti Eliana Yunes Elizabeth Dangelo Serra Elza Lucia Dufrayer de Medeiros Ezequiel Theodoro da Silva Fanny Abramovich Francisco Weffort Guiomar de Grammont Guiomar Namo de Mello Iara Glória Areias Prado Jason Prado Joel Rufino dos Santos Jorge Werthein Luiz Percival Leme Britto Maria Alice Barroso Maria Thereza Fraga Rocco Ottaviano De Fiore Paulo Condini Paulo Renato Souza Pedro Bandeira Regina Zilberman Rui de Oliveira Ruth Rocha Sônia Rodrigues Tânia Dauster Walda de Andrade Antunes PREFÁCIO À 1a EDIÇÃO Obra inicial do projeto Cadernos do Leia Brasil A Formação do Leitor Pontos de Vista foi planejada para ser lançada em Campinas por ocasião do 12 COLE que ocorreu entre 20 e 23 de julho de 1999 reunindo ensaios de trinta profissionais que têm dedicado os melhores esforços entre outras atividades intelectuais à questão da leitura em todas as suas instâncias nos dando suas particulares percepções do que o leitor e a sua formação significam bem como os caminhos possíveis para tornar as ações voltadas a esta atuação cada vez mais eficientes Entretanto para articular e reunir os textos dessas personalidades e mais ainda para realizar o trabalho editorial com a qualidade que a obra exigia foi necessário mais tempo do que o inicialmente previsto obrigandonos a transferir o lançamento para a data de realização da terceira reunião do Comitê Estratégico do Leia Brasil Programa de Leitura da Petrobras dia 9 de agosto do corrente Acreditamos que com o lançamento desta obra estamos dando o primeiro passo no sentido de cumprir um dos mais importantes papéis para o qual o Comitê foi criado o de produzir textos didáticopedagógicos a serem adotados não só pelo Programa em suas atividades como também por todos quantos estejam interessados em suas práticas acumulando com isto à função de propagador da produção intelectual já criada a de um programa também voltado para a pesquisa e criação do saber Os organizadores 9 APRESENTAÇÃO Quando imaginamos essa coletânea de pontos de vista como marco de nossa passagem pelo 12 COLE estávamos pensando em oferecer aos pesquisadores da leitura e aos brasileiros de um modo geral um documento que reunisse a visão dos nossos mais ilustres contemporâneos ligados ao chamado mundo do livro no que toca à questão da formação de leitores dentro da nossa sociedade Não nos preocupamos em reproduzir teorias ou informações acadêmicas do mesmo modo que não procuramos receitas prontas de transformação de nãoleitores em aficionados devoradores de livros Simplesmente procuramos reunir pessoas cujas vidas estivessem marcadas pelo trabalho com os livros ou com a educação Mobilizamos escritores editores dirigentes das mais renomadas instituições de ensino e pesquisa e os reunimos numa obra comprometida exclusivamente com o tema A Formação do Leitor Pontos de Vista O resultado foi uma obra interessante pela multiplicidade de estilos pela diversidade de olhares e de abordagens e pela envergadura de cada autor Esse foi o papel que julgamos oportuno para o Leia Brasil o Programa de Leitura da Petrobras neste momento em que chegamos ao COLE pela terceira vez em oito anos de atividades agora com nossas responsabilidades ampliadas pelas múltiplas ações que desenvolveremos durante o Congresso Este livro traz muitas semelhanças com o Leia Brasil Uma das mais importantes no nosso entender é a reunião e mobilização de pessoas e entidades em torno da idéia comum de que sem leitores de fato não haverá um estado de direito Outra semelhança está na sua própria natureza enquanto objeto ele não faz parte de um projeto editorial comercial mas de um projeto de democratização da informação e neste caso específico de saberes constituídos visando não somente à instrumentação das nossas escolas públicas como também os cursos de formação de professores 11 Por isso A Formação do Leitor Pontos de Vista já transcende seus propósitos iniciais de distribuição comemorativa à passagem do Leia Brasil pelo Congresso Brasileiro de Leitura tomando caminho certo para os acervos de Secretarias de Educação de Universidades e de outras entidades de ensino comprometidas com livros e sua leitura O que une a todos nós organizadores e autores desta coletânea gestores do Leia Brasil Petrobras participantes do COLE professores pesquisadores e estudantes é a certeza de que livros não existem apenas enquanto objetos mas essencialmente como veículos de idéias e de pensamentos compartilhados Portanto leia Brasil Os organizadores 12 1 AFFONSO ROMANO DE SANTANNA Leitura das armadilhas do óbvio ao discurso duplo Mineiro poeta cronista professor universitário Doutor pela Universidade Federal de Minas Gerais foi presidente da Biblioteca Nacional de 1990 a 1996 onde criou o Sistema Nacional de Bibliotecas e o PROLER Foi Secretário das Bibliotecas Nacionais IberoAmericanas e Presidente do Conselho do Centro Regional para o Fomento do Livro na América Latina e no Caribe CERLALC Sintome como o menino que tem que fazer uma composição sobre Minhas férias Nada mais simples E no entanto bastante arriscado pois há o perigo de se cair no previsível na banalidade Escrever sobre leitura e sobre a formação do leitor é algo que lembra também aqueles filmes com títulos tipo O crime no castelo A última vítima Morte no entardecer O expectador já entra sabendo o que vai encontrar Quem jamais esperaria encontrar num artigo sobre formação do leitor ou sobre leitura alguma palavra contra a leitura ou uma tese de que não se deve formar o leitor Assim um tema como este deflagra logo uma questão que chamaria de a armadilha do óbvio Quem vai escrever sobre esses temas vai também naturalmente dizer que é importante formar leitores vai enfatizar que ler é um prazer que a leitura desencadeia processos conscientizadores e produtivos na comunidade etc Portanto os encontros 13 em tomo deste tema correm o risco de converteremse em fervorosas assembléias de autoconsolação Preferiria como o fiz em outras ocasiões em que tive que abrir seminários congressos ou discussões sobre este tema encaminhar algumas questões subjacentes ocultas reprimidas mas que representam uma radiografia uma análise do terreno onde pisamos e sobre o qual queremos construir algo Portanto estou discorrendo sobre as armadilhas do óbvio que nos afastam do verdadeiro diagnóstico da doença ou do doente E para tornar mais explícito o que aqui está latente quero levantar uma questão básica a necessidade de se proceder a uma leitura crítica dos discursos sobre leitura Isto é um vasto e intrincado assunto Tem inúmeras faces e disfarces ou como eu disse antes armadilhas Uma coisa seria academicamente selecionar um corpus de textos teóricos sobre a leitura analisar propostas de programas de leitura e conferir tudo isto com a prática Ou seja verificar se a esses textos se seguiu alguma ação pragmática que tipo de ação foi essa e se ela desmente a teoria ou que tipo de obstáculos surgiram para sua realização Mas um dos aspectos mais sutis e desnorteantes a respeito da armadilha do óbvio está na banalidade da própria palavra leitura Se em vez de leitura estivéssemos usando uma palavra nova de preferência importada de outra língua talvez fosse mais fácil fazer saber do que estamos falando Por isto para espanto de muitos editores escritores e professores eu tenho repetido é preciso que se esclareça que quando falo de leitura não estou falando de leitura mas sim de leitura Isto advirto não é uma charada nem um simples jogo de palavras Quem tem ouvidos ouça diz o profeta Ou melhor quem sabe ler que leia A segunda razão pela qual o discurso a favor da leitura não gera a ação concreta e específica que gostaríamos devese ao que chamo de duplo discurso Depois da armadilha do óbvio essa é a segunda questão que tem que ser esclarecida e denunciada 14 Uma coisa são os pronunciamentos entrevistas conversas da boca para fora outra coisa é realmente acreditar e levar adiante projetos conseqüentes Neste sentido seria um não acabar coletar aqui e ali exemplos de práticas que não batem com as teorias e intenções Poderia por exemplo dizer sumariamente que durante os seis anos 19911996 em que liderei com uma equipe fantástica a questão da promoção da leitura e do livro no país colhi exemplos fartos do duplo discurso Dos seis ministros da Cultura com quem convivi um disse claramente numa reunião dentro do Ministério para que todos ouvissem que leitura não é um assunto prioritário no meu ministério esse é um assunto para o Ministério da Educação Imaginem o meu constrangimento de ter que explicar a um ministro da Cultura que era membro da Academia Brasileira de Letras que não estava falando de alfabetização e sim de leitura Ou melhor que estava falando de leitura e não de leitura Imaginem o constrangimento de ter que lhe explicar o que era um analfabeto funcional ter que lhe mostrar projetos de implementação da leitura tanto na França quanto na Colômbia ter que lhe explicar o que é desescolarização da leitura e além disto como se estivesse cometendo uma falta mostrar que estávamos já realizando programas de leitura em hospitais quartéis parques e sindicatos que tínhamos projetos de trem biblioteca no sul do país de bibliobarcos na Amazônia e no Rio São Francisco e que as vidas de milhares de pessoas estavam se modificando por causa disto Dos seis ministros da Cultura com quem convivi só dois tomaram conhecimento do programa de leitura que desenvolvíamos em 300 municípios utilizando 33 mil voluntários Um deles o último esforçouse e conseguiu desmobilizar o programa e desfazer a equipe Batendo nesta mesma tecla do discurso duplo onde a prática não fecha com o que é dito diria que durante todo esse tempo embora tenha encontrado um crítico e um ficcionista que diziam tolices sobre contadores de história não encontrei um só prefeito ou governador que me dissesse que as bibliotecas eram inúteis No entanto só encontrei entre as dezenas desses apenas dois que haviam destinado verbas para 15 compra de livros Os demais davam a sensação de que pensavam que os livros tinham pernas e saíam caminhando das editoras para as estantes por livre e espontânea vontade Dito isto e como prova ainda do duplo discurso assinalese que a Colômbia copiou e implementou um projeto brasileiro de promoção de leitura que teria a participação da Câmara Brasileira do Livro e outros órgãos do governo Isto não tem nada demais Pessoas entidades e países devem se beneficiar com as boas idéias Mas o grave é que enquanto o projeto baseado nas propostas brasileiras era posto em marcha lá na Colômbia pela Fundalectura aqui o projeto foi sabotado e abandonado por quem devia viabilizálo Finalizando eu diria que nessa passagem de século o Brasil em relação à questão da leitura tem que batalhar ferozmente em três frentes ao mesmo tempo 1 a primeira é mais óbvia e diz respeito ao analfabetismo Ainda que algum ministro ou presidente possa pensar assim esta questão não diz respeito apenas ao Ministério da Educação Nos países onde o analfabetismo foi praticamente erradicado isto resultou de um projeto sistêmico nacional 2 a segunda frente de ação diz respeito aos analfabetos funcionais os que têm rudimentos de educação mas não conseguem decompor o significado dos signos Na Itália existem 15 milhões de analfabetos funcionais Na França são 20 dos franceses Quem quiser que estime quantos são no Brasil qualquer cifra entre 100 e 140 milhões será possível 3 a terceira frente em que há que batalhar diz respeito ao analfabetismo tecnológico As mudanças rápidas transformam o cidadão mesmo de nível universitário num analfabeto diante das novas máquinas e a atualização é dispendiosa competitiva e urgente Enfim numa sociedade em que se fala tanto de hipertexto em que o leitor lê em diversas direções e em profundidade nosso país está povoado de hipoleitores aqueles que estão entre o analfabetismo e o analfabetismo funcional Como sair disto é fácil Basta desarmar as armadilhas do óbvio e parar com o discurso duplo 16 2 ARNALDO NISKIER Um país se faz com homens e livros Doutor em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro foi Presidente dos Conselhos Estadual Federal e Nacional de Educação e Secretário de Educação e Cultura do Rio de Janeiro Autor de mais de cem títulos ocupa a cadeira 18 da Academia Brasileira de Letras e desde dezembro de 1997 é seu Presidente Membro do Comitê Estratégico do Leia Brasil Programa de Leitura da Petrobras Mesmo que se trabalhe sobre uma herança comum como a que caracteriza a comunidade lusófona hoje de 200 milhões de habitantes não há como avançar adequadamente na busca do homem novo se mantidas as atuais condições de miséria e pouco apreço pelas questões culturais No caso do Brasil temos obstáculos de expressão à nossa frente como a existência de 19 milhões de analfabetos e um magistério de 12 milhão de profissionais em geral desmotivados e recebendo salários incompatíveis com a dignidade da formação do leitor brasileiro em que estamos empenhados Enquanto países desenvolvidos exibem o índice de leitura de 10 livros por habitante média anual o nosso atraso pode ser facilmente 17 medido pelo per capita de 2 livros por habitante nesse índice computandose também os livros didáticos distribuídos gratuitamente pelo Ministério da Educação e do Desporto Muito pouco se o objetivo for a valorização do hábito de leitura entre nós Na verdade não é o hábito de leitura que se busca pois hábitos tendem a ser impostos e a imposição na educação caminha em geral para a rejeição O que se pretende é a formulação adequada de um gosto pela leitura e isso na idade devida Sendo mais claro é muito difícil estabelecer esse gosto a partir dos 16 ou 17 anos quando o jovem em geral tem o seu interesse voltado pragmaticamente para o exame de habilitação ao curso superior com a configuração que hoje ostente O ideal é que a criança mesmo antes de ler trave contato com os livros manipuleos aprecie as ilustrações interprete o que está vendo à sua maneira Isso é uma forma inteligente de despertarlhe o gosto que depois se traduzirá pelas primeiras e definitivas leituras Pensar que isso possa acontecer em idade mais avançada apresenta pouca probabilidade de sucesso embora casos se registrem Numa reunião do Comitê Executivo do Programa Leia Brasil no Rio que é uma iniciativa de primeiríssima qualidade com apoio da Petrobras chamei a atenção para uma realidade incontrastável O MEC distribui gratuitamente 60 milhões de livros didáticos para alunos carentes num determinado ano mas não repete a dose no ano seguinte É o primeiro problema O segundo ainda mais grave na linha da formação do leitor é a discrepância aritmética em relação aos livros paradidáticos Ou seja o mesmo canal que libera os livros didáticos praticamente desconhece os paradidáticos que seriam a riqueza com a qual se manteria o interesse pela leitura nas classes abastecidas pela primeira remessa Aqui se assinala para tristeza nossa a descontinuidade dos projetos pedagógicos Vai o livro de Língua Portuguesa por exemplo mas não segue nenhum outro de literatura infanto juvenil Cessados os efeitos da inserção do primeiro no processo não há material para sustentar a motivação estimulada voltase praticamente ao estágio anterior de ignorância o que configura enorme e lamentável desperdício Esta continuidade precisa ser assegurada 18 LÍNGUA PORTUGUESA Do ponto de vista geopolítico temos redobrado empenho na valorização da Língua Portuguesa É um patrimônio a defender e a preservar como se disse na reunião da comunidade dos Países de Língua Portuguesa realizada em novembro de 1997 em Lisboa Com a convicção de que a aprendizagem é para toda a vida e que a educação deve ser dada para todos como recomenda a Unesco devemos atentar para o avanço das tecnologias da informação e da comunicação lançando iniciativas de largo alcance e não limitadas a pequenos centros privilegiados É exatamente aí que se recomenda o bom enlace multimídia aproveitandose o rádio e a televisão para o trabalho conjunto com a mídia impressa representada pelo livro de valor insubstituível em termos culturais É certo que vivemos com tiragens ridículas e com isso o preço da capa se torna excessivamente caro Com a crescente mundialização e em especial com o empenho recente de alargarmos o nosso campo de atuação para outros continentes onde há manifestações concretas de apreço à língua portuguesa poderseá estabelecer um programa de edição e comercialização de livros sui generis A decisão é política e não se pode conceber o silêncio em matéria de tamanha relevância quando ninguém tem mais dúvida sobre a sua relevância A formação do leitor não é um fenômeno para se limitar ao nosso território mas uma questão que se liga igualmente a Portugal Angola Moçambique onde perdemos nítido terreno para o inglês GuinéBissau Cabo Verde São Tomé e Príncipe Goa Macau e TimorLeste para só citar esses países HORA DA LEITURA A releitura da Carta de Pero Vaz de Caminha como fizemos na Academia Brasileira de Letras a propósito do lançamento do programa Hora da Leitura uma iniciativa do Governador Anthony Garotinho e dos Secretários Hésio Cordeiro Angelo de Aquino e Wanderley de Souza enseja uma série de considerações no mínimo curiosas A primeira delas 19 na apresentação do ator Luís de Lima foi o trecho em que há uma referência emblemática É preciso salvar essa gente Naquela época há 500 anos o Brasil tinha 5 milhões de índios número que hoje se reduziu a 325 mil Foram dizimados pelo branco impiedoso e voraz Nossa lembrança ao falar na solenidade foi a valorização da educação É a forma adequada de salvar um povo sem desfigurar as suas raízes O Governador do Rio de Janeiro ao ouvir a argumentação balançou afirmativamente a cabeça concordando com a fala pois depois confessaria que não tem sido outra a sua principal preocupação Deseja terminar o período de Governo com uma outra feição dada à educação fluminense hoje sem cara e sem projeto Uma das suas mais felizes iniciativas foi a criação do projeto Hora da Leitura em parceria com a Academia Brasileira de Letras que irá colaborar na escolha dos livros adequados às respectivas faixas etárias da clientela pública mais de 12 milhão de estudantes Diariamente sob a orientação de professores e especialistas serão lidos nas escolas trechos de obras de autores nacionais para criar o indispensável gosto pela leitura O próprio Governador confessou que adquiriu esse hábito um pouco à força Era um aluno inquieto na cidade de Campos travesso mesmo e lembra sempre que depois de alguma estripulia costumava ser deixado de castigo pela professora Ledinha de saudosa memória Eu ficava com ódio dela Hoje soulhe grato por ser amante do livro fundamental na minha formação Depois de contar essa passagem Garotinho aproveitou a presença de 300 pessoas no Teatro R Magalhães Jr e declamou um poema de sua autoria em homenagem à mulher Rosinha Foi aplaudido demoradamente pela inspiração Logo depois já na platéia foi a vez dele aplaudir o artista Tom da Bahia que cantou a música baseada em versos de Castro Alves intitulada A Queimada um grito em defesa do meio ambiente E também os versos de Machado de Assis muito bem declamados pelo ator Othon Bastos no CD da série Os Imortais além de trechos de obras de Machado de Assis entre as quais Dom Casmurro que será representado no palco da ABL com um elenco de que faz parte a atriz Bel Kutner filha da nossa inesquecível Dina Sfat 20 O que se tira de mais positivo numa solenidade assim rica e diversificada é o cuidado do Governo do Estado do Rio de Janeiro com a cultura e a educação dos seus filhos Começa com a leitura recomendada por especialistas na matéria chegando logo em seguida como ouvimos promessa a programas de redação Virão concursos em toda a rede com estímulos variados para que lendo e escrevendo nossas crianças e jovens possam enfrentar com mais chance de êxito o que vem por aí em matéria de Sociedade da Informação O Rio mais uma vez pulou na frente SEGREDOS DA LÍNGUA PORTUGUESA Quando se está diante do resultado de um vestibular sempre é possível estabelecer inferência Os 26 mil candidatos da UFRJ mostraram na prova de redação que aguçaram o senso crítico e estão aperfeiçoando o trato da Língua Portuguesa em relação aos exames anteriores O tema foi instigante Que geração é esta que não lê e disto nem se envergonha Um aluno escreveu na prova inteira a palavra leitura Tirou zero Em compensação a redação nota dez provou a capacidade crítica do seu jovem autor que citou o mundo apressado e impaciente dos nossos dias Ele entende embora não concorde que saber das coisas pela TV é mais rápido e mais cômodo O jovem sabe disso mas não se importa porque foi educado desde a tenra infância a confiar nessa fonte Sou testemunha da ampliação do interesse em nosso país pelas questões vernaculares Não só através da experiência acadêmica mas ao acompanhar o sucesso da obra 70 Segredos da Língua Portuguesa onde o professor Salomão Serebrenick registrou o anseio de largas camadas da nossa população pelo conhecimento do idioma depois de um período bastante expressivo de desapreço por tudo o que se referisse à norma culta Entendo até que a televisão pode ser incriminada nesse processo com a valorização do linguajar chulo e pobre característico de programas humorísticos ou até mesmo via novelas de baixo teor cultural Sem ser puritano podese acusar a utilização frenética de palavrões através do 21 vídeo como um modismo exagerado criando uma dicotomia no espírito das crianças Elas são contidas em casa pela educação mais rígida dos pais mas têm a sua atenção despertada para a valorização dessas palavras na TV ou mesmo nas escolas onde os professores moderninhos incorporam palavras antes proibidas no seu cotidiano Isso leva a alguma coisa No livro citado que já se encontra na terceira edição Serebrenick mostra o emprego correto do pronome cujo mostra a confusão entre infligir inflingir e infringir explica a utilização de haja vista e insiste na grafia correta da palavra tampouco O livro é de extrema serventia pois assinala a diferença entre os verbos destorcer tornar direito desfazer torcedura e distorcer mudar o sentido desvirtuar Li a obra com indizível prazer pois os erros assinalados são muito comuns até em gente fina que usa profissionalmente o verbo mas não sabe como varia a regência do verbo assistir por exemplo Crase vírgula ponto e vírgula são elementos indispensáveis da língua portuguesa mesmo nessa fase de unificação em que se vai abandonar o trema e em certos casos também o acento circunflexo São muitas regras é verdade mas não há como fugir da sua aplicação Os jornais estranharam o fato de aparecerem palavras mal grafadas nos exames vestibulares horgulho e insentivo Nossa convicção é muito clara escrevese mal porque se lê pouco o que também leva a uma pobreza vocabular mais que evidente Como é possível enriquecer a linguagem dos nossos jovens se os índices de leitura assinalam recordes negativos O livro é gênero de primeira necessidade e por isso mesmo merece o mais completo apoio a partir da idéia de formar o hábito de ler 22 3 BARTOLOMEU CAMPOS QUEIRÓS O livro é passaporte é bilhete de partida Mineiro graduado em Filosofia com especialidade em arteeducação pelo Instituto Pedagógico Nacional de Paris escritor e poeta premiado nacional e internacionalmente conferencista e autor de publicações sobre educação e leitura Membro do Comitê Estratégico do Leia Brasil Programa de Leitura da Petrobras Desconheço liberdade maior e mais duradoura do que esta do leitor cederse à escrita do outro inscrevendose entre as suas palavras e os seus silêncios Texto e leitor ultrapassam a solidão individual para se enlaçarem pelas interações Esse abraço a partir do texto é soma das diferenças movida pela emoção estabelecendo um encontro fraterno e possível entre leitor e escritor Cabe ao escritor estirar sua fantasia para assim o leitor projetar seus sonhos As palavras são portas e janelas Se debruçamos e reparamos nos inscrevemos na paisagem Se destrancamos as portas o enredo do universo nos visita Ler é somarse ao mundo é iluminarse com a claridade do já decifrado Escrever é dividir se Cada palavra descortina um horizonte cada frase anuncia outra 23 estação E os olhos tomando das rédeas abrem caminhos entre linhas para as viagens do pensamento O livro é passaporte é bilhete de partida A leitura guarda espaço para o leitor imaginar sua própria humanidade e apropriarse de sua fragilidade com seus sonhos seus devaneios e sua experiência A leitura acorda no sujeito dizeres insuspeitados enquanto redimensiona seus entendimentos Há trabalho mais definitivo há ação mais absoluta do que essa de aproximar o homem do livro Experimento a impossibilidade de trancar os sentidos para um repouso O corpo vivo vive em permanente e vários níveis de leitura Não há como ausentarse definitivamente deste enunciado enquanto somos no mundo O corpo sabe e duvida A dúvida gera criações enquanto a certeza traça fanatismos Reconheço porém um momento em que se dá o definitivo acontecimento a certeza de que o mundo pessoal é insuficiente Há que buscar a si mesmo na experiência do outro e inteirarse dela Tal movimento atenua as fronteiras e a palavra fertiliza o encontro Acredito que ler é configurar uma terceira história construída parceiramente a partir do impulso movedor contido na fragilidade humana quando dela se toma posse A fragilidade que funda o homem é a mesma que o inaugura mas só a palavra anuncia A iniciação à leitura transcende o ato simples de apresentar ao sujeito as letras que aí estão já escritas É mais que preparar o leitor para a decifração das artimanhas de uma sociedade que pretende também consumilo É mais do que a incorporação de um saber frio astutamente construído Fundamental ao pretender ensinar a leitura é convocar o homem para tomar da sua palavra Ter a palavra é antes de tudo munirse para fazerse menos indecifrável Ler é cuidarse rompendo com as grades do isolamento Ler é evadirse com o outro sem contudo perderse nas várias faces da palavra Ler é encantarse com as diferenças 24 4 CARLOS JACCHIERI A criança é um leitor por acaso analfabeto Nascido na cidade de São Paulo artista plástico escritor Entre suas obras estão O Honlenz e o Labirinto Os Deuses não eram Astronautas Porominare O Evangelho segundo Jesus Cristo das Vinhas da Ira uma releitura do mito cristão A Infância da Arte uma teoria da ontogênese e da antropogênese da religião e da arte Oráculo do candomblé das lyami Desenhar as letras no jeito da mão e da forma no feitio bem comportado da bonita caligrafia ou nos garranchos mal educados das escrevinhações da gente grande não foi nada difícil foi até muito fácil Copiar as figuras das coisas representadas na Cartilha do Tomaz Galhardo com seus nomes escritos em letras maiúsculas e minúsculas do A B C foi canja Afinal o artista infantil imitador e garatujador já nasce feito Desenhado a giz no quadro negro na figura lembrada pelos olhos ao lado da palavra pato o patinho na lagoa o patinho soletrado no A B C e o patinho silabado no bêábá eram maneiras de memorizar desenhando escrevendo e lendo o que era o objeto pato do mundo real e o do imaginado na cabeça da gente Afinal nas cartilhas de alfabetização 25 do meu tempo a didática orientada para o conhecimento dos objetos reais por meio de suas definições formais vinha do Pestalozzi Não nascemos já de pronto com os olhos das memórias gráficas nem com o polegar opositor já habilitado para pinçar as ferramentas que vão sendo reclamadas pelos voluntários motores da manifestação infantil Isso vai acontecendo naturalmente e nesse mesmo compasso vamos fazendo com que as coisas que percebemos no mundo de Deus convertamse em coisas pensadas na cabeça da gente e daí se tornem coisas representáveis em pinturas desenhos sons palavras etc Só muito depois da infância podemos nos dar conta que é assim desde sempre que o bicho gente já por seus inatos meios de expressão se tem feito no escritor e leitor das histórias da História Escritor antes e leitor depois Por quê Porque enquanto não completamos em nossas cabeças o mundo de representações de nossa própria imaginação comparandoo ponto a ponto com o mundo da realidade de fato que ao nascer já encontramos feita não podemos de todo ler o mundo da nossa imaginação porque ainda não o terminamos de escrever e nem mesmo o da realidade já feita porque ainda ponto a ponto não terminamos de lêlo Cada um de nós em nossa formação mental havemos de reflexionar a condição humana na qual nascemos e de reimaginar a realidade humana que nos assiste já feita Assim somente conseguiremos assimilar uma no quanto alcançamos reflexioná la e nos adaptarmos à outra no quanto alcançarmos reimaginá la Eis porque podemos dizer que somos por natureza assimilativos e adaptativos escritores e leitores natos por acaso analfabetos enquanto também não aprendermos a sêlos no modo alfabetizado Desde o nascimento a cada instante da nossa vivência somos um ente completo e perfeito As crianças não sabem o que quer dizer ser criança nem carecem dessa consciência formal para desenvolveremse pois nas suas vivências contam com naturais aptidões para autoeducaremse e autoadestraremse vencendo com essa autosuficiência suas provisórias limitações etárias Assim nos meus sete anos já falante rabiscador barulhento 26 manipulador senhor e autor do meu egocêntrico mundo incluindo os altruísticos tratos afetivos ora tranqüilos ora birrentos com mãe pai e irmãos parentes e afins amigos e inimigos lá fui eu Com sete anos já me imaginando por conta das histórias sempre repetidas pelos adultos diante das crianças santo e pecador anjo e diabo em purgatórios e infernos em reino do céu e da terra feitiço e feiticeiro em fantasmagóricas correntes brancas e negras de arrepiantes exorcismos personagem lendário em castelos de fabulosos príncipes e princesas fadas e bruxas ogros e gigantes destemido aventureiro galante e perverso em memoráveis façanhas por terramarear lá fui eu Lá fui eu com meus sete longos anos de vivências em lições de vida e em lições de coisas mas ainda analfabeto entrando no primário de mala e cuia com a mochila do material escolar e a lancheira com pão ovo e banana para o recreio Nas minhas ingênuas imprudências e confusas perplexidades próprias da infância vi festeiros e festejos deslumbrantes procissões carnavais e paradas patrióticas vi gente fardada e paisana se matando em barricadas vi operários e secretas grevistas e pelegos agredindose nos portões das fábricas vi guardas civis e gente pacata fazendo a cidade vi mulheres da vida e vagabundos excomungados pelas boas famílias vi pobres e doentes públicos e os de bom coração fazendo caridade Mas não tinha explicações para essas realidades Eu até supunha que elas estivessem escritas nos jornais revistas e livros mas fora do alcance da minha infantil curiosidade Deslumbrado com o novo cenário social que se abria para mim no bulício da criançada no primeiro dia de escola entrei na sala de aula e me postei perfilado de escoteiro no meu lugar Diante da professora que me pareceu majestosa dando início à sua aula com a primeira ordem Crianças Atenção Silêncio me senti mudado em gente grande Me senti um trabalhador aprendendo uma nova profissão a de saber ler e escrever Me senti um soldado se armando para a conquista da sabedoria escrita que a mais daquela que se aprende vivendo somente se adquire nos livros Anos depois me dei conta de que não havia ido à escola para aprender a viver os fatos da vida mas para me fazer um cidadão civilizado 27 Lá fui eu criança curioso em descobrir como é que se escreve nos livros tudo o que acontece no mundo e daí com eles como é que se aprende a reler o acervo do universo literário que demandou milênios e milênios para se acumular As dimensões do fabuloso e do plausível do ideal e do real não guardam fronteiras bem demarcadas na imaginação infantil Quando crianças temos noções inteligentes das verdades relativas a isto ou àquilo Mas aí preferimos não nos deixar guiar por elas porque na verdade pouco importa ao simbolismo infantil limitar se a acanhadas veredas formais a trilhos de bitolas estreitas Afinal de contas a África do Tarzan a China do Marco Polo as léguas de Júlio Verne as serras do Peri da Ceci e do Saci Pererê etc sem esquecer dos montes Cárpatos com os nevoentos castelos do Conde Drácula se encontram de fato nos mapas da Geografia Física lhes conferindo imaginosas significações que favorecem memorizálas As aventuras dos cangaceiros do Lampião o Navio Negreiro do Castro Alves e as Reinações do Narizinho e do pobre Jeca Tatu com brasileiríssimas liçõesde vida entusiasmavam a leitura da História do Brasil do Rocha Pombo Guardo lembrança de uma escola prestigiando antes de tudo mais a inteligência dos alunos ensinandoos a não a deixarem prisioneira de informações provisoriamente objetivas e tampouco soltála em deslumbramentos subjetivos nem tanto ao mar nem tanto à terra lembro de uma escola criadora de leitores abertos e curiosos para conhecer de tudo um pouco e melhor se situarem nos tesouros de suas preferências espirituais Em suma de uma escola formando conscientes leitores sociais exigentes de que os textos preservem entre outros méritos uma relação evidente entre as definições verbais e as significações sensíveis Bertrand Russell1 falou disso É verdade que a educação procura despersonalizar a linguagem e o faz com certa medida de êxito A chuva já não é mais esse fenômeno familiar mas sim gotas de água que caem das nuvens em direção à terra e a água já não é mais o que nos molha mas sim H2O Quanto ao hidrogênio e oxigênio ambos tem definições verbais que precisam ser apreendidas de cor não vem ao caso que a pessoa as entenda ou não E assim à medida que a 28 instrução prossegue o mundo das palavras vai se tornando cada vez mais separado do mundo dos sentidos por fim tornamonos tão exímios manipuladores das frases que quase não precisamos lembrar que as palavras têm significados No entanto não podemos mais ter a esperança de ser poetas se tentarmos ser amantes veremos que a nossa linguagem despersonalizada não surtirá muito efeito para gerar as emoções que desejamos Sacrificamos a expressão pelo que comunicamos e o que podemos comunicar resulta ser abstrato e seco A propósito de Russell contam que tirando umas férias no campo foi abordado por um camponês que lhe pediu um livro emprestado Ele gostava de ler mas não havia livrarias na região Bertrand então emprestoulhe os Diálogos de Platão No final das férias ao devolverlhe a obra o homem disse que o havia lido três vezes E o senhor gostou do que leu Russell lhe perguntou Gostei muito Muito mesmo O camponês respondeu Esse tal de Platão tem umas idéias muito parecidas com as minhas Superestimar as idéias do filósofo vai muito bem tanto quanto subestimar a priori por preconceito as idéias do homem comum vai muito mal Um e o outro no que de fato são pensadores necessariamente pensam as mesmas verdades da condição humana Daí sabendo disso e levandose na devida conta as diferenças vivenciais de cada um podemos dizer o mesmo sobre as idéias que passam pelas cabeças dos adultos e das crianças Uma criança esperta não deixa por menos adulto sabido de fato só pode ser aquele que tenha idéias muito parecidas com as dela Por isso livros apropriados para crianças tornandoas desde logo conscientes leitores sociais hão de ser os de autores que antes de outros méritos não esquecem que ser criança também quer dizer ter nascido um sábio leitor por acaso provisoriamente analfabeto 1 Bertrand Russell O conhecimento humano Vol 1o p 15 Cia Ed Nacional 1958 29 5 EDMIR PERROTTI Leitores ledores e outros afins apontamentos sobre a formação ao leitor Professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo autor de Bordado Encantado O Texto Sedutor na Literatura Infantil Confinamento Cultural Infância e Leitura Ao tentar elaborar uma súmula que me orientasse na redação deste trabalho veiome à mente um escrito de Sartre sobre a literatura Se me lembro bem a publicação era na origem uma conferência em que o filósofo estabelecia uma distinção entre fazedores de livros e escritores Fugindo do velho chavão da inspiração afinal quem é inspirado quem não é Sartre centra seus argumentos no terreno mais palpável das opções humanas Segundo ele as páginas apressadas e superficiais dos fazedores de livros não estariam interessadas em enfrentar a complexidade e a opacidade dos vínculos que nos ligam ao mundo O compromisso e o engajamento com a causa da existência humana seriam atributos somente de artistas autênticos que tomam a linguagem não enquanto instrumento de decifração rasteira do mundo 31 mas enquanto fonte de prospecção e indagação radicais As colocações de Sartre apontam para um caminho que me parece essencial compreender ao se abordar a questão da leitura Desse modo em que pese todos os condicionantes de diferentes ordens ler é uma atividade que envolve essencialmente um modo de relação com a linguagem e as significações Face a isso talvez seja possível estabelecer uma correlação com o autor de As palavras e dizer há uma distinção fundamental a ser feita entre ledores e leitores Os primeiros seriam sujeitos que se relacionam apenas mecanicamente com a linguagem não se preocupando em atuar efetivamente sobre as significações e recriálas O texto é tábula rasa exposição sem mistérios das poeiras do mundo Os leitores ao contrário seriam seres em permanente busca de sentidos e saberes já que reconhecem a linguagem como possibilidade e precariedade como presença e ausência ao mesmo tempo ambigüidade irredutível face aos objetos que nomeia Lutar com palavras é a luta mais vã entanto lutamos mal rompe a manhã sintetiza Drummond É possível que o leitor pergunte com razão se a distinção inspirada em Sartre faz sentido se não peca pelo reducionismo A melhor resposta talvez seja sim e não Sim porque ao envolver conceitos ela tende à redução Não porque os conceitos expressam pontos de vista e valores a respeito de uma realidade e não são a própria realidade a que se referem E no caso estáse querendo distinguir uma atitude meramente exterior ligeira face à linguagem de uma atitude empenhada compromissada para usarmos terminologia sartreana Estáse tentando distinguir uma atitude reprodutora consumista face à linguagem de atitude criadora e crítica uma vez que no mundo contemporâneo tudo tende ao mercado e ao consumo inclusive a leitura Como sabemos o comércio da escrita não atua apenas sobre os autores sobre aqueles que escrevem mas sobre todos os envolvidos no seu circuito Não são portanto apenas os escritores que estão em risco nas sociedades de consumo Os leitores também estão A lógica de nossas sociedades tende a conferir atenção especial aos ledores deixando margem mínima para os leitores e suas dificuldades Um só exemplo se há cada vez mais livros no mercado de outro lado há cada vez menos condições de exercitarmos leituras reflexivas aquelas que exigem forte 32 concentração que demandam tempo anotações perguntas a outros autores a outros leitores que conduzem a releituras ao estudo de pequenos trechos a embates profundos e intensos entre texto e leitor Se como coloca um autor alemão é verdade que a leitura extensiva é cada vez mais praticada em nosso mundo vale perguntar se o mesmo ocorre com a leitura intensiva aquela que nos lança adiante que permite o salto que nos assalta e é medida muito mais pela qualidade de seus efeitos que pelo número de páginas lidas Nesse sentido ao se atuar no campo da formação de leitores acredito que seja preciso a explicitação de uma concepção de leitura e de leitores que faça distinção entre os conceitos apontados Se as concepções sozinhas não alteram a realidade ações desorientadas também dificilmente obterão resultados em campo tão complexo como o da educação e da cultura Atirar a esmo pode ser fácil mas dificilmente nos fará atingir o alvo desejado Entretanto dadas as condições contemporâneas e em especial as brasileiras não acredito que todas as ações tenham o mesmo valor E é o que se está dizendo quando se afirma que toda e qualquer concepção bem como toda e qualquer forma de ação são válidas Claro que no abstrato poderão ser Mas como o que se deseja é a atuação na ordem históricocultural é a formação de leitores e não de ledores tornase necessário desenvolver práticas afinadas com princípios implicados na distinção Na mesma trilha de Sartre Paulo Freire mostrounos por exemplo a diferença entre promover hábitos de leitura e promover o ato de ler Mostrou nos que a decifração mecânica de sinais é atividade totalmente diversa da ação voluntária sobre a linguagem implicada no ato de ler Hábitos estão ancorados na repetição mecânica de gestos atos na opção no exercício da possibilidade humana de articular o agir ao pensar ao definir ao escolher Desse modo é fundamental deixar claras as concepções implicadas nos programas de promoção da leitura em curso no país É preciso saber se o objetivo é formar consumidores da escrita meros usuários do código verbal ou seres capazes de imprimir suas marcas aos textos que lêem estabelecendo com eles um diálogo vivo e único cujo horizonte não é apenas a busca de respostas mas também a formulação 33 de novas indagações Parodiando Eco é preciso distinguir leitura fechada de leitura aberta já que o horizonte dos ledores é o fechamento e o dos leitores a abertura Antes de continuar é bom explicitar aqui uma questão o nosso encaminhamento poderá levar a crer que aquela leitura descompromissada gostosa que fazemos na sala de espera do dentista na praia no ônibus estaria aqui incluída no rol da leitura extensiva de ledores Não é disso que estamos tratando Podemos sim ter atos descomprometidos de leitura Afinal não estamos permanentemente nas barricadas do desejo A questão está em outra parte Ser ledor quando se é leitor é condição completamente distinta de ser ledor por falta de opções Se a formação de leitores implica necessariamente a definição e o ajustamento de concepções implica também a criação de instituições gestos modos de atuação compatíveis com as opções definidas Assim se as grandes festas editoriais como as feiras de livros são elementos que devidamente utilizados podem colaborar com políticas de formação não se pode deixar de considerar que isoladas elas se dirigem mais aos ledores que aos leitores Da mesma forma pesquisas ou práticas que se preocupam apenas com o número de títulos que um aluno lê por semana por mês ou por ano Ora se a matemática financeira ou não é uma variável que atua sobre a leitura ela está longe de indicar o que quer que seja ao aparecer desvinculada da problemática da formação de leitores e das implicações de ordem simbólica envolvidas nos atos lingüísticos Nesse sentido a formação de uma sociedade leitora envolve não apenas a criação de instituições indispensáveis à sua constituição escolas bibliotecas editoras livrarias entre outras como também uma reflexão aprofundada sobre a natureza dessas instituições o sentido de suas orientações e de suas práticas Tendo em vista os objetivos deste trabalho destaco neste ponto um aspecto da questão que me preocupa bastante atualmente os espaços de leitura Sabedor da importância que eles desempenham na formação de leitores venho dirigindo meu trabalho de pesquisa para esse objeto já que estou certo de que a apropriação da leitura pelo país demanda uma transformação radical nas condições institucionais vigentes nesse 34 âmbito entre nós Em primeiro lugar é preciso lembrar que na sociedade brasileira em seu todo a leitura não é ainda nem hábito nem ato Ao contrário ela é vista como comportamento diferenciador a que somente seres privilegiados bem dotados intelectual cultural e economicamente podem ter acesso As exceções não fazem senão confirmar a regra Em decorrência o que se reserva às maiorias quando muito é o exercício de reconhecimento de signos para atividades imediatas ligadas à sobrevivência ou pouco mais que isso Assim face à falta de intimidade da sociedade em geral com a escrita não espanta que o espaço familiar não se constitua em território de introdução das crianças no mundo da cultura impressa como ocorre em algumas sociedades em que a leitura é um instrumento fundamental de mediação das relações domésticas Nas casas brasileiras a televisão com seus apelos de consumo que continuam reinando absolutos enquanto vivência simbólica comum Em decorrência a criança chega à escola sem essa experiência única da escrita em situação doméstica e que serviria para embasar e facilitar extraordinariamente sua formação de leitor Porém o que faz a escola com essa falta eis o outro nó do problema Ao invés de atuar sobre a ausência ela passa em geral a recriminar a família a responsabilizála por ações que quase nunca tem condições de cumprir Desse modo se a criança apresenta dificuldades para apropriarse da língua escrita tal fato devese à falta de estímulos domésticos à falta de incentivos à omissão dos pais na educação dos seus filhos Ora seguir tal caminho não parece levar a grandes resultados já que a busca de culpados nunca foi a melhor solução onde cabem ações pedagógicas Entendo pois que seja necessário deixar de lado as estratégias de culpabilização e antes procurar meios capazes de incluir as famílias nos projetos pedagógicos seja por meio de ações diretas ou indiretas Talvez valha a pena um exemplo de inclusão bem sucedida que adotamos num projeto de pesquisa que coordeno no Departamento de Biblioteconomia da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo Assim em 1994 criamos em cooperação com a Divisão de Creches da Coordenação de Serviço Social da universidade uma 35 bibliotecalaboratório numa creche do campus que atende crianças de zero a seis anos a Creche Oeste A Oficina de Informação esse o nome do serviço criado estruturouse a partir de um conceito de criança enquanto ser cultural que se constrói em relação Assim se as atividades visam sempre cada criança ou grupo de crianças em sua irredutibilidade irrestrita não são todavia dirigidas apenas a elas Há também momentos para as rodas de histórias que agrupam pais e filhos para as escolhas conjuntas de livros para o empréstimo domiciliar os horários procuram aproveitar o momento em que os pais vêm buscar os filhos para ações informais de troca de informações entre os mediadores da Oficina e os responsáveis pelas crianças Discutese nesses momentos os usos do livro em situações familiares comentase orientase colhemse dados essenciais à estruturação e ao funcionamento do serviço Os pais não vão à creche portanto para simplesmente deixar ou buscar os filhos ou para reuniões pedagógicas Vão também para viver experiências culturais para apropriarse de instrumentos e participar de atividades que até o momento de intervenção da Oficina não faziam parte do repertório da maioria das casas e que pouco a pouco começaram a fazer Criar vínculos com a família parece ser portanto um caminho promissor afirmativo ao contrário da culpabilização paralisante do estado de lastimação reativo e que não leva senão a becos sem saída Claro tal percurso coloca exigências nem sempre fáceis de serem cumpridas Em todo caso a experiência da Oficina de Informação da Creche Oeste vem mostrando que apesar dessas dificuldades é recomendável enfrentar desafios e apostar na invenção As possibilidades de ganhos são altas Assim acredito que especialmente em país como o nosso em que a cultura do livro e da escrita está ainda distante de ser uma realidade viva disseminada por todos os territórios sociais o caminho do estreitamento dos vínculos entre os diferentes espaços de leitura é fundamental escola família biblioteca têm que achar pontos de contato e articulações indispensáveis à formação de leitores Contudo dado o quadro sociocultural do país a iniciativa na maioria das vezes deve caber à escola já que como diz Samir Meserani ela é a agência privilegiada 36 do escrito em nossa cultura Caso existam o papel poderá caber também às bibliotecas como foi o caso relatado da Oficina que de resto encontrase em uma instituição de educação infantil Para exercer tal trabalho é evidente que a escola terá que mudar suas concepções suas relações tradicionais com a leitura e com a atividade pedagógica em geral Em primeiro lugar como já foi expresso antes será preciso redefinir orientações teóricas objetivos metodologias Hoje se muitas ações já são feitas de forma consciente e criteriosa por educadores empenhados e afinados com projetos transformadores muitas são também desenvolvidas de formas inconscientes inconsistentes e burocráticas por profissionais desestimulados sem vontade de mudar de inventar que abdicaram do desejo de se expressar em suas práticas cotidianas Se em boa parte o desestímulo resulta de condições aviltantes impostas à educação no país resulta também da desmobilização pessoal e da ausência de comprometimento político educacional e cultural Em tal contexto a profissão se reduz à sua mera e parca função econômica e seu exercício em tempo de espera da aposentadoria Um terror Evidentemente com tais considerações não desejo deixar de lado a importância das políticas educacionais enquanto motor essencial das transformações pedagógicas Sem isso as ações tendem a ser localizadas pontuais e parciais Logo a democratização da educação e da cultura passa necessariamente por tal questão O reconhecimento da importância dessas políticas e das omissões históricas observadas entre nós nesse aspecto não pode contudo servir para justificar o imobilismo pedagógico Adotar tal ponto de vista seria renderse às forças da morte em detrimento da crença na força explosiva da criação e da imaginação Se está na moda portanto reivindicar luxo para todos não se pode perder de vista que o luxo não significa necessariamente invenção criatividade Ao contrário pode representar o lugar comum o pasteurizado a falta de vida pulsante Se ter condições favoráveis é ponto facilitador das transformações saber conquistálas e mantêlas é tarefa estimulante que deve merecer especial atenção dos educadores comprometidos com a renovação Neste momento cabe mesmo se breve uma palavra sobre outro ponto essencial referente à necessidade de preparação dos mediadores 37 para as novas concepções e práticas Assim acredito que será preciso em primeiro lugar que os mediadores descubram a leitura experimentem eles próprios a condição de leitores já que boa parte infelizmente é forçoso admitir são quando muito ledores Antes de mais nada será preciso que se apropriem do ato de ler e das estratégias pedagógicas ajustadas a tal perspectiva Fazer do mediador leitor e ao mesmo tempo profissional competente na área é condição que se impõe a qualquer programa sério de formação de leitores Como lembra Barthes a leitura não é um conceito abstrato É antes uma prática concreta um jogo um exercício lingüístico Desse modo sem que se pratique será difícil o domínio do processo o reconhecimento de suas dificuldades limites e possibilidades pelo mediador A estratégia do faça o que eu mando e não faça o que eu faço não parece ter muitas chances de vingar no campo de que nos ocupamos Se o papel da família e da escola necessita ser revisto é preciso também que a biblioteca siga novas orientações a fim de ser descoberta pelo país ao mesmo tempo que o descobre É incrível que tenhamos chegado ao final do século XX na situação de penúria em que nos encontramos neste campo É como se em plena era das telecomunicações estivéssemos usando apenas sinais de fumaça para entrar em contato com pessoas de nosso interesse Assim por exemplo uma mãe foi à biblioteca laboratório que implantamos numa escola municipal de ensino fundamental da periferia de São Paulo Queria ver o que era aquele objeto estranho de que seu filho tanto falava e que ela não tinha a noção do que fosse Queria saber o que era o lugar que interessava o filho pois temia que pudesse ser alguma coisa muito perigosa Afinal pensava ela em sua simplicidade e com exatidão são tantas ameaças aos jovens que sem dúvida nenhuma é preciso estar atento O exemplo da sincera e aflita mãe nos dá a dimensão do problema que nos atinge ou seja da distância existente entre biblioteca e sociedade no Brasil Desse modo se o país não é capaz ainda de reconhecer a importância fundamental das bibliotecas as bibliotecas existentes não são capazes de dialogar com o país de se mostrarem e se fazerem essenciais à vida brasileira Com isso retornamos ao ponto de partida é preciso não apenas 38 criar bibliotecas mas também desenvolver novas concepções e práticas articuladas com nossa experiência de mundo nossos traços culturais fundamentais nossos graves problemas socioculturais fome violência analfabetismo pobreza massificação discriminações sociais raciais entre outras questões de igual importância e que atingem a maior parte de nossa população Diante de tal contexto venho trabalhando na ECAUSP na coordenação de equipe de pesquisadores brasileiros e estrangeiros alunos de graduação e pósgraduação educadores de diferentes níveis e procedências na sistematização do conceito de Biblioteca Interativa ou seja na constituição de uma concepção de serviço de informação e cultura capaz de atuar na mudança das relações atuais existentes entre biblioteca e sociedade no Brasil É a partir dessas premissas que foram construídos os espaços laboratoriais a que me referi anteriormente bem como a Estação Memória outro espaço que criamos e desenvolvemos na Biblioteca Infantojuvenil Álvaro Guerra em cooperação com a Secretaria Municipal de Cultura da cidade de São Paulo A construção desses espaços pautouse por uma concepção de biblioteca enquanto espaço transitivo em relação dialógica com a sociedade em que se acha inserida Mas obedeceu a necessidades de sistematização de procedimentos e ferramentas de trabalho indispensáveis à consecução de tais ideais Os resultados já obtidos indicam que estamos no caminho correto e que é possível reverter o fosso existente atualmente entre biblioteca e sociedade no Brasil As crianças da Oficina os alunos que freqüentam a Biblioteca Escolar Interativa da Escola Municipal de Ensino Fundamental Prof Roberto Mange os freqüentadores da Estação Memória indicam que há avidez de conhecimento e de comprometimento com a aprendizagem a cultura e a leitura mesmo em locais com condições socioculturais difíceis e que à primeira vista não se interessariam por livros leitura e outros afins Há crianças da Escola Roberto Mange que fogem do recreio para ir à Biblioteca Interativa como eles próprios a chamam O mesmo já ocorreu várias vezes na creche com crianças pequenas de 4 5 6 anos As novas propostas mostramse assim eficazes e necessárias aos projetos de formação de leitores Os pressupostos interacionistas 39 adotados na configuração dos espaços criados vêmse mostrando adequados e capazes de quebrar resistências nas relações leitura e sociedade Ao se tornar espaço de expressão a biblioteca interativa abre espaço para a efetiva democratização e não apenas para o acesso à cultura É nesse aspecto que o cidadão se distingue do consumidor o leitor se diferencia do ledor Se este tem olhos e ouvidos ávidos aquele tem além disso boca e um desejo urgente de expressão já que se posiciona julga comprometese intensamente com o que lê Diferentemente do ledor o leitor não tem vocação para o consumo sígnico Seu horizonte é a expressão a existência cultural a reintrodução da vida nos registros aprisionados no papel Como diz Michel de Certeau em sua bela metáfora o leitor é caçador que efetua saques em campos alheios tentando assim acalmar sua fome de sentidos e significações A errância é seu destino já que onde vislumbra novos sentidos lá está ele pronto para um novo saque Nesse sentido as bibliotecas assim como os demais espaços de leitura devem oferecerse como campo possível às errâncias e não enquanto territórios inibidores da livre circulação propriedades demarcadas ferreamente vigiadas por pequenas autoridades e seu zelo desmedido pelas regras Jamais tentar portanto aprisionar a leitura eis regra de ouro para os espaços de leitura que desejarem desenvolver ações positivas na formação de leitores A natureza errante destes em contraposição à natureza condicionada dos ledores somente poderá florescer completamente se encontrar campos abertos espaços capazes de permitir as mais belas cavalgadas os mais impressionantes saltos a cavaleiros ávidos e espantados com a riqueza da aventura humana 40 6 ELIANA YUNES Vista de um ponto Eliana Yunes que concorda com Borges e se orgulha mais das páginas que leu do que das que escreveu é professora de Letras e aprendeu que elas são mortas se o homem não as vivifica Pesquisadora criadora do PROLER professora de Teoria na PUCRio com atuação em universidades públicas de vários Estados tem extensa bibliografia teórica e metodológica sobre leitura É também consultora de organismos internacionais O que mais tenho a dizer sobre a formação do leitor depois de ter passado quinze anos vivendo e pesquisando o percurso de ter proposto uma teoria e uma pedagogia que ao que parece ainda não foi refutada nem revista e ampliada por pares e ímpares daqui e dalém mar Uma e outra correm o país e já estão recolhidas em teses e dissertações eximindome da obrigação de concluílas elas caminham com os próprios interlocutores Não não se trata de presunção ou arrogância Tratase de uma evidência invisível como o claro enigma drummondiano que só conhece quem experimenta E disto podem dar testemunho milhares de neoleitores que se vêm constituindo no Brasil com todo o rigor teórico mas sem efeitos especiais de intelectualismo com toda a metodologia preconizada mas sem os malabarismos das receitas técnicas que se 41 tornam obsoletas tão logo mudem os contextos e os sujeitos Mas no mesmo dia em que recebi a convite de Paulo Condini para escrever quatro laudas sobre o tema deste livro e que vacilava em fazêlo chegoume um correio eletrônico de Maria Angela Campeio de Melo com uma mensagem destas que de tanto gostar ela distribuía pela Internet em fragmento Eilo O paradoxo de nosso tempo na história é que temos edifícios mais altos mas pavios mais curtos autoestradas mais largas mas pontos de vistas mais estreitos gastamos mais mas temos menos compramos mais mas desfrutamos menos variedade de cardápios mas menos nutrição São dias de duas fontes de renda mas de mais divórcios de residências mais belas mas lares quebrados São dias de viagens rápidas fraldas descartáveis moralidade também descartável ficadas de uma só noite corpos acima do peso e pílulas que fazem de tudo alegrar aquietar matar É um tempo em que há muito na vitrine e nada no estoque um tempo em que a tecnologia pode levarlhe essas palavras e você pode escolher entre fazer alguma diferença ou simplesmente apertar a tecla Del P Fabro A aproximação meramente casual dos papéis na impressora ofereceume a justificativa e o pretexto Quem me lê deve estar pensando o que tem este texto a ver com o que me foi pedido dizer em exíguas linhas que pareço desperdiçar Nesta escrita sem sofisticações lingüísticas coloquial quase com uma economia de recursos expressivos feitos de pontuações antitéticas em estruturas paralelísticas que leio Para além do dito o implícito e o subentendido uma leitura crítica de mundo Para escrever essa leitura porque ela o é não sendo necessário lembrar Paulo Freire grafandoa em um instantâneo de frases curtas o autorleitor de mundo deve ter se debruçado atentamente sobre a vida dos homens neste final de milênio com os valores e expectativas de seu repertório pessoal recolhidos de um amplo acervo de memórias atuais sobre a condição humana em hora de profundas contradições Sabendo que na linguagem os discursos tanto flagram a natureza 42 dada das coisas em seu recorte cultural quanto fazem surgir nos desvãos do consenso e da linearidade a palavra inaugural que surpreende outras versões de mundo podemos dizer que um leitor se vai constituindo também por ela Enquanto pronunciase como um pronome eu sujeito conscientizado de seu lugar histórico e responsável pelas conseqüências de seu dizerpensarfazer o leitor alcança uma singularidade própria e comunicável passível de ter assinatura Ela a singularidade se dá como expressão de uma compreensão súbita que não ignora o contexto os interlocutores e suas outras motivações ela propõe sentido para o vácuo que há entre o mundo e o anseio de plenitude e transparência do homem na visão desse leitor e se oferece como escrita Ela a linguagem é denúncia de nossa doença de nossa falta e ao mesmo tempo nosso remédio e cura ponte sobre o vazio A leitura singular é resposta e recusa à passividade leitura é mais que recepção O leitor que percebe as fraturas de nossas práticas quer acusálas na criação o que nem sempre se dá sem conflitos E lá está a palavra que convida a sair da casca que provoca incita o próprio desejo de ser outro e não o mesmo Galos sozinhos não tecem manhãs Recorrer à literatura realiza isto porque não diz antes pede a seu leitor que o diga que se pronuncie e tendo lido escreva Isto fez Fabro e faço eu fisgo pela palavra a não palavra só se é escritor porque antes se é leitor Mais ainda vejo no texto quantas observações atentas em marcas da língua aparecem singularmente articuladas reunidas para insinuar a dissonância que afinal expressam faço a leitura da palavra Nela subitamente o novo a outra coisa a terceira margem e nós seus leitores que nos inscrevemos no texto apertando a tecla ENTER pronto aqui estamos parceiros das subjetividades com que construímos o mundo não apenas porque endossamos rejeitamos ou polimos o texto e as idéias Mas sobretudo porque ouvindo nossa voz no comentário criamos e sabemos então o que é ser humano 43 7 ELIZABETH DANGELO SERRA O direito à leitura literária Pedagoga assumiu a Secretaria Geral da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil em 1989 e desde 1996 é membro da Comissão Coordenadora do Programa Nacional de Incentivo à Leitura da Fundação Biblioteca Nacional PROLFR Os Congressos de Leitura COLE promovidos pela Associação de Leitura do Brasil ALB reúnem de dois em dois anos um número cada vez maior de pessoas vindas de todas as regiões do País que esperam ouvir falar conversar aprender trocar experiências e refletir sobre questões de leitura e de escrita O crescente interesse pelo tema do congresso como área de estudo e como prioridade na ação educativa traz algo novo com grande força política além de aprimoramento profissional conferindo aos participantes um papel de vanguarda na educação e na cultura Tratase da conscientização da função social da leitura e da escrita como resultado de um compromisso com a melhoria da qualidade de vida da população Embora esta conscientização ainda seja muitas vezes afetiva e 45 emocional é objetiva quanto à meta a alcançar Essa determinação merece ser ressaltada pois seu efeito multiplicador é fortalecido nesses congressos ampliando assim o potencial revolucionário da leitura na ação individual de cada professor leitor Sabemos que a transformação de nossa realidade educacional é muito mais complexa que o desejo de transformar Mas é o desejo e a paixão que impulsionam o início de uma possível mudança Entendemos a formação do leitor como um processo histórico dinâmico e dialético de reconhecimento de signos escritos pertencentes a uma determinada estrutura lógica cujos significados somente se expandem e se multiplicam através de uma alimentação permanente e variada de textos escritos e de entornos e contextos culturais motivadores da leitura processo onde apesar de silenciosa se trava uma disputa de poderes A ausência de bibliotecas públicas modernas no País com bons acervos e bibliotecários preparados para atender à necessidade de leitura e de informação da população é a expressão dessa disputa como reflexo da concentração de poder sobre o conhecimento Os programas de alfabetização de adultos por exemplo para abrir de fato a eles as portas do mundo da escrita não deveriam ficar restritos aos bancos escolares mas acontecer nas Bibliotecas Públicas Somente através delas a emoção de ler pela primeira vez poderá ser alimentada da mesma forma como fazem aqueles que já são leitores porque podem comprar livros ou freqüentar bibliotecas Não basta ensinar um adulto a ler É necessário garantirlhe o direito à convivência com livros revistas e jornais para que seja um leitor As crianças e jovens brasileiros cujas famílias também não podem formar suas bibliotecas particulares devem desde cedo conviver com a leitura e os livros nas bibliotecas das escolas para se familiarizarem com o espaço e quando adultos irem ao encontro delas com naturalidade porque conhecem a importância social dos seus serviços Espantanos o silêncio sobre a importância social das Bibliotecas Públicas por parte dos intelectuais Ao reivindicarem igualdade de oportunidades na educação ou no acesso à cultura raramente falam das funções da Biblioteca Pública para a democratização permanente do conhecimento A omissão dos intelectuais é grave e reflete uma visão 46 elitista e egoísta pois parecem esquecer suas próprias histórias de leitura Sem livros não é possível ser leitor A escola desempenha a função da educação formal contudo é a Biblioteca Pública a instituição do conhecimento que está aberta aos interesses das pessoas por toda a vida e é através dela que a maioria da população tem condições materiais para se formar leitora O prérequisito para escritores criadores artistas cientistas e mesmo jornalistas para exercerem suas funções é ser leitor Também têm que ser leitores os que podem desfrutar plenamente das artes e das ciências para apreciálas estudálas ou reinventálas Isto é uma forma de poder A leitura que os une e forma a base cultural que os qualifica não é a leitura técnica mas a literária A formação de leitores tem sido assim fruto de uma situação histórica determinada por condições econômicas emocionais e culturais O poder abstrato da leitura literária sempre esteve ligado a um poder concreto que é o econômico Contraditoriamente os livros são produtos comerciais o que os coloca numa relação de produção que por sua vez é o que possibilita a sua multiplicação e conseqüente deselitização A leitura apresentada com uma função social maior do que o reconhecimento do código escrito é uma conquista recente Com o advento da industrialização nos anos 20 o mercado exigiu uma mãodeobra que soubesse reconhecer as letras e os números A sofisticação desse mercado passou a exigir mais recentemente trabalhadores com maior capacidade para apreender e absorver tecnologias complexas que exigem leitura de textos mais longos redação de relatórios manuais e conhecimento de inglês Outro aspecto é a mobilidade das classes sociais brasileiras na busca de melhor posição na pirâmide social um dos efeitos do processo de democratização A escolaridade é considerada por grupos sociais mais pobres como fator decisivo para ampliar as suas chances de trabalho e conseqüentemente facilitadora da ascensão social E boa escolaridade é sinônimo de uma boa habilidade de leitura Nos últimos anos a escola pública brasileira tem buscado melhorar as suas condições de trabalho discutindo o seu papel social e valorizando a sua função como entrada principal para a maioria de crianças e jovens no mundo da escrita A compra de livros de literatura pelo Governo 47 Federal vem crescendo e ganhando espaço importante nas escolas A publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais e dos guias críticos dos Livros Didáticos a criação do Programa Nacional Biblioteca na Escola o movimento de valorização salarial do professor a avaliação nacional da qualidade dos vários níveis de ensino a introdução de televisões e computadores no espaço da escola estão colocando finalmente a educação fundamental como prioridade nacional O Ministério da Cultura com os programas Uma Biblioteca por Município e o Programa Nacional de Incentivo à Leitura PROLER que agem de maneira integrada tem divulgado e fortalecido a relação entre a leitura e as bibliotecas Como resultado estados e municípios demonstram interesse pelo assunto através da demanda por bibliotecas situação inexistente até 3 anos atrás Para formar leitores não basta portanto ensinar a ler como fez a escola da maioria da população durante muito tempo e que hoje por ação da sociedade dos professores e dos governos começa a mudar Alfabetizar é uma tarefa simples de ser realizada quando há uma decisão política da sociedade e do governo Mas não basta alfabetizar para formar leitores O Mobral nos ensinou isso e se o programa Alfabetização Solidária não criar as condições para os seus alfabetizados de acesso permanente ao livro o processo de leiturização não ocorrerá por falta de uso da habilidade adquirida É o chamado iletrismo É preciso portanto criar uma estratégia integrada que contemple 1 oportunidades de contato com os textos de qualidade através de muitas muitas bibliotecas escolares e públicas incentivando com apoio da mídia televisão rádio jornal a população brasileira a freqüentar bibliotecas como direito do cidadão criando espaço para o desenvolvimento de uma cultura de bibliotecas 2 valorizar socialmente a leitura e a escrita informando sobre a sua importância e ampla dimensão social desvelando a sua presença em produtos de cultura de massa onde não é percebida como na criação das telenovelas ou na atuação de artistas famosos através da TV teatro cinema música a fim de tornálas a leitura e a escrita desejáveis e necessárias à vida 48 3 investir maciçamente na formação leitora e escritora dos professores principalmente os do ensino fundamental colocando o tema da leitura e da escrita como básico na formação do magistério É necessário que o professor resgate a sua identidade como uma identidade leitora No Seminário que a Fundação Nacional do Livro Infantil e JuvenilFNLIJ organiza e coordena neste 12o COLE o tema da formação do leitor se une à reflexão sobre os projetos da sociedade que nós adultos queiramos ou não deixamos registrados através das leituras dos livros que oferecemos às crianças e jovens A partir desse foco propusemos a reflexão sobre três pontos estruturais na formação do indivíduo ética estética e afeto que servem de alicerce para os sentimentos de liberdade solidariedade e para os processos de criação Ao escolhermos o livro de literatura como representação dessa interferência entendemos que como já foi dito a leitura literária contribui fortemente para a formação integral da pessoa Estabelecendo o livro a leitura a escrita e a ilustração como pontos de contato entre crianças jovens e adultos queremos dizer que formar ou não leitores é responsabilidade de todos os adultos leitores onde quer que eles estejam ou em que função trabalhem numa demonstração prática e não só teórica sobre o que é partilhar bens culturais O leitor em potencial é único e por isso só pode ser formado um a um Não se formam leitores em série E só um leitor forma um leitor Ler no livro o texto literário para o outro criança jovem ou adulto partilhando a emoção de cada palavra através da voz e do movimento desperta o interesse pela leitura e demonstra afeto e atenção explicitando a forte relação entre literatura e emoção entre um leitor e outro leitor Na última Feira de Livros para crianças e jovens de Bolonha em abril de 99 tivemos a oportunidade de ouvir e conhecer Daniel Pennac professor francês e escritor durante uma palestra para professores italianos promovida por sua editora na Itália sob o título o Direito de Ler Em seu livro Como um romance Pennac defende uma pedagogia de leitura através da leitura partilhada em voz alta No entanto sua principal mensagem para os professores foi que esquecessem as mensagens não formulassem perguntas sobre um texto 49 literário dando a oportunidade ao aluno de perguntar falar conversar o que quiser pois a literatura é provocadora do pensamento Disse também que o professor deve controlarse reprimir sua ansiedade e acreditar no potencial da criança e da literatura dando ouvidos ao pequeno leitor Ao terminar a palestra Pennac leu um texto que criou para o evento cujo título é o nome do seu novo livro Excelentíssimas crianças não publicado no Brasil e que transcrevo para vocês encerrando o nosso ponto de vista sobre a formação do leitor Excelentíssimas crianças Se eu fosse vocês a primeira coisa que pediria à professora ao entrar na sala de aula pela manhã seria Professora leia uma história para nós Não existe melhor maneira de começar um dia de trabalho E no final do dia quando a noite chega meu pedido ao adulto mais próximo seria Por favor conte uma história para mim Não existe melhor maneira para escorregar nos lençóis da noite Mais tarde quando vocês já forem grandes lerão para outras crianças aquelas mesmas histórias Desde que o mundo é mundo e que as crianças crescem todas estas histórias escritas e lidas têm um nome muito bonito literatura Bibliografia LAJOLO Marisa ZILBERMAN Regina A formação da leitura no Brasil São Paulo Ática 1996 LEITE Paulo Moreira DE MARI Juliana Andando para cima Revista Veja São Paulo Abril 1602 6871 jun 1999 50 8 ELZA LUCIA DUFRAYER DE MEDEIROS Não tenho um caminho novo O que tenho de novo é o jeito de caminhar Thiago de Mello Carioca professora assistente social e pedagoga Membro da Equipe pedagógica do Programa Leia Brasil desde março de 1995 atualmente coordena a Assessoria Pedagógica dos seis estados em que o programa se faz presente Contos poesias músicas reportagens retratos causos receitas ilustrações pinturas esculturas histórias contadas romances novelas programas de TV filmes de curta e longa metragem desenhos animados quadrinhos livros de imagem propagandas Oferecer numa reunião descontraída um banquete de leituras sem préconceito sem o estigma de boa ou má literatura Para isso incentivar a procura de um lugar agradável onde todos se sintam à vontade longe dos ritos pedagógicos um lugar onde não se fale em planejar avaliar objetivar etc De preferência um local onde os encontros não sejam habituais a biblioteca o refeitório um canto do pátio ou embaixo de uma árvore no quintal Que esses encontros aconteçam de quinze em quinze dias uma 51 vez por mês aos sábados no horário complementar Não importa O importante é que sejam sistemáticos que estabeleçam uma rotina prazerosa e não se tornem um evento um tapaburaco nas reuniões pedagógicas ou um espaço de reflexão no início de qualquer atividade Que haja um tempo no qual a leitura seja compartilhada no qual se possa refletir discutir estar contra ou a favor comentar dar e trocar opinião descobrir e revelar talentos não aflorados ou desconhecidos por falta de oportunidade Que possibilite o conhecimento entre os participantes quase sempre estranhos apesar do convívio de longos anos e que permita que eles se identifiquem e se emocionem com as leituras partilhadas com os colegas O suporte técnico e metodológico desses encontros vem através de oficinas sistemáticas de leitura realizadas por especialistas cuja área de excelência deve estar de acordo com uma temática previamente estabelecida fio condutor do trabalho e estímulo à criação de um repertório de leitura Contos de fada viagens e utopias mitos e monstros espaços maravilhosos viagens interiores monstruosidades modelo feminino o herói imagens os diferentes modos de ver e ler o mundo foram algumas dessas temáticas lidas e compartilhadas com toda uma gama de memórias vivências conhecimento do mundo experiências inquietações evidenciando o trabalho com o indivíduo ali presente esperando que essas vivências despertem no profissional uma nova postura frente às práticas utilizadas no trabalho com a leitura Estas estratégias vêm sendo oferecidas e estimuladas pelo Leia Brasil ao longo dos seus oito anos de existência enquanto programa de leitura e dos quais participo há cinco anos como membro da equipe pedagógica Os relatos referemse ao trabalho dirigido aos profissionais de ensino das escolas públicas por ele atendidas e que constituem a força do programa e o ponto de partida para a formação do aluno leitor Estimulamos também o uso e a leitura de diferentes linguagens através da itinerância de exposições vídeos educativos e atividades especiais Existem resistências à promoção da leitura Elas se mostram nas célebres desculpas como falta de pessoal disponível para o trabalho 52 falta de tempo para ler e na real falta de dinheiro para comprar livro A essas situações respondemos não só com a presença do caminhãobiblioteca e seu acervo de livros de literatura mas também com o tempo conquistado para a leitura compartilhada As respostas à ação do Leia Brasil são muitas bibliotecas sendo abertas salas de leitura inauguradas ou reativadas bibliotecas repletas de alunos na hora do recreio alunos matando aula na biblioteca hora do chá literário promoção de café da manhã da leitura criação de clubes de trocas de livros reuniões para leitura nos finais de semana grupos formados para realizar visitas a museus e exposições e para assistir a peças teatrais organização de grupos de contadores de histórias saraus de poesias surgimento de escritores e poetas O trabalho é de conquista e sensibilização Ele necessita de tempo e da crença das instituições de ensino de que o exercício pleno da leitura contribui para a formação de indivíduos capazes de realizar uma análise crítica do seu cotidiano levandoos a uma participação social mais coerente com a consciência dos seus direitos e deveres Como Fernando Sabino temos A certeza de que estamos sempre começando a certeza de que é preciso continuar e a certeza de que podemos ser interrompidos antes de continuarmos E também como nos ensina Fernando Sabino pretendemos Fazer da interrupção um caminho novo da queda um passo de dança do medo uma escada do sonho uma ponte da procura um encontro 53 9 EZEQUIEL THEODORO DA SILVA A formação do leitor no Brasil o novovelho desafio Formado em Língua e Literatura Inglesa pela PUCSP Doutor em Psicologia da Educação e ProfessorAdjunto pela UNICAMP Foi fundador da Associação de Leitura do Brasil ALB e Secretário Municipal de Educação de Campinas Membro do Comitê Estratégico do Leia Brasil Programa de Leitura da Petrobras Ainda que as diferentes motivações para as práticas de leitura estejam vinculadas a condições super e infraestruturais de uma sociedade não há como negar que a escola enquanto instituição encarregada pela formação educacional das novas gerações exerce um papel de máxima importância no processo de preparação de leitores Nestes termos pode ser afirmado que a um ensino de qualidade atendendo a critérios de excelência seguese a formação de leitores maduros com competência suficiente para caminhar livremente pelos múltiplos quadrantes do mundo da escrita No Brasil a leitura vai mal porque a escola está muito mal vivendo carências ambientais e pedagógicas há bastante tempo Tais carências por sinal já reveladas e amplamente conhecidas não vêm sendo 55 enfrentadas com o devido grau de seriedade e responsabilidade pelos governos o resultado no agora é um cenário desolador cuja transformação depende de volumosos investimentos no sentido de recuperar o tempo perdido Sabese por exemplo que a biblioteca escolar é uma estrutura imprescindível para a produção da leitura e formação do leitor entretanto a sua viabilização concreta sempre fica para depois fazendo com que o provisório ou pior o inexistente seja reproduzido ao longo dos anos As boas intenções e as grandes metas visíveis em todas as políticas de leitura de início de governo terminam em pizza e aumentam o tamanho do desafio na corrente da história A contradição maior é esta o ensino brasileiro é livresco dentro de uma escola sem livros1 De fato a pedagogia que orienta o trabalho docente nas escolas tem no livro didático o seu sustentáculo maior senão exclusivo A voz e a autoridade do professor são sublimadas em decorrência de uma tradição que estabelece a escolha e a adoção de pacotes impressos ou audiovisuais a partir da mecânica do simples repasse de informações Nestes termos a convivência prazerosa e produtiva com uma diversidade de obras é na maior parte das vezes substituída por um esquema redutor de leitura e por isso mesmo destruidor das possíveis vontades ou curiosidades dos leitores durante a fase da escolarização No que se refere ao condutor do processo de ensino o professor falase em baixa quantidade de leitura E poderia ser de outra maneira A corrosão da dignidade desse profissional revelada principalmente por salários vergonhosos vem acontecendo no país desde o início da década de 70 A sobrevivência dos abnegados do magistério depende de múltiplos empregos eou várias funções concomitantes Não lhes sobra tempo e muito menos energia para ler Não há dinheiro para aquisições freqüentes de livros Não existem programas regulares de atualização via leitura e estudo de obras escritas Dessa forma ou seja imerso num oceano de condições adversas o professor esse espectro do espelho quebrado raramente pode dar o seu testemunho de leitura aos múltiplos grupos de alunos que tem pela frente Daí a improvisação a fragmentação a rarefação do ensino da leitura na escola o que engendra práticas de leitura em moldes mecanicistas e no mais das vezes sem nenhuma significação para os estudantes 56 Quando um desafio social permanece no tempo e se esclerosa por falta de ações superadoras ele aumenta em volume e em potência tornando a necessidade de base ainda maior A crise da leitura no seio da sociedade brasileira assinala um quadro de necessidades diversificadas que vem se repetindo e se avolumando há bastante tempo As políticas de enfrentamento visando a minimização eou superação das necessidades da leitura no âmbito das escolas revelaramse até aqui totalmente inócuas porque operaram apenas no nível do discurso porque foram descontínuas eou porque não receberam verbas suficientes para a sua implementação Dessa forma as velhas tradições relacionadas ao encaminhamento pedagógico no contexto escolar continuam inabaladas configurando um círculo vicioso de difícil combate O provisório se eterniza2 o inexistente se cristaliza ao longo dos anos No quadro das velhas e perniciosas tradições deve ser também colocada a esfera da indústria editorial de onde nascem os livros didáticos privilegiando muito mais os critérios mercadológicos ou comerciais do que as demandas culturais reais do mundo educacional Boa parte das editoras brasileiras fatura em cima das desgraças escolares entre elas a ignorância e as opressões vividas pelos professores Os sofisticados aparatos para o jogo contínuo do marketing os lobbies para pressionar a aquisição anual de livros pelas agências governamentais as manobras exercidas em direção ao livro didático descartável a disneylândia pedagógica etc tudo isso revela uma ação vesga ou caolha ainda que extremamente lucrativa frente a uma escola com baixa qualidade de ensino Se os livros didáticos por si só resolvessem as complexas relações do ensinoaprendizagem o Brasil teria sem dúvida o melhor sistema educacional do mundo Triste panorama de contrastes indústria editorial viçosa dentro de um terreno escolar bombardeado Tão bombardeado tão carregado de necessidades que se torna difícil neste momento saber por onde começar os projetos e programas de transformação Por exemplo se é verdadeira a afirmação de que a formação do leitor depende da escolarização do indivíduo cabe pensar nos altos contingentes populacionais que nem sequer chegam às portas da escola permanecendo na escuridão do analfabetismo da palavra 57 escrita Cabe pensar nos altos índices de evasão e repetência escolar levando os jovens a abandonarem a escola Se é verdadeiro o pressuposto de que a formação do leitor depende de uma convivência constante com uma diversidade de obras cabe pensar na ausência de infra estrutura biblioteca bibliotecário sistema regular para o abastecimento de livros etc nas escolas Se é verdadeiro o fato de que a formação do leitor depende de professoresleitores cabe pensar na débil dignidade salarial desses profissionais Cabe pensar também os aspectos de sua formação e atualização profissional E ainda cabe saber quando afinal o Ministério da Educação e o Ministério da Cultura juntos e unidos vão começar um diálogo concreto para traçar diretrizes e estratégias a longo prazo para contemplar criticamente essa amplitude de problemas A leitura vai mal porque a escola está indo muito mal e a sociedade está pior ainda desemprego dependência criminalidade crescente corrupção miséria e fome Nestes termos a promoção da leitura com infraestrutura coerente e a formação de leitores com pedagogias adequadas são apenas grãos de areia dentro de um vasto deserto que aumenta em expansão a cada ano que passa O redemoinho da esperança de alguns continua a varrer esse deserto porém apenas deslocando a areia sem alterações significativas ou duradouras do árido cenário O sofrimento maior para aqueles que refletem sobre as práticas de leitura no território nacional é ter que gritar nesse deserto Continuamente Dolorosamente E ter consciência por exemplo de que Pensar a leitura como formação implica pensá la como uma atividade que tem a ver com a subjetividade do leitor não somente com aquilo que o leitor sabe mas também com aquilo que ele é Tratase de pensar a leitura como algo que nos forma ou nos deforma ou nos transforma como algo que nos constitui ou nos põe em questão frente àquilo que somos como algo que tem a ver com aquilo que nos faz ser o que somos 3 NOTAS 1 A expressão O livro é livresco mas sem livros é de João 58 Wanderley Geraldi servindo como título do prefácio do meu livro Elementos de Pedagogia da Leitura SP Martins Fontes 1988 p IXXIII Ele assim a caracteriza Sem livros praticase no Brasil um ensino livresco o ensino livresco é autoritário mistificador da palavra escrita a que se atribui uma só leitura obedecendo cegamente aos referenciais dos autores e reproduzindo mecanicamente as idéias capitadas nos textos tomados como fins em si mesmos A ausência do livro é compensada pelas máquinas de xerox pelos mimeógrafos pelas apostilas e pelos livros didáticos Produtos de consumo rápido disponíveis descartáveis nunca o livro por inteiro porque seria trabalho estudálo para extrair dele o que se busca não há busca engolemse informações pré fixadas como conteúdos não se degustam conquistas as sopas présilábicas das respostas a repetir não exigem o trabalho de cortar mastigar degustar a papa está pronta 2 A questão relacionada aos aspectos provisórios não permanentes para a promoção da leitura nas escolas foi amplamente discutida por Edson Gabriel Garcia no livro Biblioteca Escolar Estrutura e Funcionamento Pelo fim do provisório eterno RJ Paulinas 1991 Luis Augusto Milanesi através de vários estudos também revela as nossas carências de infraestrutura para a promoção da leitura em sociedade incluindo a escola 3 cf Jorge LARROSA La Experiência de La Lectura Studios sobre Literatura y Formación Barcelona Editora Laertes 1996 p 16 59 10 FANNY ABRAMOVICH Escritora e educadora formada em Pedagogia pela USP Como escritora lançou mais de 40 livros dirigidos a professores adolescentes e crianças Foi crítica de produção cultural para crianças no Jornal da Tarde Folha de São Paulo Rede Globo publicando mais de 500 artigos Membro do Comitê Estratégico do Leia Brasil Programa de Leitura da Petrobras A iniciação com as maravilhanças de uma história acontece em geral adentrando pelos ouvidos da criancinha É a voz da mãe do avô do tio visitante da primeira professora que chama sussurrante para a gostosura de se embalar na lindura dum conto de fadas num episódio da Bíblia ou na magia duma lenda dum poema brincante na aventura de outra criança parecida com ela Se a história for acalentadamente contada o encantamento envolve abraçante e o gostinho de quero mais e mais permanece marcante e marcado Mais tarde é o momento de olhar as histórias seguindo apenas os desenhos ainda tão distantes do indecifrável texto escrito Olhos num vaivém contínuo fissurados nas ilustrações mágicas poéticas desafiantes para decodificar os enigmas escritos debaixo ou do lado 61 Muitas e muitas vezes estes desenhos são feios pesados sem graça apertados e socados nas páginas e a vontade imperiosa é abandonar rápida e definitivamente aquela feiúra pouco imaginativa Mas se atraentes e convidativos chamam pra gostosura de se debruçar nas histórias visuais e formar verbalmente a narrativa Saborear cada página cada traço cada cor cada detalhe Ou se tiverem texto que alguém conte leia devagarinho e a criança retorna sozinha de novo e de novo até se assegurar que conhece aquela coceirenta e divertida historieta E até finge que lê Chega um momento em que a criança adentra pelas histórias lidas por ela mesma Independência exibida Vitória absoluta outra bússola para caminhar pelo mundo Momentos de descoberta surpreendente de mergulho em águas desconhecidas de curiosidade em saber como se resolverão as acontecências anunciadas de arrepios com a tristezura ou a beleza de puro deleite Ou se a história for fraca boba requentada arrastada vive os sentimentos de profunda chateação de irritação de canseira desistente de decepção com o prometido e não sucedido Um pouquinho depois a parada nas estantes das bibliotecas da Escola de casa ou de outras casas onde se lê com alegre desfrute da Igreja do Centro Comunitário do Caminhão do Leia Brasil de onde for A olhadela nas estantes prometendo maravilhanças aventurosas ou garantindo o tédio As dúvidas diante das possibilidades pequenas ou grandes de escolha dos aparentemente promissores Com qual livro ficar Com qual autor passar as próximas horas dias semanas Em que gênero mergulhar O que parece mais cutucante mais irresistivelmente diferente Separações provisórias perguntas pedidos de opiniões de quem já leu volteios e escolha Que pode ser deleitosa ou provocar um baita dum arrependimento ao virar páginas e páginas de pura bobeira de lições ensinantes de sermões implicantes de total falta de humor sem mistérios assustadores sem belezas suspirantes E ter que esperar o outro dia de voltar na biblioteca pra escolher melhor escolhido E ficar na torcida para encontrar a gostosura a febricitação a nova resposta pra pergunta engasgada a gargalhada ou a lágrima que uma história bem escrita traz E aí se embalar no bembom Mais tarde a descoberta das livrarias dos sebos com tesouros 62 empoeirados das feiras de trocas E ficar horas fuçando mexendo mudando de idéia separando fazendo contas se a grana dá pra tudo aquilo reagrupando hesitando até conseguir escolher o que quer mesmo ler naquele dia naquela semana naquele mês Pode ser tão bom como ir numa loja de brinquedos de videogames numa papelaria transada numa lanchonete apetitosa Desfrutantemente saboroso Questão de quem leva pra passear parente ou professor também pensar em livrarias Importante é escolher o lugar pra se ficar com o livro trazido Esparramado no chão deitado na cama encostado nas almofadas apertado na cadeira balançando na rede Cada leitor sabe onde é mais gostoso mais sossegado mais abraçante se largar com as suas páginas cobiçadas ou tratar de ser rápido para engolir as infinitas páginas obrigadas e dar uma paradinha pra pensar no acontecente na belezura duma frase na vontade de copiar uma lindeza no caderno na decepção com o jeito como tudo terminou na brabeza de ter que agüentar aquela chatura sem fim em se perguntar se a professora leu mesmo aquele livro antes de avisar e sem discussão que aquela seria a história daquele bimestre O melhor do ler é que é um jogo que se faz sozinho no tempo da própria curiosidade intervalando quando quer relendo sem pressa o mais mexente ou incompreensível voltando atrás recomeçando desde o comecinho pulando parágrafos copiando outros desistindo na metade prendendo a respiração até chegar na última linha da última página adiando prum outro momento emprestando pra alguém pra poder trocar as impressões do provocantemente vivido passando adiante como presente relendo inteirinho Leitura é embriaguez volúpia fissuração mergulho vital e empurrante queixo caído com o inesperado surpresa da descoberta de um jeito de ser que nem sabia que podia se ter emoção escorregando pelos poros suspiros com a poetura Sem nenhuma cobrança que não as próprias Sem fichas pra responder sem prova pra checar se cada detalhe desimportante foi atentamente observado sem mês determinado para ficar acompanhado daquele volume e não de outro muito mais cobiçado e desejado 63 Leitura é paixão é entrega tem que ser feita com tesão com ímpeto com garra De quem lê e de quem indica Com trocas saboreadas e não com perguntas fechadas e sem espaço pra opinião própria pensada sentida vivida Senão é só pura obrigação E aí como tudo o mais na vida não vale a pena Mesmo 64 11 FRANCISCO WEFFORT Governo cultura leitura e identidade Francisco Weffort é sociólogo e professor da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade de São Paulo Foi professor convidado da Universidade de Stanford nos Estados Unidos Atualmente é o Ministro da Cultura A questão da formação do leitor bem como dos programas de leitura em desenvolvimento e os ainda a serem criados da perspectiva deste Ministério só poderão ser examinados como parte integrante das políticas públicas voltadas para o setor cultural como um todo tendo em vista as nossas estratégias para o setor Desta forma como decorrência da determinação do presidente Fernando Henrique Cardoso no sentido de fortalecer amplamente todas as atividades culturais podemos perceber em primeiro lugar um substancial aumento de recursos do Ministério da Cultura de 1995 a 1998 Ao crescimento