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MANA 203 545573 2014 O GIRO DOS OUTROS FUNDAMENTOS E SISTEMAS NAS FOLIAS DE URUCUIA MINAS GERAIS Luzimar Paulo Pereira É Eu é que estive lá junto nas horas em estâncias tão desiguais Ali primeiro com um depois com o outro depois com os todos dois para todos o sol nascendo Eu vi e ouvi tudo o que conformemente era para se notar que se deu fui fragrante de testemunha Agora não sei João Guimarães Rosa Estas estórias Em Urucuia um folião num sentido estrito é aquele que faz folia o agente fundamental da sua realização Num sentido amplo no entanto cantar e tocar para uma festa religiosa não encerram as atividades do personagem Ser folião também implica gostar de folia o que significa estar propenso a assistir acompanhar e eventualmente participar sem maiores compromissos de festas que são feitas por diferentes foliões Durante todo o meu trabalho de campo no município as festividades que pude registrar contavam com a presença de pelo menos um destes tocadores ali apenas para ver e iscuitar a folia dos outros As razões desta aparente ubiquidade eram oferecidas pelos próprios personagens para destacar a afeição do folião pela folia O cantador e tocador é antes de tudo um devoto A ideia não se refere somente às suas obrigações para com a festividade1 Um devoto não é apenas aquele que deve um voto ao santo mas também é a pessoa que nutre um verdadeiro gosto pelas festas a ele dedicadas Pereira 2004 2011a Ir numa folia e fazer uma folia porque se gosta dela ou porque se está obrigado a ela são expressões que evocam a existência de um poder agenciador uma influência na linguagem dos devotos que condiciona a própria ideia do ser folião Pereira 2008 2012c A circulação dos foliões por diversas festas urucuianas tem como pano de fundo a existência de sociabilidades agonísticas no interior daquilo que noutro lugar denominei comunidade festiva Pereira 2011a Estendida para aquém e além dos limites administrativos do município disputando o giro dos outros 546 precedência com outras comunidades concorrentes e por vezes com plementares a Igreja o sindicato rural a família etc a coletividade dos participantes das folias é constituída por meio de intensos deslocamentos de pessoas palavras e coisas O conflito não é em absoluto uma ameaça à vida comunitária ou festiva ver Simmel 1971 Bailey 1971 Comerford 2003 Cavalcanti 2006 entre outros A existência de feitiços lançados para prejudicar a atuação de cantadores e tocadores Pereira 2011a as narrativas difamatórias a respeito da existência de violeiros supostamente pactários do diabo Pereira 2008 2012c os temidos encontros de folia Pereira 2011a 2012b entre outras práticas sociais compartilhadas revelam um mundo no qual para ser folião uma pessoa precisa participar de constantes disputas por fama e renome Um bom tocador urucuiano consolida sua atividade e sustenta sua reputação em oposição à e muitas vezes em detrimento da imagem de outros foliões Pereira 2008 2011a 2012b 2012c Na comunidade de folias urucuiana as competições por nome e reco nhecimento ocorrem a partir do esforço comparativo dos seus participantes Neste sentido como condição prévia para as lutas por reputação os foliões precisam contar com certa matriz de inteligibilidade que lhes permita es tabelecer semelhanças e diferenças entre os festejos e entre todos os seus produtores A noção nativa de fundamento indica então a ideia de que todas as folias conhecidas são apenas uma só no mundo todo A festa na opinião dos devotos possuiria uma integridade primordial ao mesmo tempo em que é idêntica a si própria onde e quando quer que aconteça Ir na folia dos outros neste contexto poderia ser explicado como um deslocamento em direção ao mesmo uma atividade que reitera a existência de um modelo criado pelos Santos Reis Magos e transmitido aos homens desde o tempo em que Jesus Cristo andou pela terra A noção de sistema por outro lado referese ao inverso Embora seja apenas uma só a folia também pode ser outra As diferenças entre os festejos segundo os devotos seriam resultados das criações particulares de pessoas ou grupos distintos No linguajar urucuiano há o sistema dos antigos e dos novos assim como sistemas pessoais familiares típicos de uma vizinhança de uma cidade de uma microrregião e de um estado inteiro as folias de São Paulo têm um sistema diferente As variações são percebidas atentandose para traços distintivos diversos a música tocada por um grupo que é diferente da de outro os comportamentos valorizados pelos devotos de um grupo ao contrário de outro a indumentária particular usada por um grupo e não pelo outro etc Enquanto o fundamento trata da unidade daquilo que transforma a folia numa só e única coisa no mundo todo o sistema fragmenta para produzir alteridades contribuindo para explicar a o giro dos outros 547 infindável capacidade de os festejos serem criados e recriados ao longo do tempo e através do espaço Neste texto procuro analisar e descrever os diversos usos narrativos e festivos das noções de fundamento e sistema entre os foliões de Urucuia Em especial quero destacar o modo como ambos os conceitos estão relacionados a processos específicos de produção e contestação de uma experiência do sagrado calcada nas ideias de unidade e totalidade Durkheim 20002 Pro pondo que as festas sejam uma e várias que sejam inalteradas e mutantes que sirvam aos interesses de uma coletividade e aos anseios mais mundanos de seus participantes individuados os devotos põem em jogo demarcadores rituais frames na linguagem de Bateson 2000 capazes de produzir contextualmente a confirmação do poder totalizador e atemporal das folias ao mesmo tempo em que abrem espaço para sua dissolução Através do fun damento e dos sistemas as festas urucuianas podem ser simultaneamente fenômenos da ordem da unidade e da diversidade As festas do em movimento O vocábulo folia evoca a realização de longas jornadas festivas por meio das quais grupos de cantadores e instrumentistas visitam durante um período de tempo determinado pelo calendário religioso as casas as fazendas os cemitérios e as igrejas de um território previamente estabelecido Os des locamentos conhecidos como giros são organizados com o intuito de coletar oferendas necessárias ao custeio de uma reza Em troca do que é recolhido dinheiro sacas de arroz feijão animais de criação etc os viajantes distribuem através de cantos e danças bênçãos aos doadores além de auxiliálos no cumprimento de suas promessas e contribuir para que almoços jantares e bailes sejam oferecidos em suas passagens Os grupos de cantadores e instrumentistas são conhecidos como ternos ou companhias e seus integrantes denominados foliões As jornadas entre tanto não se esgotam apenas com sua participação Também encontramos durante suas realizações os imperadores os patrocinadores dos festejos para quem os foliões estão a trabalho os moradores a quem os foliões visitam em suas casas os acompanhantes devotos que cumprem a jornada ao lado dos foliões e toda uma série de outros agentes igualmente importantes que participam de maneira ativa das rezas dos cantos dos almoços dos jantares e dos momentos de sua preparação os serventes as cozinheiras os convida dos etc Todos eles compartilham com os cantadores e tocadores os códigos e os saberes cerimoniais necessários à produção das folias Não se excluem o giro dos outros 548 entre os personagens dos festejos nem mesmo os mortos e os santos com quem os foliões e os demais participantes acreditam interagir ao longo de um único giro Mais do que apenas grupo precatório do que apenas o terno ou a companhia as folias são como um todo extensos rituais de trocas sociais e simbólicas Nelas homens e divindades vivos e mortos famílias e indivíduos todos enfim se vêm articulados através de uma extensa rede em que pessoas bens e serviços morais religiosos econômicos estéticos etc são postos em deslocamento trocados dados recebidos e retribuídos Mauss 2003 A rigor um giro de folia é um longo processo festivo Pereira 2004 2011a Turner 1974 Van Gennep 1978 a A retirada que ocorre na moradia dos imperadores demarca para seus participantes o início oficial das festividades A folia exibese pela primeira vez desde o último ciclo festivo diante dos convidados Os organizadores da festa começam a se preparar dias semanas meses e até anos antes da sua realização Dinheiro é economizado e mantimentos são estocados Além disso redes de auxílio mútuo são costuradas e recosturadas de modo a garantir a mão de obra necessária à produção das festividades Durante a retirada um jantar é oferecido aos convidados No final diante do altar preparado para entronar o santo padroeiro da festa cantos são realizados para que os foliões recebam das mãos dos imperadores os principais objetos cerimoniais de um giro a bandeira as toalhas e os instrumentos musicais Pereira 2011b b O giro propriamente dito pode ser descrito como a principal atividade dos foliões A jornada define por excelência a festividade Um devoto ao ser questionado nunca terá dúvidas em dizer a festa começa quando o giro começar Realizada durante um três seis ou nove dias a jornada é uma sucessão de visitas e pousos realizados nas residências dos devotos Ali os foliões cantam e brincam para abençoar os moradores e receber em troca oferendas diversas Intercalada às atividades nas casas há também o deslocamentos por estradas trilhas rurais ou ruas de pequenos centros urbanos Um giro urucuiano tradicional aquele que dá gosto segun do os foliões é feito a cavalo Mas a depender das distâncias que se quer percorrer as viagens também podem ser feitas a pé ou em caminhonetes Além de adentrar as casas dos devotos os foliões também passam por ce mitérios e igrejas entendidos cada um deles como a morada dos mortos e a morada dos santos c A entrega é o momento em que depois de viajar com os tocadores e cantadores a folia retorna à casa dos imperadores para ser entregue a eles Ao contrário da retirada que conta com poucos convidados geralmente vizinhos e parentes dos organizadores da festa e ao contrário do giro que o giro dos outros 549 ocorre com os foliões e um número restrito de acompanhantes o encerra mento das festividades destacase pela presença de inúmeros participantes Ápice do processo festivo a entrega propõe uma abertura quando a moradia dos imperadores deve ser preparada para receber um número potencialmente infinito de convidados Ali como assegura a sabedoria compartilhada pelos devotos todo mundo pode entrar para rezar comer beber brincar e dançar A entrega dividese em algumas atividades centrais a chegada dos foliões o almoço ou jantar oferecido aos convidados a reza da ladainha a entrega da folia e a despedida Em geral o evento termina com um grande baile As folias urucuianas são verdadeiras festas em e do movimento3 Em duas direções concomitantes As folias são festividades que vão ao encontro das pessoas Centrados na viagem dos foliões os giros implicam uma saída de um lugar familiar a casa do imperador a passagem por lugares dis tantes as casas de outros moradores igrejas e cemitérios e um retorno final ao mundo familiar onde tudo começou a casa do imperador4 Através dos deslocamentos os santos padroeiros dirigemse à moradia dos devotos para o estabelecimento de um tempo extraordinário ver Brandão 1981 A expansão do sagrado no entanto articulase com diversos momentos de contração As festas também se estruturam por meio do deslocamento dos devotos ao encontro do seu santo padroeiro O importante da perspectiva de quem vai para uma folia é a passagem do ponto de partida da rotina até sua ruptura através de uma transposição espacial As pessoas saem de suas casas e realizam deslocamentos para um lugar que se transforma no território festivo propriamente dito Os movimentos de contração e expansão inauguram um período de fartura de gente de bens econômicos e da presença do sagrado Essa nova qualidade de tempo como no caso das festas do divino descritas e analisadas por Contins e Gonçalves 2008 tem consequências significativas sobre a vida individual e coletiva dos devotos 16 As trocas são mais intensas os espaços se condensam e os encontros tornamse muito mais frequentes A exemplo do que ocorria com as variações sazonais na sociedade esquimó analisadas por Mauss 2003 as folias estabelecem ao longo do período de sua vigência uma visão distinta acerca da vida das pessoas e das relações entre elas O tempo dos festejos em oposição ao tempo cotidiano vem a ser marcado por um estado de exaltação religiosa contínua A vida ganha um brilho diferente e as oposições entre o alto e o baixo o passado e o presente o nós e os outros a casa e a rua homens e mulheres formalidade e informalidade entre outras são parcialmente desfeitas ou pelo menos momentaneamente mediadas Pereira 2011a o giro dos outros 550 Os giros são estruturados segundo um profundo sentido de reversibili dade Cada folia é a reiteração necessária por meio de dons e contradons de uma relação que se pensa e se quer eterna entre santos e devotos Num estudo sobre os festejos dos Reis realizados numa comunidade localizada na cidade do Rio de Janeiro Daniel Bitter 2008 propõe que o ato de co memorar não é apenas um gesto de lembrar mas principalmente o de recuar de certo modo ao ponto original de fundação da ordem humana ao plano oculto e invisível do universo 48 A memória não é neste contex to simplesmente uma função psicológica mas emerge como instrumento mediador que permite o acesso a domínios distantes do mundo cósmico Vernant 1990 O caráter cíclico das festividades urucuianas mantém inúmeras se melhanças com suas congêneres cariocas As festas realizam um retorno renovado às origens da criação onde os devotos se encontram não apenas com os santos mas também com as circunstâncias e forças que produziram e mantêm em pé o mundo social e cosmológico As festividades por esta razão são sempre as mesmas quando e onde quer que sejam realizadas Segundo dizia um cantador a folia é uma só A folia dos Três Reis é só os Três Reis Tem muita folia no mundo porque os imperador é muito E não dá conta pra sair pra todos os imperador do Brasil todo Então cada um tem seu terno Mas onde se encontra todo mundo os folião é o mesmo é um só o terno de folia é sozinho do mundo inteiro é um sozinho Entrevista Arcísio UrucuiaMG O ímpeto cíclico e atemporal das folias urucuianas não parece no entanto ser capaz de apagar na percepção dos devotos o reconhecimento das suas transformações e diferenças através do tempo e ao longo do espaço Cada retorno às origens da criação é também responsável pela realização de uma festa distinta única Os empreendimentos festivos produzem e também são produzidos pela diferença Um giro de folia a partir de um determinado ponto de vista é sempre um evento singular às vezes construído às expensas da opinião negativa a respeito de outro Dizia um devoto Não é todos os imperador que faz isso não Tem uns aí que faz a janta mas só serve na mesa dos folião É maneira deles economizar na saída né Não gastar os recursos da festa né Mas isso não tá certo não Meu sistema aqui é diferente Os folião come na mesa mas quem quiser pode servi também Depois que eles levanta tá aberto pra todo mundo Pode servi à vontade porque graças a Deus e os Senhor Santo Reis nunca faltou nada pra ninguém A gente tá fazendo o giro dos outros 551 uma coisa de devoção né A gente recebeu um milagre nóis tamo cumprindo um voto Não pode ficar guardando É pouquinho que a gente dá mas sempre sobra graças a Deus João Bertoldo Sons do Urucuia5 Daí o vívido interesse dos participantes em comparar avaliar julgar e classificar os diversos giros em atuação Não há atividade que mobilize mais os devotos urucuianos do que conversar a respeito das festas realizadas ao longo de um ano ou que marcaram suas lembranças Embora no limite as folias sejam pensadas pelos seus participantes como reatualizações de uma única folia original aquela ensinada pelos Magos há o reconhecimento de que os grupos sociais por detrás de sua produção são outros de que os interesses dos atores são diferentes e de que cada uma delas também vai produzir suas próprias histórias fatos ou feitos extraordinários O capitão e o fundamento Nas festas o folião é o especialista ritual responsável pela realização das jornadas Não há folia que ocorra sem sua presença Embora seja possível ainda que pouco provável um festejo ser realizado sem um patrocinador instituído o imperador é impossível imaginarmos sua execução sem a figura do cantador e tocador integrante dos ternos de folia Era o que me dizia certa vez um destes personagens Por isso chama folia porque arreúne aqueles homens com aqueles instrumen to tocando e cantando com aquela multidão acompanhando Aí se chama de folia É tanto que tem os folião tem oito dez folião Aquele que tá com toalha se chama de folião aquele que tá com os instrumento que canta que brinca que tá com a toalha que tá com a responsabilidade duma folia aí virou uma folia E aquele que acompanha uma folia com obediência ele se torna um folião também É por isso chama de folia A companhia ajuda todo mundo é folião também todo mundo tá acompanhando a folia Agora tem os responsável aí chama de folia Porque se fosse só reza e não tivesse ninguém pra cantá não falá do santo cantá os versos cantá o passado como é que foi a viagem dos Reis Magos de Oriente a Belém como voltaro aí é só reza vamo rezá pros três Reis Magos Mas se sair cantando e tocando é folia A tradição é essa É folia Entrevista Zé Wilson UrucuiaMG Segundo meu interlocutor todos que saem no giro são foliões em po tencial ainda que alguns o sejam mais do que outros O cantador e tocador o giro dos outros 552 de fato e por direito é aquele responsável por lembrar através de certas atividades específicas o tempo dos Santos Reis A memória vivida do tempo dos Magos aquilo que define a folia em oposição a uma simples reza ao mesmo tempo em que distingue seus participantes é conhecida pelos devotos como o fundamento A noção implica a própria ideia de efi cácia Tambiah 1985 Mauss 2003 O fundamento está presente nos arte fatos religiosos a