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CURSO DE CIÊNCIA POLÍTICA GRANDES AUTORES DO PENSAMENTO POLÍTICO MODERNO E CONTEMPORÂNEO Preencha a ficha de cadastro no final deste livro e receba gratuitamente informações sobre os lançamentos e as promoções da Elsevier Consulte também nosso catálogo completo últimos lançamentos e serviços exclusivos no site wwwelseviercombr CURSO DE CIÊNCIA POLÍTICA GRANDES AUTORES DO PENSAMENTO POLÍTICO MODERNO E CONTEMPORÂNEO CIPBrasil Catalogaçãonafonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros RJ Curso de ciência política grandes autores do pensamento político e contemporâneo autores Adolfo Wagner et al organizadores Lier Pires Ferreira Ricardo Guanabara Vladimyr Lombardo Jorge prefácio Candido Mendes de Almeida Rio de Janeiro Elsevier 2010 Inclui bibliografia ISBN 9788535231618 1 Ciência política I Ferreira Lier Pires II Guanabara Ricardo III Jorge Vladimyr Lombardo IV Wagner Adolfo 083308 CDD 320 CDU 32 C986 2010 Elsevier Editora Ltda Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei no 9610 de 1921998 Nenhuma parte deste livro sem autorização prévia por escrito da editora poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados eletrônicos mecânicos fotográficos gravação ou quaisquer outros Copidesque Livia Maria Giorgio Revisão Gráfica Maria da Gloria Silva de Carvalho Editoração Eletrônica SBNigri Artes e Textos Ltda Elsevier Editora Ltda Conhecimento sem Fronteiras Rua Sete de Setembro 111 16o andar 20050006 Centro Rio de Janeiro RJ Brasil Rua Quintana 753 8o andar 04569011 Brooklin São Paulo SP Brasil Serviço de Atendimento ao Cliente 08000265340 sacelseviercombr ISBN 9788535231618 Nota Muito zelo e técnica foram empregados na edição desta obra No entanto podem ocorrer erros de digitação impressão ou dúvida conceitual Em qualquer das hipóteses solicitamos a comunicação ao nosso Serviço de Atendimento ao Cliente para que possamos esclarecer ou encaminhar a questão Nem a editora nem o autor assumem qualquer responsabilidade por eventuais danos ou perdas a pessoas ou bens originados do uso desta publicação Dedicatórias Para Vera Pimenta Miriam Ferreira e Lier Pires Ferreira Neto que o consórcio entre o amor e a razão seja o balizador maior de nossas vidas Lier Pires Ferreira Para Rafaela Guanabara e todos os meus alunos e exalunos Ricardo Guanabara Para meus pais Luzia e José pelo que sou hoje Vladimyr Lombardo Jorge HIV or other sexually transmitted infections after birth Agradecimentos Para Heloyza Menandro e Geraldo Fragoso mãos amigas e braços fortes que me suportaram quando quase tudo se fez ausência Lier Pires Ferreira A Christiane Romêo cujo apoio vontade e perseverança ajudaram a tornar possível esta obra e aos amigos de verdade sempre presentes nos momentos difíceis Ricardo Guanabara Aos que sempre acreditarem em mim Vladimyr Lombardo Jorge Helping Babies Survive Os Autores Lier Pires Ferreira Doutor em Direito Internacional UERJ Mestre em Relações Internacionais PUCRio Bacharel em Direito UFF Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais UFF Professor advogado e consultor jurídico e educacional Palestrante em diferentes eventos no Brasil e no exterior Autor do Curso de Direito Internacional Privado 2 ed 2008 Direitos Humanos e Direito Internacional 2006 Direito Internacional e as novas Disciplinarizações 2006 2a tir O estrangeiro no Brasil 2005 e Estado globalização e integração regional 2003 dentre outras obras Contato lierrioigcombr Ricardo Guanabara Doutor e Mestre em Ciência Política pelo IUPERJ Graduado em Ciências Sociais pela UFF e em Direito pela PUCRio Professor do IBMECRJ e da UCAMCentro Tem experiência nas áreas de Ciência Política e Direito com ênfase em Direito Constitucional Atua principalmente nos seguintes temas Direito Constitucional Teoria Política Teoria do Estado Historia Política e Direitos Fundamentais Contato guanabarahotmailcom Vladimyr Lombardo Jorge Doutor e Mestre em Ciência Política pelo IUPERJ Graduando em Ciências Sociais pela Uni versidade Federal Fluminense UFF Professor adjunto de Ciência Política da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro UFRRJ Contato vljorgeuolcombr Adolfo Wagner Doutorando do Programa de PósGraduação da Faculdade de Serviço Social do Centro de Ciências Sociais da UERJ Mestre em Ciência Política pela UFRJ Pesquisador do Programa de Estudos de América Latina e Caribe PROEALCCCSUERJ Professor Assistente da CEFET Química Unidade Maracanã Contato adolfowbighostcombr Aparecida Maria Abranches Mestre em Sociologia pelo IUPERJ e Doutora em Ciência Política pelo IUPERJ Professora adjunta de Ciência Política da Univerdidade Federal Rural do Rio de Janeiro Contato pareabranchesyahoocombr Christiane Itabaiana Martins Romêo Doutora e Mestre em Ciência Política pelo IUPERJ Graduada em Ciências Sociais pela UFF e Direito pela PUCRio Professora Adjunta do IBMECRJ Contato christianeibmecrjbr Douglas Ribeiro Barboza Doutorando e Mestre em Serviço Social pela CAPESUERJ Bolsista e Pesquisador associado do Programa de Estudos de América Latina e Caribe PROEALCCCSUERJ Contato douglasbarbozayahoocombr Eduardo de Vasconcelos Raposo Doutor em Ciências Políticas tendo estudado no IUPERJ e no Instituto de Estudos Políti cos de Paris IEP para onde retornou nos meses de dezembro de 1998 e janeiro de 1999 na condição de professor convidado Trabalhou por nove anos no CPDOCFGV Desde 1990 é professor e pesquisador do Departamento de Sociologia e Política da PUCRio onde foi diretor coordenando atualmente seu programa de PósGraduação em Ciências Sociais Contato raposopucriobr Fernando LattmanWeltman Doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro IUPERJ professor e pesquisador do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas CpdocFGV Contato fernandolattmanweltmanfgvbr Gisele Silva Araújo Mestre e Doutora em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janei ro IUPERJ Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ e Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro UERJ Atualmente é Professora Adjunta de Sociologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro UNIRIO Professora de Filosofi a do Direito e Teoria Política da Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro UERJ e Pesquisadora bolsista do Setor de História da Fundação Casa de Rui Barbosa FCRB Suas atividades têm como temas prioritários Teo ria Sociológica Teoria Política Teoria do Direito Teoria Constitu cional Pensamento Social e Político Brasileiro e Sociologia do Direito Contato gssaraujoyahoocombr Leonardo Carvalho Braga Doutorando e Mestre em Relações Internacionais pelo IRIPUCRio Graduado em Rela ções Internacionais pela UNESA Desenvolveu sua dissertação de mestrado sobre a justiça em John Rawls e as relações internacionais com o título de A justiça internacional e o dever de assistência no Direito dos Povos de John Rawls Professor na graduação e na especialização em Relações Internacionais da La SalleRJ Institutos Superiores Professor na graduação em Re lações Internacionais da Universidade Estácio de Sá Contato leonardobragahotmailcom Marcelo da Costa Maciel Doutor em Ciência Política e Mestre em Sociologia pelo IUPERJ Professor adjunto da Uni versidade Federal Rural do Rio de Janeiro UFRRJ Contato marcelocmacielbolcombr Paulo M dAvila Filho Doutor e Mestre em Ciência Política pelo IUPERJ Bacharel em História com especializa ção em História da Filosofi a pelo IFCSUFRJ Coordenador da Área de Ciência Política do Departamento de Sociologia e Política da PUCRio onde é professor e pesquisador do Programa de Graduação e de Pósgraduação em Ciências Sociais Contato pdavilafrdcpucriobr Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco Doutorando em Ciência Política pelo IUPERJ Mestre em Teoria do Estado e Direito Cons titucional pela PUCRio Professor de Sociologia Jurídica do Departamento de Direito da PUCRio Contato pvillasboasjurpucriobr Rafael Rossotto Ioris Doutorando em História pela Universidade Emory nos EUA Mestre em Relações Interna cionais pela UnB Bacharel em Ciências Sociais pela UFRGS Professor de Relações Inter nacionais do IBMEC e do Centro Universitário Metodista no Rio de Janeiro Autor do livro Culturas em choque a globalização e os desafi os para a convivência multicultural 2007 Contato riorisyahoocom Ricardo Ismael Doutor e Mestre em Ciência Política pelo IUPERJ Professor e pesquisador do Departamento de Sociologia e Política da PUCRio respondendo pela Coordenação de Graduação e integrando o corpo docente do Programa de PósGraduação em Ciências Sociais Autor do livro Nordeste A força da diferença Os impasses e desafi os da cooperação regional 2005 Nos últimos anos tem trabalhado com os seguintes temas Federalismo e Desigualdades Regionais em Perspectiva Com parada Instituições Políticas e Avaliação de Políticas Públicas Estado Mercado e Desigualdade Social Contato ricismaelhotmailcom Rogerio Dultra dos Santos Doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro IU PERJ mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina UFSC e graduado em Direito pela Universidade Católica do Salvador UCSal Professor Adjunto do Departa mento de Direito Público da Universidade Federal Fluminense UFF Professor Permanente do Programa de PósGraduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminen se UFF Professor Colaborador do Programa de PósGraduação em Sociologia Política da Universidade Estadual do Norte Fluminense UENF e avaliador ad hoc na área do Direito do Ministério da Educação Coordenou a edição do livro Direito e Política Porto Alegre Síntese 2004 Contato rogeriodultrayahoocombr Silene de Moraes Freire Doutora em Sociologia pela USP Mestre em Serviço Social pela UFRJ Professora e procien tista da UERJ Pesquisadorabolsista de produtividade do CNPq e coordenadora do Progra ma de Estudos de América Latina e Caribe do Centro de Ciências Sociais da UERJ PRO EALCCCSUERJ Contato silenefreireigcombr silenefreiregmailcom Wallace dos Santos de Moraes Professor adjunto da Universidade Federal Fluminense Pesquisador senior do NEICIUPERJ e do INCTPPED Doutor e mestre em Ciência Política IUPERJ Bacharel e licenciado em História UFRJ Pósgraduado em História contemporânea UFF Contato moraeswsyahoocombr Yuri Kasahara Doutor em Ciência Política pelo IUPERJ e pesquisador associado do Centre for Development and the Environment University of Oslo Email para contato yurikasaharasumuiono Prefácio Curso de Ciência Política A nova busca do paradigma O presente trabalho inserese com originalidade no corpus deste conhe cimento e na nossa interrogação contemporânea É uma obra que de vez en tra resolutamente na pósmodernidade desta ciência Via de regra os escorços históricos detêmse no começo do século XX e mal chegam inclusive a Weber Deparamos agora uma análise ambiciosa que envolve não só a plena atualida de mas o faz de maneira interdisciplinar no reenvio entre as ciências sociais e especialmente a economia e os novos patamares do questionamento jurídico do fi m do século passado Atinge o paradigma indo ao campo dos reenvios na maior ambição entre modelos e alternativas Implica uma visão abrangente de nosso tempo que vai para além das facilidades da determinante liberal como fait accompli O escorço todo do capitalismo explícito aí está tal como a justiça sai da normatividade para encontrar uma axiologia já liberada das desconstruções e da preliminar epistemológica Cobraríamos ainda na senda tão rica a que leva a sua amplitude o estudo sobre Nicholas Luhmann exatamente na fronteira do repto à própria noção das totalidades do que seja a vis política emergente e a reifi cação da consciência contemporânea Atentese ainda à marca polêmica em que as temáticas via de regra amea çadas de redundância pedagógica discutem a refl exão de Maquiavel John Rawls ou Carl Schmitt pela sua premissa crítica versus o pensamento crista lizado destes autores em qualquer tratado desta estirpe Ao mesmo tempo a publicação indica a emergência de toda uma nova geração de especialistas que evidencia no seu matiz interdisciplinar a maturação dos estudos de pósgradu ação no país e especialmente no Rio de Janeiro XIV ELSEVIER Curso de Ciência Política Ao lado das universidades públicas aí está reiteradamente este contri buto dos autores do IUPERJ a entidade pioneira da pósgraduação da UCAM na comparação com a USP no quadro da excelência da ciência política e da sociologia na última trintena O propósito é ambicioso mas quiçá e no seu re mate com Robert Nozik privanos de uma teoria política já prospectiva da nova emergência do aparelho público contemporâneo Está em causa a facilidade com que se elimina na globalização contemporânea a viabilidade dialética ainda da alternativa a sancionar a tranquilidade com que um modelo econômico do iní cio do novo século teria já atingido a um status hegemônico Mais que Toni Negri a prospectiva fundante da teoria política emergente vai a Slavoj Zizek ou a Lucien Febvre mostrando o quanto a reifi cação da cons ciência contemporânea não bloqueia o nosso emergente processo social como civilização E se a história cauteriza hoje a dialética o chamado efeito paralaxe de Zizek tal não impede que a ideologia capitalista se exponha a uma cons tante desestabilização ideológica e à perenidade do pensamento maquiavélico Ou do que seja hoje não obstante todo o exorcismo da dialética a continuidade necessariamente fi nita das contradições suspensas no itinerário que se abre à recuperação da subjetividade contemporânea E por ela desta nova subversão em que as diferenças se resgatem como o primeiro dever de um mundo exilado da velha luta de classes da dominação colonial ou das pseudopedagogias da vindicação da autenticidade histórica Candido Mendes de Almeida Reitor da Universidade Candido Mendes Presidente do Fórum de Reitores do Rio de Janeiro Membro da Academia Brasileira de Letras Bibliografia RIBEIRO Renato Janine FILOSOFIA AÇÃO E FILOSOFIA POLÍTICA Re vista Brasileira de Ciências Sociais São Paulo v 13 no 36 1998 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS0102 69091998000100010lngptnrmiso Acesso em 15 Ago 2008 doi 101590S010269091998000100010 Introdução No Brasil a bibliografi a que versa sobre as bases do pensamento político e jurídico do Ocidente é por certo vasta e qualifi cada tendo se consolidado entre os anos 1970 e 1980 quando o mercado editorial passou a ofertar boas obras so bre o tema escritas tanto por renomados autores estrangeiros como por qualifi cados profi ssionais brasileiros No entanto um exame desse acervo bibliográfi co revela uma importante lacuna a maior parte dele inicia pelos próceres do pensa mento político moderno Maquiavel adiante e no máximo chega aos autores da transição do século XIX para o século XX tais como Marx que faleceu em 1883 e Weber morto em 1920 Didático e de bom padrão analítico esse acervo parece esquecer no entan to que os fundamentos teóricos da política e do direito na civilização ocidental não nasceram na Modernidade sendo certo também que não foram exauridos com as formulações de Marx e Weber Antes que os modernos fi rmassem as ba ses do absolutismo legitimando o fi m gradual do feudalismo autores antigos e medievais concorreram decisivamente para o arquétipo daquilo que em sentido lato se denomina teoria política Esses autores no entanto têm sido ignorados Igualmente ao longo do século XX intelectuais como Rawls e Nozick produzi ram obras que tais como os escritos de Hobbes ou Rousseau são basilares para a compreensão do pensamento políticojurídico Por isso no alvorecer do século XXI uma obra de cunho geral e didático que vise a concorrer positivamente para a formação de estudantes e para o aperfeiçoamento de profi ssionais oriun dos privilegiadamente do direito das relações internacionais e das ciências so ciais não pode deixar de considerar um arco históricocultural mais amplo sem olvidar a clareza expositiva e a densidade teórica das abordagens Essa é a razão essencial do Curso de Ciência Política que pelas mãos da Editora CampusElsevier ora ofertamos ao público leitor Com fulcro numa pers pectiva transdisciplinar este Curso vem colmatar a expressiva lacuna que existe na bibliografi a sobre o tema disponível no país Seu propósito é levar aos lei tores textos de qualidade escritos por professores que com diferentes forma XVI ELSEVIER Curso de Ciência Política ções e inserções profi ssionais lecionam cotidianamente a matéria em cursos de graduação e pósgraduação Nesse desiderato apresenta autores das eras anti ga moderna e contemporânea tidos como essenciais para a construção e para a compreensão do que hoje denominamos Ocidente Tratase pois de uma obra sobre autores clássicos que produzindo em épocas e contextos sociais tão díspares quanto Aristóteles Locke e Carl Schmitt nos permitem tomar cons ciência de nossa historicidade Curso de Ciência Política é portanto um livro sobre obras e autores clássi cos E são clássicos justamente porque apesar da distância cronológica da qual deles nos separamos continuam atuais posto que vitais para que possamos ela borar prática e refl exivamente o mundo em que vivemos bem como suas insti tuições políticas e jurídicas em particular o Estado Por isso reiteramos a com preensão de que um clássico é uma obra que lemos ou supomos devemos ler Ribeiro 1998 p 144 De fato conceitos e categorias como democracia libera lismo contrato social representação política e direitos humanos todos caros ao mundo ocidental não caíram do céu nem brotaram por acaso das entranhas da terra Por detrás de cada um deles como de tantos outros abordados neste Curso há uma refl exão profunda sobre questões que afl igiram e ainda afl igem diversas gerações exigindo de cada uma delas respostas adequadas não raro com profundos sacrifícios As respostas dadas pelos autores aqui elencados tornaramse clássicas porque foram capazes de ultrapassar os contextos nos quais foram produzidas e tornaramse referências que animaram não apenas as gerações subsequentes mas também outros povos e nações É absolutamente irrelevante perguntar se a forma como interpretaram o mundo e conceberam suas formulações está correta ou não O que importa é que acreditando nelas puseramse em ação e fi zeram tantos outros sonhar e agir Foi portanto guiados por essas preocupações que fi zemos a seleção dos autores que estão presentes neste Curso de Ciência Política Ratifi cando a pers pectiva de que as bases do pensamento político e jurídico do Ocidente foram lançadas bem antes do despontar da Era Moderna no primeiro capítulo aborda mos a enorme contribuição de autores da Antiguidade e da Idade Média Nesse capítulo propedêutico quatro autores gregos são comentados Sócrates Platão Aristóteles e Políbio o primeiro pensador a refl etir sobre a importância de uma forma de governo dividida para produzir estabilidade política dando assim origem à teoria do governo misto Do período medievo são focadas as obras de Santo Agostinho São Tomás de Aquino Guilherme de Ockham e Marcílio de Pádua Tratase como bem sabe o leitor de uma iniciativa rara se não inédita XVII Introdução nos manuais congêneres existentes no Brasil Os demais capítulos são dedica dos cada um deles a um autor das eras moderna e contemporânea Dentre os primeiros encontramse nesta ordem Maquiavel Thomas Hobbes John Locke Montesquieu e JeanJacques Rousseau Dentre os contemporâneos incluímos em sequência Edmund Burke Emmanuel Kant O Federalista obra magna de Alexander Hamilton James Madison e John Jay Alexis de Tocqueville John Stuart Mill Karl Marx Max Weber Carl Schmitt Frederich Hayek John Rawls e Robert Nozik alguns dos quais nunca ou quase nunca são contemplados em obras do gênero Desejamos pois que os leitores possam explorar no âmbito das salas de aulas e do exercício teórico e profi ssional todas as possibilidades que o presente Curso de Ciência Política pretende oferecer Esperamos honestamente que nossa pequena obra possa contribuir para a formação de jovens valores bem como des pertar em profi ssionais já estabelecidos o renovado gosto pela pesquisa e pela refl exão sobre os fundamentos da ciência política elemento essencial tanto para a compreensão de nossa realidade quanto para sua necessária transformação Os organizadores Lier Pires Ferreira Ricardo Guanabara Vladimyr Lombardo Jorge Bleeding vaginally after the first 20 weeks of pregnancy Do not waitcall your doctor right away It may be something serious This information was adapted from the American College of Obstetricians and Gynecologists May 2021 Presented by the Wisconsin Initiative for Perinatal Quality Care wwwwipqcorg For more information on bleeding or spotting during pregnancy visit wwwacogorg and search bleeding during pregnancy Introdução à 2a edição A despeito dos avanços nos últimos anos ainda é muito difícil publicar no Brasil Essa difi culdade é tão ou mais signifi cativa quando se trata de uma área consolidada com a presença de autores renomados e obras já clássicas como é o campo da Ciência Política De fato como asseveramos na Introdução à 1a edição a bibliografi a sobre o tema no país é vasta e representativa tendo se consolidado entre os anos 1970 e 1980 Nesse quadro como explicar o êxito desse Curso de Ciência Política Há fatores objetivos que ajudam a explicar tal êxito Primeiramente há que se recordar que o exame das obras já editadas no Brasil sobre a trajetória do pensamento político e jurídico no Ocidente tendo como eixo a linha de autores revela que a maior parte delas inicia pelos clássicos do pensamento político mo derno como Maquiavel e Hobbes e no máximo chega aos autores da transição do século XIX para o século XX tais como Marx ou Weber Esquecem no entan to que os fundamentos teóricos da política e do direito não nasceram na Mo dernidade e não tiveram fi m com Marx ou Weber Antes dos modernos autores do mundo antigo e medieval fi rmaram as bases da teoria política e ao longo do século XX pensadores como Rawls e Nozick produziram obras que tais como os escritos de Locke ou Montesquieu são fundamentais para a compreensão do pensamento político e jurídico Nosso Curso de Ciência Política acertou assim ao compreender que uma obra de cunho geral e didático voltada para a for mação de estudantes e para o aperfeiçoamento de profi ssionais jamais poderia deixar de considerar um arco históricocultural mais amplo sem abrir mão da clareza expositiva e da densidade teórica dos diferentes capítulos Outra questão essencial foi a seleção dos colaboradores Todos os coau tores são profi ssionais titulados e com efetiva presença em sala de aula São portanto profi ssionais que aliam sólida formação teórica e vasta experiência no magistério superior inseridos em algumas das mais qualifi cadas instituições de ensino superior do Rio de Janeiro e do Brasil XX ELSEVIER Curso de Ciência Política Por fi m há que se destacar a parceria com a Editora CampusElsevier Tratase de um dos maiores e mais qualifi cados grupos editoriais presentes no mercado brasileiro apto a produzir obras de excelência com ótimo padrão grá fi co difusão nacional e grande credibilidade junto a leitores e estudiosos Essas são as razões para a grande aceitação pelo público de nosso Curso de Ciência Política Em sua segunda edição ele continua preenchendo a expres siva lacuna que existe na bibliografi a sobre o tema levando aos leitores textos de qualidade escritos por professores qualifi cados e experientes que com suas abordagens permitem ao público tomar consciência de nossa historicidade Nessa segunda edição nosso Curso de Ciência Política também busca cor rigir algumas imperfeições contidas na edição anterior com vistas a facilitar a leitura e melhorar cada vez mais Desejamos pois que a obra continue contri buindo para a formação de jovens valores e renovando em profi ssionais já esta belecidos o gosto pela pesquisa e pelo estudo da teoria política Rio de Janeiro 30 de maio de 2010 Lier Pires Ferreira Ricardo Guanabara Vladimyr Lombardo Jorge Sumário Prefácio Curso de ciência política A nova busca do paradigma XIII Candido Mendes de Almeida Introdução XV Lier Pires Ferreira Ricardo Guanabara e Vladimyr Lombardo Jorge Introdução à 2a edição XIX Lier Pires Ferreira Ricardo Guanabara e Vladimyr Lombardo Jorge Capítulo 1 A contribuição do pensamento antigo e medieval para o desenvolvimento da Ciência Política 1 Marcelo da Costa Maciel Capítulo 2 Há vícios que são virtudes Maquiavel teórico do realismo político 25 Ricardo Guanabara Capítulo 3 A teologia política de Hobbes 49 Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco Capítulo 4 John Locke lei e propriedade 87 Vladimyr Lombardo Jorge Capítulo 5 Montesquieu a centralidade da moderação na política 125 Silene de Moraes Freire Adolfo Wagner e Douglas Ribeiro Barboza Capítulo 6 Jean Jacques Rousseau da inocência natural à Sociedade Política 147 Christiane Itabaiana Martins Romêo Capítulo 7 Edmund Burke a estética conservadora da arte política 185 Fernando LattmanWeltman XXII ELSEVIER Curso de Ciência Política Capítulo 8 Kant e o paradoxo da liberdade como obrigação moral 207 Rafael Rossotto Ioris Capítulo 9 Hamilton Madison e Jay os pressupostos teóricos do federalismo moderno 227 Ricardo Ismael Capítulo 10 Alexis de Tocqueville 18051859 o argumento liberal de defesa da liberdade 251 Lier Pires Ferreira Capítulo 11 John Stuart Mill a luta contra a opressão 291 Aparecida Maria Abranches Capítulo 12 Leituras de Marx 321 Paulo M dAvila Filho Capítulo 13 O pensamento político de Max Weber e as concepções weberianas da sociedade brasileira 353 Eduardo de Vasconcelos Raposo Capítulo 14 O Constitucionalismo antiliberal de Carl Schmitt democracia substantiva e exceção versus liberalismo kelseniano 371 Gisele Silva Araújo e Rogerio Dultra dos Santos Capítulo 15 Hayek e os benefícios da liberdade individual 401 Yuri Kasahara Capítulo 16 A justiça em John Rawls da relação entre os homens às relações internacionais 417 Leonardo Carvalho Braga Capítulo 17 Estado mínimo contra a fase histórica camaleônica do estado capitalista um estudo da teoria neoliberal de Robert Nozick 451 Wallace dos Santos de Moraes Capítulo 1 A contribuição do pensamento antigo e medieval para o desenvolvimento da ciência política Marcelo da Costa Maciel1 11 Introdução A importância perene da filosofia política A atividade teórica é muito mais uma forma de poíesis criação do que de mímesis imitação da assim chamada realidade Tratase da elaboração mental da realidade pela qual esta se apresenta como algo dotado de sentido para o homem No trabalho teórico o discurso racional é a ferramenta indispensável pois é por meio dele que se pretende codifi car e transmitir os resultados de uma infi ndável investigação dos fenômenos Partindo de tais premissas podemos entender a história do pensamento político como algo mais do que uma sucessão de modos de compreensão do mundo político Cada teoria política ao elaborar uma imagem acerca do que é Doutor em Ciência Política e Mestre em Sociologia pelo IUPERJ Professor Adjunto da Uni versidade Federal Rural do Rio de Janeiro Contato marcelocmacielbolcombr 2 Curso de Ciência Política ELSEVIER ou deveria ser o mundo realiza de fato uma construção intelectual da realida de Contudo as fabulações da teoria política são geralmente assumidas como descrições e avaliações de contextos reais Com isso ressaltase o seu caráter mimético e correse o risco de perder de vista o seu caráter poiético ou seja a sua dimensão criativa e propositiva Podemos considerar a produção teórica no campo da política como a fa bricação sempre em contexto polêmico de discursos argumentativos que pre tendem evidenciar as condições reais da natureza humana e da vida em socieda de para com base nelas prescrever modos de organização e exercício do poder político Porém não podemos esquecer que tais discursos necessariamente par tem de pressupostos Estes atuam como princípios para a construção e verifi cação dos discursos não sendo eles próprios verifi cáveis posto que não são diretamente inferidos da experiência mas fundamentados pela argumentação fi losófi ca Isso faz de toda teoria política uma espécie de fi cção não no sentido de fantasia ou devaneio mas de construção de mundos possíveis pelo pensa mento e pelo discurso A imensa diversidade de paradigmas na história do pensamento políti co é uma evidência de que os mesmos são obras de verdadeiros inventores de mundos sociais possíveis e não o resultado de uma imediata e inequívoca observação do mundo Cada paradigma é um modelo para a formulação de teo rias as quais como dissemos não se referem simplesmente àquilo que aparece mas contêm proposições sobre o que deveria existir Assim a refl exão política ao pretender descreverreproduzirimitar a realidade empírica fertiliza a nos sa percepção dessa realidade com proposições ou antecipações que uma vez incorporadas à vida social passam a constituir a própria realidade Ao longo do tempo a refl exão política tem sido produtora de formas de comportamento e organização políticas uma vez que muitos de seus pressupostos e conceitos têm sido incorporados ao mundo das instituições moldando nossa representação comum e ordinária do mundo O desenvolvimento da ciência política como uma ciência empírica jamais pôde dispensar a atividade de refl exão teórica porque muitos dos objetos que a ciência tem investigado constituem de fato o resultado de um processo de sedimentação daquilo que a teoria enquanto poíesis contribuiu para criar Por conseguinte podemos afi rmar que uma ciência política emancipada da fi losofi a política é a rigor impossível já que a fi losofi a consiste numa espécie de fonte da qual emanam as dimensões da realidade consideradas relevantes isto é aquelas que importam à análise científi ca Não é por outra razão que continuamos lidan 3 Capítulo 1 A contribuição do pensamento antigo e medieval Marcelo da Costa Maciel do com os chamados clássicos do pensamento político aqueles fabuladores que nos ensinaram a fazer determinadas perguntas sobre o mundo político Fo ram eles os criadores de uma tradição que não é inerte e que não nos interessa hoje apenas como objeto de uma história das ideias políticas mas como campo dinâmico e polêmico de formulação e compreensão da realidade Em um livro que pretende discutir os fundamentos da teoria política parecenos bastante razoável que o primeiro capítulo se dedique à gênese do pensamento político na Grécia antiga A tradição geralmente localiza o nasci mento da disciplina na época clássica sendo Platão e Aristóteles aqueles que estabeleceram seus primeiros alicerces Não há dúvidas quanto a isso Porém consideramos relevante sublinhar o impacto que por um lado a atividade fi lo sófi ca de Sócrates e por outro o desafi o da Sofística tiveram sobre aqueles que pretenderam fazer da política uma ciência Além disso vale a pena destacar já no contexto do helenismo uma importante contribuição para a consolidação da política como campo de refl exão Tratase do pensamento de Políbio séc II aC com sua teoria cíclica das formas de governo e sua defesa do governo misto Este capítulo pretende também contribuir para o preenchimento de uma injustifi cável lacuna na história do pensamento político qual seja a refl exão so bre a importância da fi losofi a medieval para a formação do pensamento político moderno O reconhecimento do caráter eminentemente cristão da fi losofi a me dieval não deve levar a corroborar uma imagem distorcida e hoje já felizmente desacreditada de que a Idade Média tenha sido do ponto de vista intelectual uma era de trevas Pelo contrário o incontornável diálogo entre fi losofi a e teo logia promovido pelo pensamento medieval produziu imensa variedade de teo rias sobre rigorosamente todos os campos da realidade dentre eles a políti ca Não se pode interpretar o período medieval como uma espécie de intervalo que interrompe a tradição iniciada na Antiguidade pagã sendo esta retomada apenas a partir de Maquiavel no contexto do Renascimento Mostraremos o lu gar de destaque que as questões relativas à política ocuparam nas refl exões de fi lósofos medievais primeiro aqueles que se tornaram cada qual em seu tempo os portavozes ofi ciais do pensamento cristão Santo Agostinho e São Tomás de Aquino em segundo lugar um pensador cristão considerado heterodoxo Guilherme de Ockham e fi nalmente um autor que refutou abertamente a in terferência da Igreja sobre o poder secular realizando ainda no século XIV a defesa de um Estado laico e de um conceito essencialmente político de soberania Marsílio de Pádua De todos os pensadores que serão comentados neste capítulo inicial pre tendese destacar suas mais relevantes contribuições para uma refl exão sobre a 4 Curso de Ciência Política ELSEVIER política É claro que não estaremos tratando exclusivamente de teorias políticas pelo menos no sentido moderno do termo mas de debates fi losófi cos em que se colocaram temas e problemas que acompanham a história do pensamento político na modernidade tais como a natureza da política a conceituação do po der político as modalidades de organização e exercício desse poder as relações entre o poder e a sociedade entre o Estado e o indivíduo e entre a lei natural e a liberdade humana Temos a certeza de que a apresentação do pensamento político sob uma perspectiva histórica que remonta às suas origens antigas e me dievais colaborará para uma compreensão mais rica da nossa disciplina pois foi através do diálogo com este lastro fi losófi co que ela se constituiu e consolidou como tradição intelectual 12 A política no pensamento antigo 121 Sócrates e os sofistas Vários elementos de originalidade presentes no pensamento de Sócrates justifi cam o papel de divisor de águas que ele ocupa na história da fi losofi a anti ga Não é necessário aqui sublinhar a novidade do seu método de fi losofar por ele concebido como uma busca obstinada e rigorosa pelo conceito nem tampou co a sua concepção da fi losofi a como um modo de vida posição com a qual se manteve o tempo todo comprometido e que ao fi nal lhe custou a própria vida O que mais nos interessa no contexto de uma avaliação do legado do pensamen to antigo para a constituição da Ciência Política é a radical mudança que Sócra tes imprime na direção da pesquisa fi losófi ca ao fazer do mundo humanamente construído o mundo do ethos objeto de uma discussão racional Sem dúvida a atividade fi losófi ca de Sócrates dedicada à incessante in vestigação racional dos fundamentos do agir humano sobretudo do agir na ci dade abriu o caminho para o nascimento não só da Ética como da Filosofi a Política pois a sua ciência tal como ele próprio a defi niu diante de seus acusa dores consistia na ciência do homem Sua preocupação nunca fora perscrutar os mistérios que residiam sob a terra e nos céus mas levar o homem ao conheci mento de si mesmo Nesse sentido Sócrates é precursor de Aristóteles pois an tes de este último estabelecer a Ética como a ciência da práxis humana Sócrates formula uma concepção da alma psiquê como a sede da consciência moral de cada indivíduo e um conceito de virtude aretê como o resultado do autoconhe cimento donde resulta que o homem bom é aquele que mantém desperta sua autoconsciência e age de acordo com suas exigências Porém esse apelo socrático à autoconsciência trouxe o perigo da intro dução da dúvida acerca dos fundamentos morais legais e religiosos que orien 5 Capítulo 1 A contribuição do pensamento antigo e medieval Marcelo da Costa Maciel tavam a conduta humana e sustentavam as instituições da cidade Com Sócra tes nasce o projeto de uma ciência dos valores humanos na qual o sentido dos costumes e das leis era algo a ser examinado com os rigores da razão Talvez a fi losofi a política de Platão tenha sido a primeira tentativa de execução de tal projeto mas é Sócrates o iniciador do trabalho de escrutínio fi losófi co no campo moral e político Tal procedimento realizado com incomparável ironia e domínio da pala vra certamente abalou os preconceitos sociais da democracia ateniense tendo sido considerado uma ameaça devido à infl uência que poderia exercer princi palmente sobre os jovens Por isso Sócrates é acusado de corromper a juventude ateniense bem como de descrer das divindades e de ensinar aquilo que não sa bia Das três acusações talvez encontremos alguma pertinência na terceira mas apenas no sentido de que realmente ele não possuía um conjunto de verdades a serem transmitidas mas ensinava o exercício da dúvida como o único princípio para a obtenção da certeza De fato a contribuição de Sócrates para a formação do pensamento político não consiste em nenhuma doutrina ou mesmo esboço de doutrina sobre a pólis mas na introdução de uma postura investigadora e eminentemente crítica acerca das instituições sociais É imperioso salientar que em Atenas do século V aC o plano dos valores morais e políticos não despertou o interesse apenas de Sócrates mas também dos sábios nas artes da retórica e da oratória os sofi stas Não é difícil entender por que aqueles que dominavam o uso da palavra tenham dirigido a sua aten ção para o mundo das convenções humanas Na democracia ateniense o poder político absolutamente secularizado era exercido através de um processo de discussão entre os cidadãos no qual a argumentação racional era critério funda mental para a apresentação e avaliação das propostas relativas ao bem da cida de O discurso argumentativo tornouse então instrumento efi caz no processo decisório e os que podiam pagar pelas valiosas lições dos mestres da eloquência tornandose exímios oradores viam bastante ampliadas as suas possibilidades de persuadir a assembleia ecclesia infl uenciando sua decisão Foi grande a importância do movimento sofístico para o estabelecimento do mundo político como objeto de refl exão metódica Desvinculando o domínio do ethos do domínio da physis os sofi stas puderam fundamentar o conhecimento das coisas humanas na linguagem Esta porém é de certa forma dessacraliza da posto que as palavras não são mais vistas como a expressão das coisas em si mesmas mas como nada mais que convenções humanas Assim surge um duplo humanismo o homem e o mundo por ele criado tornase o centro das 6 Curso de Ciência Política ELSEVIER preocupações dos sábios e o ponto de vista humano o fundamento para a elabo ração de um discurso racional sobre esse universo O humanismo ontológico e epistemológico dos sofi stas foi responsável por uma concepção extremamente relativista dos valores éticos políticos e re ligiosos que perdem o caráter absoluto e universal à medida que se acentua o seu caráter convencional e circunstancial Tal relativismo expresso de modo eloquente no famoso fragmento de Protágoras de Abdera O homem é a medida de todas as coisas tem raízes no próprio contexto político da Atenas democrática do século V aC no qual a medida humana de fato havia adquirido singular importância uma vez que os cidadãos faziam e alteravam as leis por meio de discussões públicas que confrontavam diferentes interesses e pontos de vista Em resumo podemos afi rmar que assim como o pensamento socráti co a corrente sofística representou verdadeira revolução cultural orientando os caminhos da refl exão fi losófi ca posterior O interesse pelo homem em lugar da physis universal invertendo a ordem de preocupações da geração fi losófi ca anterior o questionamento radical e demolidor de preconceitos tradicionais e o hábil domínio do discurso argumentativo são certamente traços que aproxi mam Sócrates e os sofi stas e que revelam por que o contexto intelectual e político de Atenas no século V aC foi responsável pela gênese do pensamento político ocidental Não queremos com isso todavia sugerir uma total identifi cação entre o humanismo socrático e o sofístico já que a pretensão de atingir a verdade e o compromisso de obediência aos deuses declarados pelo primeiro se afastam bastante da tendência ao ceticismo epistemológico e da indiferença religiosa presentes no segundo 122 Platão O interesse de Platão pelos assuntos políticos está enraizado na sua pró pria experiência de vida particularmente na sua relação com Sócrates Ter pre senciado o processo de julgamento e condenação do mestre foi com certeza um fato que deixou repercussões profundas sobre seu projeto fi losófi co Uma das mais importantes dessas repercussões é a centralidade assumida pela dimensão política em seu pensamento Isto porque a condenação de Sócrates aos olhos de Platão revelava até que ponto podem chegar os males consequentes de uma ina dequada organização do poder político manifestava quão injusta pode ser uma cidade quando suas instituições jurídicopolíticas estão apartadas do verdadeiro conhecimento enfi m era uma evidência concreta da necessidade urgente de se estabelecer uma relação entre fi losofi a e política por meio da qual o poder pu desse ser visto como uma espécie de corolário do saber 7 Capítulo 1 A contribuição do pensamento antigo e medieval Marcelo da Costa Maciel Por tudo isso podemos dizer que é a partir de Platão que o mundo da pólis é assumido defi nitivamente como parte integrante da agenda fi losófi ca Com relação a Platão podemos ir mais longe afi rmando ser a política o ponto culmi nante e a síntese de todos os seus esforços fi losófi cos Se como vimos na seção anterior Sócrates e os sofi stas foram responsáveis pela eleição do plano das con venções humanas como campo de refl exão é Platão o primeiro grande fi lósofo a elaborar de modo sistemático uma fi losofi a política Nela Platão não apenas descreve e avalia os modos de organização política então existentes mas acima de tudo constrói à luz da razão um projeto político Tal projeto contudo não é nem jamais poderia ser exclusivamente político mas sim políticopedagógico já que depende de um adequado aprendizado e visa em última instância a con dução dos homens à Verdade e ao Bem A refl exão política de Platão como de resto todo o seu sistema fi losófi co tem como base a sua teoria do conhecimento exposta de modo alegórico no famoso mito da caverna É desnecessário reproduzirmos aqui o relato em que Platão descreve a busca do homem pela Verdade a qual culmina com a aquisi ção da Ideia do Bem É preciso apenas ressaltar que o conhecimento verdadeiro episteme só é atingido mediante esforço e deliberada atitude de estranhamento com relação a tudo o que se assenta na opinião comum doxa Tratase de fato de um processo de conversão do olhar para o mundo que passa a ser encara do como um universo de aparências encobrindo a verdadeira realidade que se situa no plano inteligível O mais importante para o nosso propósito que é demonstrar a contribuição de Platão para a história do pensamento político é sublinhar que para ele a Ideia do Bem simbolizada na alegoria pela fi gura do sol consiste no ápice do conhecimento e aquele que ao fi nal de um longo e árduo processo de ascensão ao mundo real consegue contemplála está apto a conduzir os outros homens no caminho da Verdade e a organizar a cidade segundo leis e instituições essencialmente boas e justas Assim a política passa a ser vista ela própria como um conhecimento inserido em um plano maior que exige a contemplação da verdadeira essência do Bem devendo o poder ser exercido como missão decorrente da aquisição da sabedoria e não por ambição ou desejo do poder pelo próprio poder Com base nesse ideal Platão realiza a crítica de diversos sistemas políti cos historicamente existentes inserindoos em uma visão cíclica marcada por uma inexorável tendência à corrupção Essa tendência à corrupção manifestase inevitavelmente porque aos olhos de Platão todos os modos de exercício do poder se desvencilhados do conhecimento que conduz ao Bem são imperfeitos e fadados a degenerar Além do saber não há outro fundamento para o poder 8 Curso de Ciência Política ELSEVIER político capaz de fazêlo escapar ao processo de geração e morte que caracteriza tudo o que é humano Isto porque para Platão os governos refl etem as carac terísticas dos homens que os conduzem e somente a contemplação do mundo inteligível permite ao homem transcender o domínio do perecível e elevarse pelo pensamento ao domínio da verdadeira realidade que é eterna e perfeita Donde se conclui que apenas uma aristocracia intelectual feita de homens que se tornaram perfeitos à medida que se tornaram sábios pode assegurar um go verno estável e essencialmente justo já que a justiça é uma virtude e como tal consequência do Bem que nada mais é que a outra face da Verdade A teoria cíclica das formas de governo exposta por Platão no livro VIII do diálogo A República é uma das primeiras tentativas de análise sistemática dos modos de organização e exercício do poder político na história do pensamento ocidental Platão começa defi nindo a timocracia ou timarquia como o governo caracterizado pela ambição de glórias e honras militares A cidade de Esparta na qual o poder estava nas mãos de uma aristocracia guerreira é um exemplo empírico dessa forma de governo Nela acentuase o caráter militar do Estado e ignorase a necessidade de que ele tenha um fundamento fi losófi co A tendência à corrupção é inevitável porque a glória militar é alcançada por meio de vitórias e conquistas e estas propiciam a acumulação de riquezas A elite no governo tornase também uma classe endinheirada que faz uso do poder para aumentar sua riqueza Assim é de esperar uma alteração no caráter original da timocracia e sua transição para a forma de governo conhecida como oligarquia Na oligarquia o poder é exercido pelos ricos e para os ricos Esse governo fundase na desigualdade econômica e acirra tal desigualdade uma vez que as leis visam em última instância atender aos interesses da minoria rica A massa dos pobres impossibilitada de interferir sobre o governo é explorada dentro da legalidade instituída pelos detentores do poder Tratase também de uma forma imperfeita ou corrompida de governo pois segundo Platão à medida que a riqueza se concentra decresce a virtude A camada governante interessa da apenas em preservar seus privilégios econômicos negligencia o saber único fundamento seguro para o exercício do poder político A oligarquia está fadada à decadência porque engendra as condições para uma rebelião dos pobres explorados contra os ricos no poder Os primeiros to mam consciência de que são maioria e que podem derrubar a minoria que os oprime Esta conturbação social faz cair a oligarquia e propicia o surgimento de outro regime qual seja a democracia De acordo com Platão a origem mais remo ta da democracia seria a revolta contra o governo oligárquico a qual conduziria à tomada do poder das mãos de uma minoria e sua transferência para um grande 9 Capítulo 1 A contribuição do pensamento antigo e medieval Marcelo da Costa Maciel número de indivíduos até então excluídos dele Uma vez derrubada a oligarquia instaurase um sistema no qual a maioria dos homens tem o direito de partici par das tomadas de decisão Convertemse eles de meros governados a quem cabe simplesmente obedecer à condição de cidadãos isto é partícipes da arena política O governo democrático do qual a pólis ateniense fornece o melhor exem plo também recebeu a crítica de Platão que o insere no ciclo de corrupção que abarca todos os governos não fundados sobre o conhecimento da Verdade A democracia orientase pela vontade da maioria dos cidadãos a qual não necessa riamente será a mais justa e adequada A participação de muitos na elaboração das leis não é garantia de sua perfeição já que o prérequisito para tanto seria a contemplação da Ideia do Bem o que exige longo processo de busca e aprendi zado A democracia institucionaliza e legitima o erro coletivo uma vez que uma multidão ignara tem o poder de decidir Para Platão o resultado do processo legal encaminhado contra Sócrates tornara patente o caráter imperfeito da de mocracia Além disso Platão traz à tona certas distorções a que a forma democráti ca de governo está sujeita A igualdade dos cidadãos na arena política é mera mente formal se entre eles as desigualdades econômicas propiciam um acesso diferenciado à educação sobretudo no que tange ao conhecimento das técnicas do discurso Platão tem em mira o privilégio desfrutado pelos indivíduos de classes abastadas que podem pagar caro pelas aulas de retórica e oratória mi nistradas pelos sofi stas não por outra razão considerados por ele mercadores do saber tendo assim maiores oportunidades de nos debates realizados nas assembleias fazer seus interesses particulares parecerem interesses gerais Não haveria portanto garantia de que as decisões tomadas pelo processo democrá tico seriam de fato as melhores para a cidade e não apenas para aqueles que sabiam manipular a assembleia por meio de um discurso persuasivo porém não comprometido com a Verdade Platão ressalta ainda os efeitos perniciosos da liberdade instaurada e fo mentada pela democracia O gosto pela liberdade se não acompanhado do senso de moderação que só a sabedoria pode proporcionar tende a se tornar radical e a pôr em xeque toda e qualquer relação de obediência como a do fi lho para com o pai a do jovem para com o mais velho e a do aluno para com o mestre A própria obediência à lei passa a ser vista como uma restrição à liberdade havendo por isso o risco de desordem social Platão no livro VIII de A Repú blica referindose ao governo democrático alerta para o fato de que da maior liberdade é que surge a maior servidão Também na democracia o poder político 10 Curso de Ciência Política ELSEVIER por não estar baseado no fundamento correto está destinado a corromperse e a engendrar uma outra forma imperfeita de governo sendo esta a pior de todas qual seja a tirania Segundo Platão a origem da tirania é a desordem resultante do regime democrático A aversão a toda forma de obediência e hierarquia levaria ao des prezo pela lei e ao enfraquecimento do governo Tal situação tenderia a se agra var dando lugar a uma completa desordem social ou anarquia Nesse contexto a tomada do poder por uma minoria fortemente interessada nele para a defesa de seus interesses é uma possibilidade sempre presente Por isso é natural que surja a fi gura do demagogo aquele que pretende restabelecer a ordem apresen tandose como protetor do povo contra a ameaça de instauração de uma oligar quia Ele recebe a adesão da massa e a conduz porque é visto por ela como o seu defensor Assim os indivíduos atendem às suas exigências de recolher impostos e formar exércitos Com isso esse líder se fortalece cada vez mais passando a explorar economicamente o povo e a eliminar aqueles que poderiam oferecer lhe resistência Quando o povo percebe o tipo de domínio ao qual se encontra submetido e se rebela conhece a verdadeira face do demagogo que é a de um tirano Este oprime abertamente o povo fazendo de todos escravos Com a descrição da origem e da natureza da tirania Platão conclui a sua exposição sobre as formas de governo que aparecem dispostas em uma suces são marcada pela inevitável tendência à corrupção É importante salientar que os governos degeneram porque são imperfeitos desde o seu fundamento Só o governo perfeito não estaria sujeito à corrupção pois seu alicerce é seguro Tal alicerce é o saber Porém não a ilusão de saber fornecida pela opinião vulgar sempre limitada às aparências e distante das essências O poder político cumpre a tarefa que lhe compete que é gerar o bem da cidade quando exercido por aqueles que conhecem a natureza mesma do bem pois só assim tal poder não se perverteria em mero instrumento de opressão ou de conquista de glória e riqueza 123 Aristóteles É com Aristóteles que o empreendimento fi losófi co assume o caráter de um projeto de sistematização de todos os campos do saber Por isso quase todas as disciplinas científi cas modernas consideramno o seu precursor Sem dúvida ele também exerce esse papel com relação à Ciência Política Apesar do pionei rismo de Sócrates e dos sofi stas ao introduzirem as questões éticas e políticas no debate fi losófi co e da importância de Platão ao mostrar que o saber deve conduzir o poder e que a perfeita organização da cidade é uma consequência 11 Capítulo 1 A contribuição do pensamento antigo e medieval Marcelo da Costa Maciel da busca pela Verdade foi Aristóteles que desenvolveu a concepção da Política como ciência autônoma isto é uma área de conhecimento que embora articu lada a outras tem o seu objeto e o seu fi m próprios Não é por acaso que ele é o autor do primeiro grande tratado sobre política na história do pensamento ocidental a obra A Política escrita em meados do século IV aC Aristóteles inicia a obra discutindo acerca da origem do Estado ou seja da sociedade política e revela que tal origem remonta a leis naturais O Estado teria um fundamento natural pois seria o resultado de um processo desencadeado por força da natureza Em primeiro lugar existe a atração natural entre os sexos com vistas à reprodução Essa atração responsável pela união do homem com a mulher gera uma primeira espécie de vínculo social que é o vínculo conjugal Esse vínculo se estabelece para a garantia da sobrevivência da prole e porque a cooperação entre homem e mulher permite satisfazer melhor as necessidades materiais Assim surge a primeira sociedade a família ou sociedade doméstica Segundo Aristóteles o homem seria um zoon politikon ou seja um animal político pois teria uma tendência natural à vida em sociedade Existiria na pró pria natureza humana um desejo de viver em sociedade responsável pela união de muitas famílias e a formação do pequeno burgo Essa associação assim como a família possui uma utilidade pois nela a cooperação entre os indivíduos se am plia e a divisão do trabalho permite o provimento das necessidades cotidianas Tais fatores são responsáveis pelo natural crescimento do burgo e pela for mação da pólis a cidade completa Esta se caracteriza pela autarquia isto é pela autosufi ciência econômica e pela necessidade de um governo ou constituição po lítica Em linguagem moderna podemos designála como Estado ou seja uma sociedade organizada que pressupõe a existência de um poder encarregado da elaboração e imposição de regras para a convivência social É exatamente esse modo de vida que segundo Aristóteles distingue o homem dos outros animais pois viver em uma sociedade política exige a capacidade de estabelecer distin ções de natureza moral Tais distinções que estabelecem o que é bom ou mau certo ou errado justo ou injusto não são dadas pela natureza mas instituídas por regras sociais e garantidas por meio da autoridade política Aristóteles está na raiz de uma concepção organicista do Estado segundo a qual este constitui um todo que dá sentido às suas partes integrantes De acor do com essa concepção os indivíduos são elementos da família e esta é parte do Estado o qual deve ser colocado acima das partes exatamente porque as contém O Estado seria um grande organismo de que os indivíduos seriam membros O membro só tem sentido como parte do organismo Assim o indivíduo não é um ser autônomo que se basta a si mesmo mas depende da totalidade social Esta 12 Curso de Ciência Política ELSEVIER precisa estabelecer uma certa ordem no convívio de muitos indivíduos e famí lias Daí a necessidade de um poder propriamente político O modo de exercício desse poder depende da organização própria de cada Estado A constituição política de cada povo defi ne quem está autorizado a par ticipar do poder isto é quem possui a virtude de cidadão Este termo não se refe re a todo e qualquer habitante da cidade mas àqueles que podem tomar parte na autoridade política não se encontrando simplesmente submetidos a ela As for mas de governo variam de acordo com a defi nição da classe dos cidadãos e do grau em que eles podem interferir sobre o exercício do poder político No livro III de A Política Aristóteles defi ne diferentes formas de governo classifi cando as como justas ou injustas O critério dessa classifi cação não consiste no número daqueles que participam do governo mas sim no interesse por este visado que deve ser o interesse geral e não o interesse de quem exerce a autoridade As