do orçamento se deve somar a extraordinária colaboração também por determinação presidencial das empresas públicas especialmente as dos Ministérios da Fazenda das 65 Comunicações e de Minas e Energia O crescimento como decorrência do proposto foi um traço dominante da cultura brasileira nos anos 19951998 É certo que embora também tenham sofrido pesados desgastes em inícios dos anos 90 a difusão do livro e da leitura o patrimônio as artes cênicas os museus a construção de novos espaços culturais o apoio à cultura popular e ao folclore nunca foram obrigados a uma parada tão drástica quanto a do cinema Não se pode porém deixar de assinalar que as áreas culturais mencionadas passaram a partir de 1995 por uma notável aceleração de ritmo e uma extraordinária ampliação de escala É evidente que a administração da cultura tem ainda um bom pedaço de estrada a caminhar Mas a caminhada daqui para diante só se fará com êxito por quem for capaz de reconhecer o quanto se caminhou até aqui Os anos 19951998 foram neste sentido decisivos Nos mais diversos setores de atividades pudemos criar programas outros sem prejuízo da ampliação dos já existentes Um exemplo de programa novo é o das bolsas de estudo para o aprimoramento da formação de artistas no país ou no exterior já definido em lei desde 1991 mas que só agora tornouse realidade Até 1995 o Ministério da Cultura não tivera condições de oferecer nenhuma bolsa mas em 1997 e 1998 concedeu 86 A estes programas se junta o de intercâmbio analisado por Eric Nepomuceno que inclui dezenas de visitas de escritores e artistas ao exterior e centenas de projetos de apoio para apresentações de grupos brasileiros na América Latina Estados Unidos e Europa É ainda digno de nota o programa das bandas de música criado em 1976 e que se ampliou consideravelmente nos últimos anos Seguindo tradição firmada desde há algum tempo a da difusão da leitura ampliamos o Proler programa da Fundação Biblioteca Nacional e estendemos a outras capitais do país o Paixão de Ler inspirado no Fureur de Lire de origem francesa e já aplicado com êxito na cidade do Rio de Janeiro Recémcriado o programa Uma Biblioteca em Cada Município atendeu a cerca de 315 municípios de 1996 a 1998 Um ponto a merecer maior atenção é o da concentração dos recursos do mecenato captados nos termos da Lei Federal da Cultura na 66 região Sudeste do país com peso maior no eixo RioSão Paulo Um dos principais objetivos destes recursos tem sido o de favorecer programas como Leia Brasil da Petrobras cuja eficiência é cada vez mais evidente tal o número de solicitação de sua ampliação nos vários estados do país É verdade que a tendência à concentração de recursos no eixo RioSão Paulo ainda permanece não obstante os esforços para ampliar os benefícios para outras regiões contrariando uma visível propensão da cultura brasileira a uma diversidade que se expande para todo o país Parte essencial do nosso desenvolvimento a cultura não poderia deixar de expressar alguns dos nossos desequilíbrios sociais e econômicos Temos por exemplo uma grande indústria do livro e contudo um precário sistema de distribuição através de livrarias Além disso temos um livro que nas livrarias é ainda muito caro Não se pretende dizer que as coisas estejam paradas mas ainda falta muito para que se possa falar de um relativo equilíbrio entre produção distribuição e preços no setor Típico dos nossos desequilíbrios é que o Brasil das grandes cidades cria novas demandas culturais num ritmo muito mais rápido do que o da ampliação das nossas pequenas estruturas de produção e sobretudo de distribuição Em todo caso nem tudo são problemas pois algumas soluções também se apresentam E a distribuição de livros acompanhando a venda de jornais e revistas do Rio e de São Paulo mostra que temos na área uma extraordinária demanda potencial O Brasil é de fato um imenso mercado para os produtos da cultura e temos que passar a enfrentar na escala necessária a questão importante de descobrir os meios de chegar a ele Assim como na área do livro surgiram as megalivrarias Difusão cultural Num pais de dimensões continentais os programas de difusão terão que vir a ocupar um lugar mais relevante talvez prioritário no futuro próximo Muito se tem feito através do Proler programa da Biblioteca Nacional e das edições e projetos de circulação de música e de artes cênicas da Funarte bem como através da Casa Rui Barbosa por 67 meio de suas edições e vínculos com os museuscasas e da Fundação Palmares no campo da tradição afrobrasileira Muito se tem feito também através de filmes e vídeos produzidos pela Funarte e pela Secretaria do Audiovisual os quais buscam registrar e difundir conhecimentos sobre nossos artistas festas e tradições Caminhamos nestes anos além dos livros vídeos filmes música e artes cênicas também na circulação de exposições de artes plásticas quase sempre a partir de iniciativas localizadas no eixo RioSão Paulo A valorização da diversidade cultural diz respeito tanto ao reconhecimento das faces da nossa identidade quanto à critica das nossas desigualdades sociais e regionais Já observou o presidente Fernando Henrique Cardoso falando da economia que se já não somos um país subdesenvolvido continuamos a ser um pais socialmente injusto Algo de semelhante se pode dizer da cultura generosamente diversa e abrangente contrastando com uma estrutura social muitas vezes desigual e excludente Nestas circunstâncias a capacidade da nossa cultura fundamentalmente a leitura de incluir a todos qualquer que seja a sua origem região ou condição social é um trunfo decisivo do processo de consolidação entre nós de uma cidadania democrática Muitos brasileiros se reconhecem como brasileiros e neste sentido iguais no plano da cultura antes que se pudessem reconhecer como iguais no plano da cidadania política É que nós nos formamos como uma comunidade cultural antes de sermos uma democracia política Deste modo a difusão cultural além dos caminhos que abre ao reconhecimento da nossa identidade como nação vale também para reforçar os caminhos do nosso processo de democratização Assim como não pode ser vista à parte da democratização política a leitura verdadeiro passaporte para a fruição cultural não pode ser vista também à parte do nosso desenvolvimento econômico No governo Fernando Henrique Cardoso os recursos que o Estado lhe tem dedicado como de resto a toda a cultura têm que ser entendidos menos como gasto e mais como investimento Somados os recursos públicos das esferas federal estadual e municipal eles são apenas uma pequena parcela cerca de 10 dos recursos globais do setor estimados em cerca de 8 bilhões de reais em 1998 Estes recursos públicos são contudo 68 essenciais porque atuam como fermento para fazer o bolo crescer A finalidade da leitura neste sentido como de resto o da cultura não é o mercado mas a formação plena da identidade das pessoas e o enriquecimento da sensibilidade humana Ela vale em si mesma Eis um princípio nunca esquecido no governo Fernando Henrique E isso quer dizer entre outras coisas que o acesso pleno à leitura é como à educação um dever do Estado Há que reconhecer apesar disso e talvez por isso mesmo que nós somos um amplo mercado consumidor de cultura e que a cultura que necessitarmos e que não pudermos produzir nós teremos que importar O cinema é o exemplo mais evidente disso Outro exemplo é o do turismo que em boa parte se apóia em razões culturais e que leva quantidades de dinheiro brasileiro para o exterior Como disse Fernando Henrique Cardoso estamos em uma época de afirmação da nossa autoestima como nação Afirmação diante de nós mesmos e diante do mundo Não temos por que temer o mundo moderno cada vez mais globalizado com as suas fronteiras sempre mais abertas Também nós vamos caminhando na rota da modernização parte que somos de um povo dotado de enorme vitalidade cultural e que vai conquistando passo a passo os sentidos da sua identidade 69 12 GUIOMAR DE GRAMMONT Escritora professora de Filosofia no Instituto de Filosofia Artes e Cultura da Universidade Federal de Ouro Preto Publicou o livro Corpo e Sangue pela Editora DesEscritos em Belo HorizonteMG199I Prêmio Casa de las Americas em 1993 com o livro de contos O fruto de Vosso Ventre publicado em Cuba Atualmente cursa doutorado na USP A pensar a fundo na questão eu diria que ler devia ser proibido Afinal de contas ler faz muito mal às pessoas acorda os homens para realidades impossíveis tornandoos incapazes de suportar o mundo insosso e ordinário em que vivem A leitura induz à loucura desloca o homem do humilde lugar que lhe fora destinado no corpo social Não me deixam mentir os exemplos de Don Quixote e Madamme Bovary O primeiro coitado de tanto ler aventuras de cavalheiros que jamais existiram meteuse pelo mundo afora a crerse capaz de reformar o mundo quilha de ossos que mal sustinha a si e ao pobre Rocinante Quanto à pobre Emma Bovary tornouse esposa inútil para fofocas e bordados perdendose em delírios sobre bailes e amores cortesãos Ler realmente não faz bem A criança que lê pode se tornar um 71 adulto perigoso inconformado com os problemas do mundo induzido a crer que tudo pode ser de outra forma Afinal de contas a leitura desenvolve um poder incontrolável Liberta o homem excessivamente Sem a leitura ele morreria feliz ignorante dos grilhões que o encerram Sem a leitura ainda estaria mais afeito à realidade quotidiana se dedicaria ao trabalho com afinco sem procurar enriquecêlo com cabriolas da imaginação Sem ler o homem jamais saberia a extensão do prazer Não experimentaria nunca o sumo Bem de Aristóteles o conhecer Mas pra que conhecer se na maior parte dos casos o que necessita é apenas executar ordens Se o que deve enfim é fazer o que dele esperam e nada mais Ler pode provocar o inesperado Pode fazer com que o homem crie atalhos para caminhos que devem necessariamente ser longos Ler pode gerar a invenção Pode estimular a imaginação de forma a levar o ser humano além do que lhe é devido Além disso os livros estimulam o sonho a imaginação a fantasia Nos transportam a paraísos misteriosos nos fazem enxergar unicórnios azuis e palácios de cristal Nos fazem acreditar que a vida é mais do que um punhado de pó em movimento Que há algo a descobrir Há horizontes para além das montanhas há estrelas por trás das nuvens Estrelas jamais percebidas É preciso desconfiar desse pendor para o absurdo que nos impede de aceitar nossas realidades cruas Não não dêem mais livros às escolas Pais não leiam para os seus filhos podem leválos a desenvolver esse gosto pela aventura e pela descoberta que fez do homem um animal diferente Antes estivesse ainda a passear de quatro patas sem noção de progresso e civilização mas tampouco sem conhecer guerras destruição violência Professores não contem histórias podem estimular uma curiosidade indesejável em seres que a vida destinou para a repetição e para o trabalho duro Ler pode ser um problema pode gerar seres humanos conscientes demais dos seus direitos políticos em um mundo administrado onde ser livre não passa de uma ficção sem nenhuma verossimilhança Seria impossível controlar e organizar a sociedade se todos os seres humanos 72 soubessem o que desejam Se todos se pusessem a articular bem suas demandas a fincar sua posição no mundo a fazer dos discursos os instrumentos de conquista da sua liberdade O mundo já vai por um bom caminho Cada vez mais as pessoas lêem por razões utilitárias para compreender formulários contratos bulas de remédio projetos manuais etc Observem as filas um dos pequenos cancros da civilização contemporânea Bastaria um livro para que todos se vissem magicamente transportados para outras dimensões menos incômodas É esse o tapete mágico o pó de pirlimpimpim a máquina do tempo Para o homem que lê não há fronteiras não há correntes prisões tampouco O que pode ser mais subversivo do que a leitura É preciso compreender que ler para se enriquecer culturalmente ou para se divertir deve ser um privilégio concedido apenas a alguns Jamais àqueles que desenvolvem trabalhos práticos ou manuais Seja em filas em metrôs ou no silêncio da alcova Ler deve ser coisa rara não pra qualquer um Afinal de contas a leitura é um poder e o poder é para poucos Para obedecer não é preciso enxergar o silêncio é a linguagem da submissão Para executar ordens a palavra é inútil Além disso a leitura promove a comunicação de dores alegrias tantos outros sentimentos A leitura é obscena Expõe o íntimo torna coletivo o individual e público o secreto o próprio A leitura ameaça os indivíduos porque os faz identificar sua história a outras histórias Tornaos capazes de compreender e aceitar o mundo do Outro Sim a leitura devia ser proibida Ler pode tornar o homem perigosamente humano 73 13 GUIOMAR NAMO DE MELLO A escola do futuro uma ponte de significados sobre a estrada da informação Guiomar Namo de Mello é Pedagoga com Especialização em Orientação Educacional Mestra em Psicologia da Educação Doutora em Educação e PósDoutorado em Sistemas Comparados de Educação Atualmente é Membro do Conselho Nacional de Educação e Diretora Executiva da Fundação Victor Civita Nas sociedades contemporâneas a informação e o conhecimento estão se tornando disponíveis a um número cada vez maior e mais diversificado de pessoas A internet rede mundial de informação que torna o hipertexto acessível a um simples toque dos dedos é a expressão tecnologicamente mais avançada de um processo que há mais de 50 anos vem se instalando na nossa cultura Uma consulta à banca de revistas e jornais existente em cada esquina das grandes cidades mostra que o hipertexto há muito faz parte do cotidiano urbano Aí se encontra um mundo às vezes caótico mas sempre divertido de acesso à informação dicionários e jogos instrutivos obras que vão da jardinagem à filosofia passando por esportes decorações atualidades políticas e científicas saúde ecologia e outras 75 Todas a um custo bastante aproximado Acrescentese a isso o enorme poder informativo e formativo da televisão e a possibilidade recente de interação entre os diferentes meios de comunicação para dimensionar o caminho aberto pela autoestrada da informação que só tenderá a ampliarse e a aumentar o número dos que nela navegam O avanço da tecnologia da informação vai propiciar uma mudança no paradigma da produção e divulgação do conhecimento Não é fácil desenhar com precisão o cenário do futuro mas uma coisa parece clara o conhecimento deixará de ser monopólio das instituições que tradicionalmente têm sido suas zelosas depositárias Vale a pena portanto fazer um esforço para resignificar o papel do professor e da escola nesse futuro próximo É preciso reconhecer que para muitas crianças que estão nascendo neste final de milênio a escola não será a única e talvez nem a mais legítima fonte de informações Conseqüentemente o papel do professor sofrerá mudanças profundas A maioria dos professores ainda opera como guardiã de conhecimentos aos quais dá acesso segundo um ordenamento prédefinido e de acordo com metodologias que considera adequadas No futuro próximo no entanto ele terá que assumir também a função de incorporar e significar no contexto do ensino conhecimentos que vêm de diferentes fontes externas à escola quase sempre numa seqüência e lógica que escaparão a seu controle Se quiser que seus alunos gostem de aprender o professor não pode continuar isolado em sua disciplina Além de especialista em determinada área do conhecimento ele terá de desenvolver habilidades para identificar as relações de sua especialidade com outras áreas de conhecimento Essa mudança de papéis vai muito além da mudança na posição física do professor em sala de aula na frente ou junto aos alunos Ela atinge o núcleo mesmo da missão da escola reconhecer que não é possível transmitir conhecimentos com a mesma velocidade e atratividade da multimídia E privilegiar a constituição de um quadro de referência científico cultural e ético para selecionar organizar dar sentido e levar à prática a informação e o conhecimento 76 Construir sentidos com base na informação e no conhecimento poderá ser a tarefa mais nobre da escola na sociedade da informação se a autoestrada da informação estará cada vez mais presente na sociedade às instituições educativas caberá construir sobre essa autoestrada uma ponte de significados que permita aos alunos navegar sem serem atropelados pela quantidade e diversidade de informações que já estão congestionando a nossa visão de mundo Que outra coisa propunham mestres como Dewey Piaget Vigotsky ou Freinet para citar apenas alguns apesar de suas diferenças Esse é portanto um sonho antigo dos educadores mas até hoje não conseguimos que a educação escolar como um todo vá além da transmissão de conhecimentos Será que a tecnologia da informação poderá ser o elemento que faltava A resposta a essas perguntas dependerá de enfrentarmos entre outros desafios o de resignificar os instrumentos do trabalho pedagógico currículos métodos e programas de ensino e perfis de competência dos professores A construção de sentidos na escola terá que ser cada vez mais interdisciplinar ou mesmo transdisciplinar O conhecimento contemporâneo está ultrapassando as fronteiras rígidas do paradigma científico do século passado A estrutura do hipertexto expressa bem essa noção nele muitos links podem ser estabelecidos entre fatos de natureza diferente conceitos que os representam e linguagens que dão suporte à representação conceitual Projetos de investigação de produção ou intervenção real ou simulada na realidade quase sempre considerados extracurriculares terão que ser resignificados como mais do que nunca curriculares Para produzirem conhecimentos significativos as situações de aprendizagem precisam induzir o aluno a referir o aprendido na escola ao vivido e observado de modo espontâneo Daí a necessidade da abertura do currículo para a experiência do aluno e o conhecimento ao qual ele tem acesso fora do contexto escolar Motivar o aluno a aprender requer superar as limitações da transposição didática essa é uma regra pedagógica antiga Mas daqui em diante essa tarefa terá que levar em conta que a experiência dos alunos estará cada vez mais carregada de 77 informações e conhecimentos que não consideram fronteiras nacionais culturais ou etárias Acessar e adquirir conhecimento pode ser um ato solitário A construção de sentidos implica necessariamente na interação pela qual eles são negociados com o outro familiares amigos professores ou interlocutores anônimos dos textos e dos meios de comunicação Toda negociação de significados envolve valores Mas é da educação escolar que a sociedade cobra os valores que considera positivos para as novas gerações Por essa razão mesmo interativas e formadoras de mentalidades as tecnologias da informação e da comunicação não dispensam a educação escolar Desta se espera que prepare os alunos a renegociar os significados veiculados pela mídia por meio da análise crítica Os conteúdos de ensino terão que ser resignificados como meios e não mais como fins em si mesmos Deverão visar menos a memorização e mais as capacidades necessárias ao exercício de dar sentido ao mundo analisar inferir prever resolver problemas continuar a aprender adaptarse às mudanças trabalhar em equipe intervir solidariamente na realidade Não é por acaso que tais competências são as que agregam maior valor ao trabalho e ao exercício da cidadania nas sociedades contemporâneas a organização dos processos produtivos e das práticas sociais também está sendo afetada pela revolução da informação Finalmente é necessário reafirmar a importância da educação escolar na constituição de significados deliberados Ela parte da experiência espontânea para chegar à sistematização e abstração que libertam do espontaneísmo Significados deliberados identificam o objeto do conhecimento sabem como se aprende atribuem valores à aplicação do saber e estimulam sua expressão Só eles têm a universalidade dos significados socialmente reconhecidos como verdadeiros as ciências os valores da diversidade igualdade solidariedade e responsabilidade e a importância das linguagens que os expressam Esses objetivos base da identidade ética e não excludente são perseguidos pela educação escolar desde que Sócrates associou a sabedoria à virtude A incapacidade de alcançálos legitimou condenações ferozes da escola e dos educadores A tecnologia da informação pode 78 ser uma nova oportunidade de cumprirmos com êxito a missão que nos legaram os grandes pedagogos do passado expressando o anseio social de uma vida melhor e mais feliz 79 14 IARA GLÓRIA AREIAS PRADO Para formar leitores na escola Iara Prado é Licenciada em História pela Universidade de São Paulo com Pósgraduação na área de História Social Professora universitária e do Ensino Fundamental e Membro Efetivo do Conselho Estadual de Educação do Estado de São Paulo Membro Efetivo do Conselho da Condição Feminina de São Paulo e Secretária de Educação Fundamental do Ministério da Educação A história escolar vem mostrando que não apenas no Brasil mas em diferentes países do mundo o acesso ao ensino da língua alfabetização e estudos posteriores não tem garantido a competência dos alunos para utilizar adequadamente a escrita Há um enorme contingente de pessoas que tecnicamente aprendeu a ler e escrever na escola e não consegue fazer uso da linguagem em situação de leitura e escrita são os chamados analfabetos funcionais pessoas que em decorrência do tipo de ensino que tiveram não se tornaram capazes de compreender o que lêem e de se comunicar por meio da escrita Porém alguns dados numéricos permitem analisar a dramática situação brasileira no que se refere ao acesso a livros a despeito de todas as estimativas de que os níveis de leitura vêm se elevando Segundo a 81 Câmara Brasileira do Livro o país consome 23 livros per capita ao ano sendo que 60 dos livros vendidos são escolares didáticos e paradidáticos e que parte considerável é distribuída gratuitamente pelo governo nas escolas E o Ministério da Cultura informa que a maior parte do material de leitura adquirido espontaneamente no país é comprado em bancas de jornais e revistas e que as bancas vendem mais livros do que as livrarias Informa também que há apenas 4000 bibliotecas públicas no Brasil aproximadamente uma para 40000 habitantes E somandose a outros tantos disse o escritor Alberto Manguei em entrevista recente a uma revista brasileira Ler é poder A leitura dá poder porque é um meio para compreender o mundo e essa compreensão é uma condição de cidadania além do que lendo podemos nos tornar cada vez mais também cidadãos da cultura escrita Portanto os desafios que se colocam para a escola espaço privilegiado de desenvolvimento da competência para ler e escrever não são poucos pois todas as evidências têm mostrado que essa competência não depende propriamente do acesso a certas práticas convencionais de ensino da língua mas a experiências significativas de utilização da escrita no contexto escolar tanto em situação de leitura como de produção de textos O Ministério da Educação assumindo seu papel de indutor de políticas vem produzindo documentos e incentivando projetos que têm na formação de leitores uma das finalidades principais Os Parâmetros Curriculares Nacionais o Referencial Curricular Nacional de Educação Infantil a Proposta Curricular para a Educação de Jovens e Adultos os Referenciais para a Formação de Professores são documentos orientadores da educação escolar e da formação dos docentes brasileiros que assumem a defesa da formação de leitores como uma prioridade e sugerem possibilidades de trabalho pedagógico para incentivar a leitura e desenvolver a capacidade dos alunos de fazer uso real da escrita O Programa Nacional Biblioteca na Escola que distribui livros de literatura obras de referência e materiais de apoio a alunos e professores de escolas públicas de ensino fundamental e o projeto PróLeitura na Formação do Professor que integra o Programa de 82 Cooperação Educacional BrasilFrança e é resultado da iniciativa conjunta do MEC e da Embaixada da França são ações complementares com a mesma finalidade A tarefa é cada vez mais criar condições favoráveis para o desenvolvimento de propostas eficazes de formação de verdadeiros usuários da linguagem o que pressupõe trabalhar com os diferentes textos tanto em situações de produção como de compreensão No que se refere à leitura isso implica um amplo trabalho não apenas com livros mas com todos os materiais em que a palavra escrita é ferramenta para o acesso à informação ao entretenimento à compreensão crítica do mundo Principalmente quando os alunos não têm contato sistemático com bons materiais de leitura e com adultos leitores quando não participam de práticas onde ler é indispensável a escola deve oferecer materiais de qualidade modelos de leitores e práticas de leitura eficazes Essa pode ser a única oportunidade de esses alunos interagirem significativamente com textos cuja finalidade não seja apenas a resolução de pequenos problemas do cotidiano É preciso portanto oferecerlhes os textos do mundo não se formam bons leitores solicitando aos alunos que leiam apenas durante as atividades na sala de aula apenas no livro didático apenas porque o professor pede Sem um trabalho com a diversidade textual certamente não é possível formar leitores competentes ou seja pessoas que por iniciativa própria são capazes de selecionar dentre os textos que circulam socialmente aqueles que podem atender às suas necessidades e que são capazes de utilizar procedimentos adequados para ler Hoje se sabe que o desenvolvimento da capacidade de ler depende em grande medida do sentido que a leitura tem para as pessoas do ponto de vista de quem lê a escrita deve responder a objetivos de realização imediata É assim que acontece fora da escola lemos para solucionar problemas práticos para nos informar para nos divertir para estudar para escrever ou revisar o próprio texto Certos textos lemos por partes buscando a informação necessária outros exaustivamente e várias vezes outros rapidamente outros vagarosamente Às vezes controlamos atentamente a compreensão voltando atrás para checar nosso 83 entendimento outras seguimos adiante sem dificuldade entregues apenas ao prazer de ler outras realizamos um grande esforço intelectual e a despeito disso continuamos lendo sem parar Toda criança jovem e adulto têm direito a essas experiências de leitura também na escola Isso requer um trabalho pedagógico criteriosamente planejado não só com a diversidade de textos mas com a diversidade de objetivos e formas de ler Para tornar os alunos bons leitores para desenvolver o gosto e o compromisso com a leitura a escola terá de mobilizálos internamente pois esse é um aprendizado que requer esforço Precisará fazêlos achar que ler é algo interessante e desafiador algo que conquistado plenamente dará a eles autonomia e independência E terá de oferecer condições favoráveis para as práticas de leitura que não se restringem apenas aos recursos materiais disponíveis pois na verdade todas as evidências têm revelado que o uso que se faz dos livros e demais materiais escritos é o aspecto mais determinante para a formação de leitores de fato 84 15 JASON PRADO Ingenuidade e inconseqüência Publicitário jornalista Professor Convidado da cadeira de Promoções e Merchandising da Escola de Comunicação da UFRJ e Diretor Geral do Programa Leia Brasil Programa de Leitura da Petrobras Nos primeiros dias do ano de 1992 levamos à Petrobras um projeto de bibliotecas sobre rodas que ao nosso ver atenderia com desenvoltura às necessidades de relacionamento institucional daquela empresa com um público especial constituído por alunos e professores das escolas públicas da cidade do Rio de Janeiro Por pura ingenuidade nós não dimensionamos o que havia por trás daquela porta que timidamente acabávamos de abrir O pretexto ou justificativa que adotamos para abrir as escolas às mensagens corporativas da maior empresa brasileira foi o de ajudar a formar leitores a partir de uma oferta constante e sistemática de bons livros de literatura e ele acabou se configurando numa necessidade tão veemente da rede de ensino que hoje precisamos encontrar justificativas 85 para não atender com o que resultou daquele projeto inicial as centenas de milhares de escolas de todo o país Desde a primeira visita do caminhão colorido à primeira escola deu para perceber pela euforia das crianças que pelo menos em parte nós tínhamos acertado o Leia Brasil tinha um público Também por ingenuidade naquele trabalho embrionário que resultava de algumas pesquisas sobre a nossa realidade educacional sob a ótica da publicidade e da comunicação social que era a nossa pauta imaginávamos que a dita oferta de livros seria o abretesésamo para uma nação de leitores Por isso o batizamos com o subtítulo de bibliotecas volantes centrando toda a sua conceituação na idéia de um contêiner de livros ambulantes Levou algum tempo até que percebêssemos um vazio que se instalava nas escolas logo após o impacto da chegada do caminhão professores que se afastavam para matar o tempo atualizando papos alunos das primeiras séries do primeiro grau desfilando livros densos e enormes pelos pátios bibliotecárias escolares torcendo o nariz para o projeto invasor Era o princípio do caos Foi quando despertamos para o fato de que há outros fatores de grande importância para a formação de leitores do que a simples possibilidade do contato com o livro Com o apoio do Proler que acabava de ser criado pela Fundação Biblioteca Nacional descobrimos que não basta oferecer livros Mais ainda descobrimos que será difícil encontrar um aluno que leia sem um professor leitor Por pura ingenuidade começamos a trabalhar a leitura nas escolas pelo viés da sedução Utilizamos mais de uma centena de técnicas e artifícios para seduzir alunos e professores para a leitura e abrimos ao máximo o significado do termo dandolhe a dimensão do universo quem lê constrói uma nova dimensão de significados Quem lê viaja pelo mundo da fantasia Fomos em busca de outras parcerias oferecendo a fome de nossos alunos em troca da sede atávica das entidades por público cativo Sem custo para as partes 86 Com isso enriquecemos nosso arsenal de seduções exibindo telas de Debret em Alagoas índios Karajás em São Paulo Portinari na Bahia Levamos gente para aprender História do Brasil jogando RPG no Museu Histórico Nacional Promovemos visitas guiadas aos mais fantásticos espaços culturais da atualidade da Academia Brasileira de Letras ao Paço Imperial Levamos artistas inimagináveis para escolas de subúrbio E fomos todos viver a Aventura do Teatro1 Paralelamente iniciamos um trabalho de valorização do professor mexendo com sua autoestima e provocamos a libertação das suas identidades aprisionadas Coisas que só se faz por máfé ou ingenuidade E por isso fomos inconseqüentes Alguns dos nossos alunos e professores começaram a querer ler Alguns gostaram Uns tantos até passaram a escrever a contar histórias a declamar poemas a trabalhar com teatro artes plásticas Em algumas das nossas escolas toda a comunidade educadores alunos vizinhos pais etc se reúne uma vez por semana durante mais de uma hora para conversar sobre suas leituras de filmes de livros de músicas de reformas de fachadas de prédios que viram pelo meio das ruas Em suma do cotidiano Nossa inconseqüência gerou uma enorme pressão sobre a Petrobras que a cada ano tem aumentado nosso raio de ação e ampliado significativamente o alcance de nossas propostas Hoje se você está lendo essas linhas em 1999 e for um dia útil no calendário escolar aproximadamente 28 mil alunos estarão visitando nossas 16 bibliotecas volantes devolvendo e emprestando livros Amanhã outros tantos E depois de amanhã também E assim sucessivamente até que nossos 610 mil usuáriosmês completem um ciclo de visitas Depois começa tudo de novo até o fim do ano letivo Esses números como todo número numa narrativa são relativos O que são alguns entre milhões Não importa Não é disso que estamos tratando e sim do fato de que de certa forma alguns estão se tornando leitores E mais alguns já 87 chegaram ao simbólico estágio da leitura silenciosa com vocabulários ampliados compreendendo textos e falas complexas É possível portanto formar leitores Ou seja há caminhos pelos quais se consegue modificar o comportamento de pessoas Esse é um dos pressupostos da Comunicação e é sintomático que o Leia Brasil tenha nascido como uma proposta de trabalho de relações públicas Ele acabou transformandose num veículo de massa e como tal tem modificado o comportamento de leitura de um expressivo contingente populacional Seria formidável se outros veículos de massa se envolvessem nessa questão de formar leitores Mas isso é muita ingenuidade de nossa parte E as conseqüências então seriam por demais imprevisíveis Voltando aos nossos recémchegados leitores Grande parte desses alunos e professores nos escrevem textos pungentes sobre suas descobertas da leitura e na leitura De um deles quando conquistamos o Prêmio Petrobras de Qualidade pelos resultados do Leia Brasil recebemos um bilhete que nos dava conta de nossa ingenuidade e inconseqüência tal como a descrevemos agora Essa pessoa citando alguém cujo nome nos escapa nos disse o seguinte Ele não sabia que era impossível Por isso foi lá e fez 1 Peça inspirada na obra de Maria Clara Machado 88 16 JOEL RUFINO DOS SANTOS Como me apaixonei por livros Escritor historiador Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ Atualmente é Superintendente de Cultura do Estado do Rio de Janeiro membro do Comitê Científico Internacional do Programa Rota de Escravo da UNESCO e Coordenador no Brasil do Programa das Escolas associadas à UNESCO Nasci em Cascadura tradicional bairro do Rio de Janeiro Carroças recolhiam o lixo puxadas por pobres burros tristes Meu avô aposentado do DLU Departamento de Limpeza Urbana o dono das carroças sentavase na calçada com outro aposentado chamado Bahia e sonhava grandezas Faria uma viagem ao Recife compraria o terreno ao lado se tornaria sócio do Botafogo Nos colégios em que estudei o primário hoje 1a a 5a série e o ginásio de 5a a 8a não havia bibliotecas nem muito menos sala de leitura Além das salas e dos pátios havia é verdade uma sala sempre fechada o quartoescuro Lá o faltoso ficava uma hora defronte da sua consciência Não foi portanto na escola que me apaixonei por livros 89 Onde foi Minha avó materna era de origem caeté ou talvez fulniô ou talvez potiguara de qualquer jeito indígena Trabalhou toda vida de cozinheira veio para o Rio trazida por um ricaço que não queria ficar sem suas mãesbentas e cozidos Era uma contadora excepcional de histórias e quando ficou em cadeiraderodas não podendo mais cozinhar sentávamos à sua volta para ouvir O Soldado Verde O que aconteceu com Malasartes O dia em que Lampião entrou em Cajazeiras Primeiro portanto fui seduzido por histórias Minha família era de religião batista Pai mãe irmãos tios avós todos Os batistas eram de uma religiosidade singela discreta e puritana portanto algo hipócrita Aí pelos oito anos tive uma comoção ao descobrir que o pai do pastor auxiliar não usava meias me pareceu uma pecado sem remissão Eu me alfabetizei na Bíblia depois de aprender a juntar sílabas numa cartilha qualquer Quer dizer o que estava na cartilha eram signos no livro sagrado textos Textos fabulosos fábulas histórias Pessoas como minha avó com sua memória e seu talento de narrar haviam escrito aquilo Podia abrir em qualquer página e viajar A técnica abrir em qualquer página na minha família serviu também para dar nome aos filhos Abriase e com o dedo se procurava o primeiro nome Meus irmãos se chamam Samuel Ebenezer Giré Sic Eu seria Isaq mas minha avó na última hora fez um apelo por Joel Minha mãe esperava que lendo muito a Bíblia eu me tornasse um bom cristão como ela Não me tornei O sagrado no meu caso perdeu para o literário Mergulhado desde menino na Palavra de Deus fui seduzido pela primeira e abandonei o segundo Não lembro com alegria esse fracasso da minha mãe Mas devo contar que naquele tempo todo ambiente das igrejas a minha era a batista de Tomás Coelho era literário Se recitava poesia a fama dos declamadores como por exemplo minha irmã corria a cidade se montavam peças toda manhã de domingo as missionárias com sotaque do meiooeste americano contavam histórias para crianças e enfim havia sensacionais concursos de versículos quem sabia 90 mais etc Um outro tipo de literatura antagônica à Bíblia começou porém a agir sobre mim As histórias em quadrinhos como se sabe surgiram na imprensa americana em fins do século passado Logo chegaram ao Brasil mas proliferaram de fato após a Segunda Guerra Surgem as bancas de jornal fascinantes oferecendo gibis a mancheias e não livros como queria Rui Barbosa Capitão Marvel Flash Gordon Brucutu Ferdinando Capitão América Tocha Humana Nioba a Rainha da Selva Meu preferido era o Príncipe Submarino com suas orelhas de peixe Minha mãe proibia Queixavase das mesmas coisas que muitos pais de hoje com relação à televisão estimula a violência o sexo precoce a superficialidade o banditismo Essa proibição foi o segundo fracasso de minha mãe o gibi ganhou mais um gozo para mim o do proibido Eu sonhava ganhar meu primeiro salário na vida para arrematar inteira uma banca de gibi Estou aqui tentando mostrar como me apaixonei por livros especialmente os de ficção Falei de minha avó da Bíblia e das histórias em quadrinhos Ainda falta uma causa que deixei por último Veio na adolescência quando as outras três já tinham agido Eu entrei no ginásio aos 13 anos Os donos eram metodistas a força do protestantismo na minha formação e praticavam uma pedagogia severa e bondosa No segundo ano começava o latim Na primeira aula professor Matta rechonchudinho e careca se dirigiu ao quadro e escreveu o primeiro parágrafo do De Belo Galico só depois de apresentar o autor general de antes de Cristo que fundou o império romano Julius Caesar começou a traduzir Não sei por que comecei a me sentir diante de um espelho Numa língua desconhecida há dois mil anos atrás do outro lado do oceano um general escrevera algo que eu podia ler se quisesse Quem era eu Um menino pobre filho de seu Antônio apanhador de caranguejo nos mangues de Olinda e dona Felícia favelada de Casa Amarela Quem era ele Julius Caesar Se eu quisesse aprender latim e estava em mim querer Julius Caesar teria escrito o De Belo Galico para mim Ao descobrir isso na aula inaugural do velho professor Matta senti uma alegria íntima e feroz 91 Perdoei a meu amigo Julius Caesar todos os crimes que mais tarde estudei na faculdade Dos fatores que me tornaram um leitor incurável este último é o mais difícil de explicar É bom porém que não se explique completamente tudo 92 17 JORGE WERTHEIN A UNESCO e a formação do leitor Argentino 57 anos PhD em Educação e Mestrado em Comunicação pela Universidade de Stanford Representante da UNESCO no Brasil Para uma Organização das Nações Unidas que há mais de meio século luta contra o analfabetismo no mundo escrever sobre a formação do leitor representa mais um desafio e também uma oportunidade no marco de uma política cujo objetivo maior é o de assegurar a todas as pessoas sem nenhuma discriminação condições para o domínio dos códigos básicos da cidadania quais sejam o domínio da leitura da escrita e do cálculo O mundo lamentavelmente entrará no próximo milênio com aproximadamente 1 bilhão de analfabetos absolutos e 100 milhões de crianças sem escola Se a esses números adicionarmos o grande contingente de analfabetos funcionais verificase logo que estamos diante de um quadro assustador pois privar seres humanos do direito da leitura 93 e da escrita equivale a negar lhes o direito à cidadania Sem dúvida pois como muito bem lembrou Antenor Gonçalves a língua é o grande projeto de formação de cidadania por meio do qual o homem toma conhecimento dos direitos que lhe garantem e protegem a vida nas condições de produção de sua vida social e individual O domínio da língua continua Gonçalves significa o ingresso no universo dos homens livres gerando resistência à opressão1 É devido a isso que a UNESCO atribui prioridade máxima à erradicação do analfabetismo e à educação permanente para todos Não se trata mais de apenas erradicar o analfabetismo embora seja esta uma condição politicamente estratégica mas de garantir educação continuada para todos e por toda a vida A Declaração de Hamburgo Sobre Educação de Adultos aprovada em 1997 admitiu que a educação ao longo da vida é mais do que um direito é uma das chaves do século XXI É ao mesmo tempo conseqüência de uma cidadania ativa e uma condição para participação plena na sociedade Observase que este novo conceito de educação é de grande importância no contexto da discussão sobre a formação do leitor Por um lado significa que o processo de alfabetização precisa ser visto como passo inicial necessário ao início de uma trajetória longa de ler e de ver o mundo com lentes que vão se ampliando para melhor decifrar a realidade por outro significa que a formação do leitor necessita aprendizagens que favoreçam o desenvolvimento da capacidade de análise e de crítica Não é mais suficiente somente ler É preciso mais É preciso saber ler É o saber ler que permite indagar e perguntar Eis aí o sentido pedagógico da leitura Tinha razão George Steiner ao afirmar que ler corretamente é correr grandes riscos É tornar vulnerável nossa identidade nosso autodomínio Sem dúvida é esse tipo de leitura que permite a iluminação da realidade Mas como formar esse leitor Pode ser que existam vários caminhos mas nenhum se iguala ao da escola pública de qualidade que é o locus privilegiado para a aquisição dos instrumentos necessários para uma leitura crítica do mundo É o locus insubstituível onde podem e devem ser construídos os alicerces para que cada aluno sujeito dê início a uma trajetória de crescente autonomia intelectual de 94 forma a garantir permanente aquisição e domínio de saberes Se é verdade que a escola pode desempenhar papel dos mais relevantes no processo de formação do leitor é importante sublinhar que essa potencialidade só se explicitará plenamente na medida em que o projeto pedagógico da escola colocar o ensino da língua em posição privilegiada ou seja o estudo da língua precisa ser entendido como veículo de inserção lúcida do estudante no circuito de idéias de seu tempo O domínio das idéias e da cultura que caracteriza o tempo histórico no qual o estudante se acha inserido é de grande alcance para ampliar o significado das diversas leituras que se tornarem necessárias Para se ter uma idéia de como pode ser importante a leitura e sobretudo a leitura dos clássicos reportamonos novamente a George Steiner que ao comparar o ensino das ciências com o ensino das humanidades afirmou As ciências reformularão nosso meio ambiente e o contexto de lazer ou subsistência no qual a cultura é viável Contudo embora tendo inesgotável fascinação e constante beleza as ciência naturais e matemáticas só raramente são de interesse fundamental Com isso quero dizer que acrescentaram pouco a nosso conhecimento ou controle das possibilidades humanas que comprovadamente existe mais compreensão da questão do homem em Homero Shakespeare ou Dostoievski do que em toda a neurologia ou a estatística2 Se dermos crédito a essa afirmação há muito o que ser reformulado nas escolas de educação básica no sentido de renovar o conteúdo e a prática pedagógica para que o aluno vislumbre um futuro mais cheio de significados E já que se debate tanto o Mercosul quão extraordinário seria se a essa altura autores como Borges Euclides da Cunha Garcia Márquez e tantos outros de uma notável plêiade de valores literários da América Latina fossem lidos e interpretados não como algo excepcional mas como atividade curricular regular das escolas básicas da região Certamente o conhecimento dos problemas e dos desafios latinoamericanos seria percebido por crianças e jovens que estariam em melhores condições para engendrar o futuro 95 Dessa forma verificase que o melhor caminho para a formação do leitor é a instauração de uma escola de qualidade para todos e de todos sem o que qualquer remendo que se fizer a posteriori será sempre insuficiente para que o domínio da palavra e da escrita seja de fato um instrumento de libertação e dignidade humanas É certo que como vimos no início desse texto estamos longe desse ideal face aos grandes déficits do sistema educacional No entanto quando se compara o panorama atual da educação no mundo e também no Brasil com o que existia há mais de cinqüenta anos ao tempo em que a UNESCO foi criada constatase que progressos significativos foram alcançados tanto em termos de alfabetização quanto de escola para todos Ainda recentemente a UNESCO participou em Brasília de seminário de avaliação da Política de Educação para Todos da década Segundo os depoimentos e as próprias críticas ficou evidente o progresso alcançado As oportunidades educacionais estão se universalizando e a luta pela melhor qualidade da oferta educativa também já se iniciou Isso significa que há um cenário de perspectivas concretas que passará a constituir o palco principal de lutas pela universalização da cidadania que certamente ocupará o principal espaço da agenda política do próximo milênio É nesse quadro que a UNESCO concebe o desenho de sua agenda de atuação para o futuro que terá na educação para todos e de todos ao longo da vida o seu eixo norteador 1 GONÇALVES Antenor O Poder da Palavra UNESP Campus de Marília 2 STEINER George Linguagem e Silêncio São Paulo Cia das Letras 1988 96 18 LUIZ PERCIVAL LEME BRITTO Máximas impertinentes Se o leitor possui alguma riqueza e vida bem acomodada sairá de si para ver como é às vezes o outro Se é pobre não estará me lendo porque lerme é supérfluo para quem tem uma leve fome permanente Faço aqui o papel de vossa válvula de escape e da vida massacrante da média burguesia Rodrigo S M na verdade Clarice Lispector A Hora da Estrela Doutor em Lingüística pelo IELUNICAMP Mestre em Educação Presidente da Associação de Leitura do Brasil desde 1993 e Professor do Programa de Mestrado em Educação da Universidade de Sorocaba Autor de literatura e publicações sobre leitura e educação Quando se fala em formação do leitor implicitase muitas outras coisas de que não se fala diretamente A mais evidente delas é a idéia de que nem todo mundo que sabe ler é leitor isto é que ser leitor significa algo mais que simplesmente saber ler algo mais que saber enunciar em voz alta ou em silêncio as palavras escritas em linhas corridas caso contrário formar o leitor seria sinônimo de ensinar a ler Outra idéia implícita é que deve existir alguém ou algo que tenha a capacidade e a autoridade de formar o leitor isto é um agente formador mais ainda que esse formador é leitor e sabe como formar leitores E a mais forte de todas a idéia de que ser leitor é algo positivo caso contrário não se justificaria o esforço empreendido em sua formação Essas idéias têm estimulado programas de incentivo à leitura e 97 justificado as mais variadas campanhas de promoção da leitura são motivo de livros e preocupação pedagógica resultam deem um perigoso e apenas aparente consenso Por isso gostaria de negando o consenso pôr em questão algumas dessas crenças subjacentes ao debate político e pedagógico em torno da leitura apresentando essas que eu chamei de máximas impertinentes A leitura não é nem boa nem má a leitura é a leitura O que é ser leitor Tratase certamente de uma categoria em que se inclui determinado tipo de pessoa assim como ocorre com ser consumidor motorista passageiro espectador usuário assinante pedestre assegurado cliente eleitor Esses são por assim dizer alguns dos atributos que se incorporam à condição de ser de cada indivíduo na sociedade contemporânea e que caracterizam o exercício da cidadania Para cada uma dessas situações supõese um comportamento um direito São situações em que de acordo com o conceito de cidadão de Milton Santos articulamse o espaço público e o privado O mesmo se passa com ser leitor Saber ler é uma necessidade objetiva do sujeito moderno na medida em que a leitura está implicada por muitas práticas sociais e a impossibilidade de realizála impede em alguma medida o sujeito de participar delas E assim como não faz sentido dizer que alguém por ser cliente eleitor usuário ou assegurado tornase melhor ou pior mais ou menos crítico também não faz sentido afirmar que o indivíduo é melhor ou pior mais ou menos crítico por ser leitor Lêse pelas mais variadas razões diferentes tipos de textos em diferentes suportes e em diferentes situações Não há nenhum valor ético ou moral associado ao exercício da leitura ela se presta a muitas finalidades e é realizada por pessoas de todas as índoles de qualquer ideologia Ler é verbo transitivo O mito de que ler faz bem de que torna as pessoas melhores parte do princípio de que não importa o que se leia No entanto não se 98 pode negar que a leitura pressupõe necessariamente o texto que se este não existe sem aquela a recíproca também é verdadeira Assim não se pode pensar a leitura sem pensar os objetos sobre os quais ela incide Ler um romance pressupõe em função dos códigos sociais estabelecidos esquemas e finalidades de leitura diferentes de quando se lê um relatório ou uma receita culinária sei que se pode escrever um poema na forma de uma receita que se pode escrever um relatório literário que é tênue a fronteira entre biografia e ficção mas sei também das convenções que permitem essas possibilidades O leitor de X é leitor de X Outra das idéias que circula muito nas escolas e em programas de promoção da leitura é que o importante é ler não importa o quê Por trás dessa idéia está a crença que uma leitura puxa outra e que a pessoa começa lendo história em quadrinho e conforme pega o gosto pela leitura passa a ler coisas melhores Nada contra que o sujeito leia o que quer ou precisa mas não há como aceitar essa idéia de progressão na formação do leitor As TVs educativas continuam mantendo índices de audiências baixíssimos apesar da enorme audiência de certos programas sensacionalistas Os filmes de autor continuam sendo assistidos por muito menos gente que os filmes de aventura O grande sucesso de jornais populares no Rio de Janeiro não implicou o aumento de vendas dos jornais tradicionais De fato o sujeito vai ler aquilo que tenha relação com seu modo de vida com suas necessidades pessoais e profissionais com os vínculos culturais e sociais Não é a leitura que conduz o indivíduo a novas formas de inserção social É ao contrário o tipo de vínculo que ele estabelece que pode conduzilo eventualmente a ler certas coisas de certo jeito A leitura mesmo feita em recolhimento não é um comportamento subjetivo uma questão de hábito ou de postura é uma prática inscrita nas relações históricosociais Ler não é um prazer ainda que possa ser 99 A aproximação de leitura e prazer é uma das imagens mais freqüentes tanto em campanhas de promoção de leitura quanto em sugestões de métodos de ensino da leitura Supõese que as pessoas se encontrarem prazer na leitura lerão mais e melhor O curioso é que este seria o único prazer que precisaria ser promovido como se fosse uma espécie de prazer secreto ou como se as pessoas não soubessem o que lhes dá prazer É certo que alguém pode encontrar prazer na leitura principalmente quando se associa leitura com entretenimento ou com a experiência estética Mas não é certo que haja relação necessária nem vínculo entre leitura e prazer Ao contrário a leitura muitas vezes exige esforço e concentração intensos é cansativa é feita por obrigação e também não há nada de errado que seja feita assim por motivos profissionais religiosos cotidianos ou outros Eximome de comentar o eventual prazer do masoquista A leitura de entretenimento é um entretenimento Se assisto a um show de música se saio para dançar se fico vendo TV se vou no parque de diversões se jogo futebol se faço um churrasco com amigos ou se leio um livro isso depende dos meus gostos modo de vida e condição financeira Não há até aí nenhum parâmetro de avaliação que permita dizer que esta diversão é melhor que aquela podese isto sim lançar mão de princípios éticos ou sociais para pôr em questão certas diversões macabras Divertirse é muito bom e não tem por que supor que a leitura não seja um bom divertimento Mas enquanto divertimento ela não é diferente de qualquer outra forma de entretenimento prazer por prazer tanto faz ler ou ver Ela não forma ou transforma ninguém não produz nenhuma mudança na sociedade nem conduz a outros hábitos De qualquer modo não se pode esquecer que na sociedade industrial moderna a indústria do entretenimento é uma das maiores do mundo movimentando somas fantásticas de dinheiro Nesse sentido o livro ou revista é uma mercadoria como outra qualquer como um brinquedo um doce ou uma peça de vestuário e cabe aos empresários do setor promover seus produtos 100 O leitor que se promove é um estilo de vida A mulher recostada languidamente em uma poltrona a criança estirada no chão diante de um livro as pernas em movimento para o ar as mãos no queixo sustentando o rosto o moço sentado numa mesa de um café com um livro aberto sobre a mesa o velho com a criança no colo e o livro na mão o intelectual diante de enormes fileiras de livros sisudos São imagens recorrentes em iconografias de leitura Imagens de algo que reconforta diverte instrui instiga a imaginação Imagens que reproduzem um modo de ser apropriado É interessante perceber os objetos que combinam com ler se criança almofada se mulher sofá se homem cachimbo e caneta Interessantemente ao lado desse clichê de leitor bem comportado reside seu antípoda a imagem do maravilhoso maldito o escritor que deixa morrer a amada mas salva seus manuscritos do naufrágio que passa noite em claro debruçado sobre sua obra sacrificando a saúde que experimenta radicalmente a vida e morre ainda jovem de cirrose hepática ou de overdose que se suicida num quarto sórdido de Paris As duas imagens se sobrepõem para construir o mito da superioridade do leitor de um lado o gênio indomável do artista de outro a fruição pacífica do burguês radical Poder ler é direito de cidadania Aqui reside a questão central A escrita e a leitura sempre foram e continuam sendo instrumento fundamental de poder e nesse sentido sempre estiveram e continuam estando articuladas aos processos sociais de produção de conhecimento e apropriação dos bens econômicos A própria alfabetização em massa resulta muito mais das necessidades do sistema do que de uma democratização social ou de uma mudança de consciência dos detentores do poder Portanto o quê e o quanto um cidadão é leitor depende acima de tudo de sua condição social e da possibilidade de ter acesso ao escrito e isto depende das relações sociais Não é por acaso que os dados da pesquisa de mídia Abril 1994 relativos 101 ao perfil do leitor de suas revistas trazem números tão insignificantes para o segmento E exatamente aquele que tem menor poder de compra que vive nas piores condições que tem mais desempregados estranha condição de cidadão essa Ou seja os mais excluídos da leitura são também os mais excluídos da sociedade os que não têm hoje emprego moradia atenção à saúde direito ao lazer Promover a leitura só tem sentido enquanto movimento político de contrapoder enquanto parte de um programa de democratização social Nesse sentido a questão que se coloca é a do direito de ler e não a da promoção deste ou daquele comportamento ou a valorização de tal ou qual gosto O que interessa não é o que um sujeito lê se gosta mais disso ou daquilo se encontra ou não prazer na leitura mas sim se pode ler e ler quanto e o que quiser 102 19 MARIA ALICE BARROSO Romancista bibliotecária e Mestre em Ciência da Informação foi DiretoraGeral do Instituto Nacional do Livro e do Arquivo Nacional Atualmente desenvolve o projeto tema de sua tese de mestrado sobre a biblioteca pública na educação do adulto com acervo especialmente dedicado ao analfabeto funcional Não será demais recordar que nossa geração de bibliotecários aquela que surgiu na década de 50 se fosse interrogada quanto ao real motivo que a teria levado ao estudo da biblioteconomia daria como resposta a determinação de contribuir para a formação do leitor acima de tudo Podia ser até que muitos houvessem enveredado por esse caminho pela afinidade com aquele que seria o leitor infantil e não será difícil compreender que a compreensão do texto tornase cada vez mais completa na medida em que esse texto for mais simples em que as palavras se complementem sem o esforço maior do pernosticismo lingüístico Assim os bibliotecários que passaram a centralizar o seu trabalho naquele leitor em potencial que muitos também chamam de analfabeto 103 funcional descobriram na simplicidade do texto infantil a indispensável aproximação que se oferece aos que se iniciam eou desenvolvem o seu exercício de alfabetização trilhando o caminho da educação supletiva Há portanto uma clara conexão no fato de a biblioteca pública estar sendo amplamente utilizada não só em cursos de alfabetização como naqueles destinados aos analfabetos funcionais Como um centro de informação é possível reconhecer nos bibliotecários os educadores e não meramente instrutores assim é que a educação do adulto passou a conceituar aqueles que não tiveram acesso ao estudo em idade própria ou que só lograram esse acesso de modo insuficiente No Brasil a sugestão de utilizar a biblioteca pública paralela à escola na complementação da educação do adulto tem a ver com a aprendizagem da leitura o material didático deverá ser apropriado para aquele que vem de ingressar na biblioteca a fim de adquirir no mínimo habilidades de escrita leitura e operações numéricas o que deverá facilitar o seu ingresso no mercado de trabalho Os bibliotecários não são servidores da escolaridade porém podem ser considerados como os agentes capazes de transformar o mundo particular dos leitores Eles oferecem acesso a um universo coerente ou a um tipo de poder capaz de estruturar a incoerência através da linguagem Na verdade o bibliotecário expande o seu papel de contribuir para que o usuário aumente a habilidade no processo da leitura Alguma estatística O Library Literary Planning Guide informa que 25 milhões de adultos americanos não sabem ler nem escrever outros 35 milhões são funcionalmente analfabetos 85 dos jovens que comparecem perante a Corte de Justiça são analfabetos funcionais de 4 a 6 dos 8 milhões de desempregados se ressentem de não terem sido treinados pelo menos com habilidades cotidianas o que poderia hoje darlhes oportunidade num emprego de relativa tecnologia Cerca de um terço das mães que recebem autoalimentação são funcionalmente analfabetas Um em cada três americanos se reconhece incapacitado de ler um livro A população existente nas prisões representa a mais alta concentração de analfabetos funcionais JOHNSON SOULE Illinois 1986 p408 104 Na verdade a estatística acima enseja que se indague em que se distingue o analfabeto do alfabetizado que não lê Cabe ainda indagar o que têm feito as bibliotecas públicas pelos que desejam se alfabetizar Definição O analfabetismo como quase todo termo na área da Educação possui vários significados As várias interpretações da palavra ou seja aquela que diz respeito ao analfabetismo do adulto e a que se refere ao analfabetismo funcional nem sempre são adequadas ao contexto em que são usadas Analfabeto funcional é aquele que não consegue ler o formulário do seu próprio emprego nem as instruções que lhe são passadas por seu superior tem dificuldade em realizar operações numéricas ou decodificar as manchetes de jornais Há quem indague por que a biblioteca pública Vale a pena lembrar FLUSSER O bibliotecário animador 1982 p122 que cita a biblioteca pública como o órgão capaz de dar a palavra a quem não a tem Vale enfatizar a transformação ocorrida na alfabetização de adultos que era realizada de forma autoritária FREIRE A Importância do ato de ler 1984 p 83 e agora a palavra é uma ato de reconhecimento do mundo um ato criador Ele pontua que a instrução da educação não se limita ao treinamento técnico a fim de corresponder às necessidades de uma área Na verdade FREIRE não se refere à educação que domestica e acomoda mas à educação que liberta pela conscientização com a qual o homem opta e decide FREIRE inova classificando a biblioteca popular como um centro disseminador do saber e não como um depósito silencioso de livros Em sua obra A importância do ato de ler em três artigos que se completam 1994 p 18 esse educador afirma que falar da educação de adultos e de bibliotecas escolares é falar entre muitos outros do problema da leitura e da escrita Não da leitura de palavras e de sua escrita em si próprias como se lêlas e escrevêlas não implicasse uma outra leitura prévia e concomitante àquela a leitura da realidade mesma Um outro ponto que FREIRE acha interessante sublinhar é que uma visão crítica de educação portanto da formação do leitor se refere à necessidade que têm os educadores de viver na prática o 105 reconhecimento óbvio de que nenhum deles está só no mundo A biblioteca popularpública necessita estimular a criação de horas de trabalho em grupo realizando verdadeiros seminários de leitura Numa área popular que possa ser desenvolvida por bibliotecários documentalistas educadores historiadores poderá ser feito o levantamento da área através de entrevistas gravadas com os mais antigos moradores o que poderia representar o testemunho dos momentos fundamentais da sua história comum PAULO FREIRE recomenda que se faça com esse material folhetos observando total respeito à linguagem dos entrevistados Esse material desde que coletado em diferentes regiões deverá ser intercambiado constituindo um material didático de indiscutível valor nele possivelmente encontraremos o autor recémalfabetizado que o escreveu como também através dele encontraremos o leitor que estará exercitando a sua aprendizagem de leitura Como bem enfatiza o educador PAULO FREIRE um dos aspectos positivos de um trabalho como esse é o reconhecimento do direito que o povo tem de ser sujeito da pesquisa que poderá conhecêlo melhor E não objeto da pesquisa que os especialistas fazem em torno dele A forma como deve atuar uma biblioteca pública a constituição de parte do seu acervo que deverá estar dirigida à formação dos analfabetos funcionais as atividades que podem ser desenvolvidas em seu interior tudo isso deve estar inserido numa política cultural na verdade a biblioteca pública deve também ser utilizada na educação do adulto Até a Segunda República o problema da educação dos adultos não se distinguia especialmente dentro da problemática mais geral da Educação Popular Em sua tese de mestrado VANILDA PAIVA Educação popular e educação de adultos esclarece que a educação de adultos começou a ser percebida de forma independente a partir da experiência do Distrito Federal 19331938 com ANISIO TEIXEIRA como Secretário da Educação e das discussões travadas no Estado Novo quando o censo de 1940 indicava a existência de 55 de analfabetos nas idades de 18 anos e mais 106 Devemos admitir no analfabetismo o traço delineador que sublinha as áreas da injusta distribuição educativa dividindo a humanidade Em certas regiões geográficas é possível reconhecer a existência do analfabetismo da desnutrição da pobreza da mortalidade infantil contribuindo para uma péssima qualidade de vida E também devemos estar conscientes de que não será somente através do combate ao analfabetismo que conseguiremos vencer a injustiça social Vivenciando a véspera do 3o milênio cremos que deva ficar bastante claro que a alfabetização não se engloba somente nas exigências da sociedade ou do governo na intenção de incorporar os analfabetos os analfabetos funcionais na cultura letrada o centro de interesse deve ser a educação do adulto A alfabetização pode ser uma das ferramentas disponíveis para a educação do adulto 107 20 MARIA THEREZA FRAGA ROCCO Leitor leitura escola uma trama plural Não existe texto em si separado de qualquer materialidade fora de um suporte que permita sua leitura fora da circunstância em que é lido CAVALLO e CHARTIER1 Professora titular da Faculdade de Educação da USP e Professora convidada da Universidade de Paris É autora dos livros LiteraturaEnsino Uma problemática Crise na Linguagem A Redação no Vestibular e Televisão e Persuasão além de artigos e ensaios publicados no Brasil e no exterior Reflexões Iniciais Leitor texto leitura termos fundadores de uma relação aparentemente imutável revelam no entanto que entre o traçado da escrita do texto mais fixo e menos sujeito a modificações e as leituras que dele se fazem instaurase conforme M de CERTEAU uma nova ordem em que prevalecem o efêmero a pluralidade e a invenção E por quê Porque segundo o autor nossa sociedade hoje mede a realidade por sua capacidade de mostrar de se mostrar e de transformar as comunicações em viagens do olhar2 O leitor agora busca nos textos uma reapropriação de si mesmo Nesses textos a partir da própria experiência prévia de vida o leitor o espectador se tornam plurais No programa de atualidades da TV no texto do livro ou do jornal leitoresespectadores enxergam paisagens do 109 próprio passado que acabam por integrar às visões às leituras do presente Desse modo os textos enquanto espécies de reservatórios de formas esperam que o leitor lhes dê vida modificandoos enquanto objetos de leitura aos quais são atribuídas múltiplas significações3 Mas nem sempre as coisas foram assim Pelo menos oficialmente Houve um momento em que se acreditava numa ordem fixa mais ou menos secreta inerente à natureza dos textos e inacessível aos não iniciados O livro os textos escritos sacralizados e inatingíveis só poderiam ser objeto de estudo dos privilegiados que transformavam a leitura feita também legítima claro em um produto ortodoxo de interpretação única Assim textos livros lidos por vozes uníssonas prendiamse a um poder social fortemente elitizado e amplamente propagado Foi preciso o tempo passar Foi preciso questionar a estaticidade e a rigidez de certas instituições igreja escola partidos Foi preciso surgir um Roland Barthes para que se começasse a mostrar sem nevoeiros a relação de reciprocidade antes velada que sempre existiu entre leitor leitura e texto Uma vez desvendada tornouse possível então enxergar com nitidez a pluralidade indefinida das escrituras produzidas pelas diversas leituras4 Em nossos dias esse tipo de poder citado ainda pretende ser exercido por exemplo em vários produtos da mídia e na própria escola Na medida em que procuram por vezes isolar os textos de seus leitores e receptores algumas matrizes tentam inutilmente deter a posse e estabelecer uma verdade única dos textos seja por parte dos produtores seja por parte dos próprios professores Inutilmente sim Pois como ensina ainda de CERTEAU por trás do cenário teatral dessa nova ortodoxia se esconde hoje como também no passado a atividade silenciosa transgressora irônica ou poética de leitores ou espectadores que sabem resguardar boa parte da própria privacidade e manter a distância necessária dos mestres5 Leitura Gestos Lugares Suportes A leitura preocupação sempre presente na História não se 110 faz por abstrações Ela se mostra ao longo do tempo como uma atividade que se concretiza pela prática de gestos diversos ocorrendo em variados lugares por meio de diferentes suportes Se no passado o rolo pesado exigia uma determinada postura física do leitor prendendolhe as mãos durante o ato de ler a invenção do códice libertou não só as mãos o corpo e os movimentos do leitor mas também os espaços físicos da leitura e claro os próprios textos Mudanças nos suportes do rolo para o livro do livro para o jornal mudanças nos espaços do interior das bibliotecas para os vários compartimentos da casa dos quartos e salas para a conquista definitiva dos espaços abertos jardins cafés praças públicas mudanças de gestos da posição ereta leitores sentados braços sobre as mesas para a liberação corporal sem restrições deitados em suas camas estirados sobre a grama sentados em bancos de trens ônibus e metrôs todas essas modificações constituemse em pontos fundamentais para compreendermos os períodos que marcaram a evolução histórica desses gestos lugares e suportes da leitura No entanto em que pese a enorme importância destas interfaces a análise exclusiva de gestos lugares e suportes não consegue dar conta do estudo da leitura em suas interrelações mais finas É necessário pois que ao se realizar tal análise não sejam esquecidas outras engrenagens que movimentam e articulam dimensões também essenciais E por quê Porque para além dos gestos lugares e suportes existem grandes diferenças entre aqueles que numa mesma época lêem os mesmos textos Sejam diferenças individuais entre mais letrados e menos letrados sejam diferenças entre mundos de leitores Stanley FISH6 criou uma expressão viva e competente para explicar diferenças de leituras Tratase das comunidades interpretativas que constituem o mundo ou os mundos dos leitores Cada uma de tais comunidades partilha e põe em ação um mesmo conjunto de interesses usos e competências ao ler textos escritos os quais por seu turno circulam em diferentes suportes que são parte integrante e integradora dos próprios processos de interpretação e de significação Exatamente o que se entende por suportes São todos os materiais produtos e equipamentos que permitem a um texto circular 111 Do papiro ao papel do rolo ao livro do volume pesado aos formatos mais leves fáceis de serem transportados e utilizados das páginas policopiadas às outras transmitidas eletronicamente e talvez impressas de modo esparso Isso sem falar das diferentes naturezas de textos verbais visuais híbridos etc Enfim se são muitas as comunidades interpretativas se são diferentes os leitores individualmente dentro da mesma comunidade são plurais também os textos os espaços e os suportes que permitem sua circulação e apropriação Sobre essa dinâmica é que devemos nos debruçar ao pensarmos em um trabalho sistemático com leitura Escola Espaço formal do trabalho com leitura A leitura acontece no cotidiano de cada pessoa também de modo plural Lêse informalmente sobre vários assuntos lêse para aumentar o que se sabe sobre o mundo histórico e factual lêse em busca de diversão e descontração lêse para obter informações úteis e satisfazer curiosidades diversas Lêse na vida em geral de forma não organizada e nem precisa mesmo ser assim Ainda que o trabalho escolar nunca possa divorciarse ou distanciarse do que acontece no diaadia da vida é na escola enquanto instituição formal de educação que atividades ligadas à ampliação do universo cultural do indivíduo ligadas à aprendizagem sistemática dos diferentes campos do saber devem ser concebidas e desenvolvidas de maneira competente Pensandose na questão da leitura também é na escola que podem e devem ser exercitadas organizadamente as práticas da leitura comum cotidiana Textos que circulam no meio urbano no espaço doméstico devem entrar também na escola em todos os níveis de ensino desde a educação infantil passandose pelo curso fundamental até chegarse ao ensino médio momento em que esses textos devem tangenciar outros préselecionados ou com eles estabelecer intersecções Se tanto na vida quanto na escola a leitura acontece de forma multifacetada cabe no entanto à escola a tarefa de alargar por essa leitura os limites do próprio processo de produção do conhecimento e 112 de reflexão sobre o que se produziu Professores alunos textos e leituras devem interagir todo o tempo de forma organizada e sistemática Se por meio de um projeto de leitura na escola podese tentar ampliar os limites do conhecimento tal projeto em todos os níveis terá também que pulverizar equívocos cristalizados pela aceitação não refletida de préconceitos do senso comum sempre repetidos à exaustão mas o projeto deverá proporcionar aos estudantes em diferentes níveis o acesso ao prazer da leitura Prazer que resulta de um trabalho intelectual árduo de um necessário corpoacorpo que se instaura entre o leitoraluno sua experiência prévia de mundo e o texto estético seu autor e os outros leitores virtuais ou reais com quem irá partilhar interpretações e significações recéminauguradas Assim em qualquer faixa etária e de ensino o contato com textos artísticos visuais verbais entre outros precisa ocorrer de forma plena e com a contínua intermediação do professor O texto artístico como por exemplo o literário ficcional ou poético provocará um saudável alargamento das experiências da vida real de cada um ampliando também as possibilidades de refinamento do imaginário pessoal e coletivo A literatura e as outras manifestações artísticas em conjunto quando bem desenvolvidas pela escola geram também fora dela intercâmbios ilimitados entre indivíduo obra de arte e comunidade entre lazer informatividade e fruição A esta altura surge como essencial a atividade do professor De um professor que deve sim ser bem formado e mostrarse capaz de pensar em um ambicioso projeto de leitura para qualquer faixa etária e nível de escolaridade Para tanto alguns requisitos devem ser exigidos desse professor a fim de que seu trabalho com leitura tenha êxito Que o professor seja antes de tudo um leitor O professor A que não lê nunca terá a memória povoada pelas ricas e inesquecíveis imagens fornecidas pelas diferentes formas dos textos de arte principalmente pelos textos literários Se assim for se o professor não se revelar um leitor ele jamais conseguirá trabalhar com leitura Que o professor conheça e avalie criticamente os conceitos 113 de leitura a natureza da leitura e que analise as linhas teóricometodológicas que procuram dar conta de um sério trabalho docente com leitura Que esse professor conheça a carpintaria dos diferentes tipos de textos e saiba avaliálos em seus suportes naturezas e inter relações explorandoos interativamente com os estudantes Que o professor se posicione com firmeza e segurança diante de certas práticas diluidoras de análise textual e de leitura São práticas muito comuns que tentando facilitar o trabalho dos alunos acabam antes por descaracterizar as relações sociais fundadoras da leitura na escola relações que se constroem e se sustentam com base em leituras partilhadas de textos pelos seus leitores Essa facilitação excessiva gera simulacros impede o contato efetivo do aluno com os textos de arte e cria um obstáculo perene para que na escola se atinja o real prazer de ler Que o professor saiba escolher bons textos e de várias naturezas E que para explorálos esse professor crie exercícios inventivos que levem seus alunos à liberação do imaginário ao invés de aprisionar a capacidade de devanear e sonhar dos estudantes na camisadeforça tecida pelas perguntas banais que já pressupõem respostas pré fabricadas e que além de serem um mal em si acabam por estilhaçar a integridade dos bons textos Cabe à escola oferecer condições e ao professor bem formado realizar um competente trabalho de LEITURA com alunos de todas as idades e graus de ensino Referências 1 CAVALLO G e CHARTIER R História da leitura no mundo ocidental São Paulo Ática 1998 v 1 p 9 2 de CERTEAU M A invenção do cotidiano Petrópolis Vozes 1994 p 47 114 3 de CERTEAU M idib p 267 4 de CERTEAU M idib p 268 5 de CERTEAU M idib p 268 6 FISH S Is there a text in this class 9a ed Massachusetts Harvard Univ Press 1995 115 21 OTTAVIANO DE FIORE A formação do leitor uma tarefa Ottaviano de Fiori é escritor e editor Professor de Ciências Sociais na PUC de São Paulo Seus escritos mais recentes tratam do desenvolvimento das ideologias modernas no Brasil Atualmente é Secretário do Livro e da Leitura do Ministério da Cultura e Presidente do Comitê Estratégico do Leia Brasil Programa de Leitura da Petrobras Entre os problemas de nossa cultura a leitura tem um papel essencial e decisivo para o salto civilizatório que o Brasil vem realizando Não há nação desenvolvida que não seja uma nação de leitores Desde o operário que precisa ler manuais até o advogado que precisa decifrar os textos legais passando pelo estudante nos exames o cidadão que enfrenta as urnas a dona de casa que enfrenta a educação da família o executivo que enfrenta sua papelada todos os membros de uma sociedade civilizada são obrigados a utilizar várias formas de leitura e interpretação de livros jornais revistas relatórios documentos textos resumos tabelas computadores cartas cálculos e uma multidão de outras formas escritas É importante perceber que o hábito de leitura de um povo não pode ser considerado igual à sua alfabetização Saber ler não é suficiente 117 para terse familiaridade ou convívio permanente com a leitura Todos os povos civilizados se caracterizam por possuírem uma massa crítica de leitores ativos isto é gente que desde a infância adquiriu o hábito de leitura e que todos os dias manipula com facilidade uma grande quantidade de informação escrita E por detrás desta diversidade dos tipos e meios de leituras encontrase sempre o mesmo objeto o mais poderoso instrumento do saber jamais inventado pelos homens o livro Não é pois exagero afirmar como Darcy Ribeiro que o livro foi a maior invenção da História e a base de todas as outras conquistas da civilização E não é exagero também afirmar que o livro no Brasil não vai nada bem apesar de ter todas as possibilidades de superar esta deficiência num curto prazo histórico Quantos livros os brasileiros lêem por ano Os indicadores indiretos são eloqüentes Nos EUA são produzidos 11 livros per capitaano na França 7 e no Brasil 24 Mesmo considerando que boa parte da leitura do Brasil não é feita em livros mas em jornais e revistas Ou seja muitíssimo menos do que seria necessário para o desenvolvimento do país Esta situação é uma ameaça latente e permanente para o nosso desenvolvimento social econômico e político É fundamental para o futuro da democracia brasileira estabelecer condições para que da multidão de jovens pobres que habita as periferias possa emergir uma massa significativa de pessoas educadas que se integrem nas nossas futuras elites E para que isto se realize é essencial que esta massa de jovens tenha familiaridade com a leitura Sem isso sua ascensão será frustrada nossa democracia continuará a perigo e nossa sociedade continuará pobre Panorama do Livro no Brasil Em 1990 éramos cerca de 144 milhões e produzimos em torno de 16 livros per capita Em 1998 somos quase 160 milhões e estamos produzindo perto de 24 livros per capita o que significou uma melhoria real que pode ser atribuída à estabilização da economia iniciada em 1995 Entretanto este número mantevese o mesmo entre 1996 e 1998 No ano 2000 as projeções indicam que seremos 165 milhões e se o 118 consumo de livros continuar crescendo apenas passivamente produziremos cerca de 25 livros per capita isto é estaremos marcando passo A situação é aliás pior do que pode parecer destes 24 livros per capita produzidos nos últimos três anos apenas 07 são livros não didáticos Ou seja o livro didático que é praticamente obrigatório e distribuído gratuitamente pelo governo federal constitui a imensa maioria dos livros consumidos em nosso país Podese afirmar que na prática o único livro que o povo brasileiro conhece é o escolar e que terminada a escola ele deixa de ter qualquer contato com este instrumento fundamental para o desenvolvimento social político e econômico da nação e dos indivíduos Duas exceções importantes devem ser registradas Uma é o livro religioso que cresce muito mais que os outros setores devido à distribuição mais eficiente e penetrante Outra é o livro infanto juvenil às vezes classificado incorretamente como paradidático que cresceu devido a sua ligação essencial com a escola Constatadas estas duas exceções todo o resto livros de referência literatura técnicos profissionais científicos mantémse dentro dos 07 que não crescem com o passar dos anos e não acompanham o crescimento dos outros setores de nossa economia De fato na última década a quantidade de livros per capita no Brasil tem crescido e decrescido em proporção direta com o aumento ou diminuição das compras de livros escolares pelo estado O livro livremente comprado pelos cidadãos é um mercado que não se desenvolve Os fatores da leitura Estudos globais encomendados pela UNESCO permitiram identificar quais os fatores críticos no estabelecimento do hábito de leitura de um povo ou de uma pessoa ter nascido numa família de leitores ter passado a juventude num sistema escolar preocupado com o estabelecimento do hábito de leitura o preço do livro o acesso ao livro e o valor simbólico que a população lhe atribui Cada um destes fatores se atacado isoladamente não resolverá 119 o problema O livro pode até ser barato mas se não houver pontos de venda ele não será comprado Ele pode mesmo ser grátis Mas se não houver bibliotecas ele continuará não sendo lido A escola pode valorizar a leitura mas se a sociedade não o fizer o hábito se extingue na saída da escola E assim por diante Só programas permanentes que ataquem simultânea e coordenadamente estes cinco fatores poderão produzir o aumento progressivo do consumo de livros e o desejado crescimento da massa crítica de leitores O livro na família Nascer numa família de leitores é um acidente biográfico bastante raro no Brasil mesmo entre as famílias de alto poder aquisitivo o que significa que qualquer política de expansão da leitura no Brasil passa pelo estímulo à formação de bibliotecas familiares Apesar deste ser um ponto sobre o qual é difícil agir temos bons motivos para não desanimar Pesquisas realizadas pela Editora Abril Cultural no início dos anos 80 com compradores de coleções de livros e fascículos vendidos em bancas demonstraram que cerca de 60 deles pessoas de profissões modestas como motoristas garçons e auxiliares de enfermagem vêem nestas enciclopédias e coleções compradas com sacrifício uma forma de financiar a ascensão social de seus filhos O livro no sistema escolar Sabidamente a biblioteca escolar é o patinho feio do sistema educacional A carreira de bibliotecário escolar sequer existe Ninguém sabe de fato o total destas bibliotecas ou espaços de leitura nem sua situação global do ponto de vista de acervo performance e resultados Apenas as secretarias estaduais de educação e nem todas estão parcialmente informadas a respeito Não há também uma política geral de apoio organização treinamento e fomento da biblioteca escolar instituição fundamental para o futuro de qualquer país Em certas escolas especialmente as privadas a situação pode até ser descrita como boa mas é quase certo que na maioria é precária 120 Pior de certa forma a obrigatoriedade da leitura didática age mais como desestímulo à leitura do que como fomento Professores militantes da leitura já perceberam que depois de terem interessado as crianças na leitura através de autores inteligentes e divertidos esta atividade declina dramaticamente no colegial e um dos motivos é que nesta fase a escola passa a obrigar à leitura dos autores exigidos no vestibular Dado que o futuro da nação são suas crianças e que estas mesmo sem pertencerem a famílias de leitores estão concentradas nas escolas a questão do estímulo à leitura na escola é o fator crítico mais importante e mais descuidado na criação de um público para o livro brasileiro Criar um bom sistema nacional de bibliotecas escolares dotado de bons programas de estímulo à leitura à imaginação e à cultura geral criará um enorme mercado presente e futuro para o livro com conseqüências gigantescas na cultura geral capacitação e empregabilidade de nosso povo O preço do livro está ligado ao problema do acesso ao livro O livro é caro no Brasil É caro se comparado aos preços internacionais e mais caro ainda se avaliado pelo poder de compra de nosso povo O motivo fundamental deste preço são nossas baixas tiragens Um livro que no exterior é impresso em 30 mil exemplares no Brasil não passa de 3 mil Os motivos para estas baixas tiragens são a falta de pontos de venda em especial de livrarias e a falta de bibliotecas que comprem livros Nossas livrarias Para um país de 160 milhões temos cerca de 22 mil bancas de jornal e menos de mil livrarias a maioria em dificuldades O problema fundamental não é sequer a falta de clientes porque basta abrir uma feira de livros para que a venda de livros de certa cidade sofra uma explosão Mesmo para o nosso livro tão caro há uma demanda reprimida que não é atendida 121 É necessário pois estabelecer uma política nacional de fomento às livrarias seguindo a máxima de José Sarney A livraria é um serviço público terceirizado Esta é uma questão delicada pouco estudada mas essencial para o futuro do livro Uma proposta importante surgida na Câmara Setorial do Livro e da Comunicação Gráfica é a criação de um programa especial que permita às 10 mil papelarias do país voltar a vender livros como elas faziam no passado antes da venda de livros tornarse para elas um negócio desimportante e secundário A questão do preço do livro é pois um problema que requer transformações estruturais muito menos ligadas aos fatos da produção do que aos fatos da distribuição Ele só será resolvido progressivamente com a expansão da rede de livrarias e da rede de bibliotecas públicas e escolares expansões estas que permitam aos editores trabalhar com grandes tiragens e economia de escala Nossas bibliotecas Para obterse um livro é preciso comprálo ou emprestálo Para comprálo é necessária como vimos uma vasta rede nacional de pontos de venda Para emprestálo gratuitamente são necessárias as bibliotecas públicas Uma pesquisa realizada este ano pela Secretaria de Política Cultural do Ministério da Cultura identificou 3896 bibliotecas públicas em todo o país em sua esmagadora maioria municipais Mais de 80 de seu público é formado por estudantes indicador indireto da falta de bibliotecas escolares O acervo da grande maioria destas bibliotecas não é atualizado há vários anos Essencialmente elas não compram livros e sobrevivem com doações o que significa que estes acervos crescem ao acaso e sem uma política racional de compras voltada para as necessidades de seus freqüentadores específicos os estudantes É fundamental pois que seja criado para as bibliotecas públicas um fundo de compra de acervo com a participação dos governos federal estadual e municipal da iniciativa privada da sociedade e de órgãos internacionais Assim se quisermos utilizar nossa rede de bibliotecas como um instrumento da batalha pela difusão popular da leitura e da cultura escrita 122 abremse a nossa frente dois caminhos a modernização das bibliotecas públicas e a expansão da rede A modernização das bibliotecas existentes Considerando o grau de subutilização da rede nacional de bibliotecas sua modernização permitirá de imediato multiplicar pelo menos por cinco o seu número de usuários Para isto será necessário implementar programas de 1 Treinamento e mobilização de cerca de 13000 responsáveis 2 Criação de uma política de acervos 3 Reequipamento e informatização de toda a rede 4 Ampliação de público e implantação de programas de incentivo à leitura em todas as bibliotecas públicas do país coordenados e fomentados pelo PROLER programa sediado na Biblioteca Nacional que já identificou mais de 130 programas de incentivo à leitura em todo o Brasil Expansão da rede de bibliotecas públicas Mesmo que tenhamos pleno sucesso na revitalização da rede existente ainda assim ela é insuficiente para as necessidades do nosso País Para atingirmos o nível da Espanha ou da Itália precisamos de uma rede com 10 mil ou 15 mil bibliotecas públicas O que significa no mínimo triplicar a rede existente criando com isto ao menos mais 26 mil empregos Este objetivo está longe de ser utópico O México em 10 anos implantou 5 mil bibliotecas públicas voltadas em especial para a escola A Venezuela e a Colômbia realizaram feitos semelhantes e em certos aspectos de qualidade até mais audaciosos Tratase de um objetivo perfeitamente realizável Isto foi demonstrado pelo sucesso do programa Uma Biblioteca em Cada Município sediado na Secretaria de Política Cultural Em 1966 o programa implantou 45 novas bibliotecas Este número cresceu para 68 em 1997 e atingiu 212 em 1998 Sendo que neste último ano até julho o ritmo de implantação superou a taxa de uma biblioteca por dia na 123 verdade 17 por dia O modelo atual de implantação das novas bibliotecas O programa Uma Biblioteca em Cada Município está sendo realizado através de convênios realizados com as prefeituras ou estados O Ministério da Cultura não constrói edifícios de bibliotecas a não ser no caso das emendas de parlamentares ao programa Tanto o prédio que deve ser próximo à escola ou num lugar de fácil acesso quanto a lei de criação da biblioteca os funcionários e a linha telefônica constituem contrapartida obrigatória das prefeituras ou estados O programa lhes repassa uma verba de até 40 mil reais destinados à compra de cerca de dois mil volumes iniciais todo o equipamento estantes arquivos móveis xerox vídeo computador e o que mais for necessário em cada caso Os responsáveis pela nova biblioteca recebem do Ministério uma carta de recomendação de acervo que é orientadora e não obrigatória Seu compromisso é apenas o de manter um equilíbrio necessário entre as várias categorias de livros enciclopédias técnicos infantis literários etc Como resultado da compra pela própria biblioteca em alguns estados como o Maranhão as aquisições de livros regionais chegaram a 30 o que não aconteceria se as compras fossem centralizadas pelo Ministério É importante notar que apesar deste programa estar sendo um sucesso e de contar com o apoio geral as novas bibliotecas vão precisar de integração treinamento e renovação de acervo tanto quanto as velhas que foram mais ou menos abandonadas a sua sorte Isto é se os programas de apoio e modernização de toda a rede não forem implementados em pouco tempo as novas bibliotecas estarão na situação das velhas Outros modelos de biblioteca Além da biblioteca pública com sede fixa existem dois outros tipos que não podem ser esquecidos a biblioteca volante e a mala de livros 124 A mala de livros é o que melhor se adapta às regiões muito pobres ou às de baixa densidade populacional Sua vantagem é o pequeno custo associado à mobilização espontânea dos leitores O sistema funciona melhor quando coordenado por uma biblioteca pública Sua sede pode ser uma casa de família um estabelecimento comercial ou uma igreja Basta um bom armário com uns cem volumes que são periodicamente substituídos por um mensageiro da sede central O armário é controlado pelo próprio dono da casa que se encarrega dos empréstimos e de seu controle O sistema funciona muito bem em várias regiões do país inclusive as periferias de Brasília e merece ser fortalecido como um serviço extra das bibliotecas públicas Nas regiões rurais o carteiro pode tornarse um personagem importante deste sistema A biblioteca volante também chamada ônibus biblioteca foi introduzida no Brasil por Mário de Andrade e ainda funciona em São Paulo onde presta bons serviços Hoje o modelo mais bem sucedido do gênero é o Leia Brasil um empreendimento privado financiado pela Petrobras que circulando pelas escolas de municípios sem bibliotecas atinge mais de 600 mil alunosmês e 16 mil professores O valor simbólico do livro na mente do povo Este é o último dos fatores críticos listados pela UNESCO como decisivos na implantação do hábito de leitura de um povo Ainda não existe uma pesquisa séria a respeito da imagem e do prestígio do livro para nosso povo Ela deverá ser feita para nos orientar corretamente Mas não precisamos dela para começar a trabalhar Também não havia pesquisa a respeito de nossa rede nacional de bibliotecas antes de iniciarmos o programa e ela foi realizada simultaneamente ao trabalho de implantação das novas bibliotecas As únicas campanhas recentes em favor do Livro e da leitura foram realizadas pelo MINC e pelo MEC Em convênios com os grandes municípios e a Associação Nacional de Livrarias o MINC realiza já há três anos no mês de Novembro a campanha Paixão de Ler que se iniciou em quatro capitais e já existe em 22 A campanha difere em cada cidade mas é sempre 125 organizada a partir das bibliotecas públicas e é dirigida em especial para os professores e estudantes O MINC contribui com a divulgação cartazes e folhetos alem de um bônus livro distribuído pelas bibliotecas através do qual os professores podem adquirir o livro que desejarem em qualquer livraria Já foram distribuídos mais de 50 mil destes bônus Este ano o MINC pretende cobrir todas as capitais do país em especial suas periferias O MEC no ano que passou usando a televisão realizou a campanha Ler é Viajar Entretanto é evidente que estes eventos meritórios só terão influência sensível nos hábitos da população se contando com o apoio da televisão forem substituídos por programas permanentes de difusão propaganda e convencimento De todos os trabalhos necessários em favor do livro e da cultura escrita este é certamente aquele que menos progrediu e aquele que ainda pode render muitos frutos se fugir da mera publicidade em si mesma e se tornar um instrumento integrado aos outros programas acima mencionados testemunhando os esforços realizados pela nação sugerindo sua multiplicação engajando o povo as famílias as escolas os sindicatos as igrejas e as empresas Que fazer Como vimos a ampliação contínua do hábito de leitura