bandeira é o fundamento a toalha tem fundamento a viola é do tempo dos Reis Magos nas falas padronizadas nos gestos ri tualizados nos comportamentos observados perpassando todos os domínios da festividade A noção evoca o sagrado das formulações durkheimianas o centro irradiador em torno do qual gravita um grupo de crenças e de ritos um culto particular Durkheim 200025 Uma folia sem fundamento não pode ser considerada uma folia porque seria incapaz de realizar seu objetivo de estabelecer as trocas de dádivas entre homens e santos Pereira 2004 2011a Na linguagem dos devotos o fundamento pode ser traduzido como uma coleção de saberes relatos bíblicos mitos narrativas de casos etc que os foliões e devotos precisam aprender e resguardar de modo a garantir a reali zação correta das festividades6 A noção estabelece os parâmetros mínimos a respeito do que deve ou não ser feito durante uma jornada Conhecimento considerado primordial absoluto e oriundo de um espaçotempo imaginá rio o fundamento remete às ideias de fundação base sustentação além de ser derivado daquilo que é fundante fundador original e primevo Pereira 2004 2011a Também denominado doutrina sentido ou seguimento o conceito articula a unidade das folias no mundo reforçando seus laços primordiais com antigos foliões e com o evento mítico conhecido por to dos os devotos da viagem dos Reis Magos em direção a Belém para adorar o Menino Jesus7 Não se trata apenas de cantar os reis ou viajar com fé O fundamento envolve igualmente seguir o exemplo oferecido pelos santos A semelhança entre o que teria sido feito e o que se faz é um dado primordial Era o que dizia um capitão mineiro A gente tem as parte que a gente canta tem aquelas ramagem todo certo que é o que a gente aprendeu dos mais velhos Então às vezes quando a gente tá cantando num agradecimento numa casa a gente inventa verso mas numa apresentação sempre é os verso que foi dito pela época dos Reis Vem da época do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo não é isso Porque quando os Reis saíram eles saíram pra poder fazer uma visita ao Menino Jesus Depois da visita é que eles tomaram o nome de foliões e saiu no mundo girando com a folia É uma tradição que vem desde os Três Reis Magos Corrêa Marchi Saenger 2002160 o giro dos outros 553 O fundamento enquanto saberfazer festivo ensinado pelos Magos precisa ser compartilhado por todos os participantes de uma folia do contrário não haveria como a festa ocorrer8 No entanto o conhecimento detalhado e aprofundado do repertório de histórias e exemplos que sus tenta a realização das festividades é atributo principal do capitão O líder do grupo de cantadores e tocadores o chefe dos foliões é o espe cialista que sabe mais do que todos os outros como e porque se faz uma festa Durante meu trabalho de campo pude perceber como os capitães urucuianos gostavam de me narrar pedaços compridos da história mítica dos três Reis Magos e descrever eventos supostamente ocorridos que comprovassem o poder religioso das folias As falas eram uma maneira de legitimar sua condição de líder festivo um modo de revelar seu esforço no sentido de adquirir o conhecimento eu pelejei pra aprender e uma forma de garantir minha correta compreensão do fundamento O sentido da folia é esse aí Narrar as origens da folia no mundo e descrever os fatos extraordinários que comprovam sua eficácia também tinham o papel de designar o seu sentido primeiro sua direção e rumo mais importantes Falar do fundamento é dizer o que a festa é e como deve ser feita além de indicar o porquê da sua existência O capitão urucuiano também é aquele em quem se reconhece uma capacidade incomum de reproduzir os versos necessários à condução dos reis nome dado aos cantos cerimoniais que tornam possíveis as atividades mais importantes de uma folia o termo reis também evoca seu mito de origem afinal foram os Reis Magos que inventaram a festa Para reali zar os cantos os líderes dos cantadores e tocadores precisam conhecer as tabelas de folia conjunto de textos poéticos em forma de versos rimados transmitido através da literatura oral ou por meio de pequenos cadernos que circulam entre os devotos Os versos seriam baseados em certos livros sagrados como a Bíblia ou o Livro do Oriente este escrito na época dos Magos9 As tabelas encarnariam o fundamento não só porque trazem em seu conteúdo as narrativas versificadas dos mitos que explicam a origem das festas mas principalmente porque contêm em sua própria forma o testemunho do poder inventivo dos santos quando realizaram sua viagem os Magos também cantavam versos Os textos são classificados de acordo com as diversas etapas do processo festivo Há pelo menos 14 conjuntos de tabelas conhecidas para a retirada para as visitas para a entrega etc As tabelas garantem que os demais foliões sejam considerados os auxiliares do capitão durante as atividades festivas O conhecimento dos textos exige que cantadores e tocadores sigam rigorosamente as ordens do seu líder ao longo das apresentações ainda que alguns possam sempre o giro dos outros 554 fora deste contexto e de modo reservado discordar dele Era o que me dizia certa vez um folião de Silvianópolis sul de Minas Gerais Na cantoria o que o mestre canta lá na frente eu tenho que repeti o que ele falou tenho que repeti igualzinho Nem que ele teja xingano o dono da casa não que eles faz isso só de comparação eu tenho que cantá Depois eu posso i até o dono da casa e pedi desculpa essas coisa Mas na hora eu tenho que cantá Minha obrigação é segui o guia na cantoria Entrevista Tião SilvianópolisMG Segundo a lógica do fundamento o capitão ocupa necessariamente o primeiro plano da cantoria Neste sentido ele também é o guia dos foliões aquele que aponta caminhos indicando como e quando as coisas devem ser feitas Aos demais cantadores cabe repetir ou responder os versos que aquele proferiu Por isso também alguns deles são nomeados aju dantes de guia ou contraguias os primeiros os auxiliares imediatos do cantadorchefe os segundos aqueles que cantam depois reiterando os versos entoados10 O fundamento ainda legitima outros aspectos da autoridade do capitão Na medida em que o repertório da doutrina também abarca narrativas de acontecimentos que dão legitimidade a certas regras estabelecidas conhe cer um grande número de histórias ou causos contribui para que uma liderança possa comandar o comportamento dos seus ajudantes controlar o uso de bebida alcoólica apaziguar eventuais conflitos e exigir o respeito a certos padrões de conduta Pereira 2011a11 Segundo alguns capitães por exemplo o sentido ensina que os foliões durante as jornadas não carreguem mulheres na garupa dos seus cavalos A autoridade da doutri na está ancorada na história dos Magos e nos exemplos retirados de casos supostamente ocorridos e testemunhados guardados e retransmitidos pelos devotos Dizia um antigo capitão urucuiano Tinha um folião Ele saiu mais três companheiros Era folia de quatro folião só Num dia ele deu garupa para uma mulher No que ele tava indo eles entraro numa grota assim funda Quando saiu ele já tava sem voz Os folião num podia mais fazer viagem Não pode botar mulher na garupa não Nem que seja a mulher do folião não pode Tem exemplo do santo Caderno de campo Manoel de Oliveira UrucuiaMG Responsável por liderar o trânsito entre diversos domínios sociais e cosmológicos o foliãochefe incorpora o fundamento para se transformar na face visível do terno A noção institui o capitão como o principal mediador o giro dos outros 555 da folia em relação aos santos para quem os giros são devotados aos impe radores para quem os foliões trabalham aos moradores a quem os foliões visitam durante o giro aos acompanhantes com quem os foliões convivem durante o giro e a outros tipos de interlocutores tais como os organizadores de um evento folclórico que ocorre fora de um giro O sistema de cada um Ao final de um giro temporão de nove noites um capitão urucuiano desenten deuse com um de seus foliões Naquela manhã de maio de 2008 o tocador pediu dinheiro emprestado ao imperador para resolver assuntos pendentes na cidade O dono da festa respondeu que daria se tivesse e solicitou que sua irmã fosse ver se havia uns trocados no quarto A situação em si mesma parecia constrangedora Em Urucuia assuntos de dinheiro raramente são tratados em público diante de outras pessoas Pedir emprestado na frente de gente coloca aquele para o qual a solicitação é dirigida em posição difícil para eventualmente recusála O capitão que assistia a tudo resolveu então entrar na conversa O foliãochefe dizia não achar correta a atitude do tocador Suas razões no entanto pareciam outras mais do que uma simples preocupação com a etiqueta cotidiana das pessoas A folia reiterava é uma coisa séria Os foliões não fazem o giro por dinheiro A devoção aos santos e o sentido do fundamento são seus guias durante as jornadas Indiretamente o capitão insinuava que o empréstimo solicitado era apenas uma maneira disfarçada de o folião exigir compensação financeira por seus serviços Nada mais grave tanto do ponto de vista do acusador como do acusado O tocador contrariado respondeu rispidamente antes de ir embora não é dado não Tô pedindo emprestado Os presentes que assistiram a toda a cena não deixaram de fazer suas críticas à atitude do tocador havia decerto alguma razão na fala do capitão No entanto o próprio líder cerimonial também foi criticado por ter falado com ele naquele tom na frente de todos Segundo uma etiqueta várias vezes enunciada pelos devotos a autori dade de um capitão precisa ser exercida por meio de uma conversa reservada entre ele e o seu ajudante Certa vez um cantador me contava a história do seu tio com quem começou a foliar ainda menino e de quem guardava a memória de ser um ótimo chefe de folia Além de ter o conhecimento litúrgico do sentido seu parente havia construído para si mesmo um sistema capaz de agradar os tocadores A fala do meu interlocutor não desconhecia o valor da autoridade mas destacava que ela pode e deve ser exercida de o giro dos outros 556 modo distinto por diferentes capitães O poder dos chefes não se baseia somente no conhecimento religioso acumulado através de anos e anos de aprendizado e prática Não basta noutros termos encarnar a doutrina fazse necessário também saber como colocála em operação Dizia meu interlocutor Meu tio que fazia direito O sistema dele era bom Ele chamava a gente num canto e falava assim cê tá gostando da mocinha né meu filho Então por que cê não deixa pra depois de tirar a toalha Daí você namora Espera um pouquinho Vai só cozinhando agora Isso que era legal Não tinha essa de ficar cobrando na frente dos outros não Caderno de campo Edvar UrucuiaMG Um capitão um imperador ou mesmo um simples morador que tem o seu jeito de receber uma folia podem ter modos próprios de conduzir as festividades distintos de outros capitães de outros imperadores de outros moradores A universalidade e a impessoalidade evocadas pela noção de fundamento têm como contraponto então a ideia geral de que as folias são marcadas por diversas singularidades Uma festa comandada por uma pessoa ou realizada por um grupo familiar por uma comunidade de vizinhança noutro município ou mesmo num estado distante vai ser necessariamente di ferente No limite uma folia pode até estar sujeita a inúmeras transformações através dos tempos Os antigos por exemplo faziam festividades que se distinguiam daquelas realizadas pelos novos Do meu caderno de campo Ontem uma patrocinadora de folias me falava que os foliões mais antigos não se cansavam facilmente Na casa de seu pai uma vez um terno passou dois dias e não parou de cantar Hoje folião só tá dormindo no pouso Ela também disse que no giro de antigamente havia mais respeito porque mulher não andava acompanhando a folia O sistema de hoje é tudo diferente concluiu Caderno de campo UrucuiaMG Na fala urucuiana o sistema aparece como um contraponto à ideia de fundamento para explicar aos foliões e devotos os vários modos de se fazer folia e as razões dessa diversidade12 As marcas distintivas de cada festa são testemunhos das diferenças estabelecidas entre pessoas e grupos os foliões novos como no caso acima são mais moles e menos respeitosos se comparados aos antigos Enquanto o fundamento é compartilhado por todas as folias os sistemas sempre no plural operam discriminando e divi dindo Há o sistema deles lá e o nosso aqui As diferenças percebidas e reconhecidas seriam então frutos da ação humana Se o fundamento é por o giro dos outros 557 princípio atividade divina ou divinizada foram os Reis que o inventaram o sistema parece evocar o trabalho dos homens sujeito às contingências de toda ordem Seu tempo é o tempo da humanidade em contraponto à imutabilidade do mundo dos céus Há o passado o presente e o futuro dos sistemas Eles nascem crescem envelhecem e finalmente morrem eles estão sempre se modificando Em conjunto as noções de fundamento e sistemas garantem que fes tas e produtores possam ser comparados avaliados e julgados13 Um jovem cantador urucuiano me contava aos risos uma experiência que teve junto às folias do Acari localidade próxima a Urucuia É folião com borra demais Eles andam o dia inteirinho Cai um aqui de bêbado ou cansado e já tem outro ali para ocupar seu lugar risos O sistema deles é muito diferente14 Meu interlocutor estava claramente fazendo chacota dos can tadores de lá No entanto no momento de destacar e comentar a atuação distinta de outros foliões ele nunca deixou de reconhecer a unidade da doutrina Os tocadores do Acari também fazem folia Um devoto pode argumentar que um capitão urucuiano tem um sistema diferente do de outro capitão formulação justa e bem entendida por todos No entanto o mesmo devoto nunca poderia dizer que o fundamento de um capitão não é igual ao de outro com o risco de insinuar que um dos dois não faz folia do jeito certo o que é outra forma de dizer que um dos dois não faz folia de forma alguma Reconhecer no outro uma forma diferente de se fazer folia também é uma maneira de produzir o seu próprio sistema Verdadeiras linhagens podem assim ser construídas e percebidas Certa vez um tocador me dizia que um dos capitães mais conhecidos de Urucuia foliava influenciado pelos ensinamentos de um antigo guia já falecido A fala indicava uma profunda identificação entre os cantadores por meio do sistema Ivan aprendeu cantar folia mais o velho Manezim É cria do Mazenim É do sistema dele A leal dade a um capitão a um terno da minha família da minha localidade da minha cidade é no limite a lealdade a um sistema que eles podem representar em oposição a outros Dizia um cantador Inclusive nessa idade de 15 ano eu saía junto mais ele meu tio Aí quando chegou um certo tempo aí separou Aí o Jones ali fez um terno e ele meu tio ficou com outro Aí eu era do terno de lá Mas daí como o Jones é mais perto eu vou ficar mais perto Fiquei mais o Jones aqui E aí tamo aí até hoje E não saio fora do Jones não Até ganho convite pra ir em outras folia Quando é época de folia aqui chega pra mais de cinco convite aqui O vem ajuntá mais eu Vem ajuntá mais eu Não cê é mais eu Eu falo não é aqui mais o o giro dos outros 558 Jones Que já tem muito tempo que sai então se um fazer uma falhinha e o outro perceber ele encobriu aquela falha ali Os outros que fica de fora nem sabe daquela falha ali Que nós já tamo treinado nesse sentido né E se eu sai lá com outro eu completamente vou sair emprestado Chega lá se tiver qualquer uma falha não tem como eu cubri porque eu tô emprestado não sei como que é o sistema deles Aí vai fazer feio né Aí eu continuo aqui mais o Jones Entrevista José Rocha Chapada GaúchaMG Na prática as coisas consideradas como fundamento e sistema nun ca podem ser determinadas de uma vez por todas A articulação entre as noções parece ser mais importante do que os elementos que elas são contingencialmente capazes de abarcar Aquilo que um devoto diz ser a doutrina da folia pode ser reinterpretado como uma singularidade de um terno por outro E viceversa Numa ocasião um capitão urucuiano justificava o fato de os seus foliões não utilizarem a rabeca durante as cantorias É do sistema antigo Hoje usa mais sanfona A observação parecia banal Cantar o reis é do sentido da folia mas cantar fazendo uso ou não de uma rabeca é da ordem do sistema Meses depois no entanto outro capitão me diria algo diferente É a viola a rabeca e a caixa Folia é só esses três instrumento que vêm da época dos Reis Magos Violão sanfona cavaquinho é coisa que o povo foi inventan do mas não é do sentido não daquela mensagem que os Reis deixou pra nós Caderno de campo Urucuia O que acontece com um instrumento musical ocorre com outros ele mentos da folia15 Posses inalienáveis dos capitães as tabelas expressões maiores do fundamento raramente são emprestadas ou dadas a outros foliões Sua transmissão está intimamente relacionada à manutenção e à atu alização de laços familiares de compadrio ou de amizade Em determinados casos a circulação dos textos pode inclusive contribuir para a constituição de novos vínculos sociais Do meu caderno de campo Não são incomuns visitas mútuas entre foliões para trocas de saberes e expe riências Um folião da Vereda Grande louvava o fundamento de um conhecido capitão do distrito sede de Urucuia Em 2007 ele foi à propriedade do chefe dos foliões para que este lhe ensinasse versos de uma folia Dizia Eu conhecia muito ele De ouvir falar né Lá na Vereda Grande o pessoal sempre falava dele que conhece muitas tabelas de Reis de todos os santos Diz que ele aprendeu tudo lendo o Livro do Oriente até quando estava em cima do cavalo Daí eu o giro dos outros 559 fui lá e pedi pra ele uma tabela para saudação do altar de São Sebastião que eu quero aprender Lá na Vereda tem muito imperador que pede pra gente can tar Então eu quero aprender pra cantar também Caderno de campo 2008 A transmissão dos textos não ocorre sem que algumas modificações sejam realizadas Neiva 2007 num curto mas interessante estudo sobre permanências e transformações nos modos de se pensar e fazer festas de folia no Entorno de Brasília argumenta que as tabelas ao serem