sim há governos justos de um só de alguns ou de muitos cada qual podendo corromperse e originar governos injustos desde que se desviem do interesse geral A realeza é o governo no qual o poder político é exercido por um único in divíduo Porém é um governo justo porque visa o interesse geral e não apenas o interesse do governante Não se confunde com a tirania que é a forma injusta ou corrompida do governo de um só pois o tirano oprime seus governados e faz uso do poder apenas para o seu próprio benefício Outra forma de governo justo é a aristocracia isto é o governo de uma minoria ou elite Por defi nição a aristocracia reúne os melhores da sociedade aqueles que possuem a virtude do mando o que exige prudência e responsabili dade Essa camada de notáveis no poder seria encarregada da promoção do bem do Estado Todavia quando existe uma minoria no poder utilizandoo apenas para defender seus próprios interesses sobretudo os interesses econômicos já não se trata de uma aristocracia mas sim de sua forma corrompida que é a oli garquia um governo que não visa o bem da sociedade mas apenas o da classe que governa A república também é apresentada por Aristóteles como uma forma justa de governo Nela muitos desfrutam do status de cidadão e isso garante a par ticipação direta nas tomadas de decisão do Estado Ela é justa desde que o en volvimento de muitos seja um meio para chegar ao bem comum Porém este objetivo pode também desvirtuarse conduzindo a um regime aparentemente republicano mas que na verdade é a sua corrupção Tratase da demagogia que se defi ne como o governo da massa ou multidão o qual segundo Aristóteles 13 Capítulo 1 A contribuição do pensamento antigo e medieval Marcelo da Costa Maciel tende a só enxergar os interesses dos pobres e muitas vezes conduz à violência e à ilegalidade Resumindo podemos dizer que para Aristóteles o bom governo é mo vido pelo interesse público e não privado e para que isso ocorra é preciso que o poder político pertença às instituições e não aos indivíduos A constituição política é uma espécie de estrutura que orienta o exercício do poder ditando a direção que ele tomará A realeza a aristocracia e a república são exemplos de constituições políticas justas porque repousam sobre leis justas isto é voltadas para a realização do interesse geral Aristóteles opõese a Platão quando este último afi rma ser a posse do verdadeiro conhecimento o único critério seguro mediante o qual se pode defi nir quem deve exercer o governo Para o primeiro não há uma única forma de governo justo e além disso existe maior probabilidade de que uma multidão reúna mais virtudes do que um único indivíduo ou uma minoria Por isso a sociedade mais justa é aquela em que um grande número de indivíduos par ticipa igualmente do mando e da obediência compartilhando do poder e das prerrogativas políticas O maior exemplo disso é o regime republicano pois nele a comunidade dos cidadãos inclui a maioria da população e esse corpo político exerce diretamente o poder Por outro lado a pior de todas as formas de governo é aquela em que os cidadãos são igualmente reduzidos à condição de escravos e submetidos ao governo de um só ou seja a tirania Esse governo contradiz a própria noção de cidadania ao não reconhecer as diferentes virtudes dos membros da sociedade política e ao privar a todos do direito de interferência sobre o poder A tirania é contrária à natureza das coisas pois entre homens livres e iguais não é a razão mas simplesmente a força que determina que um seja o senhor de todos 124 Políbio Como pudemos perceber até aqui os pensadores da época clássica época do apogeu da democracia e da fi losofi a gregas foram responsáveis pela trans formação da política em objeto de um saber racional e demonstrativo Iniciase então uma tradição que se manteve durante todo o período helenístico em que o mundo grego passa por profundas transformações a começar pela instaura ção do império macedônico que por um lado põe fi m à autonomia política das cidadesEstado e por outro propicia um contato maior entre distintas tradições culturais tais como a grega a judaica e a egípcia A fi losofi a do helenismo exa tamente por ter sido produzida em um contexto de perda das referências tradi cionais é marcada pela ênfase dada aos campos da ética e da política dos quais 14 Curso de Ciência Política ELSEVIER se esperavam orientações práticas As escolas helenísticas como o epicurismo o estoicismo o ceticismo e o ecletismo buscavam na razão critérios para a condu ção da vida individual e para a organização da sociedade política A obra de Políbio pensador grego que viveu em Roma no século II aC é representativa da refl exão política helenística e como tal se insere na tradi ção iniciada pelos clássicos É nítida a infl uência que Platão com sua teoria das formas de governo inseridas em um ciclo marcado pela inevitável decadência exerceu sobre o pensamento de Políbio Da mesma forma podese perceber nele o impacto da visão aristotélica acerca da distinção entre constituições políticas justas e corrompidas Políbio debruçouse sobre as ideias clássicas e pretendeu realizar uma espécie de síntese ao elaborar a sua teoria do governo misto do qual a República romana é o modelo por possuir instituições que estabelecem um equilíbrio entre as vantagens da monarquia representadas pela autoridade dos cônsules da aristocracia garantidas pela existência do Senado e da de mocracia asseguradas pelo respeito aos interesses e direitos dos cidadãos Aos olhos de Políbio a constituição política romana era excelente por gerar tal equi líbrio permitindo assim que o Estado prosseguisse em sua expansão No livro VI de sua História que traz uma análise detalhada da constituição romana Políbio justifi ca assim o seu interesse pelo tema Devese considerar a constituição de um povo como a causa primordial do êxito ou do insucesso de todas as ações apud Bobbio 1997 p 65 A análise polibiana das constituições parte da divisão aristotélica entre constituições justas e corrompidas conside rando como formas justas o reino a aristocracia e a democracia e como formas corrompidas a tirania a oligarquia e a oclocracia Este último termo que expressa a corrupção do governo popular vem substituir o termo demagogia utilizado por Platão e Aristóteles Literalmente signifi ca o governo da multidão ou da massa sendo uma forma corrompida por desprezar os costumes tradicionais a religião as leis o respeito aos pais e aos mais velhos O critério empregado por Políbio para discriminar entre governos justos e corrompidos afastase todavia do critério aristotélico o interesse visado uma vez que para ele a oposição se faz entre de um lado governos baseados na força e na arbitrariedade e de ou tro governos fundados no consenso e na legalidade Após defi nir e classifi car as formas de governo Políbio seguindo um ra ciocínio semelhante ao de Platão elabora uma concepção cíclica segundo a qual cada uma das formas justas tende a degenerar provocando o surgimento da for ma injusta correspondente Assim o processo histórico seria feito de etapas que alternam boas e más constituições tendendo sempre porém à degeneração Tal processo se inicia com o estabelecimento do reino que tende a se corromper ori 15 Capítulo 1 A contribuição do pensamento antigo e medieval Marcelo da Costa Maciel ginando uma tirania A queda da tirania por obra dos melhores na sociedade instaura a aristocracia a qual também tende a se corromper transformandose numa oligarquia Tal regime é derrubado com a rebelião do povo contra os abu sos da minoria no poder da qual surge a democracia Porém com o tempo esse sistema se encaminha para a ilegalidade e a desordem gerando a oclocracia En quanto na teoria cíclica de Platão uma forma de governo corrompida gera outra também corrompida já que somente a aristocracia intelectual por ele proposta seria um governo perfeito e estável no ciclo apresentado por Políbio uma forma boa degenera em uma corrompida sendo tal degradação um processo natural e inevitável Ao fi nal do ciclo instaurase a oclocracia Essa forma corrompida por sua vez será suplantada por uma forma justa o reino retornandose assim ao ponto de partida do ciclo que se repete infi nitamente De acordo com Políbio o principal objetivo que uma constituição polí tica deve almejar é a estabilidade pois só com ela a constituição pode de fato cumprir sua função que é estabelecer uma ordem na vida social Nesse sentido até mesmo as constituições por ele classifi cadas como boas seriam problemá ticas porque seriam todas instáveis não conseguindo escapar ao processo de degradação natural A razão para isto reside no fato de que são formas simples tais como as suas formas corrompidas correspondentes A solução proposta por Políbio é a constituição mista em que estejam combinadas as três formas boas Nas palavras do próprio Políbio Está claro de fato que precisamos considerar ótima a constituição que reúne as características de todas as três formas apud Bobbio 1997 p 69 Um governo misto é aquele que faz coexistirem os princí pios monárquico aristocrático e democrático o que é possível quando existe um rei sujeito ao controle do povo sendo o povo por sua vez controlado por um senado O caráter misto da constituição lhe confere estabilidade isto é maior duração e capacidade de resistir a mudanças Isto porém não a torna eterna o que signifi ca que em última instância nem mesmo os governos mistos estão livres do destino inescapável de tudo o que existe que é a decadência Até o Estado romano que alcançou estabilidade e excelência devido à sua estrutura mista na qual o poder era repartido entre os cônsules o Senado e o povo esta ria sujeito à lei natural e portanto após a ascensão expansão e glória passaria pelo declínio e a destruição Devemos ainda ressaltar o caráter precursor da refl exão política de Polí bio que com a sua teoria do governo misto defende um mecanismo de controle recíproco dos poderes numa perspectiva muito semelhante à das teorias políti cas modernas que propõem um sistema de equilíbrio dos poderes como a teoria da separação dos poderes de Montesquieu e o sistema de freios e contrapesos 16 Curso de Ciência Política ELSEVIER proposto pelos federalistas Da mesma forma a sua ênfase no estudo dos efei tos das constituições políticas faz dele um clássico no sentido de um autor cujo pensamento é permanentemente relevante pois este tema tornouse central na refl exão política moderna e contemporânea 13 A política no pensamento medieval 131 Santo Agostinho O encontro entre a fi losofi a grega e a religião cristã ocorrido no contexto cultural do helenismo teve consequências profundas sobre a formação do pen samento medieval A busca de uma conciliação entre o pensamento racional e a verdade revelada permitiu o nascimento de uma fi losofi a cristã considerada por Santo Agostinho a verdadeira fi losofi a Os primeiros séculos da era cristã fo ram marcados por esse movimento do cristianismo que buscou universalizarse não só como religião mas também como fi losofi a e para tanto foi fundamental a produção intelectual dos Padres da Igreja a Patrística A doutrina elaborada nesse período tanto na sua vertente grega como na latina estabeleceu os temas e problemas para os quais a Escolástica a mais típica manifestação do pensa mento medieval pretendeu dar solução É possível inferir uma fi losofi a política do pensamento patrístico a partir de suas refl exões sobre as relações entre a Igreja e o poder secular Essa fi losofi a parte da ideia de que o poder terreno é um instrumento para a instauração de uma ordem imposta por Deus Nesse sentido os príncipes a quem tal poder foi confi ado seriam ministros de Deus Tratase de uma concepção essencialmente teocrática segundo a qual o poder temporal deve estar a serviço do poder es piritual visão que permite tanto a legitimação da autoridade política por meio de seu fundamento na autoridade divina como a legitimação da dimensão po lítica da Igreja originando uma cultura clerical que submete as leis civis às leis divinas e coloca a Igreja acima do Estado Carlos Magno coroado pelo Papa Imperador de toda a Cristandade manifesta bem essa complexa relação que se pretendeu estabelecer entre a Igreja e o Estado Principal representante da Patrística latina Santo Agostinho século V considera a necessidade do poder político e portanto do Estado uma conse quência do pecado original A formação da sociedade é um meio pelo qual os homens buscam amenizar os efeitos da corrupção originada pela queda de seus primeiros pais É inevitável que as sociedades sejam todas imperfeitas já que suas leis são construídas por homens decaídos A Cidade dos homens opõe se por defi nição à Cidade de Deus reino de perfeição completamente regido pela lei eterna e perfeita de Deus Caberia à Igreja a missão de reformar as ins 17 Capítulo 1 A contribuição do pensamento antigo e medieval Marcelo da Costa Maciel tituições humanas a partir do ensinamento de Cristo o Redentor conduzindo a Cidade dos homens e preparandoa para o restabelecimento defi nitivo da Cidade de Deus que ocorreria com a segunda vinda de Cristo e o Juízo Final Rejeitando a premissa aristotélica da sociabilidade natural humana que insere a existência do Estado na ordem natural premissa que será acolhida mais tarde por São Tomás de Aquino Santo Agostinho não vê sentido na discussão acerca das formas de governo justas e injustas uma vez que todas estariam mar cadas pela mancha da corrupção humana Esse diagnóstico conduz à imperiosa valorização de outra instituição a Igreja fi gura terrestre da Cidade de Deus capaz de fazer a mediação entre a lei eterna e a lei temporal porém para tanto necessitando assumir também um caráter político Em completa harmonia com o princípio do fi losofar na fé segundo o qual a fi losofi a auxilia o homem a conhecer o seu Criador condição sine qua non para a felicidade individual a fi losofi a política de Santo Agostinho atribui à Igreja um papel imprescindível na busca da felicidade para toda a humanidade pois este fi m exige a restauração do mundo decaído por meio da adequação das leis humanas às leis divinas o que implica o reconhecimento da autoridade da Igreja O apelo às leis divinas e à supremacia do poder de Deus sobre quaisquer poderes humanos atribui um caráter crítico ao pensamento político de Santo Agostinho pois fornece critérios para o julgamento das autoridades seculares e das leis positivas Estas são injustas e não têm nenhum valor se contrariam a ordem natural estabelecida por Deus Tal postura pode até assumir caráter contestador uma vez que dela decorre a necessidade de resistir à autoridade política quando esta é pautada por interesses puramente humanos e não está a serviço da vontade divina 132 São Tomás de Aquino Santo Agostinho partindo do princípio da submissão da razão à reve lação e do poder secular ao poder divino colocou as bases para uma refl exão política cristã a qual foi desenvolvida ao longo da Idade Média atingindo a sua forma mais acabada em São Tomás de Aquino já no século XIII Todavia enquanto Santo Agostinho como de resto toda a fi losofi a patrística elabora um pensamento cristão por meio de uma aproximação entre o cristianismo e o platonismo São Tomás de Aquino benefi ciandose de um contato maior com o pensamento de Aristóteles graças ao trabalho de tradução e interpretação de suas obras realizado pelos árabes encontra no corpus aristotelicum fundamentos mais seguros para uma fi losofi a e uma política cristãs Realizando uma inter pretação cristã da metafísica aristotélica São Tomás considera Deus o primeiro 18 Curso de Ciência Política ELSEVIER motor Este porém não é só aquele que põe os seres em movimento mas sen do o Ser em si mesmo é o Criador de todos os outros seres que consistem em graus inferiores do Ser só podendo ser chamados de seres por participação no Ser divino Ainda partindo de Aristóteles para o qual todo ser existe tendo em vista um bem que lhe é próprio São Tomás afi rma que o Ser Supremo além de Criador é também o Legislador de todo o cosmos por ele criado o qual governa segundo sua lei eterna Esta atribui a cada ser deste mundo uma fi nalidade que é o seu bem A base aristotélica da refl exão de São Tomás de Aquino é responsável por uma importante diferença entre a sua fi losofi a política e a de Santo Agostinho O Estado e o poder político em vez de serem concebidos como obras contingentes criadas pelos homens em resposta às necessidades resultantes de sua própria corrupção são vistos por São Tomás como incluídos no plano perfeito de Deus São realidades que decorrem da agência criadora de Deus como todo ser decor re do Ser em si e como este é essencialmente bom e perfeito as coisas criadas ganham sentido quando se contempla a excelência de toda a ordem da criação E Deus viu que tudo era bom Gênesis 1 31 São Tomás de Aquino adere à premissa aristotélica da sociabilidade na tural humana vista como a força responsável pela formação das cidades terres tres Assim a necessidade do poder político ganha nova interpretação pois ela não é um sinal do pecado humano mas uma necessidade natural de cuja satis fação depende a própria realização do homem A cidade como toda forma de associação só existe porque tem em vista um bem Este bem não é simplesmente a autopreservação o que reduziria os agregados humanos à mesma condição daqueles que existem entre animais mas consiste na felicidade geral que en globa e ultrapassa os interesses privados Deus criou os homens para viverem em sociedade pois só a vida em sociedade é uma vida plena ou feliz digna da condição do homem na escala das criaturas Por isso é necessário haver um go verno terrestre que regule a multidão levandoa a alcançar o bem coletivo A função da autoridade política é ordenar a sociedade humana para que ela atinja a sua perfeição isto é produza o bem previsto pelo desígnio divino Quanto à forma que essa autoridade deve revestir São Tomás prescreve a mo narquia Antes de mais nada ela conta com fundamentos nas Escrituras que apresentam os reis do povo hebreu como escolhidos por Deus Além disso tem como modelo o governo que o próprio Deus exerce sobre todo o universo O Ser Criador é também Legislador e Juiz e submete todas as coisas a uma unidade de comando Por isso o poder para realizar as tarefas necessárias à organização 19 Capítulo 1 A contribuição do pensamento antigo e medieval Marcelo da Costa Maciel e ao bom funcionamento da coletividade humana legislar julgar administrar deve estar concentrado nas mãos de um rei Seguindo mais uma vez Aristóteles São Tomás de Aquino demarca a di ferença entre um rei e um tirano Este último não tem em mira o bem do povo mas apenas o seu próprio interesse assim como não estabelece leis justas mas utilizase da violência para impor sua vontade A esse tipo de autoridade deve se resistir pois ela desvirtua a sociedade humana de sua própria razão de ser A derrubada de um tirano contudo é um dever de todo o povo e não de qualquer indivíduo em particular e se for feita por iniciativa de um ou de apenas alguns indivíduos pode fomentar a divisão do povo e leválo a uma outra espécie de mal que é a completa desintegração da sociedade ou seja a anarquia São Tomás de Aquino apresenta os critérios segundo os quais as leis hu manas normas impostas pela autoridade política podem ser consideradas jus tas Em primeiro lugar elas precisam estar de acordo com a lei natural mani festação da lei eterna de Deus no mundo por Ele criado a qual por sua vez recebe a forma de preceitos positivos nas Sagradas Escrituras e nas regras es tabelecidas pela Igreja a lei divina revelada A autoridade secular portanto não deve exercer poder fora do controle da autoridade divina representada na terra pela Igreja na fi gura de seu chefe o Papa O poder real não é ainda visto como soberano pois se encontra submetido ao poder de Deus O atendimento a essas exigências é condição para que as leis humanas atinjam o seu fi m que é o bem da sociedade defi nido em termos aristotélicos como uma espécie de meio termo ou equilíbrio na repartição da riqueza material justiça distributiva e nas relações estabelecidas entre os indivíduos justiça comutativa Percebese assim no pensamento político de São Tomás o recurso a con ceitos da fi losofi a pagã mas sem jamais abalar o valor absoluto atribuído à Pala vra de Deus segundo a qual Cristo Deus feito homem teria confi ado a Pedro o exercício de sua suprema autoridade 133 Guilherme de Ockham O pensamento de Guilherme de Ockham século XIV baseado numa te oria do conhecimento empirista e nominalista e numa rigorosa separação entre fé e razão expressa no plano político a decadência da concepção teocrática do poder que orientara toda a refl exão política medieval Crítico feroz do caráter demasiadamente secular que aos seus olhos a instituição religiosa havia ad quirido Ockham é um dos pioneiros na defesa da autonomia do poder político com relação ao poder espiritual colocando as bases para o pensamento político moderno e sua exigência de um Estado laico 20 Curso de Ciência Política ELSEVIER Ockham rejeita completamente a tese segundo a qual o Papa enquanto sucessor de Pedro teria recebido de Cristo a plenitude de poderes afi rmando que essa espécie de poder que a tudo submete seja na ordem espiritual seja na temporal é contrária ao espírito do Evangelho pois instaura uma verdadeira escravidão O principal ministério do sacerdócio é servir e o Papa como Sumo Pontífi ce é o primeiro servo de Cristo Sua função não é dominar os homens e os reis mas zelar para que a Igreja continue fi el aos ensinamentos de Cristo os quais têm por base o Amor que liberta Segundo Ockham a estrutura mono crática da Igreja que atribui apenas a um indivíduo o poder de estabelecer as regras para toda a comunidade cristã não tem sentido pois nega a presença do Espírito Santo em todos os fi éis contrariando assim o relato bíblico do Pen tecostes e o sacramento do Batismo A preocupação excessiva com o poder e a riqueza estaria transformando a Igreja em uma instituição puramente mundana afastandoa assim de sua verdadeira vocação Se a relação dos próprios fi éis cristãos com o Papa não deve ser de sub missão muito menos a do poder político com o poder eclesiástico O Estado não está numa hierarquia supostamente estabelecida por Deus situado abaixo da Igreja mas as autoridades de ambas as instituições são distintas e autônomas A competência do poder temporal pertence aos reis e não ao Papa Rejeitando as doutrinas de Santo Agostinho e de São Tomás de Aquino as quais apesar das diferenças já aqui salientadas vinculam a ordem mundana a uma ordem sagrada superior Ockham retira do poder político qualquer caráter religioso e assim dá um passo decisivo para o surgimento de um pensamento político desvencilhado da teologia Entretanto mais do que interessado em defender a autonomia do poder real em face do poder papal o franciscano Guilherme de Ockham pretende com sua postura eminentemente crítica demonstrar a necessidade de uma urgente e profunda reforma na estrutura da Igreja de modo a fazêla recuperar o espírito essencialmente cristão do qual havia se desvirtuado Para isso seria necessário reconhecer o caráter funesto da teocracia a falibilidade do Papa o Amor como único mandamento a reger a comunidade dos fi éis e a pobreza como o modo de vida mais autenticamente evangélico As ideias de Ockham revelam de forma bastante eloquente a crise da Escolástica isto é do grande empreendimento intelectual da Idade Média no qual por diferentes modos de argumentação pretendeuse realizar um perfeito equilíbrio entre fé e razão A ruptura desse equilíbrio acarretou no campo da refl exão política a separação entre a ordem mundana e a ordem espiritual entre o poder político e o poder eclesiástico e entre o direito civil e o direito canônico 21 Capítulo 1 A contribuição do pensamento antigo e medieval Marcelo da Costa Maciel o que criou condições para o fl orescimento do pensamento renascentista com sua ênfase na autonomia da razão sua valorização do indivíduo e sua crítica aos poderes tradicionais As obras de Ockham apesar de censuradas exerce ram infl uência decisiva sobre diversos pensadores do século XIV tais como Jean Buridan Nicole dOresme Nicole de Autrecourt John Wyclif e Jan Huss que procuraram realizar a dissolução das grandes sínteses fi losófi coteológicas da Escolástica 134 Marsílio de Pádua Marsílio de Pádua contemporâneo de Guilherme de Ockham também se insere na tendência de separação entre fé e razão que marca o fi m da Escolástica Sua obra Defensor Pacis publicada em 1324 foi censurada pela Igreja e ele con siderado herético tendo sido excomungado logo após sua publicação A razão para isto reside na sua teoria de que o poder temporal deriva diretamente do povo e não de Deus o que confere ao Estado caráter essencialmente laico Mar sílio já não tem como referência o Império universal que abrange todo o mundo cristão mas o Estado nacional comunidade delimitada territorialmente cons truída com base na razão e na vontade humanas e submetida a uma autoridade própria Essa autoridade tem natureza exclusivamente política não estando vin culada à autoridade religiosa Assim como a razão não pode estar a serviço da fé o Estado não existe para a realização de uma ordem providencial mas atende a fi nalidades huma nas e terrenas a saber a regulação da convivência social e a promoção da feli cidade geral Para a consecução de tais fi nalidades o Estado precisa exercer um poder que nada tem que ver com o poder de Deus sobre o universo Assim no plano social existe uma soberania que não se confunde com a autoridade do Criador sobre todas as suas criaturas mas consiste em uma autoridade fundada no consentimento dos próprios homens À soberania terrena compete defi nir os critérios de orientação da vida coletiva sempre tendo em vista a justiça e a utili dade social e para tanto ela deve estabelecer leis e fazer uso de instrumentos de coação para que estas sejam cumpridas Marsílio de Pádua afastandose da perspectiva tomista desvencilha a discussão sobre as leis civis das noções de lei eterna e lei natural Antecipando em alguns séculos tanto Locke com sua concepção do contrato social como um pacto de consentimento como Rousseau com sua ideia de soberania popular Marsílio afi rma que o verdadeiro legislador é o povo ou aqueles designados expressamente pelo povo que tem poder para decidir o que é conveniente para si próprio As leis civis se impõem soberanamente sobre a coletividade dos ci 22 Curso de Ciência Política ELSEVIER dadãos e essa soberania decorre exatamente do fato de que elas são a expressão da vontade do povo Assim podemos perceber que na teoria de Marsílio de Pádua a soberania é não só exclusivamente política como popular Além disso ela se identifi ca com o poder da lei o que faz desse pensador do fi m da Idade Média um indiscutível pioneiro da defesa do Estado de direito A lei com a qual o governante está com prometido é aquela expressamente promulgada pelo povo e não um suposto direito natural que seria constituído por leis eternas e universais conhecidas pela razão e pelas Escrituras e impostas pela autoridade da Igreja Marsílio mais radical que Ockham chega a inverter a ordem estabelecida pela teologia política medieval na vida terrena é a Igreja que deve se submeter ao Estado pois a Igreja não é uma instituição política mas simplesmente o nome que se dá ao conjunto dos cristãos O seu chefe não detém poder superior àquele compartilhado pela comunidade dos cidadãos mas está ele também como todo cidadão sujeito às leis civis Enfi m a plenitudo potestatis é agora identifi cada com o Estado Com Marsílio de Pádua os conceitos de soberania e de Estado recebem formulações totalmente novas Tais formulações refl etem a luta pela afi rmação da autonomia da sociedade política contra as interferências da Igreja e de sua fi losofi a política Nesse sentido são expressões do profundo e irresistível pro cesso de secularização que marca o fi m do pensamento medieval e o alvorecer do pensamento moderno 14 À guisa de conclusão O objetivo deste capítulo inicial foi ressaltar a importância da refl exão rea lizada pelos antigos e medievais para o estabelecimento de temas problemas e conceitos que fazem parte da tradição do pensamento político ocidental Não foi nossa intenção fazer uma análise detalhada de cada um dos fi lósofos men cionados tarefa que certamente excederia os limites deste capítulo mas des tacar algumas de suas contribuições no plano da discussão sobre a sociedade e o poder político Esperamos ter deixado claro que a história das ideias políticas é feita também por uma galeria de pensadores já bem distantes no tempo que completamente inseridos nas polêmicas de suas épocas buscaram apreender e expressar o mundo político através do logos A galeria aliás é bem mais extensa do que a seleção aqui realizada Por isso mesmo este capítulo mais do que fornecer um mapeamento da fi losofi a po lítica produzida na Antiguidade e na Idade Média pretendeu suscitar a curiosi dade do leitor para este universo extremamente interessante e diversifi cado do ponto de vista intelectual Este fi m já justifi ca o empreendimento pois a curio 23 Capítulo 1 A contribuição do pensamento antigo e medieval Marcelo da Costa Maciel sidade é o primeiro motor da busca pelo saber e de acordo com Sócrates é esta busca que dá sentido e valor à vida 15 Perguntas para reflexão 1 Por que o diálogo com a Filosofia é importante para a Ciência Política contemporânea 2 Qual o papel de Sócrates na história do pensamento político ocidental 3 Qual a importância da Sofística no contexto político de Atenas do século V aC 4 Por que a filosofia de Platão é eminentemente política 5 Como Aristóteles realiza a distinção entre as formas de governo justas e corrompidas 6 Quais os argumentos de Políbio em defesa do governo misto 7 Em que sentido a reflexão política de Santo Agostinho pode assumir um caráter crítico 8 Como São Tomás de Aquino concebe as relações entre a Igreja e o Esta do 9 Sintetize a crítica que Guilherme de Ockham faz à estrutura e às orien tações da Igreja 10 Em que sentido as ideias de Marsílio de Pádua antecipam o pensamento político moderno Bibliografia AGOSTINHO Santo Santo Agostinho São Paulo Nova Cultural 2000 Col Os Pensadores ALBUQUERQUE Newton de Menezes Teoria Política da Soberania Belo Ho rizonte Mandamentos 2001 AQUINO São Tomás de Santo Tomás São Paulo Nova Cultural 1988 Col Os Pensadores ARISTÓTELES Ética a Nicômaco In Aristóteles São Paulo Nova Cultural 1987 Col Os Pensadores A Política São Paulo Martin Claret 2002 24 Curso de Ciência Política ELSEVIER BOBBIO Norberto A Teoria das Formas de Governo Brasília Editora da UnB 1997 CHÂTELET François DUHAMEL Olivier PISIERKOUCHNER Évelyne História das Ideias Políticas Rio de Janeiro Zahar 2000 LESSA Renato Por que rir da fi losofi a política ou a ciência política como téchne In Agonia aposta e ceticismo Ensaios de Filosofi a Política Belo Horizonte Editora da UFMG 2003 MARCONDES Danilo Iniciação à História da Filosofi a Rio de Janeiro Zahar 2000 PLATÃO Defesa de Sócrates In Sócrates São Paulo Nova Cultural 1991 Col Os Pensadores A República In Platão São Paulo Nova Cultural 2000 POLÍBIOS História Brasília Editora da UnB 1985 REALE Giovanni ANTISERI Dario História da Filosofi a Volume I Antigui dade e Idade Média São Paulo Paulus 2005 RUBY Christian Introdução à Filosofi a Política São Paulo Editora da Unesp 1998 Capítulo 2 Há vícios que são virtudes Maquiavel teórico do realismo político Ricardo Guanabara1 21 Introdução Difi cilmente há de se encontrar um pensador tão polêmico na ciência ou fi losofi a política quanto Nicolau Maquiavel Se pudesse nem o próprio persona gem imaginaria o quanto as páginas de seus textos provocariam tantas discus sões e nunca é demais dizer inspirariam tantas ações políticas nos últimos cinco séculos Tal fato demonstra o feito notável de ao longo da História um pensador ter servido a líderes e correntes políticas distintas no espectro político Para inú meros pensadores e homens da política os escritos maquiavelianos serviram ora como guia de refl exão ora como guia de ação Doutor e Mestre em Ciência Política pelo IUPERJ Graduado em Ciências Sociais pela UFF e em Direito pela PUCRio Professor do IBMECRJ e da UCAMCentro Tem experiência nas áreas de Ciência Política e Direito com ênfase em Direito Constitucional Atua principalmente nos seguintes temas Direito Constitucional Teoria Política Teoria do Estado História Política e Direitos Funda mentais Contato guanabarahotmailcom 26 ELSEVIER Curso de Ciência Política Não se poderia esquecer a admiração despertada pelo pensador fl orentino em fi guras como Napoleão Bonaparte ou mesmo em Antonio Gramsci pensador da esquerda italiana no século XX Se é correto dizer que a Igreja julgou peca minosas as lições de Maquiavel também é correto salientar que tais lições per manecem desafi ando o saber político contemporâneo como a comprovar que se a política tem uma lógica ela foi em grande parte apreendida e revelada por Maquiavel Nas páginas que se seguem abordaremos a trajetória desse grande pensa dor começando pela sua conturbada história de vida passando pelo contexto social de sua obra e a essência de seus escritos sobretudo de O Príncipe Nessa breve viagem temas como a natureza humana a história as habilidades polí ticas a fortuna estarão presentes tendo como pano de fundo o Renascimento movimento que abriu as portas para um mundo novo e devolveu ao homem sua capacidade criadora De que maneira isso transparece na obra de Maquiavel é o que este texto buscará mostrar 22 Breve relato biográfico É possível dizer que a vida de Maquiavel é marcada por fases bem distin tas constituídas por uma infância e juventude em que o autor teve sólida edu cação e formação humanística seguida por uma vida profi ssional curta porém intensa capaz de fornecer vasto material sobre a prática política em tempos de renascimento1 A formação sólida e a prática política se encontrariam mais tarde nas páginas dos textos maquiavelianos A última fase é marcada pela tentativa infrutífera de retorno à vida pública fase esta vivida no afastamento e no ostra cismo nos arredores de Florença Sigamos pois a trajetória da vida desse pensa dor para em seguida adentrarmos o estudo de sua obra política sobretudo de O Príncipe o mais famoso de seus trabalhos Se o fi m da vida de nosso pensador foi marcado pela infelicidade e pela frustração a infância e a adolescência revelaram grande preocupação familiar com a sua formação Seu pai Bernardo era formado em Direito e com inser ção na guilda dos advogados de Florença Itália Sua mãe Bartolomea também possuía boa formação sobretudo literária Assim é que os registros históricos demonstram que o pequeno Nicolò começou seus estudos aos sete anos e aos doze já transitava pela literatura latina com o auxílio de um professor de latim padre e também membro da guilda dos advogados De Grazia 1993 p 13 1 Para uma história da vida de Maquiavel há boas fontes como Grazia 1993 Pinzani 2004 Chevallier 1989 Skinner 1988 27 Capítulo 2 Há vícios que são virtudes Maquiavel teórico do realismo político Ricardo Guanabara Convém perguntar quais eram os autores que se faziam presentes na casa dos Machiavelli Ao que se sabe as próprias preferências do pai Bernardo co meçavam por Aristóteles e passavam por Cícero Ptolomeu Boécio bem como o Código e o Digesto justinianos De Grazia 1993 p 14 Assim não é de es tranhar a sólida formação demonstrada tempos depois por Maquiavel em suas obras Os livros eram como parte da família e foram muito bem aproveitados primeiro pelo pai e principalmente pelo fi lho Na última fase de sua vida Ma quiavel voltaria a viver intensamente na companhia dos fi lósofos clássicos Du rante pelo menos quatro horas todas as noites o pensador se entregava à leitura de autores como Lívio Políbio Tucídides e Xenofonte dentre outros que se fariam presentes como resultado desse intenso contato na mais importante obra de Maquiavel O Príncipe Pinzani 2004 p 9 Eis portanto uma face pronta desse pensador renascentista a sólida leitu ra dos pensadores humanistas o mergulho na tradição fi losófi ca grega e romana da antiguidade bem ao estilo do movimento cultural que ora dominava a Eu ropa Para entender no entanto o sentido de sua obra a fonte de seus ensina mentos é necessário conhecer a outra face dessa formação a experiência como homem de Estado funcionário a serviço da chancelaria de Florença cargo que lhe valeria a observação arguta das relações políticas das ações dos homens e o uso do poder Maquiavel não chegou a cumprir o papel então reservado pela sua for mação educacional Não se transformou em advogado No entanto logo seria convidado para ingressar no governo em uma posição habitualmente ocupada por advogados É a sua capacidade e seus estudos que o farão ter êxito em ta refas como preparar atas escrever cartas e relatórios A mesma capacidade o levará rapidamente a postos mais altos alçado pela confi ança nele depositada por parte de seus superiores na Chancelaria Em breve deixaria as escrivaninhas das repartições para cumprir missões externas cada vez mais importantes De Grazia 1993 p 26 Em julho de 1500 Maquiavel partiria rumo à França para uma missão de contato com o rei Luís XII Essa missão inauguraria a série de importantes trabalhos diplomáticos empreendidos por Maquiavel que até seu afastamento da vida pública totalizariam 23 missões É importante ressaltar que não se esgota nas legações o trabalho desenvol vido por Maquiavel até 1512 ano de seu afastamento O pensador acabaria se transformando em grande estrategista militar tendo escrito em 1506 o Discurso sobre como preparar o Estado de Florença às armas Também é digno de nota que uma das poucas obras de Maquiavel publicada em vida é A arte da guerra em 1521 Aqui o autor desfi laria todo o seu conhecimento militar acumulado em 28 ELSEVIER Curso de Ciência Política experiências e leituras dos clássicos assim como faria com o O Príncipe em que experiência pessoal e história se cruzam No entanto antes de chegar até essa obra considerada a mais importante devemos retornar ao infortúnio que mar caria a última fase da vida de Maquiavel A habitual instabilidade política que marcava a Itália renascentista e em especial Florença recrudesceria nos primeiros anos do século XVI Não obs tante o esforço empreendido por Maquiavel para constituir uma milícia bem organizada que defendesse Florença esta viveria ameaçada por exércitos es trangeiros e de mercenários Finalmente em 1512 o papa Leão X consegue por meio de tropas espanholas conquistar a República e mudar todo o seu quadro político Restabelecerseia a era dos Médici personifi cada agora na fi gura de Lorenzo de Médici Instaurado um período ditatorial e Maquiavel identifi cado com a corrente política deposta é afastado de seus cargos e em 1513 chegaria a ser preso e torturado acusado de fazer parte de uma conspiração republicana Pinzani 2004 p 13 Finalmente em março do mesmo ano é solto e se retira para seu exílio nos arredores de Florença de onde nunca mais retornaria à vida pública apesar de seus esforços É sabido que Maquiavel manteria a esperança de retornar à vida pública chegando para isso a escrever sua mais importante obra e dedicála a Lorenzo de Médici com uma exortação tomar a Itália e libertála das mãos dos bárba ros Pinzani 2004 p 14 O Príncipe obra que se tornaria clássica pela sua característica de ensinar a conquistar e manter Estados não cumpriu seu objetivo inicial de reconduzir Maquiavel às coisas do Estado Mas inscreveu o pensador fl orentino na galeria dos pensadores políticos mais famosos e infl uentes de todos os tempos Outras obras seriam escritas por Maquiavel em seu isolamento tais como os Comentá rios sobre a primeira década de Tito Lívio a já citada A arte da guerra e a peça também famosa A mandrágora além de uma história de Florença apresentada em 1525 ao papa Clemente VII Em 1527 Maquiavel falece aos 58 anos em Florença Sua obra no entan to ganharia um vigor jamais imaginado até mesmo pelo próprio autor Quanto à sua pessoa Maquiavel experimentaria os mais variados sentimentos variando do ódio e execração pública até a mais profunda admiração conforme demons trou Napoleão Bonaparte ao redigir seus comentários ao Príncipe Um de seus maiores inimigos seria a própria Igreja Católica que iria colocar sua obra no rol das leituras proibidas e pecaminosas e associálo ao demônio conforme demonstra o trocadilho inglês the old nick associado à fi gura de Maquiavel Curiosamente uma boa parte da fi losofi a ocidental primou por redimir o pensa 29 Capítulo 2 Há vícios que são virtudes Maquiavel teórico do realismo político Ricardo Guanabara mento fl orentino ao considerar sua obra valorosa para a fi losofi a política Tal foi o caso de Jean Jacques Rousseau para quem Maquiavel fi ngiu ensinar a política aos fortes mas na verdade quis mostrar suas engrenagens ao povo O mesmo se aplicaria a Hegel fi lósofo alemão que considerou preciosas as teses levanta das por Maquiavel Voltaremos adiante às diferentes leituras da obra de Maquiavel Por ora nos voltamos para o sentido de O Príncipe o mais famoso texto de Maquiavel e um dos maiores da história do pensamento político 23 O Príncipe contexto histórico Não é possível entender completamente o sentido da obra de Maquiavel sem analisar o contexto em que ela surge Esse contexto é marcado pela nova visão de mundo proporcionada pelo surgimento do Renascimento movimento cultural que revolucionou a Europa pósmedieval em vários campos como os das artes plásticas da literatura da dramaturgia da fi losofi a e das ciências2 O Renascimento traz em seu bojo a redescoberta dos valores da Antigui dade sobretudo os grecoromanos E traz a valorização da autonomia do ho mem responsável novamente por uma atitude criadora diante do mundo Com efeito substituise o teocentrismo pelo antropocentrismo Tal fato terá um peso fundamental nos escritos de Maquiavel uma vez que o homem político descrito em O Príncipe não teme inovar agir livremente sem medo de castigos e puni ções divinas conforme veremos O homem renascentista pressupõe uma ruptu ra com o modelo do medieval submisso à ordem teológica para colocar em seu lugar uma atitude autoafi rmativa com foco no mundo terreno e nesta vida Voltam a ser valorizados aspectos como a honra e a glória e retorna à ordem do dia a legitimidade de conquistálas É importante frisar que nada disso seria possível sem as condições objeti vas sobre as quais se consolidaram o ideário e o movimento renascentista Havia em curso um conjunto de transformações econômicas sociais políticas e técni cas que de certa forma antecediam à eclosão do Renascimento e que se revela ram fundamentais para o êxito do movimento Não é possível ignorar a enorme difusão proporcionada pela imprensa inventada anteriormente por Gutemberg Com ela as obras dos autores renascentistas puderam ser amplamente divul gadas quebrando o monopólio do saber que se colocava sob o poder da Igreja Riche 2005 p 7 A possibilidade da leitura individual e refl exiva ao alcance de cada homem signifi cou uma mudança não desprezível na forma de aquisição do conhecimento principalmente pelo acesso a perspectivas e experiências varia 2 Para uma abordagem do Renascimento ver Johnson 2001 e ainda Burckhardt 1991 30 ELSEVIER Curso de Ciência Política das não mais presas aos dogmas religiosos Ademais a difusão do conhecimen to proporcionaria a ligação com outras culturas de diferentes lugares da Europa e de outros continentes fato também proporcionado pela expansão náutica que originou inclusive uma época de grandes descobrimentos idem p 8 Outro traço fundamental do Renascimento e que marcaria grandemente o pensamento de Maquiavel foi a redescoberta dos valores da Antiguidade clássica A valorização das obras e dos autores clássicos haveria de representar fundamen tal para os propósitos do movimento renascentista Voltam à cena autores como Virgílio Horácio Homero Cícero e suas lições de oratória moral e política É nos clássicos da Antiguidade que os autores renascentistas se apoiarão para forjar a nova identidade antropocêntrica idem p 16 Autores como Pico della Mirando la pregarão a possibilidade de qualquer homem transgredir as barreiras terrenas que lhe sejam impostas valorizando a ousadia e a busca da glória e da virtù con ceito que seria também explorado por Maquiavel idem p 17 24 Maquiavel e a originalidade do pensamento político Constitui tarefa de grande difi culdade analisar o pensamento maquiave liano sem passar pelo adjetivo da originalidade O primeiro motivo para isso está na sua preocupação com a construção de uma resposta à instabilidade polí tica que marcava a Itália de seu tempo Não por acaso O Príncipe é uma obra que busca ensinar não só a conquistar mas a manter Estados tornandoos estáveis A segunda diferença com relação às obras políticas tradicionais seria a aborda gem desvinculada da abstração fi losófi ca etérea e especulativa Maquiavel parte da realidade política para tentar buscar a efi cácia nas ações humanas em detri mento da moral da ética ou de qualquer critério clássico de justiça Não surpreende portanto que o autor acabaria execrado pela Igreja e marcado como sinônimo do ardil do sórdido e da esperteza Não há limites éticos nem morais na busca da conquista e manutenção dos Estados Não há pensar em termos como bondade e justiça em um mundo marcado pelas maldades traições e instabilidades Se o que busca é a estabilidade não se pode adotar a política das boas ações e da moralidade Ao estabelecer um novo mo delo de pensamento Maquiavel inaugura a era do realismo político desprovido dos mandamentos religiosos e voltado fortemente para os resultados das ações humanas Como observação vale lembrar que o caráter inovador de sua teoria política não signifi ca o desprezo pelos autores da Antiguidade clássica Maquia vel dialogará frequentemente com esses autores aproveitandose inclusive dos conceitos tradicionais de virtù e fortuna Estes dois elementos somados a uma concepção de história cíclica e exemplarista e a uma visão ruim acerca da natu 31 Capítulo 2 Há vícios que são virtudes Maquiavel teórico do realismo político Ricardo Guanabara reza humana formam os ingredientes fundamentais para o bom entendimento de O Príncipe 241 Virtù e Fortuna Não é difícil compreender o sentido da palavra virtù Essencialmente tratase das qualidades desejáveis ao homem de Estado Signifi ca o conjunto de adjetivos que todo príncipe deve ter se quiser conquistar e manter Estados Não há difi culdade para a compreensão dessa proposição No entanto há que se esclarecer que Maquiavel iria subverter as qualidades até então tidas como indispensáveis ao bom príncipe ou seja Maquiavel iria concordar que a virtù é fundamental a qualquer Príncipe sem ela não se governa Mas é preciso defi nir bem quais são as qualidades que realmente importam para a arte da política Aqui começa um dos diálogos de Maquiavel com a Antiguidade e aqui reside também um dos pontos de ruptura do autor com o pensamento corrente de sua época Conforme se ressaltou anteriormente a invenção da imprensa constituiu um fator decisivo para que as ideias e as obras renascentistas pudessem ser am plamente divulgadas e a aquisição do saber transformado É justamente a in venção da imprensa que causará um fenômeno particularmente interessante na Itália renascentista o surgimento dos manuais de como governar bem ou de conselhos aos governantes É Quentin Skinner um dos maiores estudiosos do pensamento de Maquiavel e do pensamento político clássico quem descreve o momento No fi nal do século XV constituírase já uma vasta literatura humanista de um novo gênero os livros de conselhos para os príncipes graças a um novo meio de comunicação a imprensa Autores ilustres como Bar tolomeo Sacch Giovani Pontano e Francesco Patrizi escreveram trata dos destinados a guiar a conduta de novos governantes baseandose todos eles num mesmo princípio fundamental que a posse da Virtù constitui a chave para o êxito de um príncipe Skinner 1988 p 58 Ressalta Skinner que todos os apologistas das formas corretas de gover nar usaram como fonte essencial de seus ensinamentos os autores da Antigui dade clássica como Cícero Segundo o autor os chamados moralistas romanos como Cícero haviam deixado para a posteridade um conceito de virtus em que fi guravam três séries de qualidades Em primeiro lugar era indispensável ao príncipe possuir as quatro virtudes cardeais sabedoria justiça coragem e tem perança idem p 60 Mais tarde outros quatro atributos seriam agregados a honradez a magnanimidade a liberalidade e a moralidade reforçando assim a 32 ELSEVIER Curso de Ciência Política ideia de que a melhor política é a da moralidade Em A obrigação moral Cícero observaria que a conveniência nunca pode entrar em confl ito com a retidão moral Skinner 1998 p 61 É com base nesses argumentos que os contemporâneos de Maquiavel vão escrever seus manuais Como reforço aos seus argumentos em prol da morali dade e das virtudes cardeais alegadas por Cícero esses autores agregaram argumentos cristãos aos seus conselhos insistindo que mesmo que o príncipe alcançasse a glória política com métodos contrários ao aconselhados have riam de ser castigados com a retribuição divina em outra vida Skinner 1998 p 61 Eis a dura tarefa a ser empreendida por Maquiavel contraporse a um só tempo aos ideais cristãos e aos da Antiguidade clássica ambos considera dos como argumentos unânimes Mas essa seria uma das grandes marcas do pensamento maquiaveliano o pensamento original na contramão da cultura dominante Sua resposta a essa cultura política seria dada no capítulo XV de O Príncipe Maquiavel chega a aludir às qualidades desejáveis que os príncipes deveriam ter mas argumenta bem ao tom de seu realismo político que prati car a virtù tradicional seria condenar o príncipe à ruína segundo suas próprias palavras Resta agora ver como deve se comportar um príncipe em relação a seus súditos ou seus amigos Como sei que muitos já escreveram sobre esse assunto temo que escrevendo eu também seja considerado presunço so sobretudo porque ao discutir essa matéria me afastarei das linhas traçadas pelos outros Porém sendo meu intento escrever algo útil para quem me ler pareceme mais conveniente procurar a verdade efetiva das coisas do que o que se imaginou sobre elas Muitos imaginaram repúblicas e principados que jamais foram vistos e que nem se soube se existiram de verdade porque há tamanha distância entre como se vive e como se deveria viver que aquele trocar o que se faz por aquilo que se deveria fazer aprende antes a arruinarse que a preservarse pois um homem que queira fazer em todas as coisas profi ssão de bondade deve arruinarse entre tantos que não são bons Daí ser necessário a um príncipe se quiser manterse aprender a poder não ser bom e a valerse ou não disto segundo a necessidade Maquiavel 2007a p 73 Maquiavel demonstra portanto com clareza sua grande divergência em relação ao pensamento político dominante em sua época A virtù embora jamais defi nida claramente por Maquiavel em qualquer parte de sua obra aparece cla ramente ao longo de suas lições Embora endossando a ideia clássica de que a ela 33 Capítulo 2 Há vícios que são virtudes Maquiavel teórico do realismo político Ricardo Guanabara é o nome dado ao conjunto de qualidades que permitem a um príncipe ter êxito em sua carreira vai divergir quanto ao sentido desses atributos principescos É novamente Skinner quem nos adverte de que a virtù está relacionada com a capacidade de agir segundo os ditames da necessidade independentemente de se praticar uma boa ou má ação A virtù signifi cará portanto a fl exibilidade mo ral indispensável a qualquer príncipe que deve ter a mente aberta pronta a se voltar em qualquer direção conforme exijam os desígnios da fortuna Skinner 1988 p 65 Eis portanto o melhor entendimento do signifi cado maquiaveliano de virtù Ele reside na fl exibilidade que permitirá ao príncipe a escolha de um le que de ações determinadas não necessariamente comprometida com ideais de bondade e moralidade ou justiça Tais atributos beiram a irracionalidade em um mundo dominado por homens sempre prontos a trair e ademais marcado pela instabilidade Tal conclusão signifi ca que o homem deve portanto compreender que por vezes será necessário praticar a maldade a dissimulação a simulação a mesquinhez dentre outras categorias menos nobres de comportamento tão contrárias ao mundo cristão Mas é assim que fi ca demonstrada a lógica própria da política diferente da moralidade e da religião Tratase de conquistar e man ter Estados e as práticas adequadas a esse intento não residem nos manuais da Antiguidade clássica ou nas doutrinas cristãs É preciso compreender a especi fi cidade da política se nela quiser sobreviver o príncipe Maquiavel desdobrará o tema em vários capítulos de O Príncipe chegando a exortar os governantes a praticar a maldade e a bondade segundo a meta do êxito político Outro conceito fundamental para a compreensão dos escritos de Maquia vel é o de fortuna A exemplo da virtù aqui também estará presente uma certa mutação no conceito em relação à Antiguidade clássica Para Maquiavel a for tuna representaria o imponderável o acaso algo que os homens não poderiam prever e que por isso mesmo poderia lhes ser fatal caso os pegasse despreve nidos O fenômeno seria essencial na política pois da mesma forma que pode trazer a glória sem esforço pode arruinar governantes incautos com a força de sua surpresa Novamente com o foco na Antiguidade clássica Maquiavel observa que a fortuna sempre tida como um grande fator a considerar na arte da política Seus poderes seriam imensos tanto para o bem quanto para o mal Afi nal dessa deusa caprichosa sempre se podem esperar benesses ou um grande revés A divergir dessa tese estavam os moralistas romanos que enxergavam a deusa fortuna como uma boa força e aliada potencial Skinner 1988 p 44 Dela se poderia esperar glória honra e poder Restava então a questão fundamental de 34 ELSEVIER Curso de Ciência Política como atrair a atenção da fortuna para merecer sua escolha Aqui aparecerá uma forte associação da ideia de fortuna com a imagem de uma mulher Cícero che garia a afi rmar que a fortuna é mulher Da natureza feminina da fortuna adviriam conclusões sobre as suas pre ferências Os moralistas vão afi rmar que se ela é mulher decerto preferirá as qualidades de um homem viril e corajoso atributos encontráveis segundo Cí cero apenas no homem que possui a virtù É para esse homem que ela irá sorrir Skinner 1998 p 47 A Idade Média mudaria novamente a forma como se via a fortuna De força ou mulher a ser conquistada a fortuna agora passa a ser indiferente aos homens não sendo possível portanto conquistála Não se deve buscar a gló ria pela conquista da fortuna pois seria um esforço inútil Como consequência deveriam os homens retornar seus olhares para o céu verdadeiro lugar da feli cidade humana A felicidade deveria ser buscada em outra dimensão que não a puramente terrena Assim a busca da honra e glória neste mundo deveria ser abandonada e essa conclusão seria uma mensagem divina de reorientação aos homens É o Renascimento quem resgatará a visão de que a fortuna poderia ser conquistada Antes que Maquiavel venha a tratar do tema vários autores resga tarão de alguma maneira os atributos originais da deusa fortuna Retorna à baila a ideia de que a fortuna favorece os bravos Skinner 1998 p 49 Maquiavel tratará do tema no capítulo XXV de O Príncipe O autor começa sua abordagem lembrando que muitos consideram que os homens são governa dos pelos desígnios da fortuna e de Deus e que tal ideia possuía bastante força No entanto acredita que o livrearbítrio dos homens não deve ser desconsidera do sendo plenamente possível atribuir à vontade dos homens cerca de metade de suas ações Julgo possível ser verdade que a fortuna seja árbitro de metade de nos sas ações mas que também deixe ao nosso governo a outra metade