a expansão significativa da indústria editorial e a conseqüente queda do preço do livro só poderão ser obtidas por um conjunto simultâneo de medidas diretas e indiretas adotadas pelo estado pelas empresas e pela sociedade A Câmara Setorial do Livro e da Comunicação Gráfica onde foi reunida boa parte da informação acima apresentada apresentará em breve alguns resumos de seu trabalho e as relativas sugestões Mas desde já podemos ressaltar alguns pontos fundamentais em torno dos quais deveremos desenvolver programas específicos de ação Os mais importantes parecem ser a Estabelecer programas conjuntos com os municípios e os estados destinados a expandir a rede de livrarias 126 b Programas de ampliação e barateamento da venda de livros pelo Correio e outros meios que não livrarias c Programas de desenvolvimento das bibliotecas familiares d Programas de incentivo à leitura na escola básica e Programas de difusão dos livros paradidáticos nas salas de aula da escola básica f Criação de um programa nacional de bibliotecas escolares g Modernização ampliação e treinamento da rede nacional de bibliotecas públicas h Implantação de programas de incentivo à leitura nas bibliotecas públicas i Regionalização das feiras de livros j Novo desenho do anteprojeto da Lei da Leitura do Livro e da Biblioteca k Programa permanente de propaganda da leitura do livro e da biblioteca Estas sugestões desenvolvidas na Câmara Setorial não representam tudo o que se pode fazer pela leitura e pelo livro Mas se começarmos a trabalhar a sério nestes programas coordenandoos num único movimento certamente estaremos dando ao nosso povo um poderoso instrumento de acesso ao livro à cultura escrita e portanto ao progresso social econômico e político de nossa nação A rigor já sabemos o que fazer o resto aprenderemos fazendo 127 22 PAULO CONDINI Afinal a formação de que leitor Escritor Diretor da Casa Mário de AndradeSP Assessor Especial para Literatura do Secretário de Estado da Cultura de São Paulo e Secretário Executivo do Comitê Estratégico do Leia Brasil Programa de Leitura da Petrobras Quando afirmamos que o Brasil não é um país leitor não estamos com certeza deixando de considerar as milhares de obras vendidas todos os meses nas bancas de jornais e em clubes de livros as centenas de milhares de jornais revistas e volumes de literatura de cordel nem as cifras milionárias de livros didáticos que infestam as estatísticas das diversas associações de editores Certamente em número absoluto de exemplares a indústria editorial do Brasil ostenta respeitável posição na lista dos grandes produtores de papel impresso e é sempre este o argumento que costumam utilizar para minimizar a importância de políticas públicas de estímulo à leitura que não sejam as de distribuição maciça de livros preferencialmente em caráter nacional o que quase sempre acaba 129 sensibilizando as autoridades responsáveis nos vários escalões governamentais Números e estatísticas podem ser enganosos É conhecida a anedota do nadador que morreu afogado numa lagoa que tinha a profundidade média de 30 cm A quantidade aparentemente imensa de exemplares publicados no País não corresponde nem a dois livros por habitante ao ano Quem por força da profissão visita remotos recantos do País pode dizer das centenas de milhares de obras distribuídas estragando nas caixas que nunca foram abertas Cegueira e teimosia podem ser perigosas Que a prática das políticas públicas até hoje adotadas nessa área não levou a quase nada pode ser comprovado pela inexistência de um verdadeiro mercado editorial Objetivamente o País carece de distribuidores mais de setenta por cento dos livros publicados ao ano são didáticos e sua distribuição ocorre basicamente entre janeiro e março o diminuto número de livrarias menos de 1500 em toda a nação tende a diminuir a ínfima quantidade de bibliotecas aproximadamente 3000 no Brasil inteiro e todas elas sem verbas para aquisição e ampliação de acervo tende agora a aumentar por força de um programa governamental o que esperamos dê certo as tiragens com raras exceções caíram progressivamente em 1981 um livro infantil tinha em sua primeira edição tiragens de 3 a 5 mil exemplares Hoje variam de 15 a 2 mil exemplares para uma população que cresceu mais de 30 milhões de almas no mesmo período Também como efeito perverso deste quadro as editoras dificilmente abrem espaço para a literatura principalmente para os novos criadores e especialmente para os ficcionistas Os únicos espaços existentes são para as personalidades conhecidas da mídia atores apresentadores e músicos cujo carisma garanta grandes tiragens ou o das editoras didáticas que para fugir à sazonalidade do seu mercado e poder manter seu contingente de distribuidores e divulgadores ativos investem num tipo de publicação a que denominam paradidática Como diz o nome especializada em obras para leitura em classe ficcional ou de divulgação teóricocientífica 130 sempre com o objetivo de complementar aspectos curriculares não tratados nas obras didáticas história ecologia geografia línguas costumes etc e sempre a partir de modelos estruturais e temáticos empiricamente testados em pesquisas com professores e alunos Da mesma forma quando reafirmamos que o Brasil não é um país leitor não estamos com certeza deixando de considerar as centenas de milhares de páginas lidas nas escolas de todo o Brasil pelos nossos jovens e professores É claro que eles lêem e que as escolas cada uma da sua perspectiva e medida os estimulam Por certo para entender o nosso ponto de vista é fundamental buscar respostas às perguntas Por que eles lêem e o quê E é evidente que para dar respostas a estas perguntas teremos que aprofundar nosso olhar sobre a escola e o seu real papel até chegar à questão primordial Que tipo de homem ela pretende formar Há muito tempo que no Brasil a escola perdeu seu caráter civilizador Ainda que renovada em sua ação pedagógica nosso ensino cada vez mais está a serviço de preparar os jovens para o ingresso à universidade como se todos tivessem essa oportunidade e como isto fosse um fim em si mesmo Pragmática e superficial coloca toda a eficiência pedagógica a serviço do adestramento dos seus jovens esquecendo com isto a nobre missão de educar partilhar o saber acumulado como forma de ampliar ainda mais os horizontes da humanidade provendo a formação necessária a fim de que seres biogenicamente equipados para observar pensar e expressar os fatos e coisas do tempo e espaço em que vivem possam desenvolverse em sua plenitude passando da condição de ser virtual para ser real ou seja de um ser de inteligência inata para o ser de inteligência cultural socialmente construída É evidente que nossa escola com raras exceções favoreça esse tipo pragmático de leitura porque ele é fruto de seu compromisso básico o de inserir o homem no universo da Economia de Produção Na verdade quando afirmamos que o Brasil não é um País leitor estamos nos referindo a uma outra dimensão da leitura fruto de uma 131 outra qualidade de compromisso o de inserir o homem também no universo da Antropologia Cultural abrindolhe as portas para a fruição do patrimônio geral da humanidade para a expansão ilimitada do seu espírito e como conseqüência para transformálo em um ser civilizador Assim foi que todo o saber do Ocidente se criou a partir de dez algarismos e de trinta e duas letras do alfabeto1 À soma deste conhecimento guardada nos livros e noutras obras do fazer do homem é o que chamamos nossa herança cultural e é o acesso a este tesouro acumulado que nos dá a verdadeira dimensão de nossa humanidade que nos diferencia radicalmente de qualquer outro ser vivo e que nos propicia a condição de participar desse processo civilizador Em suma quando asseveramos que o Brasil não é um País leitor estamos propondo com esta afirmação uma reflexão corajosa sobre a premente necessidade de mudar a nossa escola a real possibilidade de ampliar eficientes programas de leitura já existentes no País e o dever inadiável de resgatar os que por incúria ou equívoco foram desativados dando assim o primeiro passo para a construção do Brasil como uma nova civilização 1 Este número é relativo ao alfabeto Cirílico originalmente de 43 letras 132 23 PAULO RENATO SOUZA Um ponto de vista Economista pela UFRS Mestre em Economia pela Universidade do Chile e Doutor em Economia pela Universidade de Campinas Professor Titular da UNICAMP Foi técnico do BID em Washington Reitor da UNICAMP Secretário Estadual de Educação em São Paulo Diretor da OIT no Chile Economista da Cepal Professor da PUC São Paulo UFRJ Universidade do Chile e da Universidade Católica do Chile Atualmente é Ministro da Educação Quantos de nós não se lembram às vezes de frases ou versos de contos poemas ou histórias inteiras lidos ou ouvidos em nossa juventude ou mesmo na mais tenra infância O livro é insubstituível e é evidente a importância da leitura Mas nem sempre se pensou assim No gymnásion dos gregos não se praticava só a ginástica pois os jovens também tomavam contato com os filósofos e suas idéias e isso era suficiente para construir um entendimento cosmológico indispensável à compreensão do seu tempo Na Idade Média essa cosmovisão vinha por meio das leituras religiosas no século XVI as primeiras gramáticas da língua portuguesa foram distribuídas para o aprendizado da população principalmente para a leitura da Bíblia e temas religiosos Só mais tarde 133 com a chamada filosofia das luzes e a circulação das idéias dos grandes pensadores modernos a razão e o conhecimento científico possibilitaram nova compreensão do mundo Para isso o livro e a leitura foram e continuam se constituindo nos pilares do conhecimento apesar de todo o arsenal tecnológico moderno A experiência republicana brasileira revela uma permanente preocupação com o combate ao analfabetismo com os estudos pedagógicos e com a formação profissional na agricultura no comércio e na indústria As políticas para a instrução pública e as várias tentativas de estruturação de um serviço eram quase sempre descontinuadas Após meio século de República os números não eram nada animadores uma grande parcela 55 da população maior de 18 anos era composta de analfabetos e a oferta de ensino público atendia menos de 50 das crianças em idade escolar Esse era o resultado de grande investimento que até então havia sido feito em favor da educação Logo no primeiro governo republicano foi criado o Pedagogium inspirado no Museu Pedagógico francês e no segundo o Instituto Profissional Mais tarde surgiram códigos para o ensino secundário e superior Institutos e Escolas Superiores Em 1909 realizouse o I Congresso de Instrução e em 1922 aconteceu a I Conferência Interestadual do Ensino Primário sempre com a função governamental da Educação vinculada ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores Após a revolução de 30 e a instalação do governo provisório surgiram o Ministério dos Negócios da Educação e da Saúde Pública o Conselho Nacional de Educação a Reforma Ortográfica da Língua Portuguesa e o Serviço de Radiodifusão Educativa No governo constitucional que se seguiu surgem o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos INEP o Instituto Nacional do Livro INL e o Instituto Nacional de Cinema Educativo Somente na década dos 50 o já então chamado Ministério da Educação e Cultura iniciou uma Campanha do Livro Didático e a partir de 1955 instituiu o Programa de Edição de Livros Didáticos As experiências de coedições do INL com as editoras e mesmo a de edição de livros didáticos e literários se desenvolveram pelos anos 60 e 70 quando surgem o FENAME e a FAE Por causa da descontinuidade 134 administrativa decorrente da mudança de ministros esses órgãos lançavam diversos programas que se mantinham por um tempo e logo desapareciam as Bibliotecas Móveis as Salas de Leitura a Biblioteca Escolar e a Biblioteca do Professor No período mais recente na década dos 80 foram criados o Pedagogium Museu da História da Educação Brasileira e a Fundação PróLeitura que não permaneceram e um que se manteve o Centro de Informações Bibliográficas CIBEC que funciona até hoje vinculado ao Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais INEP este criado na década de 30 e transformado em autarquia no atual governo para ser a instituição responsável pelos censos e levantamentos estatísticos estudos e pesquisas de temas educacionais avaliações e perspectivas da educação em nosso país Nessa retrospectiva não se vê uma política pública clara e permanente em favor do livro da leitura e da formação do leitor E isso é indispensável a qualquer jovem do mundo moderno A leitura é uma experiência muito ampla que inclui a própria percepção do mundo e as diferentes formas de compreender os ambientes Essa percepção que o homem tem do mundo encontra no livro a melhor forma de registro fazendonos capazes de apreender organizar e construir o conhecimento Contudo podemos ler qualquer manifestação da natureza o movimento das estrelas a marcha das estações o movimento das marés ou a fenomenologia das plantas assim como os testemunhos do ser humano sua simples presença suas atividades ou sua produção cultural que podem ser reconhecidos desde os mais remotos documentos arqueológicos até a mais recente edição de um jornal diário Quando olho o céu e concluo Vai chover eu faço uma leitura dos elementos da natureza que posso transmitir oralmente Entretanto esse conhecimento só representará um patrimônio da humanidade quando for registrado de maneira sistematizada ie no momento em que as nuvens se organizam de determinadas formas cores ou volumes e mais quando o vento sopra em determinada direção sob certas condições de força e de temperatura sabemos que pode chover Nesse momento fazemos a leitura desse conhecimento podemos registrálo e transmitilo por meio de um livro 135 Podese proceder a uma leitura de todas essas manifestações da natureza e do homem porém somente através do registro sistemático em códigos reconhecíveis se pode socializar o conhecimento Em nossos dias muitas novas formas de comunicação são possíveis mas todas dependem quase sempre de vários bens materiais ou tecnológicos dinheiro máquinas energia tecnologia enquanto basta ao leitor ter incorporado o código de recepção e interpretação dos textos para depender só de si mesmo para a leitura de um livro Se o livro é veículo ou suporte natural dos códigos lingüísticos seu objetivo é sempre o leitor A ele se destinam os escritos e portanto devemos cuidar de sua formação no processo educativo O livro didático é a base de todo o processo o início de um trabalho com o aluno com a intenção de desenvolver nele o gosto pela leitura Além de ser um elemento básico no processo de aprendizagem e o domínio da língua o livro didático é também um caminho eficaz para se desenvolver no estudante a compreensão do meio em que vivemos e o gosto pela literatura desde que tenha qualidade e o mestre saiba bem utilizálo Como uma orientação geral sobre a educação fundamental nossos estudantes e professores têm hoje à disposição os Parâmetros Curriculares Nacionais PCN o Programa Nacional do Livro Didático PNLD e o Programa Nacional da Biblioteca da Escola PNBE voltados realmente ao atendimento da comunidade escolar no seu sentido mais amplo Isso está claro tanto do ponto de vista material e técnico quanto do conceitual já que as obras difundem em seus conteúdos os valores da cidadania promovendo uma formação integral A responsabilidade legal do MEC fez com que a compra dos livros didáticos fosse associada a um rigoroso processo de avaliação dás obras oferecidas pelas editoras A maior vida útil das obras é também uma das metas do Programa Nacional do Livro Didático cujos decretos de criação e de regulamentação obrigam à adoção de livros reaproveitáveis e à definição de critérios específicos para sua reutilização por pelo menos três anos Podemos porém ir mais longe estendendo gradativamente o aproveitamento do livro Comprovam isso pesquisas do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação e do Ministério da Ciência e Tecnologia segundo as quais os títulos podem ser utilizados 136 por até cinco anos como acontece em outros países O mesmo prazo valeria para o projeto educativo da escola Os livros passaram por uma avaliação criteriosa dos conteúdos e metodologias trabalhadas Eliminamos deles falhas preconceitos insuficiências ou incoerências sendo selecionados os mais adequados para a publicação de um Guia que é distribuído anualmente aos professores O resultado é uma lista de qualidade da qual os próprios professores escolhem os títulos que querem utilizar em sala de aula Para o Ministério da Educação a leitura é prioridade e várias são as iniciativas voltadas para a difusão do livro e o incentivo à leitura tanto para os alunos quanto para os professores Ampliamos a participação do MEC em diversos programas como o PROLER MECMinCFBN desenvolvemos campanhas de incentivo à leitura criamos programas de distribuição de livros para as bibliotecas escolares intensificamos o intercâmbio e a cooperação internacional Nesse campo é importante citar o Projeto próLeitura resultante de um acordo entre a França e o Brasil que se dedica à formação do professor e se desenvolve com sucesso em vários estados brasileiros Creio que deva ser essa a estratégia para a atualização dos acervos das Bibliotecas As bibliotecas são de indiscutível importância de todos os tipos bibliotecas escolares bibliotecas universitárias bibliotecas públicas estaduais e municipais bibliotecas de instituições públicas sindicatos e conselhos de diversas categorias profissionais e de entidades privadas Tenho notícias de um razoável desenvolvimento dos acervos e atualização dessas bibliotecas nos últimos tempos Se não se desenvolveram no nível desejado pelo menos os atores se envolveram e tomaram iniciativas As parcerias do governo com a iniciativa privada já efetivadas somam mais de uma centena permitindo o enriquecimento de acervos como um todo e às escolas o acesso a outros recursos materiais contribuindo efetivamente para a melhoria da qualidade do ensino público em nosso país A avaliação que faço é extremamente positiva Em todos os estados encontramos trabalhos que promovem a leitura Existem dezenas de exemplos tocantes como o dos professores 137 da cidade de Quixelô a 400 km de Fortaleza Ceará que com o projeto A leitura e a escrita no processo de alfabetização escolheram os caminhos da leitura e da escrita como guia para suas práticas pedagógicas nas escolas públicas da cidade mudando as relações das crianças com a leitura A diretora da Biblioteca Pública Benedito Leite professora Rosa Maria Ferreira de Lima começou a ligar a garotada em literatura com o Programa Livro na Praça O trabalho é feito sempre nos finais de semana em praças de bairros da periferia com o apoio das comunidades da prefeitura e de empresas privadas São pessoas que procuram partilhar a leitura com quem não desfruta desse privilégio levando a dimensão social da apropriação crítica do texto escrito É como o caso que apareceu em um concurso no ano passado de uma professora aposentada que vai às ruas da sua pequena cidade ler com as crianças motivandoas a buscar nos livros um sentido novo para suas vidas entre outras tantas experiências originais Uma vez conquistada a criança ela terá condições de sair do mundo da leitura para uma leitura do mundo Diferem as formas as soluções os locais mas o objetivo é o mesmo qualificar a educação oferecida à maioria de nossas crianças e jovens por meio de uma meta comum que é a leitura para todos e assim melhorar as perspectivas do futuro de cada um O importante desses programas que desenvolvem parcerias que vão ao encontro dos educadoresleitores daqueles que estão fazendo acontecer e despertar o gosto e a necessidade pela leitura e pela escrita é que eles agregam também pelo mérito dos seus trabalhos e pela importância do tema a adesão de vários parceiros dando força e representatividade aos movimentos Além de editores e livreiros parceiros naturais são importantes outros agentes como serviços sociais meios de comunicação prefeituras secretarias de educação e de cultura universidades centros de cultura e de organizações não governamentais Esse esforço solidário amplia a ação indireta dos programas de leitura e os faz crescer tão rápido que ainda não temos condições para mensurálo 138 24 PEDRO BANDEIRA Esperançando que é sempre tempo de esperançar Professor ator publicitário e jornalista até dedicarse exclusivamente à criação de Literatura para crianças e jovens em 1983 Algumas de suas obras mais conhecidas A Droga da Obediência A marca de uma lágrima Feiurinha Descanse em paz meu amor A hora da verdade Mais respeito eu sou criança Acredito que ninguém discordará desta afirmativa nosso eterno subdesenvolvimento devese à nossa ignorância A riqueza das nações não mais se baseia na posse de grandes extensões de terra de boa qualidade para cultivar ou das riquezas do subsolo Isso tudo nós temos O que nos falta é uma população capacitada a produzir bens utilizando de modo moderno essas riquezas O que nos falta é o Conhecimento E o Conhecimento está escrito Mesmo na televisão ou nos computadores Nada foi criado até agora que substitua a palavra escrita como fonte de acesso ao acervo do Conhecimento acumulado pela Humanidade durante séculos Sem dúvida esta é a principal causa do nosso subdesenvolvimento 139 Não há plano econômico por mais adequado que venha a ser não há governante por mais bem intencionado que seja que possa solucionar problemas ligados à nossa própria incapacidade de agir em favor de nós mesmos Só uma ampla e profunda revolução educacional poderá reverter nosso destino de nação pobre e marginal no contexto do planeta Nosso desenvolvimento e nossa felicidade só podem ser atingidos na medida direta do desenvolvimento de nossa capacidade de ler de entender o que está escrito de saber como fazer transformandonos efetivamente em leitores isto é em pessoas que saibam ler criticamente argumentando discutindo e posicionandonos diante das idéias expostas nos textos Além disso quem lê bem também entende melhor o que ouve protegendose de discursos enganosos e aproveitando melhor discursos positivos Para confirmar isso basta raciocinar sobre um ponto todos os países que têm uma elevada taxa de analfabetismo ou de semi analfabetismo necessariamente apresentam um baixo consumo de livros per capita E viceversa viajandose por exemplo nos confortáveis trens de países como a Alemanha ou o Japão sempre encontraremos praticamente todos os passageiros lendo para passar o tempo da viagem do modo mais agradável possível No Brasil porém se estivermos à espera de um avião em qualquer um dos grandes aeroportos veremos que praticamente ninguém estará lendo um livro para preencher o longo tempo de espera para o embarque E quem tem dinheiro para viajar de avião certamente não pode culpar o preço dos livros por sua pouca ligação com a leitura Muitos críticos acusam a televisão por esse nosso descaso pela leitura Esquecemse estes que antes do advento da televisão no Brasil nossa população mesmo a elite também não lia Diferentemente países como a Alemanha o Japão e os Estados Unidos os maiores consumidores de livros per capita do mundo são ao mesmo tempo possuidores de sistemas de televisão moderníssimos e com altíssimos índices de audiência Nossa juventude não lê E seus pais Esses lêem A verdade é que nossos jovens não têm o exemplo em casa e todos sabemos que a 140 imitação é a base do aprendizado E não se trata somente de famílias carentes mesmo os pais brasileiros de elite mesmo muitos médicos e engenheiros lêem muito pouco no Brasil Muitos dos professores que criticam os próprios alunos por não lerem também não lêem ou lêem muito pouco eles mesmos No modo brasileiro o ter é mais importante que o ser Muitos pais aceitam gastar boas somas de dinheiro para comprar o tênis da moda para os filhos mas protestam quando a escola pede que comprem livros para eles No modo brasileiro é mais importante investir no pé da criança do que em sua cabeça Precisamos desesperadamente transformar nossos jovens em leitores em bons leitores antes que eles se tornem adultos iguais a nós eternizando nosso destino de pobreza e ignorância Mas como fazer isso Em que ponto da vida de uma criança deve ser iniciado o processo educacional É claro que em casa Se um brasileirinho quando bebê teve o privilégio de adormecer no colo da mãe ouvindo acalantos certamente não estranhará quando mais tarde for introduzido ao mundo da Poesia Se desde muito pequena essa criança ouvir histórias de fadas e contos maravilhosos aconchegada no colo da mãe do pai ou da vovó e se logo em seguida puder folhear livros coloridos lendo as ilustrações mesmo antes da alfabetização formal o livro estará para sempre inoculado em suas veias como portador de sensações de explicações emocionais de respostas para suas dúvidas Um leitor se faz em casa Mas o que fazer se como já afirmamos nossas crianças crescem e vão para a escola sem ter a leitura como exemplo doméstico Acredito que a exemplo das campanhas de rádio e tevê que aconselham o aleitamento materno penso que seriam muito úteis campanhas do tipo Cante com o seu bebê no colo e Conte histórias para seu filho dormir Do mesmo modo como é fácil fazer os brasileiros consumirem certos produtos simplesmente mostrando atores e atrizes utilizando esses produtos ao longo de cenas de novelas penso que seria ótimo se usássemos esse recurso para apoiar o livro O que aconteceria se um protagonista de novela aparecesse lendo e comentando algum romance com outro E se uma de nossas atrizes fosse vista a cantar para 141 seu bebê a contarlhe histórias de fadas mesmo que fosse de modo incidental em uma cena de novela Bom mas isto é uma outra história porque pelo andar do carro de bois a tarefa de formar leitores no Brasil cabe quase que exclusivamente à escola está nas mãos dos nossos professores e professoras profissionais mal treinados mal pagos desmotivados desrespeitados socialmente Uma guerra se vence com bons soldados não com soldados mal alimentados mal treinados e com soldo miserável Temos de mudar isso já Temos de treinar nossos professores temos de tornar atraente a carreira do magistério para atrair nossos melhores vestibulandos para ela Precisamos de multidões de bons professores capazes de seduzir nossas crianças para a leitura Falei em seduzir Pois é isso Como diz o educador francês Daniel Pennac o verbo ler é parente dos verbos sonhar e amar pois nenhum dos três suporta o imperativo Ninguém pode ordenar que uma pessoa ame ou sonhe ela sonha ou ama se quiser O mesmo acontece com a leitura Precisamos de professores que não forcem seus alunos a ler mas de profissionais sedutores que demonstrem o prazer o tesão que é ler uma boa história Contudo devemos repensar nosso modo de ver a educação Provavelmente desde sempre mas certamente com o reforço da ditadura militar abraçamos um conceito de que seria preciso apressar nosso desenvolvimento educacional selecionando os melhores para criarmos uma elite que pudesse arrastar o Brasil para a frente Na mentalidade de nossos educadores e professores está o desprezo a irritação como aluno mais fraco Nós os professores adoramos dar aula para os bons alunos e perseguimos os mais fracos tachandoos de burros de preguiçosos e estamos sempre dispostos a reproválos provocando uma forma cruel de seleção dos mais aptos E é comum receber grande respeito social aquele professor duro severo que reprova muito que pune os mais fracos sem parar Agora comparemos esse professor com um médico um bom médico é aquele que só se dedica aos pacientes sãos e se irrita quando aparece alguém doente requerendo seus cuidados É claro que não Quanto mais grave for o estado de saúde do paciente maior dedicação ele receberá do corpo médico e das enfermeiras de um hospital E isso 142 tudo sem irritação porque o doente é o objeto do trabalho da medicina Por que com a escola é diferente Por que expulsamos de sala por que punimos por que expulsamos os alunos fracos Temos de imaginar nossas escolas como hospitais que cuidam de todos os pacientes menos dos sãos Isso porque o bom aluno avança sozinho na escola pouco precisando de socorro do professor São os mais fracos que precisam de nós de todo o nosso esforço O professor que adora reprovar pode ser comparado ao médico felizmente hipotético que adora assinar atestados de óbito Tratar somente os sãos servir somente à elite como sempre fizemos e ainda fazemos selecionar somente os mais aptos e relegar todo o resto à vala comum tem sido a nossa política educacional E isso é fascismo Só podemos sonhar com democracia no ensino se nos dedicarmos a todos os alunos especialmente aos que mais precisam de nós os mais fracos Em cada escola deveríamos ter algo como um Centro de Terapia Intensiva desde a préescola para que todos os brasileiros tenham a oportunidade de transformar nosso País Senão não será o caos Já é o caos Vamos sair dele 143 25 REGINA ZILBERMAN Regina Zilberman licenciada em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul doutorouse era Romanística pela Universidade de Heidelberg na Alemanha É professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul onde leciona Teoria da Literatura e coordena o curso de Pósgraduação em Letras É pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CNPq e Membro do Comitê Estratégico do Leia Brasil Programa de Leitura da Petrobras Seja Carlos Drummond de Andrade nosso guia de leitura que no poema Biblioteca Verde registra as emoções provocadas pela posse dos livros pertencentes à Biblioteca Internacional de Obras Célebres coleção de prestígio distribuída no Brasil no começo do século XX1 Depois de muito insistir com o pai que não queria adquirir a Biblioteca mas que pressionado Compra compra compra repete o menino cede o poeta recorda o modo como se apropriou dos livros Chega cheirando a papel novo mata de pinheiros toda verde Sou o mais rico menino destas redondezas Orgulho não inveja de mim mesmo 145 Ninguém mais aqui possui a coleção das Obras Célebres Tenho de ler tudo Antes de ler que bom passar a mão no som da percalina esse cristal de fluida transparência verde verde Amanhã começo a ler Agora não Agora quero ver figuras Todas Templo de Tebas Osiris Medusa Apolo nu Vênus nua Nossa Senhora tem disso nos livros Depressa as letras Careço ler tudo A mãe se queixa Não dorme este menino O irmão reclama Apaga a luz cretino Espermacete cai na cama queima a perna o sono Olha que eu tomo e rasgo essa Biblioteca antes que eu pegue fogo na casa Vai dormir menino antes que eu perca a paciência e te dê uma sova Dorme filhinho meu tão doido tão fraquinho Mas leio leio Em filosofias tropeço e caio cavalgo de novo meu verde livro em cavalarias me perco medievo em contos poemas me vejo viver Como te devoro verde pastagem Ou antes carruagem de fugir de mim e me trazer de volta à casa a qualquer hora num fechar de páginas Tudo que sei é ela que me ensina O que saberei o que não saberei nunca está na Biblioteca em verde murmúrio de flautapercalina eternamente2 A apropriação do texto se dá de modo praticamente ritualístico primeiro ele apalpa a obra sentindoa de modo táctil e explicitando a natureza carnal do livro Depois procura as figuras detendose nas 146 imagens visuais para só então mergulhar nas letras que o conduzem a universos fantásticos distantes no tempo no espaço e nas idéias mas próximos dele dada a materialidade do livro para onde o leitor apaixonado sempre retorna A experiência de Carlos Drummond de Andrade dáse no interior da família e da vida doméstica testemunhada pelo pai a mãe e o irmão que não participam da viagem imaginária do futuro poeta Olavo Bilac experimenta fenômeno similar mas em cenário diferente a escola A crônica Júlio Verne registra a admiração do escritor e de seus colegas pelo ficcionista francês cujas obras eram lidas por todos conforme um processo de socialização ausente na situação apresentada pelo poema No colégio todos nós líamos Júlio Verne os livros passavam de mão em mão e à hora do estudo no vasto salão de paredes nuas e tristes enquanto o cônego dormia a sesta na sua vasta poltrona e enquanto o bedel que era charadista passeava distraidamente entre as carteiras combinando enigmas e logogrifos nós mergulhávamos naquele infinito páramo do sonho e encarnávamonos nas personagens aventureiras que o romancista dispersava arrebatados por uma sede insaciável de perigos e de glórias pela terra pelos mares e pelo céu3 O contexto é outro mas em ambos os casos os leitores vivenciam encantamento similar fundado na profunda identificação com a história narrada Oh os homens e as cousas que vi as paisagens que contemplei os riscos que corri os amores que tive os sustos que curti os combates em que entrei os hinos de vitória que encantei e as lágrimas de derrota que chorei viajando com Júlio Verne conduzido pela sua mão sobrehumana Quase morri de frio no pólo de fome numa ilha deserta de sede na árida solidão do centro da África de falta de ar no fundo da terra de deslumbramento na proximidade da lua Atravessei areais amarelos e infinitos beijei com os olhos oásis esplêndidos dormi à sombra das tamareiras da Síria e à sombra dos pagodes da Índia contemplei o lençol intérmino das águas dos grandes rios cacei tigres e crocodilos na Ásia e na África 147 arpoei baleias no mar alto perdime em florestas virgens naveguei no fundo do mar entre vegetações fantásticas e animais imensos ouvi o estrondo da queda do Niágara enjoei com o balanço de um balão no meio do céu formigante de astros e quase fui comido vivo pelos Peles vermelhas A essa exaltação opõese o mundo escolar a que o leitor volta quando o livro se encerra E quando os meus olhos pousavam sobre a última linha de um desses romances quando eu me via de novo no salão morrinhento e lúgubre quando ouvia de novo o ressonar do cônego e as passadas do bedel charadista havia em mim aquela mesma súbita descarga de força nervosa aquele mesmo afrouxamento repentino da vida aquele mesmo alívio misturado de tristeza Era o regresso à triste realidade à tábua dos logaritmos à gramática latina à palmatória do cônego às charadas do bedel Era o desmoronamento dos mundos o eclipse dos sóis a ruína dos astros era o pano de boca que descia sobre o palco da ilusão matando a fantasia e ressuscitando o sofrimento Para experimentar efeito similar o menino Lima Barreto tal como o pequeno Carlos Drummond conta com a solidariedade do pai consumidor dos livros de Júlio Verne A minha literatura começou por Jules Verne cuja obra li toda Aos sábados quando saía do internato meu pai me dava uma obra dele comprando no Daniel Corrazzi na Rua da Quitanda Custavam milréis o volume e os lia no domingo todo com afã e prazer inocente4 Por sua vez no que se refere aos efeitos dessa leitura Lima Barreto está mais próximo de Olavo Bilac do que jamais sonhou a estética de ambos Fezme sonhar e desejar saber e deixoume na alma não sei que vontade de andar de correr aventuras que até hoje não morreu no meu sedentarismo forçado na minha cidade natal O mar e Jules Verne me enchiam de melancolia e de sonho Do que mais gostava eram aquelas que se passavam em 148 regiões exóticas como a Índia a China a Austrália mas de todos os livros o que mais amei e durante muito tempo fez o ideal da minha vida foram as Vinte mil léguas submarinas Sonheime um Capitão Nemo fora da humanidade só ligado a ela pelos livros preciosos notáveis ou não que me houvessem impressionado sem ligação sentimental alguma no planeta vivendo no meu sonho no mundo estranho que não me compreendia a mágoa nem ma debicava sem luta sem abdicação sem atritos no meio de maravilhas Jorge Amado foi outro viajante do imaginário valendose da ajuda por um lado do britânico Jonathan Swift autor das Viagens de Gulliver por outro de seu professor o padre pouco ortodoxo em matéria de ensino que lhe pôs nas mãos livros salvadores No colégio dos jesuítas pela mão herética do padre Cabral encontrei nas Viagens de Gulliver os caminhos da libertação os livros abriramme as portas da cadeia A heresia do padre Cabral era extremamente limitada nada tinha a ver com os dogmas da religião Herege apenas no que se referia aos métodos de ensino da língua portuguesa em uso naquela época ainda assim essa pequena rebeldia revelouse positiva e criadora5 Leitura é viagem mostram os escritores no sentido literal quando as obras se deslocam de um centro urbano para o interior de Minas Gerais conforme recorda Drummond e metafórico quando são os leitores que rumam para terras distantes e universos longínquos Da rotina cotidiana para o mundo da fantasia o caminho não é longo desde que o instrumento o livro esteja ao alcance de seu destinatário e esse percurso é de mão dupla porque o leitor invariavelmente retorna ao lugar de onde partiu No meio do caminho tem a escola Bilac contrapõe a sala de estudos de paredes nuas e tristes à paisagem exuberante que sua imaginação freqüenta por força da linguagem de Júlio Verne Jorge Amado não está muito longe dessa apreciação porque precisou encontrar um padre herético para poder ultrapassar a limitada vida do aluno interno6 a que estava condenado Brito Broca por sua vez dividese entre a leitura apaixonada e os deveres escolares executados sob o olhar vigilante do pai 149 Broca narra de que modo se tornou admirador de Júlio Verne por influência da avó materna foi levado à leitura dos romances desse escritor e como Lima Barreto empenhou seus tostões na compra dos volumes que nesse caso reprisando Carlos Drummond de Andrade chegavam com dificuldade à cidade interiorana onde morava Na minha infância e nos primórdios da adolescência embora me fosse geralmente controlada pela vigilância paterna a leitura de romances tive a meu favor a circunstância de minha avó os ter lido apaixonadamente na mocidade e a efusão com que meu pai os lia sempre que conseguia subtrair algum tempo a uma vida terrivelmente afanosa Como eu embevecido manifestasse o desejo de penetrar também nesses mundos maravilhosos ela tinha o cuidado de me observar que os meus domínios seriam outros os de Júlio Verne cujo encanto também experimentara Falavame das Aventuras do Capitão Hateras de Cinco Semanas em um Balão de A Volta ao Mundo em Oitenta Dias Mas onde encontrar esses livros Não era fácil adquirilos no Interior naquele tempo Marcou assim uma data na minha vida o dia em que à força de rigorosa economia poupando tostão a tostão consegui mandar comprar em São Paulo o primeiro romance de Júlio Verne Atribulações de um Chinês na China7 Mas à sua fome de ler contrapõese a necessidade de fazer os deveres de casa impostos pela escola A cena noturna repartida entre livros de ficção e temas escolares retrata a oscilação do menino entre os dois mundos agora separados pela figura paterna Relembro o quadro A noitinha depois que o comércio fechava eilo entrar trazendo para casa os livros de escrituração mercantil em que trabalhava até pouco depois das dez Logo que ele assumia o posto eu vinha colocarme defronte no outro canto da mesa com os meus cadernos os meus livros escolares Nem sempre porém me entretinha nessa tarefa muitas vezes dandoa por cumprida naquele dia trazia em lugar dos compêndios um romance e me entregava com fruição à leitura Como as horas passavam depressa Ao bater das dez meu pai 150 fechava os vastos infólios de contabilidade Se eu permanecia na leitura não dando mostras de me aprontar também para deitarme ele intervinha Vamos basta de leitura são horas de dormir Faltam só algumas páginas desculpava eu já estou no fim E como os minutos corressem e o fim não chegasse ele advertia já num tom meio severo Acaba com isso já disse tem muito tempo amanhã para ler Não havia outro remédio senão fechar o livro a mente a fervilhar de imagens e peripécias Com que desespero nessas implacáveis dez horas interrompi a leitura de tantos romances que me empolgaram dos onze aos quinze anos LA deixava os heróis às voltas com as situações mais complicadas Phileas Fog e Passepartout em apuros Estácio arrancando a espada pronto a morrer por Inezita Raras vezes a escola seu aparato como salas de aula seus instrumentos como o livro didático e sua metodologia como a execução do dever de casa provocam lembranças aprazíveis de leitura As atividades pedagógicas provocam tédio quando não são vivenciadas como aprisionamento controle ou obrigação A leitura parece ficar do lado de fora porque os professores não a incorporam ao universo do ensino Quem lê contudo quer o lado de fora para onde se desloca comandado pela imaginação Por isso talvez seja o caso de se pensar em transformar o de dentro da sala de aula em de fora da leitura Para obter esse resultado os escritores oferecem o receituário que os fez leitores vorazes contestar as normas como sugere Jorge Amado deixar o livro ao alcance da mão para ser apalpado cheirado folheado como desejou Carlos Drummond de Andrade nunca porém deixar que se rompa o fio da viagem onde se equilibram todos esses andarilhos da literatura brasileira 1 Sobre a Biblioteca Internacional de Obras Célebres v Saraiva Arnaldo Fernando Pessoa PoetaTradutor de Poetas Porto Lello 1996 2 Andrade Carlos Drummond de Biblioteca Verde In 151 Menino Antigo Boitempo II Rio de Janeiro Sabiá José Olympio Brasília Instituto Nacional do Livro 1983 p 129 130 3 Bilac Olavo Júlio Verne In Ironia e Piedade In Obra Reunida Organização e Introdução de Alexei Bueno Rio de Janeiro Nova Aguilar 1996 p 726 729 4 Barreto Afonso H Lima O Cemitério dos Vivos São Paulo Brasiliense 1961 p 88 5 Amado Jorge O Menino Grapiúna Rio de Janeiro Record 1981 p 101 6 Id ibid 7 Broca Brito O Vício Impune In Escrita e Vivência Campinas EDUNICAMP 1993 p 15 152 26 RUI DE OLIVEIRA A ilustração e a reprodução da imagem como formas de conhecimento e os mitos do original Designer e ilustrador Professor do Curso de Desenho Industrial da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutorando da Escola de Comunicações e Artes da USP Atualmente desenvolve no CTE Centro de Tecnologia Educacional o Projeto Animagem oficina de cinema e animação Membro do Comitê Estratégico do Leia Brasil Programa de Leitura da Petrobras Lembro que a primeira vez em que vi o Tríptico Portinari de Hugo Van Der Goes no Museu Uffizi em Florença foi na década de setenta Eu ainda era um estudante de arte em Budapeste Todo o meu conhecimento anterior deste maravilhoso retábulo da pintura flamenga do século XV estava restrito aos livros e às reproduções O primeiro impacto que senti diante da obra foi pelo seu gigantismo Foi também a primeira vez em que tive a vivência das contradições do que significa o conhecimento diante do original com as reproduções da obra que conheci através de livros Este conflito se acentuou ainda mais quando estive em frente de Sandro Botticelli a quem sempre admirei como um mestre principalmente em seu período de juventude Lembro que neste caso a impressão foi no sentido inverso isto é apesar de na época já conhecer 153 as características técnicas da têmpera achei que as reproduções de Nascimento de Vênus e a Primavera estariam mais adequadas no múltiplo do que no original guardando logicamente as questões de proporção textura etc Portanto ainda que de forma intuitiva eu estava diante de uma questão que mais tarde viria a me ocupar em termos teóricos quando passei a lecionar no Curso de Desenho Industrial da Universidade Federal do Rio de Janeiro Pensando sobre o significado cultural da arte da ilustração principalmente como veículo de conhecimento e a possibilidade da imagem impressa ser mais verídica do que o próprio original pretendo através deste pequeno estudo evocar algumas contradições e preconceitos contra a imagem reproduzida no caso a ilustração que ainda permanecem de forma velada mas muitas vezes explicitamente Reportandome ainda à experiência que tive diante do mestre flamengo destaco o painel central representando a Adoração dos Pastores A magistral organização do espaço e o jogo simbólico das proporções dos personagens deste verdadeiro presépio sagrado impressionaramme profundamente A fruição desta obraprima a partir do real da presença humana insubstituível fora totalmente reveladora para mim até mesmo na descoberta da Anunciação pintada por fora das alas quase em forma monocromática Descrever e rever mentalmente este tríptico é uma aula eterna de ilustração Por exemplo as mãos de José postas em oração e as mãos contritas e espirituais de Maria são um ícone que me ficou para sempre e que adoto como referência até hoje dentro de meus limites quando represento as mãos em meus trabalhos O processo como foi construída a narração neste quadro de Van Der Goes é uma fonte inesgotável de descoberta para os ilustradores desde as flores nos dois vasos que simbolizam a pureza conseqüentemente Maria até a leveza dos dois anjos que levitam contrastando com a imagem rústica e ao mesmo tempo sublime dos pastores Estas soluções narrativas e simbólicas fundamentais na ilustração o que sempre é bom enfatizar são uma arte de contar histórias por imagens que inevitavelmente nos conduzem a uma reflexão sobre os limites entre a pintura e a ilustração 154 Diante da experiência do real a que me referi no início deste estudo gostaria de me deter unicamente neste ponto os momentos em que a leitura da ilustração e da pintura realmente se polarizam Estou me referindo à questão do múltiplo da reprodução em série e da transmissão de conhecimento A ilustração é sempre uma imagem que foi criada para ser reproduzida O seu conhecimento pleno a sua fruição correta advêm portanto do livro Existem outras diferenças fundamentais entre a pintura e a ilustração Porém no momento por suas inúmeras contradições nos deteremos apenas nesta última Seguindo pois a trilha acima descrita chegamos à conclusão de que conceitualmente o original da ilustração é o múltiplo Isto é a sua reprodução impressa num livro por exemplo No caso da pintura ela tem o seu estágio maior de percepção quando estamos diante do original ou das condições ideais para as quais esta pintura foi criada Porém neste ponto começam as incompatibilidades citadas acima O que realmente significa o original A percepção direta do real é sempre a condição básica de fruição do fenômeno pictórico Veremos no entanto que esta condição fundamental nem sempre se realiza Isto é a visão do original nem sempre autentica a experiência do real Se deslocarmos esta discussão em direção à arte do nosso século chegaremos no fundo de um poço sem fundo como dizia Tennessee Williams Citaria apenas alguns exemplos do Dadaísmo que questionou até os últimos limites o significado de peça única e do conceito sacro de original Neste sentido transcrevo dois pensamentos enunciados por Picabia afirmando que as verdadeiras obras de arte modernas não são feitas por artistas mas por pessoas anônimas e comuns Continuando ainda com Francis Picabia ele chega à conclusão daquilo que seria conhecido como readymades ao afirmar que o cordão umbilical entre o objeto e seu criador havia se rompido e que não havia diferença fundamental entre o objeto feito pelo homem e o objeto feito pela máquina a única intervenção pessoal possível numa obra é a escolha concluía O urinol que Duchamp chamou de Fonte e tentou expor na Exposição dos Independentes em Nova Iorque sob o pseudônimo de R Mutt era certamente igual a milhares de outros encontrados nas lojas 155 Muitos exemplos poderiam ser citados no contexto da arte de nosso século sobre esta chamada experiência única diante da obra original Porém não é necessário tanto radicalismo para levantarmos a questão ambígua do original e sua fruição ideal Basta retornarmos ao século XIX mais precisamente ao Impressionismo que encontraremos uma outra face deste multifacetado rosto Em outras palavras por exemplo os efeitos de luz solar das pinturas de um Claude Monet ou de um Camille Pissarro apreciálos dentro de uma galeria sob luz artificial ou tecnicamente elaborada pode até ser entendido como uma inadequação no ato de fruir corretamente a pintura destes mestres Melhor seria se as víssemos nas condições em que foram criadas ou seja ao ar livre o que seria sem dúvida mais compatível com o ato de criação daqueles artistas Logo muito acima do significado de ser original o que existe na verdade é um ritual adequado de cognição da pintura que até pode ser único Muitos outros exemplos poderiam ser citados dentro do universo da escultura e a impropriedade de sua correta leitura em galerias e museus principalmente com relação à luz Acho oportuno diante de todos os mitos e sacralização do que seja original levantarmos esta questão dirigindo sempre nossa reflexão para a ilustração e toda a sorte de incompreensões que ainda a envolve Todas estas dúvidas nos conduzem a uma conclusão de que nem sempre a obra original é vista de maneira original existindo também a possibilidade de que a reprodução como já foi dito anteriormente em termos conceituais seja mais verídica do que a própria realidade e originalidade da peça única Esta discussão é importante pelo fato de a ilustração sofrer freqüentemente o estigma de uma linguagem menor a começar até pelo seu habitual suporte o papel muito mais perecível do que a tela e em termos de mercadoria e posse ser um investimento de pouco futuro e rentabilidade A ilustração seria uma linguagem dirigida pela circunstancialidade e por este motivo uma experiência e conhecimento artístico atrofiados Este preconceito que é tristemente real e revela uma absoluta incompreensão até da própria história da arte e sua discussão fugiria totalmente dos limites físicos deste trabalho Porém não podemos deixar ao largo este tema do fim servido da arte e da circunstância que norteou grande parte da criação em todas as épocas 156 Bastaria apenas citar no universo da música alguém que resplandece como astro eterno estou me referindo a Johann Sebastian Bach que levou ao extremo sublime seu ofício de músico Como autêntico artesão trabalhava copiosamente semanalmente para os cultos dominicais Em vida mais conhecido como exímio organista até hoje nos causa depressão a leitura de suas humildes cartas solicitando ajuda e proteção para os nobres de sua época Sua magistral música que era meramente destinada ao momento tornouse erudita e transcendente em nossos tempos Mesmo assim como estigma de música descartável sua obra ficou esquecida após a sua morte Apenas em princípio do século XIX Mendelssohn o ressuscitou e é também no início do nosso século que as transcrições para orquestra feitas por Leopold Stokovsky o popularizaram colocandoo num lugar que sempre foi seu um monumento da música Este apelo a duas referências musicais inclusive utilizando a palavra transcrição é da maior importância quando estamos estudando a relação entre conhecimento e imagem impressa Citarei agora um exemplo infelizmente pouco conhecido da complexa relação entre obra original reprodução impressa e conseqüente conhecimento da imagem original através da gravura reproduzida Evoco o nome e a obra de um dos pintores que mais admiro e que tem grandes influências em meu trabalho de ilustrador Estou me referindo a Henry Fuseli nascido em 1721 e falecido em 1825 Este pintor visionário e profundamente envolvido com a arte fantástica foi contratado em 1786 pelo marchand e editor Aldermann Boydell para pintar uma série de quadros sobre peças de Shakespeare como por exemplo Sonho de uma Noite de Verão Estes quadros após serem exibidos em sua galeria na verdade se destinavam a servir de modelo para que fossem feitas gravuras a partir deles e conseqüente publicação em forma de livros e quem sabe até vendidas separadamente Este não é um exemplo isolado artistas ingleses do porte de Romney e Reynolds foram também contratados por Boydell Voltando às pinturas de Fuseli elas estão hoje em dia em galerias como Tate Gallery Vancouver Art Gallery etc Sobre este tema de arte ilustração e conhecimento que é na verdade o motivo central deste trabalho voltarei a falar mais adiante 157 Retornando ao quarto de espelhos este labiríntico exercício que é a concepção de original as contradições se aguçam ainda mais quando constatamos que o conhecimento da pintura dos grandes mestres se realiza em nossos dias basicamente através da reprodução nos livros de arte Neste ponto existe uma analogia com os exemplos que citei acima das ilustrações a partir da obra de Fuselli na verdade transcrições e gravuras para peças de Shakespeare Esta leitura a reprodução possui um processo próprio e extremamente diversificado de ver e decodificar a imagem original Portanto existem vários originais a partir destas traduções visuais onde até mesmo um trabalho de restauro é obtido através de métodos modernos como o laser e a computação gráfica Os critérios para reprodução destas obras realmente não existem Não se trata de salvaguardar a aura o valor cultuai a obra única e irreproduzível Walter Benjamin já dissecou muito bem esta questão Porém retornando ao que poderíamos chamar de imponderabilidade do conceito de fruição original é muito difícil aceitar no túmulo de Lourenço de Médici o modo frontal como é iluminada a peça escultórica representando o pensamento criada pelo gênio de Michelangelo Tendo na parte inferior o Crepúsculo e a Aurora esta escultura em pose de meditação foi imaginada para ser vista com os olhos em penumbra acentuada mais ainda pelo elmo que lhe encobre a fronte Isto certamente lhe conferiria um nível mais simbólico e introspectivo Entretanto não é isto que experimentamos nem na Capela dos Medicis tampouco nas inúmeras reproduções da obra Esta complexa relação entre a experiência do real e a dramatização da luz e conseqüente ou inconseqüente reprodução em livros e catálogos pode ser melhor compreendida quando observamos neste caso algumas reproduções da pequena escultura o Hermafrodita um protótipo de Policie de 150 AC que está na Galeria Borghese em Roma O escultor o representou deitado de bruços intencionalmente encobrindo o atributo feminino ou masculino criando uma indefinição uma ambigüidade absolutamente clara para o observador No entanto este mistério é revelado de forma unilateral pela iluminação capciosa criada principalmente na maioria das reproduções da obra A luz é dirigida para a região lombar do personagem Em termos bem vulgares até porque vulgar é a sua iluminação o 158 foco de luz é dirigido precisamente para a bunda de Hermafrodita Nesta parte final do estudo gostaria através de alguns exemplos de enunciar que a concreção divulgação do pensamento nas mais diversas disciplinas teve na imagem impressa a sua real complementação Tentando encontrar uma metáfora para a palavra e a imagem eu diria que a primeira é a alma e a segunda o corpo portanto parceiras indissolúveis Começando pelo Renascimento e por uma de suas maiores figuras que foi Leonardo Da Vinci seus estudos diversificados em geologia zoologia botânica anatomia astronomia além de seus projetos em máquinas e engenharia tudo isto é distribuído em mais de 5000 páginas de anotações repletas de ilustrações Seu pensamento era portanto materializado pelas imagens que assumiam um alto estágio do pensamento visual com sua própria sintaxe ao mesmo nível de suas especulações escritas Expressando ao mesmo tempo a beleza e a informação estas imagens prescindem em muitas casos da palavra As indicações escritas funcionam às vezes como fato complementar Deste modo os pensamentos em imagens feitos por Da Vinci são uma referência para conceituarmos a arte de ilustrar Neste caso elas não contam histórias elas narram conhecimento Permanecendo ainda no Renascimento foi através das gravuras italianas reproduzindo as obras dos grandes mestres que o principal vulto do renascimento alemão teve o primeiro contato com a arte italiana dos Quatrocentos Estou me referindo ao genial pintor e gravador alemão Albrecht Durer Este fato inclusive é documentado por seus estudos a partir das gravuras de Andrea Mantegna como a Batalha dos Deuses do Mar Durer foi o primeiro grande artista alemão a conhecer a Itália ele tinha 23 anos quando esteve em Veneza Certamente o contato direto com a arte italiana e o seu conhecimento prévio através de gravuras fizeram com que Durer diferente dos outros artistas alemães que tinham os mestres flamengos como modelo tivesse um caminho totalmente diferente e até mesmo contestador Ainda nesta seqüência da imagem impressa como forma de pensamento não posso deixar de citar o exemplo de Petrus Paulus 159 Rubens Este magnífico pintor originário da Antuérpia onde nasceu em 1577 teve uma vida exitosa como pintor cidadão embaixador e homem das cortes européias Rubens foi também um grande ilustrador utilizando motivos alegóricos símbolos emblemas e figuras mitológicas nos livros que ilustrava Repleto de encomendas trabalhando com uma equipe de discípulos e com um profundo sentido de negócios percebeu que sua obra única poderia ser vendida e difundida através de cópias em gravuras Para tanto montou um atelier com um grupo de gravadores que iria traduzir para um esquema basicamente linear em forma de gravuras a sua obra pictórica Criou com isto inclusive um estilo próprio que certamente tinha a sua orientação Este estilo um Rubens médio para o grande público ficou tão famoso quanto o estilo Goltzius ou o estilo Callot estou me referindo a dois grandes gravadores aguafortistas do século XVI que criaram uma verdadeira escola de reprodução de originais de pintura O importante é dizer que a popularidade e principalmente a extraordinária influência de Rubens na arte européia da época se deu através de gravuras da sua pintura Para concluirmos sobre a importância da ilustração e da imagem impressa como formação de pensamento quero citar um curioso exemplo de influência da gravura O fato em questão é o famoso quadro de Eduard Manet que tanta polêmica causou em 1863 quando exposto no Salão dos Recusados o célebre Almoço sobre a Relva A tranqüilidade de uma mulher nua e seu displicente olhar para o observador em plena conversa de dois vestidos cavalheiros causaram um escândalo no grande público tudo isso aliado a uma extraordinária palheta um jogo de luzes uma naturalidade até então nunca representada numa cena ao ar livre Todavia este ícone da pintura francesa do século XIX guarda incríveis semelhanças com uma antiga gravura do século XVI de autoria de Marcantonio Raimondi denominada O Julgamento de Páris Este não é em absoluto um exemplo isolado na história da arte Enfatizo pois que a imagem é realmente um gênero de pensamento uma persuasão fortíssima em nossos dias globalizados e a nação que melhor usar suas imagens e ícones dominará numa primeira fase todos os fenômenos culturais do planeta e numa segunda fase o real domínio econômico das outras nações 160 Logo o estudo da imagem impressa nos mais diversos suportes e emitido nos mais diferentes veículos de alta tecnologia é fundamental para qualquer País que tenha um mínimo de projeto sério quanto ao seu futuro como nação como povo e principalmente como preservação de seus valores culturais 161 27 RUTH ROCHA Livros X Computador Paulista socióloga orientadora pedagógica e editora Escritora premiada de extensa obra de literatura infantil e juvenil Membro do Comitê Estratégico do Leia Brasil Programa de Leitura da Petrobras Computador é bom É Faz coisas fantásticas Mas não faz as coisas que um livro faz E depois livro não enguiça como disse o Millor Fernandes E computador como disse o Ziraldo não se leva pra cama E não se põe uma violeta dentro dele O livro guarda tesouros E o computador não guarda Ah guarda Mas acontece que os tesouros que o livro guarda são complementares com a nossa fantasia E o processo de leitura possibilita essa operação maravilhosa que é o encontro de que está dentro do livro com o que está guardado na nossa cabeça 163 Seja na leitura de ficção de literatura seja na leitura de um ensaio Os neurônios funcionam em sintonia com a letra impressa Completam enriquecem complementam Quando se lê se põe em funcionamento tanto as funções intelectuais do cérebro o seu lado esquerdo como o lado direito instintivo imaginoso emotivo Por isso a leitura preenche todos os nossos desejos todas as nossas necessidades Além disso a leitura desenvolve a independência do espírito Não traz tudo pronto como o computador Não é sem motivo que o livro tem mais de dois mil anos Como formar leitores Fornecendo livros Tenho visto um número enorme de pais que dão aos filhos brinquedos caríssimos Com o preço de um videogame podese comprar uma pequena biblioteca Jamais vi um pai entrar numa livraria e comprar uma pequena biblioteca para seus filhos E sem livros dificilmente se aprende a gostar de ler 164 28 SÔNIA RODRIGUES Das dificuldades da exposição Doutora em Literatura escritora criadora do jogo Autoria e Companhia de produção de enredos coletivos consultora de projetos de formação de platéia para empresas e instituições culturais colunista do suplemento feminino do jornal O Estado de São Paulo e colaboradora do Programa Leia Brasil Por que existem mais leitores do que escritores Por que é mais fácil aprender a ler do que a escrever Por que a leitura e a escrita podem ser usadas automaticamente e no automático mascaram limites de visão e de atuação Deve parecer estranho começar a partilhar um ponto de vista pelas dúvidas e não pelas certezas Leitora quase que compulsiva escritora doutora em literatura e coautora de um jogo educativo de criar histórias em grupo sempre me intrigou a dificuldade de contar histórias demonstrada por um grande número de pessoas Durante muito tempo acreditei que bastava uma boa iniciação à leitura para que todos pudessem expressar livremente seu potencial criativo Transformado em leitor pelo contato com o produzido pela 165 imaginação alheia o ser humano seria sujeito de sua própria obra As redações a correspondência os relatórios seriam mais coerentes mais coesos mais belos Hoje sei que isso não é verdade A formação do leitor para leválo à escrita é um processo mais complexo E talvez mais misterioso Não estou aqui me referindo às pessoas que apresentam um alto potencial de inteligência para a linguagem como alguns para a música Meu questionamento dirigese à maioria dos seres saudáveis com experiências dores e alegrias comuns à espécie Com uma capacidade íntegra de compreender a língua materna e dominar suas regras Por que mesmo quando são leitores sensíveis essas pessoas não se expressam através da escrita Por que não conseguem escrever uma história ou mesmo contála com clareza de forma a produzir prazer terror riso ou compaixão em outros Conheço dezenas de leitores que confessam não conseguir escrever Amam o texto literário porém fazer ficção lhes parece uma tarefa impossível Alguns alegam ser esta uma atividade para eleitos iluminados gente dotada de um talento acima do comum Outros imaginam os escritores como pessoas que detêm o privilégio de poder estudar o texto burilálo em condições ideais e prometem a si mesmos que um dia quando se aposentarem ganharem na loteria ou tirarem longas férias imitarão Para os dois grupos na maioria das vezes escrever mesmo um texto pragmático relatório carta ofício é um esforço assombroso Fazêlo com facilidade um dom Depois de seis anos estudando a produção coletiva de texto interativa e instantânea dos jogos de representação RPG praticada por jovens e depois de ter contribuído para a criação de um jogo cheguei a um ponto de vista específico que aqui partilho escreve o leitor que se mostra Escreve o leitor que se arrisca à exposição O leitor que não teme em excesso pelo menos a rejeição ou aquele que precisa da companhia do aplauso da apreciação de alguém que o leia O escritor é o leitor que escolhe o palco e não a platéia Ele é platéia dos outros autores mas se acha no direito de se expor também na arena Talvez não seja nem uma questão de direito e sim de compulsão É um leitor que precisa recriar o que leu viu ouviu como aliás todos 166 os leitores o fazem no processo de produção de sentido Precisa mais se arriscar aos aplausos ou às vaias ao exibir sua recriação A formação desse leitor segue passos específicos É necessário que se crie um clima de confiança para que os resultados de leituras sejam partilhados as primeiras criações mostradas em público e principalmente se demonstre ao leitor sempre e sempre o direito inalienável de recontar histórias Óbvio que grandes escritores se formaram em famílias opressoras escolas opressoras regimes políticos idem Alguns irão atrás de literatura e de publicar sua literatura mesmo que canhões busquem impedir Mas esses fazem parte da minoria dos resistentes aqueles que lerão mesmo que tentem colocar uma venda em seus olhos ou amarrem suas mãos Para cada um que tem dentro de si a compulsão de escrever milhares serão sufocados pela falta de condições de desenvolverem essa forma de comunicação humana Penso que a maioria das pessoas não acredita ter o direito à imaginação ao exercício da beleza a partir de histórias contadas e recontadas A não ser no faz de conta infantil nas brincadeiras de casinha ou de polícia e ladrão Depois desses breves anos as pessoas aprendem na escola e na vida coisas sérias para passar de ano trabalhar casar constituir família A ficção se torna uma atividade à parte dos outros os artistas atores escritores roteiristas de cinema ou de telenovelas Com sorte se existir uma iniciação anterior essas pessoas se tornarão leitores Platéia Escreverão com maior ou menor dificuldade textos aos quais atribuirão a categoria de realidade No trabalho na correspondência entre amigos ou familiares É preciso que se incorpore à formação de leitores o conceito de invenção do real O Rio de Janeiro em Dom Casmurro era o Rio inventado por Machado de Assis Da mesma forma se uma recémcasada retrata em carta a sua melhor amiga os melindres da sogra tratase de uma sogra inventada também as cores serão mais ou menos favoráveis dependendo do relacionamento entre as duas e a confiança entre a remetente e a destinatária A diferença principal na minha opinião entre a hipotética nora e 167 Machado de Assis é que este tinha a certeza de que alguém perceberia a originalidade do seu Rio de Janeiro e dos personagens e sentimentos que ali colocava a circular Se essa certeza não existia dentro dele existia pelo menos a necessidade de encontrar e encantar o leitor O direito de conquistar um interlocutor para sua obra A noção de que seria capaz de recontar a trajetória de um ciumento mesmo que Homero ou Shakespeare tivessem feito isso antes dele Acredito que escritores têm em comum essa convicção Têm algo a dizer e alguém quer ouvir Ler Nem que para isso precisem se expor ao ridículo às críticas às concessões Mesmo que recorram ao baú das lembranças familiares à denúncia dos ex amores e amigos À fofoca portanto Correndo o risco de imitar quem sabe mal seus autores preferidos O resto é talento sim mas principalmente trabalho E maturidade e mais trabalho E lucidez e mais trabalho Muito esforço para seduzir o leitor sabendo que até chegar a ele existe uma longa cadeia industrial a ser percorrida Isto a via crucis do escritor não é objeto dessa minha reflexão Quero apenas chamar atenção que é necessário que se acrescente às atividades voltadas para o projeto de formação de leitores uma intervenção específica no sentido de ampliar o direito de recontar O direito de se expor A competência do Narciso que se mostra não para o espelho mas para seus pares e diz Eu também sou belo Não basta formar uma sociedade leitora É preciso que ousemos mais É urgente democratizar os segredos da narrativa Criar espaços onde leigos de qualquer idade se manifestem livremente como autores Socializar a idéia de que a leitura e a escrita como instrumentos de imaginação são um direito Mais do que direito ou além dele são fonte de prazer e arma de combate Caminho de redenção e troféu da condição humana Qualquer escritor sabe que a imaginação concretizada no texto tem esses poderes De Homero a Woody Allen Só não o sabem ainda os milhões de estudantes que se digladiam com dissertações onde não conseguem transmitir seus pontos de vista Os apaixonados incapazes de colocar no papel o calor dos seus sentimentos Os solitários impedidos 168 de estabelecer contato através da escrita As vítimas sem possibilidade de defesa ou de vingança pela palavra É indispensável à formação do leitor o exercício da confiante exposição Só assim a leitura será um contágio uma grande epidemia de autores cada um no seu território senhor rainha dono da sua própria palavra 169 29 TÂNIA DAUSTER Espaços de Sociabilidade ouvindo escritores e editores sobre a formação do leitor e políticas públicas de leitura no final do século XX Doutora em Antropologia Social UFRJ e Mestre em Educação PUCRJ Leciona a disciplina de Antropologia e Educação nos cursos de graduação e pósgraduação do Departamento de Educação da PUCRJ Coordena o escritório da UNESCO no Rio de Janeiro Membro do Comitê Estratégico do Leia Brasil Programa de Leitura da Petrobras Este texto emerge de um programa de pesquisa interinstitucional que vem sendo encaminhado conjuntamente pelo Departamento de Educação da PUCRio e pela Faculdade de Educação da UFRJ1 Ao longo desta parceria as seguintes pesquisas vêm sendo realizadas desde 1992 sob a coordenação de Tânia Dauster PUCRIO e Pedro Benjamim Garcia FAE UFRJ Cotidiano práticas sociais e valores nos setores populares urbanos enfocando alunos de uma escola pública municipal da Zona Sul do Rio de Janeiro e suas práticas de leitura A formação do leitor limites e possibilidades da escola estudando a visão de escritores da chamada literatura infanto juvenil residentes na cidade do Rio de Janeiro 171 Reordenação de linguagens e formação de leitor buscando as percepções de editores de literatura infantojuvenil que moram no Rio de Janeiro Embora exista uma linha nítida de abordagem temática que privilegia o olhar antropológico cada uma dessas pesquisas tem uma gama específica de questões Mas por que falar de um programa de pesquisa Sucessivos estudos oriundos de projetos anteriores sobre a formação do leitor vêm configurando continuidades e rupturas em termos de campos empíricos e de indagações Apesar disso optamos por manter e enriquecer o quadro teórico inicialmente adotado Contudo ao se abordar o universo do livro percebese que este como meio de comunicação e difusão dos mais antigos ao lado de seu impacto cultural e educativo comporta também interesses industriais e econômicos próprios do setor editorial A associação destes fatores cria um sistema complexo de parâmetros aparentemente incompatíveis Portanto a investigação do mundo da editoração e da leitura requer a compreensão das relações internas entre os diferentes elementos que compõem a cadeia do livro assim listados em opúsculo da UNESCO criação literária função do editor impressão distribuição práticas leitoras e construção do significado Postura teóricometodológica Essa concepção global deveria ser objeto de políticas nacionais de leitura próprias a cada país de acordo com as quais temos construído nossos objetos de investigação No enfoque teórico adotado destacamos o conceito de cultura contribuição relevante do campo da Antropologia fugindo ao sentido que lhe é dado pelo senso comum e a uma visão exclusivamente erudita Nessa acepção antropológica cultura significa crenças valores visão de mundo significados entrelaçados idéias e práticas que orientam os indivíduos no seu diaadia Geertz 1979 assim como artefatos materiais Nesta mesma linha buscamos entender as diferenças sociais e os modos distintos de construção da realidade Velho 1978 assim 172 como o caráter relacionai e dinâmico entre as diferentes esferas sociais Nosso propósito foi embasado na Antropologia como mencionamos e na História Cultural tendo em vista compreender as redes de significado a partir dos pontos de vista do outro operando com a lógica de suas categorias e conceitos sem reduzir nossa argumentação à sistematização destas categorias Sabendo que o pesquisador é parte do problema que ele vai investigar necessitamos trazer à luz e tentar compreender nossas idiossincrasias e préconceitos na busca de avançar o conhecimento da área pesquisada Situar o problema na especificidade do social significa desnaturalizar os fenômenos ou seja mostrar que fatores como atitudes comportamentos gosto formação do leitor relação com os livros significado da leitura e fatos similares são socialmente construídos e nada têm de naturais pois pertencem ao campo da cultura e das relações nas sociedades Trabalhando em contextos simbólicos e comunicacionais estivemos atentos às relações sujeitosujeito e sujeito objeto buscando seus significados sistemas simbólicos e de classificação códigos práticas valores atitudes idéias e sentimentos em uma postura de base antropológica que pressupõe a quebra da visão dissimuladora da homogeneidade e dos estereótipos Nossos caminhos de investigação são marcados pelo entendimento das diferenças entre posturas simbólicas e as distintas práticas sociais o que resulta em significações específicas e singulares em cujo horizonte metodológico damos forma a nossas perguntas Construímos um referencial bibliográfico com resumos e análises e textos da literatura pertinente a nossos problemas Em princípio abrangemos o que vem sendo publicado no Brasil sob forma de artigos e livros nas áreas da Educação Antropologia e História Cultural Esse acervo vem sendo analisado numa perspectiva de estranhamento e relativização buscandose lógicas de representações e ações assim como padrões de recorrência O caminho adotado tem pontos de apoio na pesquisadiálogo de Gilberto Velho 1986 De certo modo fazemos parte do universo do entrevistado compartilhamos suas experiências tensões expectativas e 173 ansiedades e temos algumas vezes gostos valores e concepções em comum Reconhecemos como nossas muitas de suas práticas e no que tange ao domínio de livros e leituras os autores que habitam nosso imaginário e o dos entrevistados são quase sempre os mesmos Portanto tratase de uma troca entre sujeitos culturalmente próximos na qual as fronteiras entrevistadorentrevistado se diluem Queiroz 1998 mostra que a entrevista é por excelência uma situação dialógica e técnica de coleta de dados Seu exame na perspectiva da busca de padrões sociais representa uma tentativa de compreensão do social nos indivíduos Para situar sociologicamente nossos comentários posteriores discutiremos os conteúdos emergentes de escritores e editores dois universos sociais investigados nos últimos anos na chamada literatura infantojuvenil2 Esses escritores se vêem como profissionais uma vez que vivem de seu próprio trabalho têm inúmeros livros publicados e traduzidos em países como México Itália Alemanha Estados Unidos participam de feiras de livros tanto no Brasil quanto no exterior visitam escolas são lidos dentro e fora do âmbito escolar e são leitores tanto da grande literatura quanto de revistas em quadrinhos Quanto aos editores seus pontos de vista abrangem versões e perspectivas distintas sobre o universo do livro e a formação do leitor Entre os fatores emergentes nos comentários desses dois tipos de profissionais podemos citar Referências às ditas crises da leitura por prazer e da literatura consagrada ao mesmo tempo em que se constata um mercado de livros em ascensão direcionado ao público infanto juvenil O crescimento desse mercado de livros associado a vendas feitas diretamente às escolas A necessária redução dos preços dos livros para atender à demanda de leitores embora esta seja uma visão polêmica A existência de práticas escolares que afastam os alunos da leitura O espaço da escola como único acesso à leitura e à literatura consagrada para a grande maioria da população 174 A hipótese do desaparecimento do livro tendo em vista a difusão do computador e o impacto da imagem na sociedade do final do século XX Após estas breves considerações sobre os universos sociais investigados faremos alguns comentários úteis para a elaboração de políticas públicas de leitura3 embora muitas das questões levantadas já estejam incluídas no rol de possibilidades previstas pela administração pública Em parte tal continuidade de propósitos oficiais na área de políticas públicas de leitura indica que há questões crônicas à espera de soluções abrangentes nesta área A presença do livro e seus paradoxos Dizse que cada vez se lê menos dado o poder da imagem da TV e do vídeo Contudo nunca se publicou tanto quanto hoje Dados quantitativos mostram que o Brasil é um grande mercado editorial com significativo contingente de leitores e grande vitalidade no universo da leitura como vendas expressivas freqüentes feiras de livros noites de autógrafos rede de bibliotecas e grupos de contadores de histórias Vale lembrar que nossa Bienal do Livro é a terceira maior do mundo e que este evento em 1999 revestiuse de novo brilho por sua organização interna com a presença de autores e especialistas em variados debates e com a homenagem prestada à literatura portuguesa atraindo imenso público Acreditamos também conforme temos indicado em outros textos que o ato da leitura não se reduz à prática literária e que tal associação indica uma concepção limitada do conceito de leitura Ao tentar ultrapassar os estereótipos percebemos uma visão elitista da leitura e da literatura que obstrui a vitalidade o interesse em torno das diversas práticas e atos de leitura e dos leitores Para Paulo Rangel4 há uma relação entre o que as pessoas lêem e o nicho do editor o que justifica um leque amplo e uma diversidade de gostos e ofertas no universo das publicações Daí inferirmos que as práticas leitoras e o ofício da literatura podem ser exercidos de várias formas o que nos 175 conduz a uma visão mais complexa e multifacetada dos fenômenos da criação da editoração daquelas práticas leitoras e dos leitores em geral Isto entretanto não nos permite ignorar ou negar a importância e a qualidade diferencial da literatura escrita pelos grandes autores seu significado formativo e seus efeitos subjetivos Podemos por fim dizer que a presença do livro é marcante na cena brasileira pelo menos no que diz respeito à rede das grandes capitais Contudo longe de ser tranqüilizador este quadro revela paradoxos entre os quais A face da exclusão considerandose a população em termos amplos são bens escassos a competência na leitura silenciosa que revela familiaridade no ato de ler enquanto ato de produção de significado e interpretação Chartier 1990 e a posse do livro seja de literatura ou ligado à informação e aos diversos campos de conhecimento O acesso diferencial ao uso e posse do computador até o momento este equipamento não representa a morte do livro nem da leitura e da escrita mas apenas um outro suporte para textos o que não abala a vitalidade do mercado editorial O pequeno número de leitores literários comparativamente à população total A escassez de bibliotecas públicas e sua concentração nas áreas privilegiadas das cidades é importante ressaltar que o acervo das bibliotecas existentes necessitaria ser constantemente atualizado além de ampliado com obras de literatura ficcional e de referência para a formação dos estudantes5 O papel da escola é fundamental na formação do leitor e sobretudo quando se trata do leitor de setores populares embora a escola seja vista por muitos como uma vacina contra a leitura envolvendo constrangimentos à formação desse leitor Salvo o risco de generalização indevida esta visão crítica talvez se deva ao despreparo de parcela expressiva do professorado à obrigatoriedade da adoção de um só livro e ao uso das fichas de leitura por alguns consideradas um mal necessário dada a precariedade do corpo docente Passaremos a seguir aos comentários de escritores e editores buscando sobretudo as recorrências entre esses dois universos 176 Políticas públicas e estratégias de formação de leitores O gosto pela literatura pertence ao domínio da arte Birman 1996 comenta que o leitor moderno tem com o texto uma relação de prazer e de revelações imaginárias na qual a leitura é mais uma forma de aprimoramento da sensibilidade do que de educação justamente porque o que está em causa não é apenas o entendimento mas principalmente a subjetividade do leitor O gosto se forma pela opção declara Julio Emílio Braz Já para Luiz Antonio Aguiar a formação do leitor se dá na liberdade de escolha sem obrigatoriedade Livro não é material didático e o professor deve ir no caminho do interesse da criança6 Liberdade opção e prazer aparecem como valores relacionados à subjetividade do leitor mas também devem ser incorporados à dinâmica das políticas públicas sobre leitura dentro e fora da escola Isto porque é preciso levar em conta a formação do gosto pela leitura enquanto enriquecimento do imaginário Tratase da lógica da subjetividade transposta e traduzida para a lógica da ação e das políticas públicas Contudo parecenos fundamental trazer o outro lado da moeda Jean Hébrard em comentário no Salão do Livro em Paris 1998 recomenda que o discurso em prol da leitura não seja apenas afetivo mas contenha um trabalho de leitura como um de seus eixos principais Nesta linha a escola tem um significativo papel no que tange à construção de espaços coletivos de discussão e debate em torno da leitura e do livro Isto significa um esforço intenso de elaboração construção e negociação do sentido da própria leitura a partir do confronto de distintos pontos de vista O mesmo autor em recente palestra na PUCRio 1999 falando de políticas públicas educacionais apresenta como uma das vias de entrada para a cultura escrita as práticas do aprender a falar que fariam da escola o espaço do ensinar a falar O professor enquanto detentor da função de saber falar a língua escrita seria incentivador de outras maneiras de dar vida ao ato pessoal da leitura Neste enfoque caberia uma reorganização das sociabilidades da leitura buscando novas formas de se falar sobre o que se lê Ainda segundo Hébrard este seria o trabalho da leitura ou seja falar da leitura 177 realizada implica reconhecer a existência do ato de ler Portanto deverseia estimular o diálogo em torno do livro e não aprisionar a literatura como se ela fora material didático Neste sentido é questionável o uso de encartes fichas e avaliações Em relação à ficha de leitura ponto muito polêmico disse Ana Maria Machado Já fui muito contra essa ficha quando ela vem nos livros e sei que hoje ela é muito criticada Eu preferia que ela não existisse mas reconheço sua importância no Brasil sobretudo no caso da professora do interior sem recursos e despreparada Para ela a ficha dá um mínimo de orientação7 A escola apresenta uma dupla face na formação do leitor De um lado a obrigatoriedade de leitura de um só livro pode criar resistências e obstáculos à formação do gosto e do hábito de ler Mas pode significar o único acesso a livros para quem não os tem em casa Nesse propósito os entrevistados concordam que as políticas públicas têm que incentivar e apoiar a leitura de livros na escola atuando na formação de professores viabilizando acervos de livros e favorecendo acesso freqüente a bibliotecas atualizadas Assim Ana Maria Machado sugere que seja garantido a cada escola um acervo de pelo menos 300 livros de uma lista básica de aproximadamente 5000 escolhidos por uma comissão de especialistas A autora lembra também que traduções bem feitas são boas leituras e que portanto os professores de português poderiam indicar livros estrangeiros Também merecem atenção as campanhas incentivadoras do hábito de ler envolvendo distintos estimuladores como grupos de contadores de história e outros além de recursos como programas televisivos etc Relata Ana Maria uma iniciativa inglesa de leitura em colégio acessível a qualquer outro país Tratase do Projeto de Leitura Silenciosa Contínua8 Essa autora nos conta a vivência de sua filha nessa experiência em 19889 No primeiro dia a única coisa que ela trouxe para casa foi uma pasta com fecho éclair de plástico transparente onde estava escrito USSR Dentro havia uma folha mimeografada com um cabeçalho que 178 continha data título do livro autor e comentário da família em quatro colunas Atrás vinham informações sobre o Projeto entre elas a de que a escola havia aderido à campanha do USSR que não era obrigatória Podem dela participar escolas públicas ou particulares mas é basicamente voltada para as primeiras A escola se compromete a determinar um horário semanal para leitura silenciosa A de minha filha optou por 40 minutos Outras optam por 30 minutos uma hora Neste período eles avisam aos pais que não tentem vir ao colégio porque ninguém vai poder recebêlos A leitura silenciosa é para toda a escola do porteiro à diretora todos lêem A professora não pode ficar corrigindo caderno o homem da cantina pára tudo Não se atende ao telefone Este horário deve ser antes do recreio porque se alguma criança estiver em um ponto do livro em que não queira parar pode continuar durante o recreio Ao acabar a leitura todos voltam a suas obrigações O professor não pergunta O que faz tal personagem Alguém poderá até indagar Quantas páginas você leu Mas o aluno só precisa registrar na folha os dados do livro da biblioteca levando a fichinha para casa Aí irmão irmã avô avó pai etc devem completar a parte da opinião da família sobre a leitura da criança Ele gostou ou ele não gostou que bom que ele está lendo esse livro ou nunca ouvi falar nesse autor etc Alguém da família tem que ter uma opinião sobre aquele livro colocandoa na ficha até o dia da próxima leitura prazo dado pela escola Após a terceira semana se o aluno não trouxer a opinião de casa os pais são chamados ao colégio para uma conversa O interessante é que a família se envolve nesse projeto Outro critério importante na escola inglesa é o sistema de pontos em que uma série de atividades inclusive essa campanha da leitura torna a escola prioritária para receber ajuda do governo Por exemplo tendo comprado um determinado número de livros novos para a biblioteca a escola conta pontos para o sistema Se precisa cimentar novamente o pátio ou colocar uma grade nova poderá também utilizar os pontos da campanha Essa experiência existe há 24 anos e aplicase apenas à escola primária Uma avaliação mostrou que ela conseguiu aumentar a freqüência da leitura entre os jovens Outro ponto recorrente no discurso de nossos entrevistados diz 179 respeito à disseminação de bibliotecas Idealmente a maioria delas deveria ser de estaduais e portanto necessariamente diversificadas com uma dupla entrada na escolha de seus acervos ao mesmo tempo centralizados e contendo obras de autores locais Segundo recomendação da UNESCO a relação tolerável é de uma biblioteca para cada 12000 habitantes De acordo com dados veiculados pelo Jornal do Brasil10 há 3500 bibliotecas públicas e 22 milhões de brasileiros alfabetizados não têm biblioteca próxima a suas casas Para se alcançar o ideal seria necessário criar aproximadamente 2000 unidades É claro que mais bibliotecas devem ser criadas e atualizadas mas elas têm que funcionar como espaços vivos nos quais os bibliotecários assim como os professores são preparados para estimular a formação do leitor Do ponto de vista econômico autores e editores insistem no barateamento do livro por meio da redução de impostos sobre a produção É reiterada também a publicação de obras de domínio público melhor distribuição em bancas de jornais e investimento em edições de bolso Em suma preços altos e baixas tiragens são considerados inimigos do livro e da formação do leitor No que diz respeito ao grande evento da Bienal pesquisa recente da empresa de pesquisa Vox Populi conclui que mais de 90 da população brasileira não têm o hábito de ler o que indica a importância de se difundir no país pequenos eventos como feiras e salões de livros que não deveriam ficar limitados apenas às grandes capitais Para finalizar volto à tese central da UNESCO 1996 Desenvolvimento econômico não é variável independente Inúmeros projetos de desenvolvimento sócioeconômicos fracassaram por não levar este fator em conta Os fatores econômico e cultural se interpenetram Dado o papel constitutivo da cultura teremos que pensar o desenvolvimento em termos que englobem também o crescimento cultural Buscando uma síntese diria que são culturais as políticas de leitura Cabe aos responsáveis pelos equipamentos de educação e cultura promoverem parcerias criando as teias articuladoras entre família escola 180 bibliotecas museus cinema teatro e música enfim tecendo a rede cultural na qual o leitor se forma Referências Bibliográficas BIRMAN Joel O sujeito na leitura In Por uma estilística da existência São Paulo Editora 34 1996 CHARTIER R A História cultural entre práticas e representações Memória e sociedade Lisboa Difel 1990 A ordem dos livros Brasília Editora UNB 1994 As práticas da escrita In História da vida privada da Renascença ao século das luzes 3 São Paulo Companhia das Letras 1991 CUÉLLAR J P org Nossas diversidades criadoras Relatório da Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento UNESCO Campinas SP Papirus 1996 DAUSTER T Leituras no Rio de Janeiro In Testemunho III Antologia em prosa e verso Rio de Janeiro Oficina do Livro Ltda 1994 O Cipoal das letras entre olhares recortes e construções da Antropologia e da História no contexto de uma pesquisa sobre leitura Seminário História da Educação Brasileira a ótica dos pesquisadores Leitura teoria e prática Campinas SP revista da Associação de Leitura do Brasil ALB Fac de Educação UNICAMP Ano 15 n 28 dez 1996 Série documental eventos INEPMEC n 5 maio1994 p 48 54 Jogos de inclusão e exclusão sociais sobre leitores e escritores urbanos no final do século XX Anuário da Educação Rio de Janeiro Tempo Brasileiro org Barbara Freitag 1997 1998 MATA M L O valor social da Educação e do trabalho em camadas populares urbanas Rio de Janeiro CNPqOEA Departamento de Educação da PUCRio 1990 MATA L GARCIA Pedro B Cotidiano práticas sociais 181 e valores nos setores populares urbanos a difusão diferencial da escrita e da leitura e o significado da imagem entre os jovens Rio de Janeiro CNPq Departamento de EducaçãoPUCRio Projeto 1991 Relatório Final 1994 GEERTZ C A interpretação das culturas Rio de Janeiro Zahar Edit 1979 QUEIROZ MI Experimentos com histórias de vida Itália Brasil Org e introdução de Olga de Moraes von Simson São Paulo Vértice 1988 VELHO G Observando o familiar In A aventura sociológica Rio de Janeiro Zahar Edit 1978 Subjetividade e sociedade uma experiência de geração Jorge Zahar Editor Rio de Janeiro 1986 1 Vale esclarecer que as recorrentes pesquisas sobre a formação do leitor dentro e fora da escola têm recebido o apoio do CNPq incorporando alunos de iniciação científica mestrandos e doutorandos tanto da PUCRio como da UFRJ Dissertações teses e artigos vêm sendo elaborados e estes últimos apresentados em seminários no Brasil e no exterior pelos componentes da equipe 2 Esta classificação corresponde às concepções de alguns dos escritores Vale dizer contudo que a literatura infantojuvenil brasileira é vista como uma das melhores do mundo e comparada qualitativamente à inglesa 3 Tratase de iniciativas públicas e privadas importantes como o programa PROLER articulado à Biblioteca Nacional a campanha Paixão de Ler da Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro e o Leia Brasil programa da Petrobras apoiado pela UNESCO 4 Em entrevista realizada em 1996 para a pesquisa A formação do leitor limites e possibilidades da escola 5 A Secretaria Municipal de Cultura na gestão de Helena Severo começa a implantar bibliotecas em áreas faveladas tendo sido iniciadas essas atividades no contexto de ações do Programa FavelaBairro 182 6 Em contatos realizados para a pesquisa A formação do leitor limites e possibilidades da escola em 1996 7 Em entrevista realizada em 1997 para a pesquisa A formação do leitor limites e possibilidades da escola 8 Uninterrupted Sustained Silent Reading USSR 9 Em entrevista realizada em 1997 para a mesma pesquisa A formação do leitor limites e possibilidades da escola 10 Informe JB 1997 183 30 WALDA DE ANDRADE ANTUNES Leitura e biblioteca Bibliotecária Mestra em Planejamento Bibliotecário Doutora em Educação Professora do CID Departamento de Ciência da Informação e Documentação da Universidade de Brasília Diretora Técnica da WACORBI Membro do Comitê Estratégico do Leia Brasil Programa de Leitura da Petrobras Era da informação Mais do que isso era do conhecimento A sociedade globalizada ao tempo em que se defronta com o encontro de profissões tendências demandas enfrenta mudanças que chegam a todos os segmentos desta sociedade exigindo dos indivíduos um maior aporte cultural e educacional De outra parte o país vive um dos momentos mais significativos de sua história no qual se vê obrigado a acelerar o processo de modernização sobre novas bases políticas na busca de consolidação e fortalecimento da vida democrática Enquanto o país enfrenta grandes desafios no concerto internacional motivado pelas freqüentes mudanças nas relações importantes avanços científicos e tecnológicos passíveis de fortalecer o desenvolvimento criam o risco de gerar maiores desequilíbrios dentre 185 aqueles que não dispõem de articulações calcadas no campo cultural e não detêm reais potencialidades e recursos próprios As ações governamentais tendentes à globalização em todos os aspectos precisam se voltar para a promoção da autorealização dos indivíduos Sendo assim a elevação do nível cultural e educativo