repassadas de cantador a cantador de capitão a capitão sofrem inúmeras alterações adaptações ortográficas supressão ou inserção de versos etc As mudanças ao que parece não são entendidas pelos devotos como um desafio ao funda mento Há o reconhecimento por parte dos foliões de que o texto versificado é apenas um guia para a atuação ritual O capitão durante as cantorias é livre para fazer alterações diversas Era o que um folião natural de Bon finópolis no noroeste mineiro dizia à pesquisadora O guia tem que ter sempre aquele padrão de tabela Não precisa ter as tabelas decoradas não precisa ter tabela exata Igual meu tio diz que não tem tabela mas ele puxa uma tabela ele sabe fazer a tabela Isso tá na cabeça dele ele já sabe a ordem então ele inventa os versos de acordo com aquela ordem Neiva 20074 A ordem faz referência à sequência do que deve ser cantado durante uma apresentação Em Urucuia o canto da retirada da folia por exem plo é dividido ao modo dos ritos de passagem em três etapas distintas o cabeçalho onde são apresentados os personagens e anunciase o que se vai fazer no rito a passagem do retrato das toalhas e dos instrumentos por meio da qual é ritualizada a entrega destes artefatos aos foliões e a despedida quando os rituais são finalizados e os cantadores anunciam o início de sua viagem Pereira 2011b As tabelas neste sentido preve em os versos necessários a cada uma destas fases Podese cantar o que o texto ensina sem medo de errar No entanto há muitas brechas para a improvisação que diz respeito aos nomes dos moradores à presença de outros santos no altar etc Pereira 2001a Nas cantorias o fundamento emerge como um conjunto estruturado de indicações as fases do ritual O sistema pelo contrário é o espaço aberto para a atividade criativa do cantador Não se trata de imaginarmos que o universo das folias urucuianas seja fracionado por inúmeras religiões particulares cada qual com sua crença sobre o que deve ser um fundamento ou um sistema Mais do que estabe o giro dos outros 560 lecerem concretamente as diferenças entre aquilo que deve ser o mesmo para todas as folias e aquilo que pode mudar as noções garantem a própria possibilidade de se pensar o que é o mesmo e o que é o mudado nos cantos e nas viagens dos tocadores A relatividade entre os conceitos um apontando para a totalidade outro destacando a multiplicidade garante a constituição de uma base sobre a qual as festas podem ser simultaneamente unificadas e diferenciadas Os sistemas constituemse a partir do fundamento que permite uma comparação com outro sistema Minha festa é diferente daquela festa poderia dizer um devoto destacando que a festa é o ponto comum entre dois eventos desiguais O fundamento por outro lado existe como o devir festivo a totalidade que só pode ser alcançada através das diferenças Como sabem todos os devotos urucuianos não há folia dotada de sentido que ocorra senão por meio da singularidade do sistema de um único capitão ou imperador Chegando numa folia com passos bem desajeitados Na noite de 16 de janeiro de 2008 os foliões do distrito de Vereda Grande deram início ao agradecimento da mesa canto obrigatório de louvação oferecido em retribuição aos alimentos distribuídos pelos donos da festa durante o encerramento de uma folia Ao meu lado Gaspar nome fictício um dos mais renomados capitães do distrito sede de Urucuia franziu a testa enquanto ouvia atentamente a apresentação Como parte da doutrina o agradecimento da mesa é realizado por todas as folias urucuianas Pe reira 2013 Naquela noite entretanto meu companheiro achou a cantoria um tanto diferente Em voz baixa quase num muxoxo ele me confessou Esses instrumentos tão meio desafinados né Logo depois arrematou O sistema deles aqui é no sistema velho de afinar a viola em meiaquitarra Não tem peito que aguenta O estranhamento não parou por aí Por volta das 22h os foliões da Ve reda Grande iniciaram a entrega da folia que consiste na realização de um canto por meio do qual são finalizadas as atividades festivas Segundo as regras estabelecidas pelo fundamento o capitão e seu ajudante ento avam os versos da tabela da entrega que eram prontamente repetidos pelo contraguia e seu ajudante Os textos eram cantados segundo uma métrica bem estabelecida ver Chaves 2006 Além disso eles faziam uso de expressões que destacavam a distinção dos donos da casa e dos próprios tocadores senhor senhora nobre rainha ou rei Pronomes de tratamento incomuns na fala cotidiana tu vossa ou vós também o giro dos outros 561 eram entoados Os versos ainda incluíam os nomes próprios daqueles para os quais se cantava ao invés de apelidos muito usados no dia a dia A língua dos reis materializada na tabela evocava assim a formalização Pereira 2011a Os proferimentos dos versos e as respostas que repetiam o que foi dito pelo capitão destacavam a redundância dos cantos garantindo que as mensagens transmitidas fossem ouvidas e entendidas pelos devotos ver Leach 1966 Segue um trecho da entrega O meu nobre imperador Com sua nobre rainha 2x Vamos entregar a folia Na porta desta lapinha 2x Deus vos salve imperador Seu retrato bandeira aqui voltou 2x Tava cumprindo essa promessa Nesse mundo de meu Deus 2x Os cantadores e tocadores permaneceram em círculo durante toda a cantoria Num texto anterior Pereira 2011b eu argumentei que a roda dos foliões possui qualidades sagradas estabelecendo em associação com o altar e a bandeira dos santos os limites simbólicos do conjunto festivo ver Diagrama 116 Estar no interior ou no exterior do círculo dos cantadores é estar de alguma maneira próximo ou distante do fundamento Durante a cantoria ninguém que permaneça fora da área de influência da roda dos foliões pode interferir no andamento dos cantos sob pena de grave ameaça à sua eficácia Eminentemente relacional o círculo sagrado dos foliões ganha inteligibilidade em confronto com o exterior onde falas e gestos informais são permitidos No entanto tão logo os cantadores e tocadores da Vereda Grande se prepararam para realizar uma saudação individual do altar Gaspar percebeu que eles não entoavam versos que entedia imprescindíveis ao encerramento da entrega17 A tabela ali era diferente Influenciado pelo álcool meu acompanhante começou das margens da roda de foliões sozi nho e em voz alta a proferir os versos que faltavam O reis como diriam os devotos descontrolou Gaspar cantava alto e convenceu talvez por sua fama de bom capitão os foliões do terno da Vereda Grande que já se preparavam para sair a acompanhálo O chefe dos cantadores locais também não deixou de repetir ainda que tropegamente o que seu rival urucuiano entoava o giro dos outros 562 O reis que ainda se seguiu por longos minutos redundou estranho e terminou bastante desorganizado Irritado com a intromissão indevida o guia da Vereda Grande desculpouse ironicamente com a audiência assim finalizada a apresentação É a gente morre e num sabe tudo Pouco tempo depois não sei precisar quanto Gaspar foi chamado a um canto por um ami go que tinha vindo com ele Antes que eu pudesse chegar perto para saber o que estava acontecendo ambos partiram sem se despedirem Dias passados quando tive oportunidade de reencontrar o capitão ele não tocou no assunto Quando comentei sobre o que ocorrera Gaspar respondeu lacônico destacan do que cada lugar tem um sistema diferente Ao que parece ele sabia que sua performance na Vereda Grande não agradara a absolutamente ninguém Não era a primeira vez que observava um folião assistindo à apresenta ção de outros foliões para criticála Entretanto o mais comum era que meus interlocutores agissem com alguma discrição e cuidado para que os alvos dos seus comentários não pudessem escutar A falação como prática cotidiana de falar mal de alguém ou grupo Dainese 2011 embora presente não se faz evidente durante as apresentações rituais sendo realizada nas imediações espaciais da cantoria ou após ela ser efetuada Apenas em momentos de grande tensão quando alguém diz o que pensa para que o outro ou outros possa possam ouvir as críticas são feitas abertamente antecedendo ou mesmo exigindo brigas que estão a ponto de emergir18 Do ponto de vista formal a falação também não parece competir diretamente com o canto entoado na roda dos foliões Enquanto a primeira é quase um muxoxo informal o que não significa ausência de regras Comerford 2003 as cantorias bastante formalizadas precisam ser ouvidas e entendidas O fundamento exige regras específicas para que seja bem entendido pelos devotos Diagrama 1 A roda dos foliões e o movimento dos versos Versos CapitãoGuia Ajudante Ajudante do Contraguia Contraguia o giro dos outros 563 Durante sua realização o reis institui o capitãoguia como um centro irradiador do fundamento O canto transforma o líder dos tocadores num canal privilegiado de ligação com o alto onde se encontram as divinda des católicas e com o passado mítico de onde provêm as festividades19 Assim mais do que colocar frente a frente duas formas distintas de se fazer folia Gaspar produziu uma duplicação espúria do sagrado Diagrama 2 Na medida em que o legítimo centro irradiador dos versos o capitão da Vereda Grande foi abertamente desafiado outro centro foi criado Se o reis precisa estabelecer uma unidade que abarca e apaga as diferenças o duplo assim criado anulava a proposta original Não por outra razão o canto terminou descontrolado os foliões da Vereda Grande não sabiam mais o que fazer Um jogo de enquadramentos Em Urucuia o reconhecimento da diversidade dos sistemas desempenha um papel fundamental na constituição das sociabilidades festivas A ideia de que uma folia pode ser diferente de outra explica o interesse dos cantadores em acompanhar a realização de várias festas produzidas por diferentes per sonagens Através da circulação os capitães podem aprender novos cantos ou tabelas afinações e formas de se comportar durante os cerimoniais O mesmo ocorre com imperadores e moradores que movimentandose de folia em folia são capazes de aprender com outros algo novo e bom para adicionar às suas festividades Um imperador me explicou certa vez que ampliou em quase três metros quadrados a área da sala de sua casa para Diagrama 2 A duplicação do centro irradiador do fundamento Versos CapitãoGuia Ajudante Ajudante do Contraguia Contraguia Gaspar o giro dos outros 564 que os foliões e os devotos tivessem mais conforto As mudanças no entanto não obedeciam apenas a razões da ordem prática pra ter mais espaço As casas bem equipadas para receber foliões e devotos são lembradas e imitadas como referências de boas festas e de renomados organizadores Meu interlocutor planejou as obras em sua residência tendo como modelo a sala de um reconhecido patrocinador de folias urucuiano Você já viu a sala do Basílio Então ele é imperador forte As folias dele sempre tá assim de gente né Precisa de espaço E lá tem espaço pros foliões e o povo ficar As diferentes formas de se fazer folia também explicam as rivalidades entre foliões e ternos As disputas ocorrem em dois níveis distintos Num primeiro deles um devoto pode destacar a diversidade para escolher o tipo de folia que mais lhe agrade A afinação do Rio Abaixo é melhor para cantar do que a MeiaQuitarra um terno de folia com poucos integrantes é menos bagunçado do que outro com muitos tratar os foliões com respeito diante das pessoas é melhor do que desrespeitálos publicamente etc As avaliações nesse sentido não atentam contra o sentido da folia elas não o colocam em suspeição Ir na festa dos outros é ver o mesmo sendo feito de modo diferente Unidos pelo fundamento que lhes iguala como cantadores que viajam em nome de um santo os foliões competem por meio da diversidade Num segundo nível o devoto pode até colocar em questão o fundamen to que é apresentado por outro grupo A disputa nesses casos evoca uma competição em que não há lugar para se conciliarem diferenças A questão é da ordem do quantitativo o importante é demonstrar que se sabe mais do fundamento do que o folião concorrente Não foi outra a razão pela qual Gaspar não apenas se contentou em comentar as deficiências estritamente musicais segundo seu ponto de vista do terno da Vereda Grande como também resolveu interferir ativamente no andamento dos cantos realiza dos No primeiro caso tratavase de uma crítica ao sistema no segundo ao fundamento O que alguns chamariam de inconveniência nosso amigo resolveu entender como ensinamento Através do gesto intempestivo de adentrar sem ser chamado em uma roda de outros foliões ele estava ten tando mostrar como a cantoria deveria ser feita de acordo com aquilo que considerava ser o sentido da folia Embora força constitutiva a percepção das diferenças é um problema que precisa ser enfrentado por uma festividade pautada pelas ideias de unidade permanência e hierarquia Não há nada pior para a reputação das festividades e dos seus organizadores do que a publicização dos desacordos ocorridos entre aqueles responsáveis por produzilas Pereira 2011a 2012a Para todos os efeitos o dissenso precisa ser obscurecido durante as atividades rituais No caso das cantorias o reis propõe um único centro irradiador do o giro dos outros 565 sagrado em detrimento da diversidade de saberes festivos A estratégia não implica claro o fim das diferenças Um folião sabe e muitas vezes expressa através de muxoxos críticos ou de risadas sua opinião a respeito daquilo que acabou de ver e ouvir No entanto como ele também deve saber há a hora e o lugar para isto A ênfase na unidade ou na multiplicidade é antes de tudo um problema de contexto A questão é estabelecer mecanismos para que o registro da diferença não invada o lugar destinado ao fundamento e viceversa O caso da Vereda Grande demonstra como a emergência da dissidência no momento e em lugar inapropriados pode atrapalhar a realização das cantorias Valerio Valeri 1994 a partir de Bateson 2000 afirma que o rito se caracteriza pela presença de enquadramentos psicológicos ou sinais metacomunicativos que opõem as ações enquadradas ou postas entre aspas às ações ordinárias20 Os sinais comunicam aos participantes de um cerimonial que os elementos enquadrados são ficções atividades que não estão no mesmo plano ontológico daquilo que representam ou estão em oposição Segundo o autor os meios mais frequentemente utilizados para enquadrar um rito são a formalidade do comportamento o caráter fixo e repetitivo dos gestos cores perfumes decorações especiais rumores ou silêncios absolutos Também são acionadas línguas ou níveis especiais de uma mesma língua músicas e instrumentos específicos Todos estes meios meios de comunicação na linguagem de Tambiah 1985 podem ter ou tras funções no rito mas a sua presença é suficiente para identificar certos eventos como momentos extraordinários produzidos pela sociedade Além de assinalar aquilo que engloba o enquadramento também teria a função de isolar as impressões produzidas pelas representações da quelas suscitadas pelo mundo que permanece fora O efeito de realidade do rito sua eficácia por assim dizer estaria relacionado a um processo de obliteração Diz o autor Desta forma o enquadramento pode até funcionar como écran contra os indícios experienciais que contradizem o efeito de realidade das imagens que ele en globa quando estas imagens são particularmente evocadoras Valeri 199435521 Os enquadramentos assumem paradoxalmente duas funções contradi tórias uma assinalando que o que contém é fictício a outra fazendo esquecer que é Nas folias urucuianas os participantes têm sempre alguma consciência de que as imagens os gestos e as palavras de uma cantoria são expressões de um sistema singular único No entanto durante a execução dos cantos a experiência extraordinária do fundamento surge quando o equilíbrio entre o giro dos outros 566 as duas funções do enquadramento entre a consciência da ficção e écran contra a realidade é alterado a favor deste último Valeri 1994356 A doutrina de um único capitão noutros termos só pode ser aceita como universal quando as diferenças entre os sistemas de outros capitães são mantidas escondidas fora do quadro O enquadramento garante a aceitação quase ficcional de um modelo parcial e relativo que então se transmuta em canal de mediação com a totalidade cósmica e social Através da formalização das falas e dos gestos além do uso de artefatos sagrados as folias criam silêncios de modo a reduzir ambiguidades provenientes da convivência nem sempre pacífica das diferentes maneiras de se pensar e fazer o ritual em Urucuia As operações metacomunicativas funcionam de modo a garantir a heterogeneidade entre os domínios do fundamento e do sistema Nesse sentido a folia parece atualizar o modelo durkheimiano segundo o qual os rituais devem ser percebidos como atos coletivos respon sáveis pela produção de totalidades cósmicas e sociais a partir de proibições que visam afastar ou obscurecer as fragmentações Durkheim 200022 Nas margens temporais e espaciais dos cantos no entanto quando a informalidade substitui a formalidade a diferença ganha preeminência O dissenso não apenas é legítimo Nas conversas entre devotos ele che ga a ser desejado Um olhar através das margens com seus comentários maliciosos risos ou expressões de admiração têm o poder de estranhar e destituir o sagrado de sua aura de totalidade e imutabilidade Enquanto a cantoria produz a unidade permitindo que um sistema parcial transforme se ficcionalmente no vetor temporário de um fundamento que precisa ser o mesmo para o mundo todo a falação parte do modelo universalizado que unifica e permite a comparação entre os grupos para chegar à singularidade quando uma festa se torna diferente das outras Tratase então de levarmos a sério o valor relativo porque relacional das margens da liminaridade durante os festejos urucuianos Van Gennep 1979 Turner 1974 Noutros termos a comunidade de folias ganha inteligibilidade a partir da troca alternada e controlada de perspectivas distintas entre o olhar desde o centro sacralizado dos ritos e a visada desde suas margens onde a certeza da unidade festiva dá lugar ao dissenso e à fragmentação Num polo festivo poderíamos dizer destacase a coerência noutro a