ou quase Comparo a sorte a um desses rios impetuosos que quando se irritam alagam as planícies arrasam as árvores e as casas arrastam as terras de um lado para levar a outro todos fogem deles mas cedem ao seu ímpeto sem poder detêlos em parte alguma Mesmo assim nada impede que voltando a calma os homens tomem providências cons truam barreiras e diques de modo que quando a cheia se repetir o rio fl ua por um canal ou sua força se torne menos livre e danosa O mesmo acontece com a fortuna que demonstra a sua força onde não encontra uma virtù ordenada pronta para resistirlhe e volta seu ímpeto para 35 Capítulo 2 Há vícios que são virtudes Maquiavel teórico do realismo político Ricardo Guanabara onde sabe que não foram erguidos diques e barreiras para contêla Maquiavel 2007a p 119 Maquiavel aliase de certa forma aos humanistas clássicos que defen diam a importância da virtù para a contenção dos caprichos da fortuna A virtù é o elemento essencial para escapar aos desígnios da deusa A tal ponto que no capítulo VII Dos principados novos que se conquistam com as armas e a fortuna de outrem Maquiavel analisa a situação dos que chegaram ao poder pelo acaso sem possuir a virtù e benefi ciandose da escolha que a fortuna fez a outrem A esses breves felizardos Maquiavel prevê a ruína pois não foram dotados da astúcia e sabedoria para governar ou se quisermos são desprovi dos da virtù e sucumbirão ante a primeira crise ou capricho da fortuna a mesma que lhes deu a ascensão política O fi nal do capítulo XXV que trata da fortuna seria nos tempos atuais bastante polêmico pelo tom comparativo em relação às mulheres De qualquer forma as palavras maquiavelianas não deixam dúvida quanto à visão que o autor possuía das semelhanças entre a deusa e as mulheres Concluo portanto que variando a fortuna e obstinando os homens em sua maneira de ser eles serão felizes enquanto ambas as coisas esti verem de acordo mas quando elas discordarem serão infelizes Es tou convencido do seguinte é melhor ser impetuoso do que prudente porque a fortuna é mulher e é necessário para dominála baterlhe e contrariála Vêse que ela se deixa vencer mais pelos que agem assim do que pelos que agem friamente e como mulher é sempre amiga dos jovens porque são menos prudentes mais ferozes e a dominam com maior audáciaMaquiavel 2007a p 122 Da análise de Maquiavel sobre a fortuna devemos reter alguns pontos es senciais Primeiro é preciso ter em conta o papel do acaso e do imponderável nos negócios humanos Eles são capazes de trazer a glória mas também a ruína A conjuntura política como a vida é essencialmente mutável Exatamente por isso é preciso estar atento à mudança dos ventos Maquiavel atribui essa quali dade ao homem de virtù que é capaz de construir diques para conter as inunda ções provenientes das mudanças É preciso portanto olhar adiante e precaver se ante a volatilidade dos tempos Para isso é necessário astúcia política De outro lado não se pode olvidar que Maquiavel também impõe ne cessariamente a qualidade da audácia da coragem e da virilidade para atrair e enfrentar a fortuna bem como dominála Pelo exposto a estabilidade política estará sempre mais perto do príncipe corajoso e impetuoso Seus atributos serão premiados pela escolha da fortuna e sua sabedoria evitará todo e qualquer de 36 ELSEVIER Curso de Ciência Política sastre Não se governa sem os elementos da virtù e da fortuna Eles se encontra rão em algum momento Mais um motivo para estar atento às lições proporcio nadas pela visão maquiaveliana da política ou se quisermos de seus conselhos Estes pressupõem ainda a apreensão de dois outros importantes elementos a natureza humana e a história 242 Natureza humana e História Dois outros conceitos fundamentais no pensamento de Maquiavel estão essencialmente ligados ou seja um é capaz de explicar o outro Mais do que isso entender a ideia de natureza humana em Maquiavel é condição sine qua non para a correta apreensão do que é a história para o pensador fl orentino A ideia de natureza humana possuirá ao longo da trajetória do pensamen to ocidental estreita ligação com a política Para vários dos fi lósofos políticos e a natureza humana que estabelece o formato do Estado que se deseja construir o mesmo acontecendo em relação à tarefa de explicar a origem do Estado O leitor terá a oportunidade de comprovar tais argumentos em inúmeras páginas deste livro quando se deparar com autores como Thomas Hobbes John Locke ou os Federalistas Por ora é Maquiavel quem está no centro das atenções e portanto sem hesitar devese assumir que a imagem do homem para esse pensador é a pior possível Quando se examinaram as relações da virtù tradicional construída e pregada pelos moralistas romanos com a virtù maquiaveliana foi possível vislumbrar a razão maior da recusa de Maquiavel à política da bondade ou da generosidade como vetor das ações dos governantes Porque há tamanha distância entre como se vive e como se deveria vi ver que aquele que trocar o que se faz por aquilo que se deveria fazer aprende antes a arruinarse que a preservarse pois um homem que queira fazer em todas coisas profi ssão de bondade deve arruinarse en tre tantos que não são bons Daí ser necessário a um príncipe se quiser manterse aprender a poder não ser bom e a valerse disso segundo a necessidade Maquiavel 2007a p 73 Eis portanto o diagnóstico maquiaveliano os homens não são bons e tal situação inviabiliza a bondade permanente como política de Estado O próprio autor aprofunda sua análise pessimista quanto à natureza humana ao afi rmar que podese fazer a seguinte generalização acerca dos homens são ingratos caprichosos mentirosos e embusteiros Fogem do perigo e são ainda ávidos de vantagens Maquiavel apud Skinner 2003 p 158 37 Capítulo 2 Há vícios que são virtudes Maquiavel teórico do realismo político Ricardo Guanabara O pessimismo acerca da natureza humana será tema constante em todos os escritos de Maquiavel Em Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio o autor retorna ao tema ao admitir a possibilidade de se conduzirem os homens sem o uso da força Como bem ressalta Quentin Skinner Maquiavel menciona a inveja inerente à natureza humana para depois concluir Ao se fazer a consti tuição e a legislação de uma república devese considerar como certo que todos os homens são perversos e darão vazão à maldade inculcada em suas mentes sempre que tiverem oportunidade para tanto idem p 206 Não há quanto a essa temática contradição nos diversos escritos de Ma quiavel Mesmo em suas obras não políticas como a comédia A mandrágora de 1518 que faria enorme sucesso em várias cidades italianas A peça narra a estória de Callimaco homem de 30 anos que se apaixona por Lucrezia jovem esposa de Messer Nicia advogado já idoso Para conquistar sua amada Callimaco engana Messer Nicia já que este era estéril dizendo ser a planta mandrágora a solução para a sua infertilidade No entanto para obter o resultado de maneira infalível Lucrezia precisaria deitarse com outro homem logo após tomar a poção deriva da da planta Esse é o enredo da peça na qual novamente se vislumbra uma série de vícios inerentes à natureza humana Maquiavel 2003 Mais uma vez Maquiavel se choca contra o modelo de virtude de sua épo ca deixando entrever um cenário de cinismo onde os homens agem sem freios em busca da satisfação de seus desejos agora não em formato de conselhos aos príncipes mas em forma de comédia Nas páginas dos textos de Maquiavel encontramse os seguintes adjeti vos para os homens ingratos volúveis dissimulados simuladores invejosos ambiciosos maldosos dentre outros É com essa natureza humana que os go vernantes terão de lidar não podendo esquecer jamais a incômoda situação em que estão inseridos rodeados de homens ávidos por trair Essa situação levará Maquiavel a defender claramente a ideia de que ao príncipe é melhor ser temido do que ser amado pois se o temor dos súditos é capaz de desestimular eventuais traições o mesmo não acontecerá com o amor a eles devotado Sua espada por tanto deve estar sempre pronta a ser usada em seu principado para protegêlo em um mundo em regra hostil O tema do confronto entre amor versus temor dos súditos e sua segurança para o príncipe aparecerá tanto em O Príncipe como nos Discursos Nesta Maquiavel examina os exemplos de Cipião e Aníbal O pri meiro líder foi marcado pela bondade e liberalidade tendo conquistado o amor de seus súditos O segundo foi temido pela sua crueldade A história parece ter punido Cipião pela sua imprudência 38 ELSEVIER Curso de Ciência Política O prejuízo sofrido por Cipião foi que seus soldados se rebelaram na Espanha com parte de seus aliados e outra causa não houve para tal senão o pouco temor que lhe devotavam porque os homens são tão inquietos que por menos que alguém lhes abra as portas à ambição logo se esquecem do amor que nutriam pelo príncipe em razão de sua humanidade foi o que fi zeram os soldados e aliados de que falamos e Cipião para remediar esse inconveniente foi obrigado a usar em parte a mesma crueldade de que fugira Quanto a Aníbal nenhum exemplo particular nos mostra que sua crueldade ou deslealdade o tenham pre judicado Maquiavel 2007b Outro grande estudioso de Maquiavel Isaiah Berlin acrescenta que é a natureza humana que inviabiliza a construção de uma sociedade baseada em preceitos cristãos Para que essa sociedade pudesse existir sobre a terra os ho mens teriam que ser muito diferentes do que sempre foram Berlin 2002 p 315 No entanto é digna de nota também a observação de Berlin de que o fato de Maquiavel ostentar um diagnóstico ruim acerca da natureza humana e a ne cessidade de o príncipe estar preparado para cometer crueldades não deve fazer de Maquiavel um sádico expressão que surgiria séculos depois do Renasci mento Em outras palavras não se deve precipitadamente construir um perfi l de Nicolau Maquiavel a partir de seus escritos políticos Maquiavel não é um sádico ele não sente prazer com a necessidade de empregar a crueldade ou a fraude para criar e manter o tipo de socieda de que admira e recomenda Seus exemplos e preceitos mais selvagens aplicamse apenas a situações em que a população é inteiramente cor rupta e precisa de medidas radicais para que sua saúde seja restaurada Maquiavel 2007b p 321 Berlin ressalta ainda a pouca receptividade de Maquiavel com os líderes que abusam da crueldade sem que haja necessidade para tanto São conhecidas suas críticas a Agátocles o tirano de Siracusa homem marcado pela desuma nidade abusiva O que queria dizer Maquiavel então A resposta parece estar clara no capítulo XV de O Príncipe Não há saída para o príncipe que deseja ser bom clemente e justo São adjetivos admiráveis mas incompatíveis com a realidade da política e das sociedades Não se trata portanto de uma escolha dos vícios simplesmente Tratase de pensar sobre os fatores que podem levar o príncipe e o Estado e à ruína bem como os antídotos contra tais ameaças Maquiavel cede 39 Capítulo 2 Há vícios que são virtudes Maquiavel teórico do realismo político Ricardo Guanabara não aos piores defeitos humanos mas ao realismo e à dinâmica da sobrevivência política Assim não se pode perder de vista em relação aos homens o seu caráter imutável Conservam suas piores características ao longo dos tempos Tal sen tença traz consigo uma consequência inevitável se os homens são os mesmos tendem a reagir da mesma maneira ceteris paribus isto é mantidas as mesmas condições Estão criadas portanto as condições para a repetição da história Esta se repete porque os homens costumam agir de uma mesma maneira e ostentam características indeléveis Diante da repetição muito provável da história convém estudar os fatos passados para melhor agir no presente e no futuro A história assim possui o inequívoco poder de fornecer exemplos e cursos de ação O príncipe de virtù deve portanto ser um estudioso da história pois de seus exemplos extrairá cursos de ação política efi cazes Quanto aos exercícios da mente deve o príncipe ler obras históricas e refl etir sobre as ações dos homens excelentes ver como se comporta ram nas guerras examinar as causas das vitórias e derrotas a fi m de poder escapar destas e imitar aquelas Mas sobretudo deve agir como antes agiram alguns homens excelentes que se espelharam no exemplo de outros que antes deles haviam sido louvados e glorifi cados e cujos gestos e ações procuraram ter sempre em mente É o caso de Alexandre Magno que imitava Aquiles de César que imitava Alexandre e de Cipião que imitava Ciro Quem ler a vida de Ciro escrita por Xenofon te reconhecerá depois na vida de Cipião o quanto este deveu de sua glória àquela imitação Um príncipe sábio deve observar compor tamentos tais e jamais permanecer ocioso nos tempos de paz mas com engenho fazer um cabedal para dele se valer na adversidade a fi m de que quando mudar a fortuna esteja sempre pronto a resistirlhe Ma quiavel 2007a p 7172 Maquiavel deixa transparecer nos diversos capítulos de O Príncipe e dos Discursos o quanto aprecia os exemplos históricos Estes são como aliados de suas observações empíricas acumuladas ao longo dos anos em que viveu na carreira política São como suporte a muitos de seus conselhos políticos Uma de suas grandes fontes é o Antigo Testamento o qual recomenda como um precio so manancial de fatos históricos De Grazia 1993 p 69 Em sua outra especialidade a arte da guerra sobre a qual também pro duziu um livro Maquiavel também faz uso reiterado dos exemplos históricos 40 ELSEVIER Curso de Ciência Política Ler tais fatos é quase tão importante quanto os exercícios do corpo ou mesmo o conhecimento e treinamento dos ataques Por fi m a apologia da leitura e apreensão dos conhecimentos históricos também encontra abrigo nos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio Nesta obra o tema da história exemplarista aparece no capítulo intitulado em povos diferentes muitas vezes se observam os mesmos acontecimentos Assim se ex pressa Maquiavel Quem considere as coisas presentes e as antigas verá facilmente que são sempre os mesmos os desejos e os humores em todas as cidades e em todos os povos e que eles sempre existiram De tal modo que quem examinar com diligência as coisas passadas facilmente preverá as futuras em qualquer república prescrevendo os remédios que foram usados pelos antigos ou se não encontrar remédios já usados pensará em novos devido à semelhança dos acontecimentos Mas como essas considerações são negligenciadas ou não são entendidas por quem lê ou se são entendidas não são entendidas por quem governa seguese que sempre se vêem os mesmos tumultos em todos os tempos Ma quiavel 2007b p 121 25 Conselhos aos governantes Até aqui se buscou desvendar os temas centrais ou conceitos que permitem melhor entendimento do pensamento maquiaveliano o que inevitavelmente le vou a uma pequena discussão fi losófi ca Não se deve esquecer no entanto que Maquiavel fi cou conhecido pelos seus conselhos aos governantes em especial os oferecidos em O Príncipe a Lorenzo de Médici governante de Florença à época do afastamento de Maquiavel O livro é dedicado a Médici o que levou muitos dos historiadores políticos a considerar o gesto de Maquiavel como interessei ro Uma tentativa frustrada de retornar á vida pública uma vez que o gesto não surtiu o efeito desejado Como já foi dito a obra de Maquiavel alcançaria grande dimensão apenas após a sua morte De qualquer forma o pensador fl orentino buscou no livro expor todo o seu conhecimento das coisas do Estado Na verdade ainda que se destaque o fato da oferta a Lorenzo de Médici não se deve negligenciar o enorme valor político da obra O Príncipe é um livro com pretensões e alcance bem maiores do que uma simples e vã oferenda Não fosse assim não alcançaria a notoriedade de séculos e a admiração de tantos ho mens Acima de tudo devese retornar à essência da obra ensinar a conquistar e a manter Estados Ensinamentos de quem como defi niu o próprio Maquiavel 41 Capítulo 2 Há vícios que são virtudes Maquiavel teórico do realismo político Ricardo Guanabara aprendeu com o estudo das coisas antigas e a experiência das coisas modernas isto é com a observação em meio a tantas missões diplomáticas e políticas Não se trata aqui de expor todos os capítulos de O Príncipe embora a leitu ra seja aconselhável a todos os leitores que se interessem minimamente por polí tica e fi losofi a Nesse sentido é insubstituível No entanto vale a pena apontar algumas das mais interessantes lições políticas procurando não incorrer no ris co da simplifi cação Considerese portanto como observações sobre temas que merecem ser destacados e aprofundados pelos leitores de Maquiavel 251 Da prática da maldade e da bondade Um dos mais célebres conselhos de Maquiavel aos governantes referese à maneira pela qual se devem praticar atos de bondade e de maldade Como já foi discutido nas páginas anteriores o príncipe de virtù deve estar preparado para empregar a maldade caso seja necessário uma vez que não se pode ser bom ou justo todo o tempo Assim Maquiavel sugere que existe uma maneira capaz de atenuar o malestar causado pela maldade assim como existe um meio de pro longar a boa sensação provocada por gestos bondosos do príncipe Daí ser preciso sublinhar que ao tomar um Estado o conquistador deve examinar todas as ofensas que precisa fazer para perpetuálas todas de uma vez e não ter que renoválas todos os dias Não as repe tindo pode incutir confi ança nos homens e ganhar seu apoio através de benefícios Quem age de outro modo por timidez ou mau conselho precisa estar sempre com a faca na mão não podendo jamais confi ar em seus súditos como tampouco podem eles confi ar em seu príncipe devido às suas contínuas e renovadas injúrias As injúrias devem ser feitas conjuntamente a fi m de que sendo menos saboreadas ofendam menos enquanto os benefícios devem ser feitos pouco a pouco para serem bem mais apreciados E acima de tudo deve um príncipe viver com seus súditos de forma que nenhum incidente mau ou bom faça variar seu comportamento porque vindo as vicissitudes em tempos adversos não terás tempo para o mal e o bem que fi zeres não te será creditado uma vez que o julgarão que o fi zeste forçado e não recebe rás então a gratidão de ninguém Maquiavel 2007a p 41 252 Da importância da arte da guerra para o Príncipe Outro conselho muito importante dado aos príncipes por Maquiavel refe rese à importância de manter sempre pronto e bem treinado um exército para que se possa defender o principado e a si próprio Maquiavel também marcou a 42 ELSEVIER Curso de Ciência Política sua biografi a com os escritos de estratégia militar Sua paixão pelo tema fez com que as armas se tornassem um ponto crucial de O Príncipe quanto às maneiras de se preservar um Estado Boas leis e boas armas são itens imprescindíveis da estabilidade política mesmo em tempos de paz Deve portanto um príncipe não ter outro objetivo nem pensamento nem tomar como arte sua coisa alguma que não seja a guerra sua ordem e disciplina porque esta é a única arte que convém a quem comanda É de tanta virtù que não só mantém aqueles que já nasceram príncipes como também muitas vezes permite que homens de condição priva da ascendam ao principado Inversamente vêse que os príncipes que pensam mais em refi namento do que nas armas perdem sua posição A primeira razão que te leva a perdêla é negligenciar essa arte e a razão que te faz conquistála é ser versado nela Portanto um príncipe não deve jamais afastar o pensamento do exercício da guerra e durante a paz deve exercitálo ainda mais do que durante a guerra Isso pode ser feito de duas maneiras com obras e com a mente Quanto às obras além de conservar bem organizados e treinados os seus exércitos deve se dedicar às caçadas acostumando o corpo ao desconforto e informan dose sobre à natureza dos lugares Quanto ao exercício das mente deve o príncipe ler obras históricas e refl etir sobre as ações dos homens excelentes ver como se comportaram nas guerras e examinar as razões das vitórias e derrotas a fi m de poder escapar destas e imitar aquelas Maquiavel 2007a p 71 253 De como um Príncipe deve ser parcimonioso em seus gastos No título desse trabalho usou se a expressão Há vícios que são virtu des Uma das formas de entendêla é analisar a abordagem de Maquiavel no que se refere aos gastos de um príncipe No capítulo XVI de seu livro o autor sustenta que para não correr o risco de um descontrole fi nanceiro derivado do excesso de gastos gerando a necessidade de tributar mais o povo o príncipe pode e deve ser parcimonioso em seus gastos sem temer a execração pública e a fama de miserável Portanto para não ter de roubar os súditos para poder defenderse para não fi car pobre e desprezível e para não ser obrigado a se tornar rapace um príncipe deve temer pouco incorrer na fama de miserável porque este é um dos vícios que lhe permitem governar Não há coisa alguma que mais se consuma a si mesma do que a liberalidade cujo uso te leva a perder a faculdade de usála tornandote pobre ou desprezível ou rapace e odioso se quiseres fugir à pobreza Dentre to 43 Capítulo 2 Há vícios que são virtudes Maquiavel teórico do realismo político Ricardo Guanabara das as coisas de que um príncipe deve guardarse a primeira é ser des prezível e odioso a liberalidade conduz a uma ou outra coisa Portanto é mais sábio fi car com a fama de miserável que gera uma infâmia sem ódio do que por desejar o renome de liberal precisar incorrer na fama de rapace que gera uma infâmia com ódio Maquiavel 2007a p 77 O tema desenvolvido acima se completará com a análise maquiaveliana sobre os meios de evitar o desprezo e o ódio por parte dos súditos Esta temá tica aparece no capítulo XIX do livro Maquiavel reforça a ideia já lançada de que se apropriar das coisas alheias torna o príncipe odioso Devese acrescentar no entanto que Maquiavel amplia sua abordagem para abranger também as mulheres dos súditos como algo que o príncipe não deve jamais cobiçar ou de que se apoderar É dessa forma que se evita o ódio Quanto ao desprezo para Maquiavel é fundamental que o príncipe não incorra na fama de inconstante leviano efeminado pusilânime e irresoluto Maquiavel 2007a p 87 254 Da importância de saber simular e dissimular Um dos capítulos mais polêmicos de O Príncipe e que certamente mais provocaram revolta contra Maquiavel é o de número XVIII De que modo de vem os príncipes manter a palavra dada Mais uma vez o autor recorre ao rea lismo político para justifi car um comportamento que pelo menos em tese seria contra a moral Segundo Maquiavel é justifi cável que um príncipe volte atrás na palavra dada ou em outras palavras não é um imperativo que se cumpra a palavra dada em certas ocasiões Mais uma vez o autor recorre à razão funda mental para essa ação a natureza humana Assim um príncipe prudente não pode nem deve guardar a palavra dada quando isso se torna prejudicial ou quando deixem de existir as razões que o haviam levado a prometer Se os homens fossem todos bons esse preceito não seria bom mas como são maus e não mantêm sua palavra para contigo não tens também que cumprir a tua Tam pouco faltam ao príncipe razões legítimas para desculpar sua falta de palavra Sobre isto poderíamos dar infi nitos exemplos modernos e mostrar quantos pactos e quantas promessas se tornaram inúteis e vãs por causa da infi delidade dos príncipes quem melhor se sai é quem melhor sabe valerse das qualidades da raposa Mas é necessário sa ber disfarçar bem essa natureza e ser grande simulador e dissimula dor pois os homens são tão simples e obedecem tanto às necessidades presentes que o enganador encontrará sempre quem se deixe enganar A um príncipe portanto não é necessário ter de fato todas as qua 44 ELSEVIER Curso de Ciência Política lidades supracitadas mas é indispensável parecer têlas Aliás ousarei dizer que se as tiver e utilizar sempre serão danosas enquanto se pa recer têlas serão úteis Assim deves parecer clemente fi el humano íntegro religioso e sêlo mas com a condição de estares com o ânimo disposto a quando necessário não o seres de modo que possas e saibas como tornarte o contrário Maquiavel 2007a p 8485 26 Conclusão Maquiavel deixou sua marca na história do pensamento político como um dos grandes inovadores da forma pensar as coisas do Estado Ao mesmo tempo que ostentou as grandes características do Renascimento como o antropocen trismo e a crença na capacidade criadora do homem divergiu de autores da Antiguidade romana embora os admirasse e do pensamento religioso Parado xalmente serviuse do que a Antiguidade clássica poderia oferecer para adaptá la pelo menos na arte da política às necessidades de seu tempo As posições políticas maquiavelianas tiveram um custo considerável para o pensador em especial para a sua imagem Muitos pensadores e autoridades eminentes o amaldiçoaram e reprovaram seus escritos Em terras inglesas rece beu um adjetivo malicioso derivado de seu nome nick ou old nick sinôni mos para a palavra demônio Ainda em tempos recentes grandes pensadores como Leo Strauss ainda defi niam Maquiavel como um mestre do mal Em 1559 durante o período da contrareforma a Igreja católica colocou O Príncipe no Index Librorium Prohibitorium uma relação de obras condenadas e proibidas pela Igreja A decisão foi confi rmada posteriormente pelo Concílio de Tentro Além de amaldiçoado Maquiavel passaria também a ser considerado um apologista do despotismo epíteto que só seria enfraquecido no século da Revolução Francesa quando autores como Jean Jacques Rousseau apresentam uma nova leitura da obra de Maquiavel Nessa nova visão o pensador fl orenti no é visto não como um autor maldito mas como um louvável e brilhante inte lectual que fi ngiu dar conselhos aos governantes quando em verdade ensinava ao povo as engrenagens invisíveis da política O que levou a obra de Maquiavel a manifestações de adesão e ódio foi o seu olhar sobre a política Um olhar como já dito inovador destemido em relação às autoridades religiosas e políticas do século XVII Tal independência foi fundamental para a solidez dos seus argumentos apesar de toda a polêmica que despertou Maquiavel procurou estudar a política da maneira mais realista sem in correr em juízos de valor derivados do moralismo antigo ou da religião Sua obra 45 Capítulo 2 Há vícios que são virtudes Maquiavel teórico do realismo político Ricardo Guanabara não comportou concessões aos idealismos prejudiciais à missão de um príncipe conquistar e manter Estados afastar o problema da instabilidade política tão comum na Itália do século XVII A estabilidade erigida como valor indispensável deve ser uma das me tas fundamentais dos governantes Ela é o coroamento da virtù principesca o conjunto das qualidades que levam o príncipe ao êxito político Tais qualidades divorciadas da moral alinhamse a um certo pragmatismo político capaz de fazer com que o príncipe aja de diferentes maneiras em momentos diversos não assumindo portanto compromissos com o agir bondoso ou justo A fl exi bilidade exigida pela virtù leva o príncipe a praticar em nome da estabilidade e manutenção do Estado atos de crueldade de dissimulação e simulação bem como de mesquinharia ou avareza Maquiavel acredita que seus argumentos convençam os homens da inu tilidade do comportamento moral ou virtuoso à moda tradicional É o mun do moderno habitado por homens ruins a razão que inviabiliza a política da bondade e do humanismo Leituras mais recentes de Maquiavel vêm procuran do de alguma forma separar os argumentos políticos de Maquiavel de suas crenças pessoais Buscase afastar do pensador fl orentino a imagem de prega dor cruel inimigo dos preceitos cristãos Como alternativa é possível pensar em um Maquiavel que reconhecia a importância dos ensinamentos cristãos e de suas lições mas não os considerava um guia seguro para as ações políticas De outra maneira tudo poderia ser diferente e melhor na política das sociedades se as máximas cristãs pudessem ser aplicadas na arena política No entanto caso insista nesse erro político o príncipe sofrerá graves prejuízos sobretudo por conta da natureza humana Merecem ainda destaque certos aspectos da política a serem observados pelo príncipe como por exemplo os caprichos da deusa fortuna A sombra do acaso do inesperado e do imponderável ronda os domínios humanos os palácios de governo Quem não se prepara para a chegada da fortuna alcança a ruína É preciso portanto aprender como lidar com a deusa e conquistar seus favores É preciso construir diques para evitar as inundações e ainda ser corajoso e viril São os antídotos contra as ações da fortuna vista por Maquiavel como uma fi gura feminina com as peculiaridades de uma mulher Ao príncipe é fundamental ainda o estudo da história e o aprendizado de seus exemplos A noção de história exemplarista é crucial para o argumento maquiaveliano uma vez que é fonte de ensinamentos e cursos de ação política Se os homens conservam traços imutáveis em sua natureza tanto na Antiguida 46 ELSEVIER Curso de Ciência Política de como no presente as situações políticas tendem a se repetir Conhecer o pas sado amplia o espectro de ações seguras a serem empreendidas pelo príncipe As páginas de O Príncipe estão repletas de exemplos históricos destinados a embasar e reforçar os argumentos de seu autor Maquiavel estuda a história da Antiguidade mas também o Velho Testamento De tais leituras conservará admiração por determinados líderes exaltandoos como autênticos homens de virtù Não se deve esquecer por derradeiro o valor intelectual de Maquiavel que além de conselheiro dos príncipes tarefa tão praticada na Florença renas centista por autores sem a originalidade vista em O Príncipe demonstrou outras faces Ressaltese a respeito a autoria de peças teatrais como A mandrágora e Clízia bem como o estrategista militar respeitado pela posteridade autor de A arte da guerra e ainda o historiador capaz de resgatar a história de Florença Fica aqui portanto um convite ao leitor para que mergulhe sem preconceitos no mundo maquiaveliano e refl ita sobre seus argumentos políticos O único risco possível é o de olhar a política contemporânea com outros olhos numa viagem sem volta Ainda assim vale a pena 27 Perguntas para reflexão 1 Explique o sentido da expressão há vícios que são virtudes analisan doa no contexto do pensamento maquiaveliano 2 Analise a relação de Maquiavel com os pensadores da Antiguidade res saltando continuidades e rupturas 3 Descreva a trajetória do conceito de fortuna da Antiguidade até o pen samento de Maquiavel 4 Explique o sentido de virtù no pensamento de Maquiavel 5 Analise a noção de realismo político tendo como parâmetro o pensamen to de Maquiavel 6 Analise as razões do choque entre o pensamento maquiaveliano e a dou trina da Igreja no cenário renascentista 7 Por que é possível dizer que Maquiavel foi um autor renascentista típico Explique 8 Analise o papel que a História ocupa no pensamento de Maquiavel 47 Capítulo 2 Há vícios que são virtudes Maquiavel teórico do realismo político Ricardo Guanabara 9 Desenvolva a noção de natureza humana ressaltando a sua importância para a política segundo Maquiavel 10 Por que na visão maquiaveliana é mais seguro para o príncipe ser temido do que ser amado Bibliografia BERLIN Isaiah Estudos sobre a Humanidade uma antologia de ensaios São Paulo Companhia das Letras 2002 BURKHARDT Jacob A cultura do Renascimento na Itália um ensaio São Pau lo Companhia das Letras 1991 CHEVALIER Jean Jacques As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias Rio de Janeiro Agir 1989 DE GRAZIA Sebastian Maquiavel no inferno São Paulo Companhia das Le tras 1993 JOHNSON Paul O Renascimento Rio de Janeiro Objetiva 2001 MAQUIAVEL Nicolau A mandrágora São Paulo Martin Claret 2003 O Príncipe São Paulo Martins Fontes 2007a Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio São Paulo Mar tins Fontes 2007b A arte da guerra São Paulo Martins Fontes 2007c PINZANI Alessandro Maquiavel e O Príncipe Rio de Janeiro Jorge Zahar Editores 2004 RICHE Flavio Elias A infl uência do paradigma científi conatural no pensamento político e social moderno Rio de Janeiro Lumen Júris 2005 SKINNER Quentin Maquiavel São Paulo Brasiliense 1988 As fundações do pensamento político moderno São Paulo Com panhia das Letras 2003 INFORMATION ABOUT THE POWER DROP AND PITCH OF THE ESTIMATED TOP BHP OF THE ENGINE MAKING THE POWER CHART IS USED TO SHOW THE RELATIONSHIP BETWEEN TORQUE AND ENGINE SPEED RPM FOR THE ENGINE SPECIFIED Capítulo 3 A teologia política de Hobbes Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco1 Os homens as mulheres um pássaro um crocodilo uma vaca um cão uma cobra uma cebola um alhoporó foram divinizados Thomas Hobbes 31 Introdução Thomas Hobbes é um dos autores mais notáveis da teoria política Pou cos autores despertaram tanto interesse de politólogos teólogos juristas poetas historiadores e do público em geral A pujança do Leviatã seu livro mais conhe cido quase ofuscou o restante de sua obra transformandoo ao mesmo tem po num autor clássico e num mito Autor clássico pois suas ideias e conceitos foram indicadores e fatores de mudanças sociais e políticas cujos efeitos ainda Doutor em Ciência Política pelo IUPERJ Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUCRio Professor de Teoria do Estado do Departamento de Direito Público da Universidade Federal Fluminense Professor de Sociologia Jurídica do Departamento de Direito da PUCRio Contato pvillasboascbgmailcom 50 ELSEVIER Curso de Ciência Política parecem ecoar devido aos confl itos religiosos e políticos que ameaçam a esta bilidade interna e externa dos Estados até os dias de hoje Além disso parece ter eternizado a vida do homem artifi cial Hobbes 1983 p 119 o Estado moderno que apesar de rumores advindos do processo de globalização1 não perdeu seu prazo de validade Ao contrário suas fronteiras sobretudo depois do 11 de Setembro de 2001 continuam sob vigilância ininterrupta Hobbes tornouse um mito entre outras razões em virtude da força do sím bolo míticoreligioso do Leviatã não extraído por acaso do Livro de Jó 41 24 do Velho Testamento e escolhido como título de seu livro que se apresenta como um enigma cujo teor continua a desafi ar seus estudiosos Além disso o conceito de homem isto é a antropologia política revelada no Leviatã é um entre tantos outros aspectos vulgarizados pela recepção das ideias do autor que não pode ser compreendido sem a sua concepção de religião As paixões humanas revela das por Hobbes converteramse em um mito em razão da tendência racionalista e moralizante dos estudos sobre o Leviatã associar as paixões e instintos do homem à maldade A equiparação entre maldade e irracionalidade conduz ao reducionis mo das ideias do autor cujo conteúdo concentrase mais em desvelar a falibilidade imanente à condição humana do que em acentuar sua crueldade A difi culdade em compreender as ideias de Hobbes ocorre em virtude dos sentidos subjacentes ao símbolo mítico do Leviatã ainda não se constituírem em objeto de estudo rigoroso A aura enigmática que os envolve se deve à reduzida atenção que lhes é conferida Na história das ideias políticas é lugarcomum priorizar a subsunção das ideias do fi lósofo inglês a correntes fi losófi cas a exemplo do racionalismo individua lismo mecanicismo empiricismo sensualismo e outros ismos A esse respeito observa Helmut Schelsky que tal tendência dos estudos sobre Hobbes orientase excessivamente por categorias rígidas e por isso cria um obstáculo à compreensão de suas ideias Schelsky 1938 p 176193 Acreditase que essa inclinação resida na negligência da hermenêutica que Hobbes faz do Velho e Novo Testamento A terceira e a quarta parte do Leviatã nas quais empreende rigorosa exegese das escrituras sagradas não são objeto da leitura de boa parte dos intérpretes Não há como compreender o seu conceito de homem e Estado sem a concepção que o autor tinha da religião Não esqueçamos que a antropologia política e o conceito de Estado de Hobbes nascem das sangrentas guerras confessionais de seu tempo 1 Jurgen Habermas observa que a globalização põe em risco a sobrevivência do Estadonação resultado da fusão do Estado moderno com a nação moderna no fi nal do século XVIII pois signifi ca a transgres são a remoção de fronteiras e portanto uma ameaça para aquele Estadonação que vigia quase neurotica mente suas fronteiras Habermas 1995 p 98 Curioso o autor profetizar o fi m do Estadonação e propor que regimes supranacionais o substituam quando o cenário internacional apresenta uma afi rmação da identidade nacional dos diferentes povos Além do mais os Estadonacionais e os remanescentes impérios depois do 11 de Setembro passaram a vigiar suas fronteiras de maneira sem precedentes na história 51 Capítulo 3 A teologia política de Hobbes Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco Este capítulo percorre o pensamento político de Hobbes mostrando so bretudo como o Leviatã deve ser compreendido como símbolo políticoreligioso que funda uma teoria moderna do Estado a partir de mitos e imagens sagradas Não só o conhecimento político jurídico mas também cabalístico mitológico teológico de Hobbes permitiulhe elaborar uma teologia política Uma teologia política que não funda o Estado através de poderes transcendentes mas por meio da religião que não reside em nenhum outro lugar a não ser no homem 32 Leviatã o homem o Estado o Estado cristão e reino das trevas O Leviatã de Hobbes dividese em quatro partes a primeira denominase Do homem a segunda Do Estado a terceira Do Estado cristão e a quarta Do reino das trevas Curioso perceber que a terceira e a quarta parte ou seja metade do livro sem correspondência em nenhum outro da obra do autor nem sequer no livro Do cidadão com o qual o Leviatã guarda muitos pontos em comum não são objeto de análise por parte da maioria dos intérpretes que revisitaram as ideias de Hobbes Cabe salientar que na terceira e na quarta parte do Leviatã o autor dedicase à exegese das Escrituras Sagradas a fi m de dar cabo às interpretações de representantes espirituais que legitimavam através de sofi sticadas constru ções a usurpação do âmbito jurídicopolítico dos poderes temporais Embora as interpretações apenas se dediquem aos escritos da primeira e da segunda parte do livro de Hobbes no Leviatã todas elas estão intimamen te ligadas revelando o traço sistemático do livro A primeira parte contém 16 capítulos contudo a maioria deles tende a ser eclipsada pelo XIII Da condição natural da humanidade relativa à sua felicidade ou miséria no qual o autor continua a desenvolver sua antropologia política retratando o funcionamento das forças cognitivas do homem e suas paixões A psicologia humana revelada na primeira parte do Leviatã ressalta a miséria cognitiva o hedonismo e a concupiscência provenientes respectivamente das sensações dos apetites e das aversões do homem No capítulo II da primeira parte ao tratar da imaginação Hobbes in cute em seu leitor a fragilidade de suas potências sensoriais fator determinante da ignorância quanto à distinção entre sonhos e outras ilusões como a visão a sensação a imaginação Essa limitação cognitiva seria a causa principal do surgimento de boa parte das religiões A incapacidade de distinguir quanto às forças intelectivas dos sentidos convertidos em representações que acometem o mundo mental do ser humano seria a fonte da adoração de sátiros faunos ninfas fadas fantasmas gnomos e feiticeiras Hobbes 1983 p 14 Enganados por seus sentidos como pelos prognósticos tirados de sonhos pelas falsas pro fecias e todos aqueles embusteiros que exploram sua credulidade o homem é continua mente atormentado pelo temor dos poderes espirituais ou invisíveis 52 ELSEVIER Curso de Ciência Política Ao pintar um retrato em que se revelam a miséria cognitiva e a pujança das paixões humanas Hobbes procura despir o mundo de qualquer signifi cado extrínseco ao homem de modo que a religião o poder a política e o Estado são forjados pelo homem e não mantêm nenhuma relação com poderes invisíveis de outro mundo Hobbes 1983 p 88 Sua concepção descortina um mundo niilis ta absolutamente aberto à contingência e à imprevisibilidade em que o poder o Estado a política o direito não podem ser desvendados em suas essências pois são fundados na arbitrariedade e nos caprichos da vontade humana isto é no poder fático de mando Na teoria política do autor não há espaço para verdades transcendentais emanadas da vontade divina da tradição do conhecimento dos antepassados ou da razão como potência reveladora de essências Desse modo na primeira parte do Leviatã Hobbes desconstrói as peças da machina machinarum para reconstruíla a partir de seus elementos mais simples como a sensação a imaginação a linguagem a razão a ciência as paixões e a re ligião O isolamento de cada elemento permite ao autor redefi nir seus respectivos conceitos desatando cada elemento das interpretações tradicionais que lhes dão signifi cado A partir daí desfere duros golpes na primeira parte e ao longo do li vro na fi losofi a de Platão e Aristóteles Hobbes 1983 p 392 e 399 na escolástica sobretudo nas Escolas criadas por representantes dos poderes espirituais que insu fl am o coração dos homens com especiosas distinções como a que separa a religião da política o que levaria à desobediência civil à sedição e à revolta Na segunda parte Hobbes não discorre apenas sobre os elementos cons titutivos do corpo político ou Estado mas também sobre sua fi nalidade as cau sas que o esmorecem e os meios de mantêlo Importante salientar que em seu livro A dialogue between a philosopher and a student of the common laws of England2 apresenta uma passagem que sintetiza as ideias expostas na construção política de seu homem artifi cial It is not Wisdom but authority that makes the Law Hobbes 1971 p 55 não é a sabedoria mas a autoridade que faz a lei em ou tras palavras Auctoritas non veritas facit legem3 É a autoridade e não a verdade 2 O referido livro foi traduzido sob o título Um diálogo entre um fi lósofo e um jurista A tradução me parece inadequada já que Hobbes o denominou Um diálogo entre um fi lósofo e um estudante do direito consuetudinário da Inglaterra 3 No capítulo XLVI da quarta parte do Leviatã Hobbes refuta o princípio apresentado na Política de Aristóteles desenvolvido posteriormente por Rousseau e elevado à categoria de vontade geral exposta no Contrato social 1762 com a afi rmativa de que quem governa são as leis e não os homens Percebese neste caso que Hobbes recusa o caráter transcendente de leis pois é autoridade dos homens equipados da força coercitiva que as determinam conforme a vontade São os homens e as armas não as palavras e promessas que fazem a força e o poder das leis E portanto este é um outro erro da política de Aristóte les a saber que num Estado bem ordenado não são os homens que governam mas sim as leis Qual é o 53 Capítulo 3 A teologia política de Hobbes Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco que faz as leis A referida passagem revela que o Estado introduzido pelo autor destitui as verdades provenientes do suposto mundo vindouro de consciências privadas dos costumes das leis naturais ou divinas de qualquer repercussão política pois o soberano de um Estado quer seja uma assembleia ou um ho mem não se encontra sujeito às leis4 1983 p 1625 Na construção de seu con ceito de soberania absoluta a autoridade competente representativa do Estado tem o monopólio da decisão política Decide o que é justo ou injusto crime ou pecado certo ou errado sobre o costume prolongado que deve elevarse ao status de lei Além de acumular as funções de juiz e legislador compete à vontade do Deus mortal determinar em conformidade com o princípio cujus regio eius religio6 a fé que deve ser publicamente professada nos limites de seu reino ou território o que deve ser considerado verdade ou mentira considerado homem dotado de seus sentidos naturais muito embora não saiba ler nem escrever que não se encontra governado por aqueles que teme e que acredita o podem matar ou ferir se ele não lhes obedecer Ou que acredite que a lei o pode ferir isto é palavras e papel sem as mãos e espadas dos homens 1983 p 394 Ver também p 41 e 42 do Leviatã 1983 4 O teor de tal passagem se repete inúmeras vezes sob várias formas ao longo do Leviatã por exemplo no capítulo XXXIX porém é importante compreendêla pois mesmo após a instituição ou aquisição do Estado o soberano permanece na condição natural relativa à felicidade ou à miséria do capítulo XIII ou no estado de natureza em que cada indivíduo governavase a si próprio pois não alienou a ninguém seu direito ou poderes de autopreservação ao contrário foramlhe delegados mediante pacto por par ticulares que agiam isoladamente como juízes em causa própria com poderes ilimitados para garantir a segurança de todos É por isso que no cenário internacional cuja gênese ocorre após a constituição e o estabelecimento da ordem interna dos corpos políticos cada representante do homem artifi cial é um lobo para o outro A relação entre corpos políticos caracterizase pela imprevisibilidade pela incerteza exatamente como no estado prépolítico ou de natureza em que predomina forte tensão revestida de desconfi ança e precariedade quanto à promessa das palavras dadas Portanto se no âmbito das relações intestinas do corpo político o soberano é um deus mortal para os contratantes no plano das relações ex teriores isto é na relação entre Estados não há hierarquia pois todos os soberanos são respectivamente lobos uns para os outros É em virtude disso que Hobbes afi rma no Cidadão que ambos ditos são certos que o homem é um deus para o homem e que o homem é lobo do homem O primeiro é verdade se comparamos os cidadãos o segundo se cotejamos as cidades 1998 p 3 5 Parece que o conceito de razão de Hobbes já era mal compreendido na época em que viveu Observa o autor no livro Do cidadão por reta razão no estado da natureza humana não entendo como querem muitos uma faculdade infalível porém o ato de raciocinar Hobbes 1998 p 368 6 A divisão da Igreja romana esmoreceu a quase inabalável autoridade papista o que abriu caminho para que alguns líderes seculares usurpassem a autoridade eclesiástica de determinar em seus domínios qual seria a religião ofi cial do reino exatamente de acordo com o princípio secularizante cujus regio eius religio a religião é de quem é a região porque quem não tem reino não pode fazer leis Hobbes 1983 p 309 Portanto quem não tem reino não pode ordenar a conduta humana nem tampouco deter o monopólio acerca da crença dos súditos 54 ELSEVIER Curso de Ciência Política milagre7 ou charlatanismo Como o autor em inúmeras passagens da primeira segunda terceira e quarta partes do Leviatã separa foro íntimo de foro externo isto é intenção de ação o interno do externo a razão privada da razão pública observase que o monopólio da decisão política do governante do Estado inclui o controle das manifestações externas das crenças religiosas dos governados Verifi case que para Hobbes a decisão política do soberano cuja vontade funda se na autoridade capaz de controlar os meios coercitivos é vestida com força de lei Portanto a lei não emana de nenhum milagre ou revelação nem tampouco de uma razão natural ou como diria Weber do mero costume de um hábito cego de um comportamento inveterado Weber 1982 p 128 Cabe ressaltar que na segunda parte do Leviatã como ao longo do livro in teiro o autor dispara críticas à divisibilidade da alma isto é à divisão do poder soberano do Estado cuja causa principal consiste na especiosa distinção entre po der temporal e poder espiritual forjada pelas autoridades espirituais Ora não é trivial o autor investir de forma tão incisiva contra a referida distinção no capítu lo XXIX em que trata das coisas que enfraquecem ou levam à dissolução de um Estado Fica claro a partir da introdução de seu conceito de soberania indivisível que não pode haver um poder temporal e outro espiritual pois ambos representam a existência de dois Estados e um homem não pode obedecer a dois senhores pois tal confusão leva à desordem e pode conduzir à destruição do Estado quer seja temporal ou espiritual Poder não se pode opor a poder portanto quando estes dois poderes se opõem um ao outro o Estado só pode estar em grande perigo de guerra civil e de dissolução Pois sendo a autoridade 7 No capítulo XXXVII ao tratar do milagre e seus usos Hobbes é peremptório pois quem decide a respeito do que é milagre verdade ou mentira não são as consciências privadas mas sim a razão pública do Estado pois quanto a esse problema nenhum de nós deve aceitar como juiz sua razão ou consciência privada mas a razão pública isto é a razão do supremo lugartenente de Deus E sem dúvida já o esco lhemos como juiz se já lhe demos um poder soberano para fazer tudo quanto seja necessário para nossa paz e defesa 1983 p 264 Ao sustentar que milagre é o que o comando da autoridade estatal obriga aos súditos acreditar Hobbes não está negando a liberdade de crença no foro íntimo ou liberdade de pensa mento pois um particular tem sempre liberdade de acreditar ou não acreditar em seu foro íntimo nos fatos que lhe forem apresentados como milagres conforme veja qual benefício sua crença pode acarretar para os que afi rmam ou negam e conjeturando a partir daí se eles são milagres ou mentiras Mas quando se trata da profi ssão pública dessa fé a razão privada deve se submeter à razão pública Aqui cabe desfa zer o equívoco de interpretação histórica Tem sido trivial assegurar que foi na última fase da Escola do Direito Natural que surgiu a primeira doutrina explícita e deliberada sobre os critérios distintivos entre o mundo jurídico e o mundo moral o que se deve atribuir aos méritos de Th omaisus 16551728 no tadamente em sua obra capital Fundamenta Juris Naturae et Gentium publicada em 1705 Reale 2000 p 653 Hobbes ao separar foro íntimo de foro externo o plano interno da consciência do plano externo da ação razão privada de razão pública já estava separando a política da moral como fi zera Maquiavel 55 Capítulo 3 A teologia política de Hobbes Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco civil mais visível e erguendose na luz mais clara da razão natural não pode fazer outra coisa senão atrair a ela em todas as épocas uma parte muito considerável do povo e a espiritual muito embora se levante na escuridão das distinções da Escola e das palavras difíceis contudo por que o receio da escuridão e dos espíritos é maior que os outros temores não pode deixar de congraçar um partido sufi ciente para a desordem e muitas vezes para destruição de um Estado 1983 p 196 A fi m de evitar a insignifi cante distinção entre o temporal e o espiritual que leva à dissolução do Estado Hobbes soluciona o problema da seguinte for ma ou o civil que é o poder do Estado tem de estar subordinado ao espiritual e então não há nenhuma soberania exceto a espiritual ou o espiritual tem de estar subordinado ao temporal e então não existe nenhuma supremacia senão a temporal Hobbes 1983 p 196 Na terceira e na quarta parte em que trata respectivamente do Estado cristão e do reino das trevas Hobbes não somente se utiliza das Escrituras Sa gradas para refutar teses que propugnam pela monarquia universal da Igreja num âmbito temporal O autor também recorre aos textos sagrados a fi m de emancipar um domínio secular da tutela da Igreja Para tanto extrai princípios sob os quais fundase a sua teoria dos direitos de quem governa e deveres de quem obedece Conforme informa Hobbes é destas Escrituras que vou extrair os princípios de meu discurso a respeito dos direitos dos que são na terra os supremos governantes dos Estados cristãos e dos deveres dos súditos cristãos para com seus soberanos E com esse fi m vou falar no capítulo seguinte dos li vros autores alcance e autoridade da Bíblia Hobbes 1983 p 264 A incursão do autor nas Escrituras Sagradas tem a fi nalidade de provar que o poder espi ritual tem jurisdição no mundo vindouro portanto enquanto não chegar o dia do juízo fi nal não se deve obediência a nenhum outro poder senão ao temporal Obstinado Hobbes repete inúmeras vezes através de várias passagens distin tas as palavras atribuídas a Jesus Cristo o meu reino não é deste mundo João 1836 Desse modo nosso Salvador veio a este mundo para ser rei e juiz num mundo vindouro Hobbes 1983 p 286 Denunciada a distinção entre poder espiritual e poder temporal entre po deres visíveis e invisíveis Hobbes não só acusava os representantes do clero ro mano pois não é só o clero romano que pretende que o Reino de Deus seja deste mundo e que ele portanto tem um poder distinto do Estado civil 1983 p 403 Os autores das trevas na religião são o clero romano e clero presbiteriano 1983 p 398 Observase que o esforço do autor é no sentido de negar qualquer usur pação do poder temporal por parte de papas monges frades bispos ou pastores 56 ELSEVIER Curso de Ciência Política e deslocar o temor dos poderes invisíveis espirituais para o temor dos poderes visíveis temporais deslocar a atenção dos homens das sedutoras promessas de salvação da alma num mundo vindouro para a salvação da vida neste mundo A estrada aberta pela Reforma determinante para a quebra do monopólio da Igreja romana da conduta humana precisamente de como o homem deveria agir neste mundo para obter a salvação eterna num mundo vindouro individualizou os homens pluralizou as crenças provenientes das consciências privadas trans formou com a tradução da Bíblia para língua vernácula cada homem num juiz de suas ações Hobbes 1990 p 22 A Reforma converteu o mundo num cenário contingente imprevisível no qual os homens ao evocarem sua consciência priva da e manifestarem suas convicções religiosas podem entrar em violento confl ito corporal Tal cenário que leva às guerras civis religiosas muito semelhante ao apresentado no capítulo XIII do Leviatã só poderia ser neutralizado com a submis são do poder espiritual ao poder temporal Portanto a fi m de elidir a distinção entre o poder espiritual e o poder tem poral Hobbes submete o primeiro ao segundo A emancipação de um domínio estritamente secular das rédeas do poder da Igreja implica subordinar a Igreja ao Estado convertendo a instituição espiritual num instrumento de controle da ordem interna do Estado A Igreja passa a ser mais um instrumento a serviço dos interesses políticos do Estado Em outras palavras o autor não separa o poder da Igreja do poder do Estado mas incorpora a Igreja ao Estado Assim o autor não separa poderes mas os unifi ca nas mãos do domínio secular a partir daí portanto fi cam inseparáveis o direito de regular quer a política quer a religião Hobbes 1983 p 282 A religião não é estranha à política pois não somente a integra como principalmente constituise num efi caz instrumento político de dominação A religião como arma política indispensável na arte mediante a qual se constitui e mantém um corpo político não era novidade na história das civilizações O ato de incutir na mente do povo a crença em preceitos da religião inventados por homens e divulgálos como ditames de algum deus consistia numa técnica de dominação utilizada pelos primeiros fundadores e legislado res de Estados entre os gentios cujo objetivo era manter o povo em obediência e paz e fazer com que suas leis fossem mais facilmente aceitas Hobbes 1983 p 70 Talvez esta seja uma das passagens mais importantes do Leviatã de Ho bbes Isto porque nela se percebe que o monopólio da crença é indispensável à arte de governar o povo e como o governante deve tirar partido da tendência do gênero humano à irracionalidade da crença nos poderes invisíveis Hobbes 1983 p 263 57 Capítulo 3 A teologia política de Hobbes Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco 33 Miséria cognitiva e crença 331 Breves observações sobre a Reforma protestante A Reforma protestante é um dos eventos históricos mais importantes para compreensão da formação do Estado moderno Em conformidade com Hobbes que viveu o terror da guerra civilreligiosa de seu tempo a principal causa das guerras confessionais teria como