fundamento essencial para as transformações esperadas se assinalam como prioritárias medidas voltadas para a adoção de diretrizes que garantam a formação de leitores Medidas urgentes ousadas e de impacto devem constituir planos de ação abrangentes que fortaleçam a solidariedade nacional e garantam o engajamento de todos os setores da sociedade Apontase neste alvo talvez a única possibilidade de ampla participação do indivíduo no processo de formação do seu conhecimento e no esforço maior de participar da construção de uma sociedade globalizada e igualitária ser este indivíduo leitor freqüentador de bibliotecas usuário da informação O livro a leitura e a biblioteca alinhamse como importantes componentes sociais e em especial do sistema educativo Somamse a isto os meios de comunicação e veiculação de modo a que o livro seja disponibilizado e atenda as muitas demandas de leitura de forma que a aprendizagem o acesso à informação e ao conhecimento ocorram plenamente Promoção da leitura tem nítidas interfaces na luta contra o analfabetismo cuja eliminação é condição essencial do desenvolvimento e bemestar dos povos Porém promover a leitura é tarefa que deve estar respaldada por medidas que garantam a disseminação do livro fortalecendo a todas as instâncias criação produção disseminação para que isto aconteça O campo editorial brasileiro registrando expressivo desenvolvimento especialmente no que se refere à produção de livros infantis e infantojuvenis é capaz de contribuir efetivamente para o desenvolvimento da leitura Destacase como estrutura básicasuporte neste contexto o papel de serviços bibliotecários em suas diversas modalidades de modo a atingirem as comunidades independente de sua situação geográfica Cabe desta forma a ação de políticas públicas que garantam o desenvolvimento dos acervos das bibliotecas escolares e públicas para permitir a estas unidades o verdadeiro cumprimento de sua missão formadora de leitores e disseminadora de informações 186 A biblioteca é centro dinâmico de promoção da leitura de apoio à aprendizagem centro de disseminação cultural de informação Especialmente bibliotecas públicas e escolares trazem em sua missão explícita a participação no desenvolvimento do indivíduo Se por um lado a educação deve permitir o pleno exercício da dúvida da especulação e da busca da verdade por outro podemos dizer que o homem educado não é necessariamente um homem sábio mas um homem capaz de buscar o caminho da sabedoria Por esta razão os especialistas situam a educação como um processo em permanente desenvolvimento Ninguém pode ser considerado educado se não for capaz de adquirir novos conhecimentos A ausência de bibliotecas nas escolas e nas comunidades priva os alunos os cidadãos das oportunidades de leitura de facilitação da aprendizagem de acesso ao conhecimento Se educação e conseqüentemente a cultura são partes integrantes e fundamentais da formação dos indivíduos a leitura do livro a disponibilidade ofertada pela biblioteca são molas propulsoras do desenvolvimento da individualidade da independência na busca da informação À diversidade de possibilidades que uma biblioteca oferece pela leitura de muitos autores pela diversidade de idéias somase a função de elemento de comunicação a compreensão da mensagem o conteúdo que é lido por parte de quem lê condições e insumos importantes que levam o indivíduo a construir o seu próprio pensamento a ter as suas idéias A liberdade experimentada em uma biblioteca é extremamente relevante quer seja biblioteca escolar ou pública desvencilhase de qualquer método que possa resultar em unificador no processo de ensinar restrito à previsibilidade de ações O desenvolvimento da leitura na escola está intimamente vinculado ao livro As primeiras atividades de aproximação estabelecidas ainda na préescola têm no livro de literatura o despertar do interesse na criança A livre escolha o direcionamento ditado pelo interesse pela curiosidade pelo prazer a caminhada que aí se inicia vai desde o apego emocional que cresce na medida em que o livro assume um significado maior na vida da criança quer como o veículo que desvenda novos horizontes que amplia o seu mundo que sacia a sua curiosidade que oferece as grandes oportunidades de crescer além da dimensão que a saladeaula lhe propicia ANTUNES 1998 187 A propósito ABRAMOVICH F 1989 escritora brasileira expressa o seu pensamento na introdução da obra Leitura infantil gostosuras e bobices quando narra Ah a volúpia de ler sozinha de mergulhar no mundo mágico das letras pretas que remetiam a tantas histórias fantásticas Como era triste e comovente O soldadinho de chumbo é também triste e dadivosa A sereiazinha dois contos de Andersen como era deleitoso delicioso lagartear com os livros de Monteiro Lobato Era gostosura pura era maravilhamento total E essa volúpia de ler essa sensação única e totalizante que só a literatura provoca esse ir mexendo em tudo e formando meus critérios meus gostos meus autores de cabeceira relendo os que me marcaram ou mexeram comigo dum jeito ou de outro esse perceber que ler é um ato fluido ininterrupto de encantamento e de necessidade vital é algo que trago comigo desde muito muito pequenina E foi algo que me tornou essa viciada total em ler que sou até hoje Ler para mim sempre significou abrir todas as comportas pra entender o mundo através dos olhos dos autores e da vivência das personagens ler foi sempre maravilha gostosura necessidade primeira e básica prazer insubstituível A diversidade de livros que uma biblioteca oferece em seu acervo favorece a habilidade de ler além de atender às necessidades naturais de leitura e interesse do leitor Ainda garante o oferecimento de materiais orienta e cria condições para que o aluno vivencie experiências enriquecedoras e através do livro não obtenha apenas a informação mas que este se converta em forma de lazer prazer e freqüência nos momentos livres É ainda na diversidade que a biblioteca pode oferecer que o aluno passa a distinguir o que seja uma boa leitura atrativa convidativa instigante fortalecendo desta maneira o hábito de ler E o que mais se espera um leitor autônomo um usuário que sabe escolher o livro procurar a informação Um leitor que usa a informação que a amplia pelo conhecimento Ressaltada a importância do papel da biblioteca como fundamental no contexto de formação do leitor registrase aqui também a preocupação expressa por tantos quantos o reconhecem A biblioteca 188 especialmente aquela cuja clientela identificada é o leitor ou potencial leitor infantil bibliotecas infantis bibliotecas escolares e seções infantis em bibliotecas públicas não ocupam o espaço que lhes é devido junto à educação e à cultura Ressaltese ainda o fato de que a descontinuidade está sempre presente no trabalho da biblioteca na escola o responsável pela biblioteca é a primeira Além disso ressaltese o papel da biblioteca com relação à oportunidade de manipulação de diferentes materiais impressos e audiovisuais tomando contato com outras linguagens favorecendo o desenvolvimento de outras formas de comunicação expressão e leitura A ampliação de visão de mundo somase às experiências de leitura 189 Nota da revisora Páginas em branco 10 30 44 54 60 70 74 80 108 116 128 144 162 170 184 1 httpgroupsgooglecomgroupViciadosemLivros httpgroupsgooglecomgroupdigitalsource 1 Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com a intenção de facilitar o acesso ao conhecimento a quem não pode pagar e também proporcionar aos Deficientes Visuais a oportunidade de conhecerem novas obras Se quiser outros títulos nos procure httpgroupsgooglecomgroupViciadosemLivros será um prazer recebêlo em nosso grupo iNDICE Falando em leitura 7 Como e quando comecamoS a ler 11 Ampliando a noo de leitura 22 0 ato de ler e os sentidos as emocoes e a razao 36 A leitura ao jeito de cada leitor 82 Indicacoes para leitura 88 Bibliografia 92 o mais diffcil mesmo e a arte de desler Mario Quintana FALANDO EM LElTURA Falando em leitura podemos ter em mente alguam lendo jornal revista folheto mas 0 mais comum a pensarmos em Ieitura de livros E quando se diz que uma pessoa gosta de ler vive lendo talvez seja rata de biblioteca ou consumidor de romances hist6rias em quadrinhos fotonovelas S passa em cima dos livros via de regra estuda muito Sem duvida 0 ate de ler a usual mente relacionado com a escritae 0 leitor visto como decodificador da letra Bastard poram decifrar palavras para acontecer a leitura Como expli caramos as express5es de uso corrente fazer ahitura de urn gesto de uma situ8ao Ier 0 olhar de alguam Ier 0 tempo Ier 0 espaco indicando que 0 ate de ler vai alam da escrita Se alguam na rua me dci urn encontraominha reaao pode ser de mere desagrado diante de Maria Helena Martins batida casual ou de franca defesa diante de empurrio proposital Minha resposta a esse erne revela meu modo de leIo Outra as vezes passamos anos venda objetos urn vasa um cinzeiro sem jamais teIos tam enxergado IimitamoIos a sua funao decolilf ou ut ilitaria Um dia por motivos diversos nos encontramos diante de um como se fosse algo total mente novo 0 0 a cor a figura que representa seu passam a ter sentido melhora fazer senitido para 065 56 entiio se estabeleceu uma ligaao efetiva nels e esse objeto E consideramos sua beleza ra 0 ridculo ou adequao ao ambiente se encontra 0 material e as partes que COI1lJOem Podemos mesmo pensar a sua jifoyo as circunstancias de sua criaao as do autor ou fabricante ao fazeIo 0 de sua realizao as pessoas que 0 aJailltU1aram no decorrer de sua produao e Qie1015 de pronto aquelas ligadas a ele e as que onrun ou a quem desagrad Perguntamonos e nao Hnhamos enxergado isso antes essa questao nos ocorre por um segundo nnl rtTac eta e duradoura mas dificilmente voltamos 10 da mesma rnaneira nao importa com e intensidade o que aconteceu Ate aquele momenta 0 eta era apenas algo mais na parafernalia de o que e Leitura coisas ao nosso redor com as quais temos fami liaridade sem dar ateno porque nao dizem nada em particular ou das quais temos uma visao preconcebida De repente se descobre um sentido nao 0 sentido mas apenas uma maneira de ser desse objeto que nos provocou determinada reaao um modo especial de veIo enxergaIo percebeIo enfim Podemos dizer que afinal lemos o vaso ou 0 cinzeiro Tudo ocorreu talvez de modo casual sem intenao consciente mas porque houve uma conjunao de fatores pessoais com o momentoe 0 lugar com as circunstancias ISS pode acontecer tambem com relaao a pessoas com quem convivemos ambientes e situaoes cotidianas causando urn impacto uma surpresa ate uma revelaao Nada de sobrenatural Apenas nossos sentidos nossa psique nossa razao responderam a algo para 0 que ja estavam poten cialmente aptos e s6entao se tornaram disponveis Sera assim tambem que acontece com a leitura de um textoescrito Com frequencia nos contentamos por economia ou preguia em ler superficialmente passar os olhos como se diz Nao acrescentamos ao ate de ler algo mais de n6s alem do gesto mecanico de decifrar os sinais Sobretudo se esses sinais nao se ligam de imediato a uma experiencia urna fantasiauma necessidade nossa Reagimos assim ao que nao nos interessa no momento Um discLirso pol tico urna conversa uma I ngua 9 r to Maria Helena Martins estrangeira uma aula expositiva urn quadra uma pa musical urn livro Sentimonos isolados do processo de comunicacao que essas mensagens instauram desligados E a tendencia natural e ignoraIas ou rejeitaIas como nada tendo aver com a gente Se 0 texto e visual ficarnos cegos a ele ainda que nossos olhos continuem a fixar os sinais graficos as imagens Se e sonoro surdos Quer dizer nao 0 lemos nao 0 compreendemos impossvel darIhe sentido porque ele diz muito pouco ou nada para n6s Por essas razoes ao comecarmos a pensar a questao da leitura fica urn mote que agradeco a Paulo Freire a leitura do mundo precede sempre a leitura da palavra e a leitura desta implica a continuidade da leitu ra daquele COMOE QUANDO COMEAMOS A LER Desde os nossos primeiros contatos com 0 mundo percebemos 0 calor e 0 aconchego de urn berco diferentemente das mesmas sensacCSes provocadas pelos bracos carinhosos que nos enlacam A luz excessiva nos irrita enquanto a penumbra tranquiliza 0 som estridente ou urn grito nos assustam mas a cancao de nlnar embafa nosso sono Uma superfcie aspera desagrada no entanto 0 toque macio de maos ou de urn pano como quese integram a nossapele E 0 cheiro do peito ea pulsacao de quem nos amamenta ouabraca pod em ser convites a satisfacao ou ao rechaco Comecamos assim a compreender a dar sentido ao que e a quem nos cerca Esses tambem sao os primeiros passos para aprender a ler Tratase pois de urn aprendizado mais natural Maria Helena Martins pensar mas tao exigente e exo como a pr6pria vida Fragmentado mesmo tempo constante como nossas linrriDJVias de confronto com n6s mesrnos e odo ro novamente Paulo Freire ninguem ninguem como tampouco ninguem se a si mesrno os hornens se educam em mediatizados pelo mundo Paro hn e tambem ousando divergir neste caso se poderia dizer ninguem ensina ninguem a ler izado a em ultima instancia solitario ra se desencadeie e se desenvolva na convi com os outros e com 0 mundo Exagero tanto estudos da linguagem vem revelando cada com maior enfase que aprendemos a ler dos professores que para aprender a ler reender 0 processo da leitura nao estamos s temos condioes de fazer algumas sozinhos e necessitamos de alguma orien mas uma vez propostas instruoes unifor mizacias etas nao raro causam mais confusio do auxiliam bem as investigaoes interdisciplinares vem erideflCiando rnesmo na leitura do texto escrito ser apenas 0 conhecimento da I ngua que e sim todo um sistema de relaoes inter pessoa s e entre as varias areas do conhecimento e da expressao do homem e das suas circunstancias o que e Leitura Mas 0 que inois 0 intrigava eram as jigurinhizs desenhizdas embaixo das imagens e que provavelmente deveriam ser insetos desconhecidos 13 Maria Helena Martins Enfim dizem os pesquisadores da lingua crescente conviccao aprendemosa ler E diria vivendo faz pensar que 0 aprendizado de Tarzan Sieja pura obra da imaginacao de Edgar Rice OFrrI hc Aos dez anos remexendo nos escom da cabana de seu falecido pai 0 garotomacaco com alguns livros e teve seus primeiros ntltnc com a palavra impressa atraves de uma it Tentou de inlcio pegar as imagens que i ustravam percebendo entao serem apenas representafOes das figuras reais Mas 0 que mais eram as figurinhas desenhadas embaixo gens e que provavelmente deveriam ser desconhecidos Varios tinham pernas lem nenhum descobria bocas e olhos Nao aginar que esses sinais fossem as letras atfabeto Observando e refletindo percebeu poucos a relacao entre os insetozinhos e gens que os acompanhavam eles nao eram nume rosos repetiamse varias vezes Assim Utarefa extraordinaria aprendeu a ler sem possuir a menor nocaodas letras nem da agem escrita sem mesmo saber que essas coisas existiam Fascinante Imposslvel diriam os mais ceticos e fato numa crianca desde urn ana de idade sem oontato com a civilizacao tal facanha parece apenas coisa de ficcao Mas os inumeros escritores que rem recriado a aprendizagem da leitura quase o que e Leitura sempre apresentamna intencionalmente como alga magico senao enquanto ato enquanto processo de descoberta de urn universo desconhecido e maravilhoso Certamente aprendemos a ler a partir do nosso contexto pessoal E temos que valorizaIo para poder ir alem dele Esse orecado de Sartre em seu relato autobiografico no qual apresenta uma perspectiva mais realista mas nao menos fascinante da iniciacao a leitura Aposseime de urn livro intitulado Tribulaoes de um chines na China e 0 transportei para urn quarto de despejo aI empoleirado sobre uma cama de armar fiz de conta que estava lendo seguia com os olhos as linhas negras semsaltar uma unica e me contava uma hist6ria em voz alta tomando o uidado de pronunciar todas as snabas Surpre enderamme ou melhor fiz com que me surpreendessem gritaram admirados e decidiram que er tempo de me ensinar 0 alfabeto Fui zeloso como urn catecumeno ia a ponto de dar a mim mesmo aulas particulares eu montava na minha cama de armar com 0 Sem Famllia de Hector Malot que conhecia de cor e em rte recitando em parte decifrando percorriIhe todas as paginas uma ap6s outra quando a ultima foi virada eu sabia ler Fiquei louco de alegria eram minhas aquelas vozes secas em seus pequenos herbarios aquelas vozes que meu avo reanimava com 0 olhar que ele 15 Maria Helena Martins e eu nao Eu iria escutaIas enchermeia discu rsos cerimoniosos e saberia tudo Oeixa vagabundear pela biblioteca e eu dava ttn a sabedoria humana Foi ela quem me fez nca esgaravatei a terra nem farejei ninhos herborizei nem joguei pedras nos passarinhos os livros foram meus passarinhos e meus tvIOC meus animais domesticos meu estabulo e a biblioteca era 0 mundo colhido espelho t inha a sua espessura infinita a sua e ea sua imprevisibilidade Eu me lanva iYes aventuras era preciso escalar as cadeiras neas com 0 risco de provocar avalanches que m sepultado As obras da prateleira ficaram per muito tempo fora do meu outras mal eu as descobri me foram anmaudas das maos outras ainda escondiamse as apanhara um dia comeara a Ielas acreditava reposto no lugar mas levava uma sea reencontraIas Tive encontros hOrrlvels um album topava com uma prancha em insetos horrveis pulavam sob mmha r Deitado sobre 0 tapete empreendi aridas at raves de Fontenelle Arist6fanes ais as frases resistiamme a maneira das coisas cumpria obseniaIas rodeaIas fingir que me atastava e retornar subitamente a elas de modo a reendelas desprevenidas na maioria das vezes am seu segredo Ai t emes duas sinteses literarias do processo o que e Leitura de aprendizagem da leitura uma altamente ficcio nal outra autobiografica Ambas evidenciam a curiosidade se transformando em necessidade e esforo para alimentar 0 imaginario desvendar os segredos do mundo e dar a conhecer 0 leitor a si mesmo at raves do que Ie e como Ie Embora os exemplos se refiram ao texto escrito tanto Burroughs quanto Sartre indicam que 0 conhe cimento da I ngua nao e suficiente para a leitura se efetivar Na verdade 0 leitor preexiste a descoberta do significado das palavras escritas foise configurando no decorrer das experiencias de vida descle as maiselementares e individuais as oriundas do intercambio de seu mundo pessoal eo universo social e cultural circundante Quando comeamos a organizar os conheci mentos adquiridos a partir das situaoes que a realidade impoe e da nossa atuaao nela quando comemos a estabelecer relaoes entre as expe riencias e a tentar resolver os problemas que se nos apresentam a entao estamos procedendo leituras as quais nos habilitam basicamente a ler tudo e qualquer coisa Esse seria digamos 0 lade otimista e prazeroso do aprendiiado da leitura Oanos a impressao de 0 mundo estar ao nosso alcance nao s6 podemos compreendeIo conviver com ele mas ate modificaIo a medida que incor poramos experiencias de leitura Nao obstante em nossa trajet6ria existencial interpoemse inumeras barreiras ao ate de ler 17 Maria Helena Martins o desde cedo veemse carentes de convvio o ou com re l aoes sociais restritas quando condicOes de sobrevivencia material e cultural sao precarias refreando tambem suas expectatlvas pessoas tendem a ter sua aptidao para ler mente constrangida Nao que sejam incapazes pessoas com graves disturbios de carater ico A questao af esta mas Jigada as IQi5es de vida a nvel pessoal e socIal E 981 realizouse uma pesquisa sobre Tele e Comunicacao Publicitaria no Meio Rural ns dos depoimentos colhidos entre moradores or do Estado de Sao Pauloforam divulga peIa Revista Isto Uma mulher 37 anos casada dois filhos trabalhadora na ro moradora nha disse a respeito da televisao UPara televisao tem q ue saber ler Eu nao sei errtao nao en tendo nada Essa dec laraao aparentemente sem sentido transparecer uma 16gica revelando um pn Jt2SS0 de reflexaoacerca da leitura E isso em illSt3ncia demonstra tratarse de alguem que pribIa 0 ato de ler no seu cotidiano tem condi embora precarias de dar sentido as coisas no iha1Ih 0 na vida domestica nas relaoes humanas n la ao condicionar a leitura da TV a leitura text escrito assemelhando a linguagem das ados signos lingiHsticos rompe com a 1IVInrtamento usual que ve ambas as linguagens irvtArloAndentes e tambem exigindo capacidades o que e Leitura diferentes para compreendeIas Sua afirmaao nesse sentido se aproxima da noao da leitura proposta aqui Outra inferencia do raciodnio expresso esta na impormncia dada a leitura da escrita como ponte para outro entendimento 0 que e comum a maio ria das pessaas Seriade se perguntar em que medida essa mulher ve sua capacidade de dar sentido as coisas bloqueada pelo seu analfabetismo e qual a extensao de sua frustraao diante disso Como teria acres centado que quando compreende esquece logo temse a um dado elucidativo 0 que se Ihe oferece para ler na televisao pouco ou nada significa Rara ela pr isso nao chega a fixar na memoria seu universo de interesses e outro outras assuas necessidades reais ou de fantasia A psicanalise enfatiza que tudo quanto de fate impressionou a nossa mente jamais e esquecido mesmo que permana muito tempo na obscuri dade do inconsciente Essa constataao evidencia a importancia da mem6ria tanto para a vida quante para a leitura Principal mente a da palavra escrita da a valorizaao do saber ler e escrever ja que se trata de um signo arbitrario nao disponivel ns natureza criado como instrumento de comu nicaao registro das relaoes humanas das aoes e aspiraoes dos homens transformado com frequencia em instrumento de poder pelos domi nadores mas que pode tambem vir a ser a liberaao dos dominados 19 Maria Helena Martins te disso tambem poderfamos perceber 0 ecimento como urn mecanismo de defesa como a aprendizagem em geral e da leitura particular significa uma conquista de auto permite a ampliacao dos horizontes implica mente urn comprometimento acarreta alguns Estes ult imos em geral estabelecem a c1eSlXlnTlJanca I nco nscientemente aquela I eitora achemelhor nem entender ler porque ITlCaria para ela novas exigencias ruptura a passividade enfrentamento de uma situacao causarIhe maiores frustracoes em face idade E esta possivelmente ela considere rn fivPL ou cujas perspectivas de modificacao 2rirn a seu ver muito alem de seu alcance piSOaJ ou de seu grupo social Esse tipo de resposta a de nao querer ler vern ntro dos interesses das minorias dominan or certo nao estimulada abertamente ao 0 os sabedores das coisas na aparencia se pre prontos a ensinar a ler So que a o Esse desafio os indivfduos e as socie carentes como a nossa precisam aprender a rnh1Plm r comecando a ler por conta propria qu a duras penas exercitando sua me6ria se deixando iludir pela aparente gratUidade pequenas coisas da vida porque elas em rna instancia fazem a nossa hist6ria Com exemplos de leitores tao diferenciados cria na primeira infancia Tarzan Sartre o que e Leitura mulher da roca 0 prop6sito foi enfatizar algo sempre influente no ate de ler a interacao das condic5es interiores subjetivas e das exteriores objetivas Elas sao fundamentais para desen cadear e desenvolver a leitura Seja quem for 0 leitor 0 ate de ler sempre estara ligado a essas condicoes precarias ou ideals 21 AMPLIANDO A NOAO DE LEITURA conceito de leitura esta geralmente restrito da escrita sua aprendizagem no m Hgase por tradilao ao processo de l1li io global do indivduo a sua capacitalao oonvvio e atualoes social pol tica econo e cultural Saber ler e escrever ja entre e romimos significava possuir as bases de I o adequada para a vida educalao visava nao s6 ao desenvolvimento das aaiidades intelectuais e espirituais como das fisicas possibilitando ao cidadao integrar ente a sociedade no caso a classe dos res dos homens livres m se saber ler textos escritos e escrever oje e algo a que nao se tern acesso natu e 0 analfabetismo persiste mesmo em ises desenvolvidos entre os antigos era o que e Leitura privihgio de pouqulsslmos E 0 aprendizado se baseava emdisciplina rgida por meio de metoda analltico caracterizado pelo progresso passe a passe primeiro decorar 0 alfabeto depois soletrar por fim decodificar palavras isoladas frases ate chegar a textos continuos 0 mesmo metodo sendo aplicado para a escrita Apesar de seculos de civilizalao as coisas hoje nao sao muito diferentes Muitos educadores nao conseguiram superar a pratica formalista e meciinica enquanto para a maioria dos educandos aprender a ler se resume a decoreba de signos IingHsticos por mais que se doure a plulacom metodos sofisticados e supostamente desalienantes Prevalecea pedagogia do sacriflcio do aprender por aprender sem se colocar 0 porque como e para que impossibilitando compreender verda deiramente a funlaO da leitura 0 seu papel na vida do indivduo e da sociedade Tambem e sabido que nenhuma metodologia de alfabetizalao avanda ou nao leva por si s6 a existencia de leitores efetivos Uma vez alfabe tizada a maioria das pessoas se limita a leitura com fins eminentemente pragmaticos mesmo suspeitando que ler significa inteirarse do mundo sendo tambem uma forma de conqiJistar auto no mia de deixar de ler pelos olhos de outrem Oa 0 habito de ler livros em especial ser mistificado consideraremse os letrados os unicos capazes seja de criar e compreender a linguagem 23 Maria Helena Martins istica seja de ditar leis estabelecer normas e res sociais e culturais Isso de fato determina rlivas difceis de se abrir mao pois sao rrtonIiiadoras indfcios de que se pertence a uma Cabendo a essa minoria 0 direito de dar ao mundo enquanto aos demCis resta a issao aos ditames dos que sabem das coisas ndo 0 intelectual se debruca sabre 0 iletrado auxiliaIo a aprender inevitavelmente emerge patemal ismo Porem nao ensina 0 pulo do gato e ate af seu aitrulsmo nao chega Ahm do esse pulo tudo indica nao se ensina mesmo ese isto sim limpar 0 terreno ou na hip6tese quiavelica reforcar seus acidentes De qualquer forma prevalece a cultura do 1 cio se 0 educador e 0 que sabe se os ed candos sao os que nada sabem cabe aquele da entregar levar transmitir 0 seu saber aos ndos E ao denunciar isso Paulo Freire ama a atencao dos verdadeiros humanistas para 0 fato de que eles nao podem na busca da Libertao servirse da concepcao bancaria a ed cacao e doacao favor sob pena de se contrad izerem em sua busca Nesse caso predo mi na a visao de cultura do intelectual ou da cultura que Ihe pareca conveniente transmitir ao iletrado desrespeitandoo frontal ou subrepticiamente esta ultima hip6tese se insere uma das questoes mais discutidas e controvertidas de nosso tempo a cultura de massa sua manipulacao e con o que e Leitura sumo Para abrir perspectivas que mmlmlzem esses problemas muitos educadores apregoam a necessi dade da constituicao do habito de ler A leitura seria a ponte para 0 processo educacional eficiente proporcionando a formacao integral do indivduo Todavia os pr6prios educadores constatam sua impotencia diante do que denominam a crise de leitura Mas que crise e essa Pare eles em maioria ela significa a ausencia de leitura de texto escrito principal mente livros ja que a leitura num sentido abrangente esta mais ou menos fora de cogitacao Seria preciso assim investigar os inumeros fatores determinantes dessa situacao entre os quais ressalta 0 de a leitura como em regra a entendem estar limitada a escola com a utili zacao preponderante dos chamados livros dida ticos Como principalmente no contexte brasileiro a escola e 0 lugar onde a maioria aprende a ler e escrever e muitos tem sua talvez mica oportu nidade de contato com os livros estes passam a ser identificados com os livros didaticos Esses textos condensados supostamente dige rveis dao a ilusao de tornar seus usuarios aptos a conhecer apreciar e ate ensinar as mais diferentes disciplinas Na verdade resultam em manuais da 2S Maria Helena Martins ncia mais inibem do que estimulam 0 gosto Elaborados de modo a tiansmitir uma visao do conservadora repressiva tais livros estao etos de falsas verdades a servico de ideologias rrnI1 rlas mesmo quando mascarados por rsos formais ou tematicos atuais e nao conser res Subjaz a intencao de manipular a leitura ponto de seus organizadores deturparem os transcritos num franco desrespeito aos res e leitores sob 0 pretexto de resguardar pios ditos inabalaveis mas que a realidade inconsistentes justificativa maior dos organizadores dos didaticos entretanto se reveste de esplrito ernlfico a necessidade de viabilizar 0 desen mento de capacidades especlficas de simplifi assuntos demasiado complexos Quanto ao educadores muitos consideram tais livros um I necessario diante de evidentes problemas carater economico deficiencia na forma9ao professores na pr6pria estrutura do ensino rasileiro E enquanto a educacao formal vai r agua abaixo a mafia do livro didatico como a caracteriza Osman Linsr prospera franca e Resultado de polltica educacional e sistema s6cioeconomico no mlnimo desastrosos Encobrese desse modo 0 receio de urn dialogo espontaneo e crtico entre 0 professor e 0 aluno e de ambos com seu material de trabalho bloquean do oportunidades raras de realizaremse leituras o que e Leitura efetivas consequentes de se desenvolverem verda deiros leitores Ha portanto urn equ voco de base quando educadores falam em crise de leitura algodesfocado em relacao a nossa realidade o Brasil em termos de publicac5es distribuicao e venda de material impresso principal mente livros deixa muito a desejar Quanto a bibliotecas nem se fala Mas a oferta vem aumentando inclu sive a precos acesslveis a camadas mais amp las da populacao 0 volume de exemplares vendidos em edic5es populares cresce revelando que mesmo em term os de leitura de livros a crise naose da tanto devido a faltado que ler aos precos altos a pouca qualidade do material ou mesmo pela inexistencia de leitores A questao e mais ampla e complexa vem da precariedade de condic5es s6cioeconomicas e se espraia na ineficiencia da instituicao escolar determinando e limitando opc5es Sem duvida a concepcao que liga 0 habito de leitura apenas aos livros deve muito a influencia persistente no nosso sistema educacional de uma formacao eminentemente livresca e defasada em relacao a realidade ainda fomentada pela escolastica crista que orientou os jesu tas os primeiros educadores no Brasil Ademais deve muito a ideologia burguesa que busca na elitizacao da cultura meios de perpetuar seu domlnio social pol tico economico 27 Maria Helena Martins o que e considerado materia de leitura na esco esta longe de propiciar aprendizado tao e duradouro seja de que especie for como 0 desencadeado pelo cotidiano familiar pelos colegas 9Os pelas diversoes e atribuicoes diarias pelas r caoes de canher popular pelos diversos de comunicacao de massa enfim pelo ntexto geral em que os leitores se inserem exto esse permanentemente aberto a inumeras ras Nao e de admirar pois a preferencia pela ra de coisas bem diferentes daquelas impostas sala de aula sem a cobranca inevitavel em I por meio das execraveis fichas de leitura esconsiderando essa realidade a escola corre 0 de estar preparando criancas e jovens mesmo Iegiados por conseguirem chegar e permanecer que vao envelhecer sem crescer caso contarem com ela E obviamente esse processo ocorre com indivduos quanto com instituicoes outras palavras 0 tiro pode sair pela culatra A em do mais seria contrasenso insistir na portancia do habito de ler restringindoo aos ou quando muito a textos escritos em geral sso implica alijar da experiencia de leitura os il 5es de analfabetos espalhados pelo pais ou iletrados que nao costumam ter na escrita sua ferencia cotidiana Sobretudo quando se sabe lou se deveria saber que para modificar esse quadro sao necessarias reformulacoes expressivas sistema pol ltico economico e s6Ciocultural o que e Leitura de modo a permitirem melhoria efetiva de condicoes de vida da imensa maioria desfavorecida Solucoes simplificadoras ou demag6gicas para questoes tao complexas resultam inoperantes Fundamental e que conhecendo os limites de sua acao os educadores repensem sua pratica pro fissional e passem a agir objetiva e coerentemente em face dos desequil brios e desafios que a reali dade apresenta Temos entao mais um motive para ampliar a nOCao de leitura Vista num sentido amplo inde pendente do contexte escolar e para alem do texto escrito permite compreender e valorizar melhor cada passo do aprendizado das coisas cad a experiencia Incorporase assim ao cotidiano de muitos 0 que geralmente fica limitado a uma par cela minima da sociedade ao ambito dos gabinetes ou salas de aula e bibliotecas a momentos de lazer ou de busca de informacao especializada Enfim essa perspectiva para 0 ate de ler permite a descoberta de caractersticas comuns e diferencas entre os indivduos grupos sociais as varias cultu ras incentiva tanto a fantasia como a consciencia da realidade objetiva proporcionando elementos para uma postura crtica apontando alternativas Mas ampliara nocao de leitura pressupoe transfor macoes na visao de mundo em geral e na de cultura em particular Isso porque estamos presos a um conceito de cultura muito ligado a producao escri ta geralmente provinda do trabalho de letrados 29 Maria Helena Martins realidade entretanto nos apresenta inumeras culturais originarias das camadas norantes do povo e cuja forta significativa feito perdurar pr seculos Da a necessi de se compreender tanto a questao da leitura men a da cultura para alem dos limites que as OUUUI tOes impuseram Seria preciso entao considerar a leitura como processo de compreensao de expressoes formais e Micas nao importando por meio de que lUJyurIgtlJ Assim 0 ate de ler se refere tanto a escrito quanto a outros tipos de expressao do humano caracterizandose tambem como ntecimento hist6rico e estabelecendo uma win igualmente hist6rica entre 0 leitor e 0 que Sugerindo uma visao mais ampla da notao de ra abro questoes cujas respostas nao tenho pretendo encontrar aqui Elas sao colocadas como urn desafio porque estamos inapela nte condicionados a perspectiva da cultura rwI a relatao leituraescrita Mas essa delimi do ato de ler impede de se eng lobar no processo uma serie de aspectos que a realidade ia assim como elitiza a leitura e a escrita nainnndose enquanto privilegio e a conquista privilegio com sua subsequente democrati za3o e negatao enquanto privilegio e uma neces imperiosa para as classes subalternas me observou Flavio Aguiar Ele como I o que e Leitura certamente muitos outros simpatiza com minha proposta embora fique pouco a vontade em seu contraforte de letrado Da ser precise nao s6 revelar a insatisfatao quanto aos limites de nOtoes estratificadas pelos seculos como tambem ousar questiomiIas aventando alternativas As inumeras conceptoes vigentes de leitura grosso modo podem ser si ntetizadas em duas caracterizatoes 1 como uma decodificatao mecanica de signos lingusticos por meio de aprendizada estabelecido a partir do condicionamentoestlmuloresposta perspectiva behavioristaskinneriana 2 como urn processo de compreensao abran gente cuja dinamica envolve compohentes senso ria is emocionais intelectuais fisiol6gicos neurol6gicos bern como culturais economicos e pol ticos perspectiva cognitivosocioI6gica Conforme as investigatoes interdisciplinares vern apontando esta ultima conceptao da conditoes de uma abordagem mais ampla e mesmo mais aprofundada do assunto Por certo cada area do conhecimento enfatiza urn aspecto mas nao se propondo delimitatoes estanques esta aberta ao intercambio de informatoes e experienciasAlem disso 0 debate decodificataoversus compreensao 31 Maria Helena Martins parece estar se esvaziando Ambas sao necesais e ra Decodificar sem compreender a nutll co preender sem decodificar imposslvel Ha e se pensar a questao dialeticamente despeito de todas as tentativas de uma visao h5tica e met6dica se nos perguntarmos 0 e 0 que significa a leitura para n6s mesmos certamente cada urn chegara a urna resposta enciada 1550 porque se trata antes de mais a de uma experiencia individual cujos limites estao demarcados pelo tempo em que nos emos nos sinais ou pelo espafo ocupado por es Acentuese que porsinais entendese aqui aJquer tipo de expressao formal ou simb6lica configurada pelas mais diversas linguagens Frank Smith psicolinguista norteamencano estudando a leitura mostra que gradativamente os pesquisadores da linguagem passam considerIa urn processo no qual 0 leltor partlclpa co uma aptidao que nao depende basicamente e sua capacidade de decifrar sinais mas sim de sua capacidade de dar sentido a eles compreendeIos esmo em se tratando da escrita 0 procedimento esta mais ligado a experiencia pessoal a vivencia de cada urn do que ao conhecimento sistematico da Ingua A leitura vai portanto alam do texto seja ele al for e comefa antes do contato com ele o leitor assume urn papel atuante deixa de ser mer decodificador ou receptor passivo E 0 o que e Leitura contexto geral em que ele atua as pessoas com quem convive passam a ter influencia apreciavel em eu desempenho na leitura Isso porque 0 dar sentdo a um texto implica sempre levar em conta a situafao desse texto e de seu leitor E a nOfao de texto aqui tambern a ampliada nao mais fica restrita ao que esta escrito masabrese para englobar diferentes linguagens Considerando as colocafoes acima a leitura se realiza a partir do diiogo do leitor com 0 objeto ido seja escrito sonoro seja um gesto uma Imaem um acontecimento Esse dialogo a refe renclado por urn tempo e urn espafO uma situafao desenvolvido de acordo com os desafios e as respostas que 0 objeto apresenta em funfao de expectativas e necessidades do prazer das descobertas e do reconhecimento de vivencias do leitor Tambem 0 sustenta a intermediafao de outro s leitor es Alias 0 papel do educador na interrnediafBo do objeto lido com 0 leitor a cada vez mais repensadose da postura professoral lendo para eou peo educando ele passar a ler com certamente ocorrera o intercambio das leituras favorecendo a ambos trazendo novos elementos para urn e outro 33 A dinamica do processo e pois de tal ordem que considerar a leitura apenas como resultado da interaao textoIeitor seria requzilci considera velmente a ponto de se arriscar equvoco como pensar que urn mesmo leitor lendoum mesrno Maria Helena Martins texto nao importa quantas vezes sempre realizaria rna mesma leitura Nao precisa ser especialista no assunto para saber 0 quanto as circunstanias pessoais ou nao uma dor de cabeca uma recomen mao acatada ou imposicao urn conflito social podem influir na nossa leitura Em face disso aprender a ler significa tambem aprender a ler 0 mundo dar sentido a ele e a n6s roprios 0 que mal ou bern fazemos mesmo sem set ensinados A funcao do educador nao seria ecisamente a de ensinar a ler mas a de criar co dicoes para 0 educando realizar a sua pr6pria a rendizagem conforme seus pr6prios interesses necessidades fantasias segundo as duvidas e exigencias que a realidade Ihe apresenta Assim jar condicoes de leitura nao implica apenas aJfabet izar ou propiciar acesso aos livros Tratase es de dialogar com 0 leitor sobre a sua leitura e sabre o sentido que ele da repito a algo escrito urn quadro uma paisagem a sons imagens coisas ideias situacoes reais ou imaginarias Enquanto permanecermos isolados na cultura etrada nao poderemos encarar a leitura senao como instrumento de poder dominacao dos que sabem ler e escrever sobre os analfabetos ou iletrados Essa real idade precisa ser alterada Nao e se proponha 0 menosprezo pela escrita isso seria tolice ela em ultima instancia nos oportuniza condicoes de maior abstracao de reflexao Importa antes comecarmos a ver a 0 que e Leitura leitura como instrumento liberador e posslvel de ser usufru Ido por toqos nao apenas pelos letrados Se 0 papeL do educador pareceu aqui em evidencia ele fol trazido a baila para ser colocado em seu devido lugar e compreendido nao neces sariamente como 0 do especialista em educacao 011 do professor mas como 0 de urn indivdLJo letrado que sabe algo e se propoe a ensinaIo a alguem Importa muito se ter bern presente a ideia de que isso de ler e ler bern depende muito de n6s mesmos das nossas condicoes reais de existencia mais do que podem ou querem nos fazer crer os sabedores das coisas Alias essas condicoes vao inclusive orientar preferencias e privilegiar urn determinado nvel de leitura como se vera a seguir 35 o ATO DE LER E OS SENTIDOS AS EMOOES E A RAZAO Como afirmei de inicio estou apenas pensando e gerindo reflexoes ace rca da questao da leitura pretendo chegar a defini90es a conceitua90es mitivas tampouco apresentarregras ou receitas prop6sito e compreender a leitura tentando it ificaIa por meio de uma abordagem despre iosa mas que permita avaliar aspectos basicos processo dando margem a se conhecer mais o roprio ate de ler Esses aspectos se relacionam a pr6pria existencia omem incitando a fantasia 0 conhecimento e a reflexao acerca da realidade 0 leitor entretanto se detem no funcionamento do ato de ler intrincada trama de interrela90es que se esta ecem Todavia propondose a pensaIo perce a configura9ao de tres nveis basicos de o que e Leitura leitura os quais sao possveis de visualizar como nlveis sensorial emocional e racional Cada urn desses tres nveis corresponde a urn modo de aproxima9ao ao objeto lido Como a leitura e dinamica e circunstanciada esses tres nfveis sao interrelacionados senao simultaneos mesmo sendo um ou outro priviegiado segundo a expe riencia expectativas necessidades e interesses do leitor e das condi90es do contexte geral em que se insere Percorrendo uma feira urn bricabraque urn museu ou urn antiquario certamente assaltamnos as mais variadas sensa90es em090es e pensamentos Talvez pelo ins61ito do conjunto de objetos observados do lugar em que se encontram nos detenhamos mais a olhaIos Cada individuo reagira a eles de urn modo ira Ielos a seu modo Eu par exemplo as vezes nao resisto a tenta9ao de toealos cheiraIos fazelos funcionar Em certas ocasioes me deprimem como num mercado de quinquilharias ou num brique onde cada coisa teve sua hist6ria particular e acabouna vala comum nas maos de quem possivelmente ignora por completo sua trajet6ria Noutros casos assume uma postura de reverencia e encantamento diante de urn objeto consagrado um manuscrito de autor notavel uma cadeira que pertenceu a alguem famoso urn original de quadro ha muito admirado apenas at raves de reprodu90es Ocorrem tambem os momentos em que me descubro pnsando 0 37 Maria Helena Martins porque da existencia de tais objetos quais as i e es de sua criacao suc finalidade 0 que de o significaram para seus criadores e possuidores rorno se relacionam com 0 momenta hist6rico al e 0 lugar em que foram criados qual seu se ido para mim e para 0 mundo em que vivo Em cada urn desses casos como em muitlssimos os estou realizando leituras dando sentido coisas as pessoas ligadas a elas ao tempo e espaco que ocuparam e ocupam e a minha relacao isso tudo Estou tendo com meus sentidos has emocoes meu intelecto 5e recorro aqui m examplo tao pessoal e para nao generalizar ocadamente quanto a preferencias De aJquer modo temse at uma ideia inicial dos i is de leitura Alem disso fica eyidenciado algo a meu ver fundamental se a leitura tem mais sterios e sutilezas do que a mera decodificacao palavras escritas tem tambem um lade de plicidade que os letrados nao se preocupam 0 em revelar intemao aqui e de uma aproximacao por esse angulo dos nveis basicos do processo Ha meras maneiras de caracterizaIos e estudaIos ei pelos aspectos que me parecem mais entes longe de querer esgotar as possibilidades abordagem do tema Pelo contrario tratase wna iniciacao a ele Alias cabe observar par desta para outras reflexoes encontrarseao concepc5es a respeito de nveis de leitura o que e Leitura Cada coisa teve sua hist6ria particular e acabou na vala comum nas maos de quem possivelmente ignora por completo sua trajet6ria 39 40 Maria Helena Martins Praticamente cada estudioso tern uma VI sao diferenciada talvez par ser questao cada vez rna is repensada e acrescida de novas perspectivas 0 que sempre aumenta as possibilidades de com preendeIa Leitura sensorial A visao 0 tato a audicao 0 olfato e 0 gosto podem ser apontados como os referenciais mais elementares do ate de ler 0 exemplo visto anteriormente dos momentos iniciais da relacao d13 crianca com 0 mundo ilustra a leitura sensorial De certa forma caracteriza a descoberta do universo adulto no qual todos n6s precisamos aprender a viver para sobreviver Nao se trata de uma leitura elaborada e antes uma resposta ime diata as exigencias e ofertas que esse mundo apresenta relacionase com as primeiras escolhas e mot iva as primeiras revelacoes Talvez por isso mesmo Rlarcantes Essa leitura sensorial comeca pois muito cedo enos acompanha por toda a vida Nao importa se mais ou menos minuciosa e simultanea a leitura emocional e racional Embora a aparente gratui dad de seu aspecto ludico 0 jogo com e das imagens e cores dos materia is dossons dos cheiros e dos gostos incita 0 prazer a busca do que o que e Leitura agrada e a descoberta e rejeicao do desagradavel aos sentidos E atraves dessa leitura vamonos revelando tambem para n6s mesmos Em suas mem6rias Erico Verfssimo cia mais vida e significacao a essas coisas de que estamos falando Estou convencido de que meu primeiro contato com a musica 0 canto 0 conto e a mhologia se processOu at raves da piimeira cantiga de acalanto que me entrou pelos ouvidos sem fazer sentido em meu cerebro e 6bvio pois a princpo aquele conjunto ritmado de sons nao passava dum narc6tico para me induzir ao sono Essa cancao de ninar falava do Bicho Tutu que estava no telhado e que desceria para pegar 0 menino se este ainda nao estivesse dormindo Mas se ele ja esti vesse piscando com a areia do sono nos olhos a letrada cantilena era diferente uma advertencia ao Bicho Tutu para que nao ousasse descer do telhado pois nesse caso 0 pai do menino mandaria mataIo E a temos sem duvida uma efabulacao ou est6ria uma melodia e um elemento mitol6gico Amas e criadas encarregaramse de enriquecer a galeria mitol6gica da crianca contandoIhe est6rias fantasticas de carater francamente sadomasoquista como aquela da madrasta que mandou enterrar vivas as tres enteadas Ouco uma voz remota exclamar Xo xo passarinho Dessa hist6ria das meninas enterradas Capineiro de meu pai nao me cortes os cabelos minha mae me penteou minha madrasta me enterrou Mtiria Helena Martins guardo mais 0 terror que ela me inspirou do que o seu enredo Poressa epoca a criancaja caminhava e a rita magnetica de sua mem6ria estava ainda praticamente virgem pronta para registrar as impressoes do mundo com suas pessoas animais coisas e misterios A leitura sensorial vai portanto dando a conhe cer ao leitor 0 que ele gosta ou nao mesmo incons cientemente sem a necessidade de racionalizacoes justificativas apenas porque impressiona a vista 0 ouvido 0 tato 0 olfato ou 0 paladar Por certo alguns estaraoa pensar que ler sensorial mente rna est6ria contada urn quadro uma cancao ate rna com ida e facil Mas como ler assim urn livro per exemplo Antes de ser um texto escrito um livro e um objeto tem forma cor textura volume cheiro Podese ate ouviIo se folhearmos suas paginas Para muitos adultos e especialmente criancas nao alfabet izados essa e a leitura que conta Quem ja eve oportunidade de vivenciaIa e de observar a sua realizacao sabe 0 quanto ela pode render a crianca essa leitura atraves dos sentidos revela um prazer singular relacionado com iii sua d ponibilidade maior que a do adulto e curio dade mais espontaneamente expressa 0 livro esse objeto inerte contendo estranhos sinais o que e Leitura quem sabe imagens coloridas atrai pelo formato e pela facilidade de manuseio pela possibilidade de abriIo decifrar seu misterio e ele revelar atraves da combinacao rtmica sonora e visual dos sinais uma hist6ria de encantamento de imprevistos de alegrias e apreensoes E esse jogo com 0 universe escondido num livro vai estimu lando na crianca a descoberta e aprimoramento da linguagem desenvolvendo sua capacidade de comunicacao com 0 mundo Surgem as primeiras escolhas 0 livro com ilustracoes coloridas agrada rna is se nao contem imagEms Cltrai menos E s6 fato de folheaIo abrindoo e fechando o provoca uma sensacao de possibilidades de conheceIo seja paradominaIo rasgandoo num gesto onipotente seja para admiraIo conservandoo a fim de voltar repetidamente aele Esses primeiros contatos propiciam a crianca a descoberta do livro como um objeto especial diferente dos outros brinquedos mas tambem fonte de prazer Motivamna para a concretizacao maior do ate de ler 0 texto escrito a partir do processo de alfabetizacao gerando a promessa de autonomia para saciar a curiosidade pelo desco nhecido e para renovar emocoes vividas Melhor do que qualquer tentativa de explicar isso e buscar nova mente 0 relato de Sartre Eu nao sabia ainda ler mas ja era bastante esnobe para exigir os meus livros Peguei os dois volume zinhos chereios apalpeios abrios negligentemen 43 Maria Helena Martins te na pagina certa fazendoos estalar Oebalde eu nao ti nha a sensaao de possuIos Tentei sem ior exito trataIos como bonecas acalentaIos jalos surralos Quase em lagrimas acabei por dep6los sobre os joelhos de minha mae Ela ntou os olhos de seu trabalho 0 que queres e eu te leia querido As Fadas Perguntei I ulo As Fadas estao a dentro Ja os adultos tendem a uma postura mais inibida nte do objeto livro Isso porque ha sem duvida tradicao de culto a ele Mesmo quando nao m a forma pela qual hoje os conhecemos os os eram vistos como escritura sagrada porta dora da verdade enigm3tica ou perigosa E e inegavel a seriedade que uma biblioteca sugere A casa onde se encontra uma estante com livros 51 s6 ja conota certo refinamento de esprito igencia cultura de seus moradores Quanto livros melhor Nao e a toa que se compra as vezes por metro belos exemplares encaderna e se os poe bem a mostra alardeando aos nantes 0 status letrado Mesmo que esses livros sejam manuseados sua simples presenca j ca basta para indiciar sabedoria Os fetichistas ramnos indiscriminadamente mais em rwao de seu aspecto do que pela sua representa rrv e devido ao seu valor intrnseco por seu mfiteUdo ou autor Ha ainda um tipo de fetichista sutil 0 bibl iofilo colecionador de raridades as quais muitasvezes sequer tern condicoes de o que e Leitura avaliar mas exibeas com tal orgulho como se a mera posse dos exemplares ja Ihe facultasse 0 reconhecimento efetivo de importancia cultural e social quando nao a exclusividade de manuseio deixando aos demais leitores apenas a possibilidade de ler mediados pr uma vitrina Oiante de tal poder a simples posse do objeto livro pode significar erudicao sua leitura levar a salvacao os incredulos como quando repositorio das palavras de Cristo nos Evangelhos ou construir a loucura como a do cavaleiro andante Quixote a atitude do homem comum e historicamente de respeito Mesmo 0 advento da era eletronica com 0 radio e a televisao antes de arrefecer 0 culto aos meios impressos e especial mente ao livro acabou enfatizando sua importancia A suspeita amea cadora para uns Ietrados e alentadora para outros iletrados de que a escrita nao seria mais indispensavel para saber das coisas nao se concre tizou Pelo contraste entre 0 facilitario da comu nicacao eletronica ou da comunicacao oral e complexidade da escrita acabam ainda sendo mais valorizados os textos impressos os livros m particular e seus leitores Estes optam pelo mais diflcil e por ser a escrita mais difcil de entender seria possivelmente mais importante que os outros meios Esse tipo de raciocnio comum entre a 1 populacao iletrada e sem duvida estimulado pelos intelectuais resulta ser urn dos fatores maiores I 4S Maria Helena Martins de su stentaao do culto da letra e dos livros Os possuidores do poder da palavra escrita se encarregam de sublinhar e alargar a aura mistifi eadora que a envolve certos deestarem eles tamoom sob a protecao dos deuses enquanto ao itor em geral cabe a submissao 0 que esta escrito resso e principalmente publicado em forma e livro e inquestionavel significa sabedoria encia arte a que 0 comum dos mortais s6 atinge mmo receptor passivo Nao era de graca que Catulo Paixao Cearense quando mostrava a alguem seus manuscritos advertia para 0 fato de que is de impressos ficariam melhores e ao sarem livro estariam excelentes Corolario desse poder e a ameaca que os textos escritos pod em inspirar Da as queimas e destrui cOes as proibicoes daqueles considerados perigosos os seus concorrentes na forca de persuasao e ressores do pensamento e expressao livres exemplo mais acabado encontramos no Index brorom Proibitorum f ndice dos Livros Proibi uma lista de titulos elaborada pela Igreja Carolica Romana para impedir a contaminacao ie ou a corrupcao moral De mead os do securo XVI ate 1966 quando foi suspenso inume ediyoes do Index foram publicadas e conse entemente mil hares de punicoes executadas em da desobediencia as proibicoes Ha quem rezado muitas AveMarias de penitencia por algum dos livros malditos quando naq o que e Leitura apenas por possu los au manuseaIos E ha quem literalmente perdeu a cabeca por teIos escrito Mas nao sao apenas religiosos os pretextos de proibicao Os governos autoritarios tem side os maiores censores E disso n6s sabemos muito bem Mesmo cercado de tal fama 0 objeto livro nem sempre convence por si s6 Sua aparencia tambem impressiona bern ou mar Quem de n6s nao rechacou um deles por ser impresso em tipos muito miudos por ser muito grosso ou devido a mancha gratica compacta mente distribuida na pagina ao papel aspero e a brochura ou encadernacao nao se acomodarem as nossas maos Os racionalistas dirao mas 0 importante e 0 que esta escrito Nao se trata de racionalizar a questao aqui envolve os sentidos Do contrario como explicar 0 prazer que pode despertar aos olhos e ao tate um bela exemplar em papel sedoso com ilustracoes coloridas e planejamento gratico cuidadoso mesmo 0 texto escrito sendo piegas cheio de falsas verdades ou ainda absolutamente indecifravel E a revista inescrutavel envolta por urn plastico deixando a mostra apenas a capa atraente e estimu lante Num primeiro momenta 0 que conta e a nossa res posta fsica ao que nos cerca a impressao em nossos sentidos Estes entretanto estando ligados as emocoes e a razao as vezes pregam pecas surpreendendo perturbando mudando 0 percurso de nossa leitura 47 Maria Helena Martins Quantos ja se dirigiram a alguem efusivamente descobrindo logo tratarse de pessoa desconhecida E aquela almofada macia e quentinha que virou m gato nos arranhando Ha tambem 0 caso do lime em branco e preto em c6pia velha que resulta inesperadamente born Uma revista visual mente agradchiel que de repente deixa de ter alquer interesse para n6s Ou urn livreco de sebo meio rasgado e sujo com pessimo planeja ment o grMico que acaba nos agarrando Assim quando uma leitura seja do que for nos faz ficar alegres ou deprimidos desperta a riosidade estimula a fantasia provoca descober tas lembranas a I entao deixamos de ler apenas co os sentidos para entrar em outro n Ivel de ra 0 emocional Leitura emocional Sob 0 ponto de vista da cultura letrada se a tura sensorial parece menor superficial pela sua pria natureza a leitura emocional tambem tern sell tear de inferioridade ela lida com os senti mentos 0 que necessariamenteimplicaria falta de objetividade subjetivismo No terreno das emocoes as coisas ficam ininteligveis escapam ao controle o leitor que se ve envolvido por verdadeiras arT1lCdilhas trancadas no seu inconsciente Nao j o que e Leitura obstante essa a leitura mais comum de quem diz gostar de ler talvez a que de maior prazer E mais uma contradicao e pouco revelada e muito menos valorizada Certaspessoas situacoes ambientes coisas bem como conversas casuais relatos imagens temas cenas caracteres ficcionais ou nao tern o poder de incitar como num toque magico nossa fantasia libertar emoc5es Vem ao encontro de desejos amenizam ou ressaltamfrustrac5es diante da realidade Levamnos a outros tempos e lugares imaginarios ou nao rnas que naquelas circunstancias respondem a uma necessidade provocam intensa satisfacaoou ao contrario desencadeiam angustia levando a depressao Tudo se passa num processo de identificacao nao temos controle racional sabre issa pelo menos naquele momento E quando nos percebemos dominados pelos sentimentos nossa reacao tende a ser a de refreaIos ou negaIos por respeito humano conforme os cat61icos ou como explica Freud par um mecanisme de defesa pois aexpressao livre das emoc5es nos torna demasiado vu ineraveis Esses os motivos pelos quais procuramos esca motear ou justificar uma leitura emocional uma vez passado seu impacto Chegamos mesmoa ridicularizaIa tempos depois menosprezando nossa capacidade como leitor na ocasiao Tolice A leitura foi tao ou mais crreta se existe urna leitura assim que a feita com 0 passar eto tempo 49 Maria Helena Martins ou de cabeca fria Naquele momento contaram apenas as nossas emooes Por que negar 0 fato de nos emocionarmos ao assistir a uma cena amorosa real ou na telenovela ao ouvir uma cancao romantica ou em face de uma contrariedade domestica de uma injustica social inexoravel Nao sao essas situacoes e reacoes comuns a maioria dos homens Acontece que pr urn lado a gente nao quer parecer comum cada urn de n6s deseja marcarse como personalidade nao 56 para os outros como para si pr6prio mesmo que por meio de estere6ti pos inculcados de uma conduta pnHabricada e supostamente desalienante racional Pr outro somos intolerantes diante de manifestacoes estra nhas ao que se convencionoLi chamar de expressao equilibrada consciente Tudo isso acaba nao raro mediocrizando e complicando ainda mais nossas das Se nao mascarassemos as nossas leituras e a sua mem6ria talvez elas nos revelassem muito mais de n6s mesmos das nossas condicoes de vida entao E do confronto de leituras certamente sairfamos forta1ecidos Muitas vezes descobrimos gravadas em nossa mem6ria cenas e situacoes encontradas durante a leitura de urn romance de urn filme de uma cancao E sentimos que elas com 0 passar do tempo se tornaram referencias de urn perfodo especial de nossas vidas cheio de sonhos e aspiracoes o que e Leitura 1 Ocorrem tambem lembrancas rna is prosaicas e desagradaveis Imaginem urn texto lido as pressas para realizar uma prova Tudo nele aborrece ou preocupa por terse que dar conta de seu cOAteudo provavelmente devendo se airQa encontrarIhe qualidades Na verdade pouco ou nada e elaborado A leitura pode ate se tornarnsuportavel urn verdadeiro exercfcio de angustia Esse texto mesmo se passando muito tempo sem veIo ou sem referencias a seu respeito esta marcado Dificilmente voltamos a ele de espfrito aberto sem preconceito E caso 0 consigamos talvez ate tenhamos uma surpresa agradavel porque se mostra atraente enquanto tambem reaviva urn pouco da nossa hist6ria quando da primeira C leituraou porque definitivamente tern conf mada a sua insignificancia para n6s0 que nao deixa de ser revelador Nao sentimos algo semelhante com relacao a alguem ou a alguma coisa que em princfpio nos agrada ou desagrada Urn certo ator u parente urn vizinho urn objeto urn acontecl mento Essa uma das razoes para considerarse a primeira leitura definitiva Como vimos talvez nao seja mas sem duvida e marcante Por que assim mesmo receamos revelaIa Na leitura emocional emerge a empatia tenden cia de sentir 0 que se sentiria caso stivessemoslila situacao e circunstancias experimentadas por outro isto e na pele de outra pessoa ou mesmo Maria Helena Martins de urn animal de um cbjeto de uma personagerri de ficlaO Caracterizase pois urn processo de participalaO afetiva numa realidade alheia fora de n6s I mplica necessaria mente disponibilidade o seja predisposilaO para aceitar 0 que vern do ndo exterior mesmo se depois venhamos a echalC3lo A crianla tende a ter maior disponibilidade que o adulto pelo simples fato de em princlpio tudo e ser novo e desconhecido e ela precisar conhecer o mais possvel a fim de aprender a conviver com esse mundo Assim sendo nao s6 e mais receptiva como mais espontanea quanto a manifestar emoloes Acaba entao revelando a empatia de do ate exacerbado Da sermos condescenden es nao levarmos muito a serio suas manifes tafXes consideradas infantis isto e nao condi onadas pelas normas de conduta adulta Haven a urna ponta de inveja nossa pr aquela esponta neidade perdida Sera por isso que fica mais drtlcil expressar certos sentimentos nossos em relo a determinadas leituras Talvez conviesse nesse momento pensarmos 0 texto menos como urn objeto como foi eviden ado na leitura sensorial e mais como urn acontecimento algo que acontece ao leitor Princi palmente porque na leitura emocional nao importa o que e Leitura perguntarmos sobre 0 seu aspecto sobre 0 que urn certo texto trata em que eleconsiste mas sim 0 que ele faz 0 que provoca em n6s As vezes temos uma semiconsciencia de estar mos lendo algo mediocre sem originalidade mistificador da realidade ou sem representatividade estetica social pol tica cienHfica Tratese de urn romance um filme um relato hist6rico uma reportagem um manual de comportamento sexual Mas essa duvida aparece parcial e remota mente Define nossa ligalao com 0 texto algo mais forte e inexplicavel irracional Por isso nos sentimos inseguros quase incapacitados de explicar porque nos prendemos a leitura Eocorre pr certo a situalao inversa apesar do reconhecimento geral do valor de um texto nossa resposta a ele e de total desagrado 0 que tambem nos causa constrangimentos Podemse encontrar as determinantes dessas preferencias e rejeicoes aparentemente descabidas tanto no universe social como no individual No primeiro caso a fonte primaria esta na nossa relacao com os modelos de comportamento com os mitos transmitidos a n6s pr uma ordem social cultural pol tica Para examinar a questao sob esse ponto de vista digamos exterior precisa rlamos verificar em que medida e pr que nos deixamos dominar ou influenciar pr sistemas de ideias que mascaram a realidade Ha a todo urn processo de formacao e condicionamento ideol6 53 Maria Helena Martins gico que nos plasmou comomembros de uma deter inada classe social de uma religiao de um partido politico de uma profissao Todavia nao basta rompreendermos isso No segundo caso e precise saber como esses fatores externos se relacionam rom 0 nosso inconsciente com 0 nosso universe erior afinal onde se forma e se ciesenvolve a nossa emocionalidade Para conheceIo tornase ecessario anal isar nossas fantasias nossos sonhos em vigilia ou durante 0 sono Ambas as tarefas requerem urn grau consideravel e conhecimento de reflexao de interpetaao da nossa hist6ria social e pessoal E isso s6 consegui s realizar no decorrer de toda uma trajetoria de vida Ha porem urn recurso mais imediato e vel para comear ainvestigaao 0 das rememo da infancia e adolescencia das lemQranas leituras realizadas e daspredileoes e aversoes ais Se por exemplo quando criarwa ou adolescente a preferencia foi por ficao de aventuras tipo arzan Zorro ou mais recentemente Batman perhomem a fixa8o afetiva possivelmente se com relaao as personagenstltulo Apesar de narrativas serem basicamente calcadas na encia de acontecimentos o tempo e 0 espao que se desenrolam contam menos que a identi ficaIao do leitor Gom 0 her6i Atraem mais a sua personalidade e seu modo de agir seja por se assernelharem a imagem que 0 leitor faz de si ou o que e Leitura pelo paradoxo isto a por revelarem a imagem idealizada as avessas caracterizandose a atraao pelos opostos Com 0 correr do tempo outras preferencias de leitura surgem mas permariece a ligaao inicial a ponto de a mera visao de urn filme ou exemplar dessas aventuras desencadear urn processo nostal gico nao raro levando a retomada dos textos Talvez entao ocorra urn distanciamento Porem e mais comum nos deixarmos envolver com a mesma disponibilidade da infancia ou adolescencia principal mente se nao ha testemunhas dessa ecalda E a releitura se desenvolve entre uma semiconsciencia de que talvez 0 texto nao valha nada bern como a imersao na magia que ele permanece oferecendo E a criana que ainda somos emergindo no adulto possibilitando tam bern conhecermonos mais E quanto as fotonovelas as telenovelas ou aos programas de radio e TV tipo mundocao agora voltando com fora total e plena aceitaao Sua caracterlstica comum dizse e 0 gosto popular Para Ligia Chiappini ha todo urn processo de identificaao do publico Essas classes sociais para as quais sao dirigidos vivem muito maisos problemas da violencia Nao apenas a violencia criminal mas tudo aquilo que sofrem no seu cotidiano a fome a doena 0 trabalho arduo toda a sorte de dificuldades De fato uma leitura mesmo superficial revela 55 56 Maria Helena Martins muitos quadros intima mente ligados as frustraoes e angustias de cada leitor vindo tambem ao encontro de suas fantasias mais comuns Diante das desgraas presenciadas atraves do video ouvidas pelo radio ou lidas nos jornais e revistas tende a desenvolverse no leitor um processo catartico se as suas agruras sao tantas ha piores Por outre lado ha sempre algo que alimenta a ilusao de se conseguir como na novela tirar 0 pe do barre num golpe de sorte um amor rico uma heranca uma alma generosa y I nvestigando as leituras de operarias numa fabrica de Sao Paulo Eclea Bosi constata a prefe rencia por revistas sentimentais sendo as narrativas tlpicas as fotonovelas hist6rias em quadrinhos infantis reportagens sobre a vida de artistas realizaCao do sonho de iJma crianca doente cr6nica de milagre carta ao consultorio sentimental Fundamentandose em Freud e Gramsci observa nao ser a busca de uma compensacao quaquer que move e comove a leitora de fotonovela mas a de urn correlato imagimirio de sua posiao espec fita Jlo sistema social Situacao em que se interpe ntram carencias economlcas basicas graves liinitaoes de cultura e via de regra a impossibilida qe de transcender pelos proprios esforos 0 horizonte que sua c1asse e seu status circuns crevem Vese nesses exemplos a importancia da leitura emocional nao so no ambito individual mas no o que e Leitura o leilar enUla consome a tex ta sem se perguntar como ele fai feita Maria HeleM Martins das rela90es socia is evidenciandose a necessidade de se dar a ela mais aten9ao 0 inconsciente indivi al e 0 universo social orientam seus passos Nao obstante geralmente a considerada de menor nifica9ao pelos estudiosos enquanto para it os leitores adquire validade principalmente momentos de lazer descomprometimento sso se deve muito ao fato de ser vista como ra de passatempo seja qual for ograu de rU9ao cultura status social do leitorRoland Sarthes ensasta e estudioso da literatura e outras ormas de expressao declara que para ler senao yoluptuosamente pelo menos gulosamenlt e eciso ler fora de toda a responsabilidade tica 0 leitor entao consome 0 texto sem se perguntar como ele foi feito Enquanto passatempo essa leitura revela a edisposi9ao do leitor de entregarse ao unverso resentado no texto desligandose das circuns tancias concretas e imediatas Da ser tambem rada como leitura de evasao 0 que conota certo menosprezo por ela quando na realidade ria levar a uma reflexao aprofundada a aparente gratuidade da leitura de uma novela TV uma revista de mod as uma fotonovela comedia cinematografica urn romance ticial ou pornogratico esta impl cito 0 modo e encontramos para extravasar em090es satisfazer curiosidades e alimentar nossas fantasias t imentos esses que no nosso cotidiano nao o que e Leitura podemosoJ nao queremos expressar A leitura transformase entao numa especie de valvula de escape Mas nao apenas isso direta ou indire tamente ajuda a elaborar at raves do relaxamento de nossas tensoes sentimentos diHceis de compreender e conviver Assim selido 0 conceito de escapismo aplicado ao modo de ler tornase ambguo como observa Robert Escarpit embora possua uma carga pejorativa 0 termo evasao pode significar fuga para a liberdade e conse quentemente uma abertura intencional de novos horizontes Essa a razao pela qual nao se pode simplesmente imputar a leitura emocional a caracterstica de alienante Pr certo se me torno dependente dea e a usa sistematica mente como refugio para afastarme de uma realidade insuportavel meu comportamento deixa de ser 0 de quem busca momentos de lazer e distensao ou distra9ao para ser 0 de alguem que se nega a viver seus proprios problemas e em consequencia nao luta para soluciomiIos Ao preferir 0 desligamento de si e a imersao no universe do que e lido deixatnse de estabelecer as rela90es necessarias para possibilitar a diferencia9ao e compreensao tanto do contexte pessoal e social quanto do ficcional ou mistificador da realidade Caracterizase entao a total submisao do leitor tornandose ele vulneravel e suscetfvel a manipula9ao Eos estragos causados sao con sideraveis S9 Maria Helena Martins Tudo 0 que lemos a excecao da natureza Osso se nao considerarmos a interferencia do homem nela e fruto de uma visao de mundo de urn sistema de ideias e tlknicas de producao caracte rizando um comprometimento do autor com o que produz e pr certo com seus posslvels leitores Ha portanto relacao entre texto e ideologias pois estas sao inerentes a intencao consciente ou inconsciente do autor a seu modo de ver 0 mundo tornandose tambem elementos de ligacao entre ele e os leitores de seu texto este nao nos interessa aqui pelo seu valor intrlnseco se art lstico ou nao discuHvel ou elogiavel bem ou mal realizado importa antes como algo sujeito a leituras Mas se htl uma intencionalidade na criacao ela sabidamente nem sempre corresponde ao modo como a leitura se realiza A resposta do leitor depende de inumeros fatores presentes no ate de ler Estando predisposto a entregarse passivamente ao texto tende a se deixar envolver pela ideologia ou ideologias nele expressas expllcitas ou nao dar a sua vulnerabilidade Sempre havera entretanto momentos de distanciamento quanto mais nao seja causados por fatores externos a leitura a interrupcao do ato de ler por exemplo E nessas ocasioes vindo a tona emergindo do universe lido 0 leitor pode estabelecer relacoes entre seu mundo e 0 do texto Ha entao oportunidade para elaborar as emocoes l o que e Leitura desencadeadas pel a leitura As vezes a retomada d texto significa tambem uma nova postura dlante dele outras 0 fato de termos interrompido a leitura nao nos impede de mergLilharmos nova mente nela como se narcotizados mesmo havendo entao emocoes diferenciadas Assim alem da hist6ria pessoal do leitor e do seu contexto fica de novo sublinhado 0 quanto os fatores circunstanciais da leitura influem no tipo de resposta dada ao texto Urn dramalhao uma noHcia de jOrnal ou um incidente cotidiano odem suscltar lagnmas ou gargalhadas urn c1assico do teatro da literatura ou do cinema talvez provo quem bocejos ou emocoes as mais profundas e duradouras Oepende muito do referencial da leitura da situacao em que nos encontramos das intencoes com que nos aproximamos dela do que el desperta de lembrancas desejos alegrias tnstezas Iprta pr fim frisar 0 quanto em geral repnmlmos e desconsideramos a leitura emocional muito em funcao de uma pretensa atitude inte lectual Todavia se interrogadas sobre os motivos que as levam a ler livros revistas ir ao cinema assistir televisao ou mesmo ouvir fofocas muita pessoas revelam ser para se distrair 1550 nao significa serem leitores desatentos ou incapazes de pensar urn texto Apenas sua tendencia mais cGmum e deixaremse envdlver emocionalmente pelo que hem Ocorre entretanto e cada vez 61 l Maria Helena Martins com maior frequencia as pessoas sentirem ecessidade de justificar suas preferencias de leitura racionalizar seus gostos A convivencia senao a conveniencia social cultural e pol iticaprincipalmente nos centros rbanos vainos transformando em joguetes de nossas racionalizacc5es levandonos a expressar emocc5es dissimuladas quando nao contrarias ao que real mente sentimos Entao urn filme uma reportagem urn livro uma cancao uma escultura uma pessoa que nos desgostam ou agradam profundamente sao lidos de urn jeito e a leitura revelada de modo distorcido E agimos assim porque temos motivos intelectuais para isso Estamos nesse caso penetrando ainda que pela porta dos fundos em outro nivel de leitura 0 racional Leitura racional Para muitos s6 agora estariamos no ambito do status letrado pr6prio da verdadeira capacidad produzir e apreciar a linguagem em especial a artistica Enfim leitura e coisa seria dizem os tel ectua is RelacionaIa com nossas experiencias sensoriais e emocionais diminui sua significacao revela ignorancia Imaginese 0 absurdo de ir ao teatro e d ivertirse com Otelo ou Ricardo III I o que e Leitura ou pir ainda representar Shakespeare em tom popularesco uma afronta ao bardo ingles e a Cultura Como admitir tambem que um filme de Igmar Bergman possa aborrecer que a musica erudlta contemporanea pareca apenas barulho aos nosss ouvidos que Vlisses de Joyce se revele urn tlJolaco sem sentido para n6s Essa a postura intelectualizada e dominanteNao PDr ser d maioria dos leitores Pelo contrario Ol concelda e e mantida por uma elite ados mtlectuals pensadores estetas criticos e mesmo artlstas que reservam a si 0 direito de ditar normas a noss leitur em como guardam para si 0 pnvlleglo da cnacao e fruicao das artes das ideias das coisas boas da vida ntesde prosseguir convem esclarecer Ha uma ne de caracteristicas diferenciadoras entre as dlversas tegorias de intelectuais Horacio Gonales estdaas em outro livro desta colecao Aqui generallzo e simplifico 0 sentido de inte letual levado icIusive a radicalizacao eJoratlva POlS eVldenclo 0 elitismo 0 intelectua IIsmo 0 objetivo disso esta em querer sublinhar 0 que ha de negativo na postura cornu mente enten dida como intelectual A leitur a esse n vel intelectualenfatiza pois 0 mtelectualrsmo doutrina que afirma a preeminen cia e anterioridade dos fenomenos intelectuais sobre os sentimentos e a Vontade Tende a ser un voca 0 leitor se debruca sobre 0 texto 63 64 Maria Helena Martins pretende veIo isolado do contexto e sem envol vimento pessoal orientandose por certas normas preestabelecidas Isto e ele endossa urn modo de ler preexistente condicionado por uma ideolo gia Tal postura dirige a leitura de modo a se perceber no objeto lido apenas 0 que interessa ao sistema de ideias ao qual 0 leitor se liga Muitas vezes se usa entao 0 texto como pretexto para avaliar e ate provar asseroes alheias a ele frus trando 0 conhecimento daquilo que 0 individualiza Ao se aplicar urn esquema de leitura ao texto adotando urn comportamento esteriotipado em relaao a ele poese tambem de lado uma maneira de ler de dar sentido nossa autentica em funao de uma leitura supostamente correta porque sob 0 beneplacito de intelectuais Assim se estes autorizam a reverencia 0 riso 0 entuiasmo ou o menosprezo em face de urn texto revogamse as disposioes em contrario Dutro aspecto muito difundido dessa concepao intelectual ligase ao fato de em princlpio limitar a noao de leitura ao texto escrito pressupondo educaao formal e certo grau de cultura ou mesmo erudiao do leitor Como se viu de inlcio discuto aqui a visao da leitura confinada a escrita e ao texto literario ou as manifestaoes artlsticas em geral propondo veIa como urn processo de compreensao abran gente no qual 0 leitor participa com todas as suas capacidades a fim de apreender as mais diversas o que e Leitura formas de expressao humana e da natureza A Aim na perspectiva proposta aqui a compe tenla para criar ou ler se concretiza tanto por melo de text os escritos de carater ficCional ou nao quanto de expressao oral musica artes plasicas artes dramaticas ou de situaoes da realldade objetiva cotidiana trabalho lazer relaoes afetivas socia is Seja 0 leitor inculto ou erudito seja qual for a origem do objeto de leitura tenha ele carater utilitario cientlfico artlstico configurese como produto da cultura folcl6 rica popular de massa ou das elites Reforase entao 0 que ja foi dito a construcao da capacidade de produzir e compreender as mais diversas linguagens esta diretamente ligada a condioes propcias para ler para dar sentido a expressoes formais e simb6licas representacionais ou nao quer sejam configuradas pela palavra quer pelo gesto pelo som pela imagem E essa capaci dade relacionase em princfpio com a aptidao para ler a pr6pria realidade individual e social Esas considera90es sao basicas para se perceber a dlferena entre a leitura a nlvel intelectual e a vel racional como as coloco aqui A leitura raclonal e certamente intelectual enquanto elaorada por nosso intelecto mas se a enuncio assl e para tornar mais evidentes os aspectos POSltlVOS contra os negativos do que em regra se considera leitura intelectual Importa pois na leitura racional salientar seu Maria Helena Martins earn er eminentemimte reflexive e dinamico mesmo tempo que 0 leitor sai de si em busea realidade do texto lido sua percepcao implica volta a sua experiencia pessoal e uma visao da pr1a hist6ria do texto estabelecendose entao dialogo entre este e 0 leitor com 0 contexte qual a leitura se realiza Isso significa que 0 ocesso de leitura racional e permanentemente lizado e referenciado Em sntese a leitura racional acrescenta a sorial e a emocional 0 fato de estabelecer uma te entre 0 leitor e 0 conhecimento a reflexao reordenacao do mundo objetivo possibilitando no ate de ler dar sentido ao texto e questionar o a pr6pria individualidade como 0 universe relac5es socia is E ela nao e importante por racional mas por aquilo que 0 seu proceso ite alargando os horizontes de expectatlva leitor e ampliando as possibilidades de leitura texto e da pr6pria real idade social E extrema mente elucidativo um epis6dio rela o por Marilena Chaui em trabalho no qual ina a relacao entre a obra e 0 destinatario painel de considerac5es acerca de Conceitos Hist6ria e Obra Esse relato fica ainda mais arecedor para n6s se pensarmos os termos e visao usados pela autora como ler e leitura respectivamente Eu t enho uma estatueta de barre nordestina resentando uma fabrica de farinha de mandioca o que e Leitura Uma faxineira minha nordestina um dia limpando a estatuet8 me contou que havia trabalhado numa fabrica daquelas Nao s6 descreveu cada uma das etapas do trabalho a funcao de cada instrumenta mas tambem 0 pr6prio ate de trabalhar quais os movimentos a fazer em cada etapa a d uracao de cada urn deles 0 cansaco 0 calor a necessidade de mudar de posiao etc A estatueta era para ela reproducao de algo concreto e mem6ria Ela contemplava a estatueta mas sua contemplacao e a minha nada tinham em comum Eu sabia que era uma cena de t rabalho mas nao sabia 0 que era esse trabalho As posic5es das figuras e dos objetos eram aleat6rias para mim e necessarias para a faxineira Meu primeiro impulso foi pensar nunca tinha visto esta estatueta isto e ver a estatuela para vaIa com os olhos da faxineira fabricante de farinha A consequencia foi distinguir uma visao verdadeira e outra falsa autantica e inautentica profunda e superficial Levou um certo tempo para que eu percebesse 0 objetivismo das minhas reacoes Eu estava supondo que existia uma estatueta que era a eseultura posta diante de dois pares de olhos diferentes havia uma obra e dois destinatcirios urn dos quais via a obra e o outro nada via Estava pressuposta a unidadel identidade da obra atraves da juncao entre a estatueta e oolhar da faxineira pondo fora do campo da obra 0 meu pr6prio olhar Foi s6 quando me dei conta do desejo da unidadeidentidade que 67 68 Maria Helena Martins depositei na estatueta que percebi 0 que e destruir 0 trabalho da obra isto e uma experiencia diferente no campo de experiencia de duas pessoas diferentes A obra e a estatueta 0 trabalho do escultor 0 olhar da faxineira 0 meu e quantos outros que diante dela a incorporarem como experiencia visual ou de mem6ria A partir do instante que fica depositada a verdade em uma das visoes e a falsidade na outra voce tern duas atitu des possveis diante de uma obra ou voce quer se tornar 0 portador 0 portavoz da verdade que foi expressada ou voce se considera incapaz de ver 0 que urn outro privilegiado esta vendo Esse maniquesmo e perigoso sobretudo em setratando de cultura popular Perdendo a obra como trabalho podemos perder 0 fa to de que a estatueta produz essas duas visoes que essas duas visoes so sejam possveis a partir dessa estatueta 0 que a faz ser uma obra e 0 fato de que ela seja memoria para uma pessoa e representacao de uma forma de trabalho ignorada para outra E isso que ela e E ela nao e mais verdadeira ou menos verdadeira nurn caso e noutro ela e as duas coisas e essas duas visoes estao incorporadas agora na estatueta fazem parte da historia da estatueta Embora a autora esteja refletirido acerca de obra e de como e discuHvel a questao de ser autentica ou inautentica de haver uma leitura correta e outra errada para n6s aqui 0 episodio relatado e sua reflexao tornamse ainda mais o que e Leitura expressivos por exemplificarem 0 quanto signifi cam para a leitura a historia a memoria do leitor e as circunstancias do ate de ler Por urn lado 0 relato deita por terra a ilusao de 56 os intelectuais terem condicoes de assimilar certas formas de ex p ressao especialmente a estetica Nao se pode ignorar que a conotacao mais persistente da palavra intelectual confere aquele que designa uma certa aura intocavel inquestionavel Isso faz com que ainda m uit sejam vistos e se vejam como os escolhidos cujos sentidos e emocoes sao educados pela postura objet iva crtica Mas 0 que pretendem ser obje tividade e se revela como objetivismo para Marilena Chaui em vez de levalos a apretiacao e compreensao abrarigente do mundo nao raro deslocaos para a guarita de urn saber abstrato Por outro lado com esse relato fica tambem questionada a ilusao populista de que s6 povo teria 0 poder da verdade cabendo a ele fazer a leitura correta Tratando da leitura do texto escrito Jorge Luis Borges 0 grande escritor argentino assinala a etica supersticiosa do leitor que pretende uma postura intelectual mas realiza uma leitura de atencoes parciais Nela nao importam a eficacia ou eficiencia de uma pagina porem as habilidades 69 o Maria Helena Martins aparentes de escritor recursos de linguagem sonoridade sintaxe pontuarao enfim tecniqui ces segundo Borges que obscurecern as emoroes e convicroes do leitor em funrao de um suposto modo correto ou adequado de escrever e ler urn romance um poema Na verdade frequentemente confundese a ieitura racional com a investigarao pura e simples do arcabouro formal de um texto com 0 exame de sua estrutura interna enquanto sistema de relaoes entre as partes que 0 compoem sem efetivamente estudaIo como urn todo como expressao de urna visao de mundo Realizase assim 0 que 0 estruturalismo ortodoxo apregoou e ainda proclama 0 estudo do texto em si Esse tipo de leitura elimina a dinamica da relaao leitortextocontexto limitando consideravelmente uma compreensao maior do objeto lido o chamado distanciamento crtico caracterls tieo da leitura a nlvel racional sem duvida induz a disposiao sensorial e 0 envolvimento emocional a cederem esparo a prontidao para 0 questiona mento No entanto estudando a relaao do leitor com 0 texto se observa atendencia de acentuar o que e verificavel ocasionalmente nesse texto a partir do vivido no decorrer da leitura sensorial eou emocional Estas percebemno como objeto acontecimento emoao enquanto a leitura racio nal permite conheceIo familiarmente sem apenas sentiIo Podese entao estabelecer uma visao mais J o que e Leitura objetiva do processo de elaboraao de materiais formas linguagem tematica simbologia Na leitura emocional 0 leitor se deixa envolver pelos sentimentos que 0 texto Ihe desperta Sua atitude e opiniatica tende ao irracional Contam a I os criterios do gosto gosta ou nao do que Ie por motives muito pessoais ou por caracterlsticas textuais que nem sempre consegue definir Muito menDs se coloca a questao de como 0 objeto lido se constr6i Ja na hitura racional 0 leitor visa mais 0 texto tem em mira a indagaao quer mais compreendeIo dialogar com ele 1550 nos leva a considerar a leitura racional como sendo especial mente exigente pois a disponibili dade emocional 0 processo de identificacao agora se transformam em desprendimento do leitor em vontade de apreender um processo de criacao Como diz Barthes advem da necessidade de colocarse dentro da produao nao dentro do produto E nesse sentido Barthes ve a leitura como a parente pobre da criaao sendo seu objetivo 0 de reencontrar como algo foi criado Mas de que modo se realiza essa leitura Parece inegavel ela supr um esforo especial nao pode mos simplesmente nos apropriar do texto ou aceitaIo passivamente Temos antes que conquis taIo conhecendo e respeitando suas caractersticas pr6prias 1550 implica cercaIo de uma atenao tal que nos leve a perceber peculiaridades c 10 que o diferencia dos demais tornaoalgo u fro nao I Maria Helena Martins importa se apresente maior oumenor grau de qualidade Alias quando se fala em qualidade em criterios de valor estamos necessariamente diante do confronto entre um e outros textos entre leituras Cotejandoos evidenciase aquilo que individualiza cada um E quanto maiores as possibilidades de confrontar melhores as condiCfoes para apreender isso Quem leu um unico romance por exemplo pode ter opiniao definida senao definitiva sobre literatura de ficCfao Seu repert6rio desse tipo de leitura talvez por ser bem Iimitado permite maior clareza de criterios Para quem leu inumeros as coisas se tornam mals complexas os parametros diversificamse Nao vai a nenhum juzo de valor para um ou outro tipo de leitura leitor ou texto Quero com esse exemplo apenas observar que ao se ampliarem as fronteiras do conhecimento as eXlgencias necessidades e interesses tambem aumentam que uma vez encetada a trajet6ria de leitor a n vel racional as possibilidades de leitura de qualquer texto antes de serem cada vez menores pelo contrario multiplicamse Principalmente porque nosso dialogo com 0 objeto lido se nutre de inumeras experiencias de leitura anteriores enquanto lanCfa desafios e promessas para outras tantas o que e Leitura Cabe aqui uma observaCfao talvez dispensavel caso nao viesse dar forCfa ao que tentei sublinhar no decorrer desta reflexao Embora enfatizasse a leitura das mais diferentes linguagens a da escrita acabou se impondo os exemplos literarios evidenciam isso Primeiro porque e atraves del a que 0 pr6prio ate de ler tem side pensado segundo porque na literatura se encontram elementos aos quais podemos voltar inumeras vezes testando nossa mem6ria incitando nosso imaginario dei xando sentidos emoCfoes e pensamentos serem permeados pela variedade de sentidos que pode possuir uma mica palavra Alem disso quer se queira ou nao todos estamos historicamente ligados a nOCfaO de leitura como referindose a letra talvez 0 sinal mais desafiador e exigente em qualquer nvel especial mente 0 racional E creio quanto mais lermos de modo abrangente mais estaremos tambem favorecendo nossa capacidade de leitura do texto escrito Sem duvida 0 intercambio de experiencias de leituras desmistifica a escrita 0 livro levando nos a compreendeIos e apreciaIos de modo mais natural e certamente estaremos assim fortalecendo nossas condiCfoes de leitores efetivos das inumera veis mensagens douniverso em que vivemos Uma inifinidade de aspectos num texto pode 73 4 Maria Helena Martins desencadeare orientar a leitura racional Um dos mais comuns e a narrativa sustentada praticamente por qualquer tipo de linguagem falada escrita gestual gratica plastica musical cinematogratica Todo texto nos conta alguma coisa seja por meio de uma narrativa nitidamente marcada pel a sequencia cronologica dos acontecimentos como no romance tradicional seja de modo obscuro ou quase imperceptvel como num poema I rico ou numa composicao musical E a busca do processo narrativo do modo como a hist6ria e contada po de ser excelente deixa para a leitura racional Partindo do pressuposto de que nada e gratuito num texto tudo tem sentido e fruto de uma intencao consciente ou inconsciente importa e muito na leitura racional captarmos como se constroi esse sentido ou sentidos Para tanto um dos aspectos mais significativos esta no reco nhedmento dos indlcios textuais Essas pequenas unidades de sentido sao verdadeiras pistas para o leitor compreender 0 objeto lido em seu todo mesmo que muitas vezes passem quase desper cebidas ou que 0 autor as disponha de modo mais ou menos expllcito estabelecendose assim uma especie de jogo alias algo ainda mais estimulante para a leitura Nos romances ditos psicologicos com fre quencia a criacao de indcios esta presente na propria descricao das personagens a caracterstica o que e Leitura Hsica indica traos de personalidade As vezes esse recurso e usado de maneira caricatural mar cando 0 perfil de determinados tipos Tem side extrema mente explorado nas narrativas populares nos folhetins nas fotonovelas nas telenovelas no cinema no teatro Os modelos classicos dessa tipologia remontam a dupla QuixotePanca criaao de Cervantes Dom Quixote tem sua alienacao e vulnerabilidadesalientadas pelo porte fragil longi neo doentio envelhecido contras tando com 0 ridculo de uma paramentaao e atitudes de pseudocavaleiro alias Cavaleiro da Triste Figura Sancho Pana ja no proprio nome carrega algo de bonachao e primitivo como sua aparencia embora de muy poca sal en la mollera seu esprito pragmatico transformao em esclideiro perfeito para 0 sonhador Quixote o romance natural ista postulando 0 princlpio de que ohomem e fruto de seu meio apresenta empre indcios ambientais para corroborar tracos do carater e ate explicar as aoes das personagens o nosso Alu isio de Azevedo e um exemplo de autor que utiliza esses recursos para nao falar de Zola ou do grande Eca de Queiroz Quanto ao texto policial ou ao fantastico sao sem duvida prodigos na apresentacao de ind cios Alias a pedra de toque para a soluco do s misterio s ou para a criacao de uma at mosfera sobrenatural Se pensarmos nos filmes de H itch cock pr exemplo verificamos a habilidade com 6 Maria Helena Martins que 0 cineasta subverte a expectativa do leitor criando falsos indcios ou aparentemente menos prezando pistas definitivas para desvendar a trama Um olhar mais sombrio ou uma personagem de 6culos escuros em hora e lugar inesperados podem parece uma deixa do perseguidor ou assassino quando na verdade tratase de urn inocente urn passaro indefeso pode resultar no matador Aprendemos a ler esses indcios a medida que nossas experiencias de leitura se sucedem come camos assim a perceber com sao constru dos e dispostos no texto qual a mtenao do autor ao criaIos No entanto mesmo sabendo como e porque sao armados os indcios nao quer dizer que 0 texto se tome transparente para n6s No caso de Hitchcock como na maioria dos auto res altamente criativos mesmo 0 leitor percebendo um pass vel esquema de construao de ind cios a sempre a apresentaao de um elemento novo desafiandoo Assim constituise 0 que se chama de opacidade da ambigiiidade do texto aquela qualidade sua de negacear e se entregar ao mesmo tempo de nos levar a querer compreedeIo mais e mais e de nos possibilitar inumeras lelturas parecendo ate i nesgotavel o que e Leitura A interacao dos niveis de leitura Vale retomar 0 que disse ao iniciar a questao dos nveis de leitura eles sao interrelacionados senao simultaneos mesmo sen do urn ou outro privilegiado Deve po is ficar claro nao haver propriamente uma hierarquia existe digamos uma tendencia de a leitura sensorial anteceder a emocional e a esta se suceder a racional 0 que se relaciona com 0 processo de amadurecimento do homem Porem como quis mostrar aqui sao a hist6ria a experiencia e as circunstancias de vida de cada leitor no ate de ler bem como as respostas e questoes apnsentadas pelo objeto lido no decorrer do processo que podem eviden ciar urn certo nvel de leitura Nao se deve tambem supr a existencia isolada de cada urn desses nveis Talvez haja como disse a prevalencia de um ou outro Mas creio mesmo ser muito diflcil realizarmos uma leitura apenas sensorial emocional ou racional pelo simples fato de ser proprio da condiao humana interrelacionar sensaao emoao e razao tanto na tentativa de se expressar como na de buscar sentido compreender a si pr6prio e 0 mundo A lampada branca a querosene no centro da mesa dava claridade suficiente para a leitura e 0 croche Mesmoassim de vez em quando urn deles se aproximava do drculo vivo da luz que a Maria Helena Martins pantalha concentrava scbre a tabua para ler uma ietrinha apagada ou acertar um ponto mais delicado 0 estancieiro ocupava uma das cabeceiras Dona Alzira sentava perto na cadeira de embalo a outre pnta as criancas brincavam Lelita J ntando as palmas das maos seus dedos eram delgados compridos flexlveis punhase defronte a lampada e projetava na parede silhuetas de cabecinhas de cordeiro de coelho de gato se lambendo A predilecao do irmaozinho era ada pelas cabecinhas de coelho Mas ela sabia fazer tambem outras figurinhas de queroquero emper igado como um militar de joaogrande dormindo a beira da lagoa Entao sim Carlos esquecia as estampas das revistas velhas que folheava e admirava ausente fantasiando coisas Coisas confusas distantes envoltas num nevoeiro tenue que nao se esgacava nunca para dar franca passagem ao sol 0 que sentia era estranho suave comovente Enterneciao sobretudo a postura im6vel do joaogrande como de morto em pe A sua tristeza vinha justamente daquilo