ambivalência por meio da qual é subvertido o cenário de um mundo ordenado e unificado Bakhtin 1999 Vilhena 199723 A folia é uma só mas também são várias sempre de acordo com o deslocamento dos olhares Alternando perspectivas os devotos urucuianos por um lado podem dizer parafraseando Sahlins que as coisas devem preservar alguma identidade através das mudanças ou o mundo seria um hospício 1999190 enquanto o giro dos outros 567 por outro ainda completariam e viceversa afinal a identidade só faz algum sentido num mundo de diferenças Recebido em 24 de fevereiro de 2014 Aprovado em 25 de julho de 2014 Luzimar Paulo Pereira é bolsista PNPDCapes do Programa de PósGraduação em Antropologia Social do Museu Nacional UFRJ Email mazinhop gmailcom Notas 1 Uma leitura da devoção que não restringe o conceito à pura obrigação pode ser encontrada em Menezes 2004 2 O material utilizado para a escrita deste artigo é fruto de trabalhos de campo realizados no município de Urucuia e região entre os anos de 2006 2007 2008 2013 e 2014 3 Cerqueira 2010 e Dainese 2011 destacam o papel que o movimento de pessoas palavras e coisas desempenha na constituição de formas específicas de so ciabilidade em determinadas áreas rurais de Minas Gerais As folias à sua maneira parecem potencializar e tematizar o valor dos deslocamentos no estabelecimento de inúmeros vínculos sociais e cosmológicos 4 Em Urucuia os giros de folia são dedicados aos mais variados santos do panteão católico Há aqueles realizados aos Santos Reis os mais importantes e valorizados pelos devotos a São Sebastião a São José ao Bom Jesus da Lapa a Nossa Senhora Aparecida e a Santa Luzia Todas as folias se realizam em épocas precisas de acor do com o calendário religioso que estabelece dias específicos para cada entidade 6 de janeiro Santos Reis 20 de janeiro São Sebastião 19 de março São José 10 de agosto Bom Jesus da Lapa 12 de outubro Nossa Senhora Aparecida e 13 de dezembro Santa Luzia 5 Em meados da década de 1990 as folias do distrito sede de Urucuia foram registradas através do trabalho da ONG paulistana Cachuêra O resultado desta pesquisa foi materializado em vídeo Urucuia um vão de nossas riquezas dirigi do por Angélica Del Nery e CD Famaliá Sons do Urucuia Além disso um rico o giro dos outros 568 material em entrevistas permanece guardado no acervo da ONG em São PauloSP Os registros me foram muito úteis sendo gentilmente cedidos por membros da ONG paulistana para minha pesquisa na região 6 Num texto recente Brandão aborda o tema do fundamento que ele descreve como o repertório de relatos bíblicos mitos lendas derivadas e crenças religiosas do catolicismo popular 20107677 O fundamento está sempre associado a um rito em particular Tratase de um conjunto que explica a origem acreditada do rito universal a origem e a história da prática do rito no Brasil na região e na comuni dade o imaginário de acontecimentos e casos que garantem a sua legitimidade as prescrições e proscrições rituais 20107677 7 Numa análise preliminar de um destes mitos fundadores argumentei que a ideia de fundamento tem uma relação direta com o tema da troca de dádivas entre os homens e suas divindades Pereira 2004 Vale notar que o catolicismo urucuiano assim como o de outras regiões do país ampliou e enriqueceu de detalhes uma passagem relativamente curta da Bíblia 8 Diz Brandão a respeito das folias Ao constituir o espaço simbólico da jornada dos reis a Folia transporta para dentro dele com nome e proclamações de bênçãos as pessoas os animais os objetos e as trocas do próprio mundo camponês Assim os mesmos homens do trabalho agrário cotidiano aparecem por sete dias revestidos de cumplicidade com os mitos populares de uma história sagrada que todos conhe cem por ali Na medida em que realizam a jornada e cantam de casa em casa eles reconstituem tanto essa história quando os gestos e as palavras de suas pequenas estórias tal como acreditam que tenham acontecido e tal como supõem que reprodu zem com uma fidelidade que se perde aos poucos mas que é legítima sem dúvida alguma 19814041 9 Um folião do Entorno de Brasília confirma essa versão Meu avô já cantava e o pai do meu avô cantava A tabela veio do Livro do Oriente As tabelas vieram do Livro do Oriente só que ninguém nunca viu o tal do Livro do Oriente não sabe se existiu Muita gente tem crença e eu também acredito que elas vieram ainda dos três Reis Magos só que mudou muito o tempo vai mudando e teve adaptações Neiva 20078 10 A noção de guia também parece referendada pelo mito de origem das folias Quando em viagem os Magos foram guiados por uma estrela O astro segundo interpretações nativas seria uma transmutação do Anjo Gabriel enviado por Deus para indicar os caminhos que os levariam para Belém Nesse sentido guiar não apenas evoca o deslocamento horizontal mas implica igualmente uma mediação necessária entre o alto e o baixo entre este mundo e o outro mundo do céu 11 Nesse sentido as noções de guia e capitão embora se aproximem não são necessariamente equivalentes Enquanto o capitão deve ser obrigatoriamente um guia um folião pode cantar de guia sem ser capitão porque lhe falta autoridade para mandar nos demais cantadores No limite ser capaz de cumprir o papel de o giro dos outros 569 condutor dos cantos é condição para alguém se tornar um capitão embora não seja o suficiente para concluir esta transformação 12 Ana Cerqueira 2013 apresenta a noção de sistema assim como presente entre os habitantes de um pequeno agrupamento rural do município da Chapada Gaúcha Ali o conceito da maneira como é usado cotidianamente em Urucuia define povos famílias e pessoas formam unidades intrínsecas às variáveis da sorte dos deslocamen tos geográficos e existenciais tão imprevistos quanto inevitáveis ao sistema que se dão ao longo dos ciclos de nascimentos casamentos e mortes Cerqueira 20132 13 Ao circular por outras festas e observar outros devotos os participantes dos festejos percebem que o seu jeito de fazer folia não é único mas apenas um dentre vários O reconhecimento das diferenças está na base de cálculos políticos acionados nos momentos de se exercer um sistema tanto para se estar disposto a relaxar certas regulamentações específicas como para se marcar uma posição diante de outros O meu sistema dizia um líder ritual é esse aqui Quem não gostar que vai caçar rumo com outro capitão O risco para o devoto nestes casos é ver o seu sistema associado à rígida hierarquia da imposição e ele sistemático demais Ao invés de se abrir a algum tipo de diálogo o sistemático é aquele que não se permite interagir com qualquer modelo diferente do seu 14 Os limites do sistema parecem terminar no descontrole quando uma folia dei xa de ser folia No início de 2014 os devotos do distrito sede de Urucuia comentavam a respeito de um terno que girava pelo seu pequeno centro urbano Embora o capitão fosse reconhecido como capaz de entoar diversas tabelas o grupo era criticado por andar bêbado pelas casas No limite quando se referiam ao terno como de folia invariavel mente os devotos prontamente sorriam como se dissessem terno de folia que nada 15 Um conhecido capitão da Chapada Gaúcha me disse achar errado o fato de algumas folias fazerem uso do palhaço personagens mascarados que acom panham os cantadores em suas jornadas Segundo ele o mascarado que para determinados grupos representa a figura de Herodes o rei dos judeus que tentou assassinar o Menino Jesus evocava o diabo Não é o sentido dizia Os foliões que fazem uso de palhaços no entanto discordariam veementemente do meu interlocutor como notou Daniel Bitter 2008 no caso das festas de folia da Mangueira no Rio de Janeiro Ali o mascarado também é parte do fundamento 16 A cantoria é um rito cuja operacionalidade é garantida pela dissolução tem porária das fronteiras entre o material e imaterial o corpo e o espírito a linguagem falada e a poética cantada Os gestos os posicionamentos dos corpos as manipulações de objetos sagrados e os proferimentos de palavras se misturam para produzir um enquadramento semântico em que operações metafóricas e metonímicas de contágio e de semelhança são postas em operação Pereira 2011b 17 Tratavase de hinos transmitidos através da atuação da Igreja Católica no mu nicípio Enquanto os cantadores e tocadores da sede municipal de Urucuia parecem ter adotado os cantos os grupos da Vereda Grande não o giro dos outros 570 18 Certa vez os foliões estavam realizando como de praxe sua visita a uma moradia Um folião concorrente que tinha a fama de ser encrenqueiro e beber muito estava acompanhando Numa casa o cantador criticou abertamente o canto realizado pelos foliões que estavam no giro Depois passou a criticar o capitão que segundo dizia cantava muito alto No final da visita o imperador que observava o seu com portamento chegou a ameaçálo O folião tentou contraargumentar O imperador no entanto retrucava estou pelejando com você desde que a gente saiu de casa hoje Mas cê não se ajeita O prosaruim foi aconselhado a irse embora para evitar maiores confusões Caderno de campo UrucuiaMG 19 O centro e a hierarquia também são tematizados em diversos momentos dos giros de uma folia Pereira 2011a 2012b 2013 20 Gregory Bateson 2000 defende a ideia de que a comunicação verbal humana pode operar em vários níveis de abstração Toda mensagem apresenta um nível deno tativo de conteúdo um nível metalinguístico e um nível metacomunicativo O nível metalinguístico diz respeito ao modo como a mensagem repensa a própria linguagem enquanto o metacomunicativo envolve elementos que definem a própria relação estabe lecida entre os falantes Desta maneira Bateson enfatiza que mais do que conteúdos enunciados comportam marcas enquadramentos que balizam a interação estabelecida 21 Poderseia demonstrar esta proposição analisando por exemplo os ritos má gicos nos quais a consciência do caráter fictício e em todo o caso menos real das atividades rituais se bem que inibida nunca está ausente e até influencia a crença dandolhe subterraneamente a forma Valeri 1994 Como pensa Mauss 2003 o fato de a magia ser potencialmente um embuste é parte da crença na própria magia 22 A oposição desses dois gêneros irá aliás traduzirse exteriormente por um signo visível que permitirá reconhecer com facilidade essa classificação muito especial onde quer que ela exista Como a noção de sagrado está no pensamento dos homens sempre e em toda parte separada da noção de profano como concebemos entre elas uma espécie de vazio lógico ao espírito repugna invencivelmente que as coisas correspondentes sejam confundidas ou simplesmente postas em contato pois tal promiscuidade ou mesmo uma contiguidade demasiado direta contradizem violentamente o estado de dissociação em que se acham tais ideias nas consciências A coisa sagrada é por excelência aquela que o profano não deve e não pode impunemente tocar Claro que essa interdição não poderia chegar a ponto de tornar impossível toda comunicação entre os dois mundos pois se o profano não pudesse de maneira nenhuma entrar em relação com o sagrado este de nada serviria Mas tal relacionamento além de ser sempre por si mesmo uma operação delicada que requer precauções e uma iniciação mais ou menos complicada de modo nenhum é possível sem que o profano perca suas características específicas sem que se torne ele próprio sagrado num certo grau e numa certa medida Os dois gêneros não podem se aproximar e conservar ao mesmo tempo sua natureza própria Durkheim 20002324 23 Luis Rodolfo Vilhena entende que a obra de Bakhtin destaca por meio da noção de ambivalência a capacidade da cultura popular de simbolizar a ambiguidade em situações e objetos Vilhena 199752 o giro dos outros 571 Referências bibliográficas BAILEY Frederick G 1971 Gifts and po sion the politics of reputation New York Schocken Books BAKHTIN Mikhail 1999 A cultura popu lar na Idade Média e no Renascimen to o contexto de François Rabelais São Paulo Hucitec Brasília Editora da Universidade de Brasília BATESON Gregory 2000 Steps to an ecology of mind Chicago University of Chicago Press BITTER Daniel 2008 A bandeira e a máscara estudo sobre a circulação de objetos rituais nas folias de Reis Tese de Doutorado PPGSAIFCSUFRJ BRANDÃO Carlos Rodrigues 1981 Os sacer dotes da viola Petrópolis Editora Vozes 2010 Prece e folia festa e romaria Aparecida SP Ideias Letras CAVALCANTI Maria Laura V C 2006 Carnaval carioca dos bastidores ao desfile Rio de Janeiro EdUFRJ CERQUEIRA Ana Carneiro 2010 O povo parente dos Buracos mexida de prosa e cozinha no cerrado mineiro Tese de Doutorado PPGASMuseu Nacional UFRJ 2013 O sistema da mexida de cozi nha de que riem eles Mimeo CHAVES Wagner 2006 Recebeis meu Bom Jesus com sua nobre folia re flexões sobre a eficácia do canto nas folias nortemineiras do altomédio São Francisco Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares 318199 COMERFORD John Cunha 2003 Como uma família sociabilidade territórios de parentesco e sindicalismo rural Rio de Janeiro Relume Dumará CONTINS Márcia GONÇALVES José Reginaldo Santos 2008 A escassez e a fartura categorias cosmológicas e subjetividade nas festas do divino espírito santo entre imigrantes açoria nos no Rio de Janeiro In MLVC Cavalcanti JRS Gonçalves orgs Ritos e sociabilidades festivas Rio de Janeiro Contra Capa pp 1136 CORRÊA Roberto SAENGER Juliana MARCHI Lia 2002 Tocadores ho mem terra música e acordes Curi tiba Olaria DAINESE Graziele 2011 Chegar ao cer rado mineiro hospitalidade política e paixões Tese de Doutorado PPGAS Museu NacionalUFRJ DURKHEIM Émile 2000 As formas elementares da vida religiosa São Paulo Martins Fontes LEACH Edmund 1966 Ritualization in man In Sir Julian Huxley org A discussion on ritualization of behav ior in animals and man Philosophical Transactions of the Royal Society of London Series B 251772403408 London Royal Society MAUSS Marcel 2003 Sociologia e an tropologia São Paulo Cosac Naif MENEZES Renata de Castro 2004 A dinâmica do sagrado rituais socia bilidade e santidade num convento do Rio de Janeiro Rio de Janeiro Relume Dumará NEIVA Ivany Câmara 2007 Devoção na folia comunicação popular perma nências e transformações Intercom Sociedade Brasileira de Estudos Inter disciplinares da Comunicação XXX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação Santos Disponível em httpwwwadteventocombr intercom2007resumosR01952pdf Acesso em 19082008 PEREIRA Luzimar Paulo 2004 Os an darilhos dos Santos Reis um estudo etnográfico sobre Folia de Reis bairro o giro dos outros 572 rural e sistemas de prestações totais Dissertação de Mestrado em Desen volvimento Agricultura e Sociedade CPDAUFRRJ 2008 A viola do diabo notas sobre narrativas de pactos demoníacos no norte e noroeste mineiro In E Giumbelli JCV Diniz S Cambraia orgs Leituras sobre música popular reflexões sobre sonoridades e cultura Rio de Janeiro 7Letras pp 380396 2011a Os giros do sagrado um estudo etnográfico sobre folias em Urucuia MG Rio de Janeiro Editora 7Letras 2011b Bendito Louvado Seja notas etnográficas sobre os cantorios religio sos das folias de UrucuiaMG Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares Impresso 08161177 2011c Promessa consideração e trato nas festas de folia em UrucuiaMG Antropolítica 3197122 2012a Os sacrifícios da carne a mor te do gado e a produção dos banquetes nas folias de Urucuia MG Religião Sociedade 327196 2012b No giro as folias como peregri nações rituais Interseções 142545 2012c As vicissitudes da fama Re vista de Antropologia 55210471083 2013 À mesa com os santos a noção de fartura nas folias de Urucuia Mi nas Gerais In JRS Gonçalves RS Guimarães N Bitar orgs A alma das coisas patrimônios materialidade e ressonância Rio de Janeiro Mauad pp 155184 SAHLINS Marshall 1999 Ilhas de his tória Rio de Janeiro Zahar Editores SIMMEL George 1971 On individual ity and social forms Chicago The University of Chicago Press TAMBIAH Stanley Jeyaraja 1985 Cul ture thought and social action Cam bridge Harvard University Press TURNER Victor 1974 O processo ritual Petrópolis Ed Vozes VALERI Valerio 1994 Rito In Enci clopédia Einaudi 30 Religiãorito Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda pp 325359 VAN GENNEP Arnold 1978 Os ritos de passagem Petrópolis Vozes VERNANT Jean Pierre 1990 Aspectos míticos da memória e do tempo In Mito e pensamento entre os gregos Rio de Janeiro Paz e Terra pp 105148 VILHENA Luis Rodolfo 1997 Ensaios de antropologia Rio de Janeiro EdUERJ o giro dos outros 573 Resumo Em Urucuia norte de Minas Gerais os conceitos locais de fundamento e sistema evocam respectivamente as semelhan ças e as diferenças entre as festas de folia realizadas em um grande circuito festivo Descrevendo a circulação de devotos por diversas festas procuro neste artigo ana lisar os usos narrativos e festivos destas noções para destacar o modo como elas estão relacionadas a processos específi cos de produção e contestação de uma experiência sagrada calcada nas ideias de unidade e totalidade Ao proporem que as festas sejam simultaneamente uma e várias que sejam permanentes e mutantes que sirvam às comunidades e aos interesses individuais os devotos põem em jogo demarcadores rituais capazes de produzir contextualmente a confirmação do poder totalizador e atemporal das folias ao mesmo tempo em que abrem espaço para a sua dissolução Palavraschave Sagrado Rituais Movi mento Comunidade Folia Abstract In Urucuia Northern Minas Gerais the local concepts of fundamento and sistema refer respectively to the similarities and differences between the feasts held in a festive circuit Starting from a description of the movement of devotees from feast to feast I analyze the narrative and festive uses of these notions in order to highlight how they relate to processes of production and to the contestation of sacred experi ence grounded on notions of unity and wholeness According to devotees the various feasts are at the same time one and several enduring and changing serving community and individual in terests They use ritual markers aiming both to confirm the folias atemporal totalizing power and to allow its possible dissolution Key words Sacred Rituals Movement Community Folia