origem a destruição da unidade da Igreja romana ocorrida no século XVI A representação do estado de natureza do homem era proveniente dos confl itos resultantes da pluralização de crenças religiosas privadas que não pos suíam amparo externo Hobbes no Leviatã de maneira jamais vista em toda a sua obra fez de suas ideias uma verdadeira arma política contra qualquer tipo de auto ridade espiritual que se arrogasse o direito de intervir na esfera das decisões jurídi cas e políticas de domínios temporais Para o autor era indiferente se a autoridade fosse proveniente da Igreja romana ou presbiteriana ou qualquer outra Igreja pro testante Hobbes sabia como ninguém que líderes espirituais controlavam melhor do que líderes temporais as paixões dos homens cujo traço primordial residiria na natureza cognitiva falível calcada no medo e no amor pelo ininteligível A Reforma protestante também defi nida como renúncia de certas Igrejas ao poder universal do Papa Hobbes 1983 p 398 ao dar cabo ao monopólio da interpretação das Escrituras Sagradas e portanto estender sua interpretação a todos espraiou o veneno das doutrinas sediciosas que contribuem com as doenças de um Estado A livre interpretação da Bíblia8 transformou o mundo 8 Hobbes no livro Behemoth narra detalhadamente os fatos que desencadearam o caos da guerra civil religiosa ocorrida na Inglaterra de 1640 a 1660 Irreverente Hobbes desferia duras críticas às Igrejas Romana Presbiteriana Anglicana Puritana enfi m a todas as seitas e formas de crença que julgasse sediciosas isto é que pudessem exortar à desobediência e tumultuar a ordem interna de domínios tem porais Para ele uma das principais causas dos confl itos religiosos de seu tempo era justamente a livre interpretação da Bíblia promovida pela Reforma A tradução das Escrituras Sagradas para língua verná cula permitia a cada um falar com Deus e consequentemente transformava os homens em juízes para decidir acerca do bem e do mal Hobbes sustenta que após a tradução da Bíblia para o inglês até mesmo a obediência devida às autoridades das Igrejas protestantes fora perdida Conforme o autor porque depois de traduzir a Bíblia para o inglês todo homem mais ainda todo menino e menina que sabia ler em inglês pensava falar com Deus TodoPoderoso e entender o que Ele dizia isso se à medida de um certo número de capítulos das Escrituras por dia as lera uma ou duas vezes do começo ao fi m E desse modo foram renegadas a reverência e a obediência devidas à Igreja protestante daqui e aos seus bispos e pastores de então pois todo homem se tornou juiz da religião e intérprete das Escrituras para si próprio Hobbes 2001 p 55 No Behemoth Hobbes também proclama que a licença para interpretar livremente a Bíblia provocou a aparição de inúmeras seitas responsáveis pelo início dos distúrbios no interior do Estado inglês Denuncia reconheço que essa licença para interpretar as Escrituras foi a origem das inú meras seitas as quais tendose mantido ocultas até o início do reinado do falecido rei então se revelaram para provocar distúrbios na república Hobbes 2001 p 55 58 ELSEVIER Curso de Ciência Política fragmentou os homens e seu mundo real Agora todo indivíduo particular é juiz das boas e más ações 1983 p 193 O ato de o sujeito interpretar livremente9 os desígnios de Deus não somente o projeta dentro de si próprio individualizan doo como também o torna juiz das boas e más ações elevandoo acima de qualquer lei civil Ora a descrição de tal homem individualizado que toma como medida de suas ações seu mundo interior sua consciência sua crença agindo em relação aos outros sem um poder comum capaz de manter a todos em respeito10 é idêntica à forma pela qual Hobbes retrata o estado de natureza em que vive a humanidade 1983 p 75 O próprio autor ao se insurgir contra a doutrina que eleva o juízo privado acima das leis civis de um Estado declara que isto é verdade na condição de simples natureza quando não existem leis civis e também sob governo civil nos casos que não são determinados pela Lei Mas não sendo assim é evidente que a medida das boas e más ações é lei civil e o juiz o legislador que é sempre representativo do Estado Partindo desta falsa doutrina os homens adquirem a tendência para debater consigo próprios e discutir as ordens do Estado e mais tar de para desobedecêlas conforme acharem conveniente em seus juízos particulares Pelo que o Estado é perturbado enfraquecido 1983 p 193 Cumpre esclarecer que a Reforma protestante foi a principal causa das guerras confessionais que assolaram a Europa durante os séculos XVI e XVII A cisão do cristianismo ocidental solapou a ordem tradicional individualizou o homem pluralizou as concepções de mundo disseminou a desconfi ança pro moveu violentos combates entre as Igrejas e perseguições entre fi éis As disputas entre autoridades espirituais de distintas Igrejas e seitas criavam um oceano de incertezas nos domínios seculares Por outro lado a divisão da Igreja romana esmoreceu a quase inabalável autoridade papista o que possibilitou a alguns líderes seculares usurpar a autoridade eclesiástica de determinar em seus do mínios qual seria a religião ofi cial do reino exatamente de acordo com o princí pio secularizante cujus regio ejus religio a religião é de quem é região porque 9 No Behemoth cuja narrativa é estruturada por Hobbes em forma de diálogo entre um mestre e seu pupilo discutese a partir de uma abordagem histórica a licença concedida aos súditos para interpretar livremente a Bíblia Ao discutir a fi nalidade da licença o pupilo indaga ao seu mestre que outra fi na lidade poderia ter ao recomendarme a Bíblia se não pretendia que dela eu fi zesse a regra de minhas ações Hobbes 2001 p 22 10 Importante salientar que a despeito de elogios à tradução do Leviatã para o português realizada por João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza Silva Ed Abril 1983 observa Janine em nota referente a sua apresentação à obra Do cidadão Hobbes 1998 p 351 que Hobbes não menciona um poder comum capaz de manter a todos em respeito mas sim um poder comum capaz de manter a todos em reverente temor Janine 1999 p 34 59 Capítulo 3 A teologia política de Hobbes Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco quem não tem reino não pode fazer leis 1983 p 309 Portanto quem não tem reino não pode ordenar a conduta humana e tampouco deter o monopólio acer ca das crenças dos súditos 332 O homem e a religião Nesta parte do trabalho importa examinar o conceito de homem elaborado por Hobbes e relacionálo com a sua defi nição de religião Como se viu tal con cepção antropológica não pode ser dissociada da guerra civilreligiosa que aco metia a Europa do século XVI e XVII Todavia pretendese mostrar como para o autor inglês a faculdade intelectiva da espécie humana é marcada pela limitação cognitiva que desencadeia a irracionalidade das crenças religiosas É justamente a limitação dos sentidos da imaginação da memória das paixões que cria uma inexorável dependência da religião e portanto de uma autoridade representativa do Estado que possa controlar suas crenças externas A irracionalidade da crença exige um limite exterior imposto por uma autoridade soberana capaz de manter os homens em reverente temor A crença proveniente do foro íntimo deve ser destituída de repercussão política para reinar a proteção em troca de obediência A despeito de Hobbes acentuar a limitação cognitiva como marca inde lével de sua antropologia ressalta que se o homem é a mais excelente obra da natureza não seria de admirar que não só seja capaz de imitála como tam bém mediante a arte11 de criar a partir da natureza outro homem um homem artifi cial cuja estatura e força ultrapassem as de muitos homens naturais 1983 p 5 Mas qual seria a intenção desse homem Por que estaria querendo ampliar artifi cialmente sua estatura e força Intentaria se proteger De quem Para responder a tal indagação devese conhecer o homem natural E se por ventura se deseja conhecer o homem artifi cial também denominado animal arti fi cial máquina corpo político Civitas Estado ou Leviatã devese a fortiori voltar as atenções para seu elemento constitutivo isto é o seu artífi ce o homem natural Não obstante Hobbes qualifi que o homem como criatura racional e o con sidere como se disse a mais excelente obra da natureza o autor elabora uma verdadeira teoria sobre a falibilidade humana Ao elevar a percepção sensorial à categoria de ponto de partida indiscutível de sua investigação descreve o mun 11 Hobbes expõe sua defi nição de arte como tudo aquilo que não é dado por natureza ou posto por Deus Arte é produto da vontade humana e portanto diferenciase de milagres pois o que é forjado pelo engenho humano é passível de conhecimento Ao comparar arte e milagre comenta o autor que há muitas obras raras produzidas pela arte do homem mas quando sabemos que foram feitas não as consi deramos milagres pois não são forjadas imediatamente pelas mãos de Deus e sim através da mediação do engenho humano Hobbes 1983 p 260 60 ELSEVIER Curso de Ciência Política do mental humano como um complexo mecanismo de causa e efeito de forças resultantes da conjugação de matéria e movimento A partir daí revela o funcio namento da imaginação da memória do intelecto do raciocínio da vontade das paixões dos valores do bem e do mal enfi m lança mão de um rigoroso método introspectivo para conscientizar o homem de sua própria fragilidade de sua con dição natural de miséria cognitiva Sua fi nalidade não consiste em atemorizar o homem diante de sua própria natureza Ao contrário ao profetizar que a sabedo ria não se adquire pela leitura dos livros mas do homem e convidar cada homem a adotar o lema nosce te ipsum lête a ti mesmo tem o intuito de demonstrar que quem quer que olhe para dentro de si mesmo perceberá mediante esse caminho quais são os pensamentos e paixões de todos outros homens em situações idên ticas 1983 p 6 Através da demonstração do poder da introspecção e portanto do conhecimento da natureza humana isto é conhecimento da semelhança entre pensamentos e paixões de distintos homens será fácil reconhecer um denomina dor comum o medo e a necessidade de fundar um corpo político para reduzilo Aproximandose de uma tradição cética12 de pensamento Hobbes par tiu da dúvida para perscrutar o homem Conclui que o estudo dos princípios e causas dos pensamentos e aparências diversas manifestados na mente humana teria de começar com a sensação Este é seu ponto de partida não porque não há engano ou desonestidade na afi rmação dos sentidos mas o fato de sentir mos lhe parece a única coisa com a qual podemos estar inequivocamente certos Oakeshott 1946 p XXII O ser humano é antes de qualquer coisa uma criatura dotada de sentidos visão audição olfato paladar e tato Não há nenhum pensamento ou represen tação de algo que não se tenha originado nos órgãos dos sentidos em virtude de uma pressão exercida por um objeto ou resultante do acidente de um corpo exterior a nós 1983 p 9 Em outras palavras a pressão exercida no órgão dos sentidos por um corpo exterior produz no mundo mental humano pensamen tos representações ou aparências diversas Conforme Hobbes a origem de todas elas é aquilo que denominamos sensação pois não há concepção no espí rito do homem que primeiro não tenha sido originada total ou parcialmente nos órgãos dos sentidos 1983 p 9 12 Oakeshott ao perscrutar as raízes do racionalismo de Hobbes as situa no ceticismo proveniente da fase fi nal da tradição do pensamento escolástico Ao contrário de autores como Spinoza e Descartes Hobbes não pertenceria a uma tradição platônicocristã Segundo o autor ele não se refere nor malmente à razão à divina iluminação do intelecto que une o homem a Deus ele se refere ao raciocí nio Ele não está menos persuadido da falibilidade e limitação da razão do que o próprio Montaigne Oakeshott 1946 p XXVII Como se verá a razão para Hobbes não desvela essências pois consiste em mero cálculo isto é adequação de meios para fi ns 61 Capítulo 3 A teologia política de Hobbes Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco Hobbes vai mais longe Desvela no desconhecido mundo interior do cor po humano um mecanismo de reação isto é uma resposta dada pelos órgãos internos ao corpo externo que os pressionou O corpo externo que nada mais é do que matéria em movimento ao entrar em contato e consequentemente pressionar um órgão interior de uma criatura viva causa uma alteração no mo vimento desse órgão que por sua vez causa uma alteração no movimento dos nervos A movimentação dos nervos e outras cordas e membranas do corpo prolongada para dentro em direção ao cérebro e coração causa ali uma resis tência ou contrapressão ou esforço do coração para se transmitir cujo esforço porque para fora parece ser de algum modo exterior 1983 p 9 Observese que a resistência ou contrapressão do coração ou então a reação do coração à pressão causada por aquele corpo exterior em movimento também é defi nida como um esforço do coração para se transmitir Em virtude de tal esforço do órgão interior ser feito para fora em reação à força realizada para dentro temse a impressão ou ilusão de que alguma coisa está acontecendo do lado de fora ou que parece ser de algum modo exterior Ora é justamente esta ilusão ou impressão que se denomina sensação O jogo de ação e reação de pressão e con trapressão ocasionado pelos corpos em movimento dentro do organismo forne ce a impressão de que algo acontece do lado de fora do organismo Hobbes ao comentar os movimentos da matéria que pressionam nossos órgãos diz que sua aparência para nós é ilusão quer quando estamos acordados quer quan do estamos dormindo1983 p 9 É imprescindível levar em consideração que para Hobbes consciência é mera aparência O que se passa no interior do corpo é real o que chamamos de experiências mentais são simples aparências de movi mentos corpóreos Experiências mentais ou conscientes não são de modo algum reais O que é real é a matéria corpórea em movimento Raphael 1978 p 24 No que respeita a passagem acima citada é bom de antemão frisar que a despeito de Hobbes esforçarse para conectar a física à psicologia e procurar des nudar de um ponto de vista estritamente racional um mundo mecânico ininte ligível à faculdade sensorial o autor como se verá adiante sabe muito bem das limitações do conhecimento científi co independentemente do âmbito da vida em que seja aplicado Ainda em relação à citação acima cumpre dizer que atri buir a Hobbes o entendimento de que o real é o ininteligível13 isto é o real é a matéria em movimento é verdade na medida em que se sabe qual é a tarefa da fi losofi a para o autor Hobbes acredita que a tarefa da fi losofi a é representar 13 Observa Hobbes que embora os homens sem instrução não concebam que haja movimento quando a coisa movida é invisível ou quando o espaço onde ela é movida devido a sua pequenez é insensível não obstante esses movimentos existem 1983 p 32 62 ELSEVIER Curso de Ciência Política o mundo no espelho da razão A imagem do mundo projetada nesse espelho é a de um mundo de causa e efeito A função da razão consiste em determinar o alcance e limite da investigação fi losófi ca Oakeshott 1946 p X Porém a razão somente logrará êxito em seu papel se o mundo for concebido como causa e efeito matéria e movimento ação e reação pressão e contrapressão Ora então para Hobbes o mundo é uma máquina Se porventura se deseja explicar um efeito basta buscar sua causa imediata ou então para saber o resultado de uma causa procurase o efeito imediato Não Hobbes não era ingênuo 14 sabia da existência de distintas concepções de mundo repletas de coisas que por defi ni ção não poderiam ser submetidas a uma relação de causalidade Como poderia uma fi losofi a da causalidade explicar um ser ubíquo como Deus15 O mundo vindouro Um mundo de tênues corpos aéreos belzebu fantasmas ninfas ído los hereges Como se poderiam extrair consequências de coisas infi nitas coisas eternas causas últimas coisas vindouras enfi m como conhecer racionalmen te coisas que somente podem ser conhecidas mediante a divina graça ou re velação Atentese para o fato de Hobbes não negar a existência de tais coisas mas sua racionalidade Oakeshott 1946 p XX É inequívoco que o autor sabia da existência de milagres profecias deuses demônios religiões superstições porém tais coisas eram peculiares à natureza humana e só existiam devido às paixões dos homens Como iluminar o reino das trevas em que vivia a fanática turba insana de seu tempo e demonstrar a supremacia da autoridade temporal e em relação à autoridade espiritual Para responder à indagação insta fazer o homem conhecer a si próprio e a partir daí será mais fácil para Hobbes propor seu projeto político que não salva vidas no Céu mas prolonga a vida não só do 14 Observa Oakeshott que Hobbes não diz que o mundo natural é uma máquina ele diz que somente o mundo racional é análogo a uma máquina Oakeshott 1946 p XX Isto quer dizer que se o mundo é concebido de um ponto vista racional não há espaço para teologia ou qualquer outra área do saber que não se atenha à noção de causalidade A despeito de Hobbes ser infl uenciado pela escolástica o autor procura secularizar a fi losofi a separandoa dos interesses da teologia 15 A fi losofi a concebida por Hobbes como sinônimo de ciência consiste no conhecimento das consequ ências A razão compreendida como cálculo é a ferramenta mediante a qual se podem somar consequên cias Todavia tais instrumentos estão longe de nos ensinar alguma coisa não somente sobre a natureza de Deus mas sobre a nossa também Relata Hobbes que a discussão sobre a natureza de Deus é contrária à sua honra pois se supõe que neste reino natural de Deus não existe nenhuma outra maneira de conhecer qualquer coisa sobre a natureza exceto pela razão natural isto é pelos princípios da ciência natural a qual está tão longe de nos ensinar alguma coisa sobre a natureza de Deus como de nos ensinar nossa própria natureza ou natureza do mais ínfi mo ser vivo O agnosticismo do autor se revela mais intensamente ao ressaltar que nos atributos que damos a Deus não devemos considerar a verdade fi losófi ca mas a signifi cação da intenção piedosa de lhe prestarmos a maior honra de que somos capazes 1983 p 216 Hobbes parece dizer que os atributos que damos a Deus são produto das paixões humanas e portanto inescrutáveis 63 Capítulo 3 A teologia política de Hobbes Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco homem natural mas também do homem artifi cial na Terra16 Devese portanto voltar as atenções para a antropologia elaborada por Hobbes para em seguida compreender como deve ser a ordem jurídicopolítica de uma comunidade pro posta pelo autor Outra faculdade com a qual se pode contar é a imaginação que nada mais é portanto senão uma sensação diminuída e encontrase nos homens tal como em muitos seres vivos quer estejam adormecidos quer estejam desper tos 1983 p 11 A imaginação consiste portanto no poder ou capacidade de recordar ou representar na mente sensações de vestígios passados Exprimir o que é evanescente isto é transmitir uma sensação remota antiga chamase me mória Memória e imaginação são a mesma coisa Muita memória ou a memó ria de muitas coisas chamase experiência 1983 p 12 A despeito de sua dependência dos sentidos a imaginação consiste numa faculdade capaz de compor ao mesmo tempo sensações sentidas em momentos diversos portanto podese imaginar o que nunca antes fora visto como quando a partir da visão de um homem em determinado momento e de um cavalo em ou tro momento concebemos em nosso espírito um centauro Reparese que a ima ginação composta pode levar a uma verdadeira fi cção do espírito 1983 p 12 A imaginação de quem quer que esteja dormindo chamase sonho E aí pode ocorrer uma confusão pois é muito difícil estabelecer uma distinção entre sonho e sensação Hobbes por exemplo ao estar acordado sabe que não está dormindo mas quando está dormindo se julga acordado No que me diz respeito acor dado observo muitas vezes o absurdo dos sonhos mas nunca sonho com absurdo dos meus pensamentos despertos contentome com saber que estando desperto não sonho muito embora quando sonho me julgue acordado 1983 p 13 Observese que através do poder da introspecção Hobbes vai instilando no seu leitor uma inquietude uma incerteza quanto à sua capacidade cognitiva quanto às suas crenças O poder da imaginação leva à mente vestígios de sensa ções passadas vestidas sob a forma de experiência que nada mais é do que a memória de muitas coisas quando na verdade tornase difícil saber o que se experimentou ou vivenciou Pode ser um sonho uma ilusão uma visão fantás tica ou até mesmo uma cadeia de sensações diminuídas ou então recordação ou representação de fragmentos na mente de fatos que realmente ocorreram no passado Tal condição humana ou capacidade cognitiva pode traduzirse numa 16 Observa o autor que quanto à salvação geral como ela se deve dar no Reino dos Céus há uma grande difi culdade quanto ao lugar Por um lado enquanto se trata de um reino que é uma situação organizada pelos homens para sua perpétua segurança contra seus inimigos e as necessidades parece que essa salvação devese dar na terra 1983 p 272 64 ELSEVIER Curso de Ciência Política verdadeira ignorância e desta ignorância quanto à distinção entre os sonhos e outras ilusões fortes e a visão e a sensação surgiu no passado a maior parte da religião dos gentios os quais adoravam sátiros faunos ninfas e outros seres semelhantes e nos nossos dias a opinião que a gente grosseira tem das fadas fantasmas e gnomos e do poder das feitiçarias 1983 p 14 Aqui se torna fundamental observar que logo no início do Leviatã Hobbes começa a inculcar o que considera o maior problema da condição natural da hu manidade o medo que deriva da crença nos poderes invisíveis Vale observar que o autor elabora sua antropologia sobretudo com a fi nalidade de conscien tizar os homens de sua condição de miséria cognitiva Tal condição suscita nos homens a crença no ininteligível nos poderes invisíveis o que os conduz a um medo incomensurável Por isso o homem de Hobbes é uma presa fácil para qualquer tipo de charlatanismo sobretudo o praticado por autoridades eclesiás ticas que para o autor não passam de impostores Depois de tornar os homens cônscios de sua fragilidade cognitiva e de suas paixões hedonistas e concupis centes Hobbes poderá enfrentar a sede de poder político das autoridades espiri tuais e provar que para alcançar a paz devese conceder o monopólio da decisão política a uma autoridade temporal Embora Hobbes não mencione o termo secularização é inequívoco como na primeira parte do Leviatã na qual descreve o seu conceito de homem já se poder sentir a força secularizante de suas ideias Ao descrever a sensação a ima ginação e as paixões dos homens o autor entre outros propósitos tem em vista desmistifi car o conhecimento transmitido sobre o homem pelas escolas de fi losofi a das Universidades da Cristandade No fi nal do primeiro capítulo após expor sua teoria sobre as sensações como se viu o poder receptivo dos cinco sentidos através do qual se origina qualquer pensamento ou representação no mundo mental denuncia que as escolas de fi losofi a em todas as Universi dades da cristandade baseadas em certos textos de Aristóteles ensinam outra doutrina 1983 p 10 Acusa as universidades da cristandade de ensinar falsas doutrinas relativas à origem do conhecimento produzido no cérebro humano ou em outras palavras à causa do entendimento dos homens Ao invés de en sinarem que a causa do entendimento ou da faculdade de imaginar reside na pressão dos órgãos dos sentidos produzida por um corpo exterior professam que o corpo exterior possui em si um ser inteligível que nos possibilita enten der Conforme o autor no que se refere à causa do entendimento dizem que a coisa compreendida emite uma species inteligível isto é um ser inteligível o qual entrando no entendimento nos faz entender 1983 p 10 65 Capítulo 3 A teologia política de Hobbes Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco Hobbes sabia melhor que ninguém que a Igreja romana por meio da ins tituição das primeiras Universidades17 da Europa usou ideias como armas para ampliar seu poder de intervenção nas decisões políticas de governantes tempo rais Distinções palavras ambíguas palavras destituídas de signifi cado silogis mos e dilemas foram forjados através da cristianização de elementos da fi losofi a pagã para incentivar o medo nos homens através de inúmeras explicações falsas entre elas a que trata da formação do entendimento humano Para Hobbes en sinamentos deturpados falsos presságios retirados de sonhos conceitos ininte ligíveis entre outras coisas serviam para que as pessoas com sede de poder se aproveitassem da crença de pessoas simples e promovessem a desobediência civil O Leviatã transmite ao leitor a sensação de uma dura batalha que Hobbes trava do começo ao fi m do livro para desbaratar a autoridade de papas bispos pastores arcebispos frades monges enfi m qualquer espécie de embusteiro que incentiva o medo e a sedição porque se desaparecesse esse temor supersticio so dos espíritos e com ele os falsos prognósticos tirados dos sonhos as falsas profecias e muitas outras coisas dele decorrentes graças às quais pessoas am biciosas e astutas abusam da credulidade de gente simples os homens estariam muito mais bem preparados do que agora para obediência civil 1983 p 14 Obstinado Hobbes ao longo de todas as quatro partes do Leviatã procura mi nar o poder de autoridades tradicionais que se aproveitam da credulidade da grande maioria dos homens para lograr cada vez mais poder Hobbes preocu pado em redefi nir o papel das Universidades da cristandade no interior do tipo de Estado secular que propõe critica em inúmeras passagens do Leviatã o uso que se fazia das Universidades porém em tom retórico chega a afi rmar que não digo isto para criticar o uso das Universidades mas porque devendo mais adiante falar em seu papel no Estado tenho de mostrar em todas ocasiões que isso vier a propósito que devem nelas ser corrigidas entre as quais temos de incluir a frequência do discurso destituído de signifi cado 1983 p 10 E mais adiante discorre sobre a fi nalidade precípua do uso que se fazia da Universida de e revela precisamente a relação de sua antropologia com teólogos formados pelas Universidades Relata que a maior parte da humanidade é composta de homens hedonistas e concupiscentes aqueles cuja frivolidade ou preguiça leva 17 Ensina Hobbes que entre o tempo do Imperador Carlos o Grande e Eduardo Terceiro da Inglaterra 13271377 a Igreja romana quis transformar a religião numa arte e desse modo garantir a manutenção de todas as suas ordens através das disputas não somente a partir das Escrituras Sagradas mas também da fi losofi a de Aristóteles tanto a natural quanto a moral De acordo com o autor foi com esse fi m que o papa exortou o dito imperador a erguer escolas de todas as espécies de letras iniciando assim a instituição das Universidades porquanto não tardou que estas se estabelecessem em Paris e Oxford Hobbes 2001 p 49 66 ELSEVIER Curso de Ciência Política a procurar os prazeres sensuais Tais homens afastados da meditação profun da conditio sine qua non para o aprendizado da verdade e consequentemente do conhecimento das ciências e questões relativas à justiça natural são como presas para aves de rapina O resultado é que a maioria dos homens recebe as noções de seus deveres principalmente dos teólogos no púlpito E preocupado com instrução do povo denuncia Hobbes que os teólogos e outros que fazem ostentação de erudição tiram seu conhe cimento das Universidades e das Escolas de leis ou de livros que foram publicados por homens eminentes nessas Escolas e Universidades É portanto manifesto que a instrução do povo depende totalmente de um adequado ensino da juventude nas Universidades Mas podem al guns dizer não são as Universidades da Inglaterra já sufi cientemente eruditas para fazer isso Ou será que quer tentar ensinar as Universida des Perguntas difíceis 1983 p 204 Hobbes responde somente à primeira pergunta e ao fazêlo retrata uma das formas utilizadas pelo poder espiritual para enfrentar o poder secular Re lata o autor que até por volta dos últimos anos do reinado de Henrique VIII o poder do Papa se erguia sempre contra o poder do Estado principalmente atra vés da Universidade e que as doutrinas defendidas por tantos prega dores contra o soberano poder do rei e por tantos legistas e outros que ali tinham recebido sua educação constituem um argumento sufi ciente de que muito embora as Universidades não fossem as autoras daque las falsas doutrinas contudo não souberam semear a verdade Pois no meio de tantas opiniões contraditórias o mais certo é que não tenham sido sufi cientemente instruídas e não é de causar espanto se ainda con servam aquele sutil licor com que primeiro foram temperadas contra a autoridade civil 1983 p 204205 No que foi dito a respeito da Universidade devese esclarecer que embora Hobbes ressalte em sua antropologia a miséria cognitiva e as aversões e desejos sem limites o autor acredita ser possível educar os homens pois o espírito da gente vulgar a menos que esteja marcado por uma dependência em relação aos poderosos ou desvairado com as opiniões de seus doutores é como papel limpo pronto para receber o que quer que seja que a autoridade pública queira nele imprimir 1983 p 201 Portanto de acordo com Hobbes cumpre instruir o povo sobre os direitos essenciais da soberania do Estado o que diminui as chances de rebelião e contribui para a segurança do homem artifi cial e conse quentemente do homem natural 67 Capítulo 3 A teologia política de Hobbes Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco Por fi m importa dizer que através da introspecção Hobbes quer mostrar aos homens que em razão de sua miséria cognitiva tendência à credulidade nos poderes invisíveis e sua condição sujeita aos apetites e paixões irregulares deve se mediante a arte criar um homem artifi cial cuja força ultrapasse a de muitos ho mens naturais para garantir sua segurança não apenas contra o inimigo comum mas também contra suas próprias paixões hedonistas e concupiscentes O homem de Hobbes é acima de tudo um ser crente e fanático capaz de se destruir com suas próprias paixões A fi m de que o homem não se fi ra com seus próprios apetites e aversões insta que se constitua um Estado de poder absoluto para a proteção de cada um e de todos os homens Hume concordaria com Hobbes que em geral as paixões humanas são mais fortes do que a razão 1983 p 115 Daí a necessidade de fundar um Estado capaz de controlar as paixões e crenças desse homem cuja condição natural é dominada pelas fantasias de seu mundo mental imaginário 34 O Leviatã e o seu significado simbólico Por que teria o autor do homem artifi cial escolhido como título de sua obra uma citação ou ilustração carregada de força colossal e de sentido enig mático O que estaria por trás de uma imagem que até hoje suscita dúvidas e difi culdades para melhor compreensão das ideias do autor Carl Schmitt autor do livro The Leviathan in the State Theory of Thomas Ho bbes Meaning and Failure of a Political Symbol publicado em 1938 na Alemanha realiza minuciosa investigação acerca do signifi cado do símbolo procede a uma verdadeira abordagem mitológica na qual busca decifrar o signifi cado do sím bolo político selecionado por Hobbes como título e ilustração da primeira edição inglesa da capa de cobre de sua obra mais conhecida Seria oportuno examinar o signifi cado do símbolo político representado pelo Leviatã seguindo em alguns pontos a abordagem de Carl Schmitt no livro acima mencionado Percorro daqui em diante alguns pontos do trabalho de Schmitt18 pois é um dos raros estudos que não relega à dimensão mítica e re 18 Assim como Hobbes Carl Schmitt também pertence à categoria dos autores malditos Há quem diga que ele é o Th omas Hobbes do século XX que ingressou no Partido Nazista em 1933 com a ambi ção de tornarse o principal jurista e fi lósofo político do terceiro Reich Todavia em face do seu passado antinazista seus laços de amizade com judeus e marxistas e seu desprezo pelas teorias racistas Schmitt foi severamente atacado pelo SS em 1936 e advertido a não posar de pensador Nacional Socialista Schwab 1996 p introdução Da mesma forma que Hobbes o autor permaneceu por muito tempo no mais profundo ostracismo Todavia no que respeita à peculiaridade de seu livro sobre o Leviatã destaca se que a originalidade do empreendimento de Schmitt reside em ter querido descobrir através de uma investigação da simbologia cristã e judaica e de uma análise textual da obra de Hobbes o signifi cado que tem o símbolo do Leviatã na doutrina do Estado daquele que passou à história com o nome de profeta do Leviatã Bobbio 1991 p 193 68 ELSEVIER Curso de Ciência Política ligiosa do Leviatã sem a qual não se compreende o conceito de secularização de Hobbes ao plano do esquecimento Investigar a origem e a maneira como aparece o Leviatã associado à teoria política de Hobbes consiste na fi nalidade desta parte do capítulo 341 O Leviatã e o seu significado bíblico O uso de símbolos imagens metáforas insígnias brasões entre uma série de outras representações não é novidade nas ilustrações ou citações de teorias políticas 1983 p 5758 Na longa história das teorias políticas uma história excessivamente próspera em imagens e símbolos coloridos ícones e ídolos paradigmas e fantasmas emblemas e alegorias o Leviatã é a mais forte e poderosa imagem Ela fragmenta a estrutura de toda teoria concebível ou constructo Schmitt 1996 p 5 A ideia de um corpus ou da unidade de uma entidade política foi frequentemente representada à guisa de um grande ani mal ou de um grande homem Platão em A República livro IX ao discorrer através dos diálogos entre Sócrates e Glauco sobre as paixões brutais que aco metem os homens e a multidão impedindoos de se orientarem através de leis ou por meio da sabedoria e da razão formula uma imagem Imagem pouco mais ou menos semelhante à daqueles seres de que falam as antigas tradições tais como a Quimera Cila Cérbero afi nal toda essa multidão de monstros que a fábula fi gura compostos de muitas naturezas diferentes Platão 1959 p 402 Antes de se dar cabo à descrição acima citada é relevante frisar como no âmbito das ideias políticas é recorrente o tema das paixões19 que dominan do os homens enfraquecem a razão levandoos a disputar entre si o gozo destes prazeres voltam as armas uns contra os outros20 entrebatendose aos murros e coices com unhas e cascos e acabam matandose sem chegarem nunca a saciarse Platão 1959 p 398 19 Platão após narrar as três partes da alma a que correspondem três espécies de prazeres próprios de cada uma uma destas partes é a razão órgão dos conhecimentos humanos a segunda é o apetite iras cível a terceira chamola apetite concupiscente pela violência dos desejos que nos impelem a comer e a beber aos prazeres do amor e outros deleites sensuais e também dizemola avarenta porquanto é o dinheiro o meio mais efi caz de satisfazer a todas estas variedades de desejos defi ne o signifi cado de paixão um desejo imoderado de ganho Platão 1959 p 388 Afi rmando que a razão não está sufi cien temente presente para resistir às paixões Hobbes diz que quanto às paixões do ódio da concupiscência da ambição e da cobiça é tão óbvio os crimes que são capazes de produzir Hobbes 1983 p 179 20 Hobbes no capítulo XIII primeira parte do Leviatã ao discorrer sobre a condição natural do ho mem afi rma que se dois homens desejam a mesma coisa ao mesmo tempo que é impossível ela ser gozada por ambos eles tornamse inimigos E no caminho para seu fi m que é principalmente sua própria conservação e às vezes apenas seu deleite se esforçam por se destruir ou subjugar um ao outro Hobbes 1983 p 75 69 Capítulo 3 A teologia política de Hobbes Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco Prosseguindo na descrição da imagem de Platão21 observase que ela con siste num monstro com várias cabeças umas de animais domesticados outras de bestas feras Depois devese formar a imagem de um leão e de um homem cada qual à parte e com enorme desproporção entre o monstro e o leão entre o leão e o homem Essas três imagens devem estar unidas de maneira que se com ponham num só todo Por fi m deve se envolver esse composto com o exterior de um único ser de um homem por exemplo de sorte que o observador que não possa ver interiormente e tenha de julgar pelo envoltório o tome por uma só entidade por um homem enfi m Platão 1959 p 402 A elaboração da referida imagem tem como fi nalidade responder a Trasi maco sofi sta e interlocutor de Sócrates no livro I da República Nesse diálogo Trasimaco expõe a doutrina de que a justiça é simplesmente o interesse do mais forte 1959 p 28 A imagem trata de mostrar que a justiça como interesse do mais forte equivaleria a dizer que é vantajoso alimentar com cuidado a esse monstro de muitas cabe ças e ao leão fortalecêlos enfraquecendo ao mesmo tempo o homem a ponto de fazêlo morrer de fome de sorte que fi que à mercê de outros dois que o arrastarão por força aonde queiram Não equivaleria isto a afi rmar que em vez de acostumálos a viver juntos e em perfeito acor do é preferível deixar que estes animais se entrebatam se mordam se devorem uns aos outros Platão 1959 p 403 Percebese que através dos dizeres de Sócrates Platão rechaça a doutrina de Trasimaco pois entende que a justiça como interesse do mais forte é irra cional e portanto injusta Quem proclama a injustiça incorre num erro 1959 p 403 Não obstante diz que uma República justa só existe como modelo e se essa existir é certo que somente o sábio ou o fi lósofo consentirá em governála 1959 p 407 21 Embora Hobbes tenha infl igido duras críticas à vã e errônea fi losofi a dos gregos especialmente a de Aristóteles Hobbes 1983 p 354 na quarta parte do Leviatã intitulada Do Reino das Trevas o autor elogia a geometria e profere Platão que foi o melhor fi lósofo dos gregos proibiu a entrada de sua escola a todos aqueles que não fossem já de algum modo geômetras Hobbes 1983 p 386 Leo Strauss ao comparar as infl uências de Platão e Aristóteles na doutrina do autor inglês salienta que Hobbes no fi nal de seu período humanista não tinha nenhuma objeção contra a visão tradicional de seu tempo em que se designava Aristóteles como o fi lósofo par excelence Não obstante mais tarde Hobbes considera Platão o melhor fi lósofo da Antiguidade clássica Essa preferência por Platão se justifi caria pela razão da sua fi losofi a ter como ponto de partida ideias ao passo que a de Aristóteles partiria de palavras Platão libertase de soletrar palavras enquanto Aristóteles não consegue libertarse Platão estaria apto a elaborar uma fi losofi a política por evitar conclusões falaciosas acerca do que é do que foi do que deveria ser Srauss 1936 p 139141 70 ELSEVIER Curso de Ciência Política Carl Schmitt analisa sucintamente a imagem traçada por Platão e a re puta como o retrato de uma Commonwealth República representada por um grande homem que poderia ser caracterizada por exemplo por uma multi dão movida por emoções irracionais uma criatura de muitas cabeças e muitas cores Schmitt 1996 p 5 O autor alemão considera que como símbolo de entidade política o Le viatã não seria apenas um corpus ou algum tipo de animal mas também uma imagem da Bíblia hebreia vestida durante muitos séculos de um signifi cado místico teológico e cabalístico 1996 p 6 Para o autor o Leviatã teria um sen tido mítico de uma imagem secular da batalha 1996 p 5 No Velho Testamento a imagem do Leviatã é retratada pela primeira vez no Livro de Jó 3 8 A descrição do Leviatã na referida passagem é breve Uma nota explicativa revela uma primeira defi nição22 do Leviatã monstro que se re presenta sob a forma de crocodilo segundo a mitologia fenícia Bíblia Sagrada 1957 p 614 Não se deve perder de vista que nas diversas descrições do Leviatã no Velho Testamento ele é caracterizado sob diferentes formas uma vez que se funde com outros animais O Livro de Jó 40 41 aponta a imagem mais impressionante do Leviatã descrevendoo como o maior dos monstros aquáticos No diálogo entre Deus e Jó o primeiro procede a uma série de indagações que revelam as características do monstro tais como ninguém é bastante ousado para provocálo quem o resistiria face a face Quem pôde afrontálo e sair com vida debaixo de toda a extensão do céu Quem lhe abriu os dois batentes da goela em que seus den tes fazem reinar o terror Quando se levanta tremem as ondas do mar as vagas do mar se afastam Se uma espada o toca ela não resiste nem a lança nem a azagaia nem o dardo O ferro para ele é palha o bronze pau podre Ao lado do Leviatã Jó 4010 aparece o Beemot vigoroso e musculoso animal terrestre sua força reside nos rins e seu vigor no músculo do ventre Levanta sua cauda como um ramo de cedro os nervos de suas coxas são en trelaçados seus ossos são tubos de bronze sua estrutura é feita de barras de ferro 22 Segundo outra defi nição o Leviatã em hebreu liwjathan animal que se enrosca seria o monstro do caos na mitologia fenícia identifi cado na Bíblia como um animal aquático ou réptil Dicionário Auré lio1986 Há outro verbete que o descreve como monstro aquático comumente simbolizando o mal no Velho Testamento e na literatura cristã Websters Th ird New International Dictionary 1986 71 Capítulo 3 A teologia política de Hobbes Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco A origem históricomitológica de tais animais descritos na Bíblia é uma questão um tanto obscura Ambos animais têm sido associados a algumas sagas o Leviatã talvez esteja associado ao Tiamat uma divindade da saga da Babilô nia O que interessa no entanto é não se ater às diferentes opiniões a respeito desses animais que aparecem na Bíblia hebreia uma vez que os historiadores e teólogos da Bíblia não os relacionam ao mito político ao qual Hobbes se refere 1996 p 6 Não obstante as diferentes interpretações o Leviatã aparece na Bíblia sob a forma do maior dos animais aquáticos como um crocodilo ou então na forma de um enorme peixe uma baleia O Beemot como animal terrestre representa do sob a forma de um hipopótamo23 Interessa nesta parte do trabalho mostrar as interpretações de ordem teológicocristã e judaicocabalística que foram feitas ao longo da História para em seguida mostrar de que forma o mito do Leviatã assume a natureza de um símbolo político de batalha Uma das difi culdades com a qual se depara nas passagens da Bíblia he breia ocorre em virtude de a imagem do Leviatã se fundir com a de outros ani mais Sua aparição também se revela sob forma de dragão ou serpente Em Isaías 271 Deus mata o monstro do mar naquele dia o Senhor ferirá com sua espa da pesada grande e forte Leviatã o dragão fugaz Leviatã o dragão tortuoso e matará o monstro que está no mar Em todas as passagens investigadas no Velho Testamento o Leviatã aparece como monstro apocalíptico representan do as forças do mal Em Salmos 7314 proclamamse as façanhas do Senhor quebrastes as cabeças de dragões Quebrastes as cabeças do Leviatã E as destes como pasto aos monstros do mar Observese que nesta passagem o Leviatã crocodilo ou dragão apresentase como símbolo do Egito vencido por Deus Entendese também o triunfo de Deus sobre os monstros mitológicos Há outra passagem em que se torna patente o tom irascível com que Ezequiel 2936 profetiza as palavras do Senhor contra o Faraó rei do Egito é contra ti Faraó rei do Egito que venho crocodilo monstruoso refe rência ao Leviatã que estás deitado no meio dos teus Nilos E que tu dizes Meus Nilos são meus sou eu que os fi z Vou pôr freio em tuas mandíbulas em tuas escamas prenderei os peixes do teus Nilos e tirar teei dos teus Nilos com todos os peixes de teus Nilos agarrados a tuas escamas Ezequiel 294 23 Apesar de Schmitt dizer que o Beemot poderia ser um touro ou um elefante 1996 p 6 a Bíblia Sagrada o defi ne como hipopótamo 1957 p 654 72 ELSEVIER Curso de Ciência Política Não só o Leviatã mas também o Beemot eram poderosos símbolos do mundo pagão As antigas civilizações do Egito da Assíria da Babilônia entre outros povos pagãos prestavam culto a ambos animais Não obstante de acordo com as passagens citadas depreendese que as representações hebreias de tais animais revelam profunda hostilidade 1996 p 8 Representavam verdadeiras forças do mal forças do caos O conteúdo caótico apocalíptico e perverso que assumem tais animais segundo Schmitt demonstra a atitude dos judeus perante outros povos Para o autor é nas interpretações judaicocabalísticas caracterizadas pela imanente natureza esotérica que é possível confrontarse com o mito político que adqui rem esses animais 1996 p 8 Na interpretação referida o Leviatã representa os milhares de cabeças de gado espalhadas pelos morros milhares de animais nos meus montes Salmo 4910 que simbolizam os pagãos A história do mundo é apresentada como uma batalha entre pagãos O Leviatã simboli zando os poderes do mar enfrenta o Beemot representando poderes da terra O último tenta dilacerar o Leviatã com seu chifre enquanto o Leviatã cobre a boca e as narinas de Beemot com sua barbatana e o mata 1996 p 9 Essa imagem revela uma terra obstruída À distância judeus assistem aos povos do mundo matandose uns aos outros Considerando justo o ritual de carnifi cina e massacre judeus comem as carnes dos corpos massacrados e delas se alimen tam 1996 p 9 A passagem da Bíblia que poderia ter dado margem a essa interpretação judaicocabalística consiste naquela em que Deus faz referência aos milhares de animais espalhados pelos montes e diz que se tivesse fome não precisava dizerte porque minha é a terra e tudo que ela contém Porven tura preciso comer carne de touros ou beber sangue de cabrito Salmos 49 13 Lembrese que Beemot nos dizeres de Schmitt poderia ser retratado por um touro Em outra interpretação judaicocabalística mencionada pelo autor ale mão Deus para salvar o mundo da maldade e violência do Leviatã corta o Leviatã macho e salga a carne do Leviatã fêmea para proporcionar às pessoas de bem uma festa no paraíso O que importa é que ambos o Leviatã e o Beemot tornamse nessas interpretações judaicas mitos de batalha de grande estilo Da perspectiva dos judeus cada um é uma imagem da vitalidade e fertilidade pagã o grande Pan que os judeus odiavam e os seus sentimentos de superioridade transformaram em monstro 1996 p 9 Nas prósperas interpretações teológicas e históricas o Leviatã também representa uma força maligna Confundese com dragão serpente e pode até 73 Capítulo 3 A teologia política de Hobbes Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco simbolizar as várias formas de aparição do diabo24 incluindo o próprio Satã O Beemot e o Leviatã no bojo dessas interpretações aproximamse dos animais apocalípticos Nas sagas e lendas também surgem mitos de batalha contra os dragões os matadores de dragões tais como Siegfried São Miguel e São Jorge podem ter suas origens no Leviatã 1996 p 67 É no início da Idade Média que surgem duas categorias principais de in terpretação A primeira seria a da mitologia judaica feita pelos rabinos da ca bala Aliás algumas dessas interpretações disponíveis já foram anteriormente expostas A segunda categoria vem da simbologia cristã divulgada pelos padres da Igreja 1996 p 7 Conforme narra Carl Schmitt a interpretação do Leviatã durante a Ida de Média foi governada pela teologia até o período da escolástica25 Nessa interpretação o Leviatã se confunde com o diabo O Leviatã grande peixe dia bólico teria sido capturado por Deus Por causa da morte de Cristo na cruz o diabo perde a batalha para os homens Enganado pela fi gura servil de Deus es condida na carne o diabo tenta devorar o homemDeus mas é capturado pela cruz como se esta fosse uma vara de pescar Como doutrina teológica esta concepção remonta a Gregório o Grande Leo o Grande e Gregório de Nyssa Uma ilustração do século XII no livro medieval Hortus Deliciarum do Abade Herrar von Langsberg retrata Deus representado como pescador Cristo na cruz como isca de uma vara de pescar e o Leviatã como peixe enorme que morde a isca 1996 p 78 Embora as interpretações até aqui expostas transformem o Leviatã e o Beemot em monstros apocalípticos fi guras demoníacas representantes das for ças do mal serpentes ou dragões simbolizando o caos é possível apresentar uma interpretação completamente oposta para o Leviatã de Thomas Hobbes Outros povos viram na serpente ou no dragão um símbolo de proteção e benevolência Ensina Schmitt que o dragão chinês não é o único exemplo Os celtas cultuavam serpentes e dragões Vândalos Lombardos e outras tribos germânicas utilizavam dragões e serpentes como emblemas militares Bandeiras estampando imagens de 24 Hobbes ao comentar as interpretações teológicas de mitos pagãos observa que a doutrina dos dia bos não signifi ca as palavras de qualquer diabo e sim a doutrina dos pagãos a respeito dos demônios e aqueles fantasmas que eles adoravam como deuses 1983 p 249 25 Um dos alvos principais do Leviatã de Hobbes é justamente a escolástica defi nida como a conquista fi losófi ca mais notável da última fase da Idade Média esse sistema seria uma tentativa de harmoni zar a razão com a fé ou para fazer a fi losofi a servir aos interesses da teologia Burns 1948 p 379 Além disso os fi lósofos da escolástica propugnavam por uma suserania papal da Igreja Foi contra esse caráter universalista da Igreja que Hobbes se insurgiu 74 ELSEVIER Curso de Ciência Política dragões vibravam nos campos de batalha Desde tempos imemoriais o dragão serviu aos anglosaxões como símbolo da bandeira do exército real No ano de 1066 em Hastings o rei Haroldo após a vitória de Guilherme o Conquistador enviou uma bandeira retratando um dragão ao papa de Roma 1996 p 910 A história das disputas políticas entre povos europeus revela de fato um ar raigado sentimento mítico mas o que estaria por trás do Leviatã de Hobbes Schmitt considera que o autor inglês ao escolher o Leviatã como símbolo de sua obra ti nha uma posição defi nitiva Atesta que Leo Strauss num livro em que examina o Tratado PolíticoTeológico de Spinoza publicado em 1930 salienta que Hobbes considerava os judeus como os criadores da destruidora distinção revolucionária do Estado a distinção entre poder secular e poder espiritual 1996 p 10 O Leviatã de Hobbes teria então o sentido mítico da imagem secular de uma batalha contra a distinção entre o poder secular e o espiritual que Schmitt considera uma divisão tipicamente judaicocristã 1996 p 10 Tal distinção era desconhecida pelos pagãos26 a religião para eles era parte da política To davia se os judeus trouxeram a unidade do lado da religião a sede de poder da Igreja27 papal romana e das Igrejas presbiterianas reforçou a separação do poder espiritual e do poder temporal o que contribuiu amplamente para a destruição do Estado 1996 p 10 O argumento principal de Hobbes no livro Leviatã é o de que a especiosa distinção entre poder secular e poder espiritual leva às guerras civilreligiosas e consequentemente à destruição de um Estado Num Estado não pode haver mais de uma alma soberania aqueles que levantam a supremacia contra a so berania os cânones contra as leis e a autoridade espiritual contra a autoridade civil atuando sobre o espírito dos homens com palavras e distinções que em si nada signifi cam estabelecem dois Estados para os mesmos súditos o que é um reino dividido e não pode durar A insignifi cante distinção entre tem poral e espiritual 1983 p 196 leva os súditos a prestarem obediência a dois soberanos distintos todavia os homens não podem servir a dois senhores Os príncipes devem portanto aliviálos seja tomando completamente em suas mãos as rédeas do governo seja deixandoas nas mãos do Papa 1983 p 336 Em outras palavras ou o poder civil que é poder do Estado está submetido ao poder espiritual situação em que não há nenhuma soberania exceto a espiritual 26 Hobbes proclama que no mundo pagão a política e as leis civis fazem parte da religião não tendo portanto lugar a distinção entre a dominação espiritual e a temporal 1983 p 71 27 Hobbes infl ige duras críticas àqueles que operaram mudanças na religião atribui todas as mudanças de religião do mundo a uma e à mesma causa isto é sacerdotes desprezíveis e isto não apenas entre os católicos mas até naquela Igreja que mais presumiu de Reforma 1983 p 73 75 Capítulo 3 A teologia política de Hobbes Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco ou o poder espiritual está subordinado ao temporal assim não existe outra su premacia senão a temporal 1983 p 196 O signifi cado desse mito secular de batalha representado sob a fi gura do Leviatã28 seria o da restauração da unidade original dos povos pagãos Restaura ção em que o secular e o espiritual constituem a alma de um único poder sobera no no qual a religião não fosse estranha à política A luta contra a divisão de um poder indireto espiritual e um poder direto temporal visando a restauração da unidade pagã original seria o signifi cado da teoria política de Hobbes Con forme destaca Carl Schmitt superstição e uso inadequado de crenças alienígenas por parte de espí ritos dominados pelo medo e pela ilusão destruíram a unidade original e natural dos pagãos que unia a política e a religião A batalha para superar a divisão papal da Igreja romana entre um Reino das Luzes e o reino Reino das Trevas isto é a restauração da unidade política original é como viu corretamente Leo Strauss o signifi cado atual da teoria política de Hobbes 1996 p 11 Hobbes29 de fato insurgese contra o poder papal da Igreja romana e relata que a oposição dos poderes espiritual e secular destrói o Estado Quando portanto estes dois poderes se opõem um ao outro o Estado só pode estar em grande perigo de guerra civil e de dissolução Pois sendo a au toridade civil mais visível e erguendose na luz mais clara da razão natural não pode fazer outra coisa senão atrair a ela em todas épocas uma parte muito considerável do povo e a espiritual muito embora se levante na escuridão das distinções da Escola e das palavras difíceis contudo porque o receio da escuri dão e dos espíritos é maior que os outros temores não pode deixar congraçar um partido sufi ciente para a desordem e muitas vezes para destruição de um Estado 1983 p 1996 O Leviatã seria então um grande símbolo de batalha contra as pretensões de a Igreja intervir na esfera jurídicopolítica dos domínios de soberanos civis ou 28 Bobbio ao fazer referência à interpretação mítica de Carl Schmitt chamou o Leviatã de cavalo de batalha Bobbio 199 p 193 29 Renato Janine na apresentação ao livro Do cidadão escrito por Hobbes e publicado em 1642 ao comentar a terceira parte da obra Leviatã cujo título é Do estado cristão diz que Hobbes procede a uma rigorosa exegese do texto bíblico procurando compreender a defi nição de cada um de seus con ceitoschave Esse empreendimento tem um sentido estratégico o de limitar o poder eclesiástico que prevalece indevidamente sobre o poder político e sobre a vida dos cidadãos valendose da ignorância dos leigos Indagandose contra quem Hobbes constrói o seu poder absoluto assinala o autor que o poder absoluto se constitui em Hobbes antes de mais nada contra as pretensões do clero a infl uir no poder político Janine 1998 p XXXIII 76 ELSEVIER Curso de Ciência Política cristãos O Leviatã simbolizaria a indivisibilidade da soberania e a luta contra a separação do poder religioso do poder político O signifi cado do Leviatã seria a tentativa de restaurar a unidade pagã que não separava a política da religião E tal interpretação de Carl Schmitt procede uma vez que Hobbes ao se insurgir contra distinção entre o poder espiritual e o poder temporal o que equivale di zer contra a distinção entre religião e política propõe a restauração da unidade pagã Chega mesmo a proclamar que a religião dos gentios fazia parte de sua política Para eliminar a referida distinção que impede que haja um domínio estritamente secular