de saber que 0 pernalta estava vivo Vivo e tao parado tao sumido em si mesmo Era um al ivio quando Lelita movia de novo 0 dedo mindinho e lentamente a asa caida se enfunava para 0 voo Essa e uma cenadomestica da campanha rio grandense no inicio do sEkulo Uma recriacao ficcional de Cyro Martins mas que encontra eco o que e Leitura nas vivencias de muitos de n6s Apesar das limita coes ambientais de recursos materia is precarios e de uma experiencia de vida ainda em suas prirneiras descobertas a circunstancia favoreceu a realizacao da leitura efetivada al simultaneamente a nivel sensorial emoCional e racional os quais se interpenetram e se complementam Se a enfase no decorrer desta reflexao acerca dos nlveis de leitura foi mais hierarquizante deveuse ao prop6sitode dar uma fisionomia mais organi zada a questao Alem do que se pensarmos em exigencias feitas ao leitor no ate de ler parece mesmo haver uma gradacao da leitura sensorial a racional Por outro lado sabese mesmo 0 leitor se propondo uma leitura a urn certo nlvel seja ele qual for e a dinamica de sua relacao com o texto que vai determinar 0 nlvel predominante Assim como ha tantas leituras quantos sao os leitores ha tambem uma nova leitura a cad a aproximacao do leitor com um mesmo texto ainda quando minimas as suas variacoes Nesa ocasioes talvez ocorram mudancas de nlvel Um poema ou uma cancao que hoje nao nos dizem nada nao fazem sentido amanha podem emocio nar agradar ao ouvido pela musicalidade e pelo ritmo tempos depois suscitar reflexoes apenas ap6s varias leituras 79 Maria Helena Martins Se hssemos apenas e serlpre em um unico nvel tenderamos a radicalizar esse modo e ler proo cando a distorcao do texto lido pela Imobhaao Sendo a leitura um processo portanto dmamlca isso nao ocorre Seria como fixar 0 olhar num determinado objeto e s6 e sempre enxergaIode um unico angulo n6s e ele estaticos em pouco tempo nao mais conseguiramos veIo Isso porque a capacidade de nosso cerebro de registrar sensa cCies emocoes e pensamentos decai rapidamente quado 0 que queremos apreender e infinitamene repetido 0 efeito resulta invers do que se podena imaginar em vez delermos als emelhor 0 texto a leitura se dilui a ponto de mexlstlr Na verdade a medida que desehvolvemos nossas capacidades ensoriais emocionais e racionais tambem se desenvolvem nossas leituras nesses nlveis ainda que repito um ou outro Jrevleca Mas a interacao persiste Quanto mals nao eJ por certas caractersticas de cada um dos nlvelS as quais em ultima instancia sao interdependentes Vejamos que caractersticas sao essas A leitura sensorial tem um tempo de duracao e abrange um espaco mais limitado em face do meio utilizado para realizaIa os senldos Seu alcance e mais circunscrito pelo aU1 e agor tende ao imediato A leitura emoclonal e mals mediatizada pelas experiencias previas pela vivn cia anterior do leitor tem um carater retrospectlo impllcito se inclina pois a volta ao passado Ja a o que e Leitura leitura racional teflde a ser prospectiva a medida que a reflexao determina um passe a frente no raciocnio isto e transforma 0 conhecimento previoem um novo conhecimento ou em novas questoes implica mais concretamente possibilida des de deserwolver 0 discernimento acerca do texto lido Essas leituras se radicalizadas realizadas sempre de modo isolado umas das outras apresentariam aspectos alta mente questionaveis enfatizando 0 imediatismo sensoriaI 0 conserva dorismo emocional e 0 progressismo racional ismos esses que pela pr6pria natureza depre ciariam a leitura Felizmente e pouco provavel se efetivarem radicalmente em funcao da dinamica pr6pria do procedimento existencial do homem Mesmo querendo forcar sua naturezacom posturas extremistas 0 homem Ie como em geral vive num processo permanente de interacao entre sensacoes emocoes e pensamentos 81 I A LEITURA AO JEITO DE CADA LEITOR E 0 pulo do gato Como disse esse nao se ensina mesmo Mortimer Adler e C Van Doren apesar de terem escrito urn tratado sobre a arte de ler advertem que as regras para adormecer tendo sao mais faceis de seguir do que as regras para ficar acordado enquanto se Ie conseguir ficar acordado ou nao depende em grande parte da meta visada na leitura A esta altura espero tenha deixado claro que para compreendeIa e para a leitura se efetivar deve preencher uma lacuna em nossa vida precisa vir ao encontro de uma necessidade de urn desejo de expansao sensorial emocional ou racional de uma vontade de conhecer mais Esses sao seus prerequisitos A eles se acrescentam os estlmulos e os percal90s do mundo exterior suas exigencias o que e Leitula Para compreendea e para a leitura se efetivar deve preencher uma lacuna em nossa vida 83 Maria Helena Martins e recompensas E se pensarmos especialmente na leitura a nvel racional ha que considerar 0 esforro para realizaIa 0 homem e um ser pensante pr natureza mas sua capacidade de raciocfnio precisa de tanto treinamento quanto necessita seu fsico para por exemplo tornarse um atleta Nada enfim e gratuito sequer 0 prazer Este alias nasce d um anseio de realizacao plena portanto pressupo urna meta e um empenho para atingiIa o tremamento para a leitura efetiva implica aprendermos e desenvolvermos determinadas tecnicas Dos manuais didaticos aos estudos apro fu ndados sobre 0 ate de ler todos oferecem orientacoes ora menos ora mais objetivas e eficientes Todavia cada leitor tem que descobrir criar uma tecnica pr6pria para aprimorar se desempenho Auxiliamno entre osfatores ime d atos e externos desde 0 ambiente e 0 tempo dlsponlvel ate 0 material de apoio lapis papel em branco bombons almofadas escrivaninha ou poltrona a Itofa lantes fones a entra toda a parafernalia de objetos que se fazem necessarios ou que fazem parte do miseenscene de cada leitor Se isso tudo pode influenciar criando uma atmosfera propcia sabidamente e com raras excecoes e dispensavei Fundamental mesmo e a continuidade da leitura 0 interesse em realizaIa Quantos leitores ja deixaram passar a sua parada porque no onibus superlotado barulhento e o que e Leitura sacolejante estavam total mente imersos no seu radinho de pilha na fotonovela no romance num artigo cientlfico ou numa fotografia na rememoracao de um filme de uma peca teatral de uma conversa Ha quem 56 consiga ler um livro de ensaios p r exemplo sentado quieto em seu canto tomando notas assinalando passagens do texto olltros 0 fazem deitados ou mesmo de pe em meio a maior balpurdia Ha os que se sentem no cinema apenas quando acomodados numa das dez primei ras fileiras da sala de exiblcao outros vao para a ultima Muitos curtem 0 somde modo a tudo ao redor estremecer com 0 volume do altofalante enquanto outros s6 conseguem apreciar musica em surd ina Enfim cad a urn precisa buscar 0 seu jeito de ler e aprimoraIo para a leitura se tornar cada vez mais gratificante A releitura traz muitos bEmefcios oferece subsldios consideraveis principalmente a nvel racional Pode apontar novas direcoes de modo a esclarecer duvidas evidenciar aspectos antes despercebidos ou subestimados apurar a conscien cia crticaacerca do texto propiciar novos elementos de comparacao c Uma as razoes pelas quais as vezes nos sentimos desanimados diante de um texto considerado diflcil esta no fato de supormos ser em fu ncao de deficiencia nossa de incapacidade para compre endeIo Isso em geral e um equvoco Por que 85 Maria Helena Martins desistirmos de uma leitura racional se temos interesse e necessidade de realizaIa Tampouco adianta ficar relendo mecanicamente pelo contrario e pior Para diminuir a tensao amenizar as dificuldades importa muito nao considerar 0 texto como uma ameaca ou algo inatingvel elhor relaxar nao se preocupar em decifniIo em descobrir 0 sentido mas cercaIo ao modo da gente pelo cingulo que mais atraia mesmo pare cendo al90 secundario do texto Tratandose de urn livro retomaIo folheando ao acaso e lendo uma ou outra passagem sem nos sentirmos obrigados a entendeIa mas procurando apreciaIa estabelecendo relacoes com outras passagens lidas com leituras ja realizadas quais quer que tenham side os meios de expressao dos textos ou os nveis privilegiados As vezes 0 som das palavras de urn poema vernnos indicar 0 caminho para co meca r a pensaIo a descricao de uma cena de uma paisagem de urn aconteci mento talvez rem eta a uma experiencia vivida e facilite a compreensao do texto urn assunto desconhecido pode num determinado momento trazer referencias a al90 ja lido e pr ai come camos a entendeIo Enfim e fundamental nao ter preconceito nem receio de carrear para a leitura quaisquer vivencias anteriores procurar questionar 0 texto quem sabe ele apresente falhas seja confuso inconse qijente e nao ha por que simplesmene aceitaIo J o que e Leitura Daf a importancia de discutir a seu respeito de buscar esclarecimentos com outros leitores ou em outros text os A leitura mais cedo ou mais tarde sempre acontece desde que se queira realmente ler Acima de tudo precisamos ter presente que se nao conseguimos de vez dar 0 pulo do gato bern que se continue andando ainda urn pouco pois nao e pecado caminhar 87 INDICAOES PARA LEITURA Bern indicat6es para leitura foram dadas desde o inkio deste nosso contato Seria mesmodesne cessario dizer que Ie sobre leitura nao faz de ninguem urn leitor Os textos que estao a ao nosso redr expressos em mil linguagens a inteira dispositao podem ensinar a ler e compreender a leitura as vezes muito mais do que algo escrito especificamente sobre 0 assunto Mas como tambem se viu e atraves da escrita que a leitura tern side pensada e se torna mais facil aprofundar uma reflexao a seu respeito Prova disto esta nos textos que serviram de apoio para o que discorri Alias eles foram selecionados ja por serem agradaveis e esclarecedores revelando aspectos curiosos da iniciatao a leitura Para cometar melhor ir direto a poesia a fictao as mem6rias Mario Quintana la na epgrafe o que e Leitura Do Caderno H ja diz quase tudo Como ere Drummond e varios outros poetas sao nossos grandes mestres de leitura Entre os ficcionistas ha dezenas excelentes s6 na literatura brasileira Citei dois gauchos para puxar a brasapara a minha sardinha Erico Verssimo em Solo de Clarineta num tom e extensao mais de romance oferece alem do prazer do texto solto indcios para se ler melhor e compreender muito de sua obra Cyro Martins numa linguagem simples relata nas 70 paginas de Um Menino Vai Para a CoMgio a aventura de urn garoto do campo comeando a ler 0 munoo enfrentando os desafios e descobriridose na cidade grande Do Tarzan desnecessario falar mais Ainda encanta em livros quadrinhos TV e cinema leitores de todas as idades Ja Sartre embora muito conhecido de nome e pouco lido Em As Palavras temse umaexcelente introdutao a sua obra Nesse relato delicioso facil e de leitura rapida 0 ate de ler e 0 processo de formatao do autor estao imbricados rEvelando como se fez esse quee talez 0 maior fil6sofo de nosso seculo De Jorge Luis Borges mais que atraves dos ensaios lendose Hist6ria Universal da Infamcia contos ficase sabendo e reconhecendo como urn grande leitor s transforma niJm escritor genial Depois e saborear seus inumeros outros livros Quanto aos ensaios citados todos trazem 90 MlJria Helet1Il MIlrtins elementos substanciais para a Questao da leitura Comece por Paulo Freire Na simplicidade de sa linguagem como nenhum outro ainda indica as meios para aprender a ler e conquistar as caminhos para a liberdade Seu A Imporrancia do Ato de Ler fundamental fininho com tres artigos um dos Quais foi a pedra de toque para a elaboraao deste meu texto Pedagogia do Oprimi ao umcliCo com umerosas edi5es e tradues Af 0 grande educador brasileiro faz urn retrato da quesrno educacional e do problema da alfabetiza cao em parses subdesenvolvidos Examina aspectos Msicos dos fracassos e propOe alternativas tendo em vista uma educatyao efetiva e liberadora Discutindo a leitura na escola e na universidade brasileiras Osman Lins em Do Ideal e da GI6ria tornase urn refrigerio para as estudantes e profes sores insatisfeitos com 0 que se considera leitura e literatura na sala de aula Numa serie de artigos em tom jomalistico faz a crtica e mostra como se pode enfrentar 0 desanimo de uma leitura imposta Em A Arte de Ler de Mortimer Adler eVan Doren se encontra talvez 0 ttXto mais robusto e detalhado publicado em portugues sobre leitura Li eslao os niveis de leitura apresentados de modo diferente do visto aqui mas sem duvida muito esclarecedor A obra apesar de extensa em linguagem acessfvel e estii bem organizada em itens que podem ser facilmente consultados Os autores abordam desde 0 comportamento do leitor UUe i Leitura elementar ao leitor exigente dando indicacoes valiosas e pr ticas de como recilizar a leitura de escritos desde literatura matematica a socia is filosofia E ainda finalizam com serie de exerdcios e testes de leitura Robert Escarpit e Barker em A Fome de Ler a questao da leitura e do livro em relacao de comunicacao de massa problemas de distribuicao e direito autora 0 capitulo habitos de leitura e as conclusOes especial mente Tambern e leitura e facil old Barthes urn dos estudiosos da linguagern badalados dos ultirnos vinte anos atrai peJa beleza de seu texto e colocacoes Nao emuito tikil de ler Mas ha rios livros dele em portugues que valem a pena uma olhada Recomendo para comelClr e Verdade ensaios fda Perspectival der e gostar vai ficar fregues desses hc1 outros estudos em portugues a questao da leitura que podem auxiliar 0 Itli da investiao Entre os autores esta Lionel Bellenger com Os Meta Leitura Zahar que examina 0 compona do leitor os rnetodos de alfabetizacao e se aprende a ser urn leitor ativo Gaston U em A Aprendizagem da Leitura Editorial lisboal detemse na questao dos meto Ezra Pound em 0 ABC da Literatura Cultrix 91 Maroa Helena Martins alias da leitura no original como Sartre faz set depoimento sobre 0 que seja 0 ate de ler sua relao com a literatura dando exemplos de urn e outra Ent re os textos mais recentes de autores brasi leiros encontrase 0 Ato de Ler Cortez de Ezequiel da Silva Urn estudo que sistematiza aspectos basicos da leitura relacionandoos com seus fundamentos psicol6gicos e filos6ficos oferecendo subsdios especial mente para professo res e bibliotecarios E em Leitura em Crise na Escola Mercado Aberto organizado pr Regina Zilberman ha artigos e pesquisas de varios professores do 1 2 e 3C graus Relatamse experiencias discutindo as deficiencias e apon tando sa das para 0 impasse da leitura e do ensino da literatura em nossas escolas Para terminar varios livros da Colecao Primeiros Passos relacionamse com questoes levantadas aqui Dentre eles Ideologia de Marilena Chaui Literatura de Marisa Lajolo Poesia de Fernando Paixao Arte de Jorge Coli Intelectuais de Hora cio Gonzales Cinema de JeanClaude Bernardet Teatro de Fernando Peixoto Bibliografia ADLE R Mortimer J VAN DOREN Charles A arte de ler Rio de Janeiro Agir 1974 o que e Leitura AGUIARFIvio Comentrios aos originais deste trabalho BARTHES Roland Le Grain de lavoix entretiens 19621 9801 Paris Editions du Seuil 1981 BORGES Jorge Luis Del culta de los libros In Otras inquisiciones Buenos Aires Emece Editores 1960 BOSI Ecl4a Cultura de massa e cultura popular leituras de opera rias Petr6poiis Vozes 1977 BURROUGHS Edgar Rice Tarzan 0 filho das selvas Sao Paulo Companhia Ed Nacional 1968 CHAUI Marilena Conceitos de hist6ria e obra 19 SeminrkI I nterno sobre 0 Nacional e 0 Popular na Cultura Brasileira FUNARTE Rio de Janeiro 1980 in4ditol CHIAPPINI Ligia A TV se volta para 0 gosto popular Entre vista concedida ao jornal 0 Estado de Sao Paulo Sao Paulo 23 de maio de 1982 ESCARPIT Robert BARKER Ronald A fome de ler Rio de Janeiro Fundacao Getulio VargasMEC 1975 FREI RE Paulo A importincia do ato de ler em tns artigos que se completaml Sao Paulo Autores AssociadosCortez 1982 Pedagogia do oprimido 6 ed Rio de Janeiro Paz e Terra 1978 LI NS Osman Do ideal e da gl6ria problemas inculturais brasileiros Sao Paulo Summus 1977 MARTINS CyrQ Um menino vai para 0 colligio Porto Alege Movimento 1977 REVISTA Isto t A TV no outro mundo Sao Paulo 7 de Abril de 1982 SARTRE JeanPaul As palavras Sao Paulo Difuscio Europ4ia do Livro 1964 SMITH Frank Underitsnding reading a psycholinguistic analysis of reading and learning to read 2 ed Nova Yorque Holt Rine hart and Winston 1978 VERrSSIMO Erico Solo de Clarinets Porto Alegre Globo 1973 vol 1 93 Biografia Maria Helena Martins e de Porto Alegre onde foi pro fessora do 19 e 29 graus por varios anos Desde 1973 leciona principalmente Teoria Literaria e Literatura Infanto Juvenil no Curso de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul onde tambem fez mestrado cuja dissertayao foi publicacta sob 0 titulo Agonia do Herosmo contexto e trajetoria de Antonio Chimango porto Alegre URGSLPM 1980 Atualmente faz doutoramento na Universidade de Sao Paulo em Teoria Literaria Tern realizado trabalhos para congressos e seminmos e publicado artigos em jomais e revistas a respeito de temas relativos a disciplinas que leciona De 1979 a 81 ampliou sua expe riencia profIssional fora do ambito escolar criando uma Salinha de Leitura para crianas a qual muito contribuiu para a elaborao deste 0 que e leitura Coro leltor As opini6es expressas neste Ilwo sao as do autor podem nao ser as suas Caso voce ache que vale a pena escrever um outr livro sobre 0 mesmo tema 6s estamos dispostos a estudar sua publicaao com 0 mesmo titulo como segunda visao COLECAo PRIMEIROS PASSOS I Soc Arnaldo Spindel 2 Amaldo Spindel 3 1Ilomo Ricardo C Antu nes 4 1apR8I A Mende Catanl 5 Anwqulamo Caio Tullo Costa 8 U Caio Prado Jr 7 RKlsmo J Rufino dos Santos IndUstr Culture Tel xeira Coelho 9 Clneru J Clau de Bernardet 10 T tro fernan do Peixoto 1 t Energlll Hue J Goldmberg 12 UtopbI Tel xeira Coelho 13 ldeologla Ma rilena Chaui 1 ubdesenvolvl menlo H Gonzalez 15 Joan mo CI6vis Rossi 16 Arqultetura Carlos A C Lemos 17 Hlst6tia Vavy Paclleco Borges 11 Ques do Agrirlo Jose G da Sliva 19 Comunldodo Ee de Frol Betto 20 EcIucaIo Carlos R Brandlo 21 IurocredI F C Prestes Motta 22 Dftaduru Arnaldo Spindel 23 DIaIItIca Leandro Konder 24 Poder Gti rard Lebrun 25 Revol Flo restan Fernandes 21 Multi clonal Bernardo Kucinski 27 Marketing Aaimar Rlchers 21 EP900 SoIario P R de Souza 29 Intetectuai Horacia Gonzalez 30 Receulo Paulo Sandroni 31 RoIgllo Rubem Alves 32 10 P Evaristo Car deal Arns 33 RefonM AO J Eli Veiga 34 Stollnlomo J Paulo Netto 35 IIomo A Mendel Catani 31 Cuttura A Augusto Arantes 37 fllooaflo Calo Prado Jr 31 todo hulo F C R Bra 39 hIcoIogIo S T Mau rer Lane to Trotsldsmo J R0 berto Campos 41 Jamil A Haddad U Io Urbene Regis de Morais a Poe M Glauco Mattoso feminiMIO B M AlvesJ Pltano guy e A Rodolpho Canlato Arte Jorge Coli t1 Coml de F R Antu nesA Nogueira Geogreft8 Ruy Moreira 4 DlNItn Oalmo de Abreu Oallarl 50 Familio Dando Prado 51 trlmOnlo HI Carloa A C Lemo 52 PoIquIotrIo A ttYII Alan Indio Serrano 51 Ute rawra Marlsl lIjol PoIttIcIi Wolfgang Leo Mllr 5 bplrI Roque Jacintha Po LegloIotIvo Nolson Saldanha 57 8ocWogla Cados B Mar tin DI 1 J Monserrat Fllho 59 Teon Ota viano Pereira 80 FoIcIore Car los Rodrigues Brandlo 61 Exl tenclallamo Joio da Penha 62 Dlrello Roberto Lyra Fllho 83 Poela Fernando Palxio 64 Ca pital Ladlslau Dowbor as Mal Valla Paulo Sand rani 68 Recur an Humanoe Flivlo de Toledo 87 Comunkaqio Juan Diaz Bor denave II Rock Paulo Chacon 99 Postoral Joio Batista Libe nlo 70 Cont8bII Roque J clntho 71 CopHol 1 Rabah Benakouche 72 Positivi mo Jolo Ribeiro Jr 73 Loucura Jolo A FraYlePereira 14 Lei tura Marla Helena Martins 15 0untI0 na Helena Salem 18 Punk Antonio Sivar 71 Pro IdeoI6gIco Nelon Jahr Garcla 11 M8g1a JoAo Ribeiro Jr 79 EcIucaIo Fiolco Vltor Marlnho de Oliveira 80 Mua J Jota de Moraes 11 Homos xUlI Peter Fry I Edward McRae 92 Fotogroflo Cl6udlo A Kubrusly 13 Politlca Nuclear Ricardo Arnt Medlcllll Al ternativi Alan India Serrano 85 VIoI6ncIo Nilo Odalla 16 PoIco 1 Fabio Hermann 17 mentarfmo Ruben Cesar Keinert II ARlO Betty Milan 99 Pee DeftcIentes Jolo B Clntra Rlbe 90 10 Civil Evaldo Vieira 91 UnI Lull E W Wanderley 92 ou do de Lull C O Ribei ro Robert M Pechman 93 Jazz Roberto Muggltl 14 81b11otKo lulz Milanesl 95 Juan E Dial Bordenave 91 C poetl Almir das Arelas 97 Um Mnda Patricia Birman 91 Ute turII PopulII Joseph M Luyten 99 PopoI Ot6vlo Roth 100 ContrllCUttu Carlos A M Pe reira t01 Comun Rural JUln E 0 Bordenave 102 Fome Ricardo Abramovay 103 Seml6 tlea lucia Santaella t04 hrllel Politico Oalmo de Abreu Oallorl lOS J Julio Cesar Tadeu Barboa 108 AotroIogIo Juan A C Mulier lOa M P Muller 107 Politico CUltural Martin Celer Feij6 101 Comu DAG GIt4FICA E EDITORIAL L mAo Imprimiu Av Nona Senbora do 0 1782 Tel 8516044 A CorIoo P Tavares 101 IIclol Sandra Wei R I Cultu Jos6 Lull los Saneo III Sa SocIal Ana Aamos Estevlo 112 Te lUlla Margareth Rago F P Moreira 113 M tonio Carlos Rocha 114 T N6 Darel Yaluco Kusano 115 ROOIclode JoiFrancisco Duo te Jr III coIovIo Lago Josti Augusto P6dua in Neologiomo Nelly Corvalho I 9 Modlci KIn Kloetz 1 119 ro Carlos Garcia 120 Iidodo Guillermo RoUt 121 T Glauco 122 PoropoIcoIovIo Osman drade Faria 123 liana R Petrilli Segnini DC E Evervdo P Qi mari es Rocha 125 Me6ciIre Populor Elda Rizzo de Oheino 128 Abono Oanda Prado 121 Sulcidlo Roosevelt M S ea soria 121 E R Yo raes e S M Lapeiz 12 ca Mtlca Jocelyn Sennaton UI Ge Andre Frod G6e 131 w Hamburger 132 Raymundo Glvio de 0Ueiraz 133 I 2 0s car Cesarotto M Souza 134 FIMa 0 35 Conto Luzia de Mu 131 Erotlamo LUcia Casten o Bnaco 137 Video CJndido Jose des de Almeida 131 Paulo de Salles Oliveira tl Her6i Martin Cezar Feio Autonomlo lUcia to Bruno 14 AI ley Codo 142 EIdo Rizzo de Oliveira 143 cli tuint Marilla Garcia 1 IOrIo em Duodrinhoo S6nUo Luyten Ie A Vlnicius Ferreira e EIpiriIi5 mo 2 villa Maria Utura Viw ros de Castro 147 tlea Alain Jean Costilhes a Marxlamo Jos Paulo Netto te ToxlcomMil Jandtr Masrr Morte Jos Lull de Soua Ma ranhlo 151 Ito Eventdo G Rocha 152 Edso Pas oIlI153 otdm to Suannes Processos de Ensino e Aprendizagem em Língua Portuguesa Aula 7 LITERATURA E PRÁTICA PEDAGÓGICA 26 de maio de 2020 Profª Cristina Prates Texto 1 ENSINAR LITERATURA PARA QUÊ 1 Paulo Franchetti 1 Disponível em httpdesenredosdominiotemporariocomdoc03ensaioliteratura Franchettipdf Universidade Estadual de Campinas UNICAMP Instituto de Estudos da Linguagem IEL Instituiçãosede da última proposta de pesquisa País de origem Brasil Paulo Franchetti 1953 formouse em Letras PortuguêsFrancês na UNESP campus de Araraquara 1975 Mestre em Teoria Literária pela Unicamp 1981 doutor em Letras pela Universidade de São Paulo 1992 e Livre Docente pela Unicamp 1999 desde 2004 foi Professor Titular da Universidade Estadual de Campinas Unicamp De 2002 a 2013 dirigiu a Editora da Unicamp presidindo seu conselho editorial Aposentouse em 17 de março de 2015 É bolsista nível 1B do CNPq Atua na área de Letras com ênfase em Teoria Literária Literatura Brasileira dos séculos XIX e XX e Literatura Portuguesa do século XIX Parte de sua produção se encontra reunida no blog wwwpaulofranchettiblogspotcombr Fonte Currículo Lattes Questões o que se ensina quando se ensina literatura o que se aprende quando se estuda literatura Possível resposta ênfase na literatura como forma de conhecimento de outra coisa como de história filosofia arte língua culta psicologia Assim a literatura poderia ser estudo das paixões e dos movimentos do espírito veículo de educação e de difusão de modos de comportamento adequados cristalização de modelos de língua culta acesso ao diferente a outros ambientes sociais outros tempos o romance histórico ou o de atualidade de outro período quando lido hoje outras formas de o homem se relacionar com a palavra outros costumes enfim RESPOSTA DO AUTOR Não resta dúvida de que a literatura pode ser lida em busca desse tipo de conhecimento mas isso garantiria por si só o interesse de mantêla como matéria curricular Não creio Ler um romance ou um poema ou uma peça de teatro é mais do que obter conhecimento objetivo E qual seria então o diferencial da literatura para que ela mereça ser objeto de um grande investimento social como é a sua inserção no currículo escolar Deslocamento Literatura como Arte promove um deslocamento da perspectiva um entregarse a tudo que se move no texto Esse deslocamento esse mergulhar no texto na vivência dos sentimentos e das paixões que ele expõe faz da literatura uma forma eficaz de convencimento de moldagem de opiniões Romance Nosso espírito se cola às palavras e pode experimentar integralmente aquilo que nelas se desenvolve Nós nos colocamos na posição das personagens julgamos as suas ações repudiamos ou aprovamos o seu comportamento nos identificamos ou sentimos repugnância pelos seus movimentos morais espirituais Não há um interesse particular LITERATURA ARTE DA PALAVRA Por depender só da palavra a literatura na verdade tem uma força que as artes combinadas não possuem ESPAÇO DA IMAGINAÇÃO Ela abre um espaço enorme à projeção do leitor De fato tudo depende da sua imaginação a forma de um rosto por mais pormenorizadamente descrita que seja é uma para cada leitor Assim também o tom da voz de uma personagem uma paisagem um ruído da guerra o som de um grito ou de um encontro amoroso Pelo som das palavras se erguem as personagens as exclamações as imagens de um poema o ritmo dos eventos de uma peça ou de uma novela Como ideia se ergue na mente do leitor a mulher amada o filho ingrato o prado florido a fábrica insalubre enfim o mundo das coisas e das emoções Ex ilustração de um livro ou adaptação de um livro para filme Os olhos de Capitu não pensamos que ela tem mãos Nem que tenha pés Nem que vestido ela estaria usando Muito menos somos compelidos a lidar com outras particularidades como brincos cor precisa do cabelo maquiagem etc Não há mais nada senão as imagens que se juntam para dar ideia daqueles olhos Essa magia se quebra quando se filma ou se desenha Capitu com traço realista todas as coisas não nomeadas no texto do Machado partes do rosto do corpo do ambiente vêm junto com os olhos empanam o seu brilho enfraquecem a sua força ESPAÇO DA LEITURA O leitor por acaso o decifra palavra por palavra Não por certo Ele voa sobre elas buscando ao mesmo tempo o sentido do conjunto e o tom do trecho e do livro Leitura conjunto complexo de habilidades Entender se uma passagem é dita em tom irônico ou em tom jocoso Precisa perceber os sentidos que se formam além das passagens pela alusão a eventos históricos a outros textos a costumes Precisa perceber o ritmo das frases e a justeza ou o inusitado das imagens na poesia tanto quanto na prosa LITERATURA E CULTURA Relação da cultura com o passado de continuidade de ponte a transcender os limites do tempo e as formas da sensibilidade do presente relação com o passado de continuidade de ponte a transcender os limites do tempo e as formas da sensibilidade do presente LITERATURA continuidade ou a oposição ao passado O passado é que dá sentido ao presente da literatura Uma obra solta no tempo não tem significação literária SIGNIFICAÇÕES E CONTEXTO O leitor precisa conhecer o passado os seus monumentos se puder reconhecer a alusão a intertextualidade ou a citação O PASSADO E A LITERATURA A literatura redimensiona o passado que é lido pelo presente O olhar do presente percorre o panorama do passado e ali vê o que estava apagado ou não potencializado A importância da influência na obra dos autores a tradição a continuidade é um dos elementos de significação mais importantes da literatura O Surrealismo que descobriu precursores em pintores que nada tinham de surrealistas A influência de Sousândrade na obra dos poetas concretos A literatura é uma forma uma forma de nos apropriarmos do passado de nos colocarmos como seus herdeiros A literatura fala pelo passado e faz o passado falar pelo presente Literatura um dos elementos principais da civilização que é a continuidade a herança e a atualização do passado no presente Entre todas as artes foi a literatura a que mais se identificou com o conceito de cultura de civilização e de nacionalidade Através da literatura o leitor compreende que nada é natural mas sim cultural Ensinar literatura portanto em sentido amplo é criar as condições para que o estudante o leitor em formação possa tornarse ele também um herdeiro desse manancial da cultura da civilização e da nacionalidade O QUE APRENDEMOS COM A LITERATURA Aprendemos a relativizar as certezas a contemplar o leque das possibilidades de realização e das limitações à realização humana ao longo do eixo temporal ou espacial A literatura ensina a historicidade das formas de sensibilidade convocando o que permanece ainda vivo em nós e o que já não permanece o que nos rege desde o mundo dos mortos porque ainda é vivo e o que nos rege desde lá sem nenhuma razão para isso POR QUE A LITERATURA MERECE SER ESTUDADA E ENSINADA Por ser um fator de civilização uma forma privilegiada de convívio com o passado e com a tradição que fala em nós e por nós COMO A LITERATURA NÃO DEVERIA SER ENSINADA Quando se abandona o seu investimento estético A literatura não pode ser apenas um documento da história da sociologia linguística da geografia da política da economia Quando enclausuramos uma obra dentro de uma estética literária Ex Dom Casmurro Se o leitor de Dom Casmurro por exemplo não deu conta da amargura do ciúme se não percorreu o caminho da angústia e não descobriu a ponta de loucura ou a miséria moral do narrador se não se divertiu ou se admirou com a profusão de referências cultas que enxameiam a prosa de Bento Santiago terá mesmo lido literariamente o livro CONSTATAÇÃO DO AUTOR EM RELAÇÃO AO ENSINO DA LITERATURA A literatura é uma das fontes principais do vínculo com o passado e da sua projeção no futuro uma das formas de tornar o presente menos prisioneiro de si mesmo e da dose de cegueira que acomete cada época quando olha para si mesma Por isso mesmo julgo que haja muita relevância na nossa função de ensinar literatura especialmente aos jovens APELO DO AUTOR PARA OS PROFESSORES DE LITERATURA É preciso ter em mente a complexidade do que precisa ser feito para construir uma verdadeira educação literária Ou seja o apelo é para que não nos curvemos à ignorância dos que não têm essa formação e não compreendem o que dela pode advir e sim que resistamos a eles mostrando com o nosso exemplo de leitores o que é ser educado em literatura e como isso é uma fonte de conhecimento e de prazer e sobretudo para que não barateemos o nosso trabalho para que não tornemos a literatura apenas um veículo para outros conhecimentos ou um campo desinteressante de discurso sobre de definições e classificações vazias que tentam em vão substituir ou anular a vivência e a complexidade da leitura Textos para leitura Letramento Literário uma proposta para a sala de aula Renata Junqueira de Souza e Rildo Cosson Disponível em httpsacervodigitalunespbrbitstream12345678940143101d16t08pdf Letramento literário em círculos de leitura na escola Cleonice de Moraes Evangelista Leão e Dalma Flávia Barros Guimarães de Souza Palimpsesto Rio de Janeiro n 21 p 42741 juldez 2015 Disponível em httpswwwe publicacoesuerjbrindexphppalimpsestoarticleview35126 Literatura modos de ler na escola Rildo Cosson Disponível em httpseditorapucrsbranaisXISemanaDeLetraspdfrildocossonpdf Formação de leitores a questão dos cânones literários Graça Paulino Disponível em httpswwwresearchgatenetpublication26465043Formacaodeleitoresa questaodoscanonesliterarios Literatura possíveis diálogos Maria Cristina Prates Fraga Disponível em httpwwwabralicorgbreventoscong2008AnaisOnlinesimposiospdf009MA RIAFRAGApdf Literatura poética e humanização Cristina Prates Disponível em httpwwwfilologiaorgbrxxicnlfcnlfcnlf03065pdf 2013 Literatura infantojuveniL Prof Abraão Junior Cabral e Santos ProfªJackeline Maria Beber Possamai Profª Joseni Terezinha Frainer Pasqualini Copyright UNIASSELVI 2013 Elaboração Prof Abraão Junior Cabral e Santos ProfªJackeline Maria Beber Possamai Profª Joseni Terezinha Frainer Pasqualini Revisão Diagramação e Produção Centro Universitário Leonardo da Vinci UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI Indaial 0285 S237l Santos Abraão Junior Cabral e Literatura infantojuvenil Abraão Junior Cabral e Santos Jackeline Maria Beber Possamai Joseni Terezinha Frainer Pasqualini Indaial Uniasselvi 2013 175 p il ISBN 9788578307103 1 Literatura infantojuvenil I Centro Universitário Leonardo da Vinci Impresso por III apresentação Caroa acadêmicoa Neste Caderno de Estudos esperamos mediar o encontro da literatura com questões que possam auxiliar sua prática pedagógica bem como fixar aprofundar estabelecer relações e dar continuidade aos estudos iniciados com a disciplina de Teoria Literária e principalmente que ao término dessa disciplina você possa perceber a importância da literatura na sala de aula e na vida do indivíduo A literatura é conhecimento produzido historicamente objeto de interrogação dúvida e pesquisa Civiliza educa e humaniza na medida em que sugere melhores formas de vida e se constitui como exercício de liberdade inquietação crescimento e perplexidade Neste Caderno de Estudos chamamos a atenção para o fato de que muitas vezes a literatura é metodicamente submetida a rotinas padronizadas perdendo seu sentido mais profundo Tornase mera soma de palavras e frases concebida como um sentido preestabelecido ou seja os alunos leem somente para transcrever recursos estilísticos para estudar análise sintática procurar palavras no dicionário estudar normas gramaticais e aprender modelos de conduta moral Esta última muito enfatizada na escola sobretudo na literatura infantil apresenta textos somente com o intuito de que as crianças assimilem padrões de conduta adequada à ordem social Essas práticas podem ser fator decisivo e determinante para o distanciamento da literatura A literatura infantojuvenil é um aparato facilitador para despertar o prazer da leitura e deveria ocupar lugar de destaque no cotidiano escolar e familiar O desafio é incentivar a dimensão prazerosa lúdica e estética da literatura e ainda por meio dela proporcionar que o leitor se depare com sentidos e identificações do lido explorandoos aprendendo sobre os medos angústias lutas coragem amor e o mundo que o cerca Para tanto é imperativo que o professor avalie e reflita entendendo sua intenção primeira suscitar e despertar o gosto pela leitura A necessidade da literatura em sala de aula é algo incontestável Em especial neste espaço privilegiado pela possibilidade de apresentação e interação do texto literário pois contribui para a ampliação de conhecimentos permite a interpretação do mundo como um texto universal e a percepção de sua complexidade Ainda nessa perspectiva expande e reforça a ideia de que cada indivíduo é sujeito e agente de sua própria história Na sala de aula deve existir muita leitura de vários gêneros literários a fim de que o aluno possa melhor refletir compreender problematizar IV e questionar os textos lidos fazendo uso de sua criticidade e também da habilidade em lidar com as regras estabelecidas para a leitura Ler significa aprender a produzir sentidos inseridos em um tempo e em um espaço tornando o exercício de leitura ativo Não temos a pretensão caroa acadêmicoa de esgotar as reflexões sobre a literatura infantojuvenil mas esperamos colaborar para apontar questões teóricas e práticas o que sem dúvida alguma contribuirá para sua postura frente à literatura em sala de aula Bons estudos e sucesso em sua vida acadêmica Prof Abraão Junior Cabral e Santos Profa Jackeline Maria Beber Possamai Profa Joseni Terezinha Frainer Pasqualini Você já me conhece das outras disciplinas Não É calouro Enfim tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano há novidades em nosso material Na Educação a Distância o livro impresso entregue a todos os acadêmicos desde 2005 é o material base da disciplina A partir de 2017 nossos livros estão de visual novo com um formato mais prático que cabe na bolsa e facilita a leitura O conteúdo continua na íntegra mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto aproveitando ao máximo o espaço da página o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel por exemplo Assim a UNIASSELVI preocupandose com o impacto de nossas ações sobre o ambiente apresenta também este livro no formato digital Assim você acadêmico tem a possibilidade de estudálo com versatilidade nas telas do celular tablet ou computador Eu mesmo UNI ganhei um novo layout você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos para que você nossa maior prioridade possa continuar seus estudos com um material de qualidade Aproveito o momento para convidálo para um batepapo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes ENADE Bons estudos UNI V Olá acadêmico Para melhorar a qualidade dos materiais ofertados a você e dinamizar ainda mais os seus estudos a Uniasselvi disponibiliza materiais que possuem o código QR Code que é um código que permite que você acesse um conteúdo interativo relacionado ao tema que você está estudando Para utilizar essa ferramenta acesse as lojas de aplicativos e baixe um leitor de QR Code Depois é só aproveitar mais essa facilidade para aprimorar seus estudos UNI Olá acadêmico Você já ouviu falar sobre o ENADE Se ainda não ouviu falar nada sobre o ENADE agora você receberá algumas informações sobre o tema Ouviu falar Ótimo este informativo reforçará o que você já sabe e poderá lhe trazer novidades Vamos lá Qual é o significado da expressão ENADE EXAME NACIONAL DE DESEMPENHO DOS ESTUDANTES Em algum momento de sua vida acadêmica você precisará fazer a prova ENADE Que prova é essa É obrigatória organizada pelo INEP Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira Quem determina que esta prova é obrigatória O MEC Ministério da Educação O objetivo do MEC com esta prova é o de avaliar seu desempenho acadêmico assim como a qualidade do seu curso Fique atento Quem não participa da prova fica impedido de se formar e não pode retirar o diploma de conclusão do curso até regularizar sua situação junto ao MEC Não se preocupe porque a partir de hoje nós estaremos auxiliando você nesta caminhada Você receberá outros informativos como este complementando as orientações e esclarecendo suas dúvidas Você tem uma trilha de aprendizagem do ENADE receberá emails SMS seu tutor e os profissionais do polo também estarão orientados Participará de webconferências entre outras tantas atividades para que esteja preparado para mandar bem na prova ENADE Nós aqui no NEAD e também a equipe no polo estamos com você para vencermos este desafio Conte sempre com a gente para juntos mandarmos bem no ENADE VII UNIDADE 1 CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA 1 TÓPICO 1 O ADULTO VERSUS A CRIANÇA QUAL O MODELO 3 1 INTRODUÇÃO 3 2 ASSIMETRIA ENTRE MATURIDADE E INFÂNCIA 4 3 O PENSAMENTO FELIZ ENTRE O LÚDICO E O LÚCIDO 9 LEITURA COMPLEMENTAR 14 RESUMO DO TÓPICO 1 16 AUTOATIVIDADE 17 TÓPICO 2 A LITERATURA ENTRA NO JOGO 19 1 INTRODUÇÃO 19 2 A ARTE E A PALAVRA 19 3 A LITERATURA COMO FONTE HUMANIZADORA 24 RESUMO DO TÓPICO 2 31 AUTOATIVIDADE 32 TÓPICO 3 CARACTERÍSTICAS DA LINGUAGEM LITERÁRIA 33 1 INTRODUÇÃO 33 2 O LITERÁRIO ASPECTOS QUE O DEFINEM 33 3 O TEXTO LITERÁRIO E O TEXTO NÃO LITERÁRIO 37 RESUMO DO TÓPICO 3 41 AUTOATIVIDADE 42 UNIDADE 2 A LITERATURA INFANTIL FONTE DE EMOÇÕES 43 TÓPICO 1 ASPECTOS DA LITERATURA INFANTIL 45 1 INTRODUÇÃO 45 2 OS TEXTOS DESTINADOS AO JOVEM LEITOR 46 3 A LITERATURA INFANTIL UM POUCO DE HISTÓRIA 47 31 PANORAMA DA LITERATURA INFANTIL BRASILEIRA 51 RESUMO DO TÓPICO 1 57 AUTOATIVIDADE 58 TÓPICO 2 GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA ESTRUTURA I 61 1 INTRODUÇÃO 61 2 AS NARRATIVAS E O ESTILO 61 3 NARRATIVAS O CONTO 64 31 OS CONTOS DE FADA 65 4 O PODER DOS CONTOS NA CONTEMPORANEIDADE 68 RESUMO DO TÓPICO 2 72 AUTOATIVIDADE 74 sumário VIII TÓPICO 3 GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA ESTRUTURA II 77 1 INTRODUÇÃO 77 2 A COMPOSIÇÃO DOS TEXTOS LITERÁRIOS 77 21 A AÇÃO 79 22 AS FALAS NA NARRATIVA 80 23 O ESPAÇO 84 24 O TEMPO 85 3 A PERSONAGEM E SEUS ASPECTOS 85 31 A FÁBULA 89 32 A LENDA 90 33 A PARÁBOLA 92 34 A PARLENDA 92 35 O ROMANCE 94 4 LEITURA E A DIMENSÃO COGNITIVA 95 LEITURA COMPLEMENTAR 98 RESUMO DO TÓPICO 3 102 AUTOATIVIDADE 104 UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA 105 TÓPICO 1 O DIVERTIDO PRAZER DE LER 107 1 INTRODUÇÃO 107 2 A SALA DE AULA QUE TEXTOS ESCOLHER 107 3 INVERTENDO A TRADIÇÃO 112 RESUMO DO TÓPICO 1 114 AUTOATIVIDADE 115 TÓPICO 2 A RELAÇÃO LIVRO E A CRIANÇA 117 1 INTRODUÇÃO 117 2 A RECEPÇÃO DO LIVRO INFANTIL 117 3 A IMAGEM LUGAR ESPECIAL 122 RESUMO DO TÓPICO 2 131 AUTOATIVIDADE 132 TÓPICO 3 EXPLORANDO OS GÊNEROS INFANTIS 133 1 INTRODUÇÃO 133 2 LEITURA DO MUNDO A LITERATURA 134 3 A DESCOBERTA DA POESIA 144 31 O TEATRO 149 4 AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS 156 LEITURA COMPLEMENTAR 159 RESUMO DO TÓPICO 3 162 AUTOATIVIDADE 163 REFERÊNCIAS 165 1 UNIDADE 1 CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS Esta unidade tem por objetivos refletir sobre a assimetria entre o adulto e a criança identificar possíveis conceitos atribuídos à literatura diferenciar um texto literário de um texto não literário refletir sobre as funções da literatura Esta unidade está dividida em três tópicos Ao final de cada um deles você encontrará atividades visando à compreensão dos conteúdos apresentados TÓPICO 1 O ADULTO VERSUS A CRIANÇA QUAL O MODELO TÓPICO 2 A LITERATURA ENTRA NO JOGO TÓPICO 3 CARACTERÍSTICAS DA LINGUAGEM LITERÁRIA VI 3 TÓPICO 1 UNIDADE 1 O ADULTO VERSUS A CRIANÇA QUAL O MODELO 1 INTRODUÇÃO Prezadoa acadêmicoa nesse tópico você entrará em contato com algumas teorias e discussões em torno das quais importantes relações se estabelecem entre arte e infância Para tanto não só o presente texto quanto os demais tópicos desta unidade estão construídos de modo a possibilitarlhe não apenas tecer considerações acerca da temática em questão como também em ajudáloa a colher implicações que em alguma medida possam auxiliáloa a melhor observar refletir e posteriormente opinar sobre a realidade da literatura infantojuvenil no contexto atual das instituições de ensino Assim observaremos primeiro o quanto a construção da nossa civilização escolarizada se deveu ao aprisionamento de nossa gestualidade espontânea que em sua origem marcava não um divórcio mas uma identidade entre o lúdico e os afazeres cotidianos que acabaria sendo amordaçada pelo pensamento racional o qual ao fazer prevalecer os pontos de vista do adulto acabaria por normatizar diversas instituições sociais como a escola e a literatura destinada à criança Em seguida verificaremos o lugar do pensamento lúdico na atualidade seja a partir da relação assimétrica que socialmente se constrói entre a magia infantil e a lógica do indivíduo adulto seja segundo a aparente evolução da consciência mítica em direção à racionalidade pragmática que nesse percurso desfazse do caráter mágico inerente ao lúdico Ora há de se constatar que essa aparente evolução da racionalidade rumo a formas de expressão mais refinadas não deveria descartar o poder mágico presente nas manifestações literárias já que elas surgem como formas artísticas calcadas no pensamento mítico e em atividades lúdicas praticadas desde o aparecimento de nossa espécie e até hoje consolidadas como formas significativas de revelação do real UNIDADE 1 CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA 4 2 ASSIMETRIA ENTRE MATURIDADE E INFÂNCIA Quando guri eu tinha de me calar à mesa só as pessoas grandes falavam Agora depois de adulto tenho de ficar calado para as crianças falarem QUINTANA 1979 p 28 Você se lembra de como no tempo em que você era pequenininho seus pais ou parentes mais próximos reagiam às brincadeiras ou às traquinagens das crianças de sua geração Lembra ademais que tipo de expressões ou formas de linguagem eles utilizavam em tais momentos quer fosse para elogiar essas mesmas ações quer fosse para censurálas ou no pior dos casos para reprimilas Nessas situações você também deve lembrar que de modo semelhante à maneira como os adultos de antigamente nos tratavam nós não porque verdadeiramente o sejamos mas tão somente porque agora ocupamos o lugar destinado a quem deve ser o mais sábio ou o mais forte diante da criança em geral sentenciamos escute a voz da razão você precisa aprender a crescer tenha juízo siga quem tem mais experiência do que você etc expressões que demarcam claramente o lugar de quem manda e em contrapartida o lugar destinado a quem deve obedecer Caro acadêmicoa para aprofundarmos essa reflexão sobre as relações entre maturidade e infância seria interessante você parar por alguns instantes e fazer um pequeno exercício de memória Primeiro tente identificar quais expressões eram utilizadas pelos adultos no tempo em que você era criança e que ainda lhe soam familiares em seguida observe as expressões que você emprega hoje em dia ao tratar com as crianças da atual geração Caso tenha conseguido identificálas anote algumas dessas expressões no diagrama a seguir e em sala de aula troque suas experiências com as dos colegas Ora uma das possíveis consequências de tal exercício é que a partir da experiência pessoal podemos constatar que essas expressões não só revelam mas simultaneamente contrapõem dois modos distintos de se perceber e experimentar a existência a saber um primeiro modo geralmente considerado irracional por vezes pueril e inerente a quase todo indivíduo que se encontre na fase transitória TÓPICO 1 O ADULTO VERSUS A CRIANÇA QUAL O MODELO 5 da infância e em um segundo modo considerado harmônico equilibrado e característico não apenas do indivíduo adulto mas através dele se estabelecendo como parâmetro ou modelo para pautar a existência e as atitudes de qualquer ser humano independente da faixa etária em que ele se encontre Segundo o Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa o vocábulo Assimetria referese a um substantivo feminino enquanto a palavra Assimétrico referese a um adjetivo ambos os termos designando ausência de simetria que não tem simetria dessimetria dissimétrico UNI É o que também sustenta Bettelheim 2007 p 9 quando ao valerse de um viés do discurso psicanalítico busca compreender quais práticas culturais ou ações educativas seriam mais adequadas a operar a passagem da fase infantil para a fase adulta Assim ao defender a utilização do repertório dos contos de fadas tradicionais como modelo predominante na educação familiar acaba depondo em favor da hierarquia assimétrica que tem predominado nas relações entre maturidade e infância Somente na idade adulta uma compreensão inteligente do significado de nossa existência neste mundo pode ser obtida de nossa experiência nele Infelizmente muitos pais querem que as mentes dos filhos funcionem como as suas como se uma compreensão madura de nós mesmos e do mundo e nossas ideias sobre o significado da vida não tivessem que se desenvolver tão lentamente quanto nossos corpos e mentes Hoje como no passado a tarefa mais importante e também mais difícil na criação de uma criança é ajudála a encontrar significado na vida BETTELHEIM 2007 p 10 grifo nosso Dessa forma ainda que o autor reconheça o encontrar significado para a vida como um dos eixos da condição existencial de qualquer indivíduo não importa em que faixa etária este se encontre Bettelheim não deixa de corroborar com a existência de dois pontos de vista assimétricos dos quais acaba por optar ainda que implicitamente pela perspectiva do adulto cujo equilíbrio e maturidade deve progressivamente orientar o olhar equivocado e fantasioso da criança A criança à medida que se desenvolve deve aprender passo a passo a se entender melhor com isso tornase mais capaz de entender os outros e eventualmente pode se relacionar com eles de forma mutuamente satisfatória e significativa Com respeito a essa tarefa nada é mais importante que o impacto dos pais e das outras pessoas que cuidam da criança em segundo lugar vem a nossa herança cultural quando transmitida à criança de maneira correta BETTELHEIM 2007 p 10 grifo nosso UNIDADE 1 CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA 6 Mais adiante constatará Magalhães 1984 apud ZILBERMAN 1984 essa transmissão idealizada de normas propalada tanto pelas instituições tradicionais quanto pelos comportamentos e atitudes maduras dos adultos visaria transformar a criança em um adulto pacificado ou melhor dizendo em um indivíduo capaz não apenas de conter por meio de ponderações racionais suas inquietações como também de responder a eventos imprevistos de uma maneira educada e lógica E aqui se situa a contradição da preocupação educativa na transmissão de normas o objeto das tarefas pedagógicas é um sujeito ideal membro de uma sociedade que se espera construir um dia graças à transmissão de padrões vigentes que não conseguiram concretizar a ordem social almejada À caça do sonho todos os conceitos pedagógicos estão voltados para a criança no sentido de dizer no que ela deve se tornar O objetivo da pedagogia só será atingido se ela conseguir realizar um sujeito senhor de sua própria linguagem e de seus atos dirigido pela razão e pela lógica sujeito do consciente e destituído de conflito MAGALHÃES In ZILBERMAN 1984 p 43 A partir das observações anotadas até aqui você consegue imaginar o quanto esse modo assimétrico de relação que se estabelece entre a criança e o adulto pode ir muito além da relação familiar adentrando quase todas as esferas de convívio social Percebe também que como uma regra geral quase sempre se dá a primazia do segundo modo de existência sobre o primeiro fazendo predominar os valores e os pontos de vista dos adultos IMPORTANTE Portanto não havia nada de acidental no fato de Platão 1999 conceber em sua República ideal que ademais serviria de modelo para se pensar dentro dos padrões da civilização ocidental a arte pois o processo adequado de aquisição e transmissão do conhecimento deveria se pautar prioritariamente pelo pensamento racional o que implicava reconhecer que os sentimentos as emoções as experiências lúdicas e as formas míticas de compreensão do mundo que são inerentes tanto ao saber artístico quanto à infância se firmariam sobre as aparências das coisas e consequentemente só poderiam fornecer um saber equivocado da realidade Ora sabemos que desde a Grécia antiga o único espaço em que se conseguiu fazer convergir essas duas ordens aparentemente antagônicas a saber o pensamento lúcido e racional do adulto e o pensamento lúdico e espontâneo da criança foi não propriamente a escola mas sim a obra de arte Esta onde quer que seja pensada como mais adiante veremos no caso da literatura infantojuvenil vinculase a formas de compreensão da realidade que não se pretendem absolutamente verdadeiras ou universais tal como o fazem os saberes científicos e a especulação filosófica mas ao contrário por admitir sua própria parcialidade acaba comportando pontos de vista particulares subjetivos guardando assim um estreito parentesco com as formas como as crianças movidas pela admiração e pela fantasia lidam nomeiam e inventam a sua realidade presente TÓPICO 1 O ADULTO VERSUS A CRIANÇA QUAL O MODELO 7 Para Platão haveria dois mundos intercomunicáveis através da mímesis cópia ou representação o mundo das ideias perfeito habitado pelos deuses e onde residiria a verdade e em contrapartida o mundo sensível material precário e imperfeito da existência humana A tarefa do filósofo consistia em desvendar o mundo sensível aparente e falso em proveito da inteligibilidade do mundo das ideias Assim no capítulo X do livro A República o filósofo através da metáfora da cama e do pintor desqualifica o artista e a obra de arte primeiro haveria a cama idealizada possível no mundo das ideias e portanto perfeita depois a cama feita pelo marceneiro que seria uma cópia precária da cama ideal do mundo das ideias por último teríamos a cama do pintor que imita a cama do marceneiro que por sua vez já havia imitado a cama do mundo das ideias portanto uma cópia de uma outra cópia Dessa forma a cama pintada pelo artista seria a imitação mais falsa de todas e por esse motivo através da hierarquia mimética o artista e seu falso saber não deveriam participar da República UNI Você deve concordar que ainda nos dias atuais é a escola e não a obra de arte o principal espaço encarregado de transmitir e redimensionar a herança cultural entre gerações Se assim o for também poderemos concordar que a sua evolução na história se daria conforme a escola na contramão do pensamento platônico não mais recusasse o saber apreendido pelas sensações pelas emoções e pela imaginação e passasse a adquirir características de uma obra de arte desfazendose portanto dos modelos ideológicos vigentes que mantinham a compreensão equivocada de que a infância fosse apenas uma fase aberta a toda sorte de fantasia crença no maravilhoso e em distorções da realidade palpável Antes de prosseguirmos nessa linha de raciocínio que tal fazermos uma pequena reflexão Pense após tanto tempo inseridos nesse paradigma cultural advindo do platonismo que inicialmente se baseava na abstração da existência corporal e no pensamento racional e que foi posteriormente acrescido de valores econômicos e burgueses como o pragmatismo e a utilidade e que enfim afetariam os modos de se pensar a educação e as concepções formais e informais de ensino por vários séculos você acredita que esse modelo já estaria superado Façamos então um breve exercício vamos ler um dos excertos literários de Mário Quintana O velho e o acaso que versa sobre a temática em questão para em seguida opinar O velho mendigo que neste momento acaba de encontrar num monte de sucata a lâmpada de Aladino tão amassada tão enferrujada e de feitio tão esquisito eis que ele a abandona e leva em vez dela uma útil chaleira Uma chaleira sem tampa digo eu para os que gostam de pormenores E não é esta a primeira vez que o acaso inocentemente assim estraga uma bela história QUINTANA 1979 p 5 UNIDADE 1 CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA 8 AGORA PENSE E RESPONDA Para você o mendigo em questão teria agido coerentemente Dito de outro modo em seu lugar você também teria optado pela chaleira ao invés da lamparina Por quê Vivemos de tal maneira enraizados no universo lógico do adulto que em nada nos estranharia se pensarmos a partir da parábola literária de Quintana se algum de nós mesmo que se tratasse de um mendigo decidisse recolher a velha chaleira sem tampa posto nela ainda haver alguma serventia mas jamais uma inútil lamparina largada em um amontoado de lixo e se esta fosse a opção frequentemente tomada então ela nos levaria a reconhecer que tal atitude referendaria o socialmente aceito quer dizer a maneira como vivemos o que já está consagrado pelo senso comum Assim em um gesto aparentemente banal como esse de modo consciente ou não mostramonos sempre aptos a referendar atitudes orientadas pelo paradigma racional da utilidade e em contrapartida caso alguma escolha repousasse sobre a velha lamparina essa outra atitude já que imprevisível seria provavelmente considerada infantil delírio de um sonhador ou até mesmo taxada como sintoma de desequilíbrio emocional De certa forma tal constatação levarnosia a reconhecer que somente na infância e nesse sentido devese estender o conceito de infância para além de uma mera etapa cronológica ou seja para toda criança que permanece viva em nós por ainda nos sentirmos capazes de magia seríamos capazes de recolher em sua face dupla a lâmpada encantada de Aladim FIGURA 1 RETRATO III JOAN MIRÓ FONTE Disponível em httpwwwbibliofiliaentreparentesis blogspotcom Acesso em 10 ago 2012 TÓPICO 1 O ADULTO VERSUS A CRIANÇA QUAL O MODELO 9 Dito de outro modo e eis um lance de dados da esperança há uma infância que se mantém viva independente da faixa etária em que nos encontremos como bem se exemplifica no trabalho singular do artista tal como se vê na parábola literária de Mário Quintana ou na feliz conjunção de infância e maturidade visualmente presente na tela de Joan Miró mais acima 3 O PENSAMENTO FELIZ ENTRE O LÚDICO E O LÚCIDO Li há tempos que num desses exóticos países do Oriente que um engenheiro inglês queria convencer o respectivo xá ou qualquer título que tivesse que em nome do progresso era urgente a construção de uma estrada de ferro E findou assim seu arrazoado A estrada de ferro fará com que em vez de trinta dias a lombo de camelo a viagem da capital à fronteira seja apenas de um dia Mas objetou o soberano o que é que vamos fazer dos vinte e nove dias que sobram QUINTANA 1979 p 1 Uma vez que pudemos constatar a presença marcante de uma relação assimétrica entre a infância e a maturidade inicialmente gestada no convívio familiar para depois desdobrarse em outras esferas sociais restanos refinar tanto um referencial teórico quanto estratégias pedagógicas que ajudassem a minimizar mais especificamente a partir de um ponto de vista literário os efeitos dessa tradição cultural assentada sobre a diferença hierárquica do adulto sobre a criança que sem nos darmos conta atravessa nossos gestos mais banais e cotidianos Em geral observase que o conhecimento mítico da realidade particularmente característico do imaginário infantil e assaz presente no trabalho dos artistas por não manter o pensamento congelado em ideias explicativas passa a ser encarado não como uma fonte possível de verdade que tivesse uma lógica própria mas ao contrário passa a ser visto como etapa transitória em direção a formas mais elevadas de reflexão que no mundo ocidental desde o ideal da república platônica deveriam levar aos ditames da consciência racional Platão que talvez tenha compreendido aquilo que forma a mente humana melhor do que alguns de nossos contemporâneos que querem suas crianças expostas apenas a pessoas reais e a acontecimentos do dia a dia sabia o quanto as experiências intelectuais contribuem para a verdadeira humanidade Ele sugeriu que os futuros cidadãos de sua república ideal começassem a educação literária com a narração de mitos em lugar de meros fatos ou dos assim chamados ensinamentos racionais BETTELHEIM 2007 p 51 Ora se o próprio Platão chegaria a admitir a narração de mitos tão necessária à criança e tão característica do fazer literário como um modo ainda que provisório de compreensão da realidade é porque ele também estava reconhecendo que a abordagem mítica da existência que acessa o real por meio UNIDADE 1 CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA 10 do lúdico e da fantasia mantendose aberto a um jogo de significações incessantes conteria um modo de consciência não apenas provisório mas também imprescindível à elaboração do próprio real É assim que antes de desenvolvermos a capacidade intelectual de expressar conhecimento por meio da ordem do cálculo e do que pode ser demonstrado com clareza que prioritariamente caracterizam a razão científica e a especulação filosófica a primeira forma de racionalidade que nos aparece está ainda fortemente impregnada por uma compreensão mágica e sobrenatural dos fenômenos a qual por não poder ser logicamente comprovada expressaria para uma cultura extremamente racional como a nossa apenas visões comunitárias primitivas ou formas arcaizantes de compreensão da realidade Você consegue se lembrar de alguns relatos não científicos que os adultos costumam dar às crianças para explicar determinados fenômenos da natureza Por exemplo que na tradição cristã as chuvas e os trovões seriam causados por uma faxina que São Pedro estaria fazendo no céu A chuva corresponderia ao momento em que ele joga a água no chão do céu e o trovão derivaria de algum tropeço como quando o santo arrastasse ou derrubasse alguma cadeira Lembra se de histórias similares a esta que apresentam uma forma mítica de compreensão da realidade Anoteas no diagrama a seguir Ora mas é justamente nessa forma infantil de racionalidade ou seja a consciência mítica que se expressa muito mais do que uma incoerência ou falta metodológica pois é dela que pode advir um saber portanto inacessível à racionalidade lógica seja através de narrativas ficcionais que revelam mundos paralelos seja por intermédio de ritos que apreendem manifestações provisórias da existência dos seres a sutil passagem entre o humano e o não humano Esses saberes de certo modo inapreensíveis à consciência racional estão presentes na arte e no pensamento infantil através da consciência mítica que de modo exemplar frequenta as histórias ficcionais e a invenção do maravilhoso aí se revelando não só como formas de compensação às verdades dolorosas atestadas pela racionalidade compensação que Aristóteles no livro Poética nomearia como a catarse promovida pela obra de arte que nos faz experimentar por instantes fingindo ser verdade o que de fato um dia será tal como a consciência paralisante de nossa morte mas sobretudo perpetuando um poder mágico que razão nenhuma até agora conseguiu desmontar TÓPICO 1 O ADULTO VERSUS A CRIANÇA QUAL O MODELO 11 Caroa acadêmicoa você já estudou sobre a catarse aristotélica no caderno de Teoria da Literatura Entretanto vale a pena observar as acepções deste termo retiradas do Dicionário Houaiss substantivo feminino 1 na religião medicina e filosofia da Antiguidade grega libertação expulsão ou purgação do que é estranho à essência ou à natureza de um ser e que por isso o corrompe 2 Rubrica estética teatro purificação do espírito do espectador através da purgação de suas paixões esp dos sentimentos de terror ou de piedade vivenciados na contemplação do espetáculo trágico 3 Rubrica medicina evacuação dos intestinos 4 Rubrica psicanálise operação de trazer à consciência estados afetivos e lembranças recalcadas no inconsciente liberando o paciente de sintomas e neuroses associadas a este bloqueio 5 Rubrica psicologia liberação de emoções ou tensões reprimidas comparável a uma abreação 6 Rubrica psicologia efeito liberador produzido pela encenação de certas ações esp as que fazem apelo ao medo e à raiva FONTE HOUASSIS VILLAR 2009 p 422 UNI Ademais se essa forma de racionalidade primitiva que nunca desaparece completamente se desenvolve em direção a formas mais elaboradas da consciência portanto mais afastadas de nossa gestualidade espontânea da compreensão da realidade através dos jogos da experimentação infantil do lúdico enfim é porque ela se faz como ponte entre o que em nós é ainda natureza e nossa outra forma de natureza mais sofisticada cultural FIGURA 2 A DANÇA HENRI MATISSE FONTE Disponível em httphenrimatisseladansefirstversionjpg Acesso em 20 ago 2012 UNIDADE 1 CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA 12 De modo geral o mundo adulto confere ao lúdico apenas uma importância parcial secundária e temporalmente localizada em determinada etapa do desenvolvimento infantil Assim embora ela seja admitida como atividade necessária ao crescimento saudável da criança a atividade lúdica acaba por ser reduzida ao formato útil de brincadeiras e jogos destinados a promover a necessária esta sim uma função importante internalização de regras padrões e comportamentos sociais Dessa forma se estabelece uma relação do jogo com os demais fenômenos da vida ao mesmo tempo em que o marginaliza por não se inserir no conjunto de atividades práticas Eis por que o jogo é aceito como atividade infantil e como tal é estimulado contanto que não haja necessidade de a criança participar da manutenção da família MAGALHÃES In ZILBERMAN 1984 p 26 Visto dessa maneira o jogo que de um modo quase unânime é compreendido como a forma mais expressiva do ludismo infantil acaba por demonstrar a visão excludente que de modo exemplar a sociedade adulta sempre voltada para o que é útil e pragmático desde a ascensão burguesa do capitalismo mantém com a infância Com frequência o jogo é reconhecido como tendo uma função importante na vida infantil mas se espera que ao longo do processo de desenvolvimento a criança se afaste do jogo e o substitua por atividades úteis só retornando ao comportamento lúdico de forma ocasional como uma pausa recreativa MAGALHÃES In ZILBERMAN 1984 p 26 O termo lúdico advém do latim mais especificamente da palavra ludus que inicialmente significava jogo e que se associava dessa forma a movimento espontâneo à brincadeira ou ao ato simples de jogar Entretanto com a evolução da sociedade burguesa a expressão paulatinamente ampliaria sua conotação semântica de certo modo expandindo seu sentido inicial vinculado à espontaneidade em proveito do sentido de necessidade isto é como lazer compensatório em relação às atividades laborais diárias UNI Há de se concluir que o jogo tanto em sua modalidade corporal mais característica de brincadeiras marcadas ora por uma gestualidade rítmica incessante corridas competições jogos de esconder etc ora por enleios ou formas mais serenas de diversão brincadeiras de casinha jogos com bonecas passar o anel etc quanto em sua modalidade linguística como nos conhecidos jogos com palavras travalíngua etc o jogo ou o lúdico enfim afora cumprirem a tarefa ordeira de facilitar a internalização de regras sociais pela criança acabam geralmente enquadrados no papel secundário de preencher o tempo inútil e ocioso dos pequenos TÓPICO 1 O ADULTO VERSUS A CRIANÇA QUAL O MODELO 13 Há porém uma característica que apesar da ausência de uniformidade distingue qualquer tipo de jogo enquadrandoo num determinado comportamento o jogo se coloca como uma atividade marginal perante atividades como comer e trabalhar porque não é gerado por uma necessidade biológica nem por um interesse pragmático Não é uma obrigação nasce da ociosidade e com esse caráter se opõe ao que se chama de atividades sérias MAGALHÃES In ZILBERMAN 1984 p 26 Assim muito mais do que atestar o lugar do jogo e do brinquedo de criança como espécies de gestualidades pueris destinadas exclusivamente a preencher uma ociosidade gratuita e vazia esse modo adulto de compreender o lúdico como ímpeto sem direcionamento objetivo ou qualquer uso prático demarca entretanto o lugar que o lúdico reserva ao próprio adulto isto é como o lugar do lazer do descanso ou como repositor das energias consumidas em atividades úteis como o trabalho e outros compromissos sociais O adulto confere ao jogo um valor muito limitado Reconhece sua eficácia na restauração das energias gastas no trabalho e acredita no seu valor terapêutico quando a tensão do empenho produtivo se tornou excessiva MAGALHÃES In ZILBERMAN 1984 p 25 Você acadêmicoa consegue lembrar dos jogos e brincadeiras praticados na infância ou que outras crianças praticavam Você recorda também de que modo esses jogos eram vistos isto é que valor lhes eram atribuídos pelas próprias crianças e pelos adultos daquela época A partir do ponto de vista do jogo encontramos um saber comum tanto à infância quanto à verdadeira especulação filosófica Enfim muito mais do que compreender o lúdico como lugar de passagem entre a consciência mítica e a consciência racional tratase de apontar seu poder de restituição de uma atmosfera mágica capacidade de admiração de espanto diante da realidade que se faz presente no simples ato de viver no ato de admirarse com as coisas que está na raiz de toda sorte de filosofia isto é na compreensão dos dados existenciais Ademais é de importância capital assinalar a permanência do lúdico tanto na concepção quanto na fruição da obra de arte posto que ela regra geral tende a quebrar a seriedade da compreensão lógica abrindo ao menos por virtude de semelhança com o real possibilidades de se chegar a outras formas de verdade a saber não planejadas surpreendentes por vezes mágicas Vamos ler o texto Magia e Felicidade Sublinhe o que você considerou mais importante Pense na relação jogo ludicidade criança e felicidade UNIDADE 1 CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA 14 LEITURA COMPLEMENTAR MAGIA E FELICIDADE Giorgio Agamben Benjamin disse certa vez que a primeira experiência que a criança tem do mundo não é a de que os adultos são mais fortes mas sua incapacidade de magia A afirmação proferida sob o efeito de uma dose de vinte miligramas de mescalina não é por isso menos exata É provável aliás que a invencível tristeza que às vezes toma conta das crianças nasça precisamente dessa consciência de não serem capazes de magia O que podemos alcançar por nossos méritos e esforço não pode nos tornar realmente felizes Só a magia pode fazêlo Isso não passou despercebido ao gênio infantil de Mozart que em carta a Bullinger vislumbrou com precisão a secreta solidariedade entre magia e felicidade Viver bem e viver feliz são duas coisas diferentes e a segunda sem alguma magia certamente não me tocará Para isso deveria acontecer algo verdadeiramente fora do natural As crianças como os personagens das fábulas sabem perfeitamente que para serem felizes precisam conquistar o apoio do gênio da garrafa guardar em casa o burrinhofazdinheiro asino cacabaiocchi ou a galinha dos ovos de ouro E em todas as ocasiões conhecer o lugar e a fórmula vale bem mais do que esforçarse honestamente para atingir um objetivo Magia significa precisamente que ninguém pode ser digno da felicidade que conforme os antigos sabiam a felicidade à medida do homem é sempre hybris é sempre prepotência e excesso Mas se alguém conseguir dobrar a sorte com o engano se a felicidade depender não do que ele é mas de uma noz encantada ou de um abretesésamo então e só então pode realmente considerarse bem aventurado Contra essa sabedoria pueril que afirma que a felicidade não é algo que se possa merecer a moral colocou sempre sua objeção E o fez com as palavras do filósofo que menos do que qualquer outro compreendeu a diferença entre viver dignamente e viver feliz O que em ti tende ardorosamente para a felicidade escreve Kant é a inclinação o que depois submete tal inclinação à condição de que deves primeiro ser digno da felicidade é tua razão Mas de uma felicidade de que podemos ser dignos nós ou a criança em nós não sabemos o que fazer É uma desgraça sermos amados por uma mulher porque o merecemos E como é chata a felicidade que é prêmio ou recompensa por um trabalho bem feito Na antiga máxima segundo a qual quem se dá conta de ser feliz já deixou de sêlo mostrase que o estreitamento do vínculo entre magia e felicidade não é simplesmente imoral e que ele pode até ser sinal de uma ética superior A felicidade tem pois com seu sujeito uma relação paradoxal Quem é feliz não pode saber que o é o sujeito da felicidade não é um sujeito não tem a forma de uma consciência mesmo que fosse a melhor Nesse caso a magia faz valer sua exceção a única que permite a um homem dizerse ou considerarse feliz Quem sente prazer de algo por encanto escapa da hybris implícita na consciência da TÓPICO 1 O ADULTO VERSUS A CRIANÇA QUAL O MODELO 15 felicidade porque a felicidade embora ele saiba que a tenha em certo sentido não é sua Assim Júpiter que se une à bela Alcmena assumindo as feições do consorte Anfitrião não sente prazer com ela como Júpiter Nem sequer apesar das aparências como Anfitrião Sua alegria pertence totalmente ao encanto e se sente prazer consciente e puramente só com o que obteve pelos caminhos tortuosos da magia Só o encantado pode dizer sorrindo eu e só a felicidade que nem sonharíamos merecer é realmente merecida Essa é a razão última do preceito segundo o qual só existe sobre a terra uma possibilidade de felicidade crer no divino e não aspirar a alcançálo uma variável irônica é em conversa de Kafka com Janouch a afirmação de que há esperança mas não para nós Essa tese aparentemente ascética só se torna inteligível se entendermos o sentido do não para nós Não quer dizer que a felicidade esteja reservada apenas a outros felicidade significa precisamente para nós mas que ela só nos cabe no ponto em que não nos estava destinada não era para nós Ou seja por magia Nesse momento quando a arrebatamos da sorte ela coincide inteiramente com o fato de nos sabermos capazes de magia com o gesto com que afastamos de uma vez por todas a tristeza infantil Se for assim se não houver felicidade a não ser sentindonos capazes de magia então se torna transparente também a enigmática definição dada por Kafka sobre a magia ao escrever que se chamarmos a vida com o nome justo ela vem porque esta é a essência da magia que não cria mas chama Tal definição está de acordo com a antiga tradição que cabalistas e necromantes seguiram escrupulosamente em todos os tempos segundo a qual a magia é essencialmente uma ciência dos nomes secretos Cada coisa cada ser tem além de seu nome manifesto um nome escondido ao qual não pode deixar de responder Ser mago significa conhecer e evocar esse arquinome Disso nascem as intermináveis listas de nomes diabólicos ou angélicos com as quais o necromante garante para si o domínio sobre potências espirituais O nome secreto é para ele apenas a sigla de seu poder de vida e de morte sobre a criatura que o traz Há porém outra e mais luminosa tradição segundo a qual o nome secreto não é tanto a chave da sujeição da coisa à palavra do mago quanto sobretudo o monograma que sanciona sua libertação com relação à linguagem O nome secreto era o nome com o qual a criatura havia sido chamada no Éden e ao pronunciálo os nomes manifestos e toda a babel dos nomes acabaram em pedaços Por isso a criança nunca fica tão contente quanto quando inventa uma língua secreta própria Sua tristeza não provém tanto da ignorância dos nomes mágicos mas do fato de não conseguir se desfazer do nome que lhe foi imposto Logo que o consegue logo que inventa um novo nome ela ostentará entre as mãos o passaporte que a encaminha à felicidade Ter um nome é a culpa A justiça é sem nome assim como a magia Livre de nome bemaventurada a criatura bate à porta da aldeia dos magos onde só se fala por gestos FONTE AGAMBEN Giorgio Profanações São Paulo Boitempo 2007 p 2325 16 Neste tópico você viu que Algumas relações se estabelecem entre arte e infância com o intuito de questionar em que medida essas mesmas relações podem estar influenciando a postura social dos adultos e mais especificamente repercutindo na postura didática dos professores em sala de aula Pôde observar a condição assimétrica que se estabelece entre a magia infantil e a lógica do adulto ou seja no quanto essa forma de relação tem afetado a motivação e o desempenho escolar dos alunos Pôde refletir que para uma concepção diferenciada de escola fazse necessária a distância de pontos de vista exclusivamente lógicos e racionais e tal qual uma obra de arte literária a escola passe a incorporar referenciais lúdicos em todas as dimensões do ensino A presença de uma relação paradoxal entre a vida em sua forma espontânea e o desenvolvimento regrado da criança na medida em que à pretendida evolução social têm correspondido restrições da espontaneidade e da expressão dos indivíduos seja pelo aprisionamento de sua gestualidade lúdica seja pela limitação da expressividade infantil que poderiam reencontrar seu solo expressivo não só através de brincadeiras mas também por meio de um uso estético literário da linguagem Pôde compreender o lúdico como algo que possui um poder de restituição de uma atmosfera mágica da capacidade de admiração e de espanto diante da realidade O que comumente acontece em nossa sociedade e consequentemente na escola é a percepção do jogo ou o lúdico como facilitador para a internalização de regras sociais pela criança geralmente enquadrados no papel secundário de preencher o tempo inútil e ocioso dos pequenos RESUMO DO TÓPICO 1 17 Prezadoa acadêmicoa após ter completado a leitura do presente tópico reflita sobre as questões elencadas a seguir 1 Você consegue observar que independente dos meios ou mídias impressa cinematográfica web etc em que é veiculada a transmissão de saberes entre gerações persistem relações assimétricas entre o universo adulto e o mundo da criança 3 Como você proporia uma atividade em sala de aula que estabelecesse um diálogo fora da via tradicional professoraluno mas que considerasse em condições de igualdade os universos de sua geração e a de seus alunos AUTOATIVIDADE 2 Você concordaria que ao considerarmos a argumentação do presente Caderno de Estudos há uma relação evidente entre a infelicidade adulta e a perda da inocência infantil 18 19 TÓPICO 2 A LITERATURA ENTRA NO JOGO UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO Neste tópico buscaremos estabelecer uma aliança mais profícua entre a literatura e a palavra a partir de uma breve fundamentação teórica acerca dos modos de compreensão do objeto literário para depois estabelecermos algumas diferenças entre o literário e o não literário Assim começaremos por mapear as características principais que definem um texto literário discorrendo sobre alguns dos elementos estruturais que o definem tema que será aprofundado na sequência desses estudos refletindo especialmente sobre os repertórios voltados para a criança que como vimos geralmente evidenciam uma tradição pedagógica baseada na transmissão de valores do universo adulto 2 A ARTE E A PALAVRA Certo autor famoso dividiu um livro seu em duas partes na primeira contos reais na segunda contos fantásticos Resultado temse a frustrada impressão de que ficou cada uma das partes amputada da outra quando na realidade os dois mundos convivem Por que chamar de invisível ou fantástico a esse mundo que por enquanto não conseguimos apreender em contraposição a este mundo que está na cara QUINTANA 1979 p 73 De um modo geral podemos entender a literatura como uma forma de compreensão da realidade que por não ter um compromisso direto com a verdade instituída pela ciência pela moral vigente ou pela racionalidade lógica pode valerse de uma forma de discurso ao qual chamamos de discurso ficcional que consegue reelaborar o real de um ponto de vista inusitado e na maior parte das vezes por saber fazêlo de uma maneira prazerosa tem a virtude de promover através de um ponto de vista diferenciado um certo nível de instrução e conhecimento ao mesmo tempo em que diverte o leitor UNIDADE 1 CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA 20 FIGURA 3 MENINAS PABLO PICASSO FONTE Disponível em httpwwwcoligacopoeticablogspot om Acesso em 10 ago 2012 Caroa acadêmicoa observe que João Cabral de Melo Neto 1997 p 287 por meio de um poema transcrito a seguir define a essência da arte e de modo especial de sua própria literatura UNI Miró sentia a mão direita demasiado sábia e que de saber tanto já não podia inventar nada Quis então que desaprendesse o muito que aprendera a fim de encontrar a linha ainda fresca da esquerda Pois que ela não pôde ele pôsse a desenhar com esta até que se operando no braço direito ele a enxerta A esquerda se não é canhoto é mão sem habilidade reaprende a cada linha cada instante a recomeçarse TÓPICO 2 A LITERATURA ENTRA NO JOGO 21 É assim que o autor no poema citado ao tentar apreender algumas das essências que perpassam a pintura do artista plástico Joan Miró acaba capturando os modos de fazer e de fruição comuns a qualquer obra de arte inclusive à literatura Mais do que isso o poetateórico demonstra o que viria a ser não apenas uma ação autêntica válida como modelo de composição de obras pictóricas ou literárias mas também sugere de modo sutil em que consistiria uma postura inovadora diante da vida a saber a de reaprender a cada instante a recomeçarse Façamos uma outra reflexão você já observou o quanto é raro no dia a dia utilizarmos uma via inesperada fora do comum de nossa rotina habitual Pense por exemplo no percurso que você faz de casa para o trabalho do trabalho para a universidade ou viceversa Não é fato que geralmente repetimos o caminho mais fácil rápido e usual Percebe que raramente nos questionamos sobre isso É como se quem é canhoto raramente experimentasse a mão direita ou a esquerda para quem é destro Dando continuidade às reflexões se possível rememore algumas ações que surpreenderam a você mesmoa Anoteas aqui Anotou Então continuemos Nesse sentido uma autêntica aparição da infância independeria da idade cronológica ou da faixa etária em que se encontre o indivíduo pois a ela corresponderia toda ação mediada pela mão esquerda isto é por uma atitude que se põe fora do alcance tanto das formas de conhecimento previsíveis quanto dos modos de construção da realidade realizados a partir da lógica usual Fazendo uma analogia com o poema citado significa dizer que a infância decorreria de uma postura de distanciamento das verdades dogmáticas metaforicamente produzidas pelos usos modelares da mão direita Seguindo essa linha de raciocínio interessa mais à literatura enquanto forma de arte ligada à palavra não por descrever os fatos como eles são e dessa forma conduzilo pela ação de uma mão direita para legitimar alguma hipótese científica ou para dar veracidade a alguma especulação filosófica mas ao contrário à literatura interessam os fatos como eles deveriam ou poderiam vir a ser fiel apenas ao critério da verossimilhança isto é de alguma verdade postulada não como real mas como possível A literatura é chamada de ficção isto é imaginação de algo que não existe particularizado na realidade mas no espírito de seu criador O objeto da criação poética não pode portanto ser submetido à verificação extratextual A literatura cria o seu próprio universo semanticamente UNIDADE 1 CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA 22 autônomo em relação ao mundo em que vive o autor com seus seres ficcionais seu ambiente imaginário seu código ideológico sua própria verdade pessoas metamorfoseadas em animais animais que falam a linguagem humana tapetes voadores cidades fantásticas amores incríveis situações paradoxais sentimentos contraditórios etc Mesmo a literatura mais realista é fruto de imaginação pois o caráter ficcional é uma prerrogativa indeclinável da obra literária DONOFRIO 2006 p 19 Uma das consequências de a literatura ser uma forma de tratamento artístico da palavra que age por verossimilhança portanto descomprometida com as verdades factuais é que ao estabelecermos uma analogia comparativa entre a ficção literária e a realidade tal qual a compreendemos aquela acaba por mostrarse muitas vezes mais eficaz e autêntica do que os relatos presos a descrições objetivas da vida diária o que particularmente se verifica nos relatos destinados à criança A cultura dominante deseja fingir particularmente no que se refere às crianças que o lado obscuro do homem não existe e professa a crença num aprimoramento otimista Em contrapartida essa é exatamente a mensagem que os contos de fadas transmitem à criança de forma variada que uma luta contra dificuldades graves na vida é inevitável é parte intrínseca da existência humana mas que se a pessoa não se intimida e se defronta resolutamente com as provações inesperadas e muitas vezes injustas dominará todos os obstáculos e ao fim emergirá vitoriosa BETTELHEIM 2007 p 15 Assim enquanto na vida real não nos é possível explicitar nossas emoções mais baixas ou indesejáveis que de fato sentimos em relação aos outros a exemplo do fingimento que passa a ser também uma das características mais marcantes de nossa existência cotidiana em uma história ficcional por sua vez as personagens podem se expressar inteiramente revelando suas raivas baixezas temores e dessa forma agem de um modo mais autêntico do que o fazemos na vida real Então da relação entre a literatura e a vida ou entre o ficcional e a realidade armase um paradoxo evidente a saber enquanto na vida real que não é fingimento estamos continuamente fingindo portanto fazendo dela uma mentira na literatura por outro lado que por verossimilhança deve ser fingimento as personagens por não necessitarem fingir acabam sendo mais reais do que as pessoas que encontramos fora dos livros TÓPICO 2 A LITERATURA ENTRA NO JOGO 23 Conceito de verossimilhança a obra de arte por não estar diretamente relacionada com o mundo exterior não é verdadeira em si mesma entretanto possui equivalência de verdade ou seja a ela se assemelha Morfologicamente a palavra verossimilhança pode desmembrarse em dois morfemas que nos revelam diretamente o seu sentido a saber vero de verdadeiro e similhança de semelhante a Assim a partir de sua raiz etimológica encontramos seu significado o de ser semelhante à verdade Foi com o conceito de verossimilhança que Aristóteles corrigiu a compreensão errônea da filosofia platônica que condenava a obra de arte como falsa e inadequada à sociedade por aquela não ser reveladora da verdade Para Aristóteles bem ao contrário dizer a verdade era atributo exclusivo da racionalidade filosófica e não da arte a qual deveria fingir ou ser semelhante à verdade para poder deleitar agradar e envolver o público ou o receptor da obra UNI Eis portanto uma das razões pelas quais a arte é tão necessária ao homem embora ela esteja constantemente variando de modo de expressão seja na pintura na literatura no cinema etc ela acaba por ser uma fonte autêntica e talvez uma das mais seguras de compreensão da realidade A criança necessita muito particularmente que lhe sejam dadas sugestões em forma simbólica sobre o modo como ela pode lidar com essas questões e amadurecer com segurança As histórias seguras não mencionam nem a morte nem o envelhecimento os limites à nossa existência nem tampouco o desejo de vida eterna O conto de fadas em contraste confronta a criança honestamente com as dificuldades humanas básicas BETTELHEIM 2007 p 15 Assim a um certo momento essa virtude da arte seria não só reconhecida mas em larga medida traduzida para uma outra finalidade qual seja a de converter através da escola e em nome da ordem vigente a liberdade artística em uma moralidade adequada à formação da criança cabendo à educação o papel de garantir a permanência da organização social através da transmissão de regras a um sujeito reconhecido apenas na sua reflexividade a escola se torna o lugar da consagração do sistema e a criança se transforma em aluno aquele que deve aprender as regras transmitidas MAGALHÃES In ZILBERMAN 1984 p 46 Pensar sobre a literatura é também abrir espaço para discussões a respeito da função que ela exerce na sociedade É discorrer sobre a arte no espaço escolar Vejamos caroa acadêmicoa a importância da literatura na sociedade UNIDADE 1 CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA 24 3 A LITERATURA COMO FONTE HUMANIZADORA A literatura e aqui incluímos também outras manifestações artísticas atende como discutimos anteriormente ao mundo da imaginação propicia um projetarse para o mundo dos sonhos para o lúdico para a fruição essenciais à vida do homem A partir dela poderemos compreender interpretar modificar ou eternizar relações sociais Azevedo 2007 afirma que embora não faça sentido discorrer sobre a função da literatura sua importância é indiscutível pois é por intermédio dela que entramos em contato com os temas humanos como a paixão a amizade o autoconhecimento a angústia o ciúme a mentira a existência de diferentes pontos de vista sobre determinado assunto Além disso para o autor o contato com temas da vida concreta e com vozes diferentes das nossas pode por meio da identificação constituir um extraordinário recurso de humanização e sociabilização Em tempos de consumismo sem limites individualismo doentio e coisificação do homem com efeitos nefastos numa sociedade desequilibrada como a nossa a leitura de ficção e poesia pode ter um papel regenerador e insubstituível AZEVEDO 2007 p 66 Podemos afirmar que para a literatura são atribuídas natureza e funções distintas de acordo com a realidade cultural e social de cada época Antonio Candido assinala três funções para a literatura Vejamos Você já fantasiou observando as estrelas o mar ou as pessoas Já fantasiou sobre o amor Sobre uma cena de novela Ouvindo uma música Nós possuímos mesmo que como vimos por vezes tolhida a capacidade de fantasiar e para Candido essa modalidade possibilitada também por meio da ficção é muito rica É o que ele nomeia de função psicológica Ainda segundo o autor a fantasia tem uma estreita relação com a realidade e é por meio dessa ligação com o real que a literatura passa a exercer outra função a formadora que atua como instrumento de formação e educação do ser humano por exprimir realidades permeadas pelas ideologias Nas palavras de Candido 2002 p 85 a literatura não corrompe nem edifica mas trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal humaniza em sentido profundo porque faz viver Ainda continua o autor a literatura possui outra propriedade qual seja uma força humanizadora não como sistema de obras mas como algo que exprime o homem e depois atua na própria formação do homem E dentre esta capacidade a de confirmar a humanidade ao homem CANDIDO 2002 p 80 comporta uma expressividade que corrobora por educar o gosto visual serve à exploração das formas expressa a natureza e reflete a complexidade do ser humano TÓPICO 2 A LITERATURA ENTRA NO JOGO 25 Há que se considerar que a literatura se vale da língua fonte de manifestação de dimensões padrões e momentos culturais Umberto Eco 2003 explicita essa questão quando afirma que a língua vai para onde quer mas é sensível às sugestões da literatura Sem Dante não haveria um italiano unificado Quando Dante em vulgari eloquentia analisa e condena os vários dialetos italianos e se propõe a forjar um novo vulgar ilustre ninguém apostaria em semelhante ato de soberba e no entanto ele ganhou com a Comédia a sua partida ECO 2003 p 1011 Por intermédio dela a literatura são reconhecidos os valores da humanidade pois surge como um mundo aberto um convite à liberdade de interpretação e à criatividade ECO 2003 p 21 Assim a literatura desde as origens está vinculada à função de atuar sobre as mentes onde se decidem as vontades ou as ações e sobre os espíritos onde se expandem as emoções paixões desejos sentimentos de toda ordem No encontro com a Literatura ou com a Arte em geral os homens têm a oportunidade de ampliar transformar ou enriquecer sua própria experiência de vida em um grau de intensidade não igualada por nenhuma outra atividade COELHO 2000 p 29 A literatura e a formação do homem de Antonio Candido é o texto de uma conferência pronunciada na XXIV Reunião Anual da SBPC São Paulo julho de 1972 NOTA No entanto para entender literatura dessa forma é necessário que se estabeleça um exercício de diálogo com o texto Somente assim a literatura se mostrará como uma oportunidade de compreensão do homem e de tudo o que o cerca A literatura opera sobre o pensamento É um fenômeno de criatividade e enquanto atividade cognitiva contribui para a ampliação do processo perceptivo do leitor Daí a necessidade da presença do livro literário em sala de aula fonte inesgotável de conhecimentos e descobertas O exame dos elementos formativos em textos destinados à criança coloca uma questão que transcende o gênero da literatura infantil abrangendo o problema da função social da arte Portanto toda arte desempenha um papel na formação da sociedade e nesse sentido é educativa O critério perante essa característica inerente à obra é a distinção entre aquelas obras que são apenas eco de lugares comuns estéticos e ideológicos e aquelas que não apenas conservam experiências adquiridas mas conduzem ao questionamento dos convencionalismos de interpretação e comportamento pela apresentação UNIDADE 1 CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA 26 de novas perspectivas A obra emancipatória é prospectiva porque pela amostragem de novas possibilidades propicia experiências futuras a obra convencional é retrospectiva porque valida experiências passadas sem redimensionálas criticamente MAGALHÃES In ZILBERMAN 1984 p 54 Significa dizer que a escola deve proporcionar aos jovens contato com as mais variadas produções literárias favorecendo uma atitude de curiosidade de interesse pela descoberta com vistas à formação de um leitor capaz de dialogar com textos e neles reconhecerse e distinguir expressões estéticas e artísticas Umberto Eco enfatiza que a literatura possui e mantém a língua como patrimônio coletivo e contribui para a sua formação na medida em que intensifica um modo de expressão de um grupo UNI Caroa acadêmicoa continuaremos refletindo sobre a palavra literária que assume vida própria com novas significações que diferem daquelas usualmente utilizadas nos textos não literários mas antes veja como Ítalo Calvino concebe os clássicos Por que ler os clássicos Comecemos com algumas propostas de definição 1 Os clássicos são aqueles livros dos quais em geral se ouve dizer Estou relendo e nunca Estou lendo Isso acontece pelo menos com aquelas pessoas que se consideram grandes leitores não vale para a juventude idade em que o encontro com o mundo e com os clássicos como parte do mundo vale exatamente enquanto primeiro encontro O prefixo reiterativo antes do verbo ler pode ser uma pequena hipocrisia por parte dos que se envergonham de admitir não ter lido um livro famoso Para tranquilizálos bastará observar que por maiores que possam ser as leituras de formação de um indivíduo resta sempre um número enorme de obras que ele não leu Isso confirma que ler pela primeira vez um grande livro na idade madura é um prazer extraordinário diferente mas não se pode dizer maior ou menor se comparado a uma leitura da juventude A juventude comunica ao ato de ler como a qualquer outra experiência um sabor e uma importância particulares ao passo que na maturidade apreciamse deveriam ser apreciados TÓPICO 2 A LITERATURA ENTRA NO JOGO 27 muitos detalhes níveis e significados a mais Podemos tentar então esta outra fórmula de definição 2 Dizemse