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MANA 203 545573 2014 O GIRO DOS OUTROS FUNDAMENTOS E SISTEMAS NAS FOLIAS DE URUCUIA MINAS GERAIS Luzimar Paulo Pereira É Eu é que estive lá junto nas horas em estâncias tão desiguais Ali primeiro com um depois com o outro depois com os todos dois para todos o sol nascendo Eu vi e ouvi tudo o que conformemente era para se notar que se deu fui fragrante de testemunha Agora não sei João Guimarães Rosa Estas estórias Em Urucuia um folião num sentido estrito é aquele que faz folia o agente fundamental da sua realização Num sentido amplo no entanto cantar e tocar para uma festa religiosa não encerram as atividades do personagem Ser folião também implica gostar de folia o que significa estar propenso a assistir acompanhar e eventualmente participar sem maiores compromissos de festas que são feitas por diferentes foliões Durante todo o meu trabalho de campo no município as festividades que pude registrar contavam com a presença de pelo menos um destes tocadores ali apenas para ver e iscuitar a folia dos outros As razões desta aparente ubiquidade eram oferecidas pelos próprios personagens para destacar a afeição do folião pela folia O cantador e tocador é antes de tudo um devoto A ideia não se refere somente às suas obrigações para com a festividade1 Um devoto não é apenas aquele que deve um voto ao santo mas também é a pessoa que nutre um verdadeiro gosto pelas festas a ele dedicadas Pereira 2004 2011a Ir numa folia e fazer uma folia porque se gosta dela ou porque se está obrigado a ela são expressões que evocam a existência de um poder agenciador uma influência na linguagem dos devotos que condiciona a própria ideia do ser folião Pereira 2008 2012c A circulação dos foliões por diversas festas urucuianas tem como pano de fundo a existência de sociabilidades agonísticas no interior daquilo que noutro lugar denominei comunidade festiva Pereira 2011a Estendida para aquém e além dos limites administrativos do município disputando o giro dos outros 546 precedência com outras comunidades concorrentes e por vezes com plementares a Igreja o sindicato rural a família etc a coletividade dos participantes das folias é constituída por meio de intensos deslocamentos de pessoas palavras e coisas O conflito não é em absoluto uma ameaça à vida comunitária ou festiva ver Simmel 1971 Bailey 1971 Comerford 2003 Cavalcanti 2006 entre outros A existência de feitiços lançados para prejudicar a atuação de cantadores e tocadores Pereira 2011a as narrativas difamatórias a respeito da existência de violeiros supostamente pactários do diabo Pereira 2008 2012c os temidos encontros de folia Pereira 2011a 2012b entre outras práticas sociais compartilhadas revelam um mundo no qual para ser folião uma pessoa precisa participar de constantes disputas por fama e renome Um bom tocador urucuiano consolida sua atividade e sustenta sua reputação em oposição à e muitas vezes em detrimento da imagem de outros foliões Pereira 2008 2011a 2012b 2012c Na comunidade de folias urucuiana as competições por nome e reco nhecimento ocorrem a partir do esforço comparativo dos seus participantes Neste sentido como condição prévia para as lutas por reputação os foliões precisam contar com certa matriz de inteligibilidade que lhes permita es tabelecer semelhanças e diferenças entre os festejos e entre todos os seus produtores A noção nativa de fundamento indica então a ideia de que todas as folias conhecidas são apenas uma só no mundo todo A festa na opinião dos devotos possuiria uma integridade primordial ao mesmo tempo em que é idêntica a si própria onde e quando quer que aconteça Ir na folia dos outros neste contexto poderia ser explicado como um deslocamento em direção ao mesmo uma atividade que reitera a existência de um modelo criado pelos Santos Reis Magos e transmitido aos homens desde o tempo em que Jesus Cristo andou pela terra A noção de sistema por outro lado referese ao inverso Embora seja apenas uma só a folia também pode ser outra As diferenças entre os festejos segundo os devotos seriam resultados das criações particulares de pessoas ou grupos distintos No linguajar urucuiano há o sistema dos antigos e dos novos assim como sistemas pessoais familiares típicos de uma vizinhança de uma cidade de uma microrregião e de um estado inteiro as folias de São Paulo têm um sistema diferente As variações são percebidas atentandose para traços distintivos diversos a música tocada por um grupo que é diferente da de outro os comportamentos valorizados pelos devotos de um grupo ao contrário de outro a indumentária particular usada por um grupo e não pelo outro etc Enquanto o fundamento trata da unidade daquilo que transforma a folia numa só e única coisa no mundo todo o sistema fragmenta para produzir alteridades contribuindo para explicar a o giro dos outros 547 infindável capacidade de os festejos serem criados e recriados ao longo do tempo e através do espaço Neste texto procuro analisar e descrever os diversos usos narrativos e festivos das noções de fundamento e sistema entre os foliões de Urucuia Em especial quero destacar o modo como ambos os conceitos estão relacionados a processos específicos de produção e contestação de uma experiência do sagrado calcada nas ideias de unidade e totalidade Durkheim 20002 Pro pondo que as festas sejam uma e várias que sejam inalteradas e mutantes que sirvam aos interesses de uma coletividade e aos anseios mais mundanos de seus participantes individuados os devotos põem em jogo demarcadores rituais frames na linguagem de Bateson 2000 capazes de produzir contextualmente a confirmação do poder totalizador e atemporal das folias ao mesmo tempo em que abrem espaço para sua dissolução Através do fun damento e dos sistemas as festas urucuianas podem ser simultaneamente fenômenos da ordem da unidade e da diversidade As festas do em movimento O vocábulo folia evoca a realização de longas jornadas festivas por meio das quais grupos de cantadores e instrumentistas visitam durante um período de tempo determinado pelo calendário religioso as casas as fazendas os cemitérios e as igrejas de um território previamente estabelecido Os des locamentos conhecidos como giros são organizados com o intuito de coletar oferendas necessárias ao custeio de uma reza Em troca do que é recolhido dinheiro sacas de arroz feijão animais de criação etc os viajantes distribuem através de cantos e danças bênçãos aos doadores além de auxiliálos no cumprimento de suas promessas e contribuir para que almoços jantares e bailes sejam oferecidos em suas passagens Os grupos de cantadores e instrumentistas são conhecidos como ternos ou companhias e seus integrantes denominados foliões As jornadas entre tanto não se esgotam apenas com sua participação Também encontramos durante suas realizações os imperadores os patrocinadores dos festejos para quem os foliões estão a trabalho os moradores a quem os foliões visitam em suas casas os acompanhantes devotos que cumprem a jornada ao lado dos foliões e toda uma série de outros agentes igualmente importantes que participam de maneira ativa das rezas dos cantos dos almoços dos jantares e dos momentos de sua preparação os serventes as cozinheiras os convida dos etc Todos eles compartilham com os cantadores e tocadores os códigos e os saberes cerimoniais necessários à produção das folias Não se excluem o giro dos outros 548 entre os personagens dos festejos nem mesmo os mortos e os santos com quem os foliões e os demais participantes acreditam interagir ao longo de um único giro Mais do que apenas grupo precatório do que apenas o terno ou a companhia as folias são como um todo extensos rituais de trocas sociais e simbólicas Nelas homens e divindades vivos e mortos famílias e indivíduos todos enfim se vêm articulados através de uma extensa rede em que pessoas bens e serviços morais religiosos econômicos estéticos etc são postos em deslocamento trocados dados recebidos e retribuídos Mauss 2003 A rigor um giro de folia é um longo processo festivo Pereira 2004 2011a Turner 1974 Van Gennep 1978 a A retirada que ocorre na moradia dos imperadores demarca para seus participantes o início oficial das festividades A folia exibese pela primeira vez desde o último ciclo festivo diante dos convidados Os organizadores da festa começam a se preparar dias semanas meses e até anos antes da sua realização Dinheiro é economizado e mantimentos são estocados Além disso redes de auxílio mútuo são costuradas e recosturadas de modo a garantir a mão de obra necessária à produção das festividades Durante a retirada um jantar é oferecido aos convidados No final diante do altar preparado para entronar o santo padroeiro da festa cantos são realizados para que os foliões recebam das mãos dos imperadores os principais objetos cerimoniais de um giro a bandeira as toalhas e os instrumentos musicais Pereira 2011b b O giro propriamente dito pode ser descrito como a principal atividade dos foliões A jornada define por excelência a festividade Um devoto ao ser questionado nunca terá dúvidas em dizer a festa começa quando o giro começar Realizada durante um três seis ou nove dias a jornada é uma sucessão de visitas e pousos realizados nas residências dos devotos Ali os foliões cantam e brincam para abençoar os moradores e receber em troca oferendas diversas Intercalada às atividades nas casas há também o deslocamentos por estradas trilhas rurais ou ruas de pequenos centros urbanos Um giro urucuiano tradicional aquele que dá gosto segun do os foliões é feito a cavalo Mas a depender das distâncias que se quer percorrer as viagens também podem ser feitas a pé ou em caminhonetes Além de adentrar as casas dos devotos os foliões também passam por ce mitérios e igrejas entendidos cada um deles como a morada dos mortos e a morada dos santos c A entrega é o momento em que depois de viajar com os tocadores e cantadores a folia retorna à casa dos imperadores para ser entregue a eles Ao contrário da retirada que conta com poucos convidados geralmente vizinhos e parentes dos organizadores da festa e ao contrário do giro que o giro dos outros 549 ocorre com os foliões e um número restrito de acompanhantes o encerra mento das festividades destacase pela presença de inúmeros participantes Ápice do processo festivo a entrega propõe uma abertura quando a moradia dos imperadores deve ser preparada para receber um número potencialmente infinito de convidados Ali como assegura a sabedoria compartilhada pelos devotos todo mundo pode entrar para rezar comer beber brincar e dançar A entrega dividese em algumas atividades centrais a chegada dos foliões o almoço ou jantar oferecido aos convidados a reza da ladainha a entrega da folia e a despedida Em geral o evento termina com um grande baile As folias urucuianas são verdadeiras festas em e do movimento3 Em duas direções concomitantes As folias são festividades que vão ao encontro das pessoas Centrados na viagem dos foliões os giros implicam uma saída de um lugar familiar a casa do imperador a passagem por lugares dis tantes as casas de outros moradores igrejas e cemitérios e um retorno final ao mundo familiar onde tudo começou a casa do imperador4 Através dos deslocamentos os santos padroeiros dirigemse à moradia dos devotos para o estabelecimento de um tempo extraordinário ver Brandão 1981 A expansão do sagrado no entanto articulase com diversos momentos de contração As festas também se estruturam por meio do deslocamento dos devotos ao encontro do seu santo padroeiro O importante da perspectiva de quem vai para uma folia é a passagem do ponto de partida da rotina até sua ruptura através de uma transposição espacial As pessoas saem de suas casas e realizam deslocamentos para um lugar que se transforma no território festivo propriamente dito Os movimentos de contração e expansão inauguram um período de fartura de gente de bens econômicos e da presença do sagrado Essa nova qualidade de tempo como no caso das festas do divino descritas e analisadas por Contins e Gonçalves 2008 tem consequências significativas sobre a vida individual e coletiva dos devotos 16 As trocas são mais intensas os espaços se condensam e os encontros tornamse muito mais frequentes A exemplo do que ocorria com as variações sazonais na sociedade esquimó analisadas por Mauss 2003 as folias estabelecem ao longo do período de sua vigência uma visão distinta acerca da vida das pessoas e das relações entre elas O tempo dos festejos em oposição ao tempo cotidiano vem a ser marcado por um estado de exaltação religiosa contínua A vida ganha um brilho diferente e as oposições entre o alto e o baixo o passado e o presente o nós e os outros a casa e a rua homens e mulheres formalidade e informalidade entre outras são parcialmente desfeitas ou pelo menos momentaneamente mediadas Pereira 2011a o giro dos outros 550 Os giros são estruturados segundo um profundo sentido de reversibili dade Cada folia é a reiteração necessária por meio de dons e contradons de uma relação que se pensa e se quer eterna entre santos e devotos Num estudo sobre os festejos dos Reis realizados numa comunidade localizada na cidade do Rio de Janeiro Daniel Bitter 2008 propõe que o ato de co memorar não é apenas um gesto de lembrar mas principalmente o de recuar de certo modo ao ponto original de fundação da ordem humana ao plano oculto e invisível do universo 48 A memória não é neste contex to simplesmente uma função psicológica mas emerge como instrumento mediador que permite o acesso a domínios distantes do mundo cósmico Vernant 1990 O caráter cíclico das festividades urucuianas mantém inúmeras se melhanças com suas congêneres cariocas As festas realizam um retorno renovado às origens da criação onde os devotos se encontram não apenas com os santos mas também com as circunstâncias e forças que produziram e mantêm em pé o mundo social e cosmológico As festividades por esta razão são sempre as mesmas quando e onde quer que sejam realizadas Segundo dizia um cantador a folia é uma só A folia dos Três Reis é só os Três Reis Tem muita folia no mundo porque os imperador é muito E não dá conta pra sair pra todos os imperador do Brasil todo Então cada um tem seu terno Mas onde se encontra todo mundo os folião é o mesmo é um só o terno de folia é sozinho do mundo inteiro é um sozinho Entrevista Arcísio UrucuiaMG O ímpeto cíclico e atemporal das folias urucuianas não parece no entanto ser capaz de apagar na percepção dos devotos o reconhecimento das suas transformações e diferenças através do tempo e ao longo do espaço Cada retorno às origens da criação é também responsável pela realização de uma festa distinta única Os empreendimentos festivos produzem e também são produzidos pela diferença Um giro de folia a partir de um determinado ponto de vista é sempre um evento singular às vezes construído às expensas da opinião negativa a respeito de outro Dizia um devoto Não é todos os imperador que faz isso não Tem uns aí que faz a janta mas só serve na mesa dos folião É maneira deles economizar na saída né Não gastar os recursos da festa né Mas isso não tá certo não Meu sistema aqui é diferente Os folião come na mesa mas quem quiser pode servi também Depois que eles levanta tá aberto pra todo mundo Pode servi à vontade porque graças a Deus e os Senhor Santo Reis nunca faltou nada pra ninguém A gente tá fazendo o giro dos outros 551 uma coisa de devoção né A gente recebeu um milagre nóis tamo cumprindo um voto Não pode ficar guardando É pouquinho que a gente dá mas sempre sobra graças a Deus João Bertoldo Sons do Urucuia5 Daí o vívido interesse dos participantes em comparar avaliar julgar e classificar os diversos giros em atuação Não há atividade que mobilize mais os devotos urucuianos do que conversar a respeito das festas realizadas ao longo de um ano ou que marcaram suas lembranças Embora no limite as folias sejam pensadas pelos seus participantes como reatualizações de uma única folia original aquela ensinada pelos Magos há o reconhecimento de que os grupos sociais por detrás de sua produção são outros de que os interesses dos atores são diferentes e de que cada uma delas também vai produzir suas próprias histórias fatos ou feitos extraordinários O capitão e o fundamento Nas festas o folião é o especialista ritual responsável pela realização das jornadas Não há folia que ocorra sem sua presença Embora seja possível ainda que pouco provável um festejo ser realizado sem um patrocinador instituído o imperador é impossível imaginarmos sua execução sem a figura do cantador e tocador integrante dos ternos de folia Era o que me dizia certa vez um destes personagens Por isso chama folia porque arreúne aqueles homens com aqueles instrumen to tocando e cantando com aquela multidão acompanhando Aí se chama de folia É tanto que tem os folião tem oito dez folião Aquele que tá com toalha se chama de folião aquele que tá com os instrumento que canta que brinca que tá com a toalha que tá com a responsabilidade duma folia aí virou uma folia E aquele que acompanha uma folia com obediência ele se torna um folião também É por isso chama de folia A companhia ajuda todo mundo é folião também todo mundo tá acompanhando a folia Agora tem os responsável aí chama de folia Porque se fosse só reza e não tivesse ninguém pra cantá não falá do santo cantá os versos cantá o passado como é que foi a viagem dos Reis Magos de Oriente a Belém como voltaro aí é só reza vamo rezá pros três Reis Magos Mas se sair cantando e tocando é folia A tradição é essa É folia Entrevista Zé Wilson UrucuiaMG Segundo meu interlocutor todos que saem no giro são foliões em po tencial ainda que alguns o sejam mais do que outros O cantador e tocador o giro dos outros 552 de fato e por direito é aquele responsável por lembrar através de certas atividades específicas o tempo dos Santos Reis A memória vivida do tempo dos Magos aquilo que define a folia em oposição a uma simples reza ao mesmo tempo em que distingue seus participantes é conhecida pelos devotos como o fundamento A noção implica a própria ideia de efi cácia Tambiah 1985 Mauss 2003 O fundamento está presente nos arte fatos religiosos a