devese restituir a unidade dos gentios em que a política e as leis civis fazem parte da religião não tendo portanto lugar a distinção entre a dominação temporal e a espiritual 1983 p 71 Figura 1 342 O Leviatã na obra de Thomas Hobbes Na primeira parte deste capítulo intitulada O Leviatã e seu signifi cado bíbli co tratouse das distintas formas pelas quais aparecem o Leviatã retratado nas passagens da Bíblia hebreia e apresentaramse algumas interpretações extraídas do já mencionado livro The Leviathan in the State Theory of Thomas Hobbes Mea ning and Failure of a Political Symbol da autoria de Carl Schmitt A decisão do cita 77 Capítulo 3 A teologia política de Hobbes Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco do autor de optar em primeiro lugar por uma análise dos diversos signifi cados que assume o mito do Leviatã na Bíblia e nas distintas representações ao longo da história tem uma razão bem defi nida Hobbes ao redigir o livro Leviatã divi deo em quatro partes A primeira trata do Homem a segunda do Estado a ter ceira do Estado Cristão e a quarta do Reino das Trevas Diferentemente do livro Do cidadão sob vários aspectos semelhante ao Leviatã neste último Hobbes procede a uma profunda exegese das Escrituras Sagradas sem correspondên cia no Cidadão Janine 1998 p XXXII Ora se o próprio Hobbes dedica metade de seu livro Leviatã a minuciosa análise das imagens conceitos e distinções re velados nas Sagradas Escrituras não seria de estranhar que um estudioso como Carl Schmitt para melhor compreensão das ideias do autor inglês procurasse trilhar caminho semelhante Aliás o signifi cado do Leviatã como mito secular de batalha contra a destruição do Estado perpetrada pela tradição judaicocristã através da distinção entre o temporal e o espiritual é pertinente e até constatável em uma série de passagens proferidas por Hobbes entre elas algumas a que já se fez alusão na primeira parte deste capítulo De que forma então aparece o Leviatã na obra de Hobbes Em 1651 a gravura na capa de cobre da primeira edição inglesa da obra intitulada Levia tã apresentao de forma completamente diferente das imagens retratadas nas Sagradas Escrituras Na mencionada capa o título Leviatã vem acompanhado dos dizeres do Livro de Jó 4024 non est potestas super terram quae comparatur ei não há nada na terra que se lhe possa comparar logo abaixo o observador deparase com a seguinte imagem um gigante composto de inúmeros anões segurando na mão direita uma espada e na esquerda um bastão pastoral toma conta de uma pacata cidade Sob cada braço o secular bem como o espiritual há uma coluna de cinco desenhos debaixo da espada um castelo uma coroa um canhão em seguida rifl es lanças e bandeiras e fi nalmente uma batalha a essas imagens corresponde abaixo do braço espiritual uma igreja uma mitra raios silogismos e dilemas e fi nalmente um Conselho A investigação ao longo do Leviatã revela que os raios do trovão simbo lizam o poder da excomunhão Na segunda parte da referida obra no capítulo XLII em que trata Do poder eclesiástico Hobbes investe duras críticas contra o poder da excomunhão utilizado pelo clero Considerava tal poder uma verda deira arma política forjada por pretensas autoridades espirituais cujo intuito consistia em usurpar o poder jurisdicional de soberanos temporais De acordo com o autor o nome fulmen excommunicationis isto é o raio da excomunhão teve ori gem numa fantasia do bispo de Roma que foi o primeiro a usála de que 78 ELSEVIER Curso de Ciência Política era rei dos reis tal como todos os pagãos faziam de Júpiter o rei dos deuses e lhe atribuíram em seus poemas e quadros um raio com o qual subjugou e castigou os gigantes que ousavam negar seu poder 1983 p 303 Não se deve perder de vista que o poder da excomunhão consistia na mais poderosa e sofi sticada arma política utilizada pela Igreja nas disputas com líde res temporais pelo governo da ação dos homens Segundo com Hobbes a exco munhão consistia num verdadeiro poder coercitivo por meio do qual a Igreja se desvirtuava de suas funções sagradas sua missão não consiste em governar pelo mando e pela coação mas em ensinar e orientar os homens na salvação no mundo vindouro 1983 p 302 Ao comentar a mencionada gravura da primeira edição do Leviatã de Ho bbes Carl Schmitt esclarece que a ilustração representa os meios característicos de usar a autoridade e o poder para empreender disputas de caráter seculares piritual Ela traz em si a fundamental compreensão de que ideias e distinções são armas políticas de fato armas específi cas empenhadas pelo poder indireto 1996 p 18 São de suma importância as observações feitas pelo autor alemão uma vez que as cinco fi guras retratadas abaixo de cada braço representando o poder secular e o poder espiritual constituem verdadeiro arsenal político de guerra Retratam respectivamente a tensão existente entre o poder das armas propriamente ditas e a autoridade da crença das ideias distinções enfi m a ten são existente entre potestas e auctoritas Hobbes via nessa tensão as primícias das guerras civis religiosas30 uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens pois a guerra não consiste apenas na batalha ou no ato de lutar naque le lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é sufi cientemente conhecida porquanto a natureza da guerra não consiste na luta real mas na conhecida disposição para tal durante todo o tempo em que não há garantia do contrário 1983 p 76 Na doutrina do Estado de Hobbes não há distinção entre o secular e o espiritual entre potestas e auctoritas daí o autor proclamar que governo temporal e espiritual são apenas duas palavras trazidas ao mundo para levar os homens a se confundirem enganandose quanto ao seu soberano legítimo É certo que os corpos dos fi éis depois da ressurreição não serão apenas espirituais mas eternos porém nesta vida o único governo que existe seja o do Estado seja o da religião é o governo temporal 1983 p 277 30 Hobbes escreveu o Leviatã movido pelo período de guerras civis religiosas que assolavam a Europa no fi nal da mencionada obra relata cheguei ao fi m de meu referido discurso sobre o governo civil e eclesiástico ocasionado pelas desordens do tempo presente 1983 p 410 79 Capítulo 3 A teologia política de Hobbes Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco Assim em tom agnóstico infere o autor inglês auctoritas non veritas Nada mais é uma questão de verdade tudo passa a ser um comando Um milagre é o que o comando da autoridade estatal obriga os súditos a acreditar como tal 1996 p 55 O fi lósofo político do Estado chega à referida conclusão por estar profundamente envolvido com as sensíveis questões acerca dos milagres e das crenças Seu agnosticismo o leva a sustentar que se o relato de um milagre é verdade ou mentira nenhum de nós deve aceitar como juiz sua razão ou cons ciência privada mas a razão pública do supremo lugar tenente de Deus E sem dúvida já o escolhemos como juiz se já lhe demos um poder soberano para fazer tudo quanto seja necessário para nossa paz e defesa 1983 p 264 Com efeito se algo deve ser considerado milagre é a razão pública do Estado que decide em detrimento às razões privadas O poder soberano atinge assim seu zênite É o maior representante de Deus na terra 1996 p 55 Retornando à imagem gravada na capa de cobre da primeira edição in glesa do Leviatã observase que o este não aparece como dragão serpente cro codilo ou baleia Ressalta Schmitt que ele não aparece no sentido retratado pelo Livro de Jó mas sob a forma da majestade de um grande homem No Leviatã ora usase magnus homus ora magnus Leviatã O monstro aquático da Bíblia hebreia e o grande homem de Platão são apresentados lado a lado Destaca o autor que em numerosas imagens míticas homem e animal fundemse um no outro e em virtude de apresentarse um grande homem e um grande animal antes de se tornarem um só a aparição mítica tornase plausível 1996 p 19 Seguindo ainda a análise textual de Carl Schmitt notase que o Leviatã é apenas mencionado três vezes Logo no início do livro na introdução Hobbes diz que o Estado ou Civitas é um grande homem de maior estatura e força do que o natural um grande Leviatã um autômato ou máquina 1983 p 5 O au tor alemão diz que o magnus ille Leviathan o grande e famoso Leviatã é introdu zido sem maiores explicações e de imediato caracterizado como grande homem e grande máquina Há portanto três imagens um grande homem um grande animal e uma grande máquina forjados pela arte pelo engenho humano 1996 p 19 A segunda vez em que Hobbes se refere ao Leviatã é na segunda parte do livro capítulo XVII intitulada Do Estado É justamente aí que o autor inglês constrói a sua teoria do Estado Antes porém de se proceder à análise textual da segunda aparição do Leviatã considerase necessária uma breve digressão No capítulo XIII do Leviatã Hobbes descreve a natureza humana e revela as três causas principais da discórdia a competição a desconfi ança e a glória Tais características da condição humana levam os homens a tirar um enorme desprazer da companhia uns dos outros quando não existe nenhum poder ca 80 ELSEVIER Curso de Ciência Política paz de mantêlos em respeito1983 p 75 Cabe ressaltar que neste capítulo ao descrever a natureza dos homens o autor examina as paixões de forma absolu tamente realista e portanto distinta do pensamento prémoderno Assim ela bora uma verdadeira antropologia política do homem sem exaltar a virtude a prudência ou a coragem O autor desvinculado do método silogísticodedutivo da geometria que tanto exalta e aplica na construção de sua teoria do Estado ao longo do livro determina sua premissa seu ponto de partida o medo o medo da morte pois tal paixão faz os homens tenderem para a paz A paixão com que se pode contar é o medo o qual pode ter dois objetos extremamente gerais um é o poder dos espíritos invisíveis e outro é poder dos homens que dessa maneira se pode ofender 1983 p 84 O medo seria então o que levaria ao pacto conditio sine qua non para um corpus uma unidade política De todas as paixões a que menos faz os homens a tender a violar as leis é o medo 1983 p 179 Voltando então à segunda parte do livro capítulo XVII no qual o Leviatã é mencionado pela segunda vez como se disse é nesta parte do livro que Hob bes constrói a sua teoria Estado Diante da necessidade de segurança um homem ou uma assembleia de homens é designada como representantes de suas pessoas considerandose e reconhecen dose cada um como autor de todos os atos que aquele que representa suas pessoas praticar ou levar a praticar em tudo que disser respeito à paz e segurança comuns todos submetendo assim à vontade do repre sentante e suas decisões à sua decisão Isto é mais do que um consen timento ou concórdia é uma verdadeira unidade de todos eles numa só e mesma pessoa realizada por um pacto de cada homem com todos os outros 1983 p 105 Percebese que a forma através da qual Hobbes forja seu conceito de sobera nia absoluta é inequívoca Para instituir um poder comum devese outorgar toda força a um homem de preferência a uma assembleia de homens de modo que di versas vontades sejam reduzidas a uma só vontade O indivíduo ou a corporação elevam a todos que participaram do pacto à categoria de uma pessoa unifi cada que se denomina Estado Ganha vida o ente estatal Nos dizeres de Hobbes é esta a geração daquele grande Leviatã ou antes para falar em termos mais reverentes daquele Deus Mortal ao qual devemos abaixo do Deus Imortal nossa paz e defesa Pois graças a esta autoridade que lhe é dada por cada indivíduo no Estado élhe conferido o uso de tamanho poder e força que o terror assim inspirado o torna capaz de conformar as vontades de todos eles no sentido da paz em seu próprio país e da ajuda mútua contra os inimigos estrangeiros 1983 p 106 81 Capítulo 3 A teologia política de Hobbes Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco Ao lado do grande homem do grande animal e da grande máquina surge a quarta imagem o Deus mortal Atingese uma totalidade mítica composta por Deus homem animal e máquina 1996 p 19 No capítulo XXVIII Hobbes men ciona o Leviatã pela terceira e última vez Desta vez no entanto o autor fornece a explicação tal como a da imagem da Bíblia Sagrada O capítulo acima referido trata das penas e das recompensas Não é por acaso que o Leviatã é mencionado nesse contexto uma vez que penas e recompensas são o que Hobbes considera necessário para infl uenciar os homens sobretudo para curvar a arrogância e outras paixões 1996 p 20 O soberano possuidor do poder absoluto e não o Estado como um todo ou como uma unidade política em razão de seu grande poder governante é comparado ao Leviatã Atesta Hobbes comparei o poder do governante com o Leviatã tirando essa compa ração dos dois últimos versículos do capítulo 41 de Jó onde Deus após ter estabelecido o grande poder do Leviatã lhe chamou Rei dos Sober bos Não há nada na Terra disse ele que se lhe possa comparar Ele é feito de maneira a nunca ter medo Ele vê todas as coisas abaixo dele e é o Rei de todos os fi lhos da Soberba 1983 p 191 Hobbes preocupado em alertar os homens para os perigos que poderiam advir dos milagres e das crenças perscrutou a crença nos fantasmas a ignorân cia das causas segundas a devoção pelo que se teme e a aceitação de coisas aci dentais como prognósticos enfi m investigou a semente natural da religião 1983 p 67 É provável que em razão de tal interesse duas das quatro partes que compõem o livro Leviatã consistam em minucioso estudo crítico das Sagra das Escrituras Hobbes tornouse o primeiro e mais ousado crítico com relação a todas as formas de crença em milagres fossem de natureza bíblicocristã ou de qualquer outra religião Para Schmitt sua crítica era completamente ilumina da e ao propôla ele aparece como o verdadeiro inaugurador do século XVIII 1996 p 54 O impacto do Leviatã devese às rupturas perpetradas por esse grande símbolo de batalha Embora infl uenciado por Tucídides Platão e Aristóteles entre outros Hobbes rompe com o pensamento prémoderno uma vez que re futa as concepções desses autores e de outros fi lósofos pagãos despreza os pen sadores romanos como Cícero ridiculariza os fi lósofos da escolástica enfrenta a sede de poder da Igreja papal romana e das Igrejas presbiterianas enfi m seu mito secular de batalha inaugura o pensamento moderno Ao se insurgir contra a distinção entre o poder secular e o poder espiritual Hobbes está na verdade secularizando o Estado uma vez que é a autoridade soberana estatal que detém o monopólio da razão pública ou seja o poder de determinar a fé ofi cial do rei 82 ELSEVIER Curso de Ciência Política no e portanto a crença dos súditos pelo menos no âmbito do foro externo pois reconhece a liberdade de crença no foro íntimo Hobbes ao submeter a autoridade do poder espiritual ao poder temporal do soberano chega à noção auctoritas non veritas facit legem Passa a não existir a verdade existindo pois o comando de um poder soberano estatal que tem o monopólio acerca das crenças de seus súditos e portanto da decisão políti ca Isto caracteriza uma verdadeira religião civil cujo representante é um Deus mortal O Leviatã não só inaugura uma antropologia política do homem o positi vismo jurídico mas também uma teologia política O fundamento do Estado de Hobbes é extraído da natureza humana cujo traço mais notável é sua tendência ao medo dos poderes invisíveis o que é defi nido pelo autor como religião Ao propor a restauração da original unidade pagã entre religião e política que serve tanto gentios quanto para cristãos Hobbes apresenta o báculo na mão es querda de seu Deus mortal pois sabe que somente com a espada na mão direita o Leviatã poderá rapidamente ser devorado pelo Beemot 35 Conclusão A resposta de Hobbes à guerra civil religiosa foi a secularização de um domínio estritamente político independente de juízos morais leis naturais ou interesses de representantes dos poderes espirituais Todavia não se deve per der de vista que esse domínio secular é extraído da interpretação das Escrituras Sagradas É justamente a hermenêutica do Novo e do Velho Testamento que permite estabelecer uma desconexão da moral teologizante que ocultava os con ceitos seculares e lhes conferir um sentido político permitindo a elaboração de uma teoria do Estado Não é por acaso que o autor chama o soberano intramun dano de Deus mortal ou diz que a soberania é a alma artifi cial do Estado São inúmeras as passagens do Leviatã em que se torna inequívoca a analogia que há entre a estrutura semântica de conceitos teológicos e conceitos políticos ou jurídicos como ocorre a título de exemplo entre as noções de crime e peca do foro externo e foro interno confi ssão e fé direito e moral código jurídico e Bíblia O conceito político de soberania absoluta de Hobbes é um conceito teo lógico secularizado revelando uma afi nidade estrutural entre os conceitos do reino espiritual e do temporal Demonstrando que o signifi cado do conceito de secularização no Leviatã pode ser pensado como a conversão de um Deus Todo poderoso na fi gura de um soberano intramundano onipotente cujas mãos detêm o bastão espiritual do controle da manifestação externa das crenças e o poder coercitivo da espada Hobbes não deixa de restaurar um princípio pagão no qual os gentios não separavam a religião da política pois a união dos poderes invisí 83 Capítulo 3 A teologia política de Hobbes Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco veis aos poderes visíveis garantia a estabilidade e previsibilidade dos governos de domínios temporais A construção de um Estado neutro acima de qualquer partido político ou seitas religiosas levou ao positivismo jurídico No seu conceito de lei formal não importa o conteúdo isto é o valor da lei Exige que a lei seja proveniente de autoridade competente dotada de poder coercitivo O direito assim como a religião não passa de um instrumento a serviço de quem tem o poder fático de mando A teoria política de Hobbes provavelmente é incômoda pois alerta para o caráter arbitrário do poder de mando que homens exercem sobre homens Aliás o traço arbitrário e realista do poder não guarda nenhuma relação com as leis naturais ou morais com conhecimento tirado das verdades de Deus dos ditames da razão e da sapiência de juízes Ao secularizar o Estado Hobbes des cortina o caráter arbitrário das relações de poder que os homens travam entre si sejam eles papas príncipes ou aiatolás Assim ao distinguir consciência interior de ação exterior moral de direito procura eliminar os confl itos violentos que ocorriam no interior de um Estado sem poder comum sufi cientemente forte para manter a paz Ao transformar o Leviatã em arma política voltada para a seculari zação do Estado Hobbes busca a salvação dos homens neste mundo no interior de um corpo político Assim o Estado passa a representar uma mútua relação de proteção e obediência Hobbes 1983 p 410 necessária à condição existen cial da natureza humana Se fora do Estado o homem é lobo do homem no seu interior adquire status de cidadão e o homem é um deus para o homem Hobbes 1998 p 3 36 Perguntas para reflexão 1 Qual seria segundo Thomas Hobbes a relação entre a limitação cogniti va dos homens e o surgimento das religiões 2 Aponte três características subjacentes à máxima Auctoritas non veritas fa cit legem é a autoridade e não a verdade quem faz as leis 3 Thomas Hobbes aduz duas soluções a fim de dar cabo à especiosa distinção entre o espiritual e o temporal que leva à ruína do Estado Indiqueas 4 Por que o monopólio da decisão política tira partido da religião isto é da tendência do gênero humano à irracionalidade das crenças nos poderes invisíveis 5 Explique o conceito antropológico introduzido por Hobbes sem deixar de aludir à miséria cognitiva dos homens 84 ELSEVIER Curso de Ciência Política 6 O que se entende pela restauração da unidade original dos povos pagãos e qual sua relação com o Leviatã de Hobbes 7 No Leviatã de Hobbes a palavra Leviatã aparece três vezes sob quatro formas compondo uma unidade mítica Deushomemanimalmáquina Mencione o sentido que Hobbes teria atribuído a cada um dos elementos da referida composição mítica 8 Por que seria possível interpretar o conceito político de soberania abso luta do Leviatã ou Matéria Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil título completo do Leviatã de Hobbes como um conceito teológico secularizado 9 Por que o Estado de Hobbes passa a representar uma mútua relação de proteção e obediência 10 Por que se poderia afirmar que Hobbes é o precursor do positivismo jurí dico Bibliografia BÍBLIA SAGRADA São Paulo Ed Claretiana 1957 BOBBIO Norberto Thomas Hobbes Rio de Janeiro Campus 1991 et al Dicionário de Política Brasília Ed Universidade de Brasí lia 1994 v 1 e 2 BURNS Edward McNall História da Civilização Ocidental Porto Alegre Glo bo 1948 COHN Gabriel Introdução In Max Weber Sociologia São Paulo Ática 1982 HOBBES Thomas Behemoth ou o longo parlamento Belo Horizonte Ed UFMG 2001 Diálogo entre um fi lósofo e um jurista São Paulo Ed Landy 2001 Do cidadão São Paulo Martins Fontes 1998 Leviatã ou matéria forma e poder de um Estado Eclesiástico e Civil São Paulo Abril Cultural 1983 Libertad y necesidad y otros escritos Barcelona Ediciones Penín sula 1991 Behemoth or the long Parliament Chicago The University of Chicago Press 1990 Leviathan Londres Penguin Group 1985 85 Capítulo 3 A teologia política de Hobbes Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco A dialogue between a philosofer and a student of the Commom Laws of England Chicago The University of Chicago Press 1971 Leviathan or The Matter Forme and Power of a Common Wealth Ecclesiastical and Civil Londres Mowbray Co Limited 1946 HABERMAS Jurgen O Estadonação europeu frente aos desafi os da globa lização o passado e o futuro da soberania e da cidadania Novos Estudos São Paulo novembro1995 HUME David Uma investigação sobre os princípios da moral Campinas Ed Unicamp sd JANINE Renato Ao leitor sem medo Hobbes escrevendo contra seu tempo Belo Horizonte Ed UFMG 1999 Apresentação In Do cidadão São Paulo Martins Fontes 1998 Hobbes o medo e a esperança In WEFFORT Francisco Org Os clássicos da política São Paulo Ática 1991 v I KOSELLECK Reinhart Crítica e crise uma contribuição à pantogênese do mundo burguês Rio de Janeiro Contraponto 1999 MACPHERSON C B A Teoria Política do Individualismo Possessivo de Hobbes a Locke Rio de Janeiro Paz e Terra 1979 Introduction In Leviathan Londres Penguin Books 1985 MAQUIAVEL Nicolau O Príncipe São Paulo Abril Cultural 1979 MARRAMAO Giacomo Céu e terra genealogia da secularização São Paulo Ed 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State Theory of Thomas Hobbes Meaning and Failure of a Political Symbol Londres Greenwood Press 1996 O conceito do político Petrópolis Vozes 1992 SKINNER Quentin razão e retórica na fi losofi a de Hobbes São Paulo Ed UNE SP 1999 STRAUSS Leo The Political Philosophy of Hobbes Its Basis Its Genesis Chiga go The University of Chigago Press 1984 WEBSTER Websters Third New International Dictionary Chigago Merriam Webster Inc 1986 Websters New International Dicitionary Mass Ed G C Mer riam Co Publishers 1937 Capítulo 4 John Locke lei e propriedade Vladimyr Lombardo Jorge1 41 Introdução John Locke nasceu em 1632 no seio de uma família da pequena burguesia mercantil de Bristol Inglaterra Graças às infl uências de Alexandre Popham um amigo da família Locke ingressou em 1647 na escola de Westminster onde teve excelente desempenho Em 1652 conseguiu ingressar em Oxford tendose matriculado no célebre colé gio Christ Church Em 1656 obteve o título de bachelor of arts e dois anos depois o de master of arts Locke viveu em uma época muito conturbada da história política inglesa Tinha 10 anos quando eclodiu a guerra civil e seu pai que também se chama va John Locke aliouse ao partido do Parlamento e combateu como capitão de cavalaria o exército do rei Carlos I Cansado do confl ito Locke já com 28 anos saudou com alegria o retorno de Carlos II à Inglaterra e a Restauração Os textos Doutor e Mestre em Ciência Política pelo IUPERJ Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense UFF Professor adjunto de Ciência Política da Univer sidade Federal Rural do Rio de Janeiro UFRRJ Contato vljorgeuolcombr vljorge pucriobr 88 ELSEVIER Curso de Ciência Política escritos entre 1660 e 1664 refl etem seu anseio pelo fi m das hostilidades e o desejo de paz e segurança Por isso de acordo com Norberto Bobbio eles têm aspec tos hobbesianos pois neles Locke assume tons autoritários e colocase ao lado daqueles que querem a liberdade não ampla e garantida mas restrita e sujeita às prescrições do soberano Bobbio 1998 p 83 Sua posição política contudo mudará radicalmente alguns anos depois Em 1666 Locke conhece Lord Anthony Ashley Cooper 16211683 que alguns anos depois se tornará o primeiro conde de Shaftesbury 1672 Em 1667 é convidado para ser médico particular de Ashley Cooper mas acaba devido ao estreitamento da relação entre ambos tornandose também seu conselheiro econômico e político Essa união durou seis anos 1667 a 1672 e modifi cou a posição política de Locke A ascensão de Ashley Cooper na carreira política foi rápida e breve ini ciouse em 1667 quando se tornou ministro e começou a declinar em 1672 ten do terminado defi nitivamente em 1681 com a acusação de alta traição Shaftes bury opôsse ao governo de Carlos II e segundo Bobbio ele foi um predecessor da política Whig Bobbio 1998 p 851 Para Bobbio a infl uência que Shaftesbury exerceu sobre Locke são evidentes nos trabalhos escritos por este naquele pe ríodo e podem ser considerados programas teóricos de uma ação prática que nunca se realizará Bobbio 1998 p 85 Por causa de sua ligação com Shaftesbury Locke se vê obrigado a deixar a Inglaterra em 1674 e passa a viver na França Em 1679 após três anos afastado da política inglesa Locke retorna à Inglaterra Em 1681 contudo Shaftesbury é acusado de conspiração Embora tenha sido absolvido Shaftesbury é obrigado a exilarse na Holanda Temendo pela sua segurança Locke resolve também deixar a Inglaterra e refugiarse na Holanda de onde só retornará em 1688 junto com Guilherme de Orange 16501702 de quem entrementes havia se tornado conselheiro Em 1696 é nomeado comissário da Board of trade and plantations Já com as saúde bastante debilitada Locke pede exoneração dessa função em 1700 Fale ceu em 1704 com 72 anos completos Foi somente após seu retorno da Holanda que Locke publicou vários de seus trabalhos alguns anonimamente Dentre as obras que produziu merecem 1 O partido Whig reunia as forças políticas escocesas e inglesas que se oporiam ao partido Torie e luta ram a favor de um regime parlamentar e protestante De acordo com Bobbio o programa desse partido baseavase em três itens 1 a defesa dos direitos do Parlamento 2 a subordinação do Poder Executivo ao Legislativo 3 a maior defesa da liberdade religiosa ante o Estado e a Igreja ofi cial Bobbio 1998 p 167 89 Capítulo 4 John Locke lei e propriedade Vladimyr Lombardo Jorge destaque aqui Carta acerca da tolerância 1689 Primeiro tratado sobre o governo civil 1689 Segundo tratado sobre o governo civil 1690 e Ensaio sobre o entendimento hu mano 1690 Após a morte de Locke Peter King publicou obras póstumas 1706 com vários trabalhos inéditos de Locke De acordo com John W Yolton essa obra inclui Of the conduct of the Understanting An Examination of P Malebranches Opinion of Seeing All Things in God A Discours of Miracles Part of a Fourth Letter for Toleration New Method of a CommonPlaceBook e algumas Memórias do primeiro conde de Shaftesbury Yolton 1996 p 180 Baseado em Peter Laslett Bobbio sustenta que o Primeiro e o Segundo tra tado sobre o governo civil foram escritos na mesma época e muito antes de sua publicação entre 1679 e 1683 Bobbio 1998 p 165167 Ambos afi rma Bobbio inspirados no programa do partido Whig Neste capítulo optamos por comen tar o Segundo Tratado sobre o Governo Civil que é considerada por muitos a obra política mais importante de Locke 42 Locke Filmer e Hobbes Locke escreveu o Primeiro e o Segundo Tratado sobre o Governo Civil para re futar as teses absolutistas contidas na obra O Patriarca publicada postumamente em 1680 de Robert Filmer 15881653 Mas por que Filmer Por que não Thomas Hobbes Afi nal Hobbes havia publicado o Leviatã em 1651 e Locke o conhecia embora de acordo com Bobbio negasse têlo lido Bobbio 1998 p 164 Segundo Bobbio Filmer foi o alvo porque os realistas partidários da monarquia britâni ca o escolheram para defender o absolutismo Bobbio 1998 p 1642 Hobbes os incomodava por dois motivos Primeiro porque ele havia sustentado a teoria do poder absoluto mas não o identifi cara com o poder real Bobbio 1998 p 164 Segundo por ter defendido uma teoria absolutista do poder com argumentos racionalistas e pior ainda materialistas Bobbio 1998 p 164 Apesar de Locke ter escrito contra Filmer interessanos aqui o contraste entre as teorias jusnaturalista e contratualista de Hobbes e de Locke Pois como explica Bobbio Filmer é o adversário a combater Hobbes o adversário a dis cutir com o qual mesmo em plena controvérsia é preciso concordar de vez em quando Bobbio 1998 p 164 2 De acordo com Bobbio o livro de Filmer tinha sido utilizado naqueles anos pelo Partido Realista em defesa das teses mais reacionárias sobre o poder absoluto do monarca e de uma concepção paternalista das relações entre soberano e súditos Bobbio 1986 p 89 Por causa disso além de Locke os igualmente liberais James Tyrrell e Algernon Sydney também se empenharam em refutar as teses de Filmer 90 ELSEVIER Curso de Ciência Política No Primeiro Tratado sobre o Governo Civil Locke rejeita que a fonte do poder político seja a autoridade dada por Deus a Adão e transmitida por este aos seus descendentes No Segundo Tratado sobre o Governo Civil após distinguir o poder político de outras formas de poder o poder dos pais sobre os fi lhos do marido sobre a esposa do senhor sobre os fâmulos e do nobre sobre os escravos3 Locke defi ne o poder político como 3 o direito de fazer leis com pena de morte e consequentemente todas as penalidades menores para regular e preservar a propriedade e de empregar a força da comunidade na execução de tais leis e na defesa da comunidade de dano exterior e tudo isso tão só em prol do bem público Locke 1983 p 34 De acordo com Locke para compreender esse tipo de poder precisamos analisar sua origem o que requer uma investigação do estágio em que os seres humanos se encontram antes da formação da sociedade civil ou política Na próxima seção vamos discutir este estágio prépolítico4 43 Do estado de natureza Como Hobbes Locke rejeita a teoria aristotélica segundo a qual a família precede a sociedade política Da perspectiva individualista de ambos antes da criação da sociedade e da sociedade civil os homens viviam em um estado não político e antipolítico e eram plenamente livres e iguais Diz Locke 4 Para bem compreender o poder político e deriválo de sua origem devemos considerar em que estado todos os homens se acham natural mente sendo este um estado de perfeita liberdade para ordenarlhes as ações e regularlhes as posses e as pessoas conforme acharem conve niente dentro dos limites da lei de natureza sem pedir permissão ou depender da vontade de qualquer outro homem Estado também de igualdade no qual é recíproco qualquer poder e jurisdição ninguém tendo mais do que qualquer outro nada havendo de mais evidente que criaturas da mesma espécie e da mesma ordem nascidas promiscua mente a todas as mesmas vantagens da natureza e ao uso das mesmas 3 Esta uma forma clássica de distinguir o poder que como lembra Bobbio remonta em seus elementos essenciais ao primeiro livro da Política de Aristóteles Bobbio 2000 p 143 Essa tripartição ainda segundo Bobbio teve importância porque permitiu aos fi lósofos políticos fazerem a distinção entre o bom e o mau governo Bobbio 2000 p 217 4 Veremos mais adiante que Robert A Goldwin tem uma interpretação diferente acerca do estado de natureza de Locke 91 Capítulo 4 John Locke lei e propriedade Vladimyr Lombardo Jorge faculdades terão também de ser iguais umas às outras sem subordina ção ou sujeição Locke 1983 p 35 Bobbio chama a atenção para o fato de que Locke no parágrafo supra faz coincidir a liberdade como ausência de vínculos ordenarlhes as ações e regular lhes as posses e as pessoas conforme acharem conveniente com a liberdade como autodeterminação sem pedir permissão ou depender da vontade de qualquer outro homem Bobbio 2000 p 102 Tratase portanto da liberdade negativa ou seja da faculdade que o indivíduo tem de agir por não se encontrar impedido por normas vinculantes Bobbio 1998 p 180 Bobbio 2000 p 4885 A concepção de liberdade de Locke é idêntica à de Hobbes para quem a liberdade consistia na ausência de oposição entendo por oposição os impedimentos externos do movimento Hobbes 1983 p 129 Há porém uma diferença com a posição de Hobbes Segundo Locke o exercício da liberdade individual não requer desobediência às leis de natureza que sustentam os direitos naturais e limitam a liberdade dos indivíduos Segun do Yolton para Locke liberdade é sempre defi nida dentro de leis na sociedade précivil pela lei da natureza Yolton 1996 p 81 A lei existe para entre outras coisas preservar a liberdade A liberdade é concebida por Locke como sendo a ação permitida ou guiada pela lei seja ela a da natureza ou a civil po sitiva No estado de natureza os homens estão livres de qualquer poder na Terra ou seja não estão submetidos ao poder de outro homem É esta uma das características talvez a principal do estado de natureza Contudo estão sub metidos a Deus e portanto às restrições ou orientações impostas pelas leis da natureza que de acordo com Locke são leis de Deus Nas palavras de Ruth W Grant para Locke um homem livre deve ser impedido apenas pelas leis da razão Grant 1991 p 194 Observe o que diz Locke 6 Contudo embora seja este um estado de liberdade não o é de li cenciosidade O estado de natureza tem uma lei de natureza para governálo que a todos obriga e a razão que é essa lei ensina a todos os homens que tão só a consultem sendo todos iguais e independentes que nenhum deles deve prejudicar a outrem na vida na saúde na liber dade ou nas posses Locke 1983 p 36 No parágrafo 57 Locke reafi rma essa concepção de liberdade restrita Na teoria lockeana lei e liberdade estão intimamente relacionadas Ele admite a relação entre lei e liberdade quando diz 5 Um signifi cado diferente segundo Bobbio da concepção atual de liberdade visto que o conceito foi de lá para cá ampliado Sobre a ampliação do conceito de liberdade ver Bobbio 2000 p 489490 92 ELSEVIER Curso de Ciência Política 57 o objetivo da lei não consiste em abolir ou restringir mas em preservar e ampliar a liberdade Como em todos os estados de seres criados capazes de leis onde não há lei não existe liberdade A liberda de tem de ser livre de restrição e de violência de terceiros o que não se pode dar se não há lei mas a liberdade não é como nos dizem licença para qualquer um fazer o que bem lhe apraz mas liberdade de dis por e ordenar conforme lhe apraz a própria pessoa as ações as posses e toda a sua propriedade dentro das sanções das leis sob as quais vive sem fi car sujeito à vontade arbitrária de outrem mas seguindo livre mente a própria vontade Locke 1983 p 56 O fato de o estado de natureza ser governado pela lei de natureza é um ponto de diferença em relação à teoria hobbesiana Para Hobbes lei e direito se distinguem tanto como a obrigação e a liberdade as quais são incompatíveis quando se referem à mesma matéria Hobbes 1983 p 78 No estado de natu reza hobbesiano é o direito de natureza que deve prevalecer Na concepção de Hobbes o direito permite ao homem fazer tudo que julgar necessário para se preservar Para ele no estado de natureza não é racional os homens agirem de acordo com as leis de natureza pois não há nesse estado quem os obrigue a obedecerlhes Para Locke entretanto este seria um estado de licenciosidade Pois segundo ele a ausência de um poder comum não desobriga os homens de obedecer às leis de natureza tendo todos os homens a responsabilidade de zelar para que tais leis sejam observadas De acordo com Bobbio a igualdade lockeana no estado de natureza não é a de forças física ou material mas a jurídica Bobbio 1998 p 180181 Para Lo cke todos os homens têm no estado de natureza o direto de magistrado juiz Isso signifi ca que todos sem exceção têm o direito de castigar quem ouse violar a lei de natureza e de exigir que a parte prejudicada pela ofensa de outrem sofra reparação por perdas e danos Diz Locke 7 E para impedir a todos os homens que invadam os direitos dos ou tros e que mutuamente se molestem e para que se observe a lei de natureza põese naquele estado a execução da lei da natureza nas mãos de todos os homens mediante a qual qualquer um tem o direito de castigar os transgressores dessa lei em tal grau que lhe impeça a violação pois a lei da natureza seria vã como quaisquer outras leis que digam respeito ao homem neste mundo se não houvesse alguém nesse estado de natureza que não tivesse poder para pôr em execução aquela lei e por esse modo preservasse o inocente e restringisse os ofensores Locke 1983 p 36 93 Capítulo 4 John Locke lei e propriedade Vladimyr Lombardo Jorge Observe no trecho supra que tal como Hobbes Locke reconhece que é necessário alguém para obrigar os homens a obedecerem às leis de natureza Contudo como já foi dito no estado de natureza os homens estão livres de qualquer poder na Terra ou seja não estão submetidos ao poder de outro ho mem O artifício utilizado por Locke para contornar esse problema foi tornar o direito de juiz um direito natural Mas mesmo assim Locke admite que quem o exercer pode não ter condições de fato força para obrigar aquele que causou o dano a pagar pelo prejuízo causado Além disso outro inconveniente dessa condição é que os homens podem ser juízes em causa própria isto é parciais em seus julgamentos o que é apontado por Locke como uma das causas da trans formação do estado de natureza em estado de guerra Portanto quem viola as leis de natureza e procedendo assim ameaça a vida ou a propriedade de outrem põese em estado de guerra com este Para Lo cke não é injusto que sentindome ameaçado eu tente destruir aquilo que me ameaça já que a lei da natureza estipula que se busque a própria preservação Eis o que diz Locke no trecho abaixo 16 O estado de guerra é um estado de inimizade e destruição sendo razoável e justo possa eu ter o direito de destruir aquilo que me ameaça de destruição pois pela lei fundamental da natureza devendose pre servar o homem tanto quanto possível quando nem tudo se pode pre servar deverseá preferir a segurança do inocente e pode destruirse um homem que nos vem fazer guerra ou descobriu inimizade à nossa existência porque tais homens não estão subordinados à lei comum da razão não tendo outra regra que não a da força e da violência Locke 1983 p 40 Não havendo um poder comum para o qual possa apelar o agredido tem o direito de revidar uma vez que disso depende sua vida Goldwin afi rma que nessas circunstâncias o desejo da própria conservação determina o compor tamento do homem agredido posto que o homem não pode se comportar de outra maneira este comportamento nunca pode ser errôneo Goldwin 1996 p 459 Há portanto segundo Goldwin semelhança entre Locke e Hobbes com relação a essa questão Goldwin 1996 p 460 A semelhança contudo se en fraquece porque Locke exige que o revide seja proporcional ao dano causado Hobbes por sua vez não faz tal exigência Eis o que diz Locke 8 E assim no estado de natureza um homem consegue poder sobre outro contudo não é poder absoluto e arbitrário para haverse com um criminoso mas unicamente revidar de acordo com os ditames da razão calma e da consciência o que esteja em proporção com a trans 94 ELSEVIER Curso de Ciência Política gressão isto é tanto quanto possa servir de reparação e restrição eis que esses dois motivos são os únicos que autorizam legitimamente a um homem fazer mal a outro o que implica o que chamamos de casti go Locke 1983 p 36 Outra importante diferença em relação a Hobbes é que Locke distingue o estado de natureza do estado de guerra A distinção entre estado de natureza e de guerra e as consequências da violação das leis de natureza são explicitadas abaixo 19 E nisto temos clara diferença entre estado de natureza e o estado de guerra que muito embora certas pessoas tenham confundido estão tão distantes um do outro como um estado de paz boa vontade assis tência mútua e preservação está de um estado de inimizade malícia violência e destruição mútua Quando os homens vivem juntos confor me a razão sem um superior comum na Terra que possua autoridade para julgar entre eles verifi case propriamente o estado de natureza Todavia a força ou um desígnio declarado de força contra a pessoa de outrem quando não existe qualquer superior comum sobre a Terra para quem apelar constitui o estado de guerra e a falta de tal apelo que dá ao homem o direito de guerra mesmo contra um agressor embora esteja em sociedade e seja igualmente súdito A falta de juiz comum com autoridade coloca todos os homens em um estado de natureza a força sem o direito sobre a pessoa de um homem provoca um estado de guerra não só quando há como quando não há juiz comum Locke 1983 p 41 Segundo Pierre Manet Locke precisou distinguir o estado de natureza do estado de guerra para evitar as consequências despóticas ou absolutistas da doutrina hobbesiana para atribuir direitos a um indivíduo realmente solitário Manet 1990 p 75 Bobbio contudo lembra que a concepção lockeana de esta do de natureza é ambígua já que à medida que se afasta dos capítulos iniciais a noção de estado de natureza vai se identifi cando cada vez mais com a do estado de guerra Bobbio 1998 p 177 Bobbio chega a dizer que no parágra fo 123 reproduzido abaixo o estado de natureza de Locke é descrito em termos decididamente hobbesianos e o que para ele é ainda mais grave no parágrafo 225 o estado da natureza é defi nido como estado da pura anarquia Bobbio 1998 p 177 123 Se o homem no estado de natureza é tão livre se é senhor absoluto da sua própria pessoa e posses igual ao maior e a ninguém sujeito por que abrirá ele mão dessa liberdade por que abandonará o 95 Capítulo 4 John Locke lei e propriedade Vladimyr Lombardo Jorge seu império e sujeitarseá ao domínio e controle de qualquer outro poder Ao que é óbvio responder que embora no estado de natu reza tenha tal direito a fruição do mesmo é muito incerta e está constantemente exposta à invasão de terceiros porque sendo todos reis tanto quanto ele todo homem igual a ele e na maior parte pou co observadores da equidade e da justiça a fruição da propriedade que possui nesse estado é muito insegura muito arriscada Estas circunstâncias obrigamno a abandonar uma condição que embora livre está cheia de temores e perigos constantes e não é sem razão que procura de boa vontade juntarse em sociedade com outros que estão já unidos ou pretendem unirse para a mútua conservação da vida da liberdade e dos bens a que chamo propriedade Locke 1983 p 82 Como explicar esta ambiguidade Locke segundo Bobbio opõe o estado de natureza ideal presente nos capítulos iniciais ao real O que as torna diferen tes é a natureza humana como os homens tendem a se deixar levar pelas suas paixões o estado de natureza perfeito em teoria é menos perfeito na prática Bobbio 1998 p 179 Em outras palavras a concepção idealista inicial de Locke cede lugar a uma mais realista das relações humanas Locke reconhece que as leis de natureza não impedem o mau uso do direito natural Observese o trecho abaixo 13 Não duvido que se venha a objetar a esta estranha teoria isto é que no estado de natureza todo mundo tem o poder executivo da lei da natureza que não é razoável sejam os homens juízes nos seus próprios casos que o amor próprio tornará os homens parciais consigo mesmos e seus amigos e por outro lado a inclinação para o mal a paixão e a vingança os levarão longe demais na punição a outrem daí seguindo tão somente confusão e desordem Locke 1983 p 38 Portanto a paz natural ou seja aquela que não é alcançada mediante al gum artifício é sempre precária Os homens quando não têm quem os puna ou não crêem na punição tendem a violar as leis de natureza o que dá origem ao estado de guerra Logo como veremos a paz duradoura e desejável tal como para Hobbes só é obtida mediante dois artífi cios o contrato e a sociedade civil que ele institui que impedem ou desestimulem os homens a entrar em confl ito uns com os outros e o estado de guerra de se generalizar 96 ELSEVIER Curso de Ciência Política Há ainda um outro motivo que levou Locke a desdobrar o estado de natu reza em dois De acordo com Bobbio a própria lógica do modelo jusnaturalista obriga Locke e também JeanJacques Rousseau a duplicar o estado pré político num estado de natureza propriamente dito e num estado de natureza degenerado em estado de guerra do qual nasce a necessidade da passagem ao estado civil Bobbio 1991 p 4 Também para Manet esta foi solução que Locke encontrou para justifi car a entrada dos homens em um corpo político Manet 1990 p 75 Em outras palavras a teoria jusnaturalista exige que o autor admita a existência de problemas insuperáveis no estado de natureza e que incentivarão os indivíduos a abandonálo defi nitivamente6 Para Goldwin contudo é um erro confundir o estado de natureza com o estado de guerra por dois motivos Primeiro porque a defi nição de estado de guerra não inclui o termo essencial um poder comumchefe superior presente tanto na defi nição de estado de natureza quanto de sociedade civil Goldwin 1996 p 454 Segundo porque ao defi nir estado de guerra Locke introduz um elemento distinto o uso da força sem direito sem justiça e sem autoridade Goldwin 1996 p 454 Portanto o estado de natureza ou a socie dade civil se degeneram em estado de guerra quando há o emprego da força sem direito sem justiça e sem autoridade Uma das controvérsias que envolve os jusnaturalistas é quanto à histori cidade do estado de natureza e do contrato Bobbio 1991 p 3 Bobbio 1998 p 2287 Para Goldwin o estado de natureza de Locke não se limita à condição prépolítica original do homem Goldwin 1996 p 453 Goldwin argumenta que quando Locke indaga sobre a existência do estado de natureza no parágrafo 14 os exemplos que ele nos oferece são de homens políticos Goldwin 1996 p 453 De acordo com Goldwin o estado de natureza de Locke é uma certa for ma de relação humana sua existência quando existe não tem nada a ver com o grau de experiência dos homens que estão nele e pode existir em qualquer épo ca da história da humanidade inclusive no presente Goldwin 1996 p 454 Observese no trecho abaixo que tal como Hobbes Locke afi rma que a relação entre príncipes e governantes chefes de Estado logo seres políticos mantêm entre si é uma relação entre homens vivendo no estado de natureza pois não há acima deles um poder comum que os submeta E diz Goldwin na América um europeu como o suíço menciondo por Locke embora seja um homem político encontrase no estado de natureza 6 Na seção 45 voltaremos a esta questão 7 Comentarei a respeito da historicidade ou não do contrato de Locke na seção 44 97 Capítulo 4 John Locke lei e propriedade Vladimyr Lombardo Jorge 14 como todos os príncipes e governantes de Estados independen tes por toda a parte do mundo se encontram em um estado de natureza claro que o mundo nunca esteve nem nunca estará sem ter muitos ho mens nesse estado Referime a todos os governantes de comunidades independentes estejam ou não em liga com outros por que não é qual quer pacto que faz cessar o estado de natureza entre os homens mas apenas o de concordar mutualmente e em conjunto em formar uma comunidade fundando um corpo político outras promessas e pactos podem os homens fazer entre si conservando entretanto o estado de natureza As promessas e trocas para intercâmbio entre dois homens em uma ilha deserta ou entre um suíço e um índio nas fl orestas da América os vinculam embora estejam prefeitamente em estado de natureza entre si Locke 1983 p 39 Este comentário sobre o estado de natureza de Locke estará incompleto se não fi zermos referência a um outro direito natural o direito de propriedade 431 Direito de propriedade Segundo Yolton propriedade é um conceito central no estudo lockeano do governo civil Yolton 1996 p 207 pois em diversas passagens Locke afi r ma que a fi nalidade do estado civil é a preservação da propriedade8 O termo propriedade é empregado por Locke em dois sentidos Em sentido restrito para referirse apenas à posse de bens móveis e imóveis Em sentido amplo o conceito de propriedade compreende além dos bens ou pos sessões do indivíduo sua vida e sua liberdade Bobbio 1998 p 188189 Gol dwin 1996 p 471 Para Bobbio é surpreendente que Locke tenha elevado o direito de propriedade à posição de direito natural por excelência a ponto de nele resumir todos os demais direitos Bobbio 1998 p189 Manet lembra que ao tornar a propriedade um direito natural mas estritamente individual Locke rompeu com a tradição que a considerava um direito natural porém social Ma net esclarece que até então era um direito social no sentido de ser um direito regido e eventualmente limitado pela lei ou se preferirmos pelos deveres sociais e políticos do proprietário Manet 1990 p 68 A propriedade é o tema do capítulo V do Segundo tratado Nesse capítulo Locke afi rma que pretende demonstrar como os homens tornamse proprietá rios das coisas dadas por Deus a todos os homens isto é à humanidade No 8 Veja por exemplo o parágrafo 124 do Segundo tratado do govervo civil citado na página 105 deste capítulo 98 ELSEVIER Curso de Ciência Política parágrafo 25 ele diz esforçarmeei para mostrar como os homens podem chegar a ter uma propriedade em várias partes daquilo que Deus deu à Huma nidade em comum e tal sem qualquer pacto expresso entre todos os membros da comunidade Locke 1983 p 45 Tendo incluído o direito de propriedade entre os direitos naturais Lo cke rejeitou a solução hobbesiana Para Hobbes o direito de propriedade não é um direito natural mas um instituto de direito positivo Em outras palavras de acordo com a teoria hobbesiana é o Estado que institui o direito de posse reser vando para si o direito de propriedade Bobbio 1998 p 189190 Para Locke a propriedade é anterior à sociedade civil e o direito de propriedade pertence aos indivíduos Segundo Locke a propriedade é o resultado da relação que os homens mantêm através do seu trabalho com as coisas naturais Em vez de opor o tra balho à propriedade Locke deriva o direito de propriedade do trabalho Locke 1983 p XVI Em outras palavras para Locke a origem da propriedade privada é o trabalho É isso que ele explica neste trecho 27 Seja o que for que ele retire do estado que a natureza lhe ofere ceu e no qual o deixou fi calhe misturado o próprio trabalho justando selhe algo que lhe pertence e por isso mesmo tornandoo proprieda de dele Retirandoo do estado comum em que a natureza o colocou anexoulhe por esse trabalho algo que o exclui do direito comum de outros homens Locke 1983 p 45 O parágrafo acima portanto corrobora o que diz Manet o indivíduo tor nase proprietário daquilo que antes pertencia a toda humanidade quando colhe ameixas ou qualquer outra coisa para satisfazer suas necessidades Manet 1990 p 68 O ato de colher uma fruta já é portanto sufi ciente para acrescentarlhe algo que não possuía antes De acordo com Locke a propriedade privada produz benefícios para a humanidade pois ela proporciona o aumento da produtividade Segundo Ma net para Locke trabalhar a terra é fazêla produzir mais muito mais do que ela produziria espontaneamente Manet 1990 p 69 As vantagens desse instituto são declaradas por Locke neste parágrafo 37 aquele que toma posse da terra pelo trabalho não diminui mas aumenta as reservas comuns da Humanidade As provisões que servem para o sustento da vida humana produzidas em um acre de terra fecha 99 Capítulo 4 John Locke lei e propriedade Vladimyr Lombardo Jorge da e cultivada falando mui conservadoramente são dez vezes mais do que pode produzir um acre de terreno de igual fertilidade aberto e em comum Portanto aquele que cerca um pedaço de terra e tem maior volume de conveniências da vida retirado de dez acres do que poderia ter de cem abandonados à natureza pode dizerse verdadeiramente que dá noventa acres aos homens Locke 1998 p 49 Bobbio contudo diz que o instituto da propriedade tem três limites que O primeiro limite consiste no fato de que de qualquer modo quem adquire propriedade sobre a terra ou sobre qualquer outro bem mediante sua própria capacidade de trabalho deve deixar aos outros o sufi ciente para que possam também sobreviver O segundo limite depende do próprio fi m do instituto da proprie dade Tudo que não me serve para esse fi m e que portanto não sendo usado seria abandonado excede o meu direito Em outras pala vras tenho um direito de propriedade sobre as coisas de que posso efe tivamente gozar as que sou obrigado a abandonar porque não posso utilizar podem ser tomadas licitamente pelos outros O terceiro limite parece ser mais grave porque é inerente à mesma natureza da propriedade como fruto do trabalho Meu trabalho é naturalmente limitado Esta é a questão Se é só o meu trabalho o limite existe Entretanto se é também o trabalho dos outros o limite deixa de existir Bobbio 1998 p 198200 De acordo com Bobbio o primeiro limite não tem importância porque para Locke há terra em abundância para todos Bobbio 1998 p 198 Bobbio cita a passagem abaixo do Segundo Tratado que de acordo com ele corrobora esta interpretação 36 Mas seja lá como for ao que não quero dar importância ouso afi rmar corajosamente o seguinte a mesma regra de propriedade isto é que todo homem deve ter tanto quanto possa utilizar valeria ainda no mundo sem prejudicar a ninguém desde que existe terra bas tante para o dobro dos habitantes Locke 1983 p 4849 Quanto ao segundo limite Bobbio diz que tal como o primeiro este tam bém não tem valor absoluto pois ele vale somente até o surgimento da moeda Segundo Bobbio uma das funções da moeda como Locke reconhece é justa mente a de tornar inoperante o limite derivado da natureza perecível dos produ tos Para Locke a essência da moeda é ser um bem não perecível que portanto pode ser conservado indefi nitivamente Bobbio 1998 p 199 100 ELSEVIER Curso de Ciência Política Locke se refere ao aparecimento da moeda nos parágrafos 46 e 47 Ob serve que para ele a criação e o uso da moeda não dependem da existência da sociedade civil E com a moeda aparece o comércio a compra de propriedades bens móveis e imóveis e passa a haver a concentração de riquezas Ou seja a propriedade de bens móveis e imóveis tornase ilimitada pois agora é pos sível a troca de bens perecíveis por um não perecível a moeda Diz Locke no parágrafo 47 E assim originouse o uso do dinheiro algo de duradouro que os homens pudessem guardar sem estragarse e que por consentimento mútuo recebessem em troca de sustentáculos da vida verdadeiramente úteis mas pere cíveis Locke 1983 p 53 Por fi m de acordo com a interpretação de Bobbio o terceiro limite é su perado com o trabalho alheio Segundo ele para Locke todo indivíduo tem o direito de transferir ou alienar o seu trabalho para outrem porque é da essência do direito de propriedade a livre utilização da coisa possuída Bobbio 1998 p 201 Manet por sua vez aponta outra consequência importante Ele diz que com a criação da moeda e o trabalho assalariado Locke desvincula o trabalho da propriedade De acordo com Manet a partir do momento em que a moeda permite representar e conservar quantidades de trabalho o proprietário legíti mo já não é necessariamente o trabalhador basta que a troca seja livre para que a propriedade conserve seu valor e assim continue a representar a quantidade de trabalho que incorporou Manet 1990 p 70 Em outra passagem Manet afi rma que Locke deixou bem claro que o trabalho é apenas