clássicos aqueles livros que constituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado mas constituem uma riqueza não menor para quem se reserva a sorte de lêlos pela primeira vez nas melhores condições de apreciálos De fato as leituras da juventude podem ser pouco profícuas pela impaciência distração inexperiência das instruções para o uso inexperiência da vida Podem ser talvez ao mesmo tempo formativas no sentido de que dão uma forma às experiências futuras fornecendo modelos recipientes termos de comparação esquemas de classificação escalas de valores paradigmas de beleza todas coisas que continuam a valer mesmo que nos recordemos pouco ou nada do livro lido na juventude Relendo o livro na idade madura acontece reencontrar aquelas constantes que já fazem parte de nossos mecanismos interiores e cuja origem havíamos esquecido Existe uma força particular da obra que consegue fazerse esquecer enquanto tal mas que deixa sua semente A definição que dela podemos dar então será 3 Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória mimetizandose como inconsciente coletivo ou individual Segundo Calvino deveria existir um tempo na vida adulta específico para reler as leituras feitas na juventude pois nós mudamos o foco ou os focos serão novos outros Portanto conforme o autor usar o verbo ler ou o verbo reler não tem muita importância De fato poderíamos dizer 4 Toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira 5 Toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma releitura A definição 4 pode ser considerada corolário desta 6 Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer Ao passo que a definição 5 remete para uma formulação mais explicativa como 7 Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes UNIDADE 1 CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA 28 Calvino argumenta sobre o poder que a leitura de um clássico possui Existe uma inversão de valores muito difundida segundo a qual a introdução o instrumental crítico a bibliografia são usados como cortina de fumaça para esconder aquilo que o texto tem a dizer e que só pode dizer se o deixarmos falar sem intermediários que pretendem saber mais do que ele Podemos concluir que 8 Um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si mas continuamente as repele para longe O clássico não necessariamente nos ensina algo que não sabíamos às vezes descobrimos nele algo que sempre soubéramos ou acreditávamos saber mas desconhecíamos que ele o dissera primeiro ou que de algum modo se liga a ele de maneira particular E mesmo esta é uma surpresa que dá muita satisfação como sempre dá a descoberta de uma origem de uma relação de uma pertinência De tudo isso poderíamos derivar uma definição do tipo 9 Os clássicos são livros que quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer quando são lidos de fato mais se revelam novos inesperados inéditos Essa possibilidade advém do fato de a leitura de um clássico favorecer o estabelecimento de uma relação pessoal com quem o lê Assim Se a centelha não se dá nada feito os clássicos não são lidos por dever ou por respeito mas só por amor Exceto na escola a escola deve fazer com que você conheça bem ou mal um certo número de clássicos entre os quais ou em relação aos quais você poderá depois reconhecer os seus clássicos A escola é obrigada a darlhe instrumentos para efetuar uma opção mas as escolhas que contam são aquelas que ocorrem fora e depois de cada escola 10 Chamase clássico um livro que se configura como equivalente do universo à semelhança dos antigos talismãs Com esta definição nos aproximamos da ideia de livro total como sonhava Mallarmé Mas um clássico pode estabelecer uma relação igualmente forte de oposição de antítese Tudo aquilo que JeanJacques Rousseau pensa e faz me agrada mas tudo me inspira irresistível desejo de contradizêlo de criticálo de brigar com ele Aí pesa a sua antipatia particular num plano temperamental mas por isso seria melhor que o deixasse de lado contudo não posso deixar de incluílo entre os meus autores Direi portanto 11 O seu clássico é aquele que não pode serlhe indiferente e que serve para definir a você próprio em relação e talvez em contraste com ele Creio não ter necessidade de justificarme se uso o termo clássico sem fazer distinções de antiguidade de estilo de autoridade Para a história de TÓPICO 2 A LITERATURA ENTRA NO JOGO 29 todas essas acepções do termo consultese o exausto verbete Clássico de Franco Fortini na Enciclopédia Einaudi vol III Aquilo que distingue o clássico no discurso que estou fazendo talvez seja só um efeito de ressonância que vale tanto para uma obra antiga quanto para uma moderna mas já com um lugar próprio numa comunidade cultural Poderíamos dizer 12 Um clássico é um livro que vem antes de outros clássicos mas quem leu antes os outros e depois lê aquele reconhece logo o seu lugar na genealogia A esta altura não posso mais adiar o problema decisivo de como relacionar a leitura dos clássicos com todas outras leituras que não sejam clássicas Problema que se articula com perguntas como Por que ler os clássicos em vez de concentrar nos em leituras que nos façam entender mais a fundo o nosso tempo e Onde encontrar o tempo e a comodidade da mente para ler clássicos esmagados que somos pela avalanche de papel impresso da atualidade É claro que se pode formular a hipótese de uma pessoa feliz que dedique o tempoleitura de seus dias exclusivamente a ler Lucrécio Luciano Montaigne Erasmo Quevedo Marlowe O Discours de la méthode Wilhelm Meister Coleridge Ruskin Proust e Valéry com algumas divagações para Murasaki ou para as sagas islandesas Tudo isso sem ter de fazer resenhas do último livro lançado nem publicações para o concurso de cátedra e nem trabalhos editoriais sob contrato com prazos impossíveis Essa pessoa bem aventurada para manter sua dieta sem nenhuma contaminação deveria abster se de ler os jornais não se deixar tentar nunca pelo último romance nem pela última pesquisa sociológica Seria preciso verificar quanto um rigor semelhante poderia ser justo e profícuo O dia de hoje pode ser banal e mortificante mas é sempre um ponto em que nos situamos para olhar para a frente ou para trás Para poder ler os clássicos temos de definir de onde eles estão sendo lidos caso contrário tanto o livro quanto o leitor se perdem numa nuvem atemporal Assim o rendimento máximo da leitura dos clássicos advém para aquele que sabe alternála com a leitura de atualidades numa sábia dosagem E isso não presume necessariamente uma equilibrada calma interior pode ser também o fruto de um nervosismo impaciente de uma insatisfação trepidante Talvez o ideal fosse captar a atualidade como o rumor do lado de fora da janela que nos adverte dos engarrafamentos do trânsito e das mudanças do tempo enquanto acompanhamos o discurso dos clássicos que soa claro e articulado no interior da casa Mas já é suficiente que a maioria perceba a presença dos clássicos como um reboar distante fora do espaço invadido pelas atualidades como pela televisão a todo volume Acrescentemos então 13 É clássico aquilo que tende a relegar as atualidades à posição de barulho de fundo mas ao mesmo tempo não pode prescindir desse barulho de fundo 14 É clássico aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível UNIDADE 1 CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA 30 Resta o fato de que ler os clássicos parece estar em contradição com o nosso ritmo de vida que não conhece os tempos longos o respiro do otium humanista e também em contradição com o ecletismo da nossa cultura que jamais saberia redigir um catálogo do classicismo que nos interessa Eram as condições que se realizavam plenamente para Leopardi dada a sua vida no solar paterno o culto da antiguidade grega e latina e a formidável biblioteca doada pelo pai Monaldo incluindo a literatura italiana completa mais a francesa com exclusão dos romances e em geral das novidades editoriais relegadas no máximo a um papel secundário para confronto da irmã o teu Stendhal escrevia a Paolina Mesmo suas enormes curiosidades científicas e históricas Giacomo as satisfazia com textos que não eram nunca demasiado up todate os costumes dos pássaros de Buffon as múmias de Frederico Ruysch em Fontenelle a viagem de Colombo em Robertson Hoje uma educação clássica como a do jovem Leopardi é impensável e sobretudo a biblioteca do conde Monaldo explodiu Os velhos títulos foram dizimados mas os novos se multiplicaram proliferando em todas as literaturas e culturas modernas Só nos resta inventar para cada um de nós uma biblioteca ideal de nossos clássicos e diria que ela deveria incluir uma metade de livros que já lemos e que contaram para nós e outra de livros que pretendemos ler e pressupomos possam vir a contar Separando uma seção a ser preenchida pelas surpresas as descobertas ocasionais Verifico que Leopardi é o único nome da literatura italiana que citei Efeito da explosão da biblioteca Agora deveria reescrever todo o artigo deixando bem claro que os clássicos servem para entender quem somos e aonde chegamos e por isso os italianos são indispensáveis justamente para serem confrontados com os estrangeiros e os estrangeiros são indispensáveis exatamente para serem confrontados com os italianos Depois deveria reescrevêlo ainda uma vez para que não se pense que os clássicos devem ser lidos porque servem para qualquer coisa A única razão que se pode apresentar é que ler os clássicos é melhor do que não ler os clássicos E se alguém objetar que não vale a pena tanto esforço citarei Cioran não um clássico pelo menos por enquanto mas um pensador contemporâneo que só agora começa a ser traduzido na Itália Enquanto era preparada a cicuta Sócrates estava aprendendo uma ária com a flauta Para que lhe servirá perguntaramlhe Para aprender esta ária antes de morrer FONTE CALVINO Ítalo Por que ler os clássicos Ed Cia das Letras 2004 31 RESUMO DO TÓPICO 2 Neste tópico você viu que A literatura é uma linguagem especial que tece a palavra que atua no pensamento humano à qual são atribuídas natureza e funções distintas de acordo com a realidade cultural e social de cada época assunto sobre o qual refletiremos a seguir A literatura possui uma importância indiscutível pois a partir da literatura é que somos levados a refletir sobre a paixão a amizade o autoconhecimento a angústia o ciúme a mentira e a existência de diferentes pontos de vista sobre determinado assunto Para Antonio Candido a literatura exprime o homem ao mesmo tempo em que atua na sua formação É na escola que o jovem poderá obter um contato com as produções literárias O professor nestes momentos proporcionará uma atitude de curiosidade de interesse pela descoberta um encontro que possibilitará transformação enriquecimento experiência de vida e transmissão de ideias A literatura surge como um mundo aberto um convite à liberdade de interpretação à criatividade e à exploração das formas Serve de entendimento da organização social pois estabelece relações com momentos históricos A literatura mantém a língua como patrimônio coletivo na medida em que intensifica um modo de expressão de um grupo eou contribui para a sua formação Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória mimetizandose como inconsciente coletivo ou individual Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes 32 1 Quais são as funções da literatura segundo Antonio Candido 2 Como você observa as questões ligadas ao modo de entender a literatura 3 Após a leitura do texto de Calvino faça o seguinte exercício pense em livros que lhe chamaram a atenção e que você pensa em ler novamente Algumas das observações levantadas por Calvino lhe servem de argumento para a seleção por você escolhida AUTOATIVIDADE 33 TÓPICO 3 CARACTERÍSTICAS DA LINGUAGEM LITERÁRIA UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO Você certamente ao ler o texto de Calvino inferiu que o autor delineia o que é um clássico defendendo a ideia de que ler clássicos é melhor do que não os ler Nosso objetivo de escolher este texto é o de que você reflita sobre livros já lidos e sinta vontade de reler e ler tantos outros livros conforme afirma Calvino ler aquele livro sobre o qual você escutou pessoas comentando estou relendo nunca estou lendo Mas afinal o que é a linguagem literária contida nos clássicos É o que veremos neste tópico 2 O LITERÁRIO ASPECTOS QUE O DEFINEM Podemos dizer que muitas das obras literárias passam para a posteridade tornandose clássicos fonte inesgotável de conhecimento Autores e suas obras são referenciados estudados e analisados uma vez que desvelam a existência humana elaborando seus escritos a partir do engendramento da língua com um estilo peculiar Assim novamente questionamos O que é literatura Se nos debruçássemos sobre a teoria a fim de obtermos uma resposta à pergunta sobre o conceito de literatura perceberíamos que sua definição não é matéria pacífica entre os estudiosos Vários tentaram e tentam sistematizálo apresentando variações significativas Essas posições nos impulsionam a refletir sobre esse assunto Acerca do conceito vejamos o que Terry Eagleton 2003 p 6 comenta Os formalistas consideravam a linguagem literária como um conjunto de desvios da norma uma espécie de violência linguística a literatura é uma forma especial de linguagem em contraste com a linguagem comum que usamos habitualmente Caroa acadêmicoa é importante salientar que o formalismo concentrou seus estudos na literatura separada do contexto social e histórico da obra Para os formalistas tudo o que é necessário numa obra literária está contida nela ou seja a base está nos aspectos linguísticos Portanto o formalismo em sua essência aplicou a linguística ao estudo da literatura 34 UNIDADE 1 CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA Octávio Paz 1982 p 47 conceitua literatura argumentando que na criação poética os vocábulos são forjados a nascerem novamente O primeiro ato dessa operação consiste no desenraizamento das palavras O poeta arrancaas de suas conexões e misteres habituais separados do mundo informativo da fala os vocábulos se tornam únicos como se acabassem de nascer De acordo com esse pensamento o poeta consegue fazer da palavra anteriormente usada para informar algo que está além do habitual Considere o poema que segue Autopsicografia O poeta é um fingidor Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente E os que leem o que escreve Na dor lida sentem bem Não as duas que ele teve Mas só a que eles não têm E assim nas calhas de roda Gira a entreter a razão Esse comboio de corda Que se chama o coração Fernando Pessoa 1977 FIGURA 4 FERNANDO PESSOA FONTE Disponível em httpblogdobacanamarcelomarques blogspotcombr201106os123anosdefernandopessoahtml Acesso em 10 ago 2012 TÓPICO 3 CARACTERÍSTICAS DA LINGUAGEM LITERÁRIA 35 Perceba que Fernando Pessoa ao escrever elaborou a linguagem manipulou as palavras criativa e esteticamente transformandoas em poesia arte literatura Você poderá ler mais sobre o formalismo e literatura no livro de Terry Eagleton intitulado Teoria da Literatura uma introdução Tradução de Waltensir Dutra São Paulo Martins Fontes 2003 IMPORTANTE Assim a literatura representaria uma violência organizada contra a fala comum pois o escritor utiliza a linguagem transformandoa intensificandoa afastandoa sistematicamente da fala cotidiana Outro estudioso JeanPaul Sartre 1993 p 28 afirma que a literatura é uma subjetividade que se entrega sob a aparência de objetividade um discurso tão curiosamente engendrado que equivale ao silêncio um pensamento que se contesta a si mesmo uma Razão que é apenas a máscara da loucura um Eterno que dá a entender que é apenas um momento da História um momento histórico que pelos aspectos ocultos que revela remete de súbito ao homem eterno um perpétuo ensinamento mas que se dá contra a vontade expressa daqueles que a ensinam Umberto Eco 2003 p 8 também teorizou sobre a literatura e segundo ele é um valor imaterial que se lê por prazer elevação espiritual e ampliação de conhecimento O objetivo em apresentar esses conceitos sobre a literatura caroa acadêmicoa é demonstrar que o texto literário é resultado do trabalho do escritor com a linguagem que é por ele cuidadosamente explorada o que ocasiona várias possibilidades de significação que também podem variar de acordo com os conhecimentos prévios do leitor A teoria literária enfatiza a partir da estética da recepção a figura do leitor que atribui sentidos e significados ao texto literário Segundo Sartre 1993 dificilmente dois ou mais leitores farão leituras idênticas de um mesmo texto Além disso para o estudioso o leitor poderá ser considerado coautor e coprodutor Sem o leitor o texto nada mais é que sinais perdidos no papel SARTRE 1993 p 24 Especificamente no que se refere ao papel do leitor trataremos na Unidade 3 deste Caderno de Estudos e em objeto de aprendizagem Disponível na trilha do curso 36 UNIDADE 1 CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA Leia mais alguns conceitos sobre literatura Arte literária é mimese imitação é a arte que imita pela palavra ARISTÓTELES apud NICOLA 1998 p 25 É a expressão da sociedade como a palavra é a expressão do homem LOUIS DE BONALD apud NICOLA 1998 p 25 Várias são as acepções do termo literatura conjunto da produção intelectual humana escrita conjunto de obras especialmente literárias conjunto de obras sobre um dado assunto o que chamamos mais vernacularmente de bibliografia de um assunto ou matéria boas letras além de outros derivados ou secundários um ramo especial daquela produção uma variedade da Arte arte literária VERÍSSIMO 2001 p 23 UNI Caroa acadêmicoa leia os textos e em seguida resolva a autoatividade proposta Texto 1 Bullying é preciso levar a sério ao primeiro sinal Esse tipo de violência tem sido cada vez mais noticiado e precisa de educadores atentos para evitarem consequências desastrosas Para evitar o bullying as escolas devem investir em prevenção e estimular a discussão aberta com todos os atores da cena escolar incluindo pais e alunos Para os professores que têm um papel importante na prevenção alguns conselhos dos especialistas Cléo Fante e José Augusto Pedra autores do livro Bullying Escolar Artmed Observe com atenção o comportamento dos alunos dentro e fora da sala de aula e perceba se há quedas bruscas individuais no rendimento escolar Incentive a solidariedade a generosidade e o respeito às diferenças através de conversas trabalhos didáticos e até de campanhas de incentivo à paz e à tolerância Desenvolva desde já dentro da sala de aula um ambiente favorável à comunicação entre alunos Quando um estudante reclamar ou denunciar o bullying procure imediatamente a direção da escola Muitas vezes a instituição trata de forma inadequada os casos relatados A responsabilidade é sim da escola mas a solução deve ser em conjunto com os pais dos alunos envolvidos FONTE Extraído e adaptado de BARROS Andréia Revista Nova Escola Edição Abril de 2008 TÓPICO 3 CARACTERÍSTICAS DA LINGUAGEM LITERÁRIA 37 Texto 2 Catar Feijão Catar feijão se limita com escrever Jogase os grãos na água do alguidar E as palavras na folha de papel E depois jogase fora o que boiar Certo toda palavra boiará no papel Água congelada por chumbo seu verbo Pois para catar esse feijão soprar nele E jogar fora o leve e oco palha e eco Ora nesse catar feijão entra um risco O de que entre os grãos pesados entre Um grão qualquer pedra ou indigesto Um grão imastigável de quebrar dente Certo não quando ao catar palavras A pedra dá à frase seu grão mais vivo Obstrui a leitura fluviante flutual Açula a atenção iscaa como risco FONTE MELO NETO João Cabral de Poesia crítica Rio de Janeiro José Olympio 1982 p 12 Você percebeu que existem diferenças entre os dois textos Revisiteos Agora observe mais atentamente compareos e aponte algumas diferenças eou semelhanças quanto aos assuntos abordados ao processo de construção e quanto ao uso da linguagem Muitas considerações podem ser elencadas entre os dois textos entretanto aqui nos interessa a classificação texto literário e texto não literário Observe 3 O TEXTO LITERÁRIO E O TEXTO NÃO LITERÁRIO A partir da realização da autoatividade podemos inferir que o primeiro texto aborda a questão do Bullying na escola faz uso da linguagem denotativa é constituído de signos linguísticos com significado mais preciso uma vez que existe a necessidade de uma informação objetiva de maneira a evitar mais de uma interpretação daí a classificálo como texto não literário Pense nas bulas de remédio ou nas instruções de funcionamento de um eletrodoméstico As informações disponibilizadas ao usuário deverão ser rigorosas presas ao contexto de comunicação específico não deixando margem a dupla interpretação Maria da Glória Bordini e Vera Aguiar Teixeira afirmam que o texto não literário contém 38 UNIDADE 1 CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA indicadores muito rígidos e presos ao contexto de comunicação não deixando margem à livre movimentação do leitor BORDINI AGUIAR 1993 p 15 O texto não literário prioriza a informação tem uma função utilitária para convencer explicar responder e ordenar São exemplos de textos não literários manuais de informação ao usuário notícias e reportagens jornalísticas textos de livros didáticos de história filosofia matemática textos científicos em geral receitas culinárias bulas de remédio O segundo texto o poema do autor João Cabral de Melo Neto remete a outra concepção cujo plano de expressão rompe com seu significado racional ou seja tem sentido conotativo pois a significação da palavra é subjetiva O texto literário tem uma dimensão estética o autor faz uso específico e complexo da língua explora recursos do sistema linguístico os sons as rimas as metáforas as metonímias o sentido das palavras e a organização frasal Cria novas relações entre as palavras combinandoas de maneira singular revelando assim novas formas de ver o mundo Os signos linguísticos as frases as sequências assumem significados variados e múltiplos possibilitando a criação de novas relações de sentido É um fazer peculiar porque expressa uma forma de dizer carregada de significados que são inerentes a um tempo histórico e particular na medida em que explicita e compreende o homem e a sua organização social Exemplos de textos literários poesias romances contos novelas fábulas entre outros Após uma breve definição acerca do fenômeno literário aqui conceituado segundo o critério de representação do real que situa a literatura enquanto modalidade artística como uma forma de arte descompromissada com a verdade lógica e com a racionalidade utilitária interessanos agora definir uma de suas formas de manifestação mais praticadas aquela destinada ao público infantil Assunto que abordaremos na próxima unidade Antes disso é interessante pensar na tríade autor texto e leitor Para tanto leiamos O Jogo do Texto no qual o autor argumenta que É sensato pressupor que o autor o texto e o leitor são intimamente interconectados em uma relação a ser concebida como um processo em andamento que produz algo que antes inexistia Esta concepção do texto está em conflito direto com a noção tradicional de representação à medida que a mímesis envolve a referência a uma realidade prédada que se pretende estar representada No sentido aristotélico a função da representação é dupla tornar perceptíveis as formas constitutivas da natureza completar o que a natureza deixara incompleto Em nenhum dos casos a mímesis embora de importância fundamental não pode restringir à mera imitação do que é pois os processos de elucidação e de complementação exigem uma atividade performativa se as ausências aparentes hão de se transformar em presença Desde o advento do mundo moderno há uma tendência clara em privilegiarse o aspecto performativo da relação autortexto leitor pelo qual o prédado não é mais visto como um objeto de representação mas sim como o material a partir do qual algo novo é ordenado TÓPICO 3 CARACTERÍSTICAS DA LINGUAGEM LITERÁRIA 39 O novo produto entretanto não é predeterminado pelos traços funções e estruturas do material referido e contido no texto Razões históricas explicam a mudança em foco Sistemas fechados como o cosmos do pensamento ou da imagem de mundo medieval priorizavam a representação como mímesis por considerarem que todo o existente mesmo que se esquivasse à percepção deveria ser traduzido em algo tangível Quando no entanto o sistema fechado é perfurado e substituído por um sistema aberto o componente mimético da representação declina e o aspecto performativo assume o primeiro plano O processo então não mais implica vir aquém das aparências para captar um mundo inteligível no sentido platônico mas se converte em um modo de criação de mundo Se aquilo que o texto realiza tivesse de ser equiparado com a feitura de mundo surgiria a questão se ainda se poderia continuar a falar em representação O conceito podia ser mantido apenas se os próprios modos de criação de mundo se tornassem o objetivo referencial para a representação Neste caso o componente performativo teria de ser concebido como o prédado do ato performativo Independente de se isso poderia ou não ser considerado tautológico permanece o fato de que provocaria uma quantidade de problemas de que este ensaio não pretende tratar Há contudo uma inferência altamente relevante para minha discussão o que tem sido chamado o fim da representação pode afinal de contas ser menos a descrição do estado histórico das artes do que a articulação de dúvidas quanto à habilidade da representação como conceito capaz de capturar o que de fato sucede na arte ou na literatura Isso não equivale a negar que a relação autortextoleitor contém um amplo número de elementos extratextuais que entram no processo mas são apenas componentes materiais do que sucede no texto e não correspondente um a um Parece portanto justo dizer que a representação no sentido em que viemos compreendêla não pode abarcar a operação performativa do texto como uma forma de evento Com efeito é importante notar que não há teorias definidas da representação que de fato fixem as condições necessárias para a produção da mímesis Os autores jogam com os leitores e o texto é o campo do jogo O próprio texto é o resultado de um ato intencional pelo qual o autor se refere e intervém em um mundo existente mas conquanto o ato seja intencional visa a algo que ainda não é acessível à consciência Assim o texto é composto por um mundo que ainda há de ser identificado e que é esboçado de modo a incitar e imaginálo e por fim interpretálo Essa dupla operação de imaginar e interpretar faz com que o leitor se empenhe em visualizar as muitas formas possíveis do mundo identificável de modo que inevitavelmente o mundo repetido no texto começa a sofrer modificações Pois não importa que novas formas o leitor traz à vida todas transgridem e daí modificam o mundo referencial contido no texto Ora como o texto é ficcional automaticamente invoca a convenção de um contrato entre autor e leitor indicador de que o mundo textual há de ser concebido não como realidade mas como se fosse 40 UNIDADE 1 CONTEXTUALIZAÇÃO DA LITERATURA realidade Assim o que quer que seja repetido no texto não visa a denotar o mundo mas apenas um mundo encenado Este pode repetir uma realidade identificável mas contém uma diferença decisiva o que sucede dentro dele não tem as consequências inerentes ao mundo real referido Assim ao se expor a si mesma a ficcionalidade assinala que tudo é tão só de ser considerado como se fosse o que parece ser noutras palavras ser tomado como jogo FONTE Texto adaptado de ISER W O Jogo do Texto In JAUSS H R et al A literatura e o leitor textos de estética da recepção Rio de Janeiro Paz e Terra 1979 p 105107 41 RESUMO DO TÓPICO 3 Neste tópico vimos que A literatura é uma forma de manifestação artística que tem como material de expressão a palavra marcada por uma organização peculiar da linguagem A literatura é uma espécie de violência linguística organizada e caracterizase pelo estranhamento da linguagem A literatura é uma forma de dizer carregada de significados É uma variedade de arte ou seja é arte literária O texto literário abrese para várias significações é portanto plurissignificativo tem uma dimensão estética e explora os recursos do sistema linguístico Para a dimensão literária o autor faz uso específico e complexo da língua explora sons as rimas as metáforas as metonímias o sentido das palavras e a organização frasal A escrita literária possibilita a criação de novas relações entre as palavras combinandoas de maneira singular peculiar porque expressa uma forma de dizer carregada de significados que são inerentes a um tempo histórico e particular O texto não literário prioriza a informação possui função utilitária para convencer explicar responder e ordenar Exemplos de textos não literários manuais de informação ao usuário notícias e reportagens jornalísticas entre outros 42 3 Você concorda com a afirmação de que dificilmente dois leitores farão leituras idênticas de um mesmo texto Comente Com base no tópico responda às seguintes questões 1 No que se refere à literatura assinale V para a sentença verdadeira e F para a sentença falsa a Os formalistas consideravam a linguagem literária como um conjunto de desvios da norma uma espécie de violência linguística b A literatura infantil é uma forma de manifestação artística c A literatura é uma forma de dizer carregada de significados d O texto literário é composto de palavras que se afastam sistematicamente da fala cotidiana O leitor atribui sentidos e significados Segundo Sartre pode ser considerado coautor e coprodutor e O texto literário tem uma dimensão estética o autor faz uso específico e complexo da língua explorando recursos do sistema linguístico Agora assinale a alternativa CORRETA a F V F V V b V F F V V c V V V V V 2 Escreva nas sentenças a seguir L para as afirmativas que caracterizam um texto literário e I para aquelas que caracterizam um texto informativo ou seja não literário Textos que se atêm a fatos particulares Textos que atingem uma significação mais ampla Textos que contêm indicadores mais rígidos e presos ao contexto de comunicação Textos que não deixam margem à livre movimentação do leitor a informação que oferecem é imediata e restrita valendo apenas para uma situação definida Textos que permitem leituras diversas justamente por seus aspectos em aberto são textos plurissignificativos Textos que dependem de referentes reais de forma direta Assinale a alternativa CORRETA a I L I L I I b L L L I I I c I L I I L I AUTOATIVIDADE 43 UNIDADE 2 A LITERATURA INFANTIL FONTE DE EMOÇÕES OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS Nessa unidade vamos analisar as diferentes fases da criança e sua influência na escolha de livros refletir sobre alguns dos fatores que contribuem para a formação do jovem leitor perceber que o texto literário não se limita ao ensino da gramática eou escolas literárias identificar a transmissão de valores e contravalores de algumas das perso nagens encontradas na literatura infantojuvenil Esta unidade está dividida em três tópicos Ao final de cada um deles você encontrará atividades visando à compreensão dos conteúdos apresentados TÓPICO 1 ASPECTOS DA LITERATURA INFANTIL TÓPICO 2 GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA ESTRUTURA I TÓPICO 3 GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA ESTRUTURA II 44 45 TÓPICO 1 ASPECTOS DA LITERATURA INFANTIL UNIDADE 2 1 INTRODUÇÃO Há palavras verdadeiramente mágicas O que há de mais assustador nos monstros é a palavra monstro Se eles se chamassem leques ou ventarolas ou outro nome assim todo arejado de vogais quase tudo se perderia do fascinante horror de Frankenstein QUINTANA 1979 p 21 A magia e o encanto da expressão literária perpassam gerações e é sobre essa literatura que nos deteremos mais especificamente àquela destinada ao jovem leitor que recebeu o adjetivo de infantil Por vezes essa qualidade essa adjetivação inquieta o próprio estatuto de literário uma vez que muitas histórias foram transformadas adaptadas para o público infantil e para este trabalho de reescritura importava validar o aspecto pedagógico da literatura Hoje é sabido que por expressar e refletir a complexidade do ser humano o seu mundo e suas relações existenciais a literatura se apresenta fascinante essencial e favorece o desenvolvimento intelectual Enquanto atividade cognitiva contribui para a ampliação do processo perceptivo do leitor Daí a necessidade da presença do livro literário em sala de aula por representar possibilidade de conhecimento e descoberta São essas questões que serão abordadas FIGURA 5 SENECIO PAUL KLEE FONTE Disponível em httpwwwricciarte biz543jpg Acesso em 12 ago 2012 UNIDADE 2 A LITERATURA INFANTIL FONTE DE EMOÇÕES 46 2 OS TEXTOS DESTINADOS AO JOVEM LEITOR Ao que parece o surgimento de uma literatura para crianças encontrase ligado à novelística popular medieval que tem suas origens na Índia Descobriuse que a magia e o encanto dessas criações vindas em sua maioria da tradição oral e mitológica repassadas através de gerações e adaptadas pela experiência do adulto poderiam satisfazer a mente fértil e inesgotável do público infantil OLIVEIRA 2007 A literatura infantil constituise como gênero durante o século XVII na Europa e seu aparecimento possui características próprias A ela foi atribuída a função de suscitar situações para uma educação moral Os textos em sua estrutura maniqueísta demarcavam claramente o bem e o mal o que a criança deveria fazer e o que não deveria Com uma sociedade burguesa em ascensão a criança ou melhor dizendo o que fez parte de sua infância no caso a escola passou por uma reorganização As histórias destinadas à criança foram associadas à Pedagogia que as converteu em aliado instrumento pedagógico Nessa abordagem a criança era considerada um ser diferente do adulto com necessidades e características próprias Para tanto deveria receber uma educação especial que a preparasse para a vida adulta e priorizasse os valores morais Assim surge a chamada literatura infantil que desde sua gênese esteve atrelada a fins pedagógicos a serviço da divulgação dos ideais burgueses OLIVEIRA 2007 Somente a partir de estudos da psicologia experimental é que se altera a concepção Entra em questão a sucessão das fases evolutivas da inteligência A partir de então passa a existir a preocupação de falar com autenticidade aos possíveis destinatários das mais tenras idades Transformase assim o foco da literatura infantil Entretanto vejamos A literatura infantil é comunicação histórica localizada no tempo e no espaço entre um locutor e um escritor adulto emissor e um destinatário criança receptor que por definição do período considerado não dispõe senão de modo parcial da experiência do real e das estruturas linguística intelectuais afetivas e outras que caracterizam a idade adulta COELHO 1997 p 185 Nesse sentido lembrese de nossas discussões iniciadas na primeira unidade o livro destinado ao infante é produzido por um adulto que comunica experiências já adquiridas a um público que não possui tal experiência É direcionada a uma idade que é de aprendizagem e mais especificamente de aprendizagem linguística donde advém sua inclinação pedagógica Assim a literatura no espaço escolar foi incorporada como tarefa a ser cumprida Para Abramovick 1989 é justamente este caráter de cobrança que distancia a criança da leitura de literatura Sobre essa função utilitáriopedagógica à qual a literatura infantojuvenil é exposta leiamos Palo e Oliveira 1986 p13 que afirmam TÓPICO 1 ASPECTOS DA LITERATURA INFANTIL 47 a função pedagógica implica a ação educativa do livro sobre a criança De um lado relação comunicativa leitorobra tendo por intermediário o pedagógico que dirige e orienta o uso da informação de outro a cadeia de mediadores que interceptam a relação livrocriança família escola biblioteca e o próprio mercado editorial agentes controladores de usos que dificultam à criança a decisão e escolha do que e como ler Esse contexto de literatura infantil interfere sobre o universo da criança Assim questões que envolvem a literatura no espaço escolar e consequentemente no universo infantil são o mote de vários estudos Bruno Bettelheim 2007 discorre sobre as personagens infantis o maravilhoso o fantástico seus conflitos e o papel que os enredos dessas histórias desempenha no imaginário do jovem leitor Afirma que toda a simbologia presente no literário infantil ajuda a resolver problemas existenciais da criança Enfatiza também o poder regenerador dos contos de fada que por conterem na sua estrutura elementos simbólicos criam uma ponte com o inconsciente propiciando ao jovem leitor conforto e consolo em termos emocionais Dito de outro modo apresentam temas relacionados ao medo ao amor ao ódio à alegria à busca à tristeza que fazem parte do cotidiano infantojuvenil propiciando um treino para as emoções A postura que considera a literatura objeto pedagógico sofre forte reação pois há quem a defenda como entretenimento ludicidade e deleite Então podemos inferir que sob um olhar é arte é emoção e prazer e sob o aspecto de instrumento manipulado para uma intenção educativa ela é objeto pedagógico Uma dicotomia existe entretanto salientamos que a literatura infantil acaba sendo aquela que corresponde de alguma forma aos anseios do leitor OLIVEIRA 2007 É objeto de entretenimento e ao mesmo tempo traduz o homem e atua na sua formação CANDIDO 2002 É nesse sentido que devemos pensar a literatura destinada à humanidade em especial neste nosso estudo a destinada ao público infantojuvenil Atribuise o ponto de partida para a literatura infantil à Europa do século XVII mais especificamente França Para instigar sua curiosidade sobre esse universo literário leia o item seguinte Neste elegemos alguns escritores e obras no intuito de fazer uma incursão pela história da literatura inafantojuvenil 3 A LITERATURA INFANTIL UM POUCO DE HISTÓRIA Estudos apontam Charles Perrault como precursor da literatura infantil Iniciou seu trabalho adaptando histórias contadas oralmente em locais parisienses com enredos de personagens que viviam em estado de precariedade sofriam e ao final venciam Caroa acadêmicoa façamos o exercício de recordar o conto A gata borralheira Confira uma das versões na trilha de aprendizagem da disciplina Lembrese de que borralheira significa local onde existe acúmulo de borralha mais conhecida como cinza do forno ou lareira UNIDADE 2 A LITERATURA INFANTIL FONTE DE EMOÇÕES 48 Cinderela sua origem tem diferentes versões A versão mais conhecida é a do escritor francês Charles Perrault de 1697 baseada num conto italiano popular chamado A gata borralheira A mais antiga é originária da China por volta de 860 aC Existe também a dos Irmãos Grimm semelhante à de Charles Perrault Sociólogos historiadores e literatos veem na história de Cinderela muito mais do que uma simples trama romântica Por ter origem atemporal e ter surgido em várias civilizações diferentes a trajetória da protagonista traduziria uma espécie de arquétipo fundamental traduzindo o anseio natural da psiquê humana em ser reconhecida especial e levada a uma existência superior A literatura e o cinema cientes disso utilizaramse de seu arco dramático para o desenvolvimento de inúmeras outras obras de apelo popular FONTE Disponível em httpptwikipediaorgwikiCinderelaDisponível Acesso em 5 out 2012 UNI Que tal Recordou Então atente para o fato de que neste conto Perrault descreve a preocupação dos convidados quanto ao vestuário os salões de festa as danças a carruagem enfim o glamour da nobreza contrapondose à vida dos camponeses marcada pela privação devido ao agravamento das contradições econômicas Enredos com aspectos que provinham do povo humilde elementos da corte a vida e as festas nos palácios FIGURA 6 A GATA BORRALHEIRA FONTE Disponível em httpprosimetronblogspotcombr201206gata borralheirahtml Acesso em 5 out 2012 Além de Perrault Fénelon dedicouse a escritos com qualidades pedagógicas Sua obra Telêmaco relata as aventuras do filho de Ulisses personagem da Odisseia de Homero Quando Ulisses rei de Ítaca partiu para a Guerra de Troia deixou seu filho Telêmaco aos cuidados de seu fiel e amigo Mentor Mesmo tendo a guerra terminado Ulisses não retorna ao seu lar Telêmaco cresce vendo o patrimônio de TÓPICO 1 ASPECTOS DA LITERATURA INFANTIL 49 seu pai ser dilapidado pelos pretendentes de sua mãe Indignado com tal situação parte em busca de notícias do pai e leva consigo Mentor para orientálo e encorajálo Os reveses da viagem de Telêmaco à procura do pai o auxílio dos deuses dos amigos fazem parte do enredo desta história Além disso a história revela o quanto Mentor foi importante na educação de Telêmaco na formação de seu caráter de seu senso de responsabilidade e na transição da infância à maturidade Podemos dizer que a personagem Mentor adquire outro status a partir do momento no qual Fénelon escreve As Aventuras de Telêmaco em 1699 elevandoo à condição de um professor um guia do jovem Telêmaco A palavra mentor passou então a figurar nos dicionários como sinônimo de conselheiro sábio além de protetor e financiador Pessoa que inspira estimula cria ou orienta ideias ações projetos realizações etc HOUAISS VILLAR 2009 p 1275 O escritor Fénelon foi tutor do neto de Luis XIV e seu livro fez grande sucesso inspirando muitos pedagogos UNI La Fontaine por sua vez imortalizouse através das fábulas entre outros escritos Leiamos uma de suas fábulas A Raposa e a Cegonha A Raposa convidou a Cegonha para jantar e lhe serviu sopa em um prato raso Você não está gostando de minha sopa Perguntou enquanto a cegonha bicava o líquido sem sucesso Como posso gostar A Cegonha respondeu vendo a Raposa lamber a sopa que lhe pareceu deliciosa Dias depois foi a vez de a cegonha convidar a Raposa para comer na beira da Lagoa serviu então a sopa num jarro largo embaixo e estreito em cima Hummmm deliciosa Exclamou a Cegonha enfiando o comprido bico pelo gargalo Você não acha UNIDADE 2 A LITERATURA INFANTIL FONTE DE EMOÇÕES 50 A Raposa não achava nada nem podia achar pois seu focinho não passava pelo gargalo estreito do jarro Tentou mais uma ou duas vezes e se despediu de mau humor achando que por algum motivo aquilo não era nada engraçado MORAL Às vezes recebemos na mesma moeda por tudo aquilo que fazemos FONTE Disponível em httppensadoruolcombrfraseODEwMzk3 Acesso em 5 out 2012 Do século XIX destacamos o dinamarquês Hans Christian Andersen autor de 156 contos maravilhosos entre os quais figuram O soldadinho de chumbo e O patinho feio Confira versão na trilha de aprendizagem Os Irmãos Grimm Jocob e Wilhelm por sua vez além de filólogos e lexicógrafos foram celebrizados com as publicações de contos e lendas alemãs emanados da tradição e saber popular Pinóquio é outro clássico da literatura Um pedaço de madeira falante aparece nas mãos de Gepeto O velho Gepeto tem planos ambiciosos para a marionete que ele fabrica É capaz de dançar cantar e falar Pinóquio entretanto revelase um títere arteiro e que sonha em tornarse um menino de verdade As aventuras de Pinóquio é a obra original de Carlo Collodi publicada pela primeira vez em 1883 Em seu percurso de transição de boneco a menino Pinóquio se mete em confusão atrás de confusão enfrenta a autoridade da lei a solidão da condição humana e outras tantas aventuras perigosas Outra relevante figura para a literatura infantil é Lewis Carrol autor de Alice no país das maravilhas uma históriaromance considerada complexa e que sugere variadas interpretações por abordar em seu contexto assuntos de diferentes temáticas Carrol explora elementos dos contos de fada animais que falam reis e rainhas personagens enigmáticos que em um passe de mágica aparecem desaparecem e mudam de tamanho A história se passa dentro de um sonho é marcada pelo recurso do nonsense termo que indica ausência de sentido No caso da narrativa em questão os episódios são permeados por algum recurso de ligação garantindo assim uma coerência interna Além disso o enredo de Alice no país das maravilhas não exige uma lógica total dos acontecimentos uma vez que se passa no mundo dos sonhos um universo no qual coisas mais insólitas são aceitas como naturais Alice é uma obra que permite várias interpretações Uma delas é a de que as mudanças os conflitos da adolescência à maturidade podem estar representados na obra Além dessa interpretação podemos considerar questões históricas como por exemplo críticas à sociedade inglesa vitoriana TÓPICO 1 ASPECTOS DA LITERATURA INFANTIL 51 Outros escritores que merecem destaque são Jonathan Swift 16671745 Em 1726 o autor publica sua obraprima As viagens de Gulliver Daniel Defoe 16601731 Seu romance mais famoso Robinson Crusoé foi publicado em 1719 Mme Leprince de Beaumont 17111780 Sua obra denuncia preocupação educativa Entre suas produções salientamos A fada das ameixas A bela e a fera entre outras Mark Twain 18351910 Publicado em 1876 o livro trouxe popularidade ao escritor americano com seu Tom Sawyer Júlio Verne 18281905 Autor de obras de ficção científica popularizouse em trabalhos como Vinte mil léguas submarinas A Ilha misteriosa Cinco semanas em um balão Volta ao mundo em 80 dias Os filhos do Capitão Grant Podemos ainda juntar a esta lista obras como As mil e uma noites Dom Quixote de la Mancha de Miguel de Cervantes Os três mosqueteiros O Conde de Monte Cristo e um rol interminável de leituras 31 PANORAMA DA LITERATURA INFANTIL BRASILEIRA Na Europa a literatura infantil assumiu a função pedagógica e difundiu modos e modelos comportamentais e no Brasil seu objetivo não foi diferente A literatura infantil chega ao nosso país nos fins do século XIX Conforme Célia Doris Becker 2001 p 36 o mercado requer dos escritores livros que atendam ao público infantil Começa então a importação desses textos e com eles a mesma atitude didática e redutora que difunde normas e doutrinava as crianças Para Becker a história da literatura infantil brasileira é dividida em quatro fases A primeira fase final do século XIX e início do século XX é norteada por adaptações e traduções de textos europeus principalmente de produções portuguesas Os textos tinham a intenção de incutir o patriotismo a valorização do nacionalismo Destacamse entre as produções nacionais com essa finalidade Contos pátrios e Através do Brasil Olavo Bilac Coelho Neto Era uma vez Júlia Lopes de Almeida Saudade Tales de Andrade Dentre as traduções podemos citar as obras de Carlos Jansen Figueiredo Pimentel Robinson Crusoé e outros BECKER 2001 p 36 A segunda fase descrita por Becker 2001 abrange os anos de 19201945 e poderá ser assim sintetizada em nosso país como o momento em que acontecem mudanças advindas da expansão cafeeira e da indústria Essa efervescência social atinge a educação que apresentava um sistema educacional com altos índices de analfabetismo Constatouse com esse fato que para o Brasil inserirse entre as grandes potências internacionais necessário era além de outras medidas acabar com o analfabetismo UNIDADE 2 A LITERATURA INFANTIL FONTE DE EMOÇÕES 52 Neste período criouse a Escola Nova eclodiram inovações diversas nas áreas culturais expressas na Semana de Arte Moderna A literatura infantil especialmente a partir de Monteiro Lobato recebeu roupagem nova com temáticas e uma linguagem coloquial próximas à realidade da criança O folclore mostrouse revelador de um mundo bem brasileiro porém com o mesmo caráter pedagógico Muitos dos autores coadunavam com o autoritarismo através de personagens que não questionavam as ações A terceira fase de aproximadamente 1950 e década de 1960 foi marcada pelas trocas de governo pelas lutas por uma democracia e pelo golpe militar que culminou com os Atos Institucionais a partir dos quais a sociedade passou a conviver com os órgãos de repressão e com a censura aos meios de comunicação BECKER 2001 p 39 A literatura infantil nesse período de acordo com Becker 2001 recorreu a temas que abordaram a supremacia da vida urbana sobre a rural na qual os moradores rurais foram desprestigiados e até estereotipados o café apareceu como fonte primeira de riqueza a Amazônia era destacada bem como o passado histórico e o heroísmo dos Bandeirantes foram os temas abordados A quarta e última fase 19701980 segundo Becker 2001 foi marcada por personagens que contestavam fatos Apareceram a gíria os dialetos as falas regionais ou seja uma literatura inovadora e plena de desafios Registrouse também um significativo aumento de obras e autores Abrandouse se não foi totalmente abandonado o caráter didáticopedagógico que historicamente comprometia a produção literária infantil BECKER 2001 p 40 No Brasil o rico material literário favorece ao professor subsídios para o desenvolvimento da criatividade da imaginação do gosto pela leitura e consequentemente a ampliação do conhecimento do jovem leitor No que tange à literatura infantil os primeiros trabalhos em solo brasileiro repetiam o que acontecia na Europa porém escritores se consagraram por arquitetar uma literatura infantil brasileira uma vez que além de traduzir os contos de fada europeus eternizaram narrativas que faziam parte da oralidade do povo brasileiro entre os quais destacamos Figueiredo Pimentel 18691914 Com os Contos da carochinha Histórias da baratinha Álbum das crianças Teatrinho infantil e Os meus brinquedos Pimentel pode ser considerado o precursor de nossa literatura infantil Viriato Padilha 18661924 Autor de Histórias do arco da velha Olavo Bilac 18651918 Publicou em colaboração Poesias infantis e Contos pátrios Escreveu poemas que enalteciam o civismo o nacionalismo e a história política do Brasil daquela época TÓPICO 1 ASPECTOS DA LITERATURA INFANTIL 53 Viriato Corrêa 18841967 Notabilizouse com Varinha de condão No reino da bicharada A macacada No país da bicharada As belas histórias da história do Brasil História do Brasil para crianças etc Malba Tahan 18851974 Pseudônimo literário do professor de Matemática Julio Mello e Souza Desse autor destacamos as seguintes obras O homem que calculava Maktub Céu de Allah Seleções A caixa do futuro Lendas do céu e da terra Lendas do povo de Deus Minha vida querida As aventuras do Rei Baribê entre outras Outro nome relevante da literatura infantil brasileira é Monteiro Lobato criador de Emília Dona Benta e o Visconde de Sabugosa bem como os demais personagens do Picapau Amarelo Seres da fantasia que saíram dos livros para as telas da TV para lojas e supermercados para as festas de aniversário escolas jogos brincadeiras revelando que a realidade fabulosa que saiu de sua cabeça acabou sendo maior mais poderosa e mais duradoura do que ele mesmo cogitou ZILBERMAN 2005 p 22 Monteiro Lobato dedicou o livro Reinações de Narizinho para apresentação da menina Lúcia a Narizinho informando também ao leitor que ela mora com a avó Dona Benta e ganhou de Anastácia a cozinheira uma boneca de pano batizada de Emília Pedrinho primo de Narizinho também fará parte desse mundo encantado Visconde de Sabugosa outro boneco feito a partir de um sabugo de milho tornouse famoso tanto quanto os demais personagens FIGURA 7 VISCONDE DE SABUGOSA FONTE Disponível em httpswwwgooglecombr searchqsabugosahlptBRprmdimvnstbmischtbouso urceunivsaXei6CvaT6ChO4e09QTQheTuBQved0CG0Qs AQbiw1280bih618 Acesso em 12 set 2012 Lobato optou pela sistemática de repetir as personagens tal qual histórias em série criando narrativas que revelam o espírito desafiador e heroico estereótipo dos legendários contos folclóricos dos mitos e das lendas UNIDADE 2 A LITERATURA INFANTIL FONTE DE EMOÇÕES 54 São personagens que enfrentam variados problemas embrenhamse nas mais variadas peripécias demonstrando inteligência autonomia e emancipação ou seja a relação estabelecida entre as personagens adultas e infantis é de igual para igual Para tanto bastará observar o comportamento da boneca Emília e das crianças que por vezes ignoram certos limites o que lhes confere autenticidade A personagem Dona Benta é quem dirige o sítio Instruída inteligente bemintencionada modelo do político que segundo Lobato deveria governar o Brasil Ao perceber que não poderá mais contar com a renda propiciada pelas lavouras de café que estão arruinadas adere ao ideal de Lobato não por acaso tem o nome do próprio escritor José Bento patrocina a prospecção de petróleo em suas terras obtendo grandes lucros e promovendo o progresso não apenas na área mas em todo o país ZILBERMAN 2005 p 28 Dona Benta é quem geralmente narra as fábulas fato este que na opinião dos críticos é um recurso do próprio escritor para demonstrar a reflexão e ponderação das pessoas mais vividas Tia Nastácia se mostra bastante inclinada a aceitar a moral das fábulas Já Pedrinho e Narizinho fazem comentários de acordo com seu espírito irrequieto de crianças curiosas e Emília tenta a cada momento contestar a lição de moral que a fábula encerra Lobato revela um Brasil a partir do sítio Mostra um país com predomínio da economia agrícola expressando o que deseja para o Brasil a possibilidade de modernização crescimento e fortuna graças à exploração das riquezas minerais em especial do petróleo O sítio na visão de Lobato constitui uma espécie de república ideal que admite seres dotados de qualidades positivas e expulsa o julgado negativo como o próprio sistema governamental Quando aparecem os vilões estes jamais levam a melhor O sítio é o Brasil conforme o desejo de Lobato que desde os primeiros livros mesmo criticando as mazelas nacionais nunca deixou de colocar o país no centro e propor alternativas para problemas cruciais Monteiro Lobato prezou pela nacionalidade desde os primeiros livros como Urupês de 1918 Criticou as mazelas nacionais e propôs alternativas para os problemas que assolavam o país As ações do Sítio do Picapau Amarelo podem ocorrer em vários locais e épocas na Lua nos planetas na cidade em outros séculos todavia é o sítio o cenário recorrente Monteiro Lobato adaptou clássicos da literatura como Dom Quixote das crianças 1936 e de obras europeias destinadas à infância Peter Pan 1930 Estabeleceu incursões no folclore com Histórias de tia Nastácia 1937 e na mitologia ocidental O Minotauro 1939 TÓPICO 1 ASPECTOS DA LITERATURA INFANTIL 55 Podemos dizer que com Lobato a nossa literatura infantil atingiu projeção universal Criou uma concepção para a fabulação infantil suas personagens vivem tipos que integram o cenário literário a exemplo de Emília boneca admirável misto de fada e ser humano Por sua vez os protagonistas Pedrinho e Narizinho retratam as preocupações e atividades que ocupam os meninos e meninas daquela época e por que não dizer de nossa época A obra infantil de Lobato está reunida em vários volumes Reinações de Narizinho Viagem ao céu O Saci Caçadas de Pedrinho Emília no país da gramática Aritmética de Emília Geografia de Dona Benta entre outras histórias que encantaram e encantam os jovens leitores E as traduções e adaptações de Contos de Grimm Novos contos de Grimm Contos de Andersen Novos contos de Andersen Alice no país das maravilhas Além disso Lobato atentava para o fato dos conteúdos moralizantes da literatura destinada ao jovem leitor A partir da fábula A cigarra e a formiga de La Fontaine escreve A formiga boa e a Formiga má Naquela versão a formiga reconhece o valor do canto da cigarra a distração que tal cantoria lhe proporcionava nas horas de labuta sendo assim recompensa a cigarra protegendoa do rigoroso inverno Exibe uma formiga solidária tolerante e que respeita os outros e suas diferenças ao contrário da personagem da fábula A Formiga má que é perversa não se deixa levar pelos apelos da fragilizada cigarra negandolhe qualquer auxílio FIGURA 8 A CIGARRA E A FORMIGA FONTE Disponível em httpaprendercentrodeestudosblogspotcom br201205contocigarraeformigahtml Acesso em 12 set 2012 UNIDADE 2 A LITERATURA INFANTIL FONTE DE EMOÇÕES 56 A Formiga má Já houve entretanto uma formiga má que não soube compreender a cigarra e com dureza a repeliu de sua porta Foi isso na Europa em pleno inverno quando a neve recobria o mundo com seu cruel manto de gelo A cigarra como de costume havia cantado sem parar o estio inteiro e o inverno veio encontrála desprovida de tudo sem casa onde abrigarse nem folhinhas que comesse Desprovida bateu à porta da formiga e implorou emprestado notem uns miseráveis restos de comida Pagaria com juros altos aquela comida de empréstimo logo que o tempo o permitisse Mas a formiga era uma usurária sem entranhas Além disso invejosa Como não soubesse cantar tinha ódio à cigarra por vêla querida de todos os seres Que fazia você durante o bom tempo Eu eu cantava Cantava Pois dance agora vagabunda e fechoulhe a porta no nariz Resultado a cigarra ali morreu entanguidinha e quando voltou a primavera o mundo apresentava um aspecto mais triste É que faltava na música do mundo o som estridente daquela cigarra morta por causa da avareza da formiga Mas se a usurária morresse quem daria pela falta dela Os artistas poetas pintores escritores músicos são as cigarras da humanidade Leia a seguir uma fábula de Monteiro Lobato FONTE Disponível em httprecantodasletrasuolcombrcontos1184720 Acesso em 12 set 2012 Lobato escreveu o primeiro livro voltado ao público infantil A Menina do narizinho arrebitado em 1921 e o último Os doze trabalhos de Hércules em 1944 Ele faleceu em 1948 ZILBERMAN 2005 Graças à atividade dos escritores Monteiro Lobato Viriato Correa Érico Veríssimo Graciliano Ramos Figueiredo Pimentel Maria José Dupré entre outros é que a literatura infantil brasileira traça seus caminhos inovadores e ganha projeção nacional e universal 57 RESUMO DO TÓPICO 1 Caroa acadêmicoa neste tópico você viu que O adjetivo infantil determina o público a que se destina Entretanto é o que é escrito para a criança e lido pela criança Alguns escritores e especialistas preferem dispensar o adjetivo infantil afirmando não poder haver distinções que reduzam ou orientem os diferentes leitores A literatura infantil brasileira a exemplo da europeia assumiu a função pedagógica e difundiu modos e modelos comportamentais A primeira fase da literatura infantil no Brasil é norteada por adaptações e traduções de textos europeus principalmente de produções portuguesas Os textos tinham a intenção de incutir o patriotismo a valorização do nacionalismo Entre as décadas de 1920 a 1945 em termos de literatura infantil eclodiram inovações diversas nas áreas culturais expressas na Semana de Arte Moderna A literatura infantil especialmente a partir de Monteiro Lobato recebeu roupagem nova com temáticas e uma linguagem coloquial próximas à realidade da criança Podese afirmar que atualmente a literatura infantil é marcada por personagens que contestavam fatos apareceram as gírias os dialetos as falas regionais ou seja uma literatura inovadora e plena de desafios A literatura surge como um mundo aberto um convite à liberdade de interpretação à criatividade e à exploração das formas O encontro com a arte literária possibilita transformação enriquecimento experiência de vida e transmissão de ideias 58 AUTOATIVIDADE Para a autoatividade leia o texto que segue Desafio aos educadores Um famoso filósofo alemão do século passado Frederico Nietzsche tece uma crítica radical à civilização ocidental dizendo que ela educa os homens para desenvolverem apenas instinto da tartaruga O que quer dizer isso A tartaruga é o animal que diante do perigo da surpresa recolhe a cabeça para dentro de sua casca Anula assim todos os seus sentidos e esconde também na casca os membros tentando protegerse contra o desconhecido Este é o instinto da tartaruga defenderse fecharse ao mundo recolherse para dentro de si mesma e em consequência nada ver nada sentir nada ouvir nada ameaçar Formar boas tartarugas parece ter sido o objetivo dos processos educacionais e políticos de educação desenvolvidos no mundo ocidental nos últimos anos Temos educado os homens para aprenderem a se defender contra todas as ameaças externas sendo apenas reativos Ensinamos o espírito da covardia e do medo Precisamos assumir o desafio de educar o homem para desenvolver o instinto da águia Águia é o animal que voa acima das montanhas que desenvolve seus sentidos e habilidades que aguça ouvidos olhos e competência para ultrapassar os perigos alçando voo acima deles É capaz também de afiar as suas garras para atacar o inimigo no momento que julgar mais oportuno As nossas escolas têm procurado fazer com que nossas crianças se recolham para dentro de si e percam a agressividade o instinto próprio do homem corajoso capaz de vencer o perigo que se lhe apresenta Temos criado neste país uma geraçãotartaruga uma geração medrosa recolhida para dentro de si E estamos todos impregnados por esse espírito de tartaruga Não temos coragem para contestar nossos dirigentes para nos opor às suas propostas e criar soluções alternativas Agimos apenas de maneira reativa negativa covarde Temos ensinado às nossas crianças que os nossos instintos são pecaminosos A parte mais rica do indivíduo que é a sua sensibilidade sua capacidade de amar e de odiar sua capacidade de se relacionar de maneira erótica com o mundo tem sido desprezada Temos ensinado o homem a ser obediente servil pacífico incompetente e depositar todas as suas esperanças num poder maior ou no fim das tempestades 59 Quando ensinaremos aos nossos alunos que eles não precisam se esconder diante das ameaças porque todos nós temos capacidade de alçar voo às alturas ultrapassando as nuvens carregadas de tempestade e perigo Temos ensinado às nossas crianças a se arrastar como vermes e porque se arrastam como vermes elas se tornam incapazes de reclamar se lhes pisam na cabeça O que desejamos afinal desenvolver em nós mesmos e nos jovens O instinto da tartaruga ou o espírito das águias FONTE RODRIGUES Neidson Lições do príncipe e outras lições 18 ed São Paulo Cortez 1999 p 110 Agora responda 2 No texto Desafio aos educadores lemos que a escola desenvolve nos alunos apenas o instinto das tartarugas sendo que deveria desenvolver o espírito das águias Você concorda Por quê 1 Na sua opinião atualmente a escola cumpre seu papel no que se refere à formação de leitores Comente 60 61 TÓPICO 2 GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA ESTRUTURA I UNIDADE 2 1 INTRODUÇÃO As narrativas sejam elas contos de fada lendas fábulas romance entre outras constituemse em objeto de leitura Propiciam ao leitor ou ouvinte uma ou várias interpretações de acordo com seus referenciais Há que se considerar que tais textos possuem características pertinentes que provocam efeitos diferentes em diversas pessoas É em parte a história de vida de cada um que determinará sua significação O encontro com essa literatura favorece a liberdade a satisfação e desperta o imaginário Assim após considerações que situam a literatura como arte envolvida com a palavra descompromissada com a verdade lógica com a racionalidade utilitária e sua inclusão no universo infantil interessanos agora definir uma de suas formas de manifestação mais praticadas a saber o texto narrativo 2 AS NARRATIVAS E O ESTILO Pessoas das mais variadas condições socioculturais têm prazer de ouvir e contar histórias O romancista e ensaísta Forster 1998 cita a obra As mil e uma noites na qual a protagonista Sherazade narrava diariamente histórias ao sultão e as interrompia em momentos de suspense Essa atitude da jovem contadora de histórias motivava sempre mais a curiosidade do sultão Tal fato livrou Sherazade da morte visto que o sultão enamorouse da habilidosa narradora Para Forster nós também somos como o sultão pois quando nossa curiosidade é aguçada permanecemos muito atentos ao desenrolar de um fato Entre os gêneros literários a narrativa poderia ser conceituada como uma forma de discurso que nos apresenta uma história imaginária como se fosse real constituída por uma pluralidade de personagens cujos episódios de vida se entrelaçam num tempo e num espaço determinados DONOFRIO 2006 p 53 isto é características que fariam da narrativa um gênero universal cuja inventividade revelase nas diversas modalidades artísticas em que ainda se concretiza A narrativa pode ser sustentada pela linguagem articulada oral ou escrita pela imagem fixa ou móvel pelo gesto ou pela mistura ordenada de todas essas substâncias está presente no mito na fábula UNIDADE 2 A LITERATURA INFANTIL FONTE DE EMOÇÕES 62 no conto na novela na epopeia na história na tragédia no drama na comédia na pantomima na pintura no vitral no cinema nas histórias em quadrinhos no faits divers na conversação Além disso sob essas formas quase infinitas a narrativa está presente em todos os tempos em todos os lugares em todas as sociedades BARTHES 1972 p 19 Você já parou para pensar o quanto a nossa vida é marcada pela presença da narrativa A todo instante estamos contando para alguém ou silenciosamente para nós mesmos fatos e episódios que nos acontecem ou que poderiam vir a acontecer em nosso dia a dia Basta levantarmos da cama e começa a se desenhar mais uma história mais uma forma de narrativa que vamos indefinidamente tecendo até a nossa morte Alguns de nós mais talentosos conseguem transformar o essencial desses relatos em textos literários por isso são escritores UNI À estrutura da narrativa portanto corresponderia uma lógica não matemática ou exclusivamente racional mas captada de um modo simples e ao mesmo tempo maravilhoso posto que originalmente resultante de uma intuição presente na arte primitiva da caça que ademais pressupunha uma lógica da adivinhação Talvez a própria ideia de narração tenha surgido pela primeira vez numa sociedade de caçadores da experiência do deciframento de indícios mínimos O caçador teria sido o primeiro a contar uma história porque era o único capaz de ler nas pegadas mudas se não imperceptíveis deixadas pela sua presa uma série coerente de acontecimentos GINZBURG apud COMPAGNON 2010 p 129 Além da estrutura da narrativa assunto que será ampliado nos próximos tópicos vale ressaltar a questão relacionada ao que conhecemos como estilo Do dicionário escolhemos as seguintes asserções da palavra estilo maneira de exprimirse utilizando palavras expressões que identificam e caracterizam o feitio de determinados grupos classes ou profissões conjunto de tendências e características formais conteudísticas estéticas etc que identificam ou distinguem uma obra um artista etc ou determinado período ou movimento conjunto de traços que identificam determinada manifestação cultural HOUAISS VILLAR 2009 p 835 A noção de estilo conforme pensadores alemães ingleses e franceses resume o espírito a visão de mundo própria de uma comunidade Pode representar uma norma um ornamento um desvio um gênero uma cultura ou ainda a soma de todos esses conceitos COMPAGNON 2003 Assim a história da literatura pode ser descrita considerando os vários estilos ou os traços marcantes de determinado período o estilo romântico o barroco o clássico o moderno TÓPICO 2 GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA ESTRUTURA I 63 Compagnon 2003 após um levantamento das noções que permeiam o entendimento do estilo considerou que três aspectos são inevitáveis e insuperáveis para o entendimento das noções de estilo O estilo é uma variação formal a partir de um conteúdo mais ou menos estável o estilo é um conjunto de traços característicos de uma obra que permite que se identifique e se reconheça mais intuitivamente do que analiticamente o autor o estilo é uma escolha entre várias escrituras COMPAGNON 2003 p 194 Estilo pode ser entendido como uma forma mais ou menos constante que varia de acordo com as qualidades e as expressões que persistem na arte de um indivíduo ou de um grupo de indivíduos A esse conjunto de textos de determinada nação que se singulariza pela presença de determinados valores estéticos dáse nas palavras de Diderot o nome de arte apud SILVA 1986 p 6 Então podemos afirmar que no que tange à literatura há que se considerar que o estilo abarca questões relativas à natureza e público a que se destina e em nosso caso o jovem leitor Além disso a classificação é feita não somente em função do aspecto temático mas levando em conta a predominância de elementos constitutivos de cada gênero A maneira do escritor organizar e expressar ideias e pensamentos elementos e estruturas caracteriza o estilo tais como a apresentação o conflito ou a complicação o clímax o desfecho o tema ou enredo a fala das personagens o espaço ou seja o ambiente o tempo são recursos dos quais o escritor lança mão para compor os mais variados gêneros Nesse sentido é importante que na escola o professor atente para esses aspectos a fim de que possa refletir juntamente com os alunos o que engendra um texto literário Caroa acadêmicoa a partir do conceito de estilo proposto por Compagnon elencamos uma característica marcante nos escritos de Machado de Assis qual seja a de um narrador intrometido as personagens machadianas contam sua vida e intercalam a narração em primeira pessoa com frequentes explicações para o leitor Parecem justificar para si e explicar aos que os escutam os acontecimentos que motivaram seus atos O narrador eou protagonista provoca o leitor em uma série de afirmações interrogações exclamações Nos contos machadianos encontramos este recurso a exemplo do conto O Sainete Pode o leitor coçar o nariz à procura da explicação a leitora não precisa desse recurso para adivinhar que o Dr Maciel ama que uma seta do deus alado o feriu mesmo no centro do coração O que a leitora não pode adivinhar sem que eu lho diga é que o jovem médico ama a viúva Seixas cuja maravilhosa beleza levava após si os olhos dos mais consumados pintalegretes O Dr Maciel gostava de a ver como todos os outros amoua desde certa noite e certo baile em que ela andando a passeio pelo seu braço perguntoulhe de repente com a mais deliciosa languidez do mundo ASSIS 2011 p 68 UNIDADE 2 A LITERATURA INFANTIL FONTE DE EMOÇÕES 64 Após mapear alguns atributos que definem a narrativa literária resenharemos acerca dos gêneros mais comuns na modalidade literatura infantojuvenil Além disso atente para a sua estrutura seu estilo suas características procure estabelecer diferenças e semelhanças Bom estudo 3 NARRATIVAS O CONTO No mundo dos contos de fadas não devem ser despertados sentimentos de angústia e tampouco sentimentos inquietantes Quanto ao silêncio e escuridão tudo o que podemos dizer é que são realmente os fatores a que se acha ligada a angústia infantil que na maioria das pessoas nunca desaparece inteiramente FREUD 2010 p 376 Os contos populares contos de fada as lendas bem como o cordel o mito sempre foram associados ao folclore e por vezes foram suprimidos dos estudos literários Segundo Leal 1985 p 9 a partir do século XX com a linguística saussuriana ocorre um resgate acadêmico desse material de origem popular Assim despontam novas perspectivas sugerindo outros modelos de análise para essas narrativas As reflexões compreenderam que o ato de narrar de recontar histórias é inerente ao ser humano Desde o princípio das civilizações o contar oralmente era a única possibilidade de registro e sendo assim foi reconstruído seu valor tanto literário quanto no processo de formação do leitor Nesse sentido esse resgate da chamada literatura oral beneficiou a construção de uma memória de leitura de um povo bem como os estudos dessa literatura Além dos crescentes trabalhos sobre as narrativas de tradição oral o mercado editorial também ampliou o número de edições dessas histórias geralmente catalogadas como literatura infantil e juvenil com um tratamento editorial e gráfico aprimorado colorido com ilustrações e traços que realçam as novas configurações e os elementos visuais No Brasil Cascudo 2004 coletou e registrou histórias contadas pelo povo especialmente do Nordeste brasileiro sempre com o cuidado de ser um coletor não um autor Cascudo declarou que mantinha cerca de noventa por cento da linguagem oral Nenhum vocábulo foi substituído Apenas não julguei indispensável grafar muié prinspo prinspa timive terrive Conservei a coloração do vocabulário individual as imagens perífrases intercorrências Impossível será a ideia do movimento o timbre a representação personalizadora das figuras evocadas instintivamente feita pelo narrador CASCUDO 2004 p 16 Segundo Leal 1985 nas coletâneas de Câmara Cascudo há nos textos um estilo revelando um contorno peculiar de composição oral marcada pela escritura TÓPICO 2 GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA ESTRUTURA I 65 Esses contos lendas narrativas míticas é bom lembrar são expressões de culturas orais propagadas por narradores passadas de geração em geração portanto passíveis de modificações fusões acréscimos cortes substituições e influências Eis porque os contos populares revelam certa dificuldade de identificar sua verdadeira origem Ainda segundo Câmara Cascudo folclorista brasileiro para ser classificado como conto popular é preciso que o conto seja velho na memória do povo anônimo em sua autoria divulgado em seu conhecimento e persistente nos repertórios orais Que seja omisso nos nomes próprios localizações geográficas e datas CASCUDO 2004 p 13 O conto difere de outras formas de narrativa de ficção não somente por sua brevidade que oferece um episódio uma amostra da vida mas por conter outras características É o que procuraremos elencar 31 OS CONTOS DE FADA Estas narrativas surgiram com os celtas aproximadamente no século II aC propagadas através da oralidade O conto de fada apresenta uma estrutura com início meio e fim A história iniciase com uma situação de equilíbrio alterada por um conflito No decorrer dos acontecimentos a tranquilidade é retomada pelo herói ou heroína efetuandose assim o desfecho da história Fada Palavra derivada do latim fátaae a deusa do destino Parca HOUAISS VILLAR 2009 p 867 UNI Nessas narrativas aparecem fadas duendes espelhos mágicos príncipes princesas reis rainhas bruxas gigantes ou seja objetos ou seres mágicos elementos que conferem uma simbologia a esse modelo literário Apresentam temas relacionados ao medo ao amor às carências às perdas e buscas Essas questões fazem parte do cotidiano infantojuvenil e favorecem a autodescoberta quem somos e o que desejamos conforme nossos valores morais e éticos Os contos de fada trazem a magia que alimenta a imaginação ajudam a encarar os problemas da vida e por vezes trazem esperanças de dias melhores É um pouco por isso que ainda hoje esses contos continuam a ser tão encantadores para adultos e crianças que podem acreditar UNIDADE 2 A LITERATURA INFANTIL FONTE DE EMOÇÕES 66 pelo menos na fantasia de que é possível viver feliz para sempre GAGLIARDI AMARAL 2001 p 86 O conto possibilita à criança dar vazão a seus afetos e angústias ou seja o conto faz rir e chorar é um treino para as emoções Bruno Bettelheim 1980 em sua obra A Psicanálise dos Contos de Fada afirma que os mesmos ajudam a resolver problemas da existência da criança Enfatiza também o poder regenerador dos contos Por conterem na sua estrutura elementos simbólicos criam uma ponte com o inconsciente propiciando ao jovem leitor conforto e consolo em termos emocionais Outro elemento característico dos contos de fada é a presença de personagens que não mudam bruscamente suas ações ou reações no decorrer da narrativa são bem delineadas quanto ao seu caráter ou modo de ser bom ou mau São representantes destas personagens os reis as rainhas os príncipes as princesas as fadas as bruxas Personagens classificadas como planas E que serão objeto de estudos futuros Algumas características são recorrentes entre os contos tais como a existência de poderes desconhecidos feitiços monstros encantos instrumentos mágicos vozes do além viagens extraordinárias Costumam ocorrer num tempo desconhecido reconhecido pelas expressões era uma vez há muito tempo há milhares de anos Nelly Novaes Coelho 2000 p 173 distingue conto maravilhoso do conto de fadas Segundo a autora o conto maravilhoso foi difundido pelos árabes São narrativas nas quais a aventura é de natureza materialsocialsensorial ou seja no enredo aparece a satisfação do corpo e busca pela riqueza e poder Ainda de acordo com a autora isto o diferencia do conto de fadas uma vez que este é de origem celta e é permeado por uma natureza espiritualética existencial com aventuras ligadas ao sobrenatural daí a aparecerem os seres dotados de poderes como as fadas com extraordinários encantos IMPORTANTE As personagens geralmente são apresentadas como a bela adormecida um certo rei uma princesa muito linda a filha mais amada e que no decorrer da narrativa enfrentam os mais variados perigos nos quais aventuram se são castigados vencem casam e quanto ao aspecto físico não mudam Além disso exploram o bem como tudo o que corrobora para com os objetivos do herói ou da heroína Ao contrário o que prejudica ou atrapalha é denominado de mal Em outras palavras é uma moral relativa determinada por situações do contexto TÓPICO 2 GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA ESTRUTURA I 67 As personagens nos contos de fadas não são ambivalentes não são ao mesmo tempo boas e más como somos todos na realidade Mas uma vez que a polarização domina a mente da criança ela também domina os contos de fadas Uma pessoa é boa ou má sem meiotermo Um irmão é tolo o outro esperto Uma irmã é virtuosa e trabalhadora as outras vis e preguiçosas Uma é bela as outras feias BETTELHEIM 2007 p 20 É assim que para Bettelheim ao lado das relações parentais e afetivas seria o conto de fadas a mais alta expressão de uma herança cultural que poderia verdadeiramente contribuir para propiciar às crianças uma infância emocionalmente sadia Enquanto diverte a criança o conto de fadas esclarece sobre si próprio e favorece o desenvolvimento de sua personalidade Oferece tantos níveis distintos de significado e enriquece a sua existência de tantos modos que nenhum livro pode fazer justiça à profusão e diversidade das contribuições dadas por esse conto à vida da criança O prazer que experimentamos quando nos permitimos ser sensíveis a um conto de fadas o encantamento que sentimos não vêm do significado psicológico de um conto embora isso contribua para tal mas de suas qualidades literárias o próprio conto como uma obra de arte BETTELHEIM 2007 p 17 São narrativas que pressupõem sempre uma voz que conta até porque como já sabemos nasceram na oralidade são textos lineares com começo meio e fim Bettelheim 2007 por exemplo acredita que a simplificação das ações narrativas através do uso da tríade básica começo meio e fim aliada à polarização das personagens em boas e más capta uma origem inconsciente e profunda dos valores humanos que podem contribuir significativamente para a evolução emocional da criança evolução que se deve dar de forma progressiva posto que só em idade madura ela estaria apta a estabelecer relações mais complexas e mais próximas da realidade tal como a experimentamos Vejamos outras questões encontradiças nessas narrativas quais sejam a metamorfose personagens ou objetos podem ser encantados por algum efeito maléfico Essa transformação ao que parece está ligada a antigas crenças de que todos os seres anormais ou disformes possuíam poderes de intervenção na vida humana Geralmente é uma figura feminina que consegue quebrar desfazer o encanto Outro elemento são os objetos mágicos que em um passe de mágica interferem no destino das personagens ajudando ou prejudicando Exemplos bem difundidos foram o espelho mágico e a varinha de condão Há que se considerar que os elementos sobrenaturais estão ligados a um enigma desafiador um obstáculo a ser vencido Os contos de fada apresentam geralmente seres dotados de poderes que vencem obstáculos e a partir de então modificam sua vida Conseguem por UNIDADE 2 A LITERATURA INFANTIL FONTE DE EMOÇÕES 68 exemplo conquistar a pessoa amada eou o trono de algum reino São enredos voltados a problemáticas existenciais nos quais de acordo com Bettelheim 2007 p 15 A cultura dominante deseja fingir particularmente no que se refere às crianças que o lado obscuro do homem não existe e professa a crença num aprimoramento otimista Em contrapartida essa é exatamente a mensagem que os contos de fadas transmitem à criança de forma variada que uma luta contra dificuldades graves na vida é inevitável é parte intrínseca da existência humana mas que se a pessoa não se intimida e se defronta resolutamente com as provações inesperadas e muitas vezes injustas dominará todos os obstáculos e ao fim emergirá vitoriosa Em tais enredos paira a ideia do maravilhoso A história iniciase com uma situação de equilíbrio alterada por um conflito devendo este ser resolvido pelo herói ou heroína A restauração da ordem acontece no desfecho da narrativa a trama é revelada ao leitor de forma rápida e surpreendente As fadas os duendes objetos mágicos príncipes princesas reis rainhas bruxas gigantes são elementos que assinalam o estilo desse gênero literário Assim por ser a forma narrativa de maior destaque na relação da literatura com a infância o conto popular mais conhecido como conto de fadas agrupa temáticas variadas que expressam a psicologia coletiva e inconsciente dos povos relatam coisas e eventos que não como eles são mas sim como deveriam ser portanto fazendo predominar sobre os aspectos negativos da vida os valores considerados sagrados pelas comunidades tais como o triunfo do bem sobre o mal da beleza sobre a feiura da verdade sobre a mentira da justiça sobre a injustiça entre outros As narrativas constituemse em objeto de leitura dentro e fora do espaço escolar O encontro com os contos de fada ainda favorece a liberdade e desperta o imaginário do leitor É o assunto que discutiremos a seguir 4 O PODER DOS CONTOS NA CONTEMPORANEIDADE Ainda que o tempo tenha evoluído os contos infantis não perderam o seu valor pois tanto as crianças quanto os jovens tiram proveito das suas mensagens ou seja fazem crescer e despertam a consciência Contribuem no despertar o interesse na literatura são estímulos à imaginação e criatividade favorecem o diálogo com os seus familiares e amigos potenciam a cultura e a inteligência emocional tratam de valores de comportamento ético entre outros Uma das prováveis vantagens dos contos de fadas sobre as outras formas de ficção devese à universalidade de sua difusão O compartilhamento de trechos do imaginário entre as crianças é o que possibilita sua utilização como se fosse um brinquedo Se uma menina diz para a outra seremos princesas eu quero ser a Bela Adormecida TÓPICO 2 GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA ESTRUTURA I 69 a amiga pode responder e eu a Cinderela e então a brincadeira pode começar sem maiores esclarecimentos CORSO CORSO 2003 p 78 De acordo com o exposto inferese que a criança através da imaginação incorpora traços da personalidade das personagens e cenários advindos da ficção No dizer de Bruno Bettelheim 2001 p 15 a criança necessita muito particularmente que lhe sejam dadas sugestões em forma simbólica sobre o modo como ela pode lidar com estas questões os problemas existenciais e crescer a salvo para a maturidade Com base nesse pressuposto o autor em questão vê o conto de fadas como possibilidade que conduz a um plano superior de compreensão e elaboração Bettelheim 2001 p 33 afirma que o conto de fadas é terapêutico porque o paciente encontra sua própria solução através da contemplação do que a história parece implicar acerca de seus conflitos internos neste momento da vida E argumenta ainda que a forma e a estrutura dos contos de fadas sugerem imagens à criança com as quais estrutura seus devaneios BETTELHEIM 2001 p 16 Ressalta a importância da história e dela extrair os elementos que vão servir de remédio para o convívio com os demais são as escolhas que as crianças fazem a partir do seu imaginário Seria esse o potencial dos contos traduzir o que se passa conosco ainda que não compreendamos uma angústia ou um sofrimento Uma história pode dar um sentido delinear o nosso sofrimento Nesse caso um conto de fadas estabelece uma relação com um problema real mérito que Bettelheim 2001 enfatiza pois a criança ao ouvir histórias fantásticas sente segurança e conforto ainda que não compreenda as dificuldades e onde estão consegue superálas pela sensação de um bemestar Para o autor em questão as crianças conseguem lidar melhor com o mundo extrafamiliar por conta das esperanças e promessas contidas nos contos de fadas ou seja à medida que a criança cresce consegue satisfações emocionais com pessoas que não fazem parte de sua família BETTELHEIM 1992 p 155 A criança se apropria de certas habilidades que não realizava mas que por força do seu natural desenvolvimento é desafiada como as mudanças de relações e hábitos Esse fato pode causar desapontamentos frustração desespero e decepção especialmente em relação aos seus pais seus provedores Segundo Bettelheim 1992 p 157 esse é o momento em que a criança começa a fantasiar e acreditar nas fantasias que forma e vive mais presa ao futuro fugindo das angústias de um presente que não a agrada A criança passa então a manejar os acontecimentos e suas relações com o mundo são determinadas pelo contato com contos de fadas durante a sua formação pelos avanços e retrocessos em seu desenvolvimento os quais se constituem forma sadia de crescer Desse modo quando insatisfeita é comum que ela imagine para UNIDADE 2 A LITERATURA INFANTIL FONTE DE EMOÇÕES 70 si um reino encantado cujo fato é positivo para o seu desenvolvimento pois é nesse fazer que a criança constrói sua personalidade BETTELHEIM 1992 É preciso então considerar o mito e a fantasia inerentes à formação humana afinal a simbologia é capaz de representar os pensamentos especialmente os da criança Os contos infantis contribuem para o conhecimento para o convívio harmonioso para a compreensão dos conflitos na medida em que a criança pelo contato e leitura cresce cognitivamente e estrutura a sua personalidade Ao compreender a simbologia dos contos de fadas pais e professores terão a seu favor um precioso recurso de desenvolvimento infantil que favorecerá a fantasia e a imaginação Diante disso é preciso um olhar atento sobre esse assunto com vistas a discussões acerca do papel dos contos de fadas no processo de ensino e aprendizagem Do ponto de vista antropológico e filosófico o mito é encarado como a palavra que designa um estágio do desenvolvimento humano anterior à história MOISÉS 2004 p 342 Assim as histórias expressavam uma compreensão fantástica ou um ponto de vista religioso do mundo e o mito aludia a uma forma de narrativa ficcional que em sua origem versaria sobre divindades e a interferência delas na vida e no comportamento humanos e que por ser criado por uma coletividade não possuiria uma autoria específica A maior parte deles por expressarem valores de comunidades primitivas passou a ser também estudada pela Mitologia Há entretanto os mitos literários criados por autores específicos e que buscam exprimir valores de vida pessoais obedecendo assim a um encadeamento mais lógico e subjetivo UNI TÓPICO 2 GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA ESTRUTURA I 71 A discussão acerca do poder dos contos de fada teve por base o livro Psicanálise dos contos de fadas publicado pela Bertand Editora 2001 que aborda os contos de fadas numa perspectiva psicológica e social Bruno Bettelheim reflete sobre os efeitos benéficos dos contos infantis na criança ajudando pais professores e outros profissionais que atuam com as crianças a compreender os impactos dos contos no desenvolvimento pessoal social e afetivo Para o estudioso além do entretenimento os contos infantis fornecem às crianças pistas para a resolução dos seus problemas como lidar com as mudanças de vida enfrentar um amigo na escola aprender a lutar pelo que se deseja entre outras possibilidades O autor aborda também as teorias da psicologia sociologia e psicanálise como o Complexo de Édipo o Inconsciente o Princípio do prazer versus princípio da realidade entre outras para embasar os seus estudos acerca do conto de fadas e o seu efeito na criança FONTE Disponível em httpwwwnetsabercombr UNI 72 RESUMO DO TÓPICO 2 Neste tópico apresentamos A narrativa poderá ser conceituada como uma história imaginária composta por uma pluralidade de personagens com episódios que se entrelaçam num tempo e num espaço O estilo presente nas narrativas e nas demais formas de expressão da arte pode ser entendido como uma norma um ornamento um traço marcante de determinado período autor obra levando em conta a predominância de elementos característicos de cada gênero Os contos as lendas as narrativas míticas é bom lembrar são expressões de culturas orais propagadas por narradores passadas de geração em geração portanto passíveis de modificações fusões acréscimos cortes substituições e influências No Brasil Câmara Cascudo coletou e registrou histórias contadas pelo povo especialmente do Nordeste brasileiro sempre com o cuidado de ser um coletor não um autor O conto de fadas apresenta uma estrutura com início meio e fim A história iniciase com uma situação de equilíbrio alterada por um conflito No decorrer dos acontecimentos a tranquilidade é retomada efetuandose assim o desfecho da história Os temas recorrentes nos contos estão relacionados ao medo ao amor às carências às perdas e buscas Outro elemento característico dos contos de fadas é a presença de personagens planas envoltas em temáticas que expressam a psicologia coletiva e inconsciente dos povos relatando valores considerados sagrados pelas comunidades tais como o triunfo do bem sobre o mal da beleza sobre a feiura da verdade sobre a mentira da justiça sobre a injustiça entre outros Nos contos maravilhosos as questões emanam do social e do econômico isto é são problemáticas ligadas à vida e à sobrevivência A personagem central lutará para conquistar bens status e poder Para tanto será auxiliada por elementos mágicos e maravilhosos São exemplos de conto maravilhoso O gato de botas Aladim e a lâmpada maravilhosa muitos dos contos de As mil e uma noites Os contos destinados ao público infantil não perderam seu encanto mágico e contribuem para despertar o interesse na literatura são estímulos à imaginação à criatividade e à interpretação favorecem o diálogo potenciam a cultura e a inteligência emocional 73 Para Bettelheim 2001 um conto de fadas estabelece uma relação com um problema real assim a criança ao ouvir histórias fantásticas sente segurança e conforto ainda que não compreenda as dificuldades consegue superálas pela sensação de um bemestar Os contos de fadas contribuem para o conhecimento para o convívio harmonioso para a compreensão dos conflitos na medida em que a criança pelo contato e leitura cresce cognitivamente e estrutura a sua personalidade O mito e a fantasia são inerentes à formação humana afinal a simbologia é capaz de representar os pensamentos O mito em sua origem acena para uma forma de narrativa ficcional que versa sobre divindades e a interferência delas na vida e no comportamento humanos foi criado por uma coletividade não possuindo uma autoria específica Há entretanto os mitos literários criados por autores específicos e que buscam exprimir valores de vida pessoais obedecendo assim a um encadeamento mais lógico e subjetivo A modalidade infantojuvenil devido à sua funcionalidade estética lúdica e cognitiva é fonte de instrução e arte porque pressupõe que desde a infância o homem necessita da expressão e da compreensão do mundo No constante contato com a arte a visualização da fantasia da imaginação do faz de conta a criança experimenta novas sensações com emoção prazer e aguça o fascínio pelo belo pela expressão artística 74 AUTOATIVIDADE Caroa acadêmicoa propomos algumas questões com o objetivo de leváloa a refletir sobre sua vida como leitora 1 Dos livros que você já leu qual deles você indicaria para um amigo Por quê 2 Quais são suas preferências de leitura quanto ao assunto Enumere de 1 a 9 indicando sua preferência de forma crescente Humor Ficção científica Terror Poesia Autoajuda Mistério Ciência e saúde Policial Filosofia Esoterismo Outros 3 Você gosta de ler revistas Em caso afirmativo quais 5 Quais seus escritores brasileiros preferidos 6 Quais seus escritores estrangeiros preferidos 7 Enumere de 1 a 10 de modo crescente as atividades de sua preferência Ouvir música Dançar Ler Ir ao cinema Praticar esportes 4 Você lê jornais Qual assunto mais interessa a você 75 Assistir TV Ir ao teatro Viajar Namorar Navegar na internet 8 Você se considera um leitor Justifique Importante que oa ProfessoraTutora Externoa comente sobre a necessidade de que para sermos professores devemos antes ser leitores Caroa acadêmicoa socialize suas respostas Peça para oa ProfessoraTutora Externoa ouvir o que os colegas escreveram Fomente o diálogo e a troca de ideias 76 77 TÓPICO 3 GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA ESTRUTURA II UNIDADE 2 1 INTRODUÇÃO Você já observou a tripartição das ações que aparece nas narrativas É o caso dos filmes sobre piratas em que se apresenta nos primeiros minutos uma ilha paradisíaca na qual vive uma linda moça que geralmente é filha de um governante ou rei Após ser mostrada essa situação inicial harmônica inicia se o conflito quando a linda jovem ao passear distraidamente em uma praia é raptada por um grupo de piratas malfeitores Organizase então uma expedição em busca de recuperar a moça indefesa momento em que um belo e valoroso jovem encarnando o papel de herói da trama salva a filha do governante e por ter restituído a harmonia inicial recebe a mão dela em casamento