bandeira é o fundamento a toalha tem fundamento a viola é do tempo dos Reis Magos nas falas padronizadas nos gestos ri tualizados nos comportamentos observados perpassando todos os domínios da festividade A noção evoca o sagrado das formulações durkheimianas o centro irradiador em torno do qual gravita um grupo de crenças e de ritos um culto particular Durkheim 200025 Uma folia sem fundamento não pode ser considerada uma folia porque seria incapaz de realizar seu objetivo de estabelecer as trocas de dádivas entre homens e santos Pereira 2004 2011a Na linguagem dos devotos o fundamento pode ser traduzido como uma coleção de saberes relatos bíblicos mitos narrativas de casos etc que os foliões e devotos precisam aprender e resguardar de modo a garantir a reali zação correta das festividades6 A noção estabelece os parâmetros mínimos a respeito do que deve ou não ser feito durante uma jornada Conhecimento considerado primordial absoluto e oriundo de um espaçotempo imaginá rio o fundamento remete às ideias de fundação base sustentação além de ser derivado daquilo que é fundante fundador original e primevo Pereira 2004 2011a Também denominado doutrina sentido ou seguimento o conceito articula a unidade das folias no mundo reforçando seus laços primordiais com antigos foliões e com o evento mítico conhecido por to dos os devotos da viagem dos Reis Magos em direção a Belém para adorar o Menino Jesus7 Não se trata apenas de cantar os reis ou viajar com fé O fundamento envolve igualmente seguir o exemplo oferecido pelos santos A semelhança entre o que teria sido feito e o que se faz é um dado primordial Era o que dizia um capitão mineiro A gente tem as parte que a gente canta tem aquelas ramagem todo certo que é o que a gente aprendeu dos mais velhos Então às vezes quando a gente tá cantando num agradecimento numa casa a gente inventa verso mas numa apresentação sempre é os verso que foi dito pela época dos Reis Vem da época do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo não é isso Porque quando os Reis saíram eles saíram pra poder fazer uma visita ao Menino Jesus Depois da visita é que eles tomaram o nome de foliões e saiu no mundo girando com a folia É uma tradição que vem desde os Três Reis Magos Corrêa Marchi Saenger 2002160 o giro dos outros 553 O fundamento enquanto saberfazer festivo ensinado pelos Magos precisa ser compartilhado por todos os participantes de uma folia do contrário não haveria como a festa ocorrer8 No entanto o conhecimento detalhado e aprofundado do repertório de histórias e exemplos que sus tenta a realização das festividades é atributo principal do capitão O líder do grupo de cantadores e tocadores o chefe dos foliões é o espe cialista que sabe mais do que todos os outros como e porque se faz uma festa Durante meu trabalho de campo pude perceber como os capitães urucuianos gostavam de me narrar pedaços compridos da história mítica dos três Reis Magos e descrever eventos supostamente ocorridos que comprovassem o poder religioso das folias As falas eram uma maneira de legitimar sua condição de líder festivo um modo de revelar seu esforço no sentido de adquirir o conhecimento eu pelejei pra aprender e uma forma de garantir minha correta compreensão do fundamento O sentido da folia é esse aí Narrar as origens da folia no mundo e descrever os fatos extraordinários que comprovam sua eficácia também tinham o papel de designar o seu sentido primeiro sua direção e rumo mais importantes Falar do fundamento é dizer o que a festa é e como deve ser feita além de indicar o porquê da sua existência O capitão urucuiano também é aquele em quem se reconhece uma capacidade incomum de reproduzir os versos necessários à condução dos reis nome dado aos cantos cerimoniais que tornam possíveis as atividades mais importantes de uma folia o termo reis também evoca seu mito de origem afinal foram os Reis Magos que inventaram a festa Para reali zar os cantos os líderes dos cantadores e tocadores precisam conhecer as tabelas de folia conjunto de textos poéticos em forma de versos rimados transmitido através da literatura oral ou por meio de pequenos cadernos que circulam entre os devotos Os versos seriam baseados em certos livros sagrados como a Bíblia ou o Livro do Oriente este escrito na época dos Magos9 As tabelas encarnariam o fundamento não só porque trazem em seu conteúdo as narrativas versificadas dos mitos que explicam a origem das festas mas principalmente porque contêm em sua própria forma o testemunho do poder inventivo dos santos quando realizaram sua viagem os Magos também cantavam versos Os textos são classificados de acordo com as diversas etapas do processo festivo Há pelo menos 14 conjuntos de tabelas conhecidas para a retirada para as visitas para a entrega etc As tabelas garantem que os demais foliões sejam considerados os auxiliares do capitão durante as atividades festivas O conhecimento dos textos exige que cantadores e tocadores sigam rigorosamente as ordens do seu líder ao longo das apresentações ainda que alguns possam sempre o giro dos outros 554 fora deste contexto e de modo reservado discordar dele Era o que me dizia certa vez um folião de Silvianópolis sul de Minas Gerais Na cantoria o que o mestre canta lá na frente eu tenho que repeti o que ele falou tenho que repeti igualzinho Nem que ele teja xingano o dono da casa não que eles faz isso só de comparação eu tenho que cantá Depois eu posso i até o dono da casa e pedi desculpa essas coisa Mas na hora eu tenho que cantá Minha obrigação é segui o guia na cantoria Entrevista Tião SilvianópolisMG Segundo a lógica do fundamento o capitão ocupa necessariamente o primeiro plano da cantoria Neste sentido ele também é o guia dos foliões aquele que aponta caminhos indicando como e quando as coisas devem ser feitas Aos demais cantadores cabe repetir ou responder os versos que aquele proferiu Por isso também alguns deles são nomeados aju dantes de guia ou contraguias os primeiros os auxiliares imediatos do cantadorchefe os segundos aqueles que cantam depois reiterando os versos entoados10 O fundamento ainda legitima outros aspectos da autoridade do capitão Na medida em que o repertório da doutrina também abarca narrativas de acontecimentos que dão legitimidade a certas regras estabelecidas conhe cer um grande número de histórias ou causos contribui para que uma liderança possa comandar o comportamento dos seus ajudantes controlar o uso de bebida alcoólica apaziguar eventuais conflitos e exigir o respeito a certos padrões de conduta Pereira 2011a11 Segundo alguns capitães por exemplo o sentido ensina que os foliões durante as jornadas não carreguem mulheres na garupa dos seus cavalos A autoridade da doutri na está ancorada na história dos Magos e nos exemplos retirados de casos supostamente ocorridos e testemunhados guardados e retransmitidos pelos devotos Dizia um antigo capitão urucuiano Tinha um folião Ele saiu mais três companheiros Era folia de quatro folião só Num dia ele deu garupa para uma mulher No que ele tava indo eles entraro numa grota assim funda Quando saiu ele já tava sem voz Os folião num podia mais fazer viagem Não pode botar mulher na garupa não Nem que seja a mulher do folião não pode Tem exemplo do santo Caderno de campo Manoel de Oliveira UrucuiaMG Responsável por liderar o trânsito entre diversos domínios sociais e cosmológicos o foliãochefe incorpora o fundamento para se transformar na face visível do terno A noção institui o capitão como o principal mediador o giro dos outros 555 da folia em relação aos santos para quem os giros são devotados aos impe radores para quem os foliões trabalham aos moradores a quem os foliões visitam durante o giro aos acompanhantes com quem os foliões convivem durante o giro e a outros tipos de interlocutores tais como os organizadores de um evento folclórico que ocorre fora de um giro O sistema de cada um Ao final de um giro temporão de nove noites um capitão urucuiano desenten deuse com um de seus foliões Naquela manhã de maio de 2008 o tocador pediu dinheiro emprestado ao imperador para resolver assuntos pendentes na cidade O dono da festa respondeu que daria se tivesse e solicitou que sua irmã fosse ver se havia uns trocados no quarto A situação em si mesma parecia constrangedora Em Urucuia assuntos de dinheiro raramente são tratados em público diante de outras pessoas Pedir emprestado na frente de gente coloca aquele para o qual a solicitação é dirigida em posição difícil para eventualmente recusála O capitão que assistia a tudo resolveu então entrar na conversa O foliãochefe dizia não achar correta a atitude do tocador Suas razões no entanto pareciam outras mais do que uma simples preocupação com a etiqueta cotidiana das pessoas A folia reiterava é uma coisa séria Os foliões não fazem o giro por dinheiro A devoção aos santos e o sentido do fundamento são seus guias durante as jornadas Indiretamente o capitão insinuava que o empréstimo solicitado era apenas uma maneira disfarçada de o folião exigir compensação financeira por seus serviços Nada mais grave tanto do ponto de vista do acusador como do acusado O tocador contrariado respondeu rispidamente antes de ir embora não é dado não Tô pedindo emprestado Os presentes que assistiram a toda a cena não deixaram de fazer suas críticas à atitude do tocador havia decerto alguma razão na fala do capitão No entanto o próprio líder cerimonial também foi criticado por ter falado com ele naquele tom na frente de todos Segundo uma etiqueta várias vezes enunciada pelos devotos a autori dade de um capitão precisa ser exercida por meio de uma conversa reservada entre ele e o seu ajudante Certa vez um cantador me contava a história do seu tio com quem começou a foliar ainda menino e de quem guardava a memória de ser um ótimo chefe de folia Além de ter o conhecimento litúrgico do sentido seu parente havia construído para si mesmo um sistema capaz de agradar os tocadores A fala do meu interlocutor não desconhecia o valor da autoridade mas destacava que ela pode e deve ser exercida de o giro dos outros 556 modo distinto por diferentes capitães O poder dos chefes não se baseia somente no conhecimento religioso acumulado através de anos e anos de aprendizado e prática Não basta noutros termos encarnar a doutrina fazse necessário também saber como colocála em operação Dizia meu interlocutor Meu tio que fazia direito O sistema dele era bom Ele chamava a gente num canto e falava assim cê tá gostando da mocinha né meu filho Então por que cê não deixa pra depois de tirar a toalha Daí você namora Espera um pouquinho Vai só cozinhando agora Isso que era legal Não tinha essa de ficar cobrando na frente dos outros não Caderno de campo Edvar UrucuiaMG Um capitão um imperador ou mesmo um simples morador que tem o seu jeito de receber uma folia podem ter modos próprios de conduzir as festividades distintos de outros capitães de outros imperadores de outros moradores A universalidade e a impessoalidade evocadas pela noção de fundamento têm como contraponto então a ideia geral de que as folias são marcadas por diversas singularidades Uma festa comandada por uma pessoa ou realizada por um grupo familiar por uma comunidade de vizinhança noutro município ou mesmo num estado distante vai ser necessariamente di ferente No limite uma folia pode até estar sujeita a inúmeras transformações através dos tempos Os antigos por exemplo faziam festividades que se distinguiam daquelas realizadas pelos novos Do meu caderno de campo Ontem uma patrocinadora de folias me falava que os foliões mais antigos não se cansavam facilmente Na casa de seu pai uma vez um terno passou dois dias e não parou de cantar Hoje folião só tá dormindo no pouso Ela também disse que no giro de antigamente havia mais respeito porque mulher não andava acompanhando a folia O sistema de hoje é tudo diferente concluiu Caderno de campo UrucuiaMG Na fala urucuiana o sistema aparece como um contraponto à ideia de fundamento para explicar aos foliões e devotos os vários modos de se fazer folia e as razões dessa diversidade12 As marcas distintivas de cada festa são testemunhos das diferenças estabelecidas entre pessoas e grupos os foliões novos como no caso acima são mais moles e menos respeitosos se comparados aos antigos Enquanto o fundamento é compartilhado por todas as folias os sistemas sempre no plural operam discriminando e divi dindo Há o sistema deles lá e o nosso aqui As diferenças percebidas e reconhecidas seriam então frutos da ação humana Se o fundamento é por o giro dos outros 557 princípio atividade divina ou divinizada foram os Reis que o inventaram o sistema parece evocar o trabalho dos homens sujeito às contingências de toda ordem Seu tempo é o tempo da humanidade em contraponto à imutabilidade do mundo dos céus Há o passado o presente e o futuro dos sistemas Eles nascem crescem envelhecem e finalmente morrem eles estão sempre se modificando Em conjunto as noções de fundamento e sistemas garantem que fes tas e produtores possam ser comparados avaliados e julgados13 Um jovem cantador urucuiano me contava aos risos uma experiência que teve junto às folias do Acari localidade próxima a Urucuia É folião com borra demais Eles andam o dia inteirinho Cai um aqui de bêbado ou cansado e já tem outro ali para ocupar seu lugar risos O sistema deles é muito diferente14 Meu interlocutor estava claramente fazendo chacota dos can tadores de lá No entanto no momento de destacar e comentar a atuação distinta de outros foliões ele nunca deixou de reconhecer a unidade da doutrina Os tocadores do Acari também fazem folia Um devoto pode argumentar que um capitão urucuiano tem um sistema diferente do de outro capitão formulação justa e bem entendida por todos No entanto o mesmo devoto nunca poderia dizer que o fundamento de um capitão não é igual ao de outro com o risco de insinuar que um dos dois não faz folia do jeito certo o que é outra forma de dizer que um dos dois não faz folia de forma alguma Reconhecer no outro uma forma diferente de se fazer folia também é uma maneira de produzir o seu próprio sistema Verdadeiras linhagens podem assim ser construídas e percebidas Certa vez um tocador me dizia que um dos capitães mais conhecidos de Urucuia foliava influenciado pelos ensinamentos de um antigo guia já falecido A fala indicava uma profunda identificação entre os cantadores por meio do sistema Ivan aprendeu cantar folia mais o velho Manezim É cria do Mazenim É do sistema dele A leal dade a um capitão a um terno da minha família da minha localidade da minha cidade é no limite a lealdade a um sistema que eles podem representar em oposição a outros Dizia um cantador Inclusive nessa idade de 15 ano eu saía junto mais ele meu tio Aí quando chegou um certo tempo aí separou Aí o Jones ali fez um terno e ele meu tio ficou com outro Aí eu era do terno de lá Mas daí como o Jones é mais perto eu vou ficar mais perto Fiquei mais o Jones aqui E aí tamo aí até hoje E não saio fora do Jones não Até ganho convite pra ir em outras folia Quando é época de folia aqui chega pra mais de cinco convite aqui O vem ajuntá mais eu Vem ajuntá mais eu Não cê é mais eu Eu falo não é aqui mais o o giro dos outros 558 Jones Que já tem muito tempo que sai então se um fazer uma falhinha e o outro perceber ele encobriu aquela falha ali Os outros que fica de fora nem sabe daquela falha ali Que nós já tamo treinado nesse sentido né E se eu sai lá com outro eu completamente vou sair emprestado Chega lá se tiver qualquer uma falha não tem como eu cubri porque eu tô emprestado não sei como que é o sistema deles Aí vai fazer feio né Aí eu continuo aqui mais o Jones Entrevista José Rocha Chapada GaúchaMG Na prática as coisas consideradas como fundamento e sistema nun ca podem ser determinadas de uma vez por todas A articulação entre as noções parece ser mais importante do que os elementos que elas são contingencialmente capazes de abarcar Aquilo que um devoto diz ser a doutrina da folia pode ser reinterpretado como uma singularidade de um terno por outro E viceversa Numa ocasião um capitão urucuiano justificava o fato de os seus foliões não utilizarem a rabeca durante as cantorias É do sistema antigo Hoje usa mais sanfona A observação parecia banal Cantar o reis é do sentido da folia mas cantar fazendo uso ou não de uma rabeca é da ordem do sistema Meses depois no entanto outro capitão me diria algo diferente É a viola a rabeca e a caixa Folia é só esses três instrumento que vêm da época dos Reis Magos Violão sanfona cavaquinho é coisa que o povo foi inventan do mas não é do sentido não daquela mensagem que os Reis deixou pra nós Caderno de campo Urucuia O que acontece com um instrumento musical ocorre com outros ele mentos da folia15 Posses inalienáveis dos capitães as tabelas expressões maiores do fundamento raramente são emprestadas ou dadas a outros foliões Sua transmissão está intimamente relacionada à manutenção e à atu alização de laços familiares de compadrio ou de amizade Em determinados casos a circulação dos textos pode inclusive contribuir para a constituição de novos vínculos sociais Do meu caderno de campo Não são incomuns visitas mútuas entre foliões para trocas de saberes e expe riências Um folião da Vereda Grande louvava o fundamento de um conhecido capitão do distrito sede de Urucuia Em 2007 ele foi à propriedade do chefe dos foliões para que este lhe ensinasse versos de uma folia Dizia Eu conhecia muito ele De ouvir falar né Lá na Vereda Grande o pessoal sempre falava dele que conhece muitas tabelas de Reis de todos os santos Diz que ele aprendeu tudo lendo o Livro do Oriente até quando estava em cima do cavalo Daí eu o giro dos outros 559 fui lá e pedi pra ele uma tabela para saudação do altar de São Sebastião que eu quero aprender Lá na Vereda tem muito imperador que pede pra gente can tar Então eu quero aprender pra cantar também Caderno de campo 2008 A transmissão dos textos não ocorre sem que algumas modificações sejam realizadas Neiva 2007 num curto mas interessante estudo sobre permanências e transformações nos modos de se pensar e fazer festas de folia no Entorno de Brasília argumenta que as tabelas ao serem