o começo da propriedade No fi nal o trabalho é desvinculado da propriedade Mais precisa mente o direito de propriedade desligase do direito do trabalhador aos frutos do seu trabalho Manet 1990 p 71 Além dos três limites supra Bobbio menciona ainda um quarto Este sur ge com a morte do indivíduo proprietáriotrabalhador De acordo com Bobbio Locke descarta a possibilidade de os bens retornarem à comunidade no estado de natureza ou ao Estado na sociedade civil Bobbio 1998 p 203 Para ele a solução lockeana é outra o reconhecimento do direito de todos os fi lhos e não somente o do primogênito sobre o patrimônio paterno e materno ou a indica ção pelo titular daquele que herdará seus bens Bobbio 1998 p 204 No fi nal da primeira seção foi dito que a fi nalidade do estado civil é a preservação da propriedade A origem desse estágio o estado civil contudo não é decorrente de causas naturais como na teoria de Aristóteles mas de uma convenção que consiste em um ato voluntário e deliberado Bobbio 1991 p 7 E é esse ato que vamos discutir na próxima seção 101 Capítulo 4 John Locke lei e propriedade Vladimyr Lombardo Jorge 44 Do pacto ou contrato original Tal como Hobbes Locke é um contratualista9 Segundo Yolton embora Locke empregue a palavra pacto compact com mais frequência do que o ter mo contrato contract ambos têm o mesmo signifi cado Yolton 1996 p 181 Para Locke os indivíduos podem fazer pactos no estado de natureza sem que isto signifi que necessariamente o fi m deste estágio Isto é posto em evidência no parágrafo 14 quando Locke explica que não é qualquer pacto que faz cessar o estado de natureza entre os homens mas apenas o de concordar mu tuamente ou em conjunto em formar uma comunidade fundando um corpo político outras promessas e pactos podem os homens fazer entre si conservan do entretanto o estado de natureza Locke 1983 p 39 Eis aí nesse trecho outra diferença importante entre Locke e Hobbes O fi m do estado de natureza e consequentemente a criação da sociedade civil ocorrem portanto conforme indica o trecho supra por meio de um pacto original que obriga a todos a re nunciarem aos poderes que tinham no estado de natureza transferindoo para a maioria da comunidade e a se submeterem à resolução dessa maioria A esse respeito Locke diz nos parágrafos 95 e 99 95 A maneira única em virtude da qual uma pessoa qualquer re nuncia à liberdade natural e se reveste dos laços da sociedade civil consiste em concordar com outras pessoas em juntarse e unirse em comunidade para viverem com segurança conforto e paz umas com as outras gozando garantidamente das propriedades que tiverem e des frutando de maior proteção contra quem quer que não faça parte dela 99 Assim sendo o que dá início e constitui realmente qualquer so ciedade política nada mais é senão o assentimento de qualquer número de homens livres e capazes de maioria para se unirem e se incorpora rem a tal sociedade E isto e somente isto deu ou podia dar origem a qualquer governo legítimo no mundo Locke 1983 p 712 Há entre os fi lósofos jusnaturalistas dos séculos XVII e XVIII quem afi r me que um contrato dos indivíduos entre si deve ser seguido por um outro entre o povo e o soberano O primeiro é denominado de pacto de associação pactum societatis e o segundo pacto de sujeição pactum subiectionis Bobbio 1991 p 3 Janine 1991 p 6263 Hobbes fundiu ambos em um único pacto Janine 1991 9 O contratualismo segundo Nicola Matteucci compreende todas aquelas teorias políticas que vêem a origem da sociedade e o fundamento do poder político num contrato isto é num acordo tácito ou expresso entre a maioria dos indivíduos acordo que assinalaria o fi m do estado natural e o início do estado social e político Matteucci 1988 p 272 102 ELSEVIER Curso de Ciência Política p 63 Já Locke não deixa claro se há um único pacto ou se são dois No verbete pacto ou contrato Yolton não menciona a existência de dois pactos David Held porém afi rma que para Locke os indivíduos não fazem um mas dois pactos De acordo com Held o primeiro é estabelecido para criar uma sociedade independente o segundo uma sociedade política ou governo Os trechos do Segundo Tratado apontados por Held como os que sustentariam tal interpretação são os parágrafos 95 a 97 Para ele essa distinção é importante porque deixa cla ro que são os indivíduos da sociedade que outorgam a autoridade ao governo com o intuito de perseguir os fi ns dos governados Se esses fi ns não forem repre sentados adequadamente diz Held o poder de magistrado ou seja o direito de fazer cumprir as leis de natureza retornará ao povo Held 1993 p 71 Embora Bobbio diga que em nenhum momento Locke mencione dois pac tos ele corrobora a interpretação de Held Bobbio argumenta que o silêncio sobre o segundo contrato não signifi ca que Locke não reconhecesse a distinção dos dois momentos o da formação do corpo social e o da formação do governo propriamente político Bobbio 1998 p 226 Para Bobbio contudo tal distin ção encontrase no parágrafo 211 no qual como se pode constatar no trecho abaixo Locke fala sobre a dissolução da sociedade e a dissolução do governo 211 Aquele que quiser falar com clareza sobre a dissolução do governo deve em primeiro lugar distinguir entre a dissolução da sociedade e a dissolução do governo O que faz a comunidade e tira os homens do estado vago de natureza para a sociedade política é o acordo que cada um tem com os demais para se incorporar e agir como um corpo e as sim constituir uma comunidade distinta Locke 1983 p 118 Segundo Locke o contrato se dá entre homens livres e não cria um direito novo Ele é apenas um pacto entre indivíduos livres que se reúnem com o intuito de empregar sua força coletiva na execução das leis de natureza renunciando assim ao seu direito de praticar por si só a justiça Locke 1983 p XVI O objetivo do pacto para Locke é a preservação da propriedade isto é da vida da liberdade e dos bens e possessões e de impedir que os direitos naturais sejam desrespeitados Locke 1983 p XVl10 Ao contrário de Hobbes para Lo cke a fundação da sociedade civil não exige que os homens renunciem à quase totalidade de seus direitos naturais Locke 1983 p XVI Bobbio 1998 p 223 Segundo Bobbio a renúncia aos direitos naturais é apenas parcial pois compre ende somente o direito de fazer justiça por si mesmo que consiste no direito de fazer uso da força de julgar e de punir os que ameaçam a sua propriedade ou 10 Sobre o objetivo do pacto e do poder político que ele cria ver o parágrafo 3 do Segundo Tratado re produzido no início deste texto 103 Capítulo 4 John Locke lei e propriedade Vladimyr Lombardo Jorge de outrem Bobbio 1998 p 223 Desse modo Locke aponta a principal e funda mental característica do Estado moderno segundo Max Weber o monopólio do uso legítimo da força11 Deve o Estado instituído pelo contrato governar com base em leis fi xas universais e por intermédio de homens que derivam sua autoridade da comuni dade para executar as leis julgar e punir Diz Locke 87 O homem nascendo com direito à perfeita liberdade e gozo incontrolado de todos os direitos e privilégios da lei da natureza tem por natureza o poder não só de preservar a sua propriedade isto é a vida a liberdade e os bens contra os danos e ataques de outros homens mas também de julgar e castigar as infrações dessa lei por ou tros conforme estiver persuadido da gravidade da ofensa mesmo com a própria morte nos crimes em que o horror do fato exija conforme a sua opinião Contudo haverá sociedade política somente quando cada um dos membros renunciar ao próprio poder natural passandoo às mãos da comunidade em todos os casos que não lhe impeçam de re correr à proteção da lei por ela estabelecida Os que estão unidos em um corpo tendo a lei comum estabelecida e judicatura para qual ape lar com autoridade para decidir controvérsias e punir os ofensores estão em sociedade civil uns com os outros mas os que não têm essa apelação em comum quero dizer sobre a Terra ainda se encontram no estado de natureza sendo cada um onde não há outro juiz para si e executor o que constitui o estado perfeito de natureza Locke 1983 p 67 De acordo com Bobbio Locke combatia aqueles que sustentavam a inexis tência de um contrato como ato fundador da sociedade política Bobbio 1998 p 228 Para Locke tratavase de uma realidade histórica Bobbio 2000 p 144 Observe nestes parágrafos que Locke nos oferece evidências históricas para ten tar nos convencer a respeito da historicidade do estado de natureza e do con trato 102 Revela estranha inclinação para negar a evidência dos fatos aquele que não concorda em que os começos de Roma e de Veneza tiveram origem na união de homens livres e independentes uns dos outros en tre os quais não existia superioridade natural ou sujeição E se se pode aceitar a palavra de José de Acosta ele nos diz que em muitas partes da América não existia qualquer governo que fosse 11 Ver Weber 1999 p 525 104 ELSEVIER Curso de Ciência Política 103 E espero que concordem em que os que saíram de Esparta com Pa lanto conforme Justino liv III cap 4 menciona eram homens livres independentes uns dos outros tendo organizado um governo para regêlos por livre assentimento Dei assim vários exemplos tirados da história de homens livres e no estado de natureza que tendose reuni do incorporavam e deram início a uma comunidade Locke 1983 p 73 Observese que além dos fatos retirados da história europeia Locke as sim como Hobbes cita o continente americano para provar a existência do es tado de natureza e do contrato Além dos exemplos da história Bobbio diz que outro argumento a favor da tese da historicidade do contrato é que o vín culo do pai com respeito a determinado Estado não se transmite ao fi lho que não nasce como súdito de nenhum país e de nenhum governo assim uma vez atingida a maioridade está livre para escolher a cidadania do pai ou de outra Bobbio 1998 p 228 Mas de acordo com Bobbio a explicação pode ser também mais concei tual No parágrafo 91 Locke diz 91 pois sempre que existam dois homens sem qualquer regra esta belecida ou juiz comum para o qual apelar na Terra para a resolução de controvérsias de direito entre eles estarão ainda no estado de natureza Locke 1983 p 68 Tendo em vista que já dissesmos que os homens criam conscientemente a sociedade civil por intermédio de um contrato ou pacto com a fi nalidade de proteger a propriedade na próxima seção vamos retornar a essa questão para aprofundála mais 45 O objetivo da sociedade política e do governo Para compreendermos quais são segundo Locke os objetivos da socieda de política e do governo temos de nos remeter às causas que levaram os homens a abandonar o estado de natureza Resumidamente a causa é a incerteza quanto ao gozo dos direitos naturais proporcionada pela violação destes o que transfor ma o estado de natureza em estado de guerra12 Portanto para Locke os indivíduos criam a sociedade civil para evitar que este estado de guerra se concretize e se generalize Nos parágrafos 21 124 125 e 126 Locke menciona as carências do estado de natureza que levam os ho mens a celebrar o contrato que criará a sociedade e a sociedade civil 12 Ver a esse respeito a discussão sobre o estado de natureza na primeira seção deste capítulo 105 Capítulo 4 John Locke lei e propriedade Vladimyr Lombardo Jorge 21 Evitar esse estado de guerra no qual não há apelo senão para o céu e no qual qualquer divergência por menor que seja é capaz de ir dar se não houver autoridade que decida entre os contendores é razão decisiva para que homens se reúnam em sociedade deixando o estado de natureza onde há autoridade poder na Terra no qual é pos sível conseguir amparo mediante apelo excluise a continuidade do estado de guerra decidindose a controvérsia por aquele poder Locke 1983 p 42 124 O objetivo grande e principal portanto da união dos homens em comunidade colocandose eles sob governo é a preservação da pro priedade Para este objetivo muitas condições faltam no estado de na tureza Primeiro falta uma lei estabelecida fi rmada conhecida recebida e acei ta mediante consentimento comum porque embora a lei da natureza seja evidente e inteligível para todas as criaturas racionais entretanto os homens sendo desviados pelo interesse bem como ignorantes dela porque não a estudam não são capazes de reconhecêla como lei que os obrigue nos seus casos particulares 125 Em segundo lugar falta um juiz conhecido e indiferente com autoridade para resolver quaisquer dissensões de acordo com a lei es tabelecida 126 Em terceiro lugar falta muitas vezes poder que apóie e sustente a sentença quando justa dandolhe a devida execução Locke 1983 p 82 No parágrafo 128 Locke diz que quando celebram o contrato os homens renunciam aos seus poderes naturais que consistem em 1 fazer o que julgar conveniente para a própria preservação e a de terceiros dentro do que permite a lei da natureza e 2 castigar os crimes cometidos contra essa lei de natureza Locke 1983 p 8313 E no parágrafo 131 afi rma que os homens renunciam vi sando a preservação de si próprio de sua liberdade e de sua propriedade bens Locke 1983 p 8314 De acordo com Locke o maior e o mais importante objetivo do Estado é a preservação da propriedade isto é da vida da liberdade e dos bens ou possessões do povo Portanto os indivíduos abandonam o estado de natureza e instituem a sociedade civil para viverem melhor ou seja com mais segurança Por isso ele diz 13 Locke já havia feito referência a tais poderes no parágrafo 87 14 Segundo Bobbio a tradição que de Locke a Kant afi rma que a principal tarefa do Estado é garantir a liberdade natural do indivíduo Bobbio 2000 p 290 106 ELSEVIER Curso de Ciência Política 131 o poder da sociedade ou o legislativo por ela constituído não se pode nunca supor se estenda mais além do que o bem comum mas fi ca na obrigação de assegurar a propriedade de cada um provendo contra os três inconvenientes acima assinalados que tornam o estado de natureza tão inseguro e arriscado E assim sendo quem tiver o po der legislativo ou o poder supremo de qualquer comunidade obrigase a governála mediante leis estabelecidas promulgadas e conhecidas do povo e não por meio de decretos extemporâneos por juízes indiferen tes e corretos que terão de resolver as controvérsias conforme essas leis e a empregar a força da comunidade no seu território somente na execução de tais leis e fora dele para prevenir ou remediar malefícios estrangeiros e garantir a sociedade contra incursões ou invasões E tudo isso tendo em vista nenhum outro objetivo senão a paz a segurança e o bem público do povo Locke 1983 p 8384 Diferente de Hobbes a obtenção da segurança requer a preservação da li berdade natural transformada por Locke em um direito natural Isso é possível porque como vimos para ele lei e direito não estão em contradição A instituição da sociedade civil segundo Bobbio não deve representar a des truição do estado de natureza mas corrigilo e pôlo de modo que os homens pos sam continuar vivendo com todas as suas vantagens no estado civil mediante um aparelho executivo que tenha condições de obrigar os homens a respeitar as leis naturais Bobbio 1998 p 185 Isso é possível porque Locke não concebe o esta do de natureza como necessariamente um estado de guerra Para Bobbio a socieda de civil de Locke aperfeiçoa o estado de natureza criando as condições necessárias para a observância das leis da natureza15 Se a interpretação de Bobbio estiver cor reta Locke e Hobbes concordam que a sociedade civil cria as condições necessárias para a observância das leis da natureza mas discordam quanto ao signifi cado do estágio político Pois para Hobbes a sociedade civil estado de paz representa pura e simplesmente a negação do estado de natureza estado de guerra Que forma de governo seria para Locke a mais adequada para atingir esse propósito Discutiremos esta questão na próxima seção 46 As formas de governo No capítulo X do Segundo Tratado Locke explica como identifi car e dis tinguir as formas de governo De acordo com ele a forma de governo deve ser 15 Essa interpretação é corroborada por esta afi rmação de Bobbio Para Locke somente na sociedade civil ou política existem as condições para a observância das leis naturais que são as leis da razão Bob bio 2000 p 121 107 Capítulo 4 John Locke lei e propriedade Vladimyr Lombardo Jorge defi nida pela posse do poder de fazer leis isto é do Poder Legislativo que é o poder supremo Observese o que ele diz neste trecho 132 Dependendo a forma de governo da situação do poder supre mo que é o legislativo sendo impossível conceberse que o poder inferior prescreva ao superior ou que outro qualquer que não o poder supremo faça as leis conforme se coloca o poder de fazer leis assim também é a forma da comunidade Locke 1983 p 85 É portanto o critério supra que Locke emprega para distinguir as três formas de governo democracia oligarquia e monarquia Ele defi ne a democra cia como a forma de governo em que todo o poder da comunidade natu ralmente em si pode empregálo para fazer leis destinadas à comunidade de tempos em tempos que se executam por meio de funcionários que ela própria nomeia Locke 1983 p 85 Por oligarquia Locke entende a forma de governo em que o poder de fazer leis está nas mãos de alguns homens escolhidos seus herdeiros e sucessores Locke 1983 p 85 A monarquia por sua vez é defi nida como aquela em que o poder de fazer leis encontrase nas mãos de um único homem Locke 1983 p 85 Mas lembra Goldwin em todos os casos somente o consentimento da maioria pode estabelecer o governo todas as for mas de governo se encontram igualmente fundadas no consentimento da maioria Goldwin 1996 p 475 A monarquia segundo Locke pode ser de dois tipos Se após a morte do monarca o poder legislativo for transferido para seu herdeiro era será hereditá ria Mas se ao invés disso ele for devolvido à comunidade para que esta escolha o novo monarca será eletiva Locke 1983 p 85 Seguindo a tradição iniciada por Aristóteles e Políbio Locke admite que além dessas três formas de governo em que apenas uma parte da sociedade tem o poder de fazer leis existe a possibilidade de a comunidade estabelecer formas mistas ou compostas Locke 1985 p 85 E para Locke a forma mais condizente com o governo civil é uma forma mista pois a proteção da propriedade requer de acordo com Held um estado no qual o poder público está legalmente cir cunscrito e divido Held explica que Locke acreditava na conveniência de uma monarquia constitucional com um poder executivo e uma assembleia parlamen tar com direito a legislar Held 1993 p 72 16 Ao contrário de Maquiavel e de Hobbes Locke não trabalha com a dico tomia ordem versus desordem mas com a dicotomia liberdade versus opressão Não é que ele não estivesse preocupado com a constituição da ordem Ele real mente estava mas não de qualquer ordem Sua preocupação maior era a consti 16 A divisão entre o Poder Legislativo e o Poder Executivo será discutida na próxima seção 108 ELSEVIER Curso de Ciência Política tuição de uma ordem que garantisse a propriedade isto é a vida a liberdade e os bens dos indivíduos Por esse motivo considera a monarquia absolutista de fendida por Hobbes incompatível com a sociedade civil chegando a comparála a um estado ainda mais deplorável do que o estado de natureza Observese este parágrafo 90 Do que fi cou dito é evidente que a monarquia absoluta que alguns consideram o único governo no mundo é de fato incompatível com a sociedade civil não podendo por isso ser uma forma qualquer de go verno civil porque o objetivo da sociedade civil consiste em evitar e remediar os inconvenientes do estado de natureza que resultam neces sariamente de poder cada homem ser juiz em seu próprio caso estabe lecendose uma autoridade reconhecida para a qual todos os membros dessa sociedade podem apelar por qualquer dano que lhe causem ou controvérsia que possa surgir e à qual todos os membros dessa so ciedade terão de obedecer Onde quer que existam pessoas que não tenham semelhante autoridade a que recorrerem para decisão de qual quer diferença entre elas estarão tais pessoas no estado de natureza e assim se encontra qualquer príncipe absoluto em relação aos que estão sob seu domínio Locke 1983 p 68 De acordo com Bobbio a monarquia absolutista é um Estado despótico e por isso não é um governo civil Há dois motivos que justifi cam essa conclusão Primeiro porque a fuga do estado de natureza principal objetivo do governo civil não é completa Permanece um estado de natureza entre os súdi tos de um lado e de outro o soberano que não se sujeita às mesmas leis Bobbio 1998 p 219 segundo porque nele não há garantia da propriedade Bobbio 1998 p 219 Desde Locke esta oposição ao absolutismo é uma característica típica do pensamento liberal nas suas mais variadas vertentes Segundo Manet Locke traçou no Segundo Tratado um projeto que viria a se converter no liberalismo um indivíduo portador de direitos e um governo cujo objetivo é proteger tais direitos e não atacálos Manet 1990 p 6517 Na próxima seção vamos abor dar o desenho institucional imaginado por Locke para limitar o poder dos governantes e dessa forma manter a salvo os direitos naturais 17 Sobre a relação de Locke com o liberalismo veja também Grant 1991 A associação do nome de Locke ao liberalismo contudo é polêmica No Segundo Tratado Minogue afi rma que identifi cálo com a doutrina muito posterior do liberalismo é praticar história ao estilo dos whigs no qual os personagens históricos são compreendidos como animados por ideias de liberdade que só emergiram em um período posterior Minogue 1996 p 422 109 Capítulo 4 John Locke lei e propriedade Vladimyr Lombardo Jorge 47 Estado liberal e divisão do poder Com o intuito de limitar o poder e assim evitar ou desencorajar seu uso abusivo os teóricos liberais propõem entre outras coisas a divisão do poder político Por isso a característica fundamental de um Estado liberal é a restrição de seu poder e de suas funções Como Estado limitado se contrapõe tanto ao Estado absolutista quanto ao de bemestar social Bobbio 1988 p 7 Vimos na seção anterior que a concepção liberal de Estado está presente no Segundo Tratado Bobbio contudo lembra que não foi Locke quem formulou a teoria sobre a separação dos três poderes Bobbio 1998 p 231 Esta compreen de a divisão do poder político em três ramos executivo legislativo e judiciário Mas para Locke este último não é um poder autônomo Bobbio 1998 p 232 Por isso podemos dizer apenas que ele formulou uma teoria sobre a divisão do poder político No Segundo Tratado ele distinguiu três poderes o legislativo o executivo e o federativo sendo que os dois primeiros legislativo e executivo devem estar necessariamente em mãos diferentes Com relação à função prerrogativa de cada poder cabe ao legislativo a responsabilidade de elaborar as leis ao exe cutivo de implementálas e ao federativo fazer guerra fi rmar a paz e manter relações com outros Estados De acordo com Locke a origem dos poderes executivo e legislativo está no pacto que exige que cada um renuncie ao seu direito natural de julgar Observe se o parágrafo abaixo 88 E por essa maneira a comunidade consegue por meio de um poder julgador estabelecer que castigo cabe às várias transgressões quando cometidas entre os membros dessa sociedade que é o poder de fazer leis bem como possui o poder de castigar qualquer dano praticado contra qualquer dos membros por alguém que não pertence a ela que é o poder de guerra e de paz e tudo isso para preservação da pro priedade de todos os membros dessa sociedade tanto quanto possível Todavia embora todo homem que tenha entrado para uma sociedade civil tenha por isso abandonado o poder de castigar ofensas con tra a lei de natureza no exercício do seu próprio julgamento particular foi dado direito à comunidade para o julgamento das ofensas que ele abandonou ao poder legislativo em todos os casos em que possa ape lar para o magistrado de empregar a força dele para a execução dos julgamentos da comunidade E aqui deparamos com a origem dos poderes legislativo e executivo da sociedade que deve julgar por meio de leis estabelecidas até que ponto se devem castigar as ofensas quando cometidas dentro dos limites da comunidade bem como determinar 110 ELSEVIER Curso de Ciência Política mediante julgamentos ocasionais até onde os danos do exterior de vem ser vingados e em um e outro caso utilizar toda a força de todos os membros quando houver necessidade Locke 1983 p 67 Dentre os poderes mencionados é do poder legislativo a prerrogativa ex clusiva de criar as leis Este contudo não deve ser um poder permanente 143 O poder legislativo é o que tem o direito de estabelecer como se deverá utilizar a força da comunidade no sentido da preservação dela própria e dos seus membros Como se tem de pôr constantemente em prática as leis que devem continuar sempre em vigor mas que se po dem elaborar em curto prazo não há necessidade de manterse tal po der permanentemente em exercício pois que nem sempre teria no que se ocupar E como pode ser tentação demasiado grande para a fraqueza humana capaz de tomar conta do poder para que as mesmas pessoas que têm por missão elaborar as leis também tenham nas mãos a facul dade de pôlas em prática fi cando dessa maneira isentas de obediência às leis que fazem e podendo amoldar a lei não só quando a elaboram como quando a põem em prática a favor delas mesmas e assim passa rem a ter interesse distinto do resto da comunidade contrário ao fi m da sociedade e do governo em comunidades bem ordenadas nas quais o bem de todos se leva em conta como é devido o poder legislativo vem às mãos de diversas pessoas que convenientemente reunidas têm em si ou juntamente com outras o poder de elaborar as leis depois de as sim fazerem novamente separadas fi cam sujeitas às leis que fi zeram o que representa obrigação nova e mais próxima para que as façam tendo em vista o bem geral Locke 1983 p 91 Notese no parágrafo supra que o poder legislativo não deve fi car per manentemente reunido Há dois motivos segundo Locke para isso Primeiro porque isso seria uma inutilidade segundo porque poderia ser perigoso É im portante ressaltar ainda que de acordo com o parágrafo supra os legisladores após terem feito a lei devem retornar à condição de súditos e portanto fi cam obrigados a obedecerlha Caso contrário como todos os demais súditos eles estarão sujeitos a sofrer sanções Mas a quem cabe convocar o Poder Legislati vo Essa prerrogativa diz Locke no parágrafo 167 é do Execuvivo que o fará conforme o exigirem as necessidades dos tempos e a variedade das ocasiões Locke 1983 p 100 O Executivo ao contrário precisa ser um poder permanente pois cabe a ele a função de fazer com que todos cumpram as leis promulgadas pelo Legis lativo Diz Locke 111 Capítulo 4 John Locke lei e propriedade Vladimyr Lombardo Jorge 144 Todavia como as leis elaboradas imediatamente e em prazo cur to têm força constante e duradoura precisando para isso de perpétua execução e assistência tornase necessária a existência de um poder permanente que acompanhe a execução das leis que se elaboram e fi cam em vigor E desse modo os poderes legislativo e executivo fi cam frequentemente separados Locke 1983 p 91 A divergência entre a teoria da divisão de poderes de Locke e a de Mon tesquieu também fi ca evidente quando o primeiro denomina o Poder Legislati vo de poder máximo18 Ao denominálo assim Locke estabelece uma hierarquia entre ambos o Poder Executivo cujas funções devem ser desempenhadas pelo Rei deve estar subordinado ao Legislativo O Executivo não participa do proces so legislativo pois ele não possui poder de veto isto é de rejeitar uma decisão tomada pelo Legislativo Portanto não encontramos na teoria lockeana nenhum mecanismo de limitação e controle do Poder Legislativo19 A teoria de Locke é de acordo com Bobbio uma teoria da supremacia do Poder Legislativo Bobbio 1998 p 236 Manet explica essa supremacia argumentando que uma distribuição mais ou menos igual do poder entre o legislativo e o executivo não podia ser concebida enquanto se considerasse que a so berania residisse no rei como acontecia à época que Locke escreveu o que já não era absolutamente o caso no momento em que ele publicou seus escritos O projeto liberal exigia portanto que se refutasse de imediato a ideia da soberania real Ora a uma soberania absoluta não se pode opor senão uma soberania absoluta à soberania do rei a do povo A soberania do povo na qualidadde de absoluta não era em princípio mais propícia à separação dos poderes do que a soberania do rei mas como o povo soberano não podia governar diretamente e como a assembleia de seus representantes tampouco era apropriada para governar um regime baseado na soberania do povo tinha prati camente necessidade de outro poder que não o soberano Manet 1990 p 8485 Goldwin lembra contudo que Locke admite a possibilidade de que em algumas circunstâncias o Executivo aja em nome do bem público sem a sanção da lei ou mesmo que a contrarie Tais possibilidades são admitidas por Locke 18 Observese que Locke não diz que o Legislativo é o poder soberano Ele talvez se tenha se recusado a usar o conceito de soberania porque uma das características da sobernia mencionada por diversos au tores é que o poder soberano é ilimitado O Legislativo de Locke contudo não é um poder ilimitado O poder Legislativo achase limitado pelas leis da natureza e pelos direitos naturais dos cidadãos 19 Sobre os mecanismos de controle de um poder sobre o outro indicados por Montesquieu ver o capítulo intitulado A Constituição inglesa de O espírito das leis 112 ELSEVIER Curso de Ciência Política neste trecho do parágrafo 160 Este poder de agir de acordo com a discrição a favor do bem público sem a prescrição da lei e muita vez mesmo contra ela é o que se chama de prerrogativa Locke 1983 p 477 Locke todavia reconhece nos parágrafos 166 e 168 que tal prerrogativa constitui um perigo quando um príncipe não a usa para promover o bem público mas em favor dos seus inte resses pessoais e com isso pondo em risco a propriedade e a segurança do povo Locke 1983 p 100 Tal como Hobbes Locke diz no parágrafo 145 que uma comunidade achase em estado de natureza em relação às outras Internamente para Locke cabe ao poder federativo a prerrogativa de declarar guerra ou paz a outras co munidades ou com elas constituir ligas e alianças20 146 Aí se contém portanto o poder de guerra e de paz de ligas e alian ças e todas as transações com todas as pessoas e comunidades estra nhas à sociedade podendose chamar federativa 148 Embora os poderes executivo e federativo de qualquer comu nidade sejam realmente distintos em si difi cilmente podem separarse e colocarse ao mesmo tempo em mãos de pessoas distintas Locke 1983 p 9192 Observese que para Locke o poder federativo e o executivo devem estar necessariamente nas mesmas mãos pois não se deve pôr a força do Estado em mãos diferentes Segundo Locke aquele que cuida da segurança interna deve também cuidar da externa E o poder judiciário Não era a ausência de um juiz imparcial que induziu os indivíduos a fazerem o contrato e por intermédio deste instituir a socieda de civil Bobbio se pergunta se por isso não deveria ser o judiciário e não o legislativo o poder fundamental do estado civil De acordo com ele no pensamento de Locke a função do juiz imparcial é exercida na sociedade civil eminentemente pelos que fazem as leis porque um juiz só pode ser imparcial se existirem leis genéricas formuladas de modo constante e uniforme para todos Bobbio 1998 p 232 Portanto se a interpretação de Bobbio estiver correta a imparcialidade é atingida no ato de formulação da lei e não de execução des ta Bobbio diz ainda que pensase de modo geral que Locke reduziu os três poderes tradicionais a apenas dois incluindo o Judiciário no Executivo Na verdade esta redução deriva do fato de que para Locke não há uma diferença 20 O termo federativo é aqui empregado provavelmente porque as federações ou confederações eram formadas com o intuito de aumentar o poder militar dos pequenos Estados Ver a este respeito Mon tesquieu 1979 p 127 113 Capítulo 4 John Locke lei e propriedade Vladimyr Lombardo Jorge essencial entre Legislativo e Judiciário que representam dois aspectos distintos do mesmo poder Bobbio 1998 p 233 Goldwin também concorda com a interpre tação de que para Locke a função judiciária é parte da legislativa não exigindo a separação formal entre ambas como medida para evitar a violação dos direitos naturais dos indivíduos Goldwin 1996 p 476 Essa interpretação é corrobora da por este trecho do Segundo Tratado 89 E por este modo os homens deixam o estado de natureza para entrarem no de comunidade estabelecendo um juiz na Terra com au toridade para resolver todas as controvérsias e reparar os danos que atinjam a qualquer membro da comunidade juiz esse que é o legislati vo ou os magistrados por ele nomeados Locke 1983 p 68 Antes de terminar esta seção vale a pena mencionar que para Bobbio e Goldwin no Segundo Tratado a separação de poderes signifi ca um ponto de divergência com o Leviatã de Hobbes Para este último o poder político o so berano instituído pelo pacto é indivisível A dicotomia aqui é entre separação de poderes versus concentração dos poderes Bobbio 1998 p 235 Goldwin por sua vez afi rma que a insistência de Locke no caráter limitado do poder polí tico revela ao mesmo tempo sua concordância e sua enorme discordância com Hobbes Goldwin 1986 p 472 Ambos concordavam que a sociedade civil era o remédio para curar os males do estado de natureza mas diferentemente de Hobbes Locke acreditava que uma sociedade civil com poderes ilimitados não solucionaria os problemas do estado de natureza Goldwin 1986 p 472 A supremacia do Poder Legislativo contudo não faz dele um poder ili mitado Na próxima seção trataremos dos limites que os indivíduos quando pactuaram impuseram a esse poder 48 Sobre os limites do poder político Além da teoria da origem da propriedade privada e da divisão do poder já comentadas outra evidência de que Locke é o inspirador do liberalismo está no capítulo XI onde ele expõe os limites do poder político Tais limites são qua tro O primeiro referese aos direitos do Legislativo Ele diz que os homens não transmitem para a sociedade civil o direito à vida à liberdade e aos bens pois 135 o poder do legislativo em seus limites extremos restringese ao bem público da sociedade É poder que não tem outro objetivo senão a preservação e portanto não poderá ter nunca o poder de destruir escravizar ou propositalmente empobrecer os súditos As obrigações 114 ELSEVIER Curso de Ciência Política da lei da natureza não cessam na sociedade mas somente em muitos casos se tornam mais rigorosas e por leis humanas se lhe anexam pe nalidades conhecidas destinadas a forçarlhes a observância Assim a lei da natureza fi ca de pé como lei eterna para todos os homens tanto legisladores como quaisquer outros As leis que elaboram para as ações de outros homens devem não só para as suas próprias ações como para as de terceiros estar de acordo com a lei da natureza isto é com a vontade de Deus a qual declaram e a lei fundamental da natureza sendo a preservação dos homens não há sanção humana que se mostre válida ou aceitável contra ela Locke 1983 p 87 No trecho supra Locke deixa claro também que as leis positivas são cria das para vir em socorro das leis da natureza que lhe são anteriores e não para contrariálas21 Locke diz que as leis positivas isto é aquelas regras promulga das pelo legislativo devem estar de acordo com as leis da natureza isto é com as leis de Deus O segundo limite diz respeito às leis positivas Segundo Locke os legisla dores não podem governar por intermédio de normas casuísticas conforme as pessoas evolvidas e as circunstâncias Locke afi rma que as normas devem ser genéricas e abstratas para garantir a igualdade de todos perante a lei 137 Todo o poder que o governo tem deve ser exercido mediante leis estabelecidas e promulgadas para que não só os homens possam saber qual o seu dever achandose garantidos e seguros dentro dos limi tes das leis como também para que os governantes mantidos dentro de limites não fi quem tentados pelo poder que têm nas mãos a entregálo para fi ns tais e mediante medidas tais de que os homens não tivessem conhecimento nem aprovassem de boa vontade Locke 1983 p 88 O terceiro limite referese à proteção da propriedade privada Locke afi r ma que o legislador não pode se apropriar dos bens dos súditos Diz Locke no parágrafo 138 Pois a propriedade de qualquer um não está de modo algum segura embora existam leis equitativas e boas que a delimitem entre eles e os outros homens se quem os governa tem o poder de tirar de qualquer pessoa particular a parte que quiser da propriedade desta usandoa e dela dispondo conforme lhe aprouver Locke 1983 p 89 No parágrafo 139 Locke também afi rma que o Estado nunca poderá ter o poder de tomar para si no todo ou em parte a propriedade do súdito Locke 1983 p 89 Com esta limitação diz Bobbio Locke está sancionando o princípio da liberdade econômica Bobbio 21 Esta é uma característica da escola jusnaturalista de um modo geral A esse respeito veja o verbete jusnaturalismo do Dicionário de Política organizado por Norberto Bobbio et alii 115 Capítulo 4 John Locke lei e propriedade Vladimyr Lombardo Jorge 1998 p 225 Por fi m no parágrafo 140 Locke afi rma com relação à criação de impostos que aquele que cria impostos sem que o povo lhe tenha dado tal prer rogativa está ferindo a lei que protege a propriedade e subvertendo os objetivos que levaram os homens a criar o governo Locke 1983 p 8990 Por fi m Locke restringe a atividade legislativa ao poder Legislativo ne gando a este o poder de transferir sua prerrogativa criar leis para outrem Lo cke 1983 p 90 Além de estabelecer os limites do poder político Locke discorreu também sobre os direitos do povo e as obrigações dos poderes Legislativo e Executivo Na próxima seção abordaremos estas questões 49 Da subordinação dos poderes da comunidade Outro aspecto importante distingue Locke de Hobbes o direito de dis solver o poder político Para Hobbes o soberano não pode ser destituído a não ser que ele concorde com isso Hobbes 1983 p 107 e 109 Locke ao contrário reconhece o direito da comunidade de dissolver o Poder Legislativo Observese o que diz Locke no trecho abaixo 149 sendo o legislativo somente um poder fi duciário destinado a entrar em ação para certos fi ns cabe ainda ao povo um poder supremo para afastar ou alterar o legislativo quando é levado a verifi car que age contrariamente ao encargo que lhe cofi aram E nessas condi ções a comunidade conserva perpetuamente o poder supremo de se salvaguardar dos propósitos e atentados de quem quer que seja mes mo dos legisladores sempre que forem tão levianos ou maldosos que formulem planos contra as liberdade e propriedades dos súditos E assim pode dizerse neste particular que a comunidade é sempre o poder supremo mas não considerada sob qualquer forma de governo porquanto este poder do povo não pode nunca ter lugar senão quando se dissolve o governo Locke 19834 p 93 No trecho supra Locke afi rma que o Poder Legislativo é um poder fi du ciário isso signifi ca que sua existência depende da confi ança que o povo depo sita nele O povo em última instância é o poder supremo Pois tendo o povo criado o Legislativo para determinados fi ns quando julgar que este poder não está agindo de modo a atingir esses fi ns tem o direito de depor os legisladores O povo poderia revoltarse legitimamente porque como afi rma Manet ele é a fonte última de toda legitimidade Manet 1990 p 8422 Está explícito que para 22 Segundo Manet mais tarde Montesquieu mostraria que o projeto liberal poderia prescindir da soberania absoluta e da revolta popular Manet 1990 p 84 116 ELSEVIER Curso de Ciência Política Locke há um contrato entre os súditos e o soberano podendo este último ser acusado de têlo violado Locke diz ainda que 150 Em todos os casos enquanto subsiste o governo o legislativo é o poder supremo o que deve dar leis a outrem deve necessariamente serlhe superior e desde que o legislativo não o é de outra qualquer maneira senão pelo direito que tem de fazer leis para todas as partes e para qualquer membro da sociedade prescrevendolhes regras às ações e concedendo poder de execução quando as transgridem o legis lativo necessariamente terá de ser supremo e todos os outros poderes em membros ou partes quaisquer da sociedade dele derivados ou a ele subordinados Locke 1983 p 93 Não tendo o Legislativo como já foi dito anteriormente vida contínua Locke afi rma que quando é confi ada ao Executivo a prerrogativa de convocar o Legislativo de tempos em tempos e aquele o Executivo não o faz esta recusa caracteriza um estado de guerra Diz Locke 154 Se o legislativo ou qualquer parte dele compõese de representan tes escolhidos pelo povo para esse período os quais voltam depois para o estado ordinário de súditos e só podendo tomar parte no legislativo mediante nova escolha este poder de escolher também deverá ser exer cido pelo povo ou em certas épocas ou então quando convocado para isso neste último caso colocase ordinariamente o poder de convocar o legislativo no executivo 155 Neste ponto pode perguntarse que acontecerá se o poder executi vo sendo senhor da força da comunidade a empregar para impedir a reunião e ação do legislativo conforme o exigirem a constituição origi nal ou necessidades do povo Digo empregar a força sobre o povo sem autoridade e contrariamente ao encargo cofi ado a quem assim proce de constitui estado de guerra com o povo que tem o direito de resta belecer o poder legislativo no exercício dos seu poderes Locke 1983 p 95 Questão intimamente ligada à que nós tratamos aqui é a da degeneração do governo ou poder político que será abordada na próxima seção 410 As causas da degeneração do governo Um tema clássico da fi losofi a política é o da corrupção dos governantes e consequentemente a degeneração do governo Para Locke esses fenômenos 117 Capítulo 4 John Locke lei e propriedade Vladimyr Lombardo Jorge podem ter causas diferentes o que o leva segundo Bobbio a distinguir quatro formas de degeneração a conquista a usurpação a tirania e a dissolução do governo Bobbio 1998 p 240 A causa da conquista é uma invasão externa cuja consequência é a disso lução da sociedade e em decorrência disto do governo civil23 Observese o que diz Locke neste trecho 211 A maneira usual e quase única de dissolver esta união consiste na invasão de força estranha que venha conquistar porque neste caso não sendo capaz de manterse e sustentarse como corpo inteiro e in dependente a união que lhe cabia e o formava tem necessariamente de cessar e assim cada um volta ao estado em que se encontrava antes com a liberdade de agir por conta própria e prover a própria liberda de conforme achar conveniente em qualquer outra sociedade Locke 1983 p 118 Para Locke a invasão externa jamais pode dar origem a um novo gover no Locke 1983 p 104 No parágrafo 176 ele diz que o conquistador não tem direito de reivindicar a submissão e a obediência do conquistado quando a con quista ocorrer por meio de uma guerra injusta da mesma forma que não se deve submeter ou obedecer a bandidos Locke 1983 p 104 No parágrafo 189 Locke referindose ao caso de uma guerra justa afi rma que nessas circunstâncias o povo encontrase livre para dar início a um novo governo não estando ninguém obrigado a se submeter a um governo imposto pelo conquistador Locke 1983 p 109 Esta é contudo apenas uma das limitações do direito do conquistador sobre o conquistador legítimo isto é aquele que vence em uma guerra justa Outra limitação é encontrada no parágrafo 178 Neste Locke diz que o conquistador obtém poder despótico somente sobre aqueles que realmente apoiaram eou participaram de fato de uma guerra injusta mas não sobre os demais já que o povo não concedeu aos governantes o poder de cometer tal ato guerra injusta Locke 1983 p 105 Outra limitação é estabelecida por Locke no parágrafo 179 quando ele diz que embora a conquista dê direito ao conquis tador de possuir poder absoluto sobre a vida do vencido ele não o tem sobre seus bens Locke 1983 p 105106 Isso contudo não o impede de reconhecer no parágrafo 182 que o conquistador tem direito sobre a propriedade do venci do nestas duas situações 1 para compensar os danos causados pela guerra e 2 para pagar as despesas realizadas com a mesma Locke 1983 p 106107 Mas em ambos os casos diz Locke no mesmo parágrafo o direito da mulher e dos fi lhos inocentes do conquistado devem ser preservados Locke 1983 p 107 23 Sobre esta questão ver Bobbio 1998 p 227 118 ELSEVIER Curso de Ciência Política Não havendo propriedade sufi ciente para satisfazer a todas as partes diz Locke no parágrafo 183 aquele que tiver de sobra deve renunciar a parte da satisfa ção inteira cedendo o direito premente e preferível dos que estão em perigo de perecer Locke 1983 p 107 Locke compara a usurpação à conquista injusta Segundo ele há muita semelhança entre ambas a não ser pela origem delas se a da primeira é interna a da segunda é externa De acordo com a defi nição de Locke a usurpação pri meira ocorre por exemplo quando o Poder Executivo toma para si a atividade legislativa Não havendo neste caso ou em qualquer outro fundamento jurídi co para isso 197 a usurpação é uma espécie de conquista interna com a diferen ça que um usurpador não pode ter nunca o direito a seu favor somente sendo usurpação quando o usurpador entra na posse daquilo a que um terceiro tem direito Isto na medida em que é usurpação consiste somente em mudança de pessoas mas não das formas e regras do go verno Locke 1983 p 112 A tirania por sua vez fi ca caracterizada quando o legislador faz leis não em prol da comunidade mas benefício próprio Eis o que diz Locke 199 Do mesmo modo que a usurpação consiste no exercício do poder a que outro tem direito a tirania é o exercício do poder além do direito o que não pode caber a pessoa alguma E esta consiste em fazer uso do poder que alguém tem nas mãos não para o bem daqueles que lhe es tão sujeitos mas a favor da vantagem própria privada e separada Locke 1983 p 115 Bobbio explica que o tirano é quem recebeu o poder legitimamente portanto não se trata do usurpador mas o exerce não para o bem comum do povo mas para a sua vantagem pessoal Bobbio 1998 p 242 E o tirano pode ser um homem ou uma assembleia pois qualquer forma de governo pode se degenerar e se tornar uma tirania Eis o que Locke diz a esse respeito 201 É um engano supor que esta imperfeição é própria somente das monarquias outras formas de governo estão a ela sujeitas tanto quan to aquela Porque sempre que o poder que se põe em quaisquer mãos para governo do povo e preservação da propriedade se aplicar para outros fi ns e dele se faça uso para empobrecer perseguir ou subjugar o povo às ordens arbitrárias e irregulares dos que o possuem tornase realmente tirania sejam um ou muitos os que assim a utilizem Locke 1983 p 114 119 Capítulo 4 John Locke lei e propriedade Vladimyr Lombardo Jorge Locke afi rma que o súdito tem o direito de resistir à ação não sanciona da pela lei independentemente de ela ser praticada por outro súdito ou pelos governantes Pois quem tem autoridade da sociedade para usar a força só pode fazêlo em benefício do bem comum e desde que autorizado diretamente ou indiretamente pela própria sociedade Contudo o uso do direito de resistência isto é da força é um último recurso ao qual só devemos apelar quando e somente quando não tivermos como apelar para a lei ou seja para a justiça Observemse estes dois trechos 202 Onde quer que a lei termine a tirania começa se se transgredir a lei para dano de outrem E quem quer que em autoridade exceda o poder que lhe foi dado pela lei e faça uso da força que tem sob as suas ordens para levar a cabo sobre o súdito o que a lei não permite deixa de ser magistrado e agindo sem autoridade pode sofrer oposição como qualquer pessoa que invada pela força o direito de outrem Locke 1983 p 114 207 porque se a parte prejudicada puder encontrar remédio e os seus danos reparados mediante apelação à lei não haverá qualquer necessidade de recorrer à força que somente se deverá usar quando alguém se vir impedido de recorrer à lei porque só se deve considerar força hostil a que não permite recorrerse ao remédio de semelhante apelação e é tão só essa força que põe em estado de guerra aquele que faz dela uso e torna legítimo resistirlhe Locke 1983 p 116 De acordo com Bobbio para Locke a dissolução do governo é uma forma especial de tirania que atinge não toda sociedade mas somente o po der constituído em outras palavras não libera os cidadãos do contrato social limitandose a anular a confi ança nos governantes Bobbio 1998 p 242243 Esta pode ocorrer por dois motivos por alteração do Legislativo ou por violação da confi ança No primeiro caso o Poder Executivo ameaça o princípio da subordi nação dos poderes Locke trata desse motivo entre os parágrafos 212 e 219 Esta si tuação materializase em qualquer uma destas cinco situações mencionadas nos parágrafos 214 215 216 217 e 219 respectivamente 1 o governante substitui as leis por sua vontade arbitrária 2 o governante impede os legisladores de reunirse em assembleia 3 o governante modifi ca as formas da eleição 4 quando a sociedade é subjugada por uma potência estrangeira 5 o governante deixa de aplicar as leis sancionadas pelo Legislativo Lo cke 1983 p 119120 120 ELSEVIER Curso de Ciência Política A dissolução do governo ocorre por violação da confi ança quando o Poder Legislativo extrapola os limites lhe foram impostos Em outras palavras quando viola os direitos naturais dos súditos Diz Locke 221 Há portanto em segundo lugar outra maneira de dissolverse o governo que consiste em agirem o legislativo ou o príncipe contraria mente ao encargo que receberam Primeiro o legislativo age contra o encargo que a ele se confi ou quan do tenta invadir a propriedade do súdito e tornarse a si mesmo ou a qualquer parte da comunidade senhor ou árbitro da vida liberdade ou fortuna do povo 222 Sempre que portanto o legislativo transgredir esta regra fun damental da sociedade e por ambição temor loucura ou corrupção procurar apoderarse ou entregar às mãos de terceiro o poder absoluto sobre a vida liberdade e propriedade do povo perde por esta infração ao encargo o poder que o povo lhe entregou para fi ns completamente diferentes fazendoo voltar ao povo que tem o direito de retomar a liberdade originária e pela instituição de novo legislativo conforme achar conveniente prover a própria segurança e garantia o que consti tui o objetivo da sociedade Locke 1983 p 121 Portanto em qualquer uma das situações em que o poder político tornase uma ameaça aos direitos naturais isto é à propriedade e consequentemente o governo se dissolve o poder supremo retorna ao povo Nesse caso diz Goldwin o povo exercerá de maneira direta e ativa o poder supremo com um único pro pósito formar um novo governo tão rápido quanto for possível mediante o es tabelecimento de uma constituição e a delegação do poder legislativo em outras mãos Godwin 1996 p 476 Conforme expôs no trecho abaixo o povo é o juiz que decidirá se o governante age ou não contrariamente ao encargo recebido 240 Quem julgará se príncipe ou legislativo agem contrariamente ao encargo recebido A isto respondo O povo será o juiz porque quem poderá julgar se o depositário ou o deputado age bem e de acor do com o encargo a ele confi ado senão aquele que o nomeia devendo por têlo nomeado ter ainda poder para afastálo quando não agir con forme o seu dever Locke 1983 p 130 Para fi nalizar esta seção cabe aqui um esclarecimento sobre o direito do povo de remover um ursupador ou tirano Segundo Goldwin o direito de resis tência de Locke não é sinônimo de revolução Goldwin 1996 p 478 e 480 Ele explica que este é um direito natural e não um um direito político Goldwin 1996 p 480 Goldwin afi rma que para Locke o emprego da força pelo povo 121 Capítulo 4 John Locke lei e propriedade Vladimyr Lombardo Jorge só é justifi cável quando for direcionado a um poder injusto e ilegal cujos atos ameacem seus direitos naturais e em consequência disso não for mais possível apelar para a lei Goldwin 1996 p 480 Outro motivo para distinguilos é a consequência de um e de outro Gol dwin diz que a revolução é uma ameaça à existêndcia da sociedade e qualquer coisa que signifi que o direito a resistência deve ser congruente com a conserva ção da sociedade Goldwin 1996 p 478 411 Conclusão Tal como seu antecessor Thomas Hobbes e seu predecessor JeanJacques Rousseau Locke é um fi lósofo da escola do direito natural ou jusnaturalista Esse trio atribui a origem da sociedade e do poder político à realização de um contrato ou seja de um acordo entre a maioria dos indivíduos que marca o fi m do estado de natureza e o início do estado político Embora pertençam à mesma escola fi losófi ca a comparação entre Hobbes e Locke nos permite observar em que aspectos há divergências e coincidência entre ambos quanto a noções dos três elementos que compõem o modelo jusna turalista estado de natureza contrato e sociedade civil Vimos que a distinção que Locke faz entre estado de natureza e estado de licenciosidade por exemplo põe em evidência uma divergência entre ambos com relação ao estado de na tureza Com essa distinção Locke afi rma que mesmo no estágio prépolítico os homens devem respeitar as leis de natureza Essa afi rmação deve ser compreen dia dentro de uma proposição mais abrangente de Locke a de que a liberdade individual só está protegida se e somente se esta for limitada pelas leis de na tureza eou civis Vimos também que a noção de propriedade é central no pensamento lo ckeano sendo esse outro aspecto que o distingue de Hobbes A propriedade para Locke é um direito natural que envolve não apenas os bens mas também a vida e a liberdade individual Ao fazer dela um direito natural ele tornou sua existência independe da criação da sociedade civil É propriedade privada do in divíduo tudo aquilo que ele obteve por intermédio do seu trabalho ou adquiriu mediante a troca por dinheiro oriundo do seu trabalho A noção de propriedade é central porque permite a Locke justifi car a realização do contrato e consequentemente a criação da sociedade civil Sob um poder comum conclui Locke a propriedade estará mais bem protegida E para que a sociedade civil atinja seu objetivo é necessário que o monarca ou poder executivo aja de acordo com as determinações do legislativo identifi cado por 122 ELSEVIER Curso de Ciência Política Locke como poder supremo Este por sua vez deve observar as leis de natureza para que não haja desrespeito aos direitos naturais dos homens E é a partir desta conclusão de que tanto o monarca quanto os legisladores devem garantir a proteção dos direitos naturais dos homens que Locke reconhe ce a existência de outro direito natural o de resistência Este consiste no direito de destituir os membros do legislativo ou o monarca caso qualquer um deles se constitua em uma ameaça aos direitos naturais dos homens Com relação aos aspectos da teoria lockeana expostos nos três parágrafos supra noção de sociedade civil divisão de poder e direito de resistência há divergências com Hobbes que concebe o poder político como um poder absolu to inalienável e indivisível Mas apesar de as várias e importantes diferenças que distinguem Locke de Hobbes Bobbio observa que a ruptura não é total pois há também conver gência entre ambos Cita por exemplo as passagens em que Locke descreve seu estado de natureza em termos hobbesianos Tendo Bobbio explicado que isso ocorre porque o estado de natureza ideal de Locke não é idêntico ao seu o estado de natureza real Voltando aos aspectos divergentes já mencionados convém lembrar que com eles Locke lançava os fundamentos do Estado liberal uma vez que por um lado atribuía direitos intrínsecos aos indivíduos e por outro concebia o poder político de modo a difi cultar que este se tornasse uma ameaça concreta a tais direitos Tais divergências apareceram