como forma de compensação por sua bravura Não será assim a estrutura da maior parte dos filmes hollywoodianos Pense nos que vêm à mente e reflita se eles estão ou não voltados para agradar ao senso comum 2 A COMPOSIÇÃO DOS TEXTOS LITERÁRIOS Após este exercício de reflexão discorreremos sobre a estrutura ou a composição das narrativas sobre o encadeamento de uma sequência de fatos reais ou imaginários na qual as personagens após uma série de acontecimentos restabelecem o equilíbrio diferente ou não do equilíbrio inicial Assim podemos dizer que um texto narrativo apresenta a seguinte estrutura Apresentação também conhecida como início no qual o autor apresenta parte dos personagens do ambiente e algumas das circunstâncias da história Devese atentar para o fato de que existem textos nos quais já de início mostrase a ação em pleno desenvolvimento Atente para o fato de que existe uma técnica literária conhecida como In media res expressão latina que significa no meio dos acontecimentos O escritor omite personagens cenários e conflitos no início da narrativa e os retoma adiante por meio de uma série de flashbacks ou por intermédio de personagens que discorrem entre si sobre eventos passados Essa forma de iniciar a narrativa não no início temporal mas a partir de um ponto médio de seu desenvolvimento pode ser encontrada nas obras clássicas como a Eneida de Virgílio e a Ilíada de Homero 78 UNIDADE 2 A LITERATURA INFANTIL FONTE DE EMOÇÕES O escritor Luís de Camões a exemplo dos clássicos lançou mão dessa técnica em Os Lusíadas NOTA Conflito ou complicação momento do texto no qual se inicia propriamente a ação O aparente equilíbrio dá lugar a transformações expressas em um ou mais episódios que se sucedem conduzindo ao clímax A partir desse primeiro movimento de entrada na narrativa no qual identificamos uma convivência harmônica entre as personagens e a sociedade retratada seguirseá inevitavelmente um segundo movimento denominado fase de transgressão e que é caracterizado pela ruptura daquela forma de convivência ordeira e pacífica por parte de um indivíduo vil ou fraco de caráter transgressão esta a partir da qual se inicia o terceiro movimento agora em direção ao fim da história e que trata do restabelecimento da ordem inicial conhecido como clímax Neste momento a narrativa atinge seu ponto máximo e crítico que convergirá no desfecho Para entendermos o arranjo das funções contratuais é preciso pressupor um contrato natural e implícito subjacente a toda organização social o indivíduo deve admitir uma hierarquia de valores e a ela subordinarse Em troca do conforto da proteção e de outros inúmeros benefícios que a vida em sociedade lhe oferece o indivíduo obrigase ao respeito das normas impostas pelo viver em comunidade A transgressão de uma ordem por parte de um membro da sociedade implica a ruptura desse contrato natural implicitamente aceito No seio da sociedade o elemento disfórico o transgressor é contrabalançado pelo herói o reparador DONOFRIO 2006 p 78 Desenlace ou desfecho parte do texto na qual se restabelece o equilíbrio e em que geralmente acontece a solução do conflito Os episódios que compõem as narrativas podem seguir uma sequência cronológica No entanto encontramos narrativas em que o desfecho aparece antes da complicação e do clímax É interessante notar que essa forma estrutural das histórias estabelecida segundo três movimentos estruturais básicos três pontos centrais fixos começo ou equilíbrio transgressão ou dano e reparação adveio de um estudo contundente do teórico russo Vladimir Propp não propriamente sobre textos eruditos mas acerca dos tradicionais contos populares Assim Propp foi o pioneiro da abordagem interna ou estrutural do texto literário Para ele uma narrativa é vista como uma obra de arte que uma vez produzida passa a ter uma vida independente do autor e da época DONOFRIO 2006 p 66 TÓPICO 3 GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA ESTRUTURA II 79 Dessa forma a partir do estudo de cem contos maravilhosos o referido autor pôde constatar que poderiam ocorrer não apenas três mas 31 funções fixas comuns e possíveis não apenas aos contos de fadas e histórias maravilhosas mas a toda e qualquer forma de narrativa literária funções sobre as quais devem se debruçar todos aqueles interessados em aprofundar seus estudos em teoria da literatura Caroa acadêmicoa relacionamos a seguir as 31 funções elencadas por Vladimir Propp afastamento interdição transgressão interrogação informação engano cumplicidade dano pedido de socorro início da ação contrária partida função do doador reação do herói recepção do objeto mágico deslocamento espacial luta marca vitória reparação volta perseguição socorro chegada incógnita pretensões falsas tarefa difícil tarefa cumprida reconhecimento desmascaramento transfiguração punição casamento UNI Além de sua estrutura vários elementos compõem a narrativa personagens ação tempo espaço tema ou enredo e estilo integrados numa obra a ser apreciada pelo leitor Refletiremos caroa acadêmicoa sobre cada um destes 21 A AÇÃO Ação história trama assunto tema ou o enredo são alguns dos termos usados para designar o que sucede na narrativa No caso das narrativas infantis e contos tradicionais desenrolamse dois tipos padrões de ação um em que alguém por sentirse inadequado ao meio social em que vive pretende modificar na maior parte das vezes de modo ilícito a harmonia social existente papel geralmente desempenhado pelo vilão da história e um segundo em que algum personagem colocado em contraposição àquele encarna os valores sociais idealizados pela comunidade e por ser destinado ao bem consegue restituílos na medida em que vence o mal e vilania a ele associada O conto de fadas simplifica todas as situações Suas personagens são esboçadas claramente e detalhes exceto quando muito importantes são eliminados Todas as personagens são típicas em lugar de únicas Em praticamente todo conto de fadas o bem e o mal são corporificados sob a forma de alguns personagens e de suas ações Não é o fato de a virtude vencer no final que promove a moralidade mas sim o fato de o herói ser extremamente atraente para a criança que se identifica com ele em todas as suas lutas BETTELHEIM 2007 p 16 80 UNIDADE 2 A LITERATURA INFANTIL FONTE DE EMOÇÕES O enredo envolve o que acontece com as personagens suas ações e reações É o desenrolar dos acontecimentos simples ou complexos de conflitos que surgem de uma situação que desequilibra a vida das personagemns e que pode ser resolvida ou não Então podemos dizer que a ação referese à sequência dos acontecimentos de uma narrativa literária teatral cinematográfica entre outras Acerca ainda dessa tripartição fabular começo meio e fim que possibilita categorizar o gênero narrativo como um conjunto de obras que se valem dos mesmos elementos estruturais e que os utilizam de um modo semelhante é interessante destacar que uma ação decorreria da outra e todas partiriam do desenvolvimento de uma situação inicial que é determinada pelas relações existentes entre as personagens anteriormente a qualquer ação Geralmente ela é representada simbolicamente por uma paisagem edênica pitoresca e colorida e indica um estado de felicidade que serve como fundo contrastivo à infelicidade que vai se seguir A situação inicial é ao mesmo tempo estática e conflitual Estática porque não contém nenhum movimento ou ação Conflitual porque contém virtualmente um motivo dinâmico de conflito que irá possibilitar o desenrolar dos acontecimentos DONOFRIO 2006 p 7576 Mas de modo geral e independente do tipo de gênero da obra literária trata o enredo de um conjunto de acontecimentos narrados na trama termo que se reporta mais aos arranjos estilísticos dos episódios da narrativa ficcional ou para utilizar uma terminologia mais estrutural do desenrolar das ações da fábula termo que se reporta mais à sucessão cronológica dos acontecimentos em que personagens participam sofrem e reparam danos em um tempo sequencial e em um espaço determinado 22 AS FALAS NA NARRATIVA No que tange às falas das personagens estas podem ser classificadas em Discurso direto o discurso direto nas palavras de Ulisses Infante 1999 p 116 é a reprodução direta das falas das personagens e um recurso que imprime maior agilidade ao texto Você poderá constatar no exemplo que segue TÓPICO 3 GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA ESTRUTURA II 81 Seu major Seu major suspendeu as instruções ficou esperando Seu major Deuse O quê A coisa Hein A coisa O Washington Não percebo homem A REVOLUÇÂO VENCEU Estás doido O chefe da estação ficou possesso Eu doido O senhor é que está maluco Se não é analfabeto leia isto FONTE MACHADO Antônio de Alcântara Contos avulsos as cinco panelas de ouro Disponível em httpwwwbibliocombrconteudoalcantaramachadomcontosavulsoshtm Acesso em 12 nov 2012 O discurso indireto neste caso ao narrador cabe a tarefa de contar os fatos que se sucedem com as personagens Observe que a narrativa poderá ser conduzida na primeira ou na terceira pessoa utilizandose dos pronomes pessoais eu e nós Ocorre em terceira pessoa quando o narrador esclarece os fatos e os pormenores revelando progressivamente o caráter das personagens aspectos físicos e o meio em que vivem sem no entanto participar da história Entretanto o narrador não deve ser confundido com o autor O narrador pertence ao texto e fora deste ele não existe É uma entidade fictícia responsável pela dinâmica que produz o discurso narrativo Segundo W Kaiser 1970 o narrador tem como função atuar conduzir ou imprimir ou seja narrar Uma narrativa pode ser conduzida por um narrador que participa da história narrada e toma parte dos acontecimentos expondo o que presencia em primeira pessoa eu nós um narrador personagem Constituise assim em um personagemnarrador como no caso do conto de Clarice Lispector Felicidade Clandestina Ela era gorda baixa sardenta e de cabelos excessivamente crespos meio arruivados Tinha um busto enorme enquanto nós todas ainda éramos achatadas Como se não bastasse enchia os dois bolsos da blusa por cima do busto com balas Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter um pai dono de livraria 82 UNIDADE 2 A LITERATURA INFANTIL FONTE DE EMOÇÕES Pouco aproveitava E nós menos ainda até para aniversário em vez de pelo menos um livrinho barato ela nos entregava em mãos um cartãopostal da loja do pai Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo onde morávamos com suas pontes mais do que vistas Atrás escrevia com sua letra bordadíssima palavras como data natalícia e saudade Mas que talento tinha para a crueldade Ela toda era pura vingança chupando balas com barulho Como essa menina devia nos odiar nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas esguias altinhas de cabelos livres Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo Na minha ânsia de ler eu nem notava as humilhações a que ela me submetia continuava a implorar lhe emprestados os livros que ela não lia Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa Como casualmente informoume que possuía as Reinações de Narizinho de Monteiro Lobato Era um livro grosso meu Deus era um livro para se ficar vivendo com ele comendoo dormindoo E completamente acima de minhas posses Disse me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança de alegria eu não vivia eu nadava devagar num mar suave as ondas me levavam e me traziam No dia seguinte fui à sua casa literalmente correndo Ela não morava num sobrado como eu e sim numa casa Não me mandou entrar Olhando bem para meus olhos disseme que havia emprestado o livro a outra menina e que eu voltasse no dia seguinte para buscálo Boquiaberta saí devagar mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife Dessa vez nem caí guiavame a promessa do livro o dia seguinte viria os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira o amor pelo mundo me esperava andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez Mas não ficou simplesmente nisso O plano secreto da filha do dono da livraria era tranquilo e diabólico No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa com um sorriso e o coração batendo Para ouvir a resposta calma o livro ainda não estava em seu poder que eu voltasse no dia seguinte Mal sabia eu como mais tarde no decorrer da vida o drama do dia seguinte com ela ia se repetir com meu coração batendo E assim continuou Quanto tempo Não sei Ela sabia que era tempo indefinido enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer às vezes adivinho Mas adivinhando mesmo às vezes aceito como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra TÓPICO 3 GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA ESTRUTURA II 83 Quanto tempo Eu ia diariamente à sua casa sem faltar um dia sequer Às vezes ela dizia pois o livro esteve comigo ontem de tarde mas você só veio de manhã de modo que o emprestei a outra menina E eu que não era dada a olheiras sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados Até que um dia quando eu estava à porta de sua casa ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa apareceu sua mãe Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa Pediu explicações a nós duas houve uma confusão silenciosa entrecortada de palavras pouco elucidativas A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo Até que essa mãe boa entendeu Voltouse para a filha e com enorme surpresa exclamou Mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha Ela nos espiava em silêncio a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta exausta ao vento das ruas de Recife Foi então que finalmente se refazendo disse firme e calma para a filha Você vai emprestar o livro agora mesmo E para mim E você fica com o livro por quanto tempo quiser Entendem Valia mais do que me dar o livro pelo tempo que eu quisesse é tudo o que uma pessoa grande ou pequena pode ter a ousadia de querer Como contar o que se seguiu Eu estava estonteada e assim recebi o livro na mão Acho que eu não disse nada Peguei o livro Não não saí pulando como sempre Saí andando bem devagar Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos comprimindoo contra o peito Quanto tempo levei até chegar em casa também pouco importa Meu peito estava quente meu coração pensativo Chegando em casa não comecei a ler Fingia que não o tinha só para depois ter o susto de o ter Horas depois abrio li algumas linhas maravilhosas fecheio de novo fui passear pela casa adiei ainda mais indo comer pão com manteiga fingi que não sabia onde guardara o livro achavao abriao por alguns instantes Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade A felicidade sempre iria ser clandestina para mim Parece que eu já pressentia Como demorei Eu vivia no ar Havia orgulho e pudor em mim Eu era uma rainha delicada Às vezes sentavame na rede balançandome com o livro aberto no colo sem tocálo em êxtase puríssimo Não era mais uma menina com um livro era uma mulher com o seu amante FONTE LISPECTOR Clarice Coleção Literatura em Minha Casa seleção e organização de Maria Clara Machado Rio de Janeiro 2002 84 UNIDADE 2 A LITERATURA INFANTIL FONTE DE EMOÇÕES Podemos também encontrar nas histórias o narrador em terceira pessoa Aquele que esclarece os fatos e os pormenores revelando progressivamente o caráter das personagens aspectos físicos e o meio em que vivem sem no entanto participar da ação narrada Já o discurso indireto livre ocorre quando a narrativa é permeada pela intervenção do narrador e pela fala das personagens Observe o exemplo no excerto retirado do conto de Machado de Assis A igreja do Diabo Entre Deus e o Diabo Deus recolhia um ancião quando o Diabo chegou ao céu Os serafins que engrinaldavam o recémchegado detiveramse logo e o Diabo deixouse estar à entrada com os olhos no Senhor Que me queres tu perguntou este Não venho pelo vosso servo Fausto respondeu o Diabo rindo mas por todos os Faustos do século e dos séculos Explicate Senhor a explicação é fácil mas permiti que vos diga recolhei primeiro esse bom velho dailhe o melhor lugar mandai que as mais afinadas cítaras e alaúdes o recebam com os mais divinos coros Sabes o que ele fez perguntou o Senhor FONTE ASSIS Machado de Volume de contos Rio de Janeiro Garnier 1884 Extraído da Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro Disponível em httpwwwbibvirtfuturouspbr Acesso em 15 out 2012 23 O ESPAÇO O espaço é o ambiente o cenário por onde se desenvolve a trama e circulam os personagens Seu meio familiar social tipo de habitação clima vestuário são elementos do espaço que corroboram para a significação e verossimilhança da narrativa Existem basicamente três tipos de espaço o natural aquele não modificado pelo trabalho do homem planície deserto mar o espaço social constituído de elementos da natureza ou do ambiente modificados pela civilização casas castelos casebres meios de transporte e outros e finalmente o espaço transreal criado pela imaginação do homem No dizer de Nelly Coelho 2000 p 77 é um espaço não localizável no mundo real Através dele podem se configurar traços dos personagens e até mesmo a própria história TÓPICO 3 GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA ESTRUTURA II 85 24 O TEMPO Em uma narrativa os fatos ou situações se desenvolvem e chegam a um final isto é existem durante um determinado tempo COELHO 2000 O narrador pode contar os fatos no tempo em que eles estão acontecendo ou narrar um fato já concluído ou ainda entremear presente e passado técnica denominada flashback Na narrativa existem dois tipos de tempo vividos pelos personagens o tempo cronológico ou convencional que é representado em horas dias meses e anos e que corresponde ao tempo exterior vinculado aos movimentos de rotação e translação da Terra O outro tempo encontrado na narrativa é o tempo interior o qual se destaca pela desmistificação das estruturas temporais Nesse tempo aparece a fugacidade que permeia a memória influência de Bérgson filósofo francês que ressignificou o conceito de tempo e duração Para Bérgson o passado se projeta sobre o presente condicionandoo Esta forma de tempo na literatura moderna substituiu a sequência cronológica pela sequência psicológica 3 A PERSONAGEM E SEUS ASPECTOS A palavra personagem deriva do termo latino persona termo usado pelos romanos para denominar as máscaras usadas nas representações teatrais A personagem da narrativa cumpre funções específicas a partir do conjunto de ações que a qualifica como boa ou má vilã ou heroína corajosa ou covarde De modo geral nos textos literários as mesmas aparecem associadas a valores religiosos morais políticos éticos e suas atitudes serão determinadas pelas suas crenças Nas personagens o leitor centra sua atenção enfatizando o que lhes acontece seus pensamentos suas ações seu modo de agir e falar O autor na construção da personagem propõe um modelo no qual evidencia uma concepção de homem e de sociedade podendo o leitor por sua vez identificarse com determinadas características ou modo de agir Conforme Rosenfeld et al 1995 p 48 a ficção é um lugar ontológico privilegiado lugar em que o homem pode viver e contemplar através de personagens variadas a plenitude de sua condição em que se torna transparente a si mesmo lugar em que transformandose imaginariamente num outro vivendo outros papéis e destacandose de si mesmo verifica realiza e vive a sua condição fundamental de ser autoconsciente e livre capaz de desdobrarse distanciarse de si mesmo e de objetivar a sua própria situação Não há narrativa sem personagem ela é um elemento decisivo da narração A personagem participa do desenrolar dos acontecimentos vive o enredo e as ideias e os torna vivos CANDIDO 1995 p 54 A relevância da personagem tem sido objeto de estudo e a crítica apoiouse no que as personagens representam ou fazem dentro da narrativa para melhor classificálas Basicamente de acordo com Forster 1998 existem na literatura duas categorias de personagens planas e redondas As planas na sua forma mais pura são construídas ao redor de uma 86 UNIDADE 2 A LITERATURA INFANTIL FONTE DE EMOÇÕES única ideia ou qualidade quando lhes descortinamos mais de um fator iniciamos o percurso de uma curva rumo da personagem redonda MOISÉS 2004 p 348 A personagem plana é simples em sua construção É facilmente reconhecida no decorrer da narrativa não muda suas ações As personagens planas reportamse àquelas que jamais mudam de temperamento de modos de agir e de reagir no decorrer da narrativa como é o caso da bruxa má do rei bondoso da fada madrinha e amiga que embora ajudem a compreensão da criança através da simplificação dos traços humanos tendem a fixar estereótipos A mulher bela e dócil vence suas dificuldades cativando um príncipe que a redime garantindo segurança e riqueza A virtude é premiada materialmente numa negação de que ela valha algo por si mesma já que é sempre meio de conseguirse poder e riquezas MAGALHÃES In ZILBERMAN 1984 p 49 Segundo Forster 1998 as personagens planas podem ainda ser subdivididas em personagemtipo e caricaturas Neste caso são construídas de maneira simples e de fácil reconhecimento na trama e em personagemcaricatura quando o seu traço distintivo beira o cômico e a deformidade como é o caso para quem leu Machado de Assis da personagem José Dias de Dom Casmurro que arremata sua falação sempre com uma expressão no modo superlativo São personagenstipo aquelas que podem ser definidas em poucas palavras ou seja quando a sua peculiaridade alcança o auge sem causar deformidade MOISÉS 2004 p 349 Do contrário quando são motivo de chacota ou seja a deformidade está a serviço da sátira ou do cômico são conhecidas como caricaturas MOISÉS 2004 p 349 Podemos citar como exemplos de personagem plana reis rainhas príncipes princesas fadas e também as que correspondem a uma função de trabalho ou estado social A personagem redonda é outra classificação estabelecida por Forster 1998 Esta é organizada com maior complexidade seus pensamentos e suas ações são reveladores de aspectos comportamentais e do caráter Suas ações são capazes de nos surpreender traz em si a imprevisibilidade contrariamente da personagem plana que nunca surpreende Não existe uma divisão precisa entre essas duas categorias podendo uma personagem passar de plana à redonda quando sua atuação se aprofunda no questionamento de valores Para Forster 1998 o que caracteriza uma personagem redonda é somente a sua capacidade de surpreender do contrário é plana Estabelecem um caráter complexo e imprevisível o que as levam a ter uma maior participação em contos literários e textos eruditos tal como no dizer de Moisés 2004 p 350 na construção de romances introspectivos ou de sondagem psicológica característicos da literatura contemporânea e que pouco se vinculam à tradicional literatura voltada para a criança TÓPICO 3 GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA ESTRUTURA II 87 FIGURA 9 ARLEQUIM PABLO PICASSO FONTE Disponível em httpwwwoqueenossonetblogspot com Acesso em 5 set 2012 É assim que nas figuras típicas do herói e do vilão a personagem de ficção simplificada desenhase como um elemento intrínseco e determinante da estrutura fabular da clássica literatura infantojuvenil Dessa forma ressaltamos que as personagens na narrativa vivem e dão consistência às ideias presentes nas ações e que podem ser classificadas segundo a terminologia didática de Forster 1988 em planas ou redondas Nas narrativas antigas os heróis descritos se analisados pelo viés psicológico eram figuras pouco complexas suas dúvidas as lutas de sua alma foram pouco exploradas por seus escritores Já o herói contemporâneo vai tomando consciência de si próprio rejeitando a versão dos outros quanto à sua pessoa à sua realidade É um herói sempre em busca LUKÁCS 1982 p 66 Por intermédio da exploração do interior do protagonista percebemos uma busca uma viagem que explora as profundezas do inconsciente A partir de uma ou várias realidades percebidas sobre um determinado fato a personagem vive seus próprios sentimentos e ilusões de modo individual assume uma máscara ou várias máscaras segundo a realidade e o seu interior O autor desenha e arquiteta a personagem em um processo típico de construção das personagens redondas e portanto dos romances introspectivos ou de sondagem psicológica MOISÉS 2004 p 350 Essas personagens entre os adolescentes devido à natureza questionadora são apreciadas Consideremos ainda que as ilustrações das personagens dos livros infantis e não somente os infantis muitas vezes carregam e reforçam estereótipos Explorar as características das personagens é levar o jovem leitor a perceber que preconceitos podem ser transmitidos através de palavras atos eou imagens 88 UNIDADE 2 A LITERATURA INFANTIL FONTE DE EMOÇÕES Vejamos caroa acadêmicoa o que diz Fanny Abramovich sobre as personagens encontradas nos livros infantojuvenis Segundo a autora livros infantis por vezes reforçam o ético e o estético as bruxas são assaz feias até monstruosas deformadas fazendo com que o afastamento físico a repulsa instintiva a reação da pele sejam o detonador do temor e do medo e não a ameaça emocional do que eles representam de fato para a criança ABRAMOVICH 1989 p 37 Ainda segundo a autora as princesas e as fadas são predominantemente de olhos azuis cabelos longos e lisos esbeltas e lindas o mesmo ocorre com o príncipe pele branca forte vestindo roupas belíssimas Reforçando o estereótipo da raça ariana FIGURA 10 PERSONAGENS ENCONTRADAS NOS LIVROS INFANTOJUVENIS FONTE Disponível em httpswwwgooglecombr searchqimagemderei Acesso em 5 set 2012 Observe que os reis são gordos os médicos aparecem de branco com maleta eou estetoscópio o avôs são marcados pelo uso de óculos e as avós portam óculos e coque E o preto Ora somente ocupa funções de serviçal setor doméstico ou industrial e aí pode ter um uniforme profissional que o defina enquanto tal e que o limite nessa atividade seja mordomo ou operário Normalmente é desempregado subalterno tornando claro que é coadjuvante na ação e por consequência coadjuvante na vida ABRAMOVICH 1989 p 37 O ladrão geralmente aparece feio e assustador mal vestido nunca bem vestido bonito rico Diante disso vale salientar que o ambiente no qual vivemos requer que estejamos atentos aos diversos sentidos luz som cor movimento imagens nos atraem Muitas vezes somos leitores passivos aceitamos sem questionamentos certos modelos impostos por uma sociedade marcada pela desvalorização do ser Que saibamos na escola ou em outros momentos de leitura promover e TÓPICO 3 GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA ESTRUTURA II 89 estimular a capacidade de ler nas entrelinhas de sentir e refletir produzir saber e conhecimento para organização de uma sociedade que não favoreça estereótipos Para tanto é conveniente que estejamos atentos aos vários textos que circulam em nossa sociedade e em especial nas formas clássicas de narrativa sua estrutura imagens e o engendramento das personagens dos textos literários e sua evolução no tempo Dentro das diversas modalidades que acabariam por tornarse a base de desenvolvimento do gênero literatura infantil entre as quais destacamos os mitos e as lendas as fábulas os contos parábolas parlendas entre outros gêneros fixados nas diversas culturas da humanidade Sugerimos a leitura do texto Personagem infantil a caminho da emancipação RAMOS PANOZZO ZANOLLA 2006 As autoras analisam três obras de 1919 a 1976 Caroa acadêmicoa é importante considerar a estrutura e elementos dos textos como recursos dos quais escritores e críticos literários lançam mão para construir e analisar as narrativas NOTA 31 A FÁBULA É uma narrativa curta geralmente com animais como personagens que agem como seres humanos e apresentam sentimentos Tem um caráter prático destinase a ilustrar um preceito Sua conclusão oferece uma lição diz como o leitor ou ouvinte pode melhorar sua conduta e convivência social a partir de exemplos de outros seres A intenção é ensinar o melhor comportamento e fazer refletir haja vista que possuem um caráter moralizante As fábulas nasceram no Oriente e foi no Ocidente no século IV aC que Esopo escravo grego as reinventou utilizandoas para mostrar como agir com sabedoria Além deste La Fontaine foi um dos maiores responsáveis pela divulgação dessa forma de narrativa No Brasil destacamos Monteiro Lobato que reescreveu e traduziu muitas das antigas fábulas e criou outras tantas Atente que no gênero narrativo fábula encontramos formas de relato de tamanho pequeno encenadas por animais que encerrariam uma lição de moral explícita ou implícita sugerindo ao leitor ou ouvinte como ele deveria proceder para melhorar sua conduta social Já a poesia enquanto modalidade literária originalmente pertencente ao gênero lírico e não ao épico no qual se inscrevem todas as narrativas era largamente utilizada na literatura em sua fase oral devido a ainda não haver a escrita impressa portanto o uso de rimas e de formas literárias fixas como é frequente nos poemas dessa época ajudava o processo de memorização dos conteúdos das narrativas fossem elas poéticas ou não UNI 90 UNIDADE 2 A LITERATURA INFANTIL FONTE DE EMOÇÕES FIGURA 11 FÁBULA A LEBRE E A TARTARUGA FONTE Disponível em httpamigosdaeducacaocomatividadesparaalfabetizacao fabulaalebreeatartarugahtmlfabulaalebreeatartaruga9 Acesso em 5 out 2012 O estilo adotado nas fábulas é marcado pelo caráter moralizante transmitindo ensinamentos referentes à sociedade da época em que foi escrita Portanto um determinado conselho presente numa fábula poderá tornarse obsoleto Na fábula existem dois elementos relevantes o lúdico e o pedagógico Este último mostra nas entrelinhas virtudes e defeitos do homem bem como questões ligadas ao meio ambiente 32 A LENDA A lenda surge na Idade Média com o intuito de narrar a vida dos mártires e dos santos da Igreja Católica e ao contrário das histórias míticas que se ligavam geralmente a entes sobrenaturais na lenda o herói é humano e religioso e situase em um acontecimento de fato na existência real de alguém ou de um episódio que a imaginação popular encarregarseia de desviar do fato de origem Assim embora o fato histórico gerador da lenda não possa ser provado ele pode ao contrário do mito ser situado geograficamente e em um período de tempo cronológico como por exemplo na lenda da fundação de Roma por Rômulo e Remo Como forma expressiva refletia o assombro e o temor do homem diante do mundo e buscava uma explicação necessária às coisas É uma forma de narrativa cujo argumento é tirado da tradição do relato de acontecimentos no qual o TÓPICO 3 GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA ESTRUTURA II 91 maravilhoso e o imaginário superam o histórico e o verdadeiro A lenda também possui características estilísticas próprias Geralmente a lenda é marcada por um profundo sentimento de fatalidade que fixa a presença do destino aquilo contra o que não se pode lutar ou seja o homem dominado pela força do desconhecido De origem muitas vezes anônima a lenda foi transmitida e conservada pela tradição oral como esta que veremos a seguir A Vitóriarégia A lenda da vitóriarégia é brasileira de origem indígena tupiguarani Há muitos anos em uma tribo indígena contavase que a Lua Jaci para os índios era uma deusa que ao despontar a noite beijava e enchia de luz os rostos das mais belas virgens índias da aldeia as cunhantãsmoças Sempre que ela se escondia atrás das montanhas levava para si as moças de sua preferência e as transformava em estrelas no firmamento Uma linda jovem virgem da tribo a guerreira Naiá vivia sonhando com este encontro e mal podia esperar pelo grande dia em que seria chamada por Jaci Os anciãos da tribo alertavam Naiá depois de seu encontro com a sedutora deusa as moças perdiam seu sangue e sua carne tornandose luz viravam as estrelas do céu Mas quem a impediria Naiá queria porque queria ser levada pela Lua À noite cavalgava pelas montanhas atrás dela sem nunca alcançála Todas as noites eram assim e a jovem índia definhava sonhando com o encontro sem desistir Não comia e nem bebia nada Tão obcecada ficou que não havia pajé que lhe desse jeito Um dia tendo parado para descansar à beira de um lago viu em sua superfície a imagem da deusa amada a Lua refletida em suas águas Cega pelo seu sonho lançouse ao fundo e se afogou A Lua compadecida quis recompensar o sacrifício da bela jovem índia e resolveu transformála em uma estrela diferente de todas aquelas que brilham no céu Transformoua então numa Estrela das Águas única e perfeita que é a planta vitóriarégia Assim nasceu uma linda planta cujas flores perfumadas e brancas só abrem à noite e ao nascer do Sol ficam rosadas FONTE Disponível em httpwwwculturavotorantimcombrid24 Acesso em 9 abr 2013 FIGURA 12 A LENDA DA VITÓRIARÉGIA FONTE Disponível em httpwwwovermundocombrbanco vitoriaregia1 Acesso em 5 set 2012 92 UNIDADE 2 A LITERATURA INFANTIL FONTE DE EMOÇÕES 33 A PARÁBOLA É uma narrativa que expressa uma moral por isso é frequentemente confundida com a fábula Porém diferenciase desta pelo fato de ser protagonizada por seres humanos Nos textos bíblicos encontramos várias parábolas como por exemplo a do Semeador FIGURA 13 CAPA DO LIVRO A PARÁBOLA DO SEMEADOR FONTE Disponível em httpwwwdiskshopcom brsystemprodutosactiondetalhesprodid162 Acesso em 5 set 2012 No livro em questão a parábola é contada ao leitor infantil com algumas características particulares linguagem acessível ricamente ilustrada contendo no final uma atividade para a criança interagir A agradável apresentação visual gráfica e o conteúdo expresso em linguagem simples e acessível fazem deste livrinho como os demais da mesma coleção um excelente subsídio para iniciar o público infantil na assimilação dos ensinamentos de Jesus 34 A PARLENDA Composição literária tradicional que se caracteriza por apresentar forma versificada ritmo fácil e rápido É entretenimento garantido em especial entre as crianças o que significa dizer que sua finalidade é ensinar algo através da diversão É comumente chamada de travalíngua quando recitada de maneira rápida e repetidamente É uma importante aliada para despertar na criança os sentidos a sensibilidade e a musicalidade Caroa acadêmicoa brinque um pouco Tente ler rapidamente TÓPICO 3 GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA ESTRUTURA II 93 A ARANHA E A JARRA Debaixo da cama tem uma jarra Dentro da jarra tem uma aranha Tanto a aranha arranha a jarra Como a jarra arranha a aranha CAJU O caju do Juca E a jaca do cajá O jacá da Juju E o caju do Cacá LUZIA E OS LUSTRES Luzia listra os Lustres listrados NÃO CONFUNDA Não confunda ornitorrinco Com otorrinolaringologista Ornitorrinco com ornitologista Ornitologista com otorrinolaringologista Porque ornitorrinco é ornitorrinco Ornitologista é ornitologista E otorrinolaringologista é otorrinolaringologista O DESENLADRILHADOR Essa casa está ladrilhada Quem a desenladrilhará O desenladrilhador que a desenladrilhar Bom desenladrilhador será ATRÁS DA PIA Atrás da pia tem um prato Um pinto e um gato Pinga a pia apara o prato Pia o pinto e mia o gato SEU TATÁ O seu Tatá tá Não o seu Tatá não tá Mas a mulher do seu Tatá tá E quando a mulher do seu Tatá tá É a mesma coisa que o seu Tatá tá tá FONTE Disponível em httpwwwqdivertidocombrverfolclorephpcodigo22 Acesso em 5 out 2012 94 UNIDADE 2 A LITERATURA INFANTIL FONTE DE EMOÇÕES 35 O ROMANCE O gênero romance deriva da expressão latina romanice que significa falar romântico ou seja falar num dos vários dialetos europeus em oposição à língua culta da Idade Média Nesses dialetos populares contavamse histórias de amor de aventura transmitidas oralmente Dependendo da importância ou do destaque dado à personagem à ação ou ainda ao espaço foram classificados como romances de costume psicológico policial regionalista histórico de cavalaria de aventura Caroa acadêmicoa nos cadernos de estudos de Literatura Brasileira do Período Colonial ao Romantismo e Literatura Brasileira do Período Realista à Literatura Contemporânea abordaremos e aprofundaremos algumas questões teóricas referentes ao gênero romance textos e respectivos autores UNI Diante do exposto podemos afirmar que na sala de aula deve existir muita leitura de vários gêneros literários a fim de induzir o aluno a melhor refletir compreender problematizar e questionar os textos lidos fazendo uso de sua criticidade e também da habilidade em lidar com as regras estabelecidas para a leitura Lembrese ler significa aprender a produzir sentidos inseridos em um tempo e um espaço tornando o exercício de leitura ativo A literatura infantojuvenil é matéria indispensável e básica no campo da cultura e educação A necessidade da presença da literatura em sala de aula é algo incontestável Em especial este espaço privilegiado pela possibilidade de apresentação e interação do texto literário contribui para a ampliação de conhecimentos permite a interpretação do mundo como um texto universal e a percepção de sua complexidade E ainda expande e reforça a ideia de que cada indivíduo é sujeito e agente de sua própria história Mas o que comumente acontece no espaço escolar é um distanciamento dos livros A escola parece esquecer que a literatura é antes de tudo arte prazer e não pode ser imposta pois a imposição é sinônimo de afastamento De acordo com Fanny Abramovich 1989 p 36 A literatura infantojuvenil foi incorporada à escola e assim imagina se que por decreto todas as crianças passarão a ler Até poderia ser verdade se a leitura não viesse acompanhada da noção de dever de tarefa a ser cumprida mas sim de prazer de deleite de descoberta de encantamento TÓPICO 3 GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA ESTRUTURA II 95 Dessa forma a prática de leitura é dirigida limitada e no mais das vezes afastada da realidade o texto é transparente e exterior ao aluno é mera soma de palavras e frases nas quais o aluno deve buscar e confirmar um sentido preestabelecido É imprescindível propiciar no ambiente pedagógico um clima favorável à leitura marcado por interações que permitirão várias interpretações de um mesmo texto por sujeitos que têm histórias competências interesses valores e crenças diferentes Cabe ao professor reconstruir com seus alunos a trajetória interpretativa de cada um buscando compreender a construção de cada sentido ampliando dessa forma a compreensão do aluno Então provoque busque seduzir o leitor com persistência sensibilidade e responsabilidade sem perder de vista o objetivo principal que é o de despertar o interesse o prazer e a consciência da importância da leitura na vida das pessoas O professor ao escolher a literatura deverá propiciar o contato com os mais variados gêneros literários e além disso estar atento à classificação de acordo com o interesse e a idade do estudante Nelly Novaes Coelho apresenta critérios para seleção de livros de acordo com os estágios psicológicos da criança assunto que abordaremos na sequência 4 LEITURA E A DIMENSÃO COGNITIVA É sabido que a evolução da criança não é rígida ou seja cada qual tem seus próprios limites definidos por diferentes fatores O interesse da criança eou adolescente por determinado assunto está relacionado à sua idade e ao amadurecimento cognitivo O professor tem papel primordial na medida em que a ele cabe perceber e adequar seu trabalho respeitando as referidas fases da criança e do jovem Se uma das funções da literatura é transformar a realidade humana numa experiência prazerosa de aprendizagem e de crescimento o papel da escola é decisivo no processo de formação do leitor pois o espaço escolar constitui um lugar privilegiado de estímulo à construção à reflexão à assimilação de saberes e valores daí a necessidade de encorajar crianças e jovens a adentrar nesse fantástico universo da literatura Para que se efetivem oportunidades singulares de experiência com a literatura é importante atentar quanto à escolha de livros e temas a serem abordados em sala de aula A criança o adolescente e o adulto têm preferência por diferentes textos Para tanto fazse necessário observar os gostos a realidade o grau de escolaridade o amadurecimento intelectual e a idade do aluno Veremos agora como Nelly Novaes Coelho descreve as fases de leitura que abrangem as crianças e os adolescentes 96 UNIDADE 2 A LITERATURA INFANTIL FONTE DE EMOÇÕES Segundo a autora a fase do préleitor abrange duas fases a primeira e a segunda infância Primeira infância dos 1517 meses aos três anos Nesta fase A criança inicia o reconhecimento da realidade que a rodeia principalmente pelos contatos afetivos e pelo tato É a chamada fase da invenção da mão Seu impulso básico é pegar em tudo que se acha ao seu alcance É também o momento em que a criança começa a conquista da própria linguagem e passa a nomear as realidades à sua volta COELHO 2000 p 33 Para estimular a leitura nessa fase o adulto deve apresentar à criança diferentes gravuras fotos desenhos objetos e livros de imagens coloridas e de diferentes materiais Narrar histórias com ênfase no ritmo gestos explorando a sonoridade É importante nessa fase a presença e atuação do adulto manipulando e nomeando os brinquedos ou desenhos inventando situações bem simples a fim de estabelecer uma relação de afetividade entre o adulto a criança e o livro Segunda infância a partir dos 23 anos Neste período começam a predominar os valores vitais saúde e sensoriais prazer ou carências físicas ou afetivas é quando se dá a passagem da indiferenciação psíquica para a percepção do próprio ser Início da fase egocêntrica e dos interesses ludopráticos Impulso crescente de adaptação ao meio físico e crescente interesse pela comunicação verbal COELHO 2000 p 33 A presença do adulto nessa fase é ainda muito importante nos livros deve predominar a imagem e pouco ou quase nada de texto escrito Os textos devem ser significativos e atraentes a fim de levar a criança a perceber cada vez mais a relação entre o mundo que a cerca e a palavra escrita O colorido a graça o humor a sonoridade e a repetição de elementos são fatores importantes para prender a atenção dessa criança O leitor iniciante a partir dos 67 anos Para a autora é a fase da aprendizagem da leitura na qual a criança já reconhece com facilidade os signos do alfabeto e reconhece a formação das sílabas simples e complexas Início do processo de socialização e de racionalização da realidade COELHO 2000 p 35 A presença do adulto é ainda necessária para estimular e encorajar a criança à leitura Os livros adequados a essa fase devem valorizar a imagem A narrativa simples com princípio meio e fim é a mais indicada e apreciada TÓPICO 3 GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA ESTRUTURA II 97 As personagens podem ser pessoas animais plantas eou objetos sempre com traços de caráter ou comportamento bem nítidos bons e maus fortes e fracos belos e feios etc O texto deve ser estruturado com palavras e frases simples em ordem direta cujos argumentos estimulem a imaginação a inteligência a afetividade as emoções o pensamento e o sentimento O leitoremprocesso a partir dos 89 anos Segundo Coelho 2000 p 37 nesta fase a criança já domina com facilidade o mecanismo da leitura Seu pensamento lógico organizase em formas concretas que permitem as operações mentais Atração pelos desafios e pelos questionamentos de toda natureza A presença do adulto ainda é importante para motivar a leitura e esclarecer possíveis dificuldades A narrativa deve girar em torno de um conflito a ser resolvido até o final A efabulação deve obedecer ao esquema linear princípio meio e fim O realismo e o imaginário ou a fantasia despertam grande interesse nesta idade O leitor fluente a partir dos 1011 anos Nesta fase ocorre a consolidação do domínio do mecanismo da leitura e da compreensão do mundo expresso no livro A leitura segue apoiada pela reflexão a capacidade de concentração aumenta permitindo o engajamento do leitor na experiência narrada e consequentemente alargando ou aprofundando seu conhecimento ou percepção de mundo A partir dessa fase desenvolvese o pensamento hipotético dedutivo e a consequente capacidade de abstração É a fase da préadolescência COELHO 2000 p 38 Nessa fase as imagens são dispensáveis a linguagem pode ser mais elaborada As personagens podem ser heróis ou pessoas comuns questionadoras marcadas pela emotividade pela luta por ideais inseridas em contos crônicas novelas e histórias policiais que envolvam aventuras O leitor crítico a partir dos 1213 anos Fase de total domínio da leitura da linguagem escrita capacidade de reflexão em maior profundidade podendo ir mais fundo no texto e atingir a visão de mundo ali presente COELHO 2000 p 39 Nessa faixa etária o adolescente desenvolve o pensamento reflexivo e crítico e deve ser provocado à exploração do texto para a descoberta dos mecanismos que o compõem A literatura é arte da linguagem e como qualquer arte exige uma iniciação COELHO 2000 p 40 Quando o indivíduo lê nas entrelinhas e busca no texto o não dito é porque se sente instigado pelo desejo de descoberta do mundo Esse anseio efetivouse porque foi provocado no período da infância 98 UNIDADE 2 A LITERATURA INFANTIL FONTE DE EMOÇÕES Lembremos que nas fases apresentadas os limites são teóricos Na realidade cada criança tem seu próprio limite definido por muitos e diferentes fatores Caroa acadêmicoa além de conhecer as fases é necessário conhecer a criança sua história sua experiência e sua ligação com o livro O importante é proporcionar um contato com a literatura e que o estudante possa fazer suas opções LEITURA COMPLEMENTAR EM CASA Anton Tchekhov Vieram da parte dos Grigóriev buscar não sei que livro mas eu disse que o senhor não estava em casa O carteiro trouxe os jornais e duas cartas A propósito Ievguêni Pietróvitch eu lhe pediria que prestasse atenção no Seriója Hoje e anteontem eu reparei que ele fuma Quando eu comecei a repreendêlo ele como de costume entupiu os ouvidos e pôsse a cantar alto para abafar a minha voz Ievguêni Pietróvitch Bikovski procurador do tribunal regional que acabava de voltar de uma sessão e estava tirando as luvas no seu gabinete olhou para a governanta que lhe fazia o relatório e riu Seriója fuma encolheu os ombros imagino esse pirralho com um cigarro Quantos anos ele tem mesmo Sete anos Ao senhor isto não parece coisa séria mas na sua idade o fumar representa um hábito mau e pernicioso e é preciso erradicar os maus hábitos desde o começo Totalmente correto E onde ele arranja o tabaco Na escrivaninha do senhor É mesmo Neste caso mandeo para mim Quando a governanta saiu Bikovski sentouse na poltrona diante da escrivaninha fechou os olhos e pôsse a pensar Na sua imaginação ele sem saber por que pintava o seu Seriója com um enorme cigarro de um palmo de comprimento entre nuvens de fumaça de tabaco e essa caricatura o fazia sorrir ao mesmo tempo o rosto sério e preocupado da governanta despertoulhe lembranças de um tempo há muito passado e meio esquecido quando o fumar na escola e no quarto das crianças incutia nos pedagogos e nos pais um terror estranho e não muito compreensível Era justamente terror Os garotos eram surrados sem TÓPICO 3 GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA ESTRUTURA II 99 dó expulsos do ginásio truncavamlhes a vida embora nenhum dos pais ou pedagogos soubesse em que realmente consistiam o prejuízo e a delinquência do fumar Mesmo pessoas muito inteligentes não se davam ao trabalho de lutar contra um vício que não compreendiam Ievguêni Pietróvitch lembrouse do seu diretor do ginásio um velhote muito instruído e bondoso que se assustava tanto quando topava com um ginasiano com um cigarro que empalidecia convocava imediatamente uma reunião pedagógica extraordinária e condenava o culpado à expulsão Assim deve ser ao que parece a lei da convivência quanto mais incompreensível o mal tanto mais encarniçada e grosseira é a luta contra ele O procurador lembrouse de dois ou três dos expulsos suas vidas subsequentes e não pôde deixar de pensar que o castigo muitas vezes traz males bem maiores que o próprio crime Um organismo vivo dispõe da capacidade de se adaptar rapidamente habituarse e acomodarse a qualquer atmosfera senão o homem deveria sentir a cada momento que fundo irracional têm às vezes as suas atividades racionais e quão pouca verdade há em atividades tão sensatas e terríveis pelos seus resultados como a pedagógica a jurídica a literária Mas afinal o que é que eu vou lhe dizer pensou Ievguêni Pietróvitch Mas antes que ele pudesse lembrar alguma coisa já entrava no gabinete o seu filho Seriója menino de sete anos Boa noite papai disse ele com voz macia encarapitandose nos joelhos do pai e dandolhe um rápido beijo no pescoço Você me chamou Com licença com licença Serguêi Ievguênitch respondeu o procurador afastandoo de si Antes de nos beijarmos precisamos conversar e conversar seriamente Estou zangado e não gosto mais de você e você não é mais meu filho Sim Natália Semiónovna viu você fumando duas vezes Quer dizer que você foi apanhado em três más ações você fuma tira da gaveta o tabaco alheio e mente Três culpas Antes você era um bom menino mas agora estou vendo que você ficou estragado e tornouse mau Cada um só tem o direito de se servir daquilo que lhe pertence e se pega uma propriedade alheia então não é um homem bom Não era isso que eu queria lhe dizer pensou Ievguêni Pietróvitch Você tem cavalinhos e figurinhas E eu não pego neles certo Quem sabe eu até gostaria de pegálos mas acontece que eles são seus e não meus Pode pegar se quiser disse Seriója erguendo as sobrancelhas Por favor papai não se acanhe pegueos Esse cachorrinho amarelo sobre a sua mesa ele é meu mas eu nada Deixa que fique aí O que eu vou dizerlhe pensava Ievguêni Pietróvitch Ele não me escuta Evidentemente não considera importante nem os seus malfeitos nem os meus argumentos Como fazêlo entender Antigamente no meu tempo essas questões eram resolvidas com maravilhosa simplicidade cogitava ele Qualquer garoto apanhado fumando era surrado 100 UNIDADE 2 A LITERATURA INFANTIL FONTE DE EMOÇÕES Ele tem o seu próprio fluxo de pensamentos pensava o procurador Tem o seu próprio pequeno mundo na cabeça e ele sabe à sua maneira o que é importante e o que não é Para cativar a sua atenção e consciência não basta arremedar a sua linguagem é preciso também pensar à maneira dele Ele me compreenderia perfeitamente se de fato eu lamentasse o tabaco se eu ficasse abespinhado se começasse a chorar É por isso que as mães são insubstituíveis na educação é porque elas sabem sentir junto com as crianças chorar gargalhar Mas com lógica e moral não se chega a nada Bem que mais eu vou lhe dizer O quê Bateram as dez horas Bem menino está na hora de dormir disse o procurador despeçase e vá Não papai e Seriója franziu o rosto eu ainda vou ficar um pouco Conteme alguma coisa Conte uma história encantada Pois não só que depois da história direto para a cama Era uma vez num reino muito distante um velho rei muito velho de longa barba grisalha e o velho rei tinha um filho único herdeiro do reino Um menino assim como você Ele era um bom menino Nunca fazia manha ia dormir cedo não mexia em nada na mesa e e era um menino sensato e bonzinho Ele só tinha um defeito Ele fumava Seriója escutava concentrado e olhava nos olhos do pai sem piscar O procurador continuava pensando E agora o que mais Ficou longamente como se diz mastigando e remoendo e terminou assim De tanto fumar o príncipe adoeceu de tísica e morreu quando tinha vinte anos E o velho caduco e adoentado ficou sem qualquer apoio Não havia ninguém para governar o reino e defender o palácio Chegaram os inimigos mataram o velho destruíram o palácio e agora no jardim já não há nem cerejas nem aves nem sininhos Assim é maninho Esse final parecia ao próprio Ievguêni Pietróvitch ingênuo e ridículo mas a história toda causou em Seriója uma forte impressão Novamente seus olhos enevoaramse de tristeza e de algo parecido com susto por um minuto ele ficou olhando pensativo para a janela escura estremeceu e disse com a voz apagada Não vou fumar mais Quando ele se despediu e foi dormir seu pai ficou andando silenciosamente de um canto para outro e sorrindo Dirão que o que funcionou aqui foi a beleza a forma artística refletia ele Que seja mas não é consolo Mesmo assim isto não é um recurso verdadeiro Por que a moral e a verdade dever ser apresentadas não na sua forma crua mas com misturas inevitavelmente de forma açucarada e dourada como as pílulas Isto não é normal Falsificação enganação truques TÓPICO 3 GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA ESTRUTURA II 101 Lembrouse dos jurados para os quais é absolutamente necessário pronunciar um discurso do público que assimila a história só por meio de lendas e romances históricos de si mesmo que hauria o bom senso da vida não de sermões e leis mas de fábulas romances poesias O remédio deve ser doce a verdade bela E essa fantasmagoria o homem assumiu desde os tempos de Adão De resto Quem sabe tudo isso é natural e deve ser assim mesmo Não são poucas na natureza as fraudes e as ilusões úteis Ele pôsse a trabalhar mas os pensamentos preguiçosos e domésticos ainda continuaram a vagar pelo seu cérebro por muito tempo Atrás do teto já não se ouviam mais as escalas mas o morador do segundo andar ainda continuava a marchar de um lado para outro FONTE TCHÉKHOV Anton Pavlovitch Um homem extraordinário e outras histórias Porto Alegre LPM 2010 p 3849 102 RESUMO DO TÓPICO 3 Neste tópico você viu que Procuramos definir as qualidades básicas de um texto literário e as principais modalidades presentes na literatura infantojuvenil segundo a ótica do desvio ou seja do que pode ser construído a partir da ação infantil da mão esquerda associando assim a literatura a um saber que embora lúcido fazse de um modo também lúdico Em seguida verificamos o quanto toda a literatura clássica é estruturalmente tributária dos contos populares e maravilhosos que forneceram não apenas a estrutura padrão do desenvolvimento do enredo especialmente com a noção de função de Vladimir Propp mas também por caracterizar ainda que de modo simplificado as personagens no espaço literário As personagens são elementos decisivos na construção de um texto narrativo é nelas que reside o interesse do leitor A personagem plana é simples em sua construção e é facilmente reconhecida não muda suas ações no decorrer da narrativa A personagem redonda é mais complexa suas ações são capazes de surpreender e revelam aspectos de seu caráter Os livros infantis e não somente os infantis muitas vezes carregam e reforçam personagens estereotipadas Explorar as características das personagens é levar o jovem leitor a observar que preconceitos podem ser transmitidos através de palavras eou imagens Os temas e comportamentos abordados na literatura são consequência do seu contexto e contribuem para o desenvolvimento do homem que a sociedade almeja A fábula é uma narrativa curta geralmente com animais como personagens que agem como seres humanos e apresentam sentimentos O estilo adotado nas fábulas é marcado pelo caráter moralizante transmitindo ensinamentos referentes à sociedade da época em que foi escrita A lenda reflete o assombro e o temor do homem diante do mundo e buscava uma explicação necessária às coisas Geralmente é marcada por um profundo sentimento de fatalidade que fixa a presença do destino aquilo contra o que não se pode lutar ou seja o homem dominado pela força do desconhecido 103 A parábola expressa uma moral por isso é frequentemente confundida com a fábula Porém diferenciase desta pelo fato de ser protagonizada por seres humanos A parlenda caracterizase por apresentar forma versificada ritmo fácil e rápido É uma importante aliada para despertar na criança os sentidos O romance gênero que deriva da expressão latina romanice que significa falar romântico ou seja falar num dos vários dialetos europeus em oposição à língua culta da Idade Média Entre os elementos que compõem a estrutura do texto literário está o enredo também conhecido como história trama ou fábula e que nos contos de fadas trata geralmente do desenrolar das ações de um herói que encarna os valores comunitários de modo exemplar e carregado de moralidade A apresentação de vários gêneros literários é extremamente relevante durante todo o período escolar É fácil observar o fascínio da criança por histórias e o interesse em imitar as leituras recontando as narrativas e consequentemente enriquecendo e dominando além de outras possibilidades um estilo de linguagem que lhe garantirá êxito escolar e ascensão social O interesse da criança eou adolescente por determinado assunto está relacionado à sua idade e ao amadurecimento cognitivo Na primeira e na segunda infância 1517 meses aos três anos a criança começa a nomear a realidade à sua volta sendo crescente o interesse pela comunicação verbal O leitor iniciante a partir dos 67 anos é a fase da descoberta e da aprendizagem da leitura O leitoremprocesso a partir dos 89 anos ocorre quando a criança domina com certa facilidade o mecanismo da leitura O leitor fluente a partir dos 1011 anos é a fase de consolidação do domínio da leitura O leitor crítico a partir dos 1213 anos entra na fase de total domínio da leitura e da linguagem escrita Capacidade de reflexão em maior profundidade ou seja costumamos dizer que ele consegue ler nas entrelinhas Cada criança tem seu próprio limite definido por muitos fatores é necessário conhecer o estudante sua história sua experiência e sua ligação com o livro 104 3 Ao contrário de uma obra dialógica como a de Tchekov você consideraria o debate acerca dos contos de fadas tradicionais como o patinho feio a gata borralheira etc mais profícuo e motivador para o estudo em sala de aula Justifique sua resposta Prezadoa acadêmicoa após ter completado a leitura do conteúdo deste tópico sugerimos a você a leitura do conto literário Em casa leitura complementar de Anton Tchekov para em seguida confrontando ambas as leituras refletir sobre as seguintes questões 1 Você observou que ao contrário do que ocorre nos contos de fadas que geralmente veiculam uma verdade moral e imparcial nos contos literários ou eruditos como o de Tchekov há uma indecisão entre quem tem e quem não tem a razão 2 Na sua opinião os pontos de vista pedagógicos da personagem Ievguêni Pietróvitch o pai de Seriója seriam conflituosos ou bem ao contrário apontariam saídas pedagógicas com certa atualidade para o ensino nos dias de hoje Considerar que o texto foi escrito na segunda metade do século XIX AUTOATIVIDADE 105 UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir desta unidade você será capaz de reconhecer a importância da poesia das histórias em quadrinhos e das narrativas identificar os fatores estruturantes das narrativas infantojuvenis perceber que as narrativas devem constituirse em objeto de leitura dentro e fora do espaço escolar Esta unidade está dividida em três tópicos Ao final de cada um deles você encontrará atividades que contribuirão para a apropriação dos conteúdos TÓPICO 1 O DIVERTIDO PRAZER DE LER TÓPICO 2 A RELAÇÃO LIVRO E A CRIANÇA TÓPICO 3 EXPLORANDO OS GÊNEROS INFANTIS 106 107 TÓPICO 1 O DIVERTIDO PRAZER DE LER UNIDADE 3 1 INTRODUÇÃO Neste tópico verificaremos que uma das questões principais dentro de uma abordagem literária formal ou informal reportase não tanto ao lugar onde se lê o mundo ou seja se na mídia cinematográfica na mídia impressa na internet etc mas sim o que propriamente se deveria ler Quer dizer a questão seria descobrir como estabelecer uma relação de obras literárias que dê pistas de como aprimorar o espírito crítico da criança ajudandoa em sua inserção no mundo e na transformação da realidade social em que vive sem que para isso tenha que abandonar o espaço interior de sua infância que atravessará toda a sua vida 2 A SALA DE AULA QUE TEXTOS ESCOLHER Nunca lhe aconteceu ao ler um livro interromper com frequência a leitura não por desinteresse mas ao contrário por afluxo de ideias excitações associações Nunca lhe aconteceu ler levantando a cabeça É essa leitura ao mesmo tempo irrespeitosa pois que corta o texto e apaixonada pois que a ele volta e se nutre que tentei escrever BARTHES 2004 p 26 A escola é um dos poucos espaços sociais que ainda tem o privilégio de poder promover o contato dos indivíduos com textos que estão fora do circuito comercial Ademais ela também é capaz de estabelecer uma interação diferenciada entre os leitores e essas mesmas obras tornandoos mais críticos a partir do contato e do acesso socializado aos textos clássicos cuja virtude maior estaria em fortalecer de modo subliminar a convivência de pontos de vista distintos entre os alunos Subliminar é a definição para o tipo de mensagem que não pode ser captada diretamente pela porção do processamento dos sentidos humanos que está em estado de alerta É tudo o que está abaixo do limiar a menor sensação detectável conscientemente Toda mensagem subliminar pode ser dividida em duas características básicas o seu grau de percepção e de persuasão HOUAISS VILLAR 2009 p 1780 UNI UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA 108 Então a escola mesmo que inserida em um contexto cujo maior valor é a utilidade e por ser a instituição a qual é dada entre as demais instituições sociais o papel privilegiado de pedagogicamente operar a passagem daquela primeira fase existencial infantil e irregular para a outra que deveria idealmente orientar e organizar a sociedade em que vivemos passa a assumir a tarefa em certa medida contraditória de promover uma mudança nos valores culturais vigentes invertendo o paradigma segundo o qual ela mesma foi estruturada Façamos um exercício de reflexão Você acredita que atualmente a escola tem atribuído um valor mais acentuado ao pensamento lúdico e à imaginação infantil ou ao contrário ainda trata a criança como um pequeno adulto imperfeito Teça algumas considerações sobre essa temática comparando a realidade escolar da sua infância com a das escolas de hoje Esse viver na pluralidade que vemos como modo ideal do viver junto em sociedade poderia advir do entrecruzamento dos pontos de vista internalizados pela história individual e biográfica de cada aluno com os pontos de vista disponibilizados pelas tradições culturais veiculadas pelo texto literário independente do suporte ao qual o texto esteja vinculado livro tradicional ipads internet filmes cinematográficos gibis mídia impressa etc Assim parecenos que mais relevante do que determinar onde se deve dar a leitura é precisar quais obras têm e quais outras não a possuem a complexidade e a abertura necessárias para ao mesmo tempo instruir e fazer do leitor um sujeito ativo e coparticipante de sua realidadedestino já que a formação do indivíduo não cessa quando ele termina a fase escolar prolongandose por toda a vida e nesse sentido não resta dúvida os bons textos literários são potencializadores eficazes de significação existencial Se esperamos viver não apenas de momento a momento mas sim verdadeiramente conscientes de nossa existência nossa maior necessidade e mais difícil realização será encontrar um significado em nossas vidas É sobejamente sabido que muitos perderam o desejo de viver e pararam de tentar porque tal significado lhes escapou Uma compreensão do significado da própria vida não é subitamente adquirida numa certa idade nem mesmo quando se alcança a maturidade cronológica E essa conquista é o resultado final de um longo desenvolvimento a cada idade buscamos e devemos ser capazes de achar alguma quantidade módica de significado congruente com o quanto nossa mente e compreensão já se desenvolveram BETTELHEIM 2007 p 9 Destarte pensar estratégias pedagógicas que possibilitem tornar o aluno não apenas um partícipe das demandas de sua geração mas um coprodutor de TÓPICO 1 O DIVERTIDO PRAZER DE LER 109 novas perspectivas existenciais e de alternativas sociais implica encontrar uma fundamentação teórica que nos torne capazes de identificar pedagogicamente quais obras sustentam visões de mundo inusitadas que se mantêm em estado latente até que potencializadas pela leitura transformemse em texto em espaço dialógico de leitura FIGURA 14 PINÓQUIO ODILON MORAES FONTE Disponível em httpwwwcultlivros03jpg Acesso em 2 set 2012 Nesse momento uma boa saída teórica seria pensar com o escritor Mikhail Bakhtin que a partir de uma releitura dos clássicos de Rabelais e de Dostoievski conseguiu redefinir os códigos culturais da tradição ocidental a seu ver estruturados a partir da alternância de duas tendências estéticas distintas As obras de estrutura e conteúdos monológicos são orientadas pela aceitação dos cânones estéticos tradicionais e pela conformação à ideologia dominante as obras de estrutura e de conteúdo dialógicos expressam a revolta contra a tradição estéticocultural centradas como estão no polimorfismo e na polifonia Nessas obras é impossível encontrar a univocidade que caracteriza o gênero de literatura monológica DONOFRIO 2006 p 14 Dessa forma haveria uma oposição nessas tendências que se captura desde o momento autoral até a seleção e apresentação final da obra Nesse percurso Bakhtin pôde localizar na origem da literatura monológica a permanência dos valores vigentes do período em que fora criada o que a faria ser também uma literatura ideológica por ser a expressão dos anseios de um grupo social que acredita nos valores humanos e na possibilidade do conhecimento da verdade bem como no triunfo do complexo de virtudes que compõem a ideologia social ordem beleza justiça amor etc o código natural por sua vez UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA 110 caracteriza um tipo de literatura dialógica carnavalizada expressão da revolta do indivíduo contra a fixidez dos cânones estéticos e a opressão das injunções religiosas e morais DONOFRIO 2006 p 21 Ora se a essa altura tivéssemos que sintetizar o tipo de literatura que seria conveniente à sala de aula não hesitaríamos em optar pela obra clássica e dialógica pois os clássicos aportam significações não inteiramente previstas no texto original portanto que poderão ainda ser construídas a partir da interação da singularidade do leitor com a singularidade da obra em questão Esse entrecruzamento ou jogo de singularidades é o que definiria segundo Barthes 2007 p16 as qualidades de uma verdadeira literatura Essa trapaça salutar essa esquiva esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder no esplendor de uma revolução permanente da linguagem eu a chamo quanto a mim literatura Bakhtin 1995 foi quem apresentou o conceito de dialogismo No dizer deste estudioso a linguagem é dialógica porque a palavra a enunciação e por extensão todo o texto possui um caráter de duplicidade no qual a presença do outro é fundamental e cujo contexto social não pode ser ignorado UNI Você deve estar percebendo o quanto é importante haver na escola um ambiente pedagógico favorável à leitura e à recriação de textos literários não é mesmo Reflita ainda sobre a relevância do professor como mediador de obras literárias não apenas as de qualidade reconhecida mas também as que têm um declarado apelo comercial geralmente associadas à mídia televisiva É oportuno lembrar nesse momento a discussão abordada na Unidade 1 de que a literatura voltada para a criança é uma literatura produzida pelo adulto o que faz com que sua mensagem mantenha praticamente a mesma assimetria entre infância e maturidade que estudamos no primeiro capítulo do presente Caderno de Estudos Assim a partir de uma breve descrição estrutural poderemos mapear as obras de tendência monológica que mantêm um único ponto de vista na narrativa como é o caso da maioria dos contos de fadas e em contrapartida obras dialógicas como a narrativa literária As aventuras de Pinóquio de Carlo Collodi que sustentam mais de uma perspectiva ficcional conferindo assim maior valor e liberdade ao leitor Em vista disto também o leitor não é um ente passivo a obra dirigese a ele e a seus valores sob a forma de um questionamento A operação de leitura que enquanto concretização do universo ficcional supõe de antemão uma atitude voluntária e ativa ocasiona ainda uma tomada de posição perante o texto e o mundo que apresenta Nesta medida se a criação poética não produz necessariamente uma contrariedade especialmente ao leitor como pretendiam os formalistas mas a um sistema vigente de normas e padrões é importante destacar TÓPICO 1 O DIVERTIDO PRAZER DE LER 111 que o recebedor deverá aceitar ou rejeitar o jogo resultando daí um posicionamento perante o mundo e a arte ZILBERMAN 1984 p 79 Ora seja a partir de uma perspectiva monológica seja a partir de uma focalização dialógica que abrem ou fecham possibilidades de interpretação para o leitor mantémse no plano estrutural de qualquer narrativa literária uma voz condutora da trama que determina o foco narrativo de abordagem da história ora em primeira ora em terceira pessoa ora exterior ora interior à ação etc e assim conduz a trama conforme se deseje fazer do relato um exemplo ou ao contrário estabelecer um universo ambíguo capaz de dar lugar à subjetividade singular do leitor independente de ela ser aceita ou rejeitada pela sociedade vigente A essa altura sugerimos a você caroa acadêmicoa a leitura de As aventuras de Pinóquio na excelente tradução de Marina Colasanti Além do divertido prazer de ler um texto produzido especialmente para crianças na Itália do século XIX esse exercício lhe possibilitará o confronto de uma narrativa dialógica com a tendência predominantemente monológica dos contos de fadas tradicionais Ademais você entrará em contato com um texto clássico isento das concessões cinematográficas feitas por Walt Disney que retirou muito da complexidade do texto literário para poder se aproximar da moral vigente do século XX e dessa forma obter melhor êxito comercial UNI Assim a partir do foco narrativo determinamse diversas formas de focalização No conto de fadas por exemplo tal como se observa na narrativa Chapeuzinho Vermelho predomina a terceira pessoa já que o narrador se coloca de modo onisciente que tudo vê que tudo sabe acima das personagens sabendo inclusive mais da interioridade delas do que elas mesmas Essa voz entretanto pode ser portavoz de ideologias indesejáveis Quando o narrador onisciente diz o lobo malvado está emitindo um julgamento de valor acusando o seu posicionamento ideológico Por que lobo é malvado Ao comer a menina ele está apenas atendendo ao instinto de conservação da própria vida que o leva a satisfazer sua fome O homem que mata animais para alimentarse ou simplesmente para divertirse praticando os esportes da caça e da pesca por que não é considerado malvado A resposta está na postura ideológica do autor implícito que sendo humano defende a superioridade do homem em relação ao mundo animal DONOFRIO 2006 p 60 Por outro lado no contraponto da maior parte dos teóricos da literatura Bettelheim 2007 a partir de um enfoque psicanalítico da obra literária verá essa forma de narração em terceira pessoa não como negativa já que para ele ela se apropria da sabedoria inconsciente das gerações passadas podendo ensinar ao jovem leitor algo importante para o seu amadurecimento psicológico UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA 112 Para dominar os problemas psicológicos do crescimento superando decepções narcisistas dilemas edipianos rivalidades fraternas tornandose capaz de abandonar dependências infantis adquirindo um sentimento de individualidade e de autoestima e um sentido de obrigação moral a criança precisa entender o que está se passando dentro de seu eu consciente para que possa também enfrentar o que se passa em seu inconsciente Ela pode atingir esse entendimento e com ele a capacidade de enfrentamento não pela compreensão racional da natureza É aqui que os contos de fadas têm um valor inigualável conquanto oferecem novas dimensões à imaginação da criança que ela seria incapaz de descobrir por si só de modo tão verdadeiro BETTELHEIM 2007 p 12 3 INVERTENDO A TRADIÇÃO Os livros são enfadonhos de ler Não há livre circulação Somos forçados a ler O caminho está traçado único Muito diferente é o quadro imediato total À esquerda à direita em profundidade à vontade Nada de trajeto incontáveis trajetos e as pausas não são indicadas Se o desejarmos o quadro inteiro MICHAUX 1994 p 38 Ao longo desse Caderno de Estudos você observou a reflexão teórica debruçarse sobre esse objeto exemplar e histórico na transmissão dos valores culturais que tem sido o livro literário cujo surgimento se deu com a literatura oral à época criadora de recursos facilitadores da memorização como as rimas as estrofes a metrificação entre outros para depois vêlo se expandir em mídias mais ágeis como o cinema a internet e a história em quadrinhos Assim ao buscarmos fundamentar acerca dos modos mais adequados de utilização da literatura em sala de aula optamos pela obra dialógica já que uma de suas características é de estar sempre aberta a universos de significação insuspeitados Desnecessário por conseguinte alertar para as versões redutoras dos textos clássicos que geralmente ocorrem em revistas versões para filmes ou novelas televisivas etc e que tendem a tipificar as personagens dos textos originais retirando assim a potencialidade inventiva e inusitada das obras clássicas O livro permite uma abordagem de que o cinema o teatro e a televisão não são capazes Diante de um livro o leitor não é passivo ele pode voltar atrás reler interromper saltar etc Enfim ser abordado por onde o leitor quiser MELO NETO 1998 p 52 Vejamos O texto As aventuras de Pinóquio se inicia com a revelação do desejo do velho Gepeto de criar uma marionete para com ela melhorar de vida ou dizendo com suas palavras para viajar e tomar um bom copo de vinho Assim simbolicamente desde o início o livro reverte a assimetria tradicional que atribui aos valores da maturidade uma origem bondosa e a ser imitada em detrimento dos valores infantis vistos como imperfeitos egoístas e a serem modificados em prol daqueles Na obra em questão metaforicamente revelase um pai Gepeto ainda que bondoso que sabe usar e se beneficiar do filho TÓPICO 1 O DIVERTIDO PRAZER DE LER 113 Optar pelos clássicos dialógicos não significa entretanto a exclusão da literatura e de outras formas de arte monológicas geralmente de feição popular como é o caso das novelas de televisão dos filmes de apelo comercial da música brega da subliteratura de autoajuda etc mas apenas atentar para que essa forma de arte receba um acompanhamento crítico geralmente mediado por um professor ou tutor para evitar que o estudante caia na malha ideológica de valores autoritários e preconcebidos veiculados de modo sorrateiro por essas mídias É a um fantasma dito ou não dito que o professor deve voltar anualmente no momento de decidir sobre o sentido de sua viagem desse modo ele se desvia do lugar em que o esperam que é o lugar do Pai sempre morto como se sabe pois só o filho tem fantasmas só o filho está vivo BARTHES 2007 p 43 Caroa acadêmicoa por hora cabenos reforçar a função pedagógica da arte e assim apontar para a importância de sua vinculação com as atividades escolares Quer dizer a arte fora do imediatismo dos valores políticos e dos valores medidos pelo sucesso comercial visa à constituição singular e por que não dizer amorosa dos sujeitos ou seja aliada à escola ela pode formar indivíduos leitores que pensem a vida e o mundo que se vai deixar como o fazem se lembrarmos com João Cabral de Melo Neto alguns poetas Melhorar a realidade é um ato de consequência imediata e isso o poeta não pode fazer porque não é essa coisa mágica metafísica que muitos imaginam Como todo artista entretanto ele pode empreender uma ação a longo prazo Muitas vezes os homens que mandam não estão habituados a ver toda a realidade o conjunto É aí que a arte pode ajudar cumprindo sua função que é dar a ver donner à voir Não pode haver objetivo melhor para a arte e para o artista MELO NETO 1998 p 18 Enfim tudo se resumiria em descobrir qual a melhor forma de operar essa passagem em mão dupla de dois pontos de vista infância e maturidade que por serem paradigmaticamente opostos só raramente convergem como acontece em certas obras literárias e quiçá algum dia também o seja na escola em que se consegue combinar o pensamento em sua forma lúdica e a ludicidade em sua forma lúcida 114 Neste tópico você viu que A escola é um espaço que pode promover o contato dos indivíduos com textos e capaz de estabelecer uma interação diferenciada entre os leitores e essas mesmas obras tornandoos mais críticos a partir do contato e do acesso socializado aos textos clássicos O papel da escola é operar a passagem daquela primeira fase existencial infantil e irregular para a outra que deveria idealmente orientar e organizar a sociedade em que vivemos de promover uma mudança nos valores culturais vigentes invertendo o paradigma segundo o qual ela mesma foi estruturada Os bons textos literários são potencializadores eficazes de significação existencial É preciso que a escola pense em estratégias pedagógicas que possibilitem tornar o aluno não apenas um partícipe das demandas de sua geração mas um coprodutor de novas perspectivas existenciais e de alternativas sociais Em sala de aula melhor seria optar pela obra clássica e dialógica pois os clássicos aportam significações não inteiramente previstas no texto original portanto que poderão ainda ser construídas a partir da interação da singularidade do leitor com a singularidade da obra em questão É importante haver na escola um ambiente pedagógico favorável à leitura e à recriação de textos literários A partir de um enfoque psicanalítico da obra literária verá a narração em terceira pessoa não como negativa já que para ele ela se apropria da sabedoria inconsciente das gerações passadas podendo ensinar ao jovem leitor algo importante para o seu amadurecimento psicológico É importante descobrir qual a melhor forma de operar essa passagem em mão dupla de dois pontos de vista infância e maturidade e quiçá algum dia também o seja na escola em que se consegue combinar o pensamento em sua forma lúdica e a ludicidade em sua forma lúcida RESUMO DO TÓPICO 1 115 Caroa acadêmicoa Apresentamos algumas questões sobre a valorização da literatura infantojuvenil na escola Para tanto responda e teça comentários sobre perguntas 1 O que você pensa sobre a escola como um lugar privilegiado de leitura 2 Quantas horas semanais você dedica à leitura de textos literários 3 Considerando a sala de aula que recursos você utilizaria para incentivar a leitura de literatura 4 O que você pensa sobre atividades como A hora do conto A partir dessas questões faça um elenco das estratégias e recursos que poderiam ser adotados pelos professores Lembrese de compartilhar com os seus colegas AUTOATIVIDADE 5 O que você pensa sobre os textos dialógicos 116 117 TÓPICO 2 A RELAÇÃO LIVRO E A CRIANÇA UNIDADE 3 1 INTRODUÇÃO Já enfatizamos que a narrativa infantil deveria estabelecer uma relação dialógica que se concretiza no encontro do leitor com o texto ou seja permite que o leitor tenha contato com uma linguagem que se materializa por meio do livro Nessa perspectiva a literatura infantojuvenil se apresenta às crianças e jovens como um possível horizonte de expectativas especialmente pela renovação da linguagem das palavras e imagens No dizer de Zilberman 2003 p 176 a literatura deve se integrar ao projeto desafiador próprio de todo fenômeno artístico impulsionar ao seu leitor uma postura crítica inquiridora e dar margem à efetivação dos propósitos da leitura como habilidade humana Argumenta a autora que o livro infantil deve estimular o leitor a conhecer a dimensão artística e estética 2 A RECEPÇÃO DO LIVRO INFANTIL A escritora Fanny Abramovich faz alusão a vários aspectos a serem considerados durante a exploração da leitura que segundo ela apresenta um potencial crítico O pequeno leitor põe em prática habilidades como pensar duvidar se perguntar questionar ou seja a criança pode se sentir inquietada cutucada querendo saber mais e melhor ou percebendo que pode mudar de opinião E isso não sendo feito uma vez ao ano mas fazendo parte da rotina escolar sendo sistematizado sempre presente o que não significa trabalhar em cima dum esquema rígido e apenas repetitivo ABRAMOVICH 1989 p 142 Quando nos referimos à relação entre a criança e o livro estamos também nos reportando à escola ao fazer pedagógico dentro da sala de aula Nesse fazer uma das metodologias que pode ser utilizada envolve o contato com os livros e dependendo da história geralmente a criança quer repetila às vezes somente em algumas partes ou por vezes detesta e não quer mais nenhuma aproximação com determinada história Essa relação forma a opinião da criança que passa a estabelecer critérios de seleção do que quer ler Observe a opinião de Abramovich 1989 p 143 118 UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA No que se refere à história quando boa interessante se palpitante se boba etc E a ideia do autor Nova batida já lida outras vezes em outros livros Esse autor repete suas ideias seus temas ou inventa novos se atreve a caminhar por outros assuntos por outras questões E o ritmo Muito longo rapidinho demais da conta não dando tempo de saborear de ir mais longe de querer saber mais e melhor sobre um assunto conversa ou qualquer outra coisa que ficou solta sem maiores explicações Ou se arrastando se esticando se esticando e dando voltas e mais voltas em torno do mesmo tema como se não achasse o momento de terminar E falando nisso como foi sentidopercebido aplaudidovaiado etc o final da história Tinha a ver com tudo o que aconteceu ou de repente acabou dum jeito confuso abrupto perdido E o começo foi gostoso chamou a atenção deu vontade de continuar lendo ou já deu pra sacar que ia ser uma chatura só Ou começou mal e de repente pra surpresa total foi esquentando esquentando e até que ficou muito do simpático e do bom E tanta coisa mais que foi percebida pelo leitor e que merece ser discutida Com base na citação podemos constatar que a autora apresenta vários questionamentos que devem ser considerados pelos professores ao propor a leitura em sala de aula afinal o livro infantil pelas suas características permite essa postura Outra questão abordada por Abramovich 1989 p 146 faz alusão à história e aos personagens As que tinham vida que convenciam que agiam dum modo verdadeiro não importa se gente se bicho se fada se vampiro e aquelas que reagiram de repente sem mais nem por quê dum modo que não tinha nada a ver com elas como vinham atuando desde o comecinho da históriaE aquelas que foram esquecidas pelo autor o que acontece muito que aparecem no começo e nunca mais ou aquelas que não tinham a menor importância pro desenrolar do conto e que ficaram só enchendo as páginas sem função sem razão sem opinião E tanta coisa mais que foi percebida pelo leitor e que merece ser discutida Conforme podemos perceber a história é um dos aspectos mais importantes na composição do livro de literatura infantil Mas segundo Abramovich 1989 p 147 existem outros a considerar porque estimulam a leitura e a interação A capa se bonita feia atraente boba sem nada a ver com a narrativa o título que afinal são o primeiro contato que se tem com o volume o impacto visual e a curiosidade despertada ou adormecida E por que não discutir a encadernação do desprazer que é ver um livro amado desfolhado descolando não dando nem mais para virar a página E o jeito como o volume foi paginado olhando muito do bem olhado se a ilustração corresponde ao que está escrito na página ao lado se está tudo muito compactado muito apertado sem espaço para respirar ou ao contrário se ficou muito pouca coisa escrita ou desenhada em cada folha sobrando partes em branco demais da conta só para engrossar o livro E se as letras eram grandonas gostosas de ler ou pequenas apertadinhas sendo necessário um binóculo para poder seguir apenas letras tão mínimas E quanto havia de espaço na passagem dum capítulo para outro mostrando que já era outro momento outro dia outra situação ou que fosse estava tudo apertado estreito e até difícil TÓPICO 2 A RELAÇÃO LIVRO E A CRIANÇA 119 perceber que já era outro capítulo Estava metade cuidado metade não Por que não propor também que se releia algo que algum dia tenha sido importante Não é apenas na novidade que está o novo mas na forma de nos aproximarmos de algo já conhecido e perceber mudanças Para a autora a proposta da leitura na escola requer um olhar atento no que se refere à escolha do livro além de propósitos bem definidos para atrair a atenção da criança Ainda segundo Abramovich 1989 p 148 Colocar a leitura do livro infantil brasileiro no currículo escolar não quer dizer nada Podese até estar formando pessoas com ojeriza permanente pela leitura tal a quantidade de livros ruins que lhes pedem que leiam aliada a nenhuma crítica que é solicitada Apenas fazendodeconta que se leu como se se assinasse um visto uma rubrica de feito Dar uma opinião pode não significar nada não exigir nada além dum comentário superficial epidérmico ou não ser senão um jeito de agradar e corresponder à expectativa do adulto que já tem uma opinião formada sobre aquele livro ou aquele autor No dizer de Abramovich 1989 é papel da escola sensibilizar para o hábito da leitura e para a criticidade e segundo ela a preocupação básica deveria ser a formação de leitores abertos e capazes de absorver o que uma boa história traz afinal Literatura é arte literatura é prazer Que a escola encampe esse lado É apreciar e isso inclui criticar Se ler for mais uma lição de casa a gente bem sabe no que é que dá Cobrança nunca foi passaporte ou aval para a vontade descoberta ou para o crescimento de ninguém ABRAMOVICH 1989 p 148 Entretanto por vezes a literatura é submetida a rotinas padronizadas e termina por perder seu sentido Tem sido usada para atividades estritamente mecânicas Antigas práticas amplamente avaliadas em seus efeitos limitadores continuam presentes nas salas de aula mesmo diante do fracasso de muitos alunos e do desagrado de outros tantos em relação ao estudo da língua e literatura A literatura em sala assume a função de obrigatoriedade de prazo imposição de número de livros a serem lidos durante o ano letivo e seus fichamentos procedimentos pedagógicos com ênfase no desenvolvimento em atividades de identificação e classificação de períodos literários ensino de regras gramaticais e ortográficas estudo de palavras isoladas e de frases desconectadas exercícios de interpretação aumento de vocabulário fixação da norma culta e motivador de redações assumindo assim a feição da rotina O fazer pedagógico se fecha para as várias possibilidades o desafio é não deixar que a função pedagógica controle o texto As possíveis significações e a imprevisibilidade da mensagem que o texto literário carrega são grandes aliados no processo de formação de leitores críticos Ao que parece estudantes e professores ainda não se conscientizaram do caráter libertador do ato de ler 120 UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA A escola lida com a palavra arte como se ela fosse informação sem pensar em estratégias de trabalho diferentes entre o texto artístico e o texto informativo Há a necessidade urgente de priorizar o caráter artístico do texto literário Devese constituir em exploração e vivência caso contrário incorrese no risco de reduzir o texto à categoria de instrumento contribuindo para a alienação do processo educativo Conforme cita Marisa Lajolo apud ZILBERMAN 1984 p 52 O texto não é pretexto para nada Ou melhor não deve ser Um texto existe apenas na medida em que se constitui ponto de encontro entre dois sujeitos o que o escreve e o que o lê escritor e leitor reunidos pelo ato radicalmente solitário da leitura contrapartida do igualmente solitário ato de escritura No entanto sua presença na escola cumpre funções várias e nem sempre confessáveis frequentemente discutíveis só às vezes interessantes Para Ezequiel Theodoro da Silva 1986 p 52 o material escrito não visa o assimilar memorizar ou reproduzir literalmente o conteúdo da mensagem mas principalmente o compreender e o criticar O que tem ocorrido é a ineficiência das práticas de leitura propostas pela escola com metodologias que aniquilam o potencial dos jovens ocasionando um nível rudimentar de leitura que se detêm apenas na historinha transmitida Metodologias falhas podem causar o desprezo e resistência à leitura Também é desejável que a literatura obtenha a parceria de outras áreas como por exemplo a pintura a escultura o teatro e o cinema para que o aluno vivencie diferentes formas de artes à sua cultura Mais do que possibilitar aos alunos leituras diversas de diferentes gêneros escritos em contextos diferenciados e para diferentes fins os projetos arrojados de literatura devem oferecer livros que exercitem a experimentação e a descoberta e investir na inteligência e sensibilidade do leitor infantojuvenil De acordo com Marisa Lajolo 1982 E a cada novo texto com que se defronta o aluno pode vivenciar de forma crítica a atitude de sujeito não só de sua linguagem mas de uma teoria e uma história da literatura do seu povo A não ser assim a literatura não cumprirá sua função maior no contexto se não da escola ao menos da formação do indivíduo livre LAJOLO apud ZILBERMAN 1984 p 52 As dificuldades de conquistar o leitor passam pelo equívoco da maneira como o texto é usado em sala de aula ou seja pretexto reduzido à aprendizagem da leitura e da gramática Entretanto quando o leitor se sente provocado pelas palavras lidas realizase a função formadora da leitura que induz o indivíduo a melhor conhecer a si e ao mundo que o cerca SARAIVA 2001 p 27 Através da literatura o leitor busca novas formas de dizer amplia sua capacidade linguística lança hipóteses experimenta duvida exercita descobre acresce modifica sua leitura e assume uma postura crítica TÓPICO 2 A RELAÇÃO LIVRO E A CRIANÇA 121 O desafio é levar o aluno a acrescentar interpretações livres daquelas preestabelecidas abandonar antigas práticas que relevam o texto e sua significação como que algo sacralizado Para Sanches Neto 2007 p 50 a grande tarefa pedagógica é produzir o apetite pelo texto e ainda suscitar no fruidor sentimentos e pensamentos que não estão no texto mas nele É nesse sentido que a literatura é obra aberta pois a literatura é lugar do entrecruzamento de muitos discursos de lacunas provocadoras do apetite pela leitura Outro fator a ser observado é o de que a literatura nos lares ocupa pouco espaço muitas casas sequer possuem um material de leitura O adulto diz que não tem tempo para a leitura a família de modo geral não possui livros de literatura preferindo livros didáticos de culinária de textos sobre atualidade textos práticos receitas de emagrecimento livros de autoajuda revistas de moda e outras A literatura cumpre na vida de muitos adultos o papel secundário não significa prazer não é uma opção de lazer Sabemos que deveria ser de responsabilidade da família promover o primeiro contato com os livros no período precedente ao da escola que poderia se dar muitas vezes por intermédio dos pais avós ou seja no seio familiar com histórias de fada de animais histórias inventadas Esse narrar histórias é positivo pois contribui para a aproximação entre a criança e o livro Porém o que percebemos é que as condições de vida impostas pelo contexto socioeconômico acabam por acarretar uma escassez de leitura literária no espaço familiar os pais pouco ou quase nada leem para seus filhos E ainda o livro possui um alto preço o que na maioria das vezes impossibilita a sua aquisição Entretanto se na rotina dos pais ocorre a inclusão da leitura à criança soará natural o ato de ler Além disso pais que procuram conhecer e debater sobre livros histórias demonstram interesse por aquele mundo da criança Cristiane M Oliveira 2007 afirma a importância e as atitudes dos pais para o incentivo da leitura pois a descoberta da magia da leitura se dá numa fase em que a ligação entre pais e filhos ainda é muito grande Por conta disso o afetivo está intimamente envolvido com esse processo Se o momento de leitura na infância se associa a momentos de prazer formase uma relação positiva com os livros que é o embrião de um adulto leitor Se a leitura ressignifica o humano e o mundo que o cerca então incitar a criança a explorála propiciar o contato com a literatura de forma prazerosa deverá ser um dos principais objetivos tanto da escola quanto da família e da sociedade Os papéis no incentivo à leitura não se excluem mas se complementam A eles cabe compreender a sua importância e assumila contribuindo assim para a formação de leitores 122 UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA 3 A IMAGEM LUGAR ESPECIAL Quando contamos uma história fazemos uso de estruturas próprias da linguagem oral podendo incluir aos componentes verbais gestos entonação e pausa Na formação de leitores é preciso somar outros elementos à linguagem verbal Um deles é a linguagem não verbal que se utiliza de signos visuais Ainda que no tópico precedente defendemos o texto infantil na perspectiva dialógica e no sentido de favorecer a imaginação e a fantasia somos uma civilização vinculada à linguagem imagética pois através da visão percebemos figuras cores formas e movimentos Através de uma imagem atribuímos qualidades aos objetos e ao espaço reconhecendoos e identificandoos Podemos então afirmar que a imagem cumpre a função de mediadora entre o espectador e a realidade Nesse sentido os livros com imagens destinados ao público infantil ganham força desde a década de 1920 quando pesquisas no campo