repassadas de cantador a cantador de capitão a capitão sofrem inúmeras alterações adaptações ortográficas supressão ou inserção de versos etc As mudanças ao que parece não são entendidas pelos devotos como um desafio ao funda mento Há o reconhecimento por parte dos foliões de que o texto versificado é apenas um guia para a atuação ritual O capitão durante as cantorias é livre para fazer alterações diversas Era o que um folião natural de Bon finópolis no noroeste mineiro dizia à pesquisadora O guia tem que ter sempre aquele padrão de tabela Não precisa ter as tabelas decoradas não precisa ter tabela exata Igual meu tio diz que não tem tabela mas ele puxa uma tabela ele sabe fazer a tabela Isso tá na cabeça dele ele já sabe a ordem então ele inventa os versos de acordo com aquela ordem Neiva 20074 A ordem faz referência à sequência do que deve ser cantado durante uma apresentação Em Urucuia o canto da retirada da folia por exem plo é dividido ao modo dos ritos de passagem em três etapas distintas o cabeçalho onde são apresentados os personagens e anunciase o que se vai fazer no rito a passagem do retrato das toalhas e dos instrumentos por meio da qual é ritualizada a entrega destes artefatos aos foliões e a despedida quando os rituais são finalizados e os cantadores anunciam o início de sua viagem Pereira 2011b As tabelas neste sentido preve em os versos necessários a cada uma destas fases Podese cantar o que o texto ensina sem medo de errar No entanto há muitas brechas para a improvisação que diz respeito aos nomes dos moradores à presença de outros santos no altar etc Pereira 2001a Nas cantorias o fundamento emerge como um conjunto estruturado de indicações as fases do ritual O sistema pelo contrário é o espaço aberto para a atividade criativa do cantador Não se trata de imaginarmos que o universo das folias urucuianas seja fracionado por inúmeras religiões particulares cada qual com sua crença sobre o que deve ser um fundamento ou um sistema Mais do que estabe o giro dos outros 560 lecerem concretamente as diferenças entre aquilo que deve ser o mesmo para todas as folias e aquilo que pode mudar as noções garantem a própria possibilidade de se pensar o que é o mesmo e o que é o mudado nos cantos e nas viagens dos tocadores A relatividade entre os conceitos um apontando para a totalidade outro destacando a multiplicidade garante a constituição de uma base sobre a qual as festas podem ser simultaneamente unificadas e diferenciadas Os sistemas constituemse a partir do fundamento que permite uma comparação com outro sistema Minha festa é diferente daquela festa poderia dizer um devoto destacando que a festa é o ponto comum entre dois eventos desiguais O fundamento por outro lado existe como o devir festivo a totalidade que só pode ser alcançada através das diferenças Como sabem todos os devotos urucuianos não há folia dotada de sentido que ocorra senão por meio da singularidade do sistema de um único capitão ou imperador Chegando numa folia com passos bem desajeitados Na noite de 16 de janeiro de 2008 os foliões do distrito de Vereda Grande deram início ao agradecimento da mesa canto obrigatório de louvação oferecido em retribuição aos alimentos distribuídos pelos donos da festa durante o encerramento de uma folia Ao meu lado Gaspar nome fictício um dos mais renomados capitães do distrito sede de Urucuia franziu a testa enquanto ouvia atentamente a apresentação Como parte da doutrina o agradecimento da mesa é realizado por todas as folias urucuianas Pe reira 2013 Naquela noite entretanto meu companheiro achou a cantoria um tanto diferente Em voz baixa quase num muxoxo ele me confessou Esses instrumentos tão meio desafinados né Logo depois arrematou O sistema deles aqui é no sistema velho de afinar a viola em meiaquitarra Não tem peito que aguenta O estranhamento não parou por aí Por volta das 22h os foliões da Ve reda Grande iniciaram a entrega da folia que consiste na realização de um canto por meio do qual são finalizadas as atividades festivas Segundo as regras estabelecidas pelo fundamento o capitão e seu ajudante ento avam os versos da tabela da entrega que eram prontamente repetidos pelo contraguia e seu ajudante Os textos eram cantados segundo uma métrica bem estabelecida ver Chaves 2006 Além disso eles faziam uso de expressões que destacavam a distinção dos donos da casa e dos próprios tocadores senhor senhora nobre rainha ou rei Pronomes de tratamento incomuns na fala cotidiana tu vossa ou vós também o giro dos outros 561 eram entoados Os versos ainda incluíam os nomes próprios daqueles para os quais se cantava ao invés de apelidos muito usados no dia a dia A língua dos reis materializada na tabela evocava assim a formalização Pereira 2011a Os proferimentos dos versos e as respostas que repetiam o que foi dito pelo capitão destacavam a redundância dos cantos garantindo que as mensagens transmitidas fossem ouvidas e entendidas pelos devotos ver Leach 1966 Segue um trecho da entrega O meu nobre imperador Com sua nobre rainha 2x Vamos entregar a folia Na porta desta lapinha 2x Deus vos salve imperador Seu retrato bandeira aqui voltou 2x Tava cumprindo essa promessa Nesse mundo de meu Deus 2x Os cantadores e tocadores permaneceram em círculo durante toda a cantoria Num texto anterior Pereira 2011b eu argumentei que a roda dos foliões possui qualidades sagradas estabelecendo em associação com o altar e a bandeira dos santos os limites simbólicos do conjunto festivo ver Diagrama 116 Estar no interior ou no exterior do círculo dos cantadores é estar de alguma maneira próximo ou distante do fundamento Durante a cantoria ninguém que permaneça fora da área de influência da roda dos foliões pode interferir no andamento dos cantos sob pena de grave ameaça à sua eficácia Eminentemente relacional o círculo sagrado dos foliões ganha inteligibilidade em confronto com o exterior onde falas e gestos informais são permitidos No entanto tão logo os cantadores e tocadores da Vereda Grande se prepararam para realizar uma saudação individual do altar Gaspar percebeu que eles não entoavam versos que entedia imprescindíveis ao encerramento da entrega17 A tabela ali era diferente Influenciado pelo álcool meu acompanhante começou das margens da roda de foliões sozi nho e em voz alta a proferir os versos que faltavam O reis como diriam os devotos descontrolou Gaspar cantava alto e convenceu talvez por sua fama de bom capitão os foliões do terno da Vereda Grande que já se preparavam para sair a acompanhálo O chefe dos cantadores locais também não deixou de repetir ainda que tropegamente o que seu rival urucuiano entoava o giro dos outros 562 O reis que ainda se seguiu por longos minutos redundou estranho e terminou bastante desorganizado Irritado com a intromissão indevida o guia da Vereda Grande desculpouse ironicamente com a audiência assim finalizada a apresentação É a gente morre e num sabe tudo Pouco tempo depois não sei precisar quanto Gaspar foi chamado a um canto por um ami go que tinha vindo com ele Antes que eu pudesse chegar perto para saber o que estava acontecendo ambos partiram sem se despedirem Dias passados quando tive oportunidade de reencontrar o capitão ele não tocou no assunto Quando comentei sobre o que ocorrera Gaspar respondeu lacônico destacan do que cada lugar tem um sistema diferente Ao que parece ele sabia que sua performance na Vereda Grande não agradara a absolutamente ninguém Não era a primeira vez que observava um folião assistindo à apresenta ção de outros foliões para criticála Entretanto o mais comum era que meus interlocutores agissem com alguma discrição e cuidado para que os alvos dos seus comentários não pudessem escutar A falação como prática cotidiana de falar mal de alguém ou grupo Dainese 2011 embora presente não se faz evidente durante as apresentações rituais sendo realizada nas imediações espaciais da cantoria ou após ela ser efetuada Apenas em momentos de grande tensão quando alguém diz o que pensa para que o outro ou outros possa possam ouvir as críticas são feitas abertamente antecedendo ou mesmo exigindo brigas que estão a ponto de emergir18 Do ponto de vista formal a falação também não parece competir diretamente com o canto entoado na roda dos foliões Enquanto a primeira é quase um muxoxo informal o que não significa ausência de regras Comerford 2003 as cantorias bastante formalizadas precisam ser ouvidas e entendidas O fundamento exige regras específicas para que seja bem entendido pelos devotos Diagrama 1 A roda dos foliões e o movimento dos versos Versos CapitãoGuia Ajudante Ajudante do Contraguia Contraguia o giro dos outros 563 Durante sua realização o reis institui o capitãoguia como um centro irradiador do fundamento O canto transforma o líder dos tocadores num canal privilegiado de ligação com o alto onde se encontram as divinda des católicas e com o passado mítico de onde provêm as festividades19 Assim mais do que colocar frente a frente duas formas distintas de se fazer folia Gaspar produziu uma duplicação espúria do sagrado Diagrama 2 Na medida em que o legítimo centro irradiador dos versos o capitão da Vereda Grande foi abertamente desafiado outro centro foi criado Se o reis precisa estabelecer uma unidade que abarca e apaga as diferenças o duplo assim criado anulava a proposta original Não por outra razão o canto terminou descontrolado os foliões da Vereda Grande não sabiam mais o que fazer Um jogo de enquadramentos Em Urucuia o reconhecimento da diversidade dos sistemas desempenha um papel fundamental na constituição das sociabilidades festivas A ideia de que uma folia pode ser diferente de outra explica o interesse dos cantadores em acompanhar a realização de várias festas produzidas por diferentes per sonagens Através da circulação os capitães podem aprender novos cantos ou tabelas afinações e formas de se comportar durante os cerimoniais O mesmo ocorre com imperadores e moradores que movimentandose de folia em folia são capazes de aprender com outros algo novo e bom para adicionar às suas festividades Um imperador me explicou certa vez que ampliou em quase três metros quadrados a área da sala de sua casa para Diagrama 2 A duplicação do centro irradiador do fundamento Versos CapitãoGuia Ajudante Ajudante do Contraguia Contraguia Gaspar o giro dos outros 564 que os foliões e os devotos tivessem mais conforto As mudanças no entanto não obedeciam apenas a razões da ordem prática pra ter mais espaço As casas bem equipadas para receber foliões e devotos são lembradas e imitadas como referências de boas festas e de renomados organizadores Meu interlocutor planejou as obras em sua residência tendo como modelo a sala de um reconhecido patrocinador de folias urucuiano Você já viu a sala do Basílio Então ele é imperador forte As folias dele sempre tá assim de gente né Precisa de espaço E lá tem espaço pros foliões e o povo ficar As diferentes formas de se fazer folia também explicam as rivalidades entre foliões e ternos As disputas ocorrem em dois níveis distintos Num primeiro deles um devoto pode destacar a diversidade para escolher o tipo de folia que mais lhe agrade A afinação do Rio Abaixo é melhor para cantar do que a MeiaQuitarra um terno de folia com poucos integrantes é menos bagunçado do que outro com muitos tratar os foliões com respeito diante das pessoas é melhor do que desrespeitálos publicamente etc As avaliações nesse sentido não atentam contra o sentido da folia elas não o colocam em suspeição Ir na festa dos outros é ver o mesmo sendo feito de modo diferente Unidos pelo fundamento que lhes iguala como cantadores que viajam em nome de um santo os foliões competem por meio da diversidade Num segundo nível o devoto pode até colocar em questão o fundamen to que é apresentado por outro grupo A disputa nesses casos evoca uma competição em que não há lugar para se conciliarem diferenças A questão é da ordem do quantitativo o importante é demonstrar que se sabe mais do fundamento do que o folião concorrente Não foi outra a razão pela qual Gaspar não apenas se contentou em comentar as deficiências estritamente musicais segundo seu ponto de vista do terno da Vereda Grande como também resolveu interferir ativamente no andamento dos cantos realiza dos No primeiro caso tratavase de uma crítica ao sistema no segundo ao fundamento O que alguns chamariam de inconveniência nosso amigo resolveu entender como ensinamento Através do gesto intempestivo de adentrar sem ser chamado em uma roda de outros foliões ele estava ten tando mostrar como a cantoria deveria ser feita de acordo com aquilo que considerava ser o sentido da folia Embora força constitutiva a percepção das diferenças é um problema que precisa ser enfrentado por uma festividade pautada pelas ideias de unidade permanência e hierarquia Não há nada pior para a reputação das festividades e dos seus organizadores do que a publicização dos desacordos ocorridos entre aqueles responsáveis por produzilas Pereira 2011a 2012a Para todos os efeitos o dissenso precisa ser obscurecido durante as atividades rituais No caso das cantorias o reis propõe um único centro irradiador do o giro dos outros 565 sagrado em detrimento da diversidade de saberes festivos A estratégia não implica claro o fim das diferenças Um folião sabe e muitas vezes expressa através de muxoxos críticos ou de risadas sua opinião a respeito daquilo que acabou de ver e ouvir No entanto como ele também deve saber há a hora e o lugar para isto A ênfase na unidade ou na multiplicidade é antes de tudo um problema de contexto A questão é estabelecer mecanismos para que o registro da diferença não invada o lugar destinado ao fundamento e viceversa O caso da Vereda Grande demonstra como a emergência da dissidência no momento e em lugar inapropriados pode atrapalhar a realização das cantorias Valerio Valeri 1994 a partir de Bateson 2000 afirma que o rito se caracteriza pela presença de enquadramentos psicológicos ou sinais metacomunicativos que opõem as ações enquadradas ou postas entre aspas às ações ordinárias20 Os sinais comunicam aos participantes de um cerimonial que os elementos enquadrados são ficções atividades que não estão no mesmo plano ontológico daquilo que representam ou estão em oposição Segundo o autor os meios mais frequentemente utilizados para enquadrar um rito são a formalidade do comportamento o caráter fixo e repetitivo dos gestos cores perfumes decorações especiais rumores ou silêncios absolutos Também são acionadas línguas ou níveis especiais de uma mesma língua músicas e instrumentos específicos Todos estes meios meios de comunicação na linguagem de Tambiah 1985 podem ter ou tras funções no rito mas a sua presença é suficiente para identificar certos eventos como momentos extraordinários produzidos pela sociedade Além de assinalar aquilo que engloba o enquadramento também teria a função de isolar as impressões produzidas pelas representações da quelas suscitadas pelo mundo que permanece fora O efeito de realidade do rito sua eficácia por assim dizer estaria relacionado a um processo de obliteração Diz o autor Desta forma o enquadramento pode até funcionar como écran contra os indícios experienciais que contradizem o efeito de realidade das imagens que ele en globa quando estas imagens são particularmente evocadoras Valeri 199435521 Os enquadramentos assumem paradoxalmente duas funções contradi tórias uma assinalando que o que contém é fictício a outra fazendo esquecer que é Nas folias urucuianas os participantes têm sempre alguma consciência de que as imagens os gestos e as palavras de uma cantoria são expressões de um sistema singular único No entanto durante a execução dos cantos a experiência extraordinária do fundamento surge quando o equilíbrio entre o giro dos outros 566 as duas funções do enquadramento entre a consciência da ficção e écran contra a realidade é alterado a favor deste último Valeri 1994356 A doutrina de um único capitão noutros termos só pode ser aceita como universal quando as diferenças entre os sistemas de outros capitães são mantidas escondidas fora do quadro O enquadramento garante a aceitação quase ficcional de um modelo parcial e relativo que então se transmuta em canal de mediação com a totalidade cósmica e social Através da formalização das falas e dos gestos além do uso de artefatos sagrados as folias criam silêncios de modo a reduzir ambiguidades provenientes da convivência nem sempre pacífica das diferentes maneiras de se pensar e fazer o ritual em Urucuia As operações metacomunicativas funcionam de modo a garantir a heterogeneidade entre os domínios do fundamento e do sistema Nesse sentido a folia parece atualizar o modelo durkheimiano segundo o qual os rituais devem ser percebidos como atos coletivos respon sáveis pela produção de totalidades cósmicas e sociais a partir de proibições que visam afastar ou obscurecer as fragmentações Durkheim 200022 Nas margens temporais e espaciais dos cantos no entanto quando a informalidade substitui a formalidade a diferença ganha preeminência O dissenso não apenas é legítimo Nas conversas entre devotos ele che ga a ser desejado Um olhar através das margens com seus comentários maliciosos risos ou expressões de admiração têm o poder de estranhar e destituir o sagrado de sua aura de totalidade e imutabilidade Enquanto a cantoria produz a unidade permitindo que um sistema parcial transforme se ficcionalmente no vetor temporário de um fundamento que precisa ser o mesmo para o mundo todo a falação parte do modelo universalizado que unifica e permite a comparação entre os grupos para chegar à singularidade quando uma festa se torna diferente das outras Tratase então de levarmos a sério o valor relativo porque relacional das margens da liminaridade durante os festejos urucuianos Van Gennep 1979 Turner 1974 Noutros termos a comunidade de folias ganha inteligibilidade a partir da troca alternada e controlada de perspectivas distintas entre o olhar desde o centro sacralizado dos ritos e a visada desde suas margens onde a certeza da unidade festiva dá lugar ao dissenso e à fragmentação Num polo festivo poderíamos dizer destacase a coerência noutro a