na idade madura e após seu encon tro com o conde de Shaftesbury quando Locke se tornou o teórico do modelo mercantil que exigia uma segurança vantajosa para desenvolvimento da livre iniciativa no domínio da economia Bobbio 1998 p 81 412 Perguntas para reflexão 1 Por que o estado de natureza de Locke não é um estado de licenciosidade 2 Discorra sobre as diferenças e aproximações entre noção de estado de natureza de Locke e estado de guerra 3 Discorra sobre a relação que Locke estabelece entre lei e direito 4 Explique por que para Locke a propriedade é um direito natural 5 Tendo Locke considerado a propriedade um direito natural que implica ções isso tem para o exercício do poder político 6 Comente sobre a divisão de poder estabelecida por Locke 123 Capítulo 4 John Locke lei e propriedade Vladimyr Lombardo Jorge 7 Relacione as limitações estabelecidas por Locke ao poder político e as causas da degeneração do governo 8 Explique a relação que há entre o pensamento político de Locke e a dou trina liberal 9 Em que aspectos os contratos de Locke e de Hobbes são diferentes 10 Explique por que no estado de natureza as leis de natureza não são efetivas e contrastando com Hobbes explique como Locke resolve este problema Bibliografia BOBBIO Norberto Liberalismo e democracia São Paulo Brasiliense 1988 Thomas Hobbes Rio de Janeiro Campus 1991 Locke e o direito natural 2 ed Brasília Editora da UnB 1998 Teoria geral da política A fi losofi a política e as lições dos clássicos Rio de Janeiro Campus 2000 GOLDWIN Robert A John Locke In STRAUSS Leo CROPSEY Joseph org História de la fi losofía política México Fondo de Cultura Económica 1996 GRANT Ruth W Jonh Lockes liberalism Chicago University of Chicago Press 1991 HELD David Modelos de democracia Madri Alianza Universidad 1993 HOBBES Thomas Leviatã ou matéria forma e poder de um Estado eclesiástico e civil 3 ed São Paulo Abril 1983 JANINE Renato Hobbes o medo e a esperança In WEFFORT Francisco org Os clássicos da política 3 ed São Paulo Ática 1991 v 1 LOCKE John Segundo tratado sobre o governo São Paulo Abril 1983 MANENT Pierre História intelectual do liberalismo Dez lições Rio de Janeiro Imago 1990 MATTEUCCI Nicola Contratualismo In Dicionário de política 5 ed Bra sília Editora da UnB 1988 WEBER Max Economia e sociedade Brasília Editora da UnB 1999 v 2 MINOGUE Kenneth R Liberalismo In OUTHWAITE William BOTTO MORE Tom org Dicionário do pensamento social do século XX Rio de Janeiro Jorge Zahar 1996 MONTESQUIEU O espírito das leis São Paulo Abril 1973 YOLTON John W Dicionário Locke Rio de Janeiro Jorge Zahar 1996 Advanced data display Advanced data display Advanced data display Advanced data display Advanced data display Advanced data display Advanced data display Capítulo 5 Montesquieu a centralidade da moderação na política Silene de Moraes Freire1 Adolfo Wagner2 Douglas Ribeiro Barboza3 Doutora em Sociologia pela USP Mestre em Serviço Social pela UFRJ Professora e procientista da UERJ Pesquisadorabolsista de produtividade do CNPq e coordenadora do Programa de Estudos de América Latina e Caribe do Centro de Ciências Sociais da UERJ PROEALCCCSUERJ Contato silenefreireigcombr silenefreiregmailcom Doutorando do Programa de PósGraduação da Faculdade de Serviço Social do Centro de Ciências Sociais da UERJ Mestre em Ciência Política pela UFRJ Pesquisador do Programa de Estudos de Amé rica Latina e Caribe PROEALCCCSUERJ Professor Assistente da CEFET Química Unidade Maracanã Contato adolfowbighostcombr Doutorando e Mestre em Serviço Social pela UERJ Bolsista CAPES e Pesquisador associado do Programa de Estudos de América Latina e Caribe PROEALCCCSUERJ Contato douglasbar bozayahoocombr 126 ELSEVIER Curso de Ciência Política 51 Quem foi Montesquieu Durante os tempos do Iluminismo a teoria política adquiriu imenso vi gor O processo de esgotamento das monarquias absolutistas o anacronismo do regime dos príncipes serviram de estímulo aos pensadores da época das Luzes na promoção de uma intensa discussão sobre o aperfeiçoamento da sociedade e suas instituições No centro desse debate sobre as possibilidades de um novo or denamento político destacase o fi lósofo moralista historiador e teórico político francês Charles Montesquieu O aristocrata CharlesLouis de Secondat senhor de La Brède e Barão de Montesquieu nasceu no Palacete de la Brède perto de Bordéus na França em 18 de janeiro de 1689 e faleceu em 10 de fevereiro de 1755 em Paris Membro de uma família da aristocracia provincial neto e sobrinho de um presidente do Parlamento de Bordéus fi lho de Jacques de Secondat ofi cial da Guarda Real e de Marie Françoise de Pesnel Montesquieu fi cou órfão de mãe aos 11 anos de idade Realizou seu ensino básico junto aos Oratorianos do colégio de Juilly localidade situada a nordeste de Paris Foi em companhia de dois primos que frequentou o colégio onde lhe foi ministrada uma educação clássica Regressado a Bordéus em 1705 realizou os estudos jurídicos necessários à sua entrada no Parlamento de Bordéus para poder herdar o título e as im portantes funções do tio A admissão como conselheiro deuse em 1708 Após a conclusão dessas formalidades regressou a Paris onde concluiu os seus estudos jurídicos e onde frequentou assiduamente a Academia das Ciências e das Letras Regressou a Bordéus em 1713 devido à morte do pai Em 1715 casou com uma calvinista francesa o que lhe assegurou um valioso dote No ano seguinte o tio morreu e Montesquieu tornouse barão de Montesquieu e presidente no Parla mento de Bordéus Apesar de ter realizado sólidos estudos humanísticos e jurídicos ao mu darse para Paris frequentou os círculos da boêmia literária e levou uma vida de dissipações frequentando as festas dos salões da aristocracia e da nobreza parisienses O barão de Montesquieu foi fundamentalmente um aristocrata da provín cia da estirpe de seu conterrâneo Michel de Montaigne e como ele humanista e cético Juntou porém a essa herança espiritual o otimismo característico do século XVIII e acreditou fi rmemente na possibilidade de solução para os proble mas da vida pública Embora tenha tido formação iluminista com padres oratorianos cedo se mostrou um crítico severo e irônico da monarquia absolutista decadente bem como do clero Pensador autônomo em matéria religiosa e inegável apreciador 127 Capítulo 5 Montesquieu a centralidade da moderação na política Silene de Moraes Freire Adolfo Wagner e Douglas Ribeiro Barboza dos prazeres da vida Montesquieu apresentou essas características no seu pri meiro livro Lettres persanes 1721 Cartas persas cartas imaginárias de um per sa que teria visitado a França e estranhado os costumes e instituições vigentes conforme veremos adiante Em 1726 renunciou ao seu cargo no Parlamento de Bordéus vendeuo e foi viver em Paris preparandose para entrar na Academia Francesa Aceito em 1728 viajou logo a seguir pela Europa realizando assim o seu Grand Tour a tra dicional viagem educativa dos intelectuais europeus do século XVIII Regressou à França mas em seguida viajou para Inglaterra onde permanecerá durante dezoito meses Em 1731 após uma ausência de três anos regressou a Bordéus para a sua família e os seus negócios assim como para as vinhas e os campos agrícolas à volta do seu Palacete de Brède Retornará frequentemente a Paris onde tem con tatos ocasionais com os célebres salons da boêmia literária embora nunca tenha demonstrado vínculos com o grupo de intelectuais que os animava Seu grande objetivo passou a ser completar aquela que viria a ser a sua grande obra O espírito das leis Preenchendo uma etapa intermédia escreveu e publicou em 1734 a Causa da grandeza dos romanos e da sua decadência que não é mais do que um capítulo de apresentação do Espírito Esse intelectual representante da nobreza também sofreu infl uência de Vico Maquiavel Hobbes Locke e destacouse sobretudo por tentar levar em conta nas suas formulações outros elementos constituintes da organização polí tica tais como a dimensão e a extensão dos estados Conforme observou J A Guilhon de Albuquerque 2003 a obra de Mon tesquieu revela uma conjunção paradoxal entre o novo e o tradicional Múltipla e guiada por uma espécie de curiosidade universal parece estar em continuidade direta com os ensaístas que o precederam nos comentários sobre os usos e costumes dos diversos povos Com traços de enciclopedis mo várias disciplinas lhe atribuem o caráter de precursor ora aparecendo como pai da sociologia ora como inspirador do determinismo geográfi co e quase sempre como aquele que na ciência política desenvolveu a teoria dos três poderes que ainda hoje permanece como uma das condições de funcionamento do Estado de Direito Albuquerque 2003 p 113 Dada a abrangência da obra de Montesquieu a defi nição sobre a área de conhecimento em que sua obra se insere nunca foi algo de fácil resolução Dentro da corrente que considera Montesquieu sociólogo destacase Raymond Aron 2003 Segundo ele Montesquieu não é apenas um precursor mas um dos fundadores da sociologia Considerar Montesquieu como sociólogo é responder 128 ELSEVIER Curso de Ciência Política para Aron a uma pergunta formulada por todos os historiadores que se inquie tam com a necessidade de responder em que disciplina se insere Montesquieu ou mesmo a que escola pertence Apesar dos sólidos argumentos de Aron 2003 a incerteza na organiza ção universitária francesa persiste até hoje Montesquieu pode fi gurar simulta neamente no programa de graduação em literatura em fi losofi a em sociologia em direito e até mesmo em história Não por acaso os historiadores das ideias situam Montesquieu ora entre os homens de letras ora entre os teóricos da política às vezes como historiados do direito outras vezes entre os ideólogos que no século XVIII discutiram os fundamentos das instituições francesas e prepararam a crise revolucionária e até mesmo entre os economistas A verdade é que Montesquieu foi ao mesmo tempo um escritor um juris ta um fi lósofo da política e quase um romancista Aron 2003 p 21 O cerne do argumento liberal é a velha lição de Montesquieu não basta decidir sobre a base social do poder é igualmente importante determinar a for ma de governo e garantir que o poder mesmo legítimo em sua origem social não se torne ilegítimo pelo eventual arbítrio do seu uso Na raiz da posição liberal se encontra sempre uma dose inata de desconfi ança ante o poder e sua inerente propensão à violência Por isso o primeiro princípio liberal é o constituciona lismo isto é o reconhecimento da constante necessidade de limitar o fenômeno do poder O mundo liberal é uma ordem monocrática uma sociedade colocada sob o império da lei onde todo poder possa ser experimentado como autoridade e não como violência 52 Do mundo natural à natureza das leis a trajetória intelectual de Montesquieu Se um leitor interessado em conhecer mais sobre a obra e a vida de Mon tesquieu fi zer uma rápida pesquisa em uma enciclopédia ou mesmo na internet seja qual for o meio a informação sempre em destaque será a de que este é o autor da famosa obra Do espírito das leis O texto na verdade intitulado Do espírito das leis ou Das relações que as leis devem ter com a constituição de cada governo costumes clima religião comércio etc está dividido em trinta e um livros cujos temas são assim apresentados os dez primeiros livros depois de estabelecida a natureza das leis próprias dos ho mens tratará das formas de governo Do livro XI ao XIII a centralidade está no problema da liberdade política e a divisão dos poderes do livro XIV ao XVIII Montesquieu tratará da relação das leis com o clima e outras condições físicas de 129 Capítulo 5 Montesquieu a centralidade da moderação na política Silene de Moraes Freire Adolfo Wagner e Douglas Ribeiro Barboza um país no livro XIX das leis em suas relações com os costumes e as maneiras de um povo os de número XX a XXIII relacionamse aos efeitos da indústria comércio e demografi a os livros XXIV e XXV são monografi as que tratam da questão religiosa o livro XXVI trata dos domínios da legislação sobre história do direito romano e francês temos os livros XXVII e XXVIII o livro XXIX como diz o próprio título versa sobre a maneira de compor as leis Por fi m sobre a teoria das leis feudais entre os francos na sua relação com a monarquia temos os livros XXX e XXXI Pela sua magnitude e envergadura não é difícil supor ter sido essa de fato a obra da vida de seu autor justifi cando assim o resultado da pesquisa que mencionávamos acima A problemática que Montesquieu constrói ali na verdade é o resultado de um caminho que se inicia tempos antes nas leituras da juventude nas viagens na temporada em Paris nas impressões recolhidas a todos os instantes e que por sua vez são objetivadas nos textos publicados que devemos tomar como passos iniciais que se somaram na direção enfi m alcança da A refl exão de Montesquieu aplicase a todos os campos do saber Filóso fo racionalista e com grande infl uência do pensamento newtoniano ele tinha opinião sobre a física e a fi siologia historiador jurista esboçou uma estética enunciou princípios de economia estudou geografi a geologia e escreveu um capítulo importantíssimo da ciência política É justamente esta última que nos interessa e à qual aqui daremos tratamento 521 Da preocupação com o poder e a liberdade Se quisermos estabelecer uma linha que nos conduza através do pensa mento político de Montesquieu e de certa forma o resuma devemos buscála e sintetizála em termos de duas questões fundamentais o problema do poder e da liberdade No momento em que o jovem Montesquieu vai formar sua visão de mun do ele vê desmoronar o reinado de Luís XIV O advento da Monarquia absolu tista e a sua crise marcamno decisivamente Ele viu à nobreza a qual pertencia destituirse do valor supremo da honra que ao tornarse exclusividade do sobe rano a reduzia à condição de classe cortesã Tinha nas instituições francesas um modelo anacrônico que precisava ser revisto e superado De um lado criticava o absolutismo real e do outro a conduta da Igreja católica Passado o tempo a sua obra perseguirá os mesmos objetivos Ele desejava encontrar um caminho que negasse os extremos Digladiavase contra os perigos do despotismo e da intolerância Sua intenção manifesta era poder fazer com 130 ELSEVIER Curso de Ciência Política que os que comandam aumentassem seu conhecimento com o que devem pres crever e os que obedecem encontrassem um novo prazer em obedecer com que os homens se pudessem curar dos seus preconceitos entendendo por preconceito não o que faz com que ignoremos certas coisas mas o que faz com que ignoremos a nós próprios Montesquieu 1979 p 20 Ele se colocará para isso a tarefa do conhecimento com o objetivo de ins truir os homens Para ele esse corresponde ao primeiro passo para a liberdade Antes de mais nada é preciso libertarse daquilo que impede de conhecer supe rando os preconceitos e as certezas tradicionais Para isso é necessário arrancar as máscaras cobrir de ridículo os fanatismos e as superstições Este primeiro momento da liberdade surge em Montesquieu com a publicação das Cartas per sas1 1721 O livro aproveitando o gosto da época pelas coisas orientais apesar de espirituoso e irreverente tem um fundo extremamente sério pois relativiza os valores de uma civilização pela comparação com os de outra muito distintos Nessa obra da juventude ele apresenta ferrenha crítica aos costumes às insti tuições políticas e aos excessos praticados pela Igreja através do relato fi ctício sobre a visita de dois persas a Paris Ao discutir de maneira satírica as instituições usos e costumes da socie dade francesa e europeia criticando veementemente a religião católica Mon tesquieu através dessa obra realiza a primeira grande crítica à Igreja no século XVIII Cartas persas foi escrito utilizandose um recurso bastante em voga no sé culo XVIII o romance epistolar no qual alguém dizia ter encontrado um con junto de cartas que ali fazia publicar no todo ou em parte No caso conforme mencionamos anteriormente era publicada a correspondência de dois persas que em viagem a Paris emitiam suas opiniões e contavam sobre o que viam no Ocidente Montesquieu utilizase de um texto cheio de ironia e humor para denun ciar um mundo de máscaras e fi cção Nada escapa ao olhar atento dos viajantes o rei e a nobreza O rei da França é o mais poderoso príncipe da Europa Não possui mi nas de ouro como o rei de Espanha seu vizinho mas superao em ri 1 Foi esse livro verdadeiro manual do Iluminismo e uma das obras mais lidas no século XVIII que possibilitou um enorme sucesso para Montesquieu Muitas das afi rmações contidadas nessa obra serão legitimadas por Edward Gibbon autor inglês ao defender em Decline and Fall of the Roman Empire que a queda do império se deveu ao predomínio da Igreja cristã no Império Romano a partir de Constan tino 131 Capítulo 5 Montesquieu a centralidade da moderação na política Silene de Moraes Freire Adolfo Wagner e Douglas Ribeiro Barboza quezas porque as extrai da vaidade de seus súditos mais inesgotável do que as minas Sucedeu que declarasse ou travasse grandes guerras tendo por únicos recursos títulos de honra que vendia e por um prodí gio do orgulho humano suas tropas eram pagas suas praças reforça das e suas frotas equipadas Por sinal este rei é um grande mago exerce seu império sobre o espíri to mesmo de seus súditos ele os faz pensarem como quer Se dispõe de apenas um milhão de escudos no tesouro e precisa de dois necessita apenas convencêlos de que um escudo vale dois e eles assim acredi tam Chega até a fazêlos acreditar que os cura de todas as espécies de males por seu toque tão grande são a força e o poder que tem sobre os espíritos Montesquieu 1991 p 49 ou a Igreja e o Papa O que te conto deste príncipe não deve te espantar há outro mago mais forte do que ele que manda em seu espírito tanto quanto ele no dos demais Esse mago chamase Papa Ora ele faz acreditar que três são um ora que o pão que comem não é pão que o vinho que bebem não é vinho e mil coisas mais do gênero Montesquieu 1991 p 49 Neste momento se afi rma em Montesquieu uma liberdade negadora Aqui é apenas pela recusa do mundo tal como o vê imediatamente que se expressa seu pensamento positivo Um novo sentido para liberdade será apenas desenvolvi do e apresentado quando da publicação de Do Espírito das leis As Cartas Persas ganham os salões parisienses e o nome de seu autor é al çado à fama O texto é um romance e não se atém apenas à crítica dos costumes e tradições da sociedade francesa da época Sua ampla aceitação pode ser justi fi cada por dois fatores por um lado o texto não passa muito da superfície das coisas por outro o período da Regência após a morte de Luís XIV em 1715 até 1726 fi cou célebre pela libertinagem tanto pelo abrandamento do poder da censura como eroticamente falando Parece que uma parcela signifi cativa da aristocracia bon vivant tomou com graça a troça que se fi zera dela Não que o texto não tenha encontrado resistências tanto o teve que no primeiro momen to ao candidatarse à Academia Francesa em 1728 Montesquieu fora rejeitado pelo rei por indicação do cardeal Fleury mas seu sucesso abriulhe espaço no restrito círculo social da Corte Isso inclusive foi fator determinante para que a situação acima descrita pudesse ser contornada graças à dedicada intervenção de alguns admiradores de Montesquieu Em 1734 passados três anos de seu regresso da Inglaterra publica suas Considerações sobre a grandeza e decadência dos romanos 132 ELSEVIER Curso de Ciência Política Nesse livro ele antecipa algumas importantes noções e ideias que vão re aparecer em Do Espírito das leis Podemos começar falando de uma explicação histórica na qual se vêem aplicadas causas naturais gerais subordinando uma série de acontecimentos que se sucedem em um encadeamento necessário que nunca supõe uma intervenção divina exterior Roma se desenvolve do seu nascimento à sua morte tal qual um organismo que se transforma segundo leis que lhe são imanentes Um advento histórico provém exatamente de uma situação de conjunto segundo princípios contidos nas naturezas das coisas ou seja movidas por leis que lhes são imanentes Essa noção não retira do homem a sua capacidade de agir As causas ge rais dos acontecimentos históricos não fazem a história sem os homens haveria nelas algo de não humano o clima a natureza do terreno Há também todo o passado humano as tradições e os costumes A história seria o resultado de cau sas necessárias que se fariam através dos homens Nesse sentido Roma parece ter forjado seu destino por si mesma uma República que se degenera e tornase um Estado despótico e como este exceden do suas próprias forças acaba por perderse tal como outros casos semelhantes que ocorrem seguindo uma lei que se repete sempre Cartago sucumbiu porque quando se revelou necessário coibir abusos não quis se submeter ao próprio Aníbal Atenas caiu porque seus erros lhe pareceram tão doces que ela não se animou a corrigilos E entre nós as repúblicas da Itália que se gabam da perpetuidade de seus governos deveriam envaidecerse unicamente da continuidade de seus abusos Montesquieu 1995 p 62 Ao escrever o livro Montesquieu tinha em mente a França e o que pode ria acontecer Ao escrever a história de Roma ele já alertava que a ruína de um Estado começava pela corrupção de seus princípios Os elementos trabalhados até aqui ele irá aprofundar no Espírito das leis A partir deste ponto vamos nos concentrar sobre três questões a compreensão do seu método sua ideia de Lei e o que trata por Espírito o problema das formas de governo suas naturezas e princípios e a questão da divisão dos poderes e a liberdade política 522 Do espírito das leis Diferentemente do que aconteceu com as Cartas persas os ataques sofridos por Montesquieu logo após a publicação de Do espírito das leis foram mais duros e numerosos O livro chegou a constar do Index de obras proibidas aos católicos Seu projeto de certa forma a isso justifi cava tinha pretensão de analisar extensa 133 Capítulo 5 Montesquieu a centralidade da moderação na política Silene de Moraes Freire Adolfo Wagner e Douglas Ribeiro Barboza e profundamente a estrutura dos fatos humanos e formular um esquema inter pretativo do mundo histórico político e social Do método de Montesquieu dois aspectos devem ser ressaltados o pri meiro a exclusão de toda intencionalidade religiosa ou moral de suas análises o segundo a superação da perspectiva metafísica presente no pensamento car tesiano Quanto à primeira podemos dizer que ele está mais preocupado com aquilo que é do que com o que deve ser Elimina assim qualquer desvio fi na lista ou teológico da sua teoria Ele quer saber daquilo que está na natureza das coisas em si Para chegar a isso não poderia simplesmente deduzir a partir de dogmas preestabelecidos pela razão O que ele faz é diferente Ele toma suas observações pratica a análise comparativa dos fatos e tenta a partir daí extrair hipotéticas leis que os governam Algo esclarecedor foi dito por ele no Prefácio do livro Examinei de início os homens e julguei que nesta infi nita diversidade de leis e costumes não eram eles orientados unicamente por seus ca prichos Coloquei princípios e vi os casos particulares submeteremse a eles como por si mesmos as histórias de todas as nações serem apenas se quências e cada lei particular ligada a outra lei ou depender de outra mais geral Quando remontei à Antiguidade esforceime por captar seu espírito a fi m de não tomar como semelhantes casos realmente diferentes e não omitir as diferenças dos que se mostrassem semelhantes Não extraí meus princípios de meus preconceitos mas da natureza das coisas Montesquieu 1979 p 19 A distinção entre as ciências dos fatos sociais e da teologia são reforçadas por Montesquieu logo no início do primeiro capítulo do livro quando ele diz que as leis no seu sentido mais amplo são relações necessárias que derivam da natureza das coisas e nesse sentido todos os seres têm suas leis o mundo mate rial possui suas leis as inteligências superiores ao homem possuem suas leis os animais possuem suas leis o homem possui suas leis Montesquieu 1979 p 25 Os homens e suas leis serão portanto o objeto de suas preocupações Tendo cada domínio as suas estas só podem ser compreendidas a partir dos próprios fatos A preocupação com a instituição de governos moderados que permitam a convivência harmoniosa dos súditos na direção do que cumpriria a boa vida é como vimos o impulso da obra de Montesquieu 134 ELSEVIER Curso de Ciência Política Determinados pelas causas gerais os homens não podem encarar a his tória como obra de sua livre vontade Ao saírem de seu estado de natureza passando a viver em sociedade afi rma Montesquieu os homens tornamse propensos aos excessos aos confl itos e às guerras O que portanto devem fazer Como se garantiria o bom governo Estas questões são exatamente aquelas que veremos a seguir 53 As análises das formas de governo no pensamento de Montes quieu As categorias gerais que permitem ordenar sistematicamente as várias formas históricas de sociedade correspondem para Montesquieu aos diversos tipos de organização política A conhecida teoria dos três tipos de governo de senvolvida pelo autor nos treze primeiros livros de Do espírito das leis confi gura se num esforço tendente a reduzir a diversidade das formas de governo a alguns tipos a república a monarquia e o despotismo cada um destes defi nido ao mesmo tempo por referência a dois conceitos que o autor denomina natureza dos governos e o princípio que os orientam Entre a natureza do governo e o seu princípio há esta diferença a sua natureza é o que faz ser como é e o seu princípio o que o faz agir A primeira constitui sua estrutura particular e a segunda as paixões hu manas que o movimentam As leis não devem ser menos relativas ao princípio de cada governo do que à sua natureza Montesquieu 1979 p 41 Os critérios que defi nem a natureza de um governo derivam da sua es trutura isto é não apenas do número dos que detêm a força soberana quem governa como também da maneira como essa soberania é exercida como go verna Existem três espécies de governo o Republicano o Monárquico e o Despótico Suponho três defi nições ou antes três fatos um que o governo republicano é aquele em que o corpo do povo ou apenas uma parte do povo detém a força suprema o monárquico aquele em que um só governa mas por meio de leis fi xas e estáveis ao passo que no despotismo um só sem lei e sem regra tudo arrasta segundo a sua vontade e os seus caprichos Montesquieu 1979 p 32 De acordo com Aron 2003 a distinção entre o corpo do povo ou só uma parte do povo aplicada à república tem por fi m lembrar as duas espécies de governo republicano a democracia e a aristocracia Monarquia e despotismo são 135 Capítulo 5 Montesquieu a centralidade da moderação na política Silene de Moraes Freire Adolfo Wagner e Douglas Ribeiro Barboza ambos regimes que comportam um só detentor da soberania mas no caso do go verno monárquico o detentor único governa segundo leis fi xas e estabelecidas enquanto no despotismo governa sem leis e sem regras O princípio do governo é o sentimento que deve animar os homens no inte rior de um tipo de governo para que este funcione harmoniosamente é a paixão fundamental muitas vezes tratada pelo autor como mola que induz os súdi tos a agir de conformidade com as leis estabelecidas permitindo a durabilida de de todo ordenamento político e a possibilidade de um governo desenvolver adequadamente as suas tarefas Montesquieu destaca que há três sentimentos políticos fundamentais cada um deles assegurando a estabilidade de um tipo de governo A república depende da virtude a monarquia da honra e o despotismo do medo2 Dessa forma as leis devem ser relativas à natureza do governo porém não menos relativas ao seu princípio pois este princípio é a base fundamental e o motor que determina exercendo suprema infl uência sobre essas leis O prin cípio do governo é o fator determinante e dele depende a natureza do governo se a natureza do governo desaparece foi porque o seu princípio sofreu alterações A corrupção dos governos começa quase sempre pela dos princípios se os prin cípios são saudáveis as más leis têm o efeito das boas uma vez corrompidos os princípios do governo as melhores leis tornamse más voltandose contra o Estado pois a força do princípio tudo arrasta Assim considerando a interdependência entre a natureza e o princípio poderíamos sintetizar as três formas de governo da seguinte maneira República Sua estrutura particular sua natureza consiste no fato de que o povo é que detém o poder e seu princípio é a virtude Esta virtude não é somen te uma disposição individual uma virtude moral mas sim compreendida no seu sentido político que vincula o indivíduo a tudo do que participa É o amor da pátria o amor pela res publica3 Em sua forma democrática o corpo do povo 2 A virtude da república não é uma virtude moral mas uma virtude propriamente política É o respeito pelas leis e a dedicação do indivíduo à colectividade A honra é o respeito por cada um daquilo que deve à sua categoria Quanto ao medo é um sentimento elementar e por assim dizer infrapolítico que não precisa de defi nição Aos olhos de Montesquieu um regime assente no medo é por essência corrompido e quase no limiar do nada político Os súditos que só por medo obedecem já quase não são homens Aron 2003 3 Segundo Norberto Bobbio 1980 Ao precisar a noção de virtude como mola das repúblicas Montes quieu recorre também ao conceito de igualdade È um conceito que deve ser salientado porque serve para distinguir a república isto é a república democrática de outras formas de governo fundamenta das na desigualdade irredutível entre governantes e governados e na irredutível desigualdade entre os próprios governados É um conceito importante que condiciona o exercício da virtude enquanto amor 136 ELSEVIER Curso de Ciência Política detém a força suprema na forma aristocrática apenas uma parte do povo detém essa força Na república democrática o povo possui dois papéis distintos em um momento ele é súdito em outro ele é o monarca tendo o poder de escolher seu governante O povo necessariamente sabe escolher aquele a quem deve confi ar alguma parte da autoridade porém não é capaz de ele próprio administrar seus negócios tomar as suas decisões Como o governo é confi ado a cada cidadão é preciso que cada cidadão seja levado a amálo amando também a igualdade e a sobriedade que são da própria essência da democracia Na república aristocrá tica como o soberano poder se acha nas mãos não do povo em conjunto mas de certo número de pessoas quanto maior esse número mais se aproxima da de mocracia a instituição sendo assim mais perfeita A aristocracia para Montes quieu é uma espécie de democracia restrita condensada e purifi cada onde o poder estaria reservado aos cidadãos distintos pelo nascimento e preparados ao governo pela educação Nos governos aristocráticos a virtude apesar de neces sária não é tão absolutamente requerida como no governo popular Se o povo é coibido por suas próprias leis para coibir os nobres é necessário que a alma desses governos seja um certo espírito de moderação4 daqueles que o governam Um corpo semelhante apenas pode reprimirse de duas maneiras ou por uma grande virtude que faz com que os nobres se achem de algum modo iguais a seu povo coisa que pode formar uma grande república ou por uma virtude menor isto é certa moderação que tor na os nobres pelo menos iguais entre si o que faz a sua conservação Montesquieu 1979 p 43 Monarquia Sua natureza consiste no fato de somente uma pessoa o rei ser fonte de todo o poder e somente ela governar através de leis fi xas e estabe lecidas Essa natureza estabelece uma essencial ligação entre monarquia e no breza onde o modo de exercício do poder através das leis supõe a existência de poderes intermediários subordinados e dependentes Esses poderes interme diários são pela ordem a Nobreza necessidade básica para a monarquia pois sem monarca não há nobreza não se tem monarca mas um déspota o Clero perigoso em uma república como todo corpo independente mas conveniente numa monarquia e as Cidades com seus privilégios Segundo Montesquieu esse jogo complexo de oposições de resistências de pesos e contrapesos de con traforças é justamente o que mantém o Estado monárquico Por repousar numa da pátria Amase a pátria como algo que é de todos ela é percebida como pertencente a todos que se consideram iguais entre si ibidem p 123124 4 A moderação é portanto a alma desses governos Refi rome à que se baseia sobre a virtude e não à que decorre de uma covardia e preguiça da alma Ibidem p 43 137 Capítulo 5 Montesquieu a centralidade da moderação na política Silene de Moraes Freire Adolfo Wagner e Douglas Ribeiro Barboza nobreza hereditária em distinções marcadas e duradouras entre as pessoas e as condições sociais entre as paixões que dão movimento a tal governo já não fi gura a virtude Seu princípio é a honra ou o preconceito de cada pessoa e de cada condição A ambição é perniciosa numa república mas acarreta bons resultados na monarquia dá vida a esse governo com a vantagem de não ser pe rigosa porque pode aí ser incessantemente reprimida A honra mo vimenta todas as partes do corpo político ligaas por sua própria ação fazendo com que cada uma caminhe para o bem comum acreditando ir em direção de seus interesses particulares Montesquieu 1979 p 45 Despostismo O despotismo é um tipo de governo distinto que aparece como repulsor da verdadeira monarquia É o regime em que um só governa sem regras e sem leis sua natureza e em que por consequência reina o medo seu princípio Montesquieu adverte que caso a monarquia cedendo às pressões do povo se separe de uma nobreza que é a única a lhe permitir governar segundo as leis seu perigoso futuro será o despotismo Conforme nos destaca Aron 2003 os governos republicano e monárqui co se diferem essencialmente pelo fato de que um se fundamenta na igualdade e na virtude política dos cidadãos enquanto o outro se fundamenta na desigual dade e num sucedâneo de virtude a honra Contudo ambos possuem uma característica comum são moderados pois neles ninguém comanda de maneira arbitrária e à margem das leis o que os diferencia de um governo despótico O autor complementa que A república se baseia numa organização igualitária das relações entre os membros da coletividade A monarquia tem base essencialmente na diferenciação e na desigualdade Quanto ao despotismo ele marca o retorno a igualdade Porém se a igualdade republicana é uma igualda de na virtude e na participação de todos no poder soberano a igualda de despótica é a igualdade no medo na impotência e na não participa ção no poder soberano Ibidem p 17 Na fi losofi a política clássica se fazia uma teoria dos regimes sem levar em consideração a organização da sociedade sendo estes defi nidos por um único critério o número dos que detêm o poder soberano por exemplo estabelecen do assim uma validade suprahistórica dos tipos políticos Montesquieu estabe lece uma correspondência entre as dimensões territoriais do Estado e a forma de governo arriscandose a cair num determinismo em lugar de uma hierarquia de valores 138 ELSEVIER Curso de Ciência Política Com relação à república é de sua natureza ter apenas um pequeno territó rio sendolhe do contrário quase impossível subsistir pois numa pequena re pública o bem comum é mais bem compreendido e conhecido e está muito mais próximo dos cidadãos A forma monárquica ligase a uma dimensão média dos Estados cuja essência é a diferenciação das ordens sociais uma monarquia legal e moderada O despotismo relacionase ao Estado de grande extensão no qual apenas uma pessoa possui o poder absoluto e a religião possui grande poder capaz de limitar as arbitrariedades desse soberano O enfoque da crítica do Estadodéspota leva Montesquieu a fazer a dis tinção entre governo moderado e não moderado preconizando a adoção do primeiro onde a separação dos poderes tornase a garantia indispensável da liberdade política Mas em que consiste essa liberdade5 531 A questão da liberdade política e a separação dos poderes Para Montesquieu a palavra liberdade tem recebido as mais diferentes signifi cações porém não basta tratar a liberdade política em sua relação com a constituição mas também na relação que mantém com o cidadão cada um chamou liberdade ao governo que se adequava aos seus costumes ou às suas inclinações e como numa república nem sempre temos diante dos olhos e de forma tão presente os instrumentos dos males de que nos queixamos e mesmo como nesta forma de governo as leis parecem falar mais e os executores da lei menos ela é coloca da geralmente nas repúblicas e excluídas das monarquias Finalmente como nas democracias o povo parece quase fazer o que deseja ligouse a liberdade a essas formas de governo e confundiuse o poder do povo com sua liberdade Montesquieu 1979 p 147 A liberdade é o poder das leis não do povo Considerada em relação ao cidadão a liberdade política consiste em síntese na segurança pessoal que este experimenta ao abrigo das leis e de uma Constituição que aponte limites preci sos à ação do governo Para Montesquieu a liberdade política em um cidadão é a tranquilidade do espírito que provém da opinião que tem cada um da própria segurança e para isso é necessário que o governo seja tal que um cidadão não possa temer outro cidadão 5 A importância que Montesquieu atribuiu à separação dos poderes que caracteriza os governos mode rados confi rma a tese de que ao lado da tríplice classifi cação das formas de governo república monar quia e despotismo que corresponde ao uso descritivo e histórico da tipologia há uma outra tipologia mais simples relacionada com o uso prescritivo a qual distingue os governos em moderados e despóticos abrangendo esses últimos não só monarquia mais também república Bobbio 1980 p 127 139 Capítulo 5 Montesquieu a centralidade da moderação na política Silene de Moraes Freire Adolfo Wagner e Douglas Ribeiro Barboza Num Estado isto é numa sociedade em que há leis a liberdade não pode consistir senão em poder fazer o que se deve querer e em não ser constrangido a fazer o que não se deve desejar a liberdade é o di reito de fazer tudo o que as leis permitem se um cidadão pudesse fazer tudo o que elas proibissem não teria mais liberdade porque os outros também teriam tal poder Montesquieu 1979 p 147148 Assim em um regime livre com equilíbrio de poderes sociais e políticos a lei que compreende normas objetivas deveria ampliar a independência indi vidual dos cidadãos ao liberálos do medo e atuar como barreiras de contenção frente à violência Diferente de Hobbes em Montesquieu o desejo de dominação não se inscreve na natureza do homem mas sim quando uma vez estabelecidas as sociedades existem motivos para atacar ou para se defender De outra forma o poder nasceria somente a favor de uma posição social ou política que procura certo poder Não são os direitos naturais que freiam o poder para que seja impossível abusar do poder é preciso que pela disposição das coisas o poder freie o poder Montesquieu 1979 p 148 Assim a liberdade política podese encontrar apenas num governo onde o poder seja moderado moderação esta que depende de uma certa distribuição das forças que resulte da razão e não do acaso Tendo em mente a constituição da Inglaterra cujo governo na visão de Montesquieu tem por objeto a liberdade e no qual o povo é representado por assembleias o pensador francês tentou harmonizar a visão democrática de representação política com o ideal de limitação do poder do Estado afi rman do que esse resultado é conseguido primordialmente através da construção de diversas salvaguardas institucionais e constitucionais no sistema político ou seja a atribuição das três funções do Estado a órgãos diferentes equilibrando os poderes desse Estado pela tripartição em Poder Executivo Poder Legislativo e Poder Judiciário Quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura o poder legislativo está reunido ao poder executivo não existe liberdade pois podese temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado apenas esta beleçam leis tirânicas para executálas tiranicamente Não haverá tam bém liberdade se o poder de julgar não estiver separado do poder legis lativo e do executivo Se estivesse ligado ao poder legislativo o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário pois o juiz seria legislador Se estivesse ligado ao poder executivo o juiz poderia ter a força de um opressor Tudo estaria perdido se ao mesmo homem ou ao mesmo corpo dos principais ou dos nobres ou do povo exercesse esses três poderes o de fazer leis o de executar as resoluções públicas e 140 ELSEVIER Curso de Ciência Política o de julgar os crimes ou as divergências dos indivíduos Montesquieu 1979 p 149 Dessa forma Montesquieu analisa as três forças concretas cuja resultante constitui o governo inglês o povo a nobreza e o monarca O Poder Legislativo é confi ado tanto à nobreza como ao corpo escolhido para representar o povo cada qual com suas assembleias e deliberações à parte e objetivos e interesses separados a Câmara dos Lordes que representa a nobre za e a Câmara dos Comuns que representa o povo O povo não age por si mesmo mas por seus representantes eleitos para a função de criar derrogar ou modifi car as leis do Estado A grande vantagem dos representantes é que são capazes de discutir os negócios públicos O povo não é de modo algum capaz disso fato que constitui um dos graves inconve nientes da democracia Montesquieu 1979 p 150 Com o reconhecimento da Câmara dos Comuns mãe das assembleias eleitas reconheceramse as prin cipais regras do regime representativo moderno tais como se impuseram na Inglaterra assim como nos países civilizados A nobreza é hereditária e constitui uma corporação particular Câmara dos Lordes participante do Poder Legislativo em conjunto com os representan tes do povo nas palavras de Montesquieu Num Estado há sempre pessoas dignifi cadas pelo nascimento pelas riquezas ou pelas honrarias mas se se confundissem com o povo e só tivessem como os outros um voto a liberdade comum seria sua escra vidão e não teriam nenhum interesse em defendêla porque a maioria das resoluções seria contra elas A participação que toma na legislação deve ser portanto proporcional às outras vantagens que têm no esta do o que acontecerá se formar um corpo que tenha o direito de sustar as iniciativas do povo tal como o povo tem o direito de sustar as deles Montesquieu 1979 p 151 Ao monarca cabelhe o poder executivo porque essa parte do governo necessitando quase sempre de ação momentânea é melhor administrada por um do que por muitos O Poder Executivo das coisas que dependem do direito das gentes tem a função de promover a paz e fazer a guerra e todas as outras ações ligadas aos outros Estados O Poder Executivo das coisas que dependem do direito civil tem função julgadora Como observa Montesquieu se não houvesse monarca e se o poder executivo fosse confi ado a certo número de pessoas extraídas do corpo legislativo não haveria mais liberdade pois os dois poderes estariam unidos neles tomando parte algumas vezes ou sempre as mesmas pessoas Montesquieu 1979 p 151 141 Capítulo 5 Montesquieu a centralidade da moderação na política Silene de Moraes Freire Adolfo Wagner e Douglas Ribeiro Barboza Nas análises de Aron 2003 Montesquieu descreve a cooperação desses dois órgãos Executivo e Legislativo bem como analisa a sua separação Mos tra com efeito o que cada um desses poderes pode e deve fazer em relação ao outro O Poder Legislativo coopera com o Poder Executivo deve examinar em que medida as leis foram corretamente aplicadas por este último Quanto à força executora não poderá entrar no debate dos assuntos mas deve estar em relação de cooperação com o Poder Legislativo por aquilo a que Montesquieu chama a sua faculdade de impedir Por fi m o Poder Judiciário deveria estar nas mãos de membros do povo reunidos em tribunais provisórios destinados a resolver sobre disputas envol vendo indivíduos e questões criminais Conforme destaca Montesquieu O poder de julgar não deve ser outorgado a um senado permanente mas exercido por pessoas extraídas do corpo do povo num certo pe ríodo do ano de modo prescrito pela lei para formar um tribunal que dure apenas o tempo necessário tão terrível entre os homens não estando ligado nem a uma certa situação nem a uma certa profi ssão tornase por assim dizer invisível e nulo Não se têm constantemente juízes diante dos olhos e temese a magistratura mas não os magistra dos Montesquieu 1979 p 149 Apesar de que em geral o poder de julgar não deva estar ligado a nenhu ma parte do Legislativo Montesquieu insiste em que os nobres só devam ser julgados pelos seus pares pois Os poderosos estão sempre expostos à inveja e se fossem julgados pelo povo não fruiriam do privilégio que num Estado Livre o mais humil de cidadão possui de ser julgado pelos seu pares Cumpre portanto que os nobres sejam levados não diante dos tribunais ordinários da nação mas diante da parte do corpo legislativo composta de nobres Montesquieu 1979 p 152 Como forma de conter o absolutismo do governo à época num período histórico século XVIII caracterizado pela ascensão da burguesia ao poder que convergia suas forças na tentativa de enfraquecer o poder da nobreza para garantir maior liberdade individual a teoria da Separação dos Poderes consa grada por Montesquieu destacavase pela necessidade de que os poderes Exe cutivo Legislativo e Judiciário fossem exercidos por órgãos distintos harmôni cos e independentes entre si No período absolutista a arbitrariedade com que os governantes agiam tinha respaldo na concentração de poderes nas mãos de uma única pessoa ou um pequeno grupo o que ocasionava o completo desres peito às liberdades individuais 142 ELSEVIER Curso de Ciência Política Aron 2003 no que diz respeito às interpretações sobre a diferença ou cooperação entre o Poder Executivo e o Legislativo demonstra que apesar das aproximações entre Montesquieu e Locke há uma diferença fundamental de intenção entre eles O objetivo de Locke é limitar o pode real mostrar que se o monarca ultrapassar certos limites ou desrespeitar determinadas obrigações o povo fonte verdadeira da soberania tem o direito de reagir A ideia essencial de Montesquieu porém não é a separação de poderes no sen tido jurídico mas o que se poderia chamar o equilíbrio dos poderes sociais condição da liberdade política Aron 2003 p 23 É importante destacar também que a análise da constituição inglesa fei ta por Montesquieu visa redescobrir a diferenciação social a distinção entre as classes e as hierarquias sociais de acordo com a essência da monarquia tal como a defi niu e que é indispensável à moderação do poder Essa formalização cons titucional é a expressão de uma sociedade livre na qual nenhum poder pode alargarse sem limites uma vez que é travado por outros poderes A ideia de consenso social é a de um equilíbrio de forças ou da paz estabelecida pela ação e reação dos grupos sociais mas essa ideia de equilíbrio de poderes sociais condi ção de liberdade é baseada em Montesquieu no modelo de uma sociedade aris tocrática Os bons governos só podiam ser moderados quando o poder freava o poder ou quando nenhum cidadão tivesse medo dos demais e os nobres só se sentiam seguros se seus direitos fossem assegurados pela própria organização política Aron 2003 Dessa forma graças ao equilíbrio entre as classes sociais e ao equilíbrio en tre os poderes políticos a teoria da constituição inglesa em Montesquieu permi te encontrar no mecanismo constitucional de uma monarquia os fundamentos de um Estado moderado e livre no qual a condição para o respeito às leis e para a segurança dos cidadãos é a de que nenhum poder seja ilimitado constituindo se assim num ponto central na sociologia política desse pensador francês 54 O impacto do pensamento de Montesquieu Montesquieu com a sua obra pretendia estabelecer o caminho teórico que permitiria o retorno ao passado senhorial Era um saudosista das velhas monar quias germânicas É exatamente por isso que o impacto de seu pensamento deve ser compreendido em toda sua paradoxalidade A teoria da separação dos poderes alimentou a constituição republicana dos Estados Unidos da América e a Declaração Universal dos Direitos do Ho mem e do Cidadão Daí todos os processos políticos inspirados nesses docu 143 Capítulo 5 Montesquieu a centralidade da moderação na política Silene de Moraes Freire Adolfo Wagner e Douglas Ribeiro Barboza mentos incluíram essa ideia Ao mesmo tempo porém a Restauração Francesa incorporou de Montesquieu o regime bicameral O aspecto central do argumento liberal é a velha lição de Montesquieu não basta decidir sobre a base social do poder é igualmente importante deter minar a forma de governo e garantir que o poder mesmo legítimo em sua origem social não se torne ilegítimo pelo eventual arbítrio do seu uso No cerne da posição liberal se encontra sempre uma dose inata de desconfi ança ante o poder e sua inerente propensão à violência Por isso o primeiro princípio liberal é o constitucionalismo isto é o reconhecimento da constante necessidade de limitar o fenômeno do poder O mundo liberal sustentase na sociedade colocada sob o império da lei onde todo poder possa ser experimentado como autoridade e não como violência Fecunda e original a teoria de Montesquieu marcou decididamente a his tória do Pensamento Político Ela comprova de modo inconteste que as ideias sobrevivem ao seu tempo e que são recebidas por nós como parte de nossa atua lidade Isso não signifi ca que os clássicos se coloquem fora da história conforme observou Weffort 1991 Pelo contrário são com frequência os que pensaram de modo mais profundo os temas de sua própria época E foi precisamente por que pensaram de modo radical o seu tempo que sobreviveram a ele e chegaram até nós Os clássicos não são atemporais Eles são parte da nossa atualidade porque são parte de nossas raízes São por assim dizer a declaração da nossa historicidade Weffort 1991 p 7 Desse modo a leitura da obra de Montes quieu constitui momento necessário da base na qual se enfocarão as mais im portantes interpretações dos grandes problemas teóricos da política moderna 55 Perguntas para reflexão 1 Em essência sobre o que Montesquieu pretendia chamar a atenção quan do escreveu Cartas persas 2 De que forma a crítica ao absolutismo francês revelase no texto Consi derações sobre a grandeza e decadência dos romanos 3 Qual a relação que Montesquieu constrói entre os homens em seu estado de natureza a vida em sociedade e a necessidade das leis 4 Para Montesquieu ciência e religião relacionamse e determinamse mu tuamente 5 Quais seriam as principais características do conhecimento científico para o autor 144 ELSEVIER Curso de Ciência Política 6 O princípio é a base conceitual de análise dos governos para Montes quieu 7 Por que a preocupação com a instituição de governos moderados é con siderada um elemento central da obra de Montesquieu 8 Qual o contexto histórico em que Montesquieu escreve O espírito das leis 9 Analise a classificação dos regimes políticos proposta por Montesquieu 10 Analise os três tipos de governo a república a monarquia e o despotismo que Montesquieu distinguiu em Do espírito das leis Bibliografia ALTHUSSER Louis Montesquieu e a História Tradução Luiz Cary e Luísa Costa Lisboa Presença 1982 ANDERSON Perry Linhagens do Estado Absolutista Tradução de João Rober to Martins Filho et alii São Paulo Brasiliense 1985 ARON Raymond As etapas do pensamento sociológico Tradução de Sérgio Bath São Paulo Martins Fontes Brasília Ed UnB 1982 BOBBIO Norberto A Teoria das Formas de Governo Brasília UnB 1980 CHEVALIER JeanJaques As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias Rio de Janeiro Agir 1980 CORVISIER André História Moderna Tradução de Rolando Roque da Silva e Carmen Olívia de Castro Amaral São Paulo Rio de Janeiro Difel 1976 FINLEY M I O legado da Grécia Uma nova avaliação Tradução de Yvette Vieira P de Almeida Brasília UnB 1998 HUISMAN Denis Dir Dicionário dos fi lósofos Tradução de Cláudia Berli ner et alii São Paulo Martins Fontes 2001 LADURIE Emmanuel Le Roy O Estado Monárquico Tradução de Maria Lú cia Machado São Paulo Cia das Letras 1994 MONTESQUIEU Charles de Secondat Baron de Do espírito das leis Tradu ção de Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Martins Rodrigues São Paulo Abril Cultural 1979 Col Os Pensadores Cartas persas Tradução de Renato Janine Ribeiro São Paulo Editora Pauliceia 1991 Do espírito das leis São Paulo Martins Fontes1996 Considerações sobre as causas da grandeza e decadência dos romanos Tradução de Gilson César Cardoso de Souza São Paulo Paumape 2002 145 Capítulo 5 Montesquieu a centralidade da moderação na política Silene de Moraes Freire Adolfo Wagner e Douglas Ribeiro Barboza PESSANHA José Américo Motta LAMOUNIER Bolívar Montesquieu 16891755 Vida e Obra In Montesquieu Do espírito das leis 2 ed São Paulo Abril 1979 Col Os Pensadores STAROBINSKI Jean Montesquieu Tradução de Tomás Rosa Bueno São Paulo Companhia das Letras 1990 CHÂTELET François et al História das ideias políticas Rio de Janeiro Jorge Zahar 1985 QUIRINO Célia Galvão SOUZA Maria Teresa Sadek R de O pensamento político clássico Maquiavel Hobbes Locke Montesquieu Rousseau São Paulo T A Queiroz Editor 2007 ALBUQUERQUE J A Gilhon Montesquieu sociedade e poder In WEF FORT Francisco org Os clássicos da política São Paulo Ática 2003 p 111121 BORON Atílio A org Filosofi a Política contemporânea controvérsias sobre civilização império e cidadania Tradução de Maria Encarnación Moya Bue nos Aires Consejo Latinoamericano de Ciências Sociales São Paulo De partamento de Ciência Política Faculdade de Filosofi a Letras e Ciências Humanas Universidade de São Paulo 2006 TOUCHARD Jean org História das ideias políticas Tradução de Mário Bra ga Lisboa Publicações EuropaAmérica 1970 v 4 WEFFORT Francisco org Os clássicos da política São Paulo Ática 1991 v 2 Screw power screw Recommended power rating F H E C D B A J Capítulo 6 Jean Jacques Rousseau da inocência natural à Sociedade Política Christiane Itabaiana Martins Romêo1 61 Introdução Iniciase agora a leitura de um texto escrito sem maiores pretensões Afi nal tratase de um texto sobre JeanJacques Rousseau um dos mais complexos polêmicos e brilhantes pensadores da modernidade JeanJacques Rousseau nasceu e escreveu suas obras durante o século XVIII O chamado Século das Luzes foi assim denominado por ser o corolário das mudanças de mentalidade e de comportamento iniciadas com o Renasci mento século XV e enriquecidas com a produção intelectual do século XVII sobretudo com a formulação das ideias de liberdade e igualdade como direi tos naturais inatos à natureza humana No século XVIII a consolidação dessas Doutora e Mestre em Ciência Política pelo IUPERJ Graduada em Ciências Sociais pela UFF e Di reito pela PUCRio Professora Adjunta do IBMECRJ Contato christianeibmecrjbr 148 ELSEVIER Curso de Ciência Política ideias impulsionaram as grandes revoluções e impuseram o fi m do antigo regime na França As Luzes foram portanto o período de grande efervescência intelectual que deu origem ainda no século XVII ao Iluminismo movimento comprometi do com a crença na razão humana que supunha o homem como sujeito e dono de sua própria história que valorizava a razão em detrimento do teocentrismo da Idade Média chamado em oposição às Luzes período das Trevas Para os pensadores da época as questões humanas deveriam ser submeti das ao império da razão Aproveitandose de todas as conquistas renascentis tas os iluministas valorizavam preceitos políticos da Antiguidade clássica como a organização da polis grega sobretudo o elogio à racionalidade humana e sua aplicação na gestão da Cidade Chevallier 1983 A infl uência platônica é sensível em todos os ideólogos do movimento A tendência de valorizar o conhecimento e a razão na gestão de assuntos públicos em clara referência ao fi lósoforei de Platão é característica do Iluminismo e não se restringia somente a pensar a realidade política a aspiração do Iluminismo não era simplesmente a de que Reis e Monarcas se pusessem a es crever tratados de fi losofi a E sim que a praticassem Que a sabedoria e a razão governassem de fato Salinas 1987 p 77 Em relação à riqueza e à pluralidade de ideias do movimento iluminista Diderot um de seus mais importantes personagens esclarecia Cada século tem um espírito que o caracteriza o espírito do nosso parece ser o da liberdade apud Salinas 1987 p 16 A referência à liberdade não se resumiria na frase acima apenas ao con ceito valorizado pelos pensadores dos séculos XVII e XVIII mas também à mul tiplicidade de pontos de vistas e de discussões que caracterizaram sobretudo a Paris daquela época A convergência de suas obras consistia portanto apenas no elogio da razão e na crítica sistemática aos dogmas religiosos Além de Diderot os principais nomes do movimento são personagens que viveram e produziram entre 1680 e 1780 Voltaire DAlembert Montesquieu e JeanJacques Rousseau JeanJacques Rousseau fundou no século XVIII tradições inspirou revo luções mudou a forma de pensar o mundo os homens e as instituições Enfi m legou aos séculos que se seguiram novas maneiras de organização política Es tado povo e soberano passaram a ser tratados como sinônimos e dessa abor dagem então surgiram novas percepções sociais políticas e jurídicas a teoria constitucional assim como a elaboração das constituições passaram a ter como parâmetro a construção da sociedade política a vontade geral e a tarefa especial do 149 Capítulo 6 Jean Jacques Rousseau da inocência natural à Sociedade Política Christiane Itabaiana Martins Romêo legislador O governo até então nas mãos de um soberano corporifi cado na fi gu ra do rei passou a ser o empregado do povo este sim um corpo moral e político o verdadeiro soberano que constitui o Estado A fi losofi a política de JeanJacques Rousseau apesar de ter mais de du zentos anos de idade permanece atual viva e vibrante Tratase nas palavras de Ernest Cassirer 1980 p 379 de um movimento que continuamente se renova um movimento de tal força e paixão que parece quase impossível diante dele refugiarse na quietude da contemplação histórica objetiva Constantemente ele se impõe a nós e de modo constante nos arrasta consigo Cassirer tem razão O pensamento de Rousseau nos arrasta consigo Mas também seria possível dizer que a humanidade tem arrastado em sua história o pensamento rousseauniano ao perpetuar as desigualdades sociais econômicas e políticas Se Rousseau condenou o renascimento das ciências e das artes tal como aconteceu imagine o leitor o que diria hoje do progresso científi co que apesar de trazer alguns benefícios à vida humana fundamentalmente colabo ram para agravar as relações entre os homens o desenvolvimento econômico e social gera bemestar mas também a destruição do meio ambiente a inter net aproximou as distâncias mas facilitou a disseminação de preconceitos e de difamações anônimas O que dizer dos avanços no estudo da genética Caro leitor seriam necessárias inúmeras páginas para descrever os benefícios que o progresso trouxe à vida humana e mais tantas páginas para mostrar como cada um desses benefícios deu origem a malefícios Não se trata de falar mal do progresso ou condenar a ciência Rousseau apressouse a esclarecer esse ponto em resposta às críticas que recebera de seus pares Tratase de investigar por que o progresso em vez de ajudar o homem fez surgir a desigualdade A resposta vem com a redação do Discurso sobre a Ori gem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens Ali Rousseau mostra como o homem agindo em desacordo com sua natureza levado pelo acaso a consti tuir relações sociais e a viver em sociedade tornouse um ser egoísta escravo de suas vontades e por fi m constituiu um mundo desigual e infeliz Como resolver a questão Já que restaurar a inocência original é impossível já que o tempo não anda para trás é necessário reconstruir a natureza humana retirando dela tudo o que foi inapropriadamente incorporado Como fazer isso Reconstruindo o homem tornandoo um novo ser desprovido dos defeitos associados paula tinamente à sua natureza A esse novo homem Rousseau chamou de cidadão um ser humano desnaturado que só subsiste na sociedade política que compõe o povo soberano de si mesmo 150 ELSEVIER Curso de Ciência Política Rousseau surpreendeu o século em que viveu Na era da razão trouxe paixão ao pensamento enquanto todos falavam de progresso foi o primeiro a tentar descrever os estágios da história da sociedade humana Durkheim conce deulhe o título de precursor da sociologia LéviStrauss disse ser ele o fundador das ciências do homem Sem dúvida seus escritos são esboço de etnografi a e antropologia Dizem os seus críticos que sua obra se confunde com sua estória de vida que refl ete as difi culdades pelas quais passou Sem dúvida Rousseau recusava a imposição dos valores iluministas a prevalência da forma sobre a essência Nesse sentido sua vida e sua obra não se separam É contudo necessário dizer que a obra de Rousseau transcende as experiências de seu autor transcende o tempo em que foi escrita e se apresenta como ponto de partida para a refl exão sobre a vida em sociedade hoje e sempre 62 Vida e obra de JeanJacques Rousseau JeanJacques Rousseau nasceu em 1712 em Genebra Suíça Sua mãe Su zanne Bernard morreu logo após deixandoo recémnascido na companhia do pai e do irmão François 10 anos mais velho Seu pai Isaac Rousseau era relojoeiro e embora tivesse alguns bens de família não pertencia à aristocracia Rousseau foi educado junto aos livros e distante das recepções nos salões da alta sociedade A sensibilidade de Rousseau em relação às relações humanas bem como a fértil imaginação são reputadas ao intenso hábito de leitura Ainda menino Rousseau já havia esgotado a biblioteca de sua mãe e partia para a leitura de clássicos como Bossuet Ovídio e Fontenelle Rousseau 1978 Ainda jovem foi entregue ao seu tio materno e juntamente com seu pri mo foi enviado à cidade de Bossey onde prosseguiria sua educação na casa do pastor Lambercier Dent 1996 A infl uência do protestantismo calvinista em sua formação foi sensível e sua formação cristã independentemente da religião adotada chegou a se converter ao catolicismo e depois de novo ao protestan tismo foi um dos fatores que o levaram a discutir e se indispor com os outros pensadores iluministas Ao contrário de seus contemporâneos Rousseau não negava a existência de um Deus regente do universo Salinas 1987 Seu maior antagonista foi Voltaire Após ter sido apresentado a diversos ofícios tanto em Genebra como em Paris Rousseau descobriu sua paixão pela música Chegou a escrever um novo sistema de notação musical rejeitado pela Academia Aos poucos foi se des cobrindo como escritor e se notabilizando como um dos mais polêmicos pen 151 Capítulo 6 Jean Jacques Rousseau da inocência natural à Sociedade Política Christiane Itabaiana Martins Romêo sadores de sua época ora surpreendendo com obras de grande sucesso entre o público ora vendo seus escritos terminantemente proibidos e sua liberdade ameaçada Em 1742 depois de algumas decepções amorosas e profi ssionais seus escritos e suas composições atraíam grandes críticas em vez de grande pú blico conheceu Condillac e Diderot organizadores da Enciclopédia Os enciclopedistas chegaram a ser quase sinônimo de iluministas A Enci clopédia cujo título original era Enciclopédia ou Dicionário Raciocinado das Ciências das Artes e dos Ofícios por uma Sociedade de Homens de Letras Salinas 1987 foi publicada em Paris a partir de 1751 até 1780 incluindose os períodos em que fora proibida Sua concepção partira de um convite feito a Diderot para traduzir uma enciclopédia britânica para o francês Decepcionado com o conteúdo dos verbetes Diderot conseguiu convencer os editores a realizar um projeto mais amplo e mais crítico O projeto de Diderot foi logo abraçado pela intelectualida de da época e contou com o apoio entre outros de Voltaire A colaboração de Rousseau à Enciclopédia se restringiu aos verbetes sobre música e ao Discurso sobre Economia Política Foi entretanto em 1749 que Rous seau começou a conceber a primeira de suas grandes obras O Discurso sobre as Ciências e as Artes deu início à refl exão de Rousseau sobre a humanidade e inau gurou uma série de escritos coerentes entre si e que expuseram ao mundo as angústias de Rousseau sobre o relacionamento humano em sociedade e fi zeram dele um dos mais se não o mais complexo pensador de sua época Segundo o próprio autor ao tomar contato com o enunciado da questão proposta pela Academia de Dijon para o prêmio de Moral publicado em um jornal francês em 1749 sentiuse profundamente tocado Cassirer 1980 No Discurso sobre as Ciências e as Artes premiado pela Academia de Dijon publicado em 1750 Rousseau apresenta o germe de seu pensamento ao res ponder negativamente à questão proposta Se o restabelecimento das ciências e das artes contribuiu para purifi car os costumes e defender que o renasci mento das ciências e das artes em vez de ajudar a aprimorar os homens colabo rou para a corrupção dos costumes sociais e a decadência da humanidade Esse ponto de vista se polêmico nos dias atuais na época do Iluminismo soou como blasfêmia A partir daí a fi liação intelectual de Rousseau passou a ser um enigma Seria ele um iluminista ou não JeanJacques Rousseau foi sem dúvida um entusiasta das propostas ilu ministas entre elas a nova atitude do homem em relação ao mundo que passava a ser tido como vasto campo de exploração científi ca passível de ser descober to por meio da capacidade humana de conhecer e avaliar O próprio Rousseau explorou o mundo que o cercava mas ao mesmo tempo não poupou críticas à 152 ELSEVIER Curso de Ciência Política maneira como a percepção humana se apropriava do mundo Em relação aos en sinamentos do passado essenciais ao Príncipe com virtù de Maquiavel no século XVI e ao progresso que o conhecimento pode trazer Rousseau é enfático quanto mais acumulamos novos conhecimentos tanto mais afastamos os meios de adquirir o mais importante de todos é que num certo sentido à força de estu dar o homem tornamonos incapazes de conhecêlo Rousseau 1978a p 227 Conforme dito anteriormente Rousseau é um pensador que segue os mes mos padrões em suas obras E os valores passados em seus escritos nem sempre condizem com os ideais iluministas O trecho acima traz um desses padrões A abordagem que o homem faz de si mesmo e das instituições sociais estaria segundo o autor permeada de valores exógenos à natureza humana Essa seria fundamentalmente a razão pela qual o renascimento das ciências e das artes teria contribuído para a decadência humana A partir de então as ideias expostas no Discurso sobre as Ciências e as Artes se tornaram críticas complexas e contundentes aos costumes e à vida social Em 1753 a Academia de Dijon propôs uma nova questão para o concurso de 1754 O tema qual a origem da desigualdade entre os homens e será ela permitida pela lei natural tornouse em 1755 o Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens texto no qual Rousseau fortaleceu as críticas à ordem e aos valores vigentes em sua época Embora seja considera do um texto mais consistente que o primeiro Discurso desta vez Rousseau não recebeu o prêmio da Academia de Dijon O Discurso sobre a Desigualdade entre tanto despertou muito mais polêmica do que o primeiro A resposta de Rousseau à questão custoulhe as primeiras de uma série infi nita de críticas Afi nal das fi leiras do Iluminismo surgia um inimigo do progresso mais perigoso do que o inimigo comum até então a Igreja Rousseau sustentou que a desigualdade não é autorizada pela lei natural Ao contrário ela decorre da história e é a fonte absoluta dos males sociais Com uma certa ironia escreveu Considerando aquilo em que nos teríamos tornado se tivéssemos sido abandonados a nós mesmos devemos aprender a bendizer aquele cuja vida benfazeja corrigindo nossas instituições e dandolhes uma posi ção estável preveniu as desordens que deveriam resultar delas e fez com que de nossa felicidade nascessem os meios que pareciam dever acumular nossas misérias Rousseau 1978a p 232 Diagnosticar a origem e a legitimidade da desigualdade não seria para Rousseau tarefa isolada Mais do que simplesmente apontar a origem da desi gualdade caberia resolver uma outra questão como acabar com elas A resposta 153 Capítulo 6 Jean Jacques Rousseau da inocência natural à Sociedade Política Christiane Itabaiana Martins Romêo aparece sob a forma de duas grandes obras proibidas e queimadas nos grandes centros europeus na década de 1760 até em Paris a Cidade Luz e em Genebra cidade natal de Rousseau elogiada por ele como o locus da cidadania são elas o Emílio e O Contrato Social Tanto no Emílio quanto no Contrato Social ambos publicados em 1762 a motivação de Rousseau era a mesma qual seja com base no conhecimento de como foi estabelecida a vida social reformular os valores humanos e por fi m propor a reconstrução das relações sociais em acordo com a natureza humana A receita para reconstruir os laços entre os homens consistia para Rous seau em duas grandes reformas uma na política na consciência cívica do ho mem e outra na educação uma dependendo da outra Nesses dois livros o au tor tratou dos homens como seres livres e soberanos e indicou como poderiam ser mais autênticos e autônomos No Contrato Social ao descrever a sociedade movida pela vontade geral o autor ressaltou a importância da educação para a instauração e manutenção da soberania No Emílio discutiu as bases dessa edu cação apontando como cenário do processo educador o mundo público E as duas obras só fazem sentido se lidas a partir dos pressupostos apresentados no Discurso sobre a Desigualdade A relação entre as principais obras de Rousseau aparece claramente na Carta a Beaumont de 1763 na qual Rousseau se defende das acusações que foram feitas contra ele por Christophe de Beaumont arcebispo de Paris e que acabaram por condenar o Emílio e o Contrato Social O princípio fundamental de toda moral é de que o homem é um ser naturalmente bom amando a justiça e a ordem que não há perver sidade original no coração humano e que os primeiros movimentos da natureza são sempre retos Fiz ver que a única paixão que nasce com o homem o amor de si é uma paixão em si mesma indiferente ao bem e ao mal que não se torna boa ou má a não ser por acidente e se gundo as circunstâncias nas quais se desenvolve Mostrei que todos os vícios que se imputam ao coração humano não lhe são naturais fi z ver como pela alteração sucessiva de sua bondade natural os homens se tornam afi nal o que são o amor de si não é mais uma paixão simples mas tem dois princí pios a saber o ser inteligente e o ser sensitivo Este último amor o amor da ordem que se remete ao da alma desenvolvido e tornado ativo traz o nome de consciência mas a consciência não se desenvolve e não age a não ser com as luzes do homem É somente por essas luzes que ele chega a conhecer a ordem e é somente quando a conhece que a consciência o leva a amála A consciência é pois nula no homem que 154 ELSEVIER Curso de Ciência Política nada comparou e que não viu suas relações Nesse estado o homem só conhece a si mesmo ele não vê seu bemestar oposto nem conforme ao de ninguém não odeia nem ama nada limitado exclusivamente ao instinto físico é nulo é animal foi o que fi z ver em meu Discurso sobre a desigualdade Quando os homens começam a lançar os olhos sobre os seus semelhantes começam também a ver suas relações e as relações das coisas a adquirir ideias de conveniência de justiça e de ordem En tão eles têm virtude e se também têm vícios é porque seus interesses se cruzam e sua ambição desperta à medida que suas luzes se estendem Mas enquanto há menos oposição de interesses do que concurso de luzes os homens são essencialmente bons Quando o amor de si posto em fermentação se torna amor próprio tornando o universo inteiro necessário a cada homem tornaos todos inimigos natos uns dos outros e faz com que ninguém encontre seu bem a não ser no mal de outrem Eis como o homem sendo bom os indivíduos tornamse malvados É a buscar como seria preciso para impedilos de assim se tornar que consagrei meu livro Rousseau apud Salinas 1989 p 1214 É portanto da leitura atenta de pelo menos duas obras o Discurso sobre a Desigualdade e O Contrato Social que o leitor pode extrair o pensamento político de Rousseau os preceitos fi losófi cos que guiam todo o pensamento a opinião sobre a decadência da vida humana e também a prescrição e por que não dizer a expressão do desejo de um mundo constituído sobre bases mais solidárias e humanas Na primeira o autor analisa a condição do homem em sociedade na segunda prescreve com o mesmo cuidado de um médico a tratar de seu paciente enfermo as ações políticas que poderiam ser a saída para os males da humanidade Além dos textos já citados devese ressaltar que Rousseau escreveu di versas obras sobre notações musicais tais como Projeto para uma Nova Notação Musical 1742 peças teatrais e óperas como Narciso 1742 e O adivinho da aldeia 1752 sobre o tema da educação e também cartas e projetos políticos como as Cartas da montanha 1764 em resposta às Cartas do campo de Tronchin e as Con siderações sobre o governo da Polônia 1770 respectivamente No fi m de sua vida dedicouse a obras introspectivas nas quais analisou sua vida e suas obras Con fi ssões 1770 Rousseau juiz de JeanJacques 1776 e o inacabado Devaneios de um caminhante solitário 1776 demonstram a sensibilidade e a genialidade romântica de um autor que procurando as razões da infelicidade humana traz emoção para o mundo da política Morreu em 2 de julho de 1778 depois de ter vivido 155 Capítulo 6 Jean Jacques Rousseau da inocência natural à Sociedade Política Christiane Itabaiana Martins Romêo com Thérèse de Levasseur com quem se casou em 1768 desde 1745 e de ter abandonado os fi lhos tidos dessa união1 63 Ficção e hipótese reconstrução do surgimento da vida social Para que o leitor entenda a teoria política de Rousseau o que pensa dos homens e o que preconiza para superar a situação de desigualdade e demais infortúnios humanos é necessário conhecer conceitos centrais que por sêlos sempre inspiraram e constituíram a obra do autor JeanJacques faz parte da escola jusnaturalista moderna Assim como Tho mas Hobbes e John Locke Rousseau fez uso do método jusnaturalista com base no qual é possível reconstruir racional e fi cticiamente a história da humanida de pensando os homens em um momento histórico impreciso imaginariamen te originário no qual as relações sociais ainda não teriam sido instituídas Em outras palavras os jusnaturalistas modernos propunham a análise do homem natural sem a coação de laços sociais como base para o entendimento dos problemas da sociedade moderna na qual viviam Bobbio 1987 O método racional utilizado por Rousseau para analisar a trajetória huma na desde os primórdios na natureza até a situação degradada da sociedade ci vil consistia em reconstruir hipoteticamente o passado originário do homem e compreender por que ele abandonara suas características instintivas naturais e passara a se relacionar socialmente com outros de sua espécie criando vínculos que acabaram por escravizálo e afastálo de sua verdadeira natureza humana e fundamentalmente da felicidade natural Neste ponto perguntase como seria possível realizar a reconstrução da trajetória humana E a resposta está nas palavras fi cção e hipótese Imagine se uma estória e como tal que não se pretenda verdadeira mas fi ctícia e hipo tética Em suma pense o leitor em uma fi cção e suponha que hipoteticamente possa ter acontecido Para isso é necessário abandonar os referenciais históricos e temporais e deixar livre a imaginação Paul ArbousseBastide esclarece que Rousseau é infl uenciado pelos fi lósofos enciclopedistas e pelas ciências naturais e históricas2 dos quais mais do que as ideias aproveita o método recons truir racionalmente a história humana em lugar de se basear exclusivamente 1 Há muitos comentadores de Rousseau que resumem sua biografi a e a cronologia de suas obras Des taquemse Dent 1996 e a Coleção Os Pensadores Rousseau 1978 2 Segundo ArbousseBastide Os fi lósofos como Diderot e Condillac os juristas como Grócio e Pufendorf tinham destruído a ideia tradicional de uma criação do estado social por Deus e difundiram as ideias de uma evolução natural do homem e das sociedades de sua organização progressiva da barbárie para a civilização Rousseau 1978 p 203 156 ELSEVIER Curso de Ciência Política nos dados da geografi a da erudição e da teologia por aí podese fazer um jul gamento dessa história justifi candoa ou condenandoa ArbousseBastide in Rousseau 1978 p 203 Toda a obra de Rousseau além de oferecer ao leitor chance de usar a ima ginação convidao a raciocinar sobre a fi cção e a hipótese e confrontálas com as situações concretas que o ambiente social de sua época apresenta Co mecemos pois por afastar todos os fatos pois eles não se prendem à questão Não se devem considerar as pesquisas como verdades históricas mas so mente como raciocínios hipotéticos e condicionais mais apropriados a esclare cer a natureza das coisas do que a mostrar a verdadeira origem Rousseau 1978a p 236 Para Paul ArbousseBastide o método de Rousseau é claro para alcançar o homem natural com o qual se deve reconstruir a sociedade impõese isolar nele tudo o que existe de social Rousseau 1978a p 229 n 27 O pensador afi rma que para falar sobre a origem da desigualdade entre os homens é preciso conhecer o pró prio homem tarefa bastante difícil levandose em conta todas as mudanças produzidas na sua constituição original pela sucessão do tempo e das coisas e a necessidade de separar o que pertence à sua própria essência da quilo que as circunstâncias e seus progressos acrescentaram a seu estado primi tivo Rousseau 1978a p 227 sob pena de incorrer no erro de atribuir ao homem natural características próprias do homem social Rousseau busca portanto separar o que há de original na natureza hu mana do que há de artifi cial de modo a descobrir a lei natural e verifi car se a desigualdade entre os homens é por ela legitimada não se constitui empreendimento trivial separar o que há de origi nal e de artifi cial na natureza atual do homem e conhecer com exatidão um estado que não mais existe que talvez nunca tenha existido que provavelmente jamais existirá e sobre o qual se tem contudo a ne cessidade de alcançar noções exatas para bem julgar de nosso estado presente Rousseau 1978a p 228229 Há de se imaginar um mundo habitado por seres que somente se relacio nam dentro dos limites impostos pelas necessidades naturais o estado de na tureza Um esforço a mais imaginar a completa inexistência de vínculos entre esses seres a não ser aqueles necessários à sobrevivência alimentação e procria ção por exemplo Para o homem selvagem Sua imaginação nada lhe descreve o coração nada lhe pede Suas mó dicas necessidades encontramse com tanta facilidade ao alcance de mão e encontrase ele tão longe do grau de conhecimento necessário 157 Capítulo 6 Jean Jacques Rousseau da inocência natural à Sociedade Política Christiane Itabaiana Martins Romêo para desejar alcançar outras maiores que não pode ter nem previdência nem curiosidade Rousseau 1978a p 244 Devese ainda imaginar que a falta de vínculos não signifi que violência mas simplesmente o isolamento O homem assim originalmente concebido não precisa e não conhece a sociedade O homem se relaciona instintivamente com a natureza e dela retira a sobrevivência E outros homens fazem parte dessa natu reza e se comportam da mesma maneira Os vínculos sociais além de inexisten tes não são necessários E mesmo isolado o homem vive feliz naturalmente em paz totalmente de acordo com sua natureza No estado de natureza portanto o homem é bom porque não conhece o mau Parece a princípio que os homens nesse estado de natureza não ha vendo entre si qualquer espécie de relação moral ou deveres comuns não poderiam ser nem bons nem maus ou possuir vícios e virtudes de modo que se poderia dizer que os selvagens não são maus pre cisamente porque não sabem o que é ser bons pois não é nem o desen volvimento das luzes nem o freio da lei mas a tranquilidade das pai xões e a ignorância do vício que os impede de proceder mal Rousseau 1978a p 251 252 Aqui Rousseau dialoga com Hobbes e afi rma que a falta de bondade não signifi ca que haja maldade na natureza humana E se viesse a ferir a outrem o ato seria totalmente amoral e instintivo já que não haveria noção de virtudes e vícios eis o bom selvagem Sabese que a dicotomia naturalartifi cial é essencial na obra de Rousseau e é o que condiciona a natureza e o comportamento humanos A extrema desigualdade na maneira de viver o excesso de ociosida de de uns o excesso de trabalho de outros a facilidade de irritar e de satisfazer nossos apetites e nossa sensualidade os alimentos muito re buscados dos ricos a má alimentação dos pobres os excessos de toda sorte os transportes imoderados de todas as paixões as fadigas e o esgotamento do espírito as tristezas e os trabalhos semnúmero pelos quais as almas são perpetuamente corroídas são todos indícios funestos de que a maioria de nossos males é obra nossa e que teríamos evitado quase todos se tivéssemos conservado a maneira simples uni forme e solitária de viver prescrita pela natureza Se ela nos destinou a sermos sãos ouso assegurar que o estado de refl exão é um estado contrario à natureza e que o homem que medita é um ser depravado Rousseau 1978a p 240241 158 ELSEVIER Curso de Ciência Política Para Rousseau 1978a p 241 se faria a história das doenças humanas se guindo a das sociedades civis e devese atentar para não confundir o homem selvagem com os homens que temos diante dos olhos E se agora o leitor se perguntar como foi que o homem acabou por viver em sociedade a resposta mais uma vez é encontrada em uma palavra mu tabilidade A natureza humana é mutável e assim o sendo resta saber o que ocasionou a mudança Para isso é preciso que o leitor continue em seu esforço fi ccional e imagine como seria a vida dos seres humanos em estado de natureza antes de se constituir a sociedade A descrição do estado de natureza revela a fi cção por trás da obra de Rousseau 64 Bênção e maldição dois momentos do estado de natureza Para Rousseau diferentemente de Thomas Hobbes e John Locke o esta do de natureza3 dividese em dois momentos o primeiro dos quais seria o locus no qual a felicidade humana se constituiria plenamente O bom selvagem é o habitante do primeiro momento que assim foi descrito por Rousseau Concluamos que errando pelas fl orestas sem indústrias sem palavra sem domicílio sem guerra e sem ligação sem qualquer necessidade de seus semelhantes bem como qualquer desejo de prejudicálo talvez sem sequer reconhecer alguns deles individualmente o homem selva gem sujeito a poucas paixões e bastandose a si mesmo não possuía senão os sentimentos e as luzes próprias desse estado no qual só sentia suas verdadeiras necessidades só olhava aquilo que acreditava ter in teresse de ver não fazendo sua inteligência maiores progressos que a vaidade Se por acaso descobria qualquer coisa era tanto mais incapaz de comunicála quanto nem mesmo reconhecia os próprios fi lhos A arte perecia com o inventor Então não havia nem educação nem pro gresso as gerações se multiplicavam inutilmente e partindo cada uma do mesmo ponto desenrolavamse os séculos com toda a grosseria das primeiras épocas a espécie já era velha e o homem continuavam sem pre criança Rousseau 1978a p 256257 No primeiro momento do estado de natureza os homens teriam vivido isoladamente de acordo com seus instintos 3 A palavra estado não representa aqui nenhuma conotação de poder público O estado de natureza é a expressão usada para defi nir uma situação na qual os homens viveriam apenas de acordo com sua razão seus instintosdesejos e guiados por direitos naturais Para Th omas Hobbes a vida em estado de natureza é algo a ser superado e para John Locke a explosão demográfi ca e a acumulação de riquezas ajudaram a causar a escassez de recursos e o advento da sociedade civil Weff ort 1989 159 Capítulo 6 Jean Jacques Rousseau da inocência natural à Sociedade Política Christiane Itabaiana Martins Romêo Despojando esse ser de todas as faculdades superfi ciais que ele pôde adquirir por meio de progressos muito longos considerandoo numa palavra tal como deve ter saído das mãos da natureza vejo um animal menos forte do que uns menos ágil do que outros mas em con junto organizado de modo mais vantajoso do que os demais Vejoo fartandose sob um carvalho refrigerandose no primeiro riacho en contrando seu leito ao pé da mesma árvore que lhe forneceu o repasto e assim satisfazendo todas as suas necessidades Os homens dispersos em seu seio da terra observam imitam a sua indústria e assim elevamse até o instinto dos animais com a van tagem de que se cada espécie não possui senão o seu próprio instinto o homem não tendo talvez nenhum que lhe pertença exclusivamente apropriase de todos igualmente se nutre da maioria dos vários ali mentos que os outros animais dividem entre si e consequentemente encontra sua subsistência mais facilmente que qualquer deles poderá conseguir Rousseau 1978a p 238 A inexistência nesse momento de relações sociais religiosas éticas afe tivas familiares ou quaisquer outras impediam a coação e os homens não se obrigavam a nada nem deviam obediência a ninguém a não ser à própria razão E esta é uma das mais importantes características do homem rousseauniano a racionalidade4 A razão é contudo antecedida por dois princípios da moral natural que segundo Rousseau caracterizando a natureza humana infl uenciam diretamente a conformação do homem moral meditando sobre as primeiras e mais simples operações da alma humana creio nela perceber dois princípios anteriores à razão um dos quais interessa profundamente ao nosso bemestar e à nossa conserva ção e o outro nos inspira uma repugnância natural por ver perecer ou sofrer qualquer ser sensível e principalmente nossos semelhantes Do concurso e da combinação que nosso espírito seja capaz de fazer desses dois princípios sem que seja necessário nela imiscuir o da sociabili dade parecemme decorrer todas as regras do direito natural regras essas que a razão depois é forçada a restabelecer com outros funda mentos quando por seus desenvolvimentos sucessivos chega a ponto de sufocar a natureza Rousseau 1978a p 230231 Os princípios a que Rousseau se referia no trecho acima são os da conser vação e da piedade Do primeiro surgiria juntamente com o desenvolvimento 4 Aliás o homem racional é característico dos autores jusnaturalistas contratualistas Tanto Th omas Hobbes como John Locke partem também desse pressuposto importante para o desenvolvimento pos terior do individualismo liberal É uma característica da Era Moderna Bobbio 1987 160 ELSEVIER Curso de Ciência Política das relações sociais o egoísmo e do último o altruísmo O instinto de conserva ção seria natural ao homem que buscando conservarse a si mesmo não neces sariamente faria mal aos outros não se é mais obrigado a fazer do homem um fi lósofo em lugar de fazêlo um homem seus deveres para com outrem não lhe são unica mente ditados pelas lições tardias de sabedoria e enquanto resistir ao impulso anterior natural da comiseração jamais fará mal a um outro homem nem mesmo a um ser sensível exceto no caso legítimo em que encontrandose em jogo sua conservação é obrigado a dar preferência a si mesmo Parece com efeito que se estou obrigado a não praticar qualquer mal para com meu semelhante é menos por ser ele um ser razoável do que por ser um ser sensível qualidade que sendo comum ao animal e ao homem pelo menos deve dar a um o direito de não ser maltratado inutilmente pelo outro Rousseau 1978a p 231 A conservação está relacionada ao amor de si Dent 1992 sentimento que poderia colocar os seres em confl ito Há porém de se ressaltar que o ins tinto de conservação é balizado pelo de piedade e o confl ito nunca se estabelece como retaliação É breve e necessário à preservação na medida em que faz surgir alguma percepção de bemestar é que tendo sido possível ao homem em certas circunstâncias su avizar a ferocidade de seu amorpróprio ou o desejo de conservação antes do nascimento desse amor tempera com uma repugnância inata de ver sofrer seu semelhante o ardor que consagra ao seu bemestar Não creio ter a temer contradição se conferir ao homem a única virtu de natural que o detrator mais acirrado das virtudes humanas teria de reconhecer Falo da piedade virtude tanto mais universal quanto mais útil ao homem quando nele procede o uso de qualquer refl exão e tão natural que as próprias bestas às vezes são dela alguns sinais per ceptíveis Rousseau 1978a p 253 Da combinação portanto da conservação com a piedade decorrem as re gras do direito natural ressaltandose que a piedade equilibra e compensa o instinto de conservação de onde se conclui o amoralismo do mundo natural Certo pois a piedade representa um sentimento natural que mode rando em cada indivíduo a ação do amor de si mesmo concorre para a conservação mútua de toda a espécie Ela nos faz sem refl exão so correr aqueles que vemos sofrer ela no estado de natureza ocupa o lugar das leis dos costumes das virtudes com a vantagem de ninguém sentirse tentado a desobedecer à sua doce voz ela impedirá qualquer 161 Capítulo 6 Jean Jacques Rousseau da inocência natural à Sociedade Política Christiane Itabaiana Martins Romêo selvagem robusto de tirar a uma criança fraca ou a um velho enfermo a subsistência adquirida com difi culdade desde que ele mesmo possa encontrar a sua em outra parte ela em lugar dessa máxima da justiça raciocinada faze a outrem o que desejas que façam a ti inspira a todos os homens esta outra máxima de bondade natural bem menos perfeita mas talvez mais útil do que a precedente Alcança teu bem com o menor mal possível para outrem Rousseau 1978a p 254 Percebese pela leitura do trecho acima que o ser que habita o estado de natureza é também marcado pela liberdade e pela igualdade Por liberdade en tendase a natural se não há regras é porque não há subordinação de ninguém a nada não existem vínculos então todos são livres ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer5 O único limite possível porém não obrigatório é o uso da razão O mesmo se aplica à igualdade Não há como distinguir os homens se não há nada que os limite ou diferencie não há qualquer ente superior que os possa submeter Juntando os dois conceitos é possível dizer que o homem vi vendo em estado de natureza é livre como qualquer outro e todos os direitos naturais dos quais pode gozar são também igualmente aplicáveis a todos os seres humanos Em suma todos têm naturalmente direito a tudo Todos são seus próprios soberanos O reconhecimento da liberdade e da igualdade no estado de natureza fez com que Rousseau passasse a abordar o homem já não apenas fi sicamente mas considerandoo em seu aspecto metafísico e moral Em cada animal vejo somente uma máquina engenhosa a que a natu reza conferiu princípios Percebo as mesmas coisas na máquina hu mana com a diferença de tudo fazer sozinha a natureza nas operações do animal enquanto o homem executa as suas como agente livre Um escolhe ou rejeita por instinto e o outro por um ato de liberdade razão por que o animal não pode desviarse da regra que lhe é pres crita mesmo quando lhe fora vantajoso fazêlo e o homem em seu prejuízo frequentemente se afasta dela O homem considera se livre para concordar ou resistir e é sobretudo na consciência dessa liberdade que se mostra a espiritualidade de sua alma Rousseau 1978a p 242243 5 Esta é a primeira parte do princípio da legalidade contido na Constituição da República Federativa do Brasil promulgada em 1988 A primeira parte citada pode ser percebida como tradução da liberda de dos antigos a liberdade positiva O princípio quando lido por inteiro é entretanto refl exo claro da liberdade dos modernos a chamada liberdade negativa ou de acordo com a lei ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer senão em virtude de lei CF art 5º II 162 ELSEVIER Curso de Ciência Política O reconhecimento da espiritualidade da alma dos aspectos morais no ho mem permitiu a Rousseau trabalhar a mutabilidade da natureza humana É precisamente a mutabilidade que indica a transição do primeiro momento do estado de natureza para o segundo Neste último as mudanças se realizam de forma mais intensa posto que entre o primeiro momento e o segundo a mu dança na vida e nos sentimentos humanos daria início à história a vida natural atemporal cederia lugar ao progresso e às convenções da vida em sociedade6 Circunstâncias incondizentes com a natureza humana original proporcionaram ao homem a vivência de situações para as quais não estava naturalmente habili tado a viver Resta ao leitor questionar quem ou o que teria levado o homem a conhecer tais circunstâncias Em outras palavras caberia indagar sobre o que levou o homem naturalmente ignorante e isolado a constituir laços sociais e fundar a sociedade A base para a formulação da ideia de progresso a instituição da socieda de como estágio decadente do estado de natureza está nos conceitos de acaso liberdade e perfectibilidade sem os quais para N J H Dent 1996 Rousseau jamais poderia explicar a trajetória degenerativa humana Pela liberdade os homens dissolutos se entregam a excessos que lhes causam febre e morte por que o espírito deprava os sentidos e a vontade ainda fala quando a natureza se cala Rousseau 1978a p 243 Em relação à perfectibilidade Dent 1996 ressal ta que sem ela a vida humana não seria sustentável e o homem seria sempre um animal como qualquer outro É a capacidade de aprender com a experiência que faz o homem ser o que ele é haveria uma outra qualidade muito específi ca que os distinguiria e a respeito da qual não pode haver contestação é a faculdade de aperfeiçoarse faculdade que com o auxílio das circunstâncias desen volve sucessivamente todas as outras e se encontra entre nós tanto na espécie como no indivíduo o animal pelo contrário será no fi m de milhares de anos o que era no primeiro ano desses milhares Rousseau 1978A p 243 A capacidade de se aperfeiçoar e o livrearbítrio seriam pois as caracte rísticas que distinguiriam no mundo natural os homens dos outros animais o homem selvagem vivendo disperso entre os animais e vendose desde cedo na iminência de medir forças com eles logo fez a comparação Rousseau 1978a p 239 6 A sociedade almejada pelos pensadores que precederam Rousseau e que advém do Pacto é no Segun do Discurso apresentada como a manifestação da decadência do homem natural Nascimento 1989 163 Capítulo 6 Jean Jacques Rousseau da inocência natural à Sociedade Política Christiane Itabaiana Martins Romêo Para Dent 1996 tais capacidades signifi cariam bênção e maldição Por causa do livrearbítrio e da perfectibilidade pôde o homem experimentar e adaptarse a situações que jamais aconteceriam se o acaso não o tivesse colocado em relação com outros homens Explicase então a transição de um momento do estado de natureza pacífi co feliz no qual os homens não mantinham qual quer vínculo social para o outro no qual as relações se baseiam sobretudo nas diferenças Inicialmente perceber e sentir será seu primeiro estado do homem que terá em comum com todos os outros animais querer e não querer desejar e temer serão as primeiras e quase as únicas operações de sua alma até que novas circunstâncias nela determinem novos desenvolvimentos Rousse au 1978a p 244 Por novas circunstâncias pode o leitor entender o acaso e as paixões que alimentam a razão Em relação às paixões esclarece As paixões encontram sua origem em nossas necessidades e seus progressos em nossos conhecimentos pois só se pode desejar ou temer as coisas segundo as ideias que delas se possa fazer ou pelo simples impulso da natureza o homem selvagem privado de toda espécie de luzes só experimenta a paixão desta última espécie não ultrapassando pois seus desejos a suas necessidades físicas Rousse au 1978a p 244 O acaso seria a outra circunstância que apresentaria o homem ao progres so e consequentemente à infelicidade vêse pelo menos o pouco de cui dado que teve a natureza ao reunir os homens por meio de necessidades mútu as Rousseau 1978a p 250 Vários foram os acasos que segundo Rousseau permitiram ao homem aperfeiçoarse7 posto que a perfectibilidade as virtudes sociais e as outras faculdades que o homem natural recebera potencialmente jamais poderiam desenvol verse por si próprias pois para isso necessitam do concurso fortuito de inúmeras causas estranhas que nunca poderiam surgir e sem as quais ele teria permanecido eternamente em sua condição primitiva Rousseau 1978a p 258 A natureza por acaso acabou por facilitar aos homens o uso da palavra e a prepararlhes mal sua sociabilidade e pôs pouco de si mesma em tudo que fi zeram para estabelecer seus laços Rousseau 1978a p 250 As relações 7 Da capacidade de aperfeiçoarse Rousseau deriva o advento das ciências e das artes da linguagem e da propriedade enfi m a base para todas as revoluções a da agricultura e a do ferro por exemplo A ideia é inicialmente trabalhada no Discurso sobre as Ciências e as Artes Rousseau 1978C 164 ELSEVIER Curso de Ciência Política sociais aconteceram inevitavelmente e com elas a sociabilidade erroneamente baseada no amor próprio8 Atenção especial deve ser dada ao uso da palavra9 A linguagem na obra de Rousseau foi a grande responsável pela instituição do segundo momen to do estado de natureza Linguagem propriedade e sociedade aparecem no Discurso sobre a Desigualdade senão como sinônimos pelo menos como marcos do início da decadência humana Comparando o hipotético estado original do homem com o perfi l que as sume posteriormente Rousseau indagase como um homem teria podido uni camente por suas forças sem o auxílio da comunicação e sem a premência da ne cessidade vencer intervalo tão grande 1978a p 245 E ele mesmo responde A primeira língua do homem a língua mais universal a mais energéti ca e a única de que se necessitou antes de precisarse persuadir homens reunidos é o grito da natureza Quando as ideias dos homens começaram a estenderse e a multiplicar se e se estabeleceu entre eles uma comunicação mais íntima procura ram sinais mais numerosos e uma língua mais extensa multiplicaram as infl exões de voz e juntaramlhes gestos que por sua natureza são mais expressivos Rousseau 1978a p 248 A linguagem permitiu segundo Rousseau a aproximação entre os ho mens E da proximidade surgiu a necessidade de delimitar os espaços A noção de propriedade deriva portanto da linguagem e como a delimitação de espaços importa na obediência a fatores exógenos à natureza surgem também as con venções Neste momento diria Rousseau em que a linguagem foi usada pela primeira vez fundaramse a propriedade e a sociedade ambas baseadas na desigualdade10 O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que tendo cercado um terreno lembrouse de dizer isto é meu e encontrou pessoas 8 Dent 1996 explica que Rousseau concebe a ideia de amorpróprio em oposição à de amor de si No Emílio Rousseau trata da diferença entre os dois O amor de si indica às criaturas que devem se esforçar pela sua conservação sem desejar o mal O amorpróprio consiste na valorização das aparências e das diferenças constituídas artifi cialmente a partir da associação preparada ao acaso pela natureza 9 Rousseau desenvolve ideias sobre a linguagem no Ensaio sobre a origem das línguas Starobinski 1991 comenta o texto 10 O surgimento da linguagem é a ligação entre dois fatores que pela ausência e pela presença res pectivamente causaram a decadência humana a educação e a propriedade No exato momento em que fi cticiamente os homens se encontram e esboçam a comunicação a linguagem surge como meio de apropriação do mundo até então não pensado pelo homem Após a invenção da linguagem os homens passaram a defi nir o mundo e criar em relação a ele e aos outros homens laços e vínculos que acabaram por se traduzir em relações sociais políticas econômicas religiosas legais etc 165 Capítulo 6 Jean Jacques Rousseau da inocência natural à Sociedade Política Christiane Itabaiana Martins Romêo sufi cientemente simples para acreditálo Rousseau 1978a p 259 Analisando a sociedade de seu tempo e as origens hipotéticas de sua fundação Rousseau te ceu críticas aos jusnaturalistas que o precederam Se Hobbes e Locke concebiam a sociedade como fruto de um pacto restou a Rousseau concluir que este é falso posto que ao aparentemente fundar a sociedade manteve os homens no estado de natureza decaído segundo momento no qual as desigualdades imperam 65 O homem é bom a sociedade o corrompe da inocência natural à decadência social Há dois tipos de desigualdades na obra de Rousseau a física e a política ou moral Rousseau 1978a p 236 Como desigualdade natural supõemse as físicas tais como força saúde estatura Por certo o advento da sociedade se baseia no segundo tipo As desigualdades políticas ou morais são aquelas base adas no poder no status e no dinheiro Diferenças políticas sociais e econômicas são portanto ilegítimas e não autorizadas pela lei natural Ao contrário são autorizadas pelo consentimento dos homens e baseadas em convenções que em vez de ajudálos trazem a infelicidade e a vida na aparência O homem guiado pelo amorpróprio corrompese passa a ter o desejo de ser superior aos ou tros alienase11 O homem civilizado que vive em sociedade12 é infeliz O estado de na tureza é perpetuado em condições maléfi cas ao homem Ele vive em desconfor midade com a natureza humana e constrói o relacionamento social com base no amorpróprio que desaloja o amor de si mesmo substituindo o bem inato e sereno que caracteriza este último pelo bem enganoso e ilusório que consiste em obter odioso domínio pessoal sobre outrem Dent 1996 p 40 O progresso ao contrário do que se pode imaginar traz benefícios apenas aparentes à vida hu mana as ciências e as artes não colaboram para aprimorar o homem mas para acelerar sua decadência O aparecimento da linguagem estreitou os laços entre os homens que já haviam inventado o arco e a fl echa e que já sabiam ser seu o produto da caçada 11 Alienação na obra de Rousseau não tem o mesmo sentido empregado anos mais tarde por Karl Marx Há contudo quem defenda que o conceito de Marx tenha suas raízes na obra de Rousseau uma vez que por causa do acaso os homens se associaram em sociedade sem estarem preparados para isso Os homens foram corrompidos e se alienaram de si mesmos em relação à natureza Dent 1996 12 A Sociedade Civil à qual Rousseau se refere tão pejorativamente é o espelho da sociedade em que vive no século XVIII Certamente a sociedade que Rousseau pode observar em sua época não pode ser em sua opinião instrumento de garantia de liberdade igualdade e felicidade humanas Por isso qualifi caa como o momento de decadência a ser superado pelos homens 166 ELSEVIER Curso de Ciência Política Juntos os homens constituíram a família e com isso se tornaram mais fracos individualmente mas fortes em conjunto O espírito humano vai enfi m se do mesticando Cada um começou a olhar os outros e a desejar ser ele próprio olhado passando assim a estima pública a ter um preço dessas primeiras preferências nasceram de um lado a vaidade e o desprezo e de outro a vergonha e a inveja A fermentação determinada por esses novos ger mes produziu por fi m compostos funestos à felicidade e à inocência Assim que os homens começaram a apreciarse mutuamente e se lhes formou no espírito a ideia de consideração cada um pretendeu ter di reito a ela e a ninguém mais foi possível deixar de têla impunemente Rousseau 1978a p 263 O homem que habita o segundo momento do estado de natureza é bas tante diferente daquele que por uma eternidade andou pelas fl orestas A civili zação e consequentemente a sociedade demandavam um ser com qualidades diversas das do bom selvagem que quando colocado pela natureza a igual distância da estupidez dos brutos e das luzes funestas do homem civil e compe lido tanto pelo instinto quanto pela razão a defenderse do mal que o ameaça é impedido pela piedade de fazer mal a alguém Rousseau 1978a p 264 Ao contrário a era da metalurgia e da agricultura que produziu as re voluções do ferro e do trigo acabou por civilizar e fazer os homens se distan ciarem do gênero humano A produção fez surgir as primeiras regras de justiça que defi nissem a proteção à propriedade As desigualdades tanto físicas quanto morais somadas passaram a transformar a realidade dos homens Ser e pa recer tornaramse duas coisas totalmente diferentes Rousseau 1978a p 267 Dominação e servidão tomaram o lugar da independência e da autosufi ciência Os homens uma vez declarado que alguns nasceriam escravos deixaram de nascer homens Rousseau é enfático quando ao referirse ao distanciamento do homem em relação à natureza revela a pior das desigualdades a desigualdade política A instituição de um Estado ao qual os homens se submeteram para preservaremse na civilização resultou no fi m da soberania natural Os homens naturalmente livres encontraramse então aprisionados O mundo artifi cial instalouse em detrimento da natureza e condenou os homens a um estado de guerra chamado de sociedade13 13 A sociedade tal como estabelecida pelos homens é nefasta à existência dos mesmos O pacto feito para instituíla defendido por Hobbes e Locke não passa para Rousseau de um falso pacto reali zado a partir e para reforçar as desigualdades convencionais totalmente balizado pelo amorpróprio e portanto contrário à natureza Chevallier 1986 167 Capítulo 6 Jean Jacques Rousseau da inocência natural à Sociedade Política Christiane Itabaiana Martins Romêo É este o último grau de desigualdade então todos os particulares se tornam iguais porque nada são e os súditos não tendo outra lei além da vontade do senhor nem o senhor outra regra além de suas paixões as noções do bem e os princípios da justiça desfalecem novamente en tão tudo se governa pela lei do mais forte e consequentemente segun do um novo estado de natureza diverso daquele pelo qual começamos por ser este um estado de natureza em sua pureza e o outro fruto de um excesso de corrupção Rousseau 1978a p 280 À primeira vista poderia o leitor achar que uma vez tendo concebido a natureza humana como incapaz de retrogradar de voltar a ser o que era Rous seau estaria condenando a vida humana em sociedade e fazendo um elogio à vida primitiva Essa foi e ainda é uma das muitas críticas feitas ao pensador Voltaire por exemplo ao ler o Discurso sobre a Desigualdade referiuse a ele de forma irônica como um grande estímulo para que os homens voltassem a andar de quatro Dent 1996 Nas palavras de N J H Dent Rousseau pensava que a vida social era inevitável para os seres humanos e na verdade essencial ao de senvolvimento da humanidade plena não tinha dúvida de que se podia tornála criativa Sua crítica era antes àqueles perversos desenvolvimentos da vida social que produzem efeitos diametralmente opostos Dent 1996 p 66 A perfectibilidade característica da natureza humana é o que difere o ho mem dos demais animais e por isso desenvolver as habilidades humanas não seria para Rousseau um problema O ponto de refl exão de Rousseau consiste na maneira pela qual o desenvolvimento ocorreu a perfectibilidade deveria ter conduzido os homens a se dedicarem ao bem geral e não às paixões que culti vam as desigualdades sociais A linguagem a propriedade e a sociabilidade constituídas em desconfor midade com a natureza humana e a falta da educação para conviver uns com os outros seriam portanto os fundamentos da sociedade organizada sob o poder de um Estado que em vez de harmonizar os homens serviria para fun dar e aumentar a diferença entre eles Em sociedade as diferenças econômicas sociais e políticas seriam a fonte da infelicidade dos homens sobretudo a desi gualdade política que afasta o homem de si mesmo e o submete ao poder de outrem ilegitimamente Os homens nascidos livres seriam então servos do sistema social criado ao acaso pela convivência humana Assim estaria confi gurado o estado de natureza em seu segundo momen to O tempo não anda para trás e a natureza não retrograda É impossível diria Rousseau que os homens voltem a ser ou a viver como antes Eles já conheceram a linguagem já se apropriaram do mundo já se associaram A ignorância e a 168 ELSEVIER Curso de Ciência Política existência amoral já não são possíveis A vida em sociedade foi estabelecida e isso não é discutido por Rousseau O tempo não volta atrás e o homem não pode desaprender ou esquecer o que já viveu Se tudo ocorreu de forma não plane jada ou de maneira inesperadamente contrária à natureza nada pode ser feito Uma vez associado nunca mais o homem saberá viver como o Bom Selvagem original Restaria então aos homens viver como escravos de sua própria histó ria No Discurso sobre a Desigualdade Rousseau pretendeu ao reconstruir hipoteticamente o homem original tal como os físicos formulam todos os dias a respeito da formação do mundo fazer ver ao leitor a transformação do homem da natureza em homem do homem Chevallier 1983 p 147 Por homem do homem entenda o leitor o ser que supera o estado de natureza e funda uma outra organi zação social distante da natureza corrompida pela desigualdade porém baseada nos fundamentos originais da lei natural Importante lembrar mais uma vez que embora visse com bons olhos o momento original no qual o homem não se distinguia dos animais a não ser pela potencial capacidade de se aperfeiçoar e raciocinar Rousseau reconhecia o dife rencial humano e lamentava apenas que o desenvolvimento das capacidades tivesse acontecido por força do acaso sem que a espécie estivesse preparada para a sociabilidade Ressaltese portanto que o mundo social seria aquele no qual os homens poderiam desenvolver suas habilidades E a confi rmação disso pode ser encontrada no Discurso sobre a Desigualdade Esses primeiros progressos puseram por fi m o homem à altura de con seguir outros mais rápidos A essa época se prende uma primeira revolução que determinou o estabelecimento e a distinção das famílias Os primeiros progressos do coração resultaram de uma situação nova que reunia numa habitação comum os maridos e as mulheres os pais e os fi lhos O hábito de viver junto fez com que nascessem os mais doces sentimentos que são conhecidos do homem como o amor conjugal e o amor paterno Cada família tornouse uma pequena sociedade Rousseau 1978a p 263 A partir de então deuse o desenvolvimento da linguagem e da proprie dade o que exigia do homem qualidades diversas daquelas inerentes à sua cons tituição primitiva Rousseau antevia na situação estabelecida o agravamento da decadência humana mas não poderia deixar de ver também ali na transição entre a vida animal isolada e a vida decaída um momento de felicidade 169 Capítulo 6 Jean Jacques Rousseau da inocência natural à Sociedade Política Christiane Itabaiana Martins Romêo Assim embora os homens se tornassem menos tolerantes e a pieda de natural já sofresse certa alteração esse período de desenvolvimento das faculdades humanas ocupando uma posição média exata entre a indolência do estado primitivo e a atividade petulante do nosso amor próprio deve ter sido a época mais feliz e a mais duradoura Rous seau 1978a p 264 Se talvez os homens pudessem ter perpetuado o momento de felicidade do início da vida social no qual as diferenças morais ainda não teriam aviltado completamente a natureza humana ou ainda se pudesse o homem retroce der no tempo e desaprender os vícios que destruíram a virtude talvez a vida humana não se tivesse degradado ou talvez os homens pudessem reverter os males e restituir os hábitos originais Mas o estado de natureza havia se tornado impossível e a vida em sociedade deveria ser reformada para que os homens pudessem perpetuar sua existência no mundo 66 Da decadência à redenção o contrato social e