da psicanálise ligadas ao âmbito pedagógico confirmaram que as imagens favorecem o estabelecimento de relações entre o concreto e o abstrato Um dos pioneiros na idealização de materiais com figuras influenciando a renovação da literatura tanto na Europa quanto nas Américas foi o francês Paul Faucher A produção desses livros surge em consonância com os avanços da psicologia e os ideais do movimento Escola Nova que propôs uma mudança de foco no processo pedagógico contrapondose à escola tradicional Em 1927 Faucher interessouse pelas ideias pedagógicas do tcheco Frandisck Bakulé Esse encontro instigou o francês que atento às descobertas da psicologia experimental aplicada à pedagogia tendo em vista os estágios de amadurecimento físico e psicológico da criança explora cada vez mais livros e materiais com linguagem não verbal que no entender de Faucher são capazes de instigar a imaginação e inteligência das crianças COELHO 2000 UNI O estudo da psicologia aplicada à pedagogia preconiza que o conhecimento se processa basicamente pelo contato direto da criança com o mundo que a cerca Daí a dizer que a linguagem imagética presente na literatura infantojuvenil auxilia na construção das percepções e propicia uma primeira entrada na interpretação de um texto porque é componente importante na atribuição de significados Dessa forma o texto ilustrado desempenha um papel fundamental no processo de leitura e ampliação de sentidos Nas livrarias circulam as mais diversas publicações de livros quanto ao formato tamanho assuntos ou temas com histórias contadas unicamente através de imagens ou fotos Esse novo formato de material desperta o interesse do público infantojuvenil Observe o exemplo a seguir TÓPICO 2 A RELAÇÃO LIVRO E A CRIANÇA 123 FIGURA 15 CAPA DO LIVRO MARCELO MARMELO MARTELO E OUTRAS HISTÓRIAS FONTE ROCHA Ruth Marcelo marmelo martelo e outras histórias RJ Salamandra 1976 A capa do livro em questão favorece discussões sobre o personagem o texto escrito enredo e espaço A partir da imagem é possível antecipar hipóteses e fazer inferências levando o jovem leitor a expor as suas opiniões Imagens como esta possibilitam o primeiro contato com a história a partir dos desenhos e cores A criança frente a esse objeto poderá contar e recontar histórias criar roteiros cenários personagens cenas e espaços sem necessariamente a intervenção do adulto A criança exercita a imaginação para em seguida descrever o que observou desenvolvendo a habilidade oral eou por meio de rabiscos É nesse fazer que ela inicia a relação com a linguagem escrita ao tentar reproduzir o que viu no livro A criança que exercita a observância das imagens alarga a percepção tátil uma vez que ao passar os dedos sobre as imagens de um livro tenta construir hipóteses de sentido apropriandose de uma leitura específica uma leitura imaginária ficcional enfatiza Eliane Debus 2006 p 36 O olhar é despertado pelo colorido do livro pela capa um convite à imaginação que estimula o prazer Alguns estudiosos como Bruno Bettelheim no entanto contestam o uso da ilustração em textos infantis alegando que estas já chegam preenchidas ao imaginário do leitor não deixam espaço para outras possibilidades estabelecidas a partir do leitorcriança Esses livros não deveriam conter ilustrações pois a criança ao ler ou ouvir histórias elaboraria de acordo com sua experiência as figuras e imagens do que estaria lendo ou ouvindo Um conto de fadas perde muito de sua significação pessoal quando suas figuras e situações recebem substância não 124 UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA através da imaginação da criança mas de um ilustrador BETTELHEIM 2007 p 76 Para este autor as ilustrações limitariam a capacidade cognitiva do jovem leitor Já para Ramos e Panozzo 2005 p 38 tanto a linguagem verbal quanto as ilustrações devem ser exploradas Pensar o livro infantil apenas pela perspectiva da palavra implica ignorar parte de sua significação uma vez que o leitor apreende a obra na sua totalidade ou seja congregando as linguagens que a constituem Para Nelly Novais Coelho 2000 os livros com ilustrações exercem forte atração por meio da capa do colorido dos desenhos das personagens favorecendo o exercício da capacidade inventiva pois possibilitam associações e inferências As imagens materializam a palavra do artista Ao ser estimulado a observar detalhes das imagens cores traços distribuição dos elementos no papel relação entre imagem e escrita estará o adulto ajudando o jovem leitor a apurar sua percepção e reestruturar o modo de ver reconhecer e julgar Para elucidar essa questão observe o livro Marcelo marmelo martelo e outras histórias Esse livro conta a história de Marcelo um menino muito curioso e esperto que procura entender o significado das coisas e por que elas são como são Marcelo vivia fazendo perguntas a todo mundo Papai por que é que a chuva cai Mamãe por que é que o mar não derrama Vovó por que é que o cachorro tem quatro pernas As pessoas grandes às vezes respondiam Às vezes não sabiam como responder ROCHA 1976 p 3 O livro mostra situações reais do cotidiano de um jeito que procura ser simples e de modo colorido O livro é composto de três contos cujas personagens são crianças que vivem na cidade Elas resolvem seus impasses com muita esperteza e vivacidade Marcelo cria palavras novas Teresinha e Gabriela descobrem a identidade na diferença e Carlos Alberto compreende a importância da amizade FIGURA 16 TRECHO DO LIVRO MARCELO MARMELO MARTELO E OUTRAS HISTÓRIAS FONTE Disponível em httpeducandocomocoracao blogspotcombr201104marcelomarmelomartelohtml Acesso em 5 out 2012 TÓPICO 2 A RELAÇÃO LIVRO E A CRIANÇA 125 Marcelo personagem do livro ajuda os pequenos leitores a perceberem que outras crianças também têm seus questionamentos De maneira lúdica Marcelo compartilha com os seus leitores uma relação prazerosa com a língua E cada vez mais para além do texto escrito o mercado editorial enfatiza a linguagem não verbal a ilustração Nos livros contemporâneos as personagens eou os elementos das histórias saltam da página divertindo e surpreendendo o leitor Segundo Mattos 2006 p 114 é bastante comum que nesse tipo de publicação a história seja um pretexto para a introdução da brincadeira o que em absoluto não compromete a qualidade da obra que reside principalmente no projeto gráfico A leitura sensorial por meio da imagem promove a curiosidade Esse jogo com o universo escondido num livro vai estimulando na criança a descoberta e aprimoramento da linguagem desenvolvendo sua capacidade de comunicação com o mundo MARTINS 1994 p 43 Sendo assim é imperativo instigar a percepção imagética com o objetivo de ajudar o leitor no processo de construção do pensamento abstrato Não podemos esquecer de levar o leitor a perceber aspectos relacionados ao objeto ao material do livro iniciando pela capa pelo formato do livro título Comentar cada ilustração inclusive a da capa o tamanho as cores o ilustrador o tipo de letra a organização das páginas se em capítulos se com subtítulos se pertence a uma coleção enxergando o livro como um todo ABRAMOVICH 1989 p 140 De acordo com Abramovich é preciso explorar ao máximo o livro infantil através de atividades a fim de perceber que a leitura não é somente uma mas múltipla e que as imagens comunicam Dessa forma o texto imagético é mais uma possibilidade de leitura carregada de significados Nos livros contemporâneos a ilustração conforme já dissemos não dispensa o texto escrito mas estimula o senso estético e contribui para a leitura da imagem isso porque para as crianças pequenas os desenhos favorecem a criação de hipóteses acerca do que está escrito Dito de outro modo a imagem antecipa o sentido do texto DEBUS 2006 Vejamos agora o livro A caligrafia de dona Sofia de André Neves cujo texto se constitui em uma narrativa poética e as ilustrações elementos que favorecem a recepção 126 UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA FIGURA 17 A CALIGRAFIA DE DONA SOFIA FONTE Disponível em httpanynhaproletramentoblogspotcombr201007paulinas prazersabersaborehtml Acesso em 5 out 2012 A narrativa assim se inicia Na mais alta colina entre as colinas que guardam a cidade existe uma casa diferente de todas as outras com paredes decoradas com poemas NEVES 2006 p 2 O livro enfatiza a caligrafia de uma professora aposentada que desenha as letras e demonstra como a poesia está presente em sua vida Para a personagem um mundo repleto de luz e sensibilidade Não haveria quem não pudesse dizer que ali as paredes recitavam cada canto vivo cuidado com emoção e a caligrafia em estilo que só Dona Sofia sabia NEVES 2006 p 2 Dona Sofia mora sozinha e sua paixão pela leitura levaa a escrever os poemas preferidos a fim de que não ficassem escondidos nos livros Os anos foram passando e um belo dia Dona Sofia percebeu que não havia mais espaço para escrever O que faria então Não queria deixar as poesias escondidas nos livros NEVES 2006 p 2 TÓPICO 2 A RELAÇÃO LIVRO E A CRIANÇA 127 Desse modo decorou as paredes de sua casa com poemas de diversos escritores como por exemplo Roseana Murray Fernando Pessoa Bartolomeu Campos de Queirós Castro Alves Florbela Espanca Carlos Drummond de Andrade Elias José Álvares de Azevedo Gonçalves Dias Gláucia de Souza Garcia Lorca Machado de Assis Casimiro de Abreu Sérgio Capparelli entre outros FIGURA 19 POESIAS DECORADAS NAS PAREDES POR DONA SOFIA FONTE Disponível em httpanynhaproletramentoblogspotcom br201007paulinasprazersabersaborehtml Acesso em 5 out 2012 A professora decide enviar os cartões poéticos a todos os moradores da cidade Com letra de caprichosa moça a professora aposentada decidiuse pelos cartões poéticos prensando flores sobre o papel colhendo palavras com sua florida caligrafia endereçandoos a todos os moradores da pequena cidade NEVES 2006 p 2 É nesse momento que entra em cena seu Ananias o carteiro que passa a ajudar Dona Sofia a entregar cartões Mais uma vez quando o alvor da aurora surgiu no céu Seu Ananias começou a percorrer a cidade de casa em casa Mas não entregava cartas A cada morador ele contava o quanto tinha aprendido com Dona Sofia e como aquela senhora havia mudado aos poucos a vida da pequena cidade sem ninguém perceber NEVES 2006 p 4 128 UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA FIGURA 20 ANANIAS O CARTEIRO FONTE Disponível em httpencantamentosdaliteraturablogspotcom br200904caligrafiadedonasofiaandreneveshtml Acesso em 5 out 2012 O enredo demonstra uma senhora preocupada em sensibilizar os demais moradores da cidade à leitura de poemas Dona Sofia era conhecedora das sensações e emoções que as palavras provocavam O livro sugere que a vida pode ser melhor se espalhássemos poemas pelo mundo A criança poderá ser orientada a explorar as imagens as cores enfatizando a relação destas com o texto Com base nas considerações a pretensão é enfatizar que muitos livros exploram além do enredo a imagem O intento é o de atrair o leitor neste caso a criança cujas sensações embora subjetivas comovem e divertem Assim no contexto de sala de aula pode o professor propor a leitura da imagem estimulando inferências e hipóteses com perguntas do tipo O que sugere a imagem Quem aparece Como é a imagem Será um texto engraçado ou triste Para complementar a nossa sugestão de metodologia sobre a leitura de imagens trazemos um texto extraído da revista Nova Escola que apresenta um roteiro TÓPICO 2 A RELAÇÃO LIVRO E A CRIANÇA 129 para atividades ligadas à cultura visual O diferencial é fazer sempre a relação com a realidade do aluno 1 Descrever Para aproveitar tudo o que uma imagem pode oferecer os olhos precisam percorrer o objeto de estudo com atenção Então o professor deverá solicitar de todos um relato do que veem elaborando um inventário descrevendo detalhadamente o que estão vendo As observações podem ser elencadas no quadro 2 Analisar É um momento destinado à percepção de detalhes Neste caso o professor poderá dirigir algumas perguntas objetivando estimular o aluno a prestar atenção na linguagem visual e seus elementos 3 Interpretar Eleja com a turma outras manifestações visuais que tratem de tema semelhante ao que está sendo abordado na imagem estimuleos a fazer comparações cores formas linhas organização espacial etc 4 Fundamentar Elabore com a turma uma lista de aspectos que provocaram curiosidade sobre o livro a imagem e o autor Pesquise em conjunto ou divida a turma para que busquem respostas às dúvidas 5 Revelar Discuta como gostariam de expor as ideias encontradas Quais são e como comunicálas É hora de criar desenhar e escrever FONTE Extraído e adaptado de REVISTA NOVA ESCOLA Prática pedagógica Artes visuais Abril 2003 Caroa acadêmicoa além do livro A caligrafia de dona Sofia outros livros infantojuvenis contêm as características para a abordagem da leitura imagética Veja a seguir a relação de livros retirada da Revista Crescer que poderá ser ampliada com a colaboração dos colegas 130 UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA FIGURA 21 RELAÇÃO DE LIVROS INFANTOJUVENIS FONTE Extraído e adaptado de Revista Crescer e publicada na edição do mês de junho de 2007 Aumente sua lista trocando experiências e sugestões sobre livros infantis com os colegas Anote o nome dos livros aqui 131 Neste tópico você viu Uma das metodologias que pode ser utilizada em sala de aula envolve o contato com os livros e geralmente a criança quer repetila Essa relação forma a opinião da criança que passa a estabelecer critérios de seleção do que quer ler É importante que o professor seja o mediador no contexto das práticas escolares de leitura literária na medida em que ele opera escolhas de narrativas poesias teatros contos fábulas autores enfim escolhas variadas de gêneros literários e estratégias de atividades a serem desenvolvidas em sala de aula Para a formação de leitores podemos destacar algumas proposições que escolas e salas de aula disponibilizem livros e outros materiais de leitura atentem para a leitura livre promovam momentos de leitura entre aluno e professor Vale ressaltar que o professor deveria também ser um leitor assíduo de modo a acompanhar o movimento editorial infantil e juvenil É papel da escola sensibilizar para o hábito da leitura A preocupação básica deveria ser a formação de leitores abertos e capazes de absorver o que uma boa história proporciona A contação de histórias estimula o uso de estruturas próprias da linguagem oral componentes verbais gestos entonação e pausa É preciso somar outros elementos à linguagem verbal um deles é a linguagem não verbal que se utiliza de signos visuais Uma imagem contém qualidades aos objetos e ao espaço e cumpre a função de mediadora entre o espectador e a realidade A linguagem imagética presente na literatura infantojuvenil auxilia na construção das percepções e propicia uma primeira entrada na interpretação de um texto porque é componente importante na atribuição de significados A criança frente ao livro de imagens poderá contar e recontar histórias criar roteiros cenários personagens cenas e espaços sem necessariamente a intervenção do adulto Os livros com ilustrações exercem forte atração por meio da capa do colorido dos desenhos das personagens favorecendo o exercício da capacidade inventiva pois possibilitam associações e inferências As imagens materializam a palavra do artista Ao ser estimulado a observar detalhes das imagens cores traços distribuição dos elementos no papel relação entre imagem e escrita o adulto ajuda o jovem leitor a apurar sua percepção e reestruturar o modo de ver reconhecer e julgar RESUMO DO TÓPICO 2 132 Caroa acadêmicoa neste tópico enfatizamos a leitura de imagens como uma atividade que estimula o olhar Com o intuito de exercitar a criatividade a escrita e a imaginação propomos a seguinte atividade elabore uma história a partir da leitura da imagem que segue Lembrese de dar um nome à história e à personagem Lembrese também de que toda narrativa apresenta uma estrutura AUTOATIVIDADE FIGURA 22 IMAGEM PARA ELABORAÇÃO DE UMA HISTÓRIA FONTE Disponível em httpmeninasemartewordpresscomtag ilustracao Acesso em 10 abr 2013 133 TÓPICO 3 EXPLORANDO OS GÊNEROS INFANTIS UNIDADE 3 1 INTRODUÇÃO A leitura enfatizamos é um meio de descoberta do mundo O ser humano ao longo da vida se desenvolve através da leitura Mas ler não significa apenas identificar as palavras significa compreender e interpretar É nesse sentido que destacamos a importância da literatura na infância pois é neste período que inicia uma relação especial com o livro O objetivo da literatura no ambiente escolar é a formação do leitor e deve para isso criar entre alunos e obras literárias uma atitude de curiosidade pelos livros de interesse pelo descobrimento de encantamento Essa relação poderá ser construída privilegiando a leitura de obras na sala de aula e as conversas informais que provoquem discussão sobre o que é lido Apresentar diversidade de gêneros significa apontar para objetivos e interesses criados coletivamente para a linguagem como mediadora da compreensão do mundo e do autoconhecimento Para tanto o professor deverá adotar uma postura que privilegia a polissemia o dialogismo permitindo que Alunos e professores falem com suas vozes o discurso das suas vidas que lhes dá chance de somar suas falas às dos colegas para contestar concordar sair do mundo escolar a partir do texto buscando outras referências colhidas na TV na música no humor nas histórias e fatos do bairro no trabalho no namoro enfim nesse todo que é o conhecimento que eles dominam SANTA CATARINA 2005 p 41 O professor neste fazer deverá contemplar histórias do dia a dia contos fábulas lendas parlendas músicas poesia novela crônica piadas filmes romances histórias em quadrinhos ou seja uma prática pautada no contato com os diversos gêneros textuais Apresentamos a seguir algumas possibilidades de atividades a serem realizadas com o jovem leitor estas no entanto já são conhecidas Assim nossa pretensão é tão somente refletir que o sucesso depende de ações planejadas com objetivos bem definidos UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA 134 2 LEITURA DO MUNDO A LITERATURA Vejamos algumas possibilidades de práticas propondo atividades como por exemplo a roda de leitura Um momento de contato primeiramente individual com a literatura para em seguida integrarse com o grande grupo expondo as leituras a elaboração de comentários de análise e reconhecimento da palavra É no conjunto dessas atividades que se amplia o vocabulário e a troca de informações que podem aguçar a curiosidade por novas leituras FIGURA 23 RODA DE LEITURA FONTE Disponível em httpescoladavilawordpresscom20100318voce adivinhoueuadoreiolivroquemeindicoublog57 Acesso em 5 out 2012 Ainda na roda de histórias o professor junto com os alunos procede a contação de histórias prática que favorece a escuta e a oralidade Essa atividade poderá ser incrementada com o objetivo de exercitar a leitura de obras mais extensas Neste caso a escolha das obras para leitura deverá ser dosada com a leitura de um determinado número de páginas ao dia Este procedimento provocará suspense sobre o desenrolar da história O professor poderá também elaborar com a classe um quadro que indique quais obras foram lidas em sala de aula ou quais os alunos gostariam de ler durante o próximo mês ou semestre Lembrese de que Sherazade personagem de As mil e uma noites utilizava esta estratégia para prender a atenção do sultão UNI TÓPICO 3 EXPLORANDO OS GÊNEROS INFANTIS 135 Ao mesmo tempo você futuroa professora atente para os temas propostos que são abordados nestas histórias como amizade ambição preconceito coragem responsabilidades vida morte OA professora ao propor a prática do contar estimula o ler literário propicia o encontro entre as crianças e a produção que lida simbolicamente com o real A língua seja na modalidade falada ou escrita aponta para a organização de uma sociedade suas ideias pensamentos valores e traços de sua cultura Esses reflexos podem ser encontrados na literatura que desvela por intermédio da narrativa experiências de épocas e sociedades distintas Inicialmente as narrativas eram propagadas oralmente garantindo o relembrar e o transmitir a sabedoria às gerações futuras Prática muito antiga e universal na qual as histórias narradas eram e são ainda hoje momentos de trocas união diversão e reflexão Uma mesma história pode ser narrada em lugares distintos e poderá apresentar variações quanto às palavras empregadas quanto à sequência aos elementos empregados e ao enredo Porém as inovações ou variações realizadas pelo contador devem ser aceitas pelos ouvintes somente assim poderão fazer parte do repertório coletivo da tradição É nesse sentido que o espectador participa da criação e transformação da cultura popular No momento da narração palavras ou frases se repetem como é o caso das expressões era uma vez e viveram felizes para sempre Uma palavra uma pausa um tom de voz Adéquase o gesto à história narrada com o intuito de envolver a plateia Para as crianças e adolescentes ouvir histórias poetizadas cantadas é um sedutor exercício de investigação e experimentação e portanto construção de conhecimento O narrador com arte prende a atenção do ouvinte De acordo com esse pensamento fomentar o imaginário por meio da contação de narrativas de histórias diversificadas favorece o contato do aluno com a cultura escrita tornandoo inquieto pelo desejo do ler Cléo Busatto relata algumas nuances que auxiliam no momento de elaborar uma atividade que envolva o contar histórias Para a autora contar histórias é diferente de representar entretanto ao se iniciar a contação começam a surgir os primeiros sinais de que a representação está ali inserida Neste fazer colocamos em ação também a linguagem teatral um recurso didático rico porém algumas distinções se fazem necessárias No teatro buscamos o gesto exato de cada personagem sua voz seu pensamento de tal maneira que ele se apresente inteiro para quem esteja assistindo Na narrativa este personagem será concebido pelo ouvinte através dos elementos oferecidos pelo narrador muitas vezes não mais que meia dúzia de palavras as quais fornecem elementos suficientes para que o personagem crie vida na imaginação do ouvinte BUSATTO 2003 p 74 UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA 136 O teatro é a arte de apresentar ou melhor representar as ações da narrativa e a arte de descrever as ações No entanto isso não nos impede de nos apropriarmos da linguagem teatral no momento da contação O que deve orientar a atividade de contação é manter a característica do narrar e não deixar que se sobressaia a do representar teatralmente BUSATTO 2003 p 74 Tal postura garante ao ouvinte a possibilidade de imaginar os personagens e as suas ações sem determinar através de um corpo e uma voz como é aquele personagem e qual é a ação que ele está executando BUSATTO 2003 p75 Na contação é o narrador a conduzir a história Um gesto uma mudança de tom de voz remeterá a criança ao mundo da imaginação do faz de conta Exemplificando a autoridade de um pai poderá ser traduzida por um pequeno movimento de mão acompanhado da sua intenção correspondente Isto aliado à fala do pai é o suficiente para a criança imaginar como ele impõe respeito Não é preciso mudar a voz mesmo porque seria muito fácil cair na caricatura da autoridade O Lobo Mau não precisa falar grosso para demonstrar a sua ferocidade Um desenho no ar um pequeno tom já traduz a sua malvadeza O que podemos carregar do teatro é justamente a intenção que carrega um ritmo preciso BUSATTO 2003 p 75 O narrador deverá ter o cuidado de não exagerar nos gestos considerando o fato de levar ao ouvinte a imagem visual Ainda segundo Busatto 2003 p 76 narrar em pé é mais estimulante assim o contador poderá observar esta ocupação espacial e os ouvintes à sua frente buscar os olhos de cada um propondo e mantendo uma atitude intimista O uso de objetos também poderá ser explorado como recurso Estimular a partir do uso de objetos não significa que se deva usar os objetos descritos pelo conto Você até poderá se munir de alguns objetos comuns como caixa de fósforos palitos lápis e borracha e fazer deles os personagens de uma história porém isso faz parte de outra técnica é teatro de animação de formas Não é assim que vejo o uso de elementos durante uma narrativa porém não fecho esta questão em certo X errado O que exponho aqui é apenas a minha forma de enxergar a técnica BUSATTO 2003 p 77 Sendo assim ao contar histórias podemos nos apropriar dos elementos do teatro mas com bom senso É importante que o uso da linguagem teatral de objetos e outros recursos não esclareça tudo que a imaginação faça a sua parte que cada ouvinte retire do conto aquilo que necessita e que a partir dele se faça um estimulante exercício imaginativo BUSATTO 2003 p 77 A contação deve ser preparada cautelosamente leia boas versões escolha histórias que tocam seu coração a ponto de fazer com que você disponha do seu tempo para preparálas e depois narrálas a quem deseja ouvir BUSATTO 2003 p 77 Após a escolha atente que a dinâmica de contar e ouvir é de grande valia em sala de aula pois sempre fascinaram uma vez que os alunos compartilham leituras TÓPICO 3 EXPLORANDO OS GÊNEROS INFANTIS 137 Todos os gêneros podem ser explorados para a atividade de contação Destacamos aqui as fábulas Estas devem fazer parte do repertório uma vez que promovem discussões em torno de temas como a solidariedade a desigualdade a vaidade a vida a morte Narreas e proponha debates sobre l A atualidade do tema l A moral destacada na contemporaneidade l Mudanças ocorridas l Contrapontos com textos escritos recentemente Outro modo de expandir a leitura da literatura e o conhecimento é propor uma atividade cujo objetivo é encontrar elementos intertextuais pela comparação entre dois ou mais textos O aluno durante a leitura identifica quais elementos estão presentes que podem fazer referência à forma às personagens ao tema a palavras a frases Feita a leitura e a constatação dos aspectos intertextuais O professor poderá ainda propor que os alunos elaborem o seu próprio texto tendo por base uma história um desenho um quadro O objetivo dessa atividade é considerar a intertextualidade como uma possibilidade dialógica que contribui para a leitura e escrita Lembrese de que a intertextualidade pode ser entendida como a superposição de uma frase um tema uma personagem uma imagem um texto da literatura a outro texto Está presente nos livros nas propagandas novelas filmes Proponha um estudo comparativo por exemplo entre Chapeuzinho Vermelho e as versões desse clássico a exemplo de Capuchinho Vermelho de Charles Perrault e Chapeuzinho Vermelho dos Irmãos Grimm observando a intertextualidade com textos mais contemporâneos Chapeuzinho Vermelho de Raiva de Mário Prata Chapeuzinho Amarelo de Chico Buarque Fita Verde no Cabelo de Guimarães Rosa Cabelinho Vermelho e Lobo Bobo de Ronaldo Bôscoli e Carlos Lyra e Chapeuzinho Verde de Augusta Faro FIGURA 24 TÍTULOS DE VÁRIOS LIVROS INFANTIS FONTE Disponível em httplpressurpwordpresscom20100322 projetodeleituraE2809CquehistoriaeessaE2809D Acesso em 5 out 2012 UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA 138 Essa análise possibilita observar além da intertextualidade aspectos ligados às normas e valores de épocas distintas uma proposta de leitura que configura uma sociedade emancipatória e democrática Outra categoria editorial que vem ganhando força são livros nos quais prevalece a função referencial transmitindo a informação objetivamente de forma precisa e denotativa É a linguagem do jornalismo dos noticiários Está centrada no referente ou seja naquilo de que se fala geralmente escrita em terceira pessoa com frases estruturadas na ordem direta Entretanto muitos dos livros de cunho informativo revelam alguns parâmetros estéticos e para tanto se valem de recursos lúdicos e artísticos Para Mattos 2006 p 115 tais publicações devem ser avaliadas a partir de um duplo critério o primeiro diz respeito à correção adequação e pertinência do seu conteúdo informacional o segundo à qualidade de seu discurso artístico e estético Sendo assim apropriese destes textos com o escopo de aprimorar a função referencial da linguagem característica de um texto informativo Para tanto aproveite as histórias que vão desde contos tradicionais eou até as aventuras encontradas nos livros de Harry Potter poderão servir de texto base Vejamos você pode narrar a história por exemplo Chapeuzinho Vermelho solicitando aos alunos que atentem para os acontecimentos que vão sendo arrolados Em seguida proponha a elaboração de uma notícia de jornal informando o que aconteceu com a menina e sua avó o lobo o caçador o rapaz o bruxo Suscite questões que auxiliem o aluno a escrever a notícia O que aconteceu Onde Quem estava envolvido Por quê Quando Como Além disso o texto deverá conter uma manchete interessante com letras em destaque e com um título curto devendo ser clara objetiva informativa e de fácil compreensão A cada parágrafo o aluno deverá acrescentar um dado novo Mostre ao aluno como são elaborados estes textos utilize jornais que circulam na cidade exemplificando a dinâmica de construção do texto a o primeiro parágrafo apresentará um resumo do fato b o segundo informará onde e quando o fato ocorreu e quais as pessoas envolvidas c os demais parágrafos deverão relatar a sequência dos fatos até finalizar a notícia Importante também é abrir espaço para falar desinteressadamente sobre leituras recomendação de leituras promover júris audição de músicas sessões de vídeos e de filmes de interesse do grupo e de acordo com a idade dos alunos estabelecer relações e provocar neles a curiosidade para que investigue o momento histórico e social no qual autor e obra estão inseridos fazêlos observar possíveis intenções do autor o gênero a escola literária o momento político o pensamento filosófico predominante SANTA CATARINA 2005 TÓPICO 3 EXPLORANDO OS GÊNEROS INFANTIS 139 Aproveite estes momentos para discutir questões pertinentes à ambiguidade que envolve muitas manchetes de jornais e revistas Estabeleça relações explore os conhecimentos prévios dos alunos e levante questões pertinentes ao texto Tenhamos em mente que quanto mais a criança for exposta ao exercício de leitura de vários gêneros e temas mais ela perceberá o poder da palavra e a ação da linguagem sobre o pensamento humano E ainda a diversidade dos textos sem dúvida possui o intento de atender às necessidades de um público que tem gostos interesses e demandas diferentes e favorecerá a função de conquistar o jovem para a leitura da palavra de garantir o desenvolvimento da criatividade da criticidade para que haja e interaja com seus pares e exerça a democracia Vale ainda ressaltar a necessidade de evidenciar aspectos pertinentes à linguagem do texto literário Uma ideia é possibilitar o contato com textos de autores diversos eou gêneros diversos mas que abordem a mesma temática a exemplo da temática que envolve amor e traição Sendo assim programe aulas com autores que escreveram histórias com esses temas assista a um filme que aborde a mesma temática explorando visões e épocas diferentes Quem sabe aborde a traição a partir de escolas literárias distintas Para tanto escolha Madame Bovary do autor Gustave Flaubert e São Bernardo de Graciliano Ramos Neste fazer questione as verdades os estereótipos investigue comportamentos compare estilos o início e o final das tramas confronte a linguagem cinematográfica com a literária Outra possibilidade que deve ser explorada em sala de aula é a de comparar estilos de autores épocas e nacionalidades distintas A título de exemplificar comparamos o estilo do escritor brasileiro Machado de Assis com o do escritor italiano Luigi Pirandello Elencamos algumas características que revelam semelhança nos escritos desses dois autores o humorismo e a conversa do narrador com o leitor Luigi Pirandello nasceu em Agrigento na Sicília em 28 de junho de 1867 Fez seus estudos universitários em Palermo Roma e na Alemanha concluindo o curso de Filologia Tornouse professor de uma instituição de ensino médio e deu aulas particulares Pirandello além das aulas intensificou sua produção literária Em 1889 foi editado o primeiro livro do autor Mal Giocondo O escritor morreu em 10 de dezembro de 1936 em Roma no mesmo ano em que recebeu o Prêmio Nobel de Literatura não só pelo conjunto de sua obra mas principalmente pelo sucesso de não só levar aos palcos histórias de aristocratas e burgueses mas uma nova forma de teatro o teatro no teatro Foi o próprio Pirandello que assim nomeou o seu teatro talvez pelo fato de o autor fazer uso da metalinguagem Suas personagens discutiam seus próprios papéis a influência do autor da peça e de certa forma a relevância do teatro para a vida de um povo Das obras traduzidas para o português que corroboraram para o reconhecimento do autor como romancista e dramaturgo no Brasil destacamos O Finado Matias Pascal Seis personagens à procura de um autor Henrique IV Um nenhum e cem mil Os velhos e os moços O humorismo Esta noite se representa de improviso Cada um a seu modo UNI UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA 140 Quanto à presença do humorismo destacamos que a visão naturalista e realista não retratava completamente a complexidade do subjetivismo o ser e seu íntimo Pirandello e Machado de Assis assinalam várias de suas obras com esse toque de humorismo Conforme Pirandello um escritor poderia fazer uso da ironia da comicidade ou do humorismo Cada qual possui características distintas embora sutis muito bem descritas em seu ensaio O humorismo de 1908 Para Pirandello o humor é diverso do cômico este não leva à reflexão É do humor que surge a reflexão a partir da qual a representação frente à realidade passa a ser profunda pois ao se refletir abrirseá mão do divertimento Em citação do próprio autor neste ensaio temse a explicação Vejo uma velha senhora com os cabelos retintos toda ela torpemente pintada e vestida de roupas juvenis Ponhome a rir Assim posso à primeira vista e superficialmente determe nessa impressão cômica advertimento do contrário Mas se agora em mim intervém a reflexão e me sugere que aquela velha senhora pensa que assim vestida escondendo assim as rugas e as cãs consegue reter o amor do marido muito mais moço do que ela eis que já não posso mais rir disso como antes porque precisamente a reflexão trabalhando dentro de mim me leva a ultrapassar aquela primeira advertência ou antes a entrar mais em seu interior daquele primeiro advertimento do contrário ela me fez passar a esse sentimento do contrário E aqui está toda a diferença entre o cômico e o humorístico PIRANDELLO 1999 p 147 Há que se considerar que não há nada de inocente no humorismo pirandelliano ou no humorismo machadiano É para o leitor que é dado a interpretar inferir concluir sobre fatos aparentemente insignificantes temperados com humorismo os dissabores da vida A dor é disfarçada de riso A essência do humorismo é a do riso que se encontra próximo ao doloroso Já Machado de Assis inicia o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas fazendo uso desse recurso Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas ASSIS 1994 p 1 Nos escritos do italiano Pirandello traços desse humor podem ser percebidos quando o protagonista do romance O finado Matias Pascal nos leva ao riso ao narrar o fato de seu olho esquerdo não acompanhar o direito como no dia em que resolveu começar a ser leitor e sim senhores comecei a ler eu também e só com um olho porque o outro se recusava a semelhante prática PIRANDELLO 1970 p 98 ou quando narra sua alegria por finalmente em seu primeiro emprego bibliotecário encontrar uma ocupação De vez em quando das prateleiras se precipitavam dois ou três livros acompanhados de certos ratos tão grandes quanto coelhos Foram para mim como a maçã de Newton E para começar escrevi um elaboradíssimo requerimento a fim de que fosse com a maior urgência provida a biblioteca de pelo menos uns dois grandes gatos TÓPICO 3 EXPLORANDO OS GÊNEROS INFANTIS 141 cuja manutenção não acarretaria despesas à Administração Pública PIRANDELLO 1970 p 96 Ou ainda quando vai visitarse no cemitério de vez em quando vou até lá para me ver morto e sepultado PIRANDELLO 1970 p 281 Observe que nestas passagens a reflexão abre espaço para múltiplas interpretações e significados sujeito dividido entre seguir as regras íntimas ou aquelas impostas pela sociedade um indivíduo fragmentado uma sociedade fadada à ignorância longe dos livros com objetivo No romance Memórias póstumas de Brás Cubas o narrador narra em primeira pessoa A personagem narra postumamente ou seja após sua morte Um defuntoautor e não um autordefunto alguém que já não pertence mais a este mundo é quem decide escrever suas memórias Assim podemos dizer que a história se desenrola em dois tempos um psicológico no qual o autor alémtúmulo relata sua vida com digressões que se afastam da ordem temporal linear Quanto ao tempo cronológico podemos destacálo nos acontecimentos que obedecem à ordem lógica e linear infância adolescência ida para Coimbra volta ao Brasil e morte UNI As personagens pirandellianas e machadianas contam sua vida e intercalam a narração em primeira pessoa com frequentes explicações para quem as escuta justificam para si e explicam aos outros os acontecimentos que motivaram seus atos O protagonista provoca o leitor em uma série de afirmações interrogações exclamações por vezes imperativas em outras como que num pedido de desculpas provocando o leitor A intromissão é recorrente nos romances pirandellianos O fragmento retirado do romance Um nenhum e cem mil marca esse recurso Eu queria estar só de modo inusitado totalmente novo O oposto do que vocês pensam isto é sem mim e portanto com um estranho por perto Isso já lhes parece um primeiro sinal de loucura Pode ser que a loucura já estivesse em mim não nego mas peço que acreditem que o único modo de se estar realmente só é este que lhes digo PIRANDELLO 2001 p 29 Para Compagnon 2003 p 151 quando o autor faz uso dessa técnica construir seu leitor da mesma forma que ele constrói seu segundo eu está reservando um lugar para o leitor que poderá ocupálo ou não julgar da mesma forma que o narrador ou não UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA 142 Vejamos essa intromissão nos escritos de Machado de Assis No romance Quincas Borba o escritor contextualiza o leitor sobre quem é Quincas Este Quincas Borba se acaso me fizeste o favor de ler as Memórias póstumas de Brás Cubas é aquele mesmo náufrago da existência que ali aparece mendigo herdeiro inopinado e inventor de uma filosofia Aqui o tens agora em Barbacena Logo que chegou enamorouse de uma viúva senhora de condição mediana e parcos meios de vida mas tão acanhada que os suspiros no namorado ficavam sem eco Chamava se Maria da Piedade Um irmão dela que é o presente Rubião fez todo o possível para casálos Piedade resistiu um pleuris a levou ASSIS 1994 p 3 Outro fator que pode ser mote para o confronto de escritos estimulando o gosto pela leitura e a observância do engendramento dos textos escritos poderia ser a análise das construções sintáticas O escritor Pirandello resgatou as construções sintáticas próximas da linguagem falada e para tanto optou pelo colorido dialetal o que de certa forma dá continuidade à herança linguística De acordo com Cesarini e Federicis 1996 essa maneira singular de escrever permitiu mostrar como na narrativa as personagens manifestam uma identidade subjetiva não separada da sua cultura O intento não era o de responder a gostos e a exigências de leitores mas de deixar falar as personagens com sua vivacidade e singularidade Nas palavras de Pirandello O movimento está na língua viva e na forma que se cria E o humorismo que não pode prescindir dela encontráloemos repito nas expressões dialetais na poesia macarrônica e nos escritores rebeldes à retórica PIRANDELLO 1999 p 76 No Brasil o emprego de uma escrita mais próxima da fala na literatura tornouse símbolo de identidade nacional Essa tendência iniciouse com o romantismo e pode ser detectada em autores como José de Alencar ou Gonçalves Dias que empregavam expressões de origem indígena ou construções sintáticas utilizadas no Brasil em suas obras Entretanto os escritos literários com ênfase em características nacionalistas culminam no Modernismo com Oswald de Andrade e Mário de Andrade entre outros Para tanto leia Macunaíma de Mário de Andrade A obra revela uma escrita com idiomatismos que são compreendidos dentro do contexto Escritores como José Lins do Rego e Graciliano Ramos Jorge Amado ou Érico Veríssimo Guimarães Rosa para citar alguns exemplos estabelecem a partir de seus textos uma proximidade com a língua oral falada no Brasil dando uma cor local a suas obras Atentar para estes traços na obra é um convite à percepção estética Como nos diz Umberto Eco 2003 p 6 um poder imaterial que de alguma forma pesa um convite à leitura por deleite por curiosidade de desvendar os segredos da alma por prazer em apreciar uma forma especial de linguagem que difere da forma cotidiana e por isso chamada de arte TÓPICO 3 EXPLORANDO OS GÊNEROS INFANTIS 143 Resumo da obra Um nenhum e cem mil de Pirandello Vitângelo Moscarda o protagonista descobre quando sua esposa comenta corriqueiramente que o nariz dele inclina se ligeiramente para a direita fato nunca observado pelo protagonista que entra em desespero ao se dar conta a partir deste detalhe que ele não é exatamente aquele que acreditava ser Assim dáse início uma busca do conhecerse entre um nenhum e cem mil O romance O finado Matias Pascal foi escrito em 1904 narra a história do pequeno burguês Matias Pascal que pertencia a uma família abastada da região da Sicília mas com a morte do pai e a contratação de Malagna um administrador desonesto a família acaba na miséria Anos mais tarde Matias casase com Romilda um casamento necessário e problemático Para sustentar a família começa a trabalhar como bibliotecário A vida miserável tanto conjugal quanto financeira que leva e a morte pela peste da mãe e da filha fazem com que Matias resolva dar um basta e foge de sua casa e da cidade Para na cidade de Monte Carlo joga em um cassino e ganha quantia considerável em dinheiro Pensa muito e resolve voltar para sua cidade e tentar salvar seu casamento Na viagem para casa ainda no trem lê uma nota num jornal que o surpreende e o faz mudar de ideia a notícia de seu suicídio Sua pseudomorte servirá para que ele sonhe com a liberdade FONTE Adaptado de Encontro e confronto do in visível na tradução do romance Il fu Mattia Pascal de Pirandello PASQUALINI Joseni Terezinha Frainer 2005 p 5053 UNI Assim diante da exposição de algumas peculiaridades desses escritores vale ressaltar a importância de estabelecer como rotina a observância entre um e mais autores e gêneros confrontando analisando e fomentando a discussão em sala de aula O mesmo poderá ser planejado com poesias e com músicas O desafio de se fazer descobertas em relação ao mundo da música das artes da moda e de comportamentos expande o conhecimento do gênero poético O contato com as trovas os desafios dos repentistas a literatura de cordel bem como as composições musicais das bandas contemporâneas possibilitam o reconhecimento do que a sociedade estabelece por literário e não literário A poesia na escola promove a integração possibilita a representação como forma de expressão corporal desenvolve a eloquência a autoestima e favorece a criatividade Associada a outras formas de arte cumpre na escola um papel integrador na medida em que revela a essência da expressão do homem Por sua ação sobre os processos emocionais ela desencadeia a liberdade de criação de troca de espontaneidade e socialização A poesia pode ser entendida se é que devemos entendêla como certo modo de ver e sentir as coisas carregadas de encanto É a magia da palavra que se multiplica porque a poesia é imagem som emoção e sensação UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA 144 Para Nelly Novaes Coelho 2000 p 222 o jogo poético além de estimular o olhar de descoberta nas crianças atua sobre todos os sentidos despertando um semnúmero de sensações visuais auditivas gustativas olfativas tácteis comportamentais e outras Nesse sentido colocase a importância do espaço a ser concedido à poesia na escola e sua necessidade numa ação formadora A poesia é uma das mais elaboradas formas de expressão verbal é um trabalho da linguagem sobre si mesma Na linguagem poética as palavras se condensam de modo exato e belo provocando encantamento Quando pensamos em poesia para o leitor infantojuvenil precisamos refletir sobre as peculiaridades que revestem esse gênero reveladas nos ritmos nas imagens nos temas nas metáforas na conotação na subjetividade e na linguagem 3 A DESCOBERTA DA POESIA Além disso é importante reconhecer que a partir da escrita nos meios eletrônicos informação digital ou hipermídia surgem novas formas de leitura O aluno diariamente está em contato com a televisão o rádio as revistas o computador e a internet recursos que respondem mais facilmente às necessidades imediatas dos jovens e crianças No meio digital não existe a obrigatoriedade imposta de prazos das fichas de leitura títulos como garantia de leitura realizada O acesso a essa nova tecnologia é atrativo e também propicia conhecimento Pensar na tecnologia implica pensar em mudanças em aprimoramentos É certo que algo deve ser feito com uma pedagogia mais apropriada para a criança e o jovem que frequenta a escola que não vive sem o computador a televisão o celular e tantas outras tecnologias que fazem parte do universo virtual no qual estamos inseridos Sendo assim o educador consciente de seu papel transformador buscará metodologias com novas formas de despertar na criança eou adolescente o gosto pela descoberta da leitura literária sem no entanto desconsiderar o valor estético Caroa acadêmicoa embora o texto literário não deva servir de pretexto estas reflexões e sugestões são o princípio de uma discussão Para tanto é imperativo que o professor amplie seu conhecimento e visão acerca da literatura infantojuvenil atualizandose quanto às publicações bem como observar o gosto literário dos alunos O texto literário é o instrumento de trabalho importante e não usálo ou desconhecêlo demonstra falta de idealização planejamento e despreparo TÓPICO 3 EXPLORANDO OS GÊNEROS INFANTIS 145 Falando de livros O livro é a casa onde se descansa do mundo O livro é a casa do tempo é a casa de tudo Mar e rio no mesmo fio água doce e salgada O livro é onde a gente se esconde em gruta encantada FONTE Roseana Murray in Carteira de identidade ed Lê 2010 Observe como a autora Roseana Murray se utiliza de figuras de estilo e de maneira poética escolhe uma linguagem elaborada para falar do livro É um fazer especial com as palavras Embora não nos demos conta a criança recebe ainda no berço o primeiro contato com a poesia e seus elementos o ritmo e a rima manifestados na voz que acalenta nas cantigas de ninar e mais tarde na musicalidade das parlendas das brincadeiras de roda nos travalínguas nas adivinhas jogos da tradição oral O aproveitamento das estruturas rítmicas aliado ao controle da respiração das expressões da fala da postura além de possibilitar o desenvolvimento cognitivo e a motricidade é fator positivo no processo do domínio da palavra São essenciais para o desenvolvimento do ser humano no plano linguístico e no psicológico que se desenvolve através das atividades corporais musicais e outras Percebese assim a importância da poesia já nas séries iniciais e no preparo adequado e cuidadoso quando da exploração desse gênero textual Como afirma Ligia Morrone Averbuck 1993 p 57 a poesia não pode ser ensinada mas vivida o ensino da poesia é assim o de sua descoberta A experiência com a poesia visa aguçar a emoção a fantasia e a sensibilidade do jovem leitor A poesia possibilita à criança o gosto pelo jogo rítmico e o jogo da linguagem ao mesmo tempo é lúdica e libertadora De todos os gêneros a serem explorados em sala de aula deve a poesia ser a menos comprometida com os aspectos ligados à moral à instrução e à exploração de atividades obrigatórias de entendimento do poema lido É fundamental que a poesia seja apresentada e vivenciada com frequência no espaço escolar e seja selecionada cuidadosamente a fim de propiciar a sensibilidade para a arte UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA 146 poética no aluno através de textos diversificados com ou sem rima curtos e mais longos temas autores e épocas variados poesias complexas eou simples E ainda oportunizar novas formas de expressar seu entendimento de poesia através de desenhos colagens pintura bem como a tentativa de criação de novos poemas Essas e outras oportunidades constituem para a criança meios eficazes e válidos no desenvolvimento da criatividade e da sensibilidade frente a um texto poético Não se trata de que a escola deva assumir a responsabilidade de fazer poetas Para Averbuck 1993 p 67 é importante que a escola desenvolva no aluno habilidades e competências para sentir a poesia apreciála e percebê la como uma forma de comunicação com o mundo Sugerese que o professor explore o texto poético que é carregado de significado de ritmo cadência e melodia O contato com a poesia é portanto o da descoberta do jogo das palavras e do domínio da sonoridade Para a criança alfabetizada uma forma de desenvolver a imaginação e a criatividade é a decomposição de textos poéticos criando novos poemas Para que ela seja atraída pela magia da palavra poética é preciso criar uma atmosfera de uma legítima oficina poética em que a desconstrução dos textos seja o caminho para novas construções AVERBUCK 1993 p 76 Já nos níveis mais avançados de escolaridade pensando nos adolescentes o professor poderá também lançar mão da música A utilização dos textos musicais favorece a aproximação de uma linguagem que fala diretamente ao jovem Outro aspecto muito importante a ser valorizado por parte do professor quanto à exploração da poesia em sala de aula é a questão da disposição da palavra no espaço do papel A poesia especialmente a moderna utilizase desse recurso denominado poema figurado composição poética cujos versos se organizam de modo a sugerir a forma do objeto que lhe serve de tema MOISÉS 2004 p 357 Podemos citar como exemplos de temas de poema figurado corações asas flores Essa percepção poderá ser desenvolvida através da apresentação ao jovem leitor de poemas diferenciados graficamente Observe como o escritor Sérgio Capparelli 2008 trabalha com o poema visual em seu livro Tigres no quintal TÓPICO 3 EXPLORANDO OS GÊNEROS INFANTIS 147 FIGURA 25 A PRIMAVERA ENDOIDECEU FONTE Disponível em httppaginasefolhasblogspotcombr200907dia desolcompoemahtml Acesso em 10 abr 2013 A partir da leitura de poemas o professor poderá propor uma oficina de criação escrita prática que atrai os alunos pela gama de artifícios que o gênero oferece Além disso a poesia infantil da modernidade recobrese de significações múltiplas palavras imagens rimas sonoridades forma cor e luz Caroa acadêmicoa como você já estudou nos módulos anteriores a poesia apresenta várias formas líricas fixas tais como a balada a canção a elegia a ode e o soneto formas essas a serem exploradas pela literatura infantojuvenil Uma agradável sugestão para o trabalho com a poesia em sala de aula poderá ser a utilização de uma forma lírica de origem japonesa denominada haicai NAVEGUE Guilherme de Almeida começou a escrever haicais em 1936 Sistematizou as suas ideias sobre o que seria o haicai em português um terceto com 575 sílabas dotado de título sendo que o primeiro verso rima com o terceiro além de contar com uma rima interna no segundo verso entre a segunda e a sétima sílabas UNI UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA 148 O haicai é um poema caracterizado pela brevidade composto por três versos somando 17 sílabas o primeiro e o terceiro com cinco e o segundo com sete Essa composição estaria de acordo com as fases da existência humana ascensão apogeu decadência Com um dos mais famosos poetas japoneses Matsuo Bashô no século XVII o haicai ganha importância grandeza e a solenidade que o distinguem até hoje Semelhante pela forma a um epigrama o haicai deve concentrar em reduzido espaço um pensamento poético eou filosófico geralmente inspirado nas mudanças que o ciclo das estações provoca no mundo concreto MOISÉS 2004 p 217 Era em sua forma original destituído de rima Seus temas não abordam moralidade ou tudo quanto possa atentar contra a vida humana Seu objetivo é atingir a simplicidade tendo como artifício a humanização da natureza e a correspondente naturalização do ser MOISÉS 2004 p 217 O haicai tem integrado a obra de ilustres poetas brasileiros como Guilherme Almeida Manuel Bandeira Paulo Leminski e outros Leia o haicai de Guilherme de Almeida FIGURA 26 HAICAI DE GUILHERME DE ALMEIDA FONTE Disponível em httppoemasdesolblogspotcombr20101101archivehtml Acesso em 10 abr 2013 INFÂNCIA Um gosto de amora Comida com o sol A vida Chamavase Agora AQUELE DIA Borboleta anil que um louro lafinete de ouro espeta em Abril Caroa acadêmicoa sobre a poesia sugerimos a leitura do Caderno de Estudos Teoria da Literatura cujo material é indispensável para alargar os conhecimentos sobre este importante gênero literário UNI TÓPICO 3 EXPLORANDO OS GÊNEROS INFANTIS 149 Vejamos como ocorre a contagem das sílabas dessa forma de poesia Lembrese de que quando fazemos a separação das sílabas poéticas levamos em conta o ritmo das palavras e não a divisão silábica gramatical Na divisão poética as vogais átonas são agrupadas em uma única sílaba e a contagem das sílabas seguese até a última sílaba tônica Um gos to de a mo ra 5 Co mi da com sol A vi da 7 Cha ma va se A go ra 5 Conforme Miguel Almir L de Araújo 2002 p 60 a poesia une o lúdico e o lúcido nos processos de aprendizagem no desenvolvimento de inteligências meditativas e sensíveis flexíveis e audaciosas Ultrapassa as dimensões ordinárias da linguagem instrumental retilínea que tem exercido predominância na rotina da sala de aula levando aos horizontes do extraordinário que renova transmuta e vivifica Para incrementar essa atividade outra possibilidade relacionada à poesia consiste na elaboração de um caderno de poemas Cada aluno terá um caderno destinado à poesia e num sistema de rodízio cada uma escreverá um poema para o colega O caderno poderá manter a rotatividade até que todos participem escrevendo e recebendo poesias Lembrese de que nesta atividade a intervenção do professor é somente a de viabilizar a circulação dos cadernos Além disso as poesias poderão ser de autoria dos alunos ou de autores consagrados Enfatizase portanto a possibilidade de reintroduzir a poesia na vida MORIN 1998 p 44 buscando textos poéticos que ofereçam possibilidades de convivência mais sensível com o outro e consigo mesmo Somente a poesia poderá nos levar a essa percepção Certamente esse convívio deve começar dentro das salas de aula não como proposta exigente mas prazerosa e partilhada 31 O TEATRO O teatro sempre foi uma forma de expressão artística profundamente ligada à comunidade Mesmo com a expansão da mídia não perdeu seu espaço a presença física do artista e do espectador é insubstituível Os sentimentos vivenciados e expressos no teatro provocam além das sensações e emoções dessa atividade a possibilidade do aluno colocarse no lugar do outro desenvolver e priorizar a noção do trabalho em grupo perder continuamente a timidez e ampliar o seu repertório cultural O teatro surgiu com as festas chamadas dionisíacas celebradas na Grécia em honra a Dionísio deus da fertilidade e do vinho Essas comemorações eram realizadas em época de colheita ou quando se fabricava o vinho Nas festividades havia cantos danças e representação da vida de Dionísio UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA 150 A arte teatral era tão popular na Grécia Antiga que anualmente eram promovidos concursos de textos teatrais Os autores escreviam as peças as encenavam para o público e para uma comissão julgadora que premiava o melhor trabalho O teatro grego além de retratar o cotidiano do homem evidenciava costumes personalidades deuses e belezas da Grécia Desde os tempos mais antigos é fonte de cultura educação diversão e lazer Da Grécia foi levado para Roma e dela para o mundo Um texto teatral apresenta geralmente três partes a exposição o conflito e o desenlace A exposição revela aos espectadores a situação que desequilibra a vida normal da personagem Situação que prenderá a atenção do público e se modificará até o desfecho ao final da peça O conflito é a parte na qual a situação vivida pelas personagens apresentada na exposição chega ao clímax Há sempre um desafio a ser superado surgem obstáculos que se opõem à ação da personagem e esta se esforçará para triunfar O desenlace é o relaxamento da tensão instaurada desde a revelação da situaçãoproblema ou seja a catarse A solução marca os tipos de peça teatral drama comédia ou tragédia O termo catarse referese à purificação limpeza e purgação Esse efeito purificador da tragédia clássica foi conceituado por Aristóteles As situações dramáticas de extrema intensidade e violência trazem à tona os sentimentos de terror e piedade dos espectadores A catarse supera esses sentimentos e os elimina proporcionando alívio ou purgação IMPORTANTE O teatro se desenvolve em atos divididos em cenas O ato apresenta acontecimentos que estão diretamente ligados ao eixo central apresentando uma resposta mas não valendo por si só deixando sempre em aberta para o ato seguinte parte da situaçãoproblema mantendo assim o interesse do público A cena por sua vez representa o ponto culminante de cada ato A mesma expõe a unidade mínima de uma peça teatral Alguns estudiosos empregam o termo quadro como sinônimo No contexto escolar existem várias peças teatrais possíveis de encantar o público infantojuvenil bastando para isso que elas envolvam os espectadores com personagens que suscitem a identificação e o apoio do público As peças teatrais devem ser ajustadas à idade da criança Assim conforme Maria Antonieta Antunes Cunha 1991 p 139 teremos De 4 a 7 anos as histórias de lendas e folclores são apreciadas bem como as pantomimas que são as representações teatrais por meio de gestos De 8 a 12 anos as histórias que versam sobre personagens do mundo real são as mais indicadas TÓPICO 3 EXPLORANDO OS GÊNEROS INFANTIS 151 De 12 anos em diante as adaptações das obras clássicas terão maiores chances de sucesso Obras de Gil Vicente Martins Pena Maria Clara Machado Oswald de Andrade Nelson Rodrigues da escritora inglesa Agatha Christie e Shakespeare entre outros Trabalhar com o teatro na escola é desenvolver uma atividade visando aproximar as crianças e jovens dessa linguagem Para tanto é necessário colocar a turma em contato com diversos autores com estilos variados e observar o tipo de texto tragédia comédia situações do cotidiano eou mistério O professor poderá também sugerir aos estudantes que façam um mapeamento dos folguedos populares festas autos e outras manifestações folclóricas que mais chamam a atenção do grupo e que possam ser representados na escola FIGURA 27 TEATRO FONTE Disponível em httpteatroeducazipnet Acesso em 5 out 2012 Em uma encenação podem ser transmitidos conhecimentos culturais históricos científicos ou morais por exemplo mas eles não devem ser vistos como objetivo e sim como consequência O ideal é que os alunos se envolvam com a trama e as personagens e sintam prazer em representar A representação teatral desenvolve a memória estimula o senso crítico e artístico e auxilia no aperfeiçoamento da leitura É importante estimular a participação de todos os estudantes sem exigir o profissionalismo observar atentamente a postura e se possível fotografar e filmar as encenações para depois convidar a classe a analisar a montagem Esse exercício de autoavaliação serve para aprimorar as próximas apresentações UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA 152 Uma prática muito bem aceita entre os jovens é o teatro de bonecos O teatro de marionetes está ligado ao contexto histórico cultural social político econômico religioso e educativo e por conta da diversidade cultural regiões distintas desenvolveram a arte de confeccionar bonecos em diferentes materiais revelando traços locais da cultura à qual pertenciam sendo movimentados por luvas fios varas sombras entre outras possibilidades A Itália ocupou lugar de destaque na divulgação dessa arte sendo espetáculos preparados e reservados para adultos Esses bonecos eram criados a partir de tipos ou caricaturas que revelavam traços da personalidade da personagem A Comédia da Arte surgiu na Itália e serviu de inspiração para o alargamento desta prática Esses artistas mambembes utilizavam máscaras em suas apresentações nas mais variadas regiões da Itália e assim graças a estas companhias itinerantes é que os bonecos foram difundidos em toda a Europa cuja arte recebeu nomes distintos Vejamos alguns na Itália o Polichinelo na Turquia o Karagoz na Grécia as Atalanas na Alemanha o Kasper na Rússia o Petruska em Java o Wayang na Espanha o Cristovam na Inglaterra o Punch na França o Guinhol nos Estados Unidos o Muppets e no Brasil o Mamulengo É arte realizada pelo ator que por meio do movimento das mãos o manipula e narra as histórias conduzindo a realidade para a magia O boneco com sua expressividade movimento e sonoridade encanta e atrai o público FIGURA 28 TEATRO DE BONECOS FONTE Disponível em httpwwwinfoescolacomartesteatrode bonecos Acesso em 5 out 2012 No espaço escolar as apresentações podem ser elaboradas e discutidas pelo grupo que poderá englobar desde a fabricação do boneco até a transmissão de temáticas sociais históricas eou políticas ou seja o boneco possui um alto potencial educativo Ainda que pareça pretexto constitui mais uma possibilidade de interação com criatividade ludicidade e arte TÓPICO 3 EXPLORANDO OS GÊNEROS INFANTIS 153 Eram companhias itinerantes nas quais os atores montavam um palco ao ar livre e proviam o divertimento através de malabarismo acrobacias e mais tipicamente peças de humor improvisadas baseadas num repertório de personagens preestabelecido e que envolviam temas como adultério ciúme velhice amor Faziam uso de um figurino com máscaras e até objetos cênicos O diálogo e a ação poderiam facilmente ser atualizados e ajustados para satirizar escândalos locais eventos atuais ou manias regionais misturados com piadas e bordões A Comédia da Arte foi uma forma de teatro popular Teve início no século XV na Itália UNI Uma variante do teatro de bonecos é o boneco de vara manipulado através de varas ou hastes de madeira plástico ou metal leve Pode ser tanto um simples objeto preso numa única vara como também ser constituído por mecanismos com várias varas para movimentar boca braços e pernas FIGURA 29 TEATRO DE BONECOS DE VARA FONTE Disponível em httpcecidiantedotronoblogspotcombr201102 teatrodevarashtml Acesso em 5 out 2012 UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA 154 Os que são elaborados por uma vara são simples e de fácil confecção podendo ser feitos com cartolinas bolinhas de isopor de papel colher de pau palitos de churrasco garfos vestidos com roupas de pano palitos de picolé copinhos de plástico sustentados por palitos Os que são produzidos com mais de uma vara são mais complexos e requerem a habilidade de um titereiro para movimentálos Outra prática que poderá ser explorada é o teatro de fantoches Assim como os demais bonecos é uma atividade que envolve os alunos desde a confecção até o desenvolvimento de habilidades motoras e apropriação do texto Além disso é uma atividade associada ao lúdico cujo assunto abordamos na Unidade 1 FIGURA 30 TEATRO DE FANTOCHES FONTE Disponível em httpaposentadosolteoverboorgopiniaoopiniao doleitorcamaradosdeputadosumteatrodefantoches Acesso em 5 out 2012 Como variante desse recurso sugerimos também a utilização das próprias mãos como fantoches O desenho é feito na própria mão com caneta esferográfica ou tintas especiais O uso de acessórios como lã chapéu meias penas enfeita as mãos e os dedos das crianças O professor nesse sentido incentiva os alunos no conhecimento do próprio corpo quando estes exploram todos os movimentos dos dedos das mãos e braços Para estes recursos a utilização de poesias narrativas literárias músicas populares e folclóricas textos criados pela turma é fundamental para essa atividade Nessa perspectiva o professor organiza o grupo de acordo com o que será apresentado O momento necessário à apresentação e interação a leitura prévia do texto o decorar se for o caso são empreitadas que favorecem o desenvolvimento e a apuração do gosto estético Ao jovem leitor agrada muito o jogo teatral que é realizado por cenas de ação dramática e que se caracterizam por explicação da ação por meio do gesto de caricaturas dramatização imitação de uma pessoa famosa descrição de algo com características fortes sem utilizar palavras um contexto social comumente TÓPICO 3 EXPLORANDO OS GÊNEROS INFANTIS 155 conhecido como pantomima Essa brincadeira tem por objetivo diversão socialização coordenação motora e corporal como um todo Os pantomímicos buscam transmitir à plateia por meio da mímica histórias e mensagens Por aproveitarse de gesticulações praticamente universais ela é bastante utilizada FIGURA 31 PANTOMIMA FONTE Disponível em httpwwwjornallivrecombr150870oquee pantomimahtml Acesso em 5 out 2012 Caroa acadêmico a como foi o seu contato com o teatro enquanto alunoa E as escolas desenvolvem atividades relacionadas ao fazer teatral Comente em poucas palavras O teatro é expressão artística profundamente ligada à comunidade Segundo Ana Maria Machado o teatro e a dramatização são reveladores de momentos mágicos nos quais a criança fica como que hipnotizada O teatro funciona em relação à criança como o faz de conta e o fiunnn do pó de pirlimpimpim no mundo do picapau amarelo participando ao mesmo tempo da mais poética fantasia e da mais concreta realidade abrindo portas para desvãos insuspeitados e revelando aspectos surpreendentes do real misturando fantásticas viagens a uma mineração de si mesmo Na palavra admirável de Guimarães Rosa é a pirlimpsiquice MACHADO 1991 p 144 UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA 156 Há que se considerar que nas brincadeiras da criança a dramatização se faz presente Pense na criança brincando de boneca de carrinho representa quando faz comidinha ou conversa com amigos imaginários Uma peça teatral é capaz de estimular a criatividade e a imaginação Possibilita à criança assumir sua fantasia conviver com suas angústias exorcizar suas tensões rir de seus medos É necessário que a escola propicie o contato com a arte teatral não apenas dirigindo algumas peças passivamente mas que reflita sobre o possível espetáculo a ser encenado Para Machado no que se refere à escolha de um espetáculo o professor deverá indagarse Será que ele defende o conformismo ou estimula um desejo de transformar o mundo De que maneira ele fala à percepção infantil À sensibilidade da criança Será que esquece sua capacidade de ser também racional e apenas a envolve numa profusão de sons e cores inteiramente oca Cenários figurinos adereços são inventivos A música é massificada ou criativa A iluminação sabe criar uma atmosfera As personagens são esquemáticas e incoerentes Isso é importante afinal é nelas que as crianças se projetam com elas é que se identificam A peça estimula a delação Incentiva sentimentos de culpabilidade infantil tudo de ruim que acontece é culpa do pobre herói desobediente por exemplo É esquematicamente maniqueísta Ou pelo contrário embaralha de tal maneira o bem e o mal que deixa de passar qualquer valor ético O vilão se arrepende de repente e é perdoado sem mais aquela evitando o castigo e tornando inútil o sofrimento dos inocentes em suas mãos A delação é incentivada sob a máscara de participação da plateia com perguntas do tipo para onde é que ele foi A peça reforça estereótipos racistas Sociais Sexistas Profissionais por exemplo cientista é maluco professor é repressor e jornalista é mentiroso etc E qual será sua mensagem fundamental Não será uma supervalorização da segurança como ideal supremo a impedir que as crianças explorem o mundo em nome de um ficar bonzinho e obediente em casa FONTE MACHADO 1991 p 142 O teatro na vida do jovem leitor inclui benefícios que vão desde o aprender a improvisar desenvolver a oralidade a expressão corporal a impostação de voz o vocabulário até o desenvolvimento das habilidades para as artes plásticas pintura corporal confecção de figurino e montagem de cenário oportunizando a pesquisa o trabalho coletivo e assim contribui para o desenvolvimento da expressão e comunicação favorecendo a percepção da arte como manifestação cultural 4 AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS As histórias em quadrinhos despertam o interesse do público infantojuvenil oferecendo uma diversidade de propostas que podem ser exploradas em proveito do jovem leitor O texto associado à imagem característica presente nas histórias em quadrinhos como afirma Nelly Novaes Coelho 2000 p 242 atinge TÓPICO 3 EXPLORANDO OS GÊNEROS INFANTIS 157 direta e plenamente o pensamento intuitivosincréticoglobalizador que é próprio da infância Nesse sentido o trabalho com as HQs aliado ao prazer de uma aprendizagem significativa desenvolve na criança estímulos propícios à pratica da leitura pressupondo a formação de leitores Acreditase que as pinturas realizadas nas paredes das cavernas foram uma das primeiras formas gráficas a serem criadas pelo ser humano como elemento de comunicação O homem retratava histórias a partir de imagens que ficaram conhecidas como pinturas rupestres em uma época muito anterior à invenção da escrita Por isso alguns especialistas insistem em afirmar que os primeiros exemplos conhecidos de histórias em quadrinhos foram feitos por homens pré históricos A publicação de histórias em quadrinhos no Brasil tem início no século XX A primeira revista em quadrinhos brasileira lançada em 1905 foi o TicoTico que circulou até 1955 Em seus primeiros anos reproduzia os quadrinhos norte americanos Essa revista apresentava ao leitor as aventuras de um menino ingênuo e travesso chamado Chiquinho versão brasileira da personagem Buster Brown menino crítico e contestador criado nos Estados Unidos por Richard Felton cartunista que em 1895 criara a Yellow Kid Em 1960 começa no Brasil a publicação da revista O Pererê com texto e ilustrações do escritor Ziraldo A personagem principal era um saci e não raro suas aventuras tinham um fundo ecológico moral ou educacional Também na década de 60 o cartunista Henfil deu início à tradição do formato tira com as personagens Graúna e os fradinhos Foi nesse formato que também apareceram as personagens de Maurício de Sousa criador da revista A turma da Mônica que é a mais famosa e bemsucedida revista em quadrinhos brasileira Os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Fundamental e os Referenciais Curriculares Nacionais para a Educação Infantil 1998 apresentam as histórias em quadrinhos como uma linguagem dinâmica marcada pela ludicidade e associação de imagens que despertam no jovem leitor prazer e contribuem para o desenvolvimento da leitura e escrita Os gibis mesclam palavras e imagens influenciando o cotidiano das pessoas Maria Antonieta Cunha 2003 p 100 enfatiza que a facilidade de aquisição de leitura o apelo visual através das cores os quadros os balões e as onomatopeias que dão uma movimentação à narrativa o humor e o otimismo com personagens interessantes ou heroicos são alguns dos aspectos que levam o jovem leitor a adotar as revistas em quadrinhos UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA 158 FIGURA 32 HISTÓRIA EM QUADRINHOS GARFIELD FONTE Disponível em httpblogmaxieducacombrwpcontentuploads201701Garfield jpg Acesso em 5 out 2012 Porém as opiniões sobre os quadrinhos nem sempre foram convergentes Educadores já reagiram de maneira contrária à adoção das revistas em quadrinhos em sala de aula Para estes as revistas em quadrinhos não deixam margem à imaginação pois tudo na história está pronto e acabado o texto é precário sucinto e com excessivas ilustrações ALMEIDA apud CUNHA 1991 p 101 Opiniões dessa natureza contribuíram para que no âmbito educacional as revistas em quadrinhos fossem tratadas como gênero menor minimizadas como criação literária Segundo Valdomiro Vergueiro apud CORDEIRO 2002 p 54 esses preconceitos foram uma das maiores injustiças cometidas contra um meio de comunicação de massa não só legítimo mas também de grande penetração popular Os estudos dos meios de comunicação de massa iniciados na Europa nos anos 60 corroboraram para elevar as HQs à categoria literária uma vez que se constituem de literatura e de artes plásticas Sendo assim as HQs convertemse em mais um instrumento pedagógico essencial contudo é importante a disposição do professor em realizar tal empreendimento para que aconteça o crescimento do jovem enquanto leitor e de sua potencialidade humana Onomatopeia significa imitar um som com um fonema ou palavra Em geral são de entendimento universal Ruídos gritos canto de animais sons da natureza barulho de máquinas o timbre da voz humana fazem parte do universo das onomatopeias UNI TÓPICO 3 EXPLORANDO OS GÊNEROS INFANTIS 159 Propostas de exploração desse gênero textual associado ou não ao computador devem ser atividades oferecidas em sala de aula contudo é importante a disposição do professor e dos demais envolvidos no processo em realizar tal empreendimento As charges podem também constituirse como ferramentas São desenhos humorísticos com ou sem legenda O tema reflete um acontecimento atual sob a forma de crítica ironizando por vezes as personagens envolvidas através da caricatura Sendo assim pode ser entendida como um meio de protesto e crítica através de argumentos lógicos que possam convencer o leitor A charge está ligada aos acontecimentos cotidianos do âmbito político eou econômico eou personagens ligadas ao meio artístico ou desportivo São caricaturas de pessoas ou de fatos executadas com exageros e deformações reforçando o grotesco e jocoso Esse humor crítico encontrado nas charges é muito apreciado pelo jovem leitor tornandose um relevante trabalho que poderá provocar discussões que envolvem criticidade dinamismo e leitura de mundo apresentadas pelos diversos sujeitos que compõem a escola Leia a seguir a entrevista HQs também se aprende na escola com Waldomiro Vergueiro Embora o mercado editorial de quadrinhos para o público infantojuvenil esteja fortemente concentrado na produção de uma ou duas revistas o Brasil ao contrário do que se pensa se destaca no cenário latinoamericano exatamente por uma larga produção Se compararmos com a de outros países a produção de quadrinho infantil brasileiro por exemplo é bastante significativa Nos EUA não se publicam mais revistas para crianças Lá as histórias são voltadas para os jovens destaca o coordenador do Núcleo de Pesquisas de História em Quadrinhos da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo ECAUSP professor Waldomiro Vergueiro De acordo com Waldomiro são os adolescentes dos 13 aos 25 anos que mais leem histórias em quadrinhos As crianças também se dedicam à leitura mas não de uma forma intensiva e regular Segundo ele o quadrinho nacional reflete cada vez mais a realidade urbana dos jovens das grandes cidades do país o que chama atenção e atrai mais leitores adolescentes Jovens que são influenciados pela cultura pop pela televisão e pelos meios eletrônicos Acompanhe a entrevista revistapontocom Que modelos e padrões de comportamento os quadrinhos brasileiros veiculam LEITURA COMPLEMENTAR UNIDADE 3 O PAPEL DA ESCOLA 160 Waldomiro Vergueiro Vivemos num grande contexto globalizado num grande sistema de comunicação interligado Neste cenário as histórias em quadrinhos veiculam modelos e padrões de comportamento que já são transmitidos pelas outras mídias em todo o mundo Tudo acaba se repetindo No Brasil o quadrinho reflete de uma forma geral a realidade urbana dos jovens das grandes cidades do país Jovens que são influenciados pela cultura pop pela televisão e pelos meios eletrônicos Uma realidade que na verdade não é tão diferente daquela que vivem os jovens de outros países O que há de diferente em nossas histórias são algumas características e especificidades que dizem respeito à nossa cultura local expressa por exemplo nos relacionamentos de amizade e de amor e na apresentação e definição dos grupos sociais revistapontocom Daí então o interesse das crianças pelos quadrinhos Waldomiro Vergueiro As crianças naturalmente gostam dos quadrinhos se identificam com a narrativa Afinal a linguagem dos quadrinhos se aproxima muito do universo das crianças e também dos adolescentes Felizmente aqui no Brasil temos uma forte produção infantil basicamente assinada por Maurício de Sousa que está facilmente disponível no mercado e ao alcance de boa parte dos leitores A leitura é fácil e prazerosa Se compararmos com a de outros países a produção de quadrinho infantil brasileiro é bastante significativa Nos EUA por exemplo não se publica mais quadrinho infantil Lá as histórias são voltadas para os jovens Mesmo tendo um mercado de quadrinhos infantis monopolizado as revistas de Maurício de Sousa respondem aproximadamente por 85 de tudo o que é produzido para o público infantil o Brasil é uma exceção na América Latina em investimentos no setor revistapontocom O mesmo vale para os adolescentes Waldomiro Vergueiro O jovem acaba não tendo a mesma relação com os quadrinhos Muitas vezes ele acaba sendo chamadofisgado por outras mídias de uma forma mais persuasiva do que as crianças Por outro lado também há poucos investimentos para este segmento O mercado editorial para os adolescentes é marcado pelas produções estrangeiras As crianças que crescem lendo os gibis do Maurício de Sousa quando chegam à adolescência não têm uma alternativa nacional Ou seja quando o leitor passa a fase da Mônica ele não encontra nada As tentativas brasileiras não deram certo pois é grande o predomínio das histórias em quadrinhos com base nos superheróis e na cultura norteamericana Este processo dá origem a um círculo vicioso Os jovens que leem os quadrinhos importados e que se formam na área acabam reproduzindo o mesmo formato e conteúdo É difícil quebrar este movimento Por outro lado o próprio leitor jovem de hoje quer exatamente este tipo de material Um material que é amplamente divulgado e reforçado pelas demais mídias Chega o quadrinho do superherói ao mesmo tempo em que são lançados o filme o bonequinho e o desenho animado As mídias se reforçam Acaba sendo uma competição desleal para os produtos brasileiros Os jovens de 13 aos 25 anos são os que mais leem histórias em quadrinhos As crianças leem muito mas não de uma forma intensiva quanto os jovens TÓPICO 3 EXPLORANDO OS GÊNEROS INFANTIS 161 revistapontocom E nas escolas as histórias em quadrinhos vêm ganhando espaço Waldomiro Vergueiro Já não sinto mais um preconceito mas sim um estranhamento à introdução dos quadrinhos na sala de aula Há uma falta de familiaridade Muitos professores querem utilizar mas não sabem como O Núcleo de História em Quadrinhos da Escola de Comunicação e Artes da USP tem trabalhado neste sentido mostrando alternativas e caminhos para que os quadrinhos sejam utilizados de forma mais inteligente Acredito que os quadrinhos devam ser usados pelas escolas de uma forma interdisciplinar integrando várias disciplinas O professor deve trabalhar o quadrinho com o mesmo rigor que usa o livro didático Não acredito que exista limite para a utilização de quadrinhos na educação Tudo depende da criatividade do professor revistapontocom Há um projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados que determina mecanismos de proteção à produção de quadrinhos nacionais incentivando a realização de obras e de projetos escolares O senhor é a favor desta proposta Waldomiro Vergueiro Sou Acredito que o caminho a ser adotado seja esse mesmo Todos os países que baixaram leis de proteção tiveram êxito em suas propostas A Argentina fez isso A França e a Itália também trabalharam neste sentido A proposta não vai colocar em xeque o que já existe só vai acrescentar revistapontocom Qual é o futuro dos quadrinhos Waldomiro Vergueiro Estou convencido de que o futuro dos quadrinhos é a segmentação de mercado Quadrinhos específicos para públicos específicos Quadrinhos para crianças para meninas adolescentes para meninas mais velhas A Era dos Quadrinhos como meio de massaproduto de massa é coisa do passado Com o advento das novas tecnologias vamos ter o aparecimento de produtos híbridos quadrinhos que incorporam elementos da multimídia Este é um caminho sem volta Mas acredito que as histórias em quadrinhos da forma como ainda conhecemos hoje continuarão a existir FONTE Disponível em httpwwwrevistapontocomorgbrmateriashqstambemseaprende naescola Acesso em 10 dez 2012 162 Neste tópico você viu que A literatura no ambiente escolar tem como objetivo a formação do leitor Para tanto o professor deverá adotar uma postura que privilegie a polissemia o dialogismo Deve adotar uma prática pautada no contato com os diversos gêneros textuais e contemplar histórias do dia a dia contos fábulas lendas parlendas músicas poesia novela crônica piadas filmes romances histórias em quadrinhos A conotação de histórias também é uma prática que favorece a escuta e oralidade Essa prática do contar estimula o ler literário propicia o encontro entre as crianças e uma produção que lida simbolicamente com o real diferentemente dos relatos pessoais Outra possibilidade que não poderá ser ignorada é a visita à biblioteca para que o aluno possa ver e tocar os vários volumes as várias ilustrações escolher a leitura o livro que lhe agradar desenvolvendo a leitura sensorial É importante reconhecer que com a escrita nos meios eletrônicos informação digital ou hipermídia surgem novas formas de leitura O acesso a essa nova tecnologia é atrativo e também propicia conhecimento A poesia infantojuvenil reflete as peculiaridades que revestem esse gênero reveladas nos ritmos nas imagens nos temas nas metáforas na conotação na subjetividade e na linguagem É fundamental que a poesia seja apresentada e vivenciada com frequência no espaço escolar e seja selecionada cuidadosamente a fim de propiciar a sensibilidade para a arte poética no aluno Trabalhar com o teatro na escola é desenvolver uma atividade visando aproximar as crianças e jovens dessa linguagem Para tanto é necessário colocar a turma em contato com diversos autores com estilos variados e observar o tipo de texto tragédia comédia situações do cotidiano eou mistério RESUMO DO TÓPICO 3 163 AUTOATIVIDADE APRENDIZAGEM Mãe cabelo demora quanto tempo pra crescer Hã Se eu cortar meu cabelo hoje quando é que ele vai crescer de novo Cabelo está sempre crescendo Beatriz É que nem unha A comparação deixa a menina meio confusa Ela não está preocupada com unhas Todo dia mãe É só que a gente não repara Por quê Porque as pessoas têm mais o que fazer não acha A menina não sabe se essa é uma pergunta do tipo que precisa ser respondida ou é daquelas que a gente ouve e pronto Prefere não responder Você é muito ocupada não é mãe Hã Nada não A mãe termina de passar a roupa e vai guardando tudo no armário Enquanto isso Beatriz corre até o quartinho de costura pega a fita métrica e mede novamente o cabelo da boneca Ela tinha cortado aquele cabelo com todo o cuidado do mundo pra ficar parecido com o da mãe mas a verdade é que ficou meio torto Nada não cresceu nada ela conclui guardando a fita E já tem uma semana Depois volta para onde está a mãe que agora lustra os móveis Mãe existe alguma doença que faz o cabelo da gente não crescer Mas de novo essa conversa de cabelo Não tem outra coisa pra pensar não criatura Sobre essa pergunta não há dúvida é do tipo que você não deve responder Leia a história a seguir e organizea em forma de quadrinhos com balões contendo as falas das personagens bem como a fala do narrador 164 A mãe continua trabalhando Precisa se apressar Dali a pouco a patroa chega da rua e o almoço nem está pronto ainda Mãe O que foi É que eu estava aqui pensando Pensando o quê Beatriz não responde Espera um pouco tentando achar as palavras certas Vai fala logo Quando a gente faz uma coisa sabe e não dá mais para voltar atrás entendeu Não não entendi Ela abaixa a cabeça dá um tempinho e resolve arriscar Então se você não entendeu posso continuar perguntando sobre cabelo Ai meu Deus Beatriz deixa a mãe trabalhando e vai procurar de novo sua boneca Pega a boneca no colo e diz no ouvido dela Não liga não Cabelo de boneca é assim mesmo cresce devagar viu E com um carinho Foi minha mãe que me ensinou 165 REFERÊNCIAS ABRAMOVICH Fanny Literatura Infantil gostosuras e bobices São Paulo Scipione 1989 AGAMBEN Giorgio Profanações São Paulo Boitempo 2007 AGUIAR E SILVA Vitor Manuel Teoria da literatura 8 ed Coimbra Livraria Almedina 1999 ALMEIDA Fernanda Lopes de A fada que tinha ideias São Paulo Ática 1971 ARAÚJO Miguel Almir Lima de O poético na educação Revista de Educação CEAP Salvador ano 11 n 42 setnov 2003 Laços de encruzilhada ensaios transdisciplinares Feira de Santana edUEFS 2002 ARISTÓTELES Poética São Paulo Nova Cultural 2000 ASSIS Machado de Obra Completa Rio de Janeiro Nova Aguilar 1994 O Sainete In 40 contos escolhidos Rio de Janeiro BestBolso 2011 AVERBUCK Morrone Lígia A poesia e a escola In Zilberman Regina Org Leitura em crise na escola as alternativas do professor 11 ed Porto Alegre Mercado Aberto 1993 AVERBUCK Morrone Lígia Literatura em tempo de cultura de massa São Paulo Nobel 1993 AZEVEDO Ricardo Qual a função da literatura Carta na Escola São Paulo n 14 mar 2007 BAKHTIN Mikhail Língua fala e enunciação In Marxismo e filosofia da linguagem Trad Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira São Paulo Hucitec 1995 BARTHES Roland Aula São Paulo Cultrix 2007 166 O prazer do texto São Paulo Perspectiva 2004 O rumor da língua Trad M Laranjeira São Paulo Martins Fontes 2004 O grau zero da escrita São Paulo Cultrix 1972 BECKER Célia Dóris História da literatura infantil brasileira In SARAIVA J A Literatura e alfabetização do plano do choro ao plano da ação Porto Alegre Artmed 2001 BETTELHEIM B A psicanálise de contos de fadas Rio de Janeiro Paz e Terra 2007 A psicanálise dos contos de fadas Trad A Caetano São Paulo Paz e Terra 2007 A psicanálise de contos de fadas 15 ed Rio de Janeiro Paz e Terra 2001 Psicanálise dos contos de fadas 9 ed Trad Arlene Caetano Rio de Janeiro Paz e Terra 1992 A psicanálise dos contos de fadas Rio de Janeiro Paz e Terra 1980 BORDINI Maria da Glória AGUIAR Vera Teixeira de Literatura a formação do leitor Porto Alegre Mercado Aberto 1993 BRASIL Ministério da Educação e do Desporto Secretaria da Educação Fundamental Referencial curricular para a educaçãoMinistério da Educação e do Desporto Secretaria de Educação Fundamental Brasília MECSEF 1998 3 v BUSATTO Cléo Contos e encantos pequenos segredos da narrativa Petrópolis Vozes 2003 CADERMATORI Lígia O que é literatura infantojuvenil São Paulo Ática 1995 CANDIDO Antônio A literatura e a formação do homem Revista Ciência e Cultura São Paulo v 24 n 9 p 803809 set 1972 167 A literatura e a formação do homem In DANTES V Org Textos de intervenção São Paulo Duas Cidades Ed 34 2002 p 7792 CANDIDO Antônio et al A personagem de ficção São Paulo Perspectiva 1995 CAPPARELLI Sérgio Tigres no quintal São Paulo Global 2008 Poesia fora da estante Porto Alegre Editora Projeto 2008 CASCUDO L da C Contos tradicionais do Brasil São Paulo Global 2004 COELHO Nelly Novaes Literatura infantil teoria análise didática São Paulo Moderna 2000 Panorama histórico da literatura infantiljuvenil das origens indo europeias ao Brasil contemporâneo São Paulo Ática 2000 Literatura infantil teoriaanálisedidática São Paulo Ática 1997 COMPAGNON A O demônio da teoria literatura e senso comum Belo Horizonte Editora UFMG 2010 O demônio da literatura Belo Horizonte UFMG 2003 CORDEIRO Santos Márcia Leitura dos quadrinhos em sala de aula Revista da educação CEAP São Paulo n 38 ano 10 setnov 2002 CORSO Mario CORSO Diana Lichtenstein Fadas no divã psicanálise nas histórias infantis São Paulo Artmed 2003 CUNHA Maria Antonieta Antunes Literatura infantil teoria e prática São Paulo Ática 2003 Literatura infantil teoria e prática São Paulo Ática 1991 DEBUS Eliane Festaria de brincança a leitura literária na educação infantil São Paulo 2006 DONÓFRIO Salvatore Teoria do texto prolegômenos e teoria da narrativa São Paulo Ática 2006 168 Teoria do texto prolegômenos e teoria da narrativa São Paulo Ática 1990 EAGLETON Terry Teoria da literatura uma introdução São Paulo Martins Fontes 2003 ECO Umberto Sobre literatura Rio de Janeiro Record 2003 FORSTER E M Aspectos do romance São Paulo Globo 1988 FREUD S O Inquietante Trad SOUZA Paulo Cesar de São Paulo Companhia das Letras 2010 GAGLIARDI Eliana AMARAL Heloísa Conto de fadas São Paulo FTD 2001 GULLAR Ferreira Toda poesia Rio de Janeiro José Olympio 1991 HOUAISS Antônio VILLAR Mauro de Salles Dicionário Houaiss de língua portuguesa Rio de Janeiro Objetiva 2009 HOUAISS Antônio VILLAR Mauro de Salles Dicionário Houaiss de língua portuguesa Rio de Janeiro Objetiva 2001 INFANTE Ulisses Do texto ao texto curso prático de leitura e redação São Paulo Scipione 1999 ISER Wolfgang O jogo do texto In LIMA Luiz Costa A literatura e o leitor textos de estética da recepção 2ª ed Rio de Janeiro Paz e Terra 2002 p 105 118 JAUSS Hans Robert A história da literatura como provocação à teoria literária Tradução de Sérgio Tellaroli São Paulo Ática 1994 JAUSS H R et al A literatura e o leitor Seleção organização e tradução de Luiz Costa Lima Rio de Janeiro Paz e Terra 2002 KAISER Wolfgang Análise e interpretação da obra literária São Paulo Cultrix 1970 KIRINUS Glória Formigarra cigamiga Rio de Janeiro Braga 1993 LAJOLO Marisa O que é literatura São Paulo Brasiliense 1981 169 O texto não é pretexto In ZILBERM AN Regina Org Leitura em crise na escola as alternativas do professor Porto Alegre Mercado Aberto 1982 LEAL J C A natureza do conto popular Rio de Janeiro Conquista 1985 LISPECTOR Clarice Felicidade Clandestina In Azevedo Artur et al Em família Rio de Janeiro Nova Fronteira 2002 LUKÁCS Georg Teoria do romance Lisboa Presença 1982 MACHADO Ana Maria O teatro infantil In Cunha Maria Antonieta Antunes Literatura Infantil teoria e prática São Paulo Ática 1991 MARTINS Maria Helena O que é leitura 19 ed São Paulo Brasiliense 1994 MATTOS Margareth Silva de Leitura da literatura a produção contemporânea In Carvalho F Maria Angélica de Mendonça Rosa Helena org Práticas de leitura e escrita Brasília Ministério da Educação 2006 MELO NETO João Cabral de Ideias fixas de João Cabral de Melo Neto ATHAYDE Félix de Org Rio de Janeiro Nova Fronteira 1998 Serial e antes Rio de Janeiro Nova Fronteira 1997 MICHAUX H 1994 Darkness Moves An Henri Michaux Anthology 1927 1984 selected translated and presented by David Ball Berkeley and Los Angeles University of California Press MOISÉS Massaud Dicionário de termos literários São Paulo Cultrix 2004 MORIN Edgar Amor poesia sabedoria Rio de Janeiro Bertrand 1998 MORIN Edgar et al Ética solidariedade e complexidade São Paulo Palas Athena 1998 NEVES André A caligrafia de Dona Sofia São Paulo Editora Paulinas 2006 NICOLA José de Literatura brasileira da origem aos nossos dias São Paulo Scipione 1998 OLIVEIRA Cristiane M Disponível em httpwwwgrandezcombrlitinf trabalhos2006almagemeahtm Acesso em 24 mar 2007 170 PALO Maria José de OLIVEIRA Maria Rosa D Literatura Infantil Voz de Criança São Paulo Ática 1986 PAZ Octávio O arco e a lira Rio de Janeiro Nova Fronteira 1982 PIRANDELLO Luigi Um nenhum e cem mil Trad Mauricio Santana Dias São Paulo Cosaf Nacif 2001 O humorismo In GUINSBURG J Pirandello do teatro no teatro Trad J Guinsburg São Paulo Perspectiva 1999 O finado Matias Pascal Trad Helena Parente Cunha São Paulo Opera Mundi 1970 PLATÃO A República Rio de Janeiro Ediouro 1999 PESSOA Fernando Obra poética 7 ed Rio de Janeiro Nova Aguilar 1977 QUINTANA Mário Na volta da esquina Porto Alegre Globo 1979 RAMOS Flavia B PANOZZO Neiva P Literatura infantil um olhar através da ilustração Revista da educação CEAP São Paulo n 48 ano 13 marmaio 2005 ROCHA R Marcelo marmelo martelo e outras histórias Rio de Janeiro Salamandra 1976 ROSENFELD Anatol et al A personagem de ficção São Paulo Perspectiva 1995 SANCHES Neto Miguel O prazer de ler Carta na Escola São Paulo n 15 abr 2007 SANTA CATARINA Secretaria de Estado da Educação Ciência e Tecnologia Proposta Curricular de Santa Catarina estudos temáticos Florianópolis IOESC 2005 SARAIVA Assmann Juracy Literatura e alfabetização do plano do choro ao plano da ação Porto Alegre Artmed 2001 SARTRE Jean O que é literatura São Paulo Ática 1993 SILVA Ezequiel Theodoro da Leitura na escola e na biblioteca Campinas São Paulo Papirus 1986 TCHÉKHOV Anton Pavlovitch Um homem extraordinário e outras histórias Porto Alegre LPM 2010 171 VERÍSSIMO José Estudos de literatura brasileira São Paulo Tatiaia 2001 ZILBERMAN Regina Como e por que ler a literatura infantil brasileira Rio de Janeiro Objetiva 2005 A literatura infantil na escola Revista atualizada e ampliada São Paulo Global 2003 Literatura infantil autoritarismo e emancipação São Paulo Ática 1984 172 ANOTAÇÕES 173 174 175