ambivalência por meio da qual é subvertido o cenário de um mundo ordenado e unificado Bakhtin 1999 Vilhena 199723 A folia é uma só mas também são várias sempre de acordo com o deslocamento dos olhares Alternando perspectivas os devotos urucuianos por um lado podem dizer parafraseando Sahlins que as coisas devem preservar alguma identidade através das mudanças ou o mundo seria um hospício 1999190 enquanto o giro dos outros 567 por outro ainda completariam e viceversa afinal a identidade só faz algum sentido num mundo de diferenças Recebido em 24 de fevereiro de 2014 Aprovado em 25 de julho de 2014 Luzimar Paulo Pereira é bolsista PNPDCapes do Programa de PósGraduação em Antropologia Social do Museu Nacional UFRJ Email mazinhop gmailcom Notas 1 Uma leitura da devoção que não restringe o conceito à pura obrigação pode ser encontrada em Menezes 2004 2 O material utilizado para a escrita deste artigo é fruto de trabalhos de campo realizados no município de Urucuia e região entre os anos de 2006 2007 2008 2013 e 2014 3 Cerqueira 2010 e Dainese 2011 destacam o papel que o movimento de pessoas palavras e coisas desempenha na constituição de formas específicas de so ciabilidade em determinadas áreas rurais de Minas Gerais As folias à sua maneira parecem potencializar e tematizar o valor dos deslocamentos no estabelecimento de inúmeros vínculos sociais e cosmológicos 4 Em Urucuia os giros de folia são dedicados aos mais variados santos do panteão católico Há aqueles realizados aos Santos Reis os mais importantes e valorizados pelos devotos a São Sebastião a São José ao Bom Jesus da Lapa a Nossa Senhora Aparecida e a Santa Luzia Todas as folias se realizam em épocas precisas de acor do com o calendário religioso que estabelece dias específicos para cada entidade 6 de janeiro Santos Reis 20 de janeiro São Sebastião 19 de março São José 10 de agosto Bom Jesus da Lapa 12 de outubro Nossa Senhora Aparecida e 13 de dezembro Santa Luzia 5 Em meados da década de 1990 as folias do distrito sede de Urucuia foram registradas através do trabalho da ONG paulistana Cachuêra O resultado desta pesquisa foi materializado em vídeo Urucuia um vão de nossas riquezas dirigi do por Angélica Del Nery e CD Famaliá Sons do Urucuia Além disso um rico o giro dos outros 568 material em entrevistas permanece guardado no acervo da ONG em São PauloSP Os registros me foram muito úteis sendo gentilmente cedidos por membros da ONG paulistana para minha pesquisa na região 6 Num texto recente Brandão aborda o tema do fundamento que ele descreve como o repertório de relatos bíblicos mitos lendas derivadas e crenças religiosas do catolicismo popular 20107677 O fundamento está sempre associado a um rito em particular Tratase de um conjunto que explica a origem acreditada do rito universal a origem e a história da prática do rito no Brasil na região e na comuni dade o imaginário de acontecimentos e casos que garantem a sua legitimidade as prescrições e proscrições rituais 20107677 7 Numa análise preliminar de um destes mitos fundadores argumentei que a ideia de fundamento tem uma relação direta com o tema da troca de dádivas entre os homens e suas divindades Pereira 2004 Vale notar que o catolicismo urucuiano assim como o de outras regiões do país ampliou e enriqueceu de detalhes uma passagem relativamente curta da Bíblia 8 Diz Brandão a respeito das folias Ao constituir o espaço simbólico da jornada dos reis a Folia transporta para dentro dele com nome e proclamações de bênçãos as pessoas os animais os objetos e as trocas do próprio mundo camponês Assim os mesmos homens do trabalho agrário cotidiano aparecem por sete dias revestidos de cumplicidade com os mitos populares de uma história sagrada que todos conhe cem por ali Na medida em que realizam a jornada e cantam de casa em casa eles reconstituem tanto essa história quando os gestos e as palavras de suas pequenas estórias tal como acreditam que tenham acontecido e tal como supõem que reprodu zem com uma fidelidade que se perde aos poucos mas que é legítima sem dúvida alguma 19814041 9 Um folião do Entorno de Brasília confirma essa versão Meu avô já cantava e o pai do meu avô cantava A tabela veio do Livro do Oriente As tabelas vieram do Livro do Oriente só que ninguém nunca viu o tal do Livro do Oriente não sabe se existiu Muita gente tem crença e eu também acredito que elas vieram ainda dos três Reis Magos só que mudou muito o tempo vai mudando e teve adaptações Neiva 20078 10 A noção de guia também parece referendada pelo mito de origem das folias Quando em viagem os Magos foram guiados por uma estrela O astro segundo interpretações nativas seria uma transmutação do Anjo Gabriel enviado por Deus para indicar os caminhos que os levariam para Belém Nesse sentido guiar não apenas evoca o deslocamento horizontal mas implica igualmente uma mediação necessária entre o alto e o baixo entre este mundo e o outro mundo do céu 11 Nesse sentido as noções de guia e capitão embora se aproximem não são necessariamente equivalentes Enquanto o capitão deve ser obrigatoriamente um guia um folião pode cantar de guia sem ser capitão porque lhe falta autoridade para mandar nos demais cantadores No limite ser capaz de cumprir o papel de o giro dos outros 569 condutor dos cantos é condição para alguém se tornar um capitão embora não seja o suficiente para concluir esta transformação 12 Ana Cerqueira 2013 apresenta a noção de sistema assim como presente entre os habitantes de um pequeno agrupamento rural do município da Chapada Gaúcha Ali o conceito da maneira como é usado cotidianamente em Urucuia define povos famílias e pessoas formam unidades intrínsecas às variáveis da sorte dos deslocamen tos geográficos e existenciais tão imprevistos quanto inevitáveis ao sistema que se dão ao longo dos ciclos de nascimentos casamentos e mortes Cerqueira 20132 13 Ao circular por outras festas e observar outros devotos os participantes dos festejos percebem que o seu jeito de fazer folia não é único mas apenas um dentre vários O reconhecimento das diferenças está na base de cálculos políticos acionados nos momentos de se exercer um sistema tanto para se estar disposto a relaxar certas regulamentações específicas como para se marcar uma posição diante de outros O meu sistema dizia um líder ritual é esse aqui Quem não gostar que vai caçar rumo com outro capitão O risco para o devoto nestes casos é ver o seu sistema associado à rígida hierarquia da imposição e ele sistemático demais Ao invés de se abrir a algum tipo de diálogo o sistemático é aquele que não se permite interagir com qualquer modelo diferente do seu 14 Os limites do sistema parecem terminar no descontrole quando uma folia dei xa de ser folia No início de 2014 os devotos do distrito sede de Urucuia comentavam a respeito de um terno que girava pelo seu pequeno centro urbano Embora o capitão fosse reconhecido como capaz de entoar diversas tabelas o grupo era criticado por andar bêbado pelas casas No limite quando se referiam ao terno como de folia invariavel mente os devotos prontamente sorriam como se dissessem terno de folia que nada 15 Um conhecido capitão da Chapada Gaúcha me disse achar errado o fato de algumas folias fazerem uso do palhaço personagens mascarados que acom panham os cantadores em suas jornadas Segundo ele o mascarado que para determinados grupos representa a figura de Herodes o rei dos judeus que tentou assassinar o Menino Jesus evocava o diabo Não é o sentido dizia Os foliões que fazem uso de palhaços no entanto discordariam veementemente do meu interlocutor como notou Daniel Bitter 2008 no caso das festas de folia da Mangueira no Rio de Janeiro Ali o mascarado também é parte do fundamento 16 A cantoria é um rito cuja operacionalidade é garantida pela dissolução tem porária das fronteiras entre o material e imaterial o corpo e o espírito a linguagem falada e a poética cantada Os gestos os posicionamentos dos corpos as manipulações de objetos sagrados e os proferimentos de palavras se misturam para produzir um enquadramento semântico em que operações metafóricas e metonímicas de contágio e de semelhança são postas em operação Pereira 2011b 17 Tratavase de hinos transmitidos através da atuação da Igreja Católica no mu nicípio Enquanto os cantadores e tocadores da sede municipal de Urucuia parecem ter adotado os cantos os grupos da Vereda Grande não o giro dos outros 570 18 Certa vez os foliões estavam realizando como de praxe sua visita a uma moradia Um folião concorrente que tinha a fama de ser encrenqueiro e beber muito estava acompanhando Numa casa o cantador criticou abertamente o canto realizado pelos foliões que estavam no giro Depois passou a criticar o capitão que segundo dizia cantava muito alto No final da visita o imperador que observava o seu com portamento chegou a ameaçálo O folião tentou contraargumentar O imperador no entanto retrucava estou pelejando com você desde que a gente saiu de casa hoje Mas cê não se ajeita O prosaruim foi aconselhado a irse embora para evitar maiores confusões Caderno de campo UrucuiaMG 19 O centro e a hierarquia também são tematizados em diversos momentos dos giros de uma folia Pereira 2011a 2012b 2013 20 Gregory Bateson 2000 defende a ideia de que a comunicação verbal humana pode operar em vários níveis de abstração Toda mensagem apresenta um nível deno tativo de conteúdo um nível metalinguístico e um nível metacomunicativo O nível metalinguístico diz respeito ao modo como a mensagem repensa a própria linguagem enquanto o metacomunicativo envolve elementos que definem a própria relação estabe lecida entre os falantes Desta maneira Bateson enfatiza que mais do que conteúdos enunciados comportam marcas enquadramentos que balizam a interação estabelecida 21 Poderseia demonstrar esta proposição analisando por exemplo os ritos má gicos nos quais a consciência do caráter fictício e em todo o caso menos real das atividades rituais se bem que inibida nunca está ausente e até influencia a crença dandolhe subterraneamente a forma Valeri 1994 Como pensa Mauss 2003 o fato de a magia ser potencialmente um embuste é parte da crença na própria magia 22 A oposição desses dois gêneros irá aliás traduzirse exteriormente por um signo visível que permitirá reconhecer com facilidade essa classificação muito especial onde quer que ela exista Como a noção de sagrado está no pensamento dos homens sempre e em toda parte separada da noção de profano como concebemos entre elas uma espécie de vazio lógico ao espírito repugna invencivelmente que as coisas correspondentes sejam confundidas ou simplesmente postas em contato pois tal promiscuidade ou mesmo uma contiguidade demasiado direta contradizem violentamente o estado de dissociação em que se acham tais ideias nas consciências A coisa sagrada é por excelência aquela que o profano não deve e não pode impunemente tocar Claro que essa interdição não poderia chegar a ponto de tornar impossível toda comunicação entre os dois mundos pois se o profano não pudesse de maneira nenhuma entrar em relação com o sagrado este de nada serviria Mas tal relacionamento além de ser sempre por si mesmo uma operação delicada que requer precauções e uma iniciação mais ou menos complicada de modo nenhum é possível sem que o profano perca suas características específicas sem que se torne ele próprio sagrado num certo grau e numa certa medida Os dois gêneros não podem se aproximar e conservar ao mesmo tempo sua natureza própria Durkheim 20002324 23 Luis Rodolfo Vilhena entende que a obra de Bakhtin destaca por meio da noção de ambivalência a capacidade da cultura popular de simbolizar a ambiguidade em situações e objetos Vilhena 199752 o giro dos outros 571 Referências bibliográficas BAILEY Frederick G 1971 Gifts and po sion the politics of reputation New York Schocken Books BAKHTIN Mikhail 1999 A cultura popu lar na Idade Média e no Renascimen to o contexto de François Rabelais São Paulo Hucitec Brasília Editora da Universidade de Brasília BATESON Gregory 2000 Steps to an ecology of mind Chicago University of Chicago Press BITTER Daniel 2008 A bandeira e a máscara estudo sobre a circulação de objetos rituais nas folias de Reis Tese de Doutorado PPGSAIFCSUFRJ BRANDÃO Carlos Rodrigues 1981 Os sacer dotes da viola Petrópolis Editora Vozes 2010 Prece e folia festa e romaria Aparecida SP Ideias Letras CAVALCANTI Maria Laura V C 2006 Carnaval carioca dos bastidores ao desfile Rio de Janeiro EdUFRJ CERQUEIRA Ana Carneiro 2010 O povo parente dos Buracos mexida de prosa e cozinha no cerrado mineiro Tese de Doutorado PPGASMuseu Nacional UFRJ 2013 O sistema da mexida de cozi nha de que riem eles Mimeo CHAVES Wagner 2006 Recebeis meu Bom Jesus com sua nobre folia re flexões sobre a eficácia do canto nas folias nortemineiras do altomédio São Francisco Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares 318199 COMERFORD John Cunha 2003 Como uma família sociabilidade territórios de parentesco e sindicalismo rural Rio de Janeiro Relume Dumará CONTINS Márcia GONÇALVES José Reginaldo Santos 2008 A escassez e a fartura categorias cosmológicas e subjetividade nas festas do divino espírito santo entre imigrantes açoria nos no Rio de Janeiro In MLVC Cavalcanti JRS Gonçalves orgs Ritos e sociabilidades festivas Rio de Janeiro Contra Capa pp 1136 CORRÊA Roberto SAENGER Juliana MARCHI Lia 2002 Tocadores ho mem terra música e acordes Curi tiba Olaria DAINESE Graziele 2011 Chegar ao cer rado mineiro hospitalidade política e paixões Tese de Doutorado PPGAS Museu NacionalUFRJ DURKHEIM Émile 2000 As formas elementares da vida religiosa São Paulo Martins Fontes LEACH Edmund 1966 Ritualization in man In Sir Julian Huxley org A discussion on ritualization of behav ior in animals and man Philosophical Transactions of the Royal Society of London Series B 251772403408 London Royal Society MAUSS Marcel 2003 Sociologia e an tropologia São Paulo Cosac Naif MENEZES Renata de Castro 2004 A dinâmica do sagrado rituais socia bilidade e santidade num convento do Rio de Janeiro Rio de Janeiro Relume Dumará NEIVA Ivany Câmara 2007 Devoção na folia comunicação popular perma nências e transformações Intercom Sociedade Brasileira de Estudos Inter disciplinares da Comunicação XXX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação Santos Disponível em httpwwwadteventocombr intercom2007resumosR01952pdf Acesso em 19082008 PEREIRA Luzimar Paulo 2004 Os an darilhos dos Santos Reis um estudo etnográfico sobre Folia de Reis bairro o giro dos outros 572 rural e sistemas de prestações totais Dissertação de Mestrado em Desen volvimento Agricultura e Sociedade CPDAUFRRJ 2008 A viola do diabo notas sobre narrativas de pactos demoníacos no norte e noroeste mineiro In E Giumbelli JCV Diniz S Cambraia orgs Leituras sobre música popular reflexões sobre sonoridades e cultura Rio de Janeiro 7Letras pp 380396 2011a Os giros do sagrado um estudo etnográfico sobre folias em Urucuia MG Rio de Janeiro Editora 7Letras 2011b Bendito Louvado Seja notas etnográficas sobre os cantorios religio sos das folias de UrucuiaMG Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares Impresso 08161177 2011c Promessa consideração e trato nas festas de folia em UrucuiaMG Antropolítica 3197122 2012a Os sacrifícios da carne a mor te do gado e a produção dos banquetes nas folias de Urucuia MG Religião Sociedade 327196 2012b No giro as folias como peregri nações rituais Interseções 142545 2012c As vicissitudes da fama Re vista de Antropologia 55210471083 2013 À mesa com os santos a noção de fartura nas folias de Urucuia Mi nas Gerais In JRS Gonçalves RS Guimarães N Bitar orgs A alma das coisas patrimônios materialidade e ressonância Rio de Janeiro Mauad pp 155184 SAHLINS Marshall 1999 Ilhas de his tória Rio de Janeiro Zahar Editores SIMMEL George 1971 On individual ity and social forms Chicago The University of Chicago Press TAMBIAH Stanley Jeyaraja 1985 Cul ture thought and social action Cam bridge Harvard University Press TURNER Victor 1974 O processo ritual Petrópolis Ed Vozes VALERI Valerio 1994 Rito In Enci clopédia Einaudi 30 Religiãorito Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda pp 325359 VAN GENNEP Arnold 1978 Os ritos de passagem Petrópolis Vozes VERNANT Jean Pierre 1990 Aspectos míticos da memória e do tempo In Mito e pensamento entre os gregos Rio de Janeiro Paz e Terra pp 105148 VILHENA Luis Rodolfo 1997 Ensaios de antropologia Rio de Janeiro EdUERJ o giro dos outros 573 Resumo Em Urucuia norte de Minas Gerais os conceitos locais de fundamento e sistema evocam respectivamente as semelhan ças e as diferenças entre as festas de folia realizadas em um grande circuito festivo Descrevendo a circulação de devotos por diversas festas procuro neste artigo ana lisar os usos narrativos e festivos destas noções para destacar o modo como elas estão relacionadas a processos específi cos de produção e contestação de uma experiência sagrada calcada nas ideias de unidade e totalidade Ao proporem que as festas sejam simultaneamente uma e várias que sejam permanentes e mutantes que sirvam às comunidades e aos interesses individuais os devotos põem em jogo demarcadores rituais capazes de produzir contextualmente a confirmação do poder totalizador e atemporal das folias ao mesmo tempo em que abrem espaço para a sua dissolução Palavraschave Sagrado Rituais Movi mento Comunidade Folia Abstract In Urucuia Northern Minas Gerais the local concepts of fundamento and sistema refer respectively to the similarities and differences between the feasts held in a festive circuit Starting from a description of the movement of devotees from feast to feast I analyze the narrative and festive uses of these notions in order to highlight how they relate to processes of production and to the contestation of sacred experi ence grounded on notions of unity and wholeness According to devotees the various feasts are at the same time one and several enduring and changing serving community and individual in terests They use ritual markers aiming both to confirm the folias atemporal totalizing power and to allow its possible dissolution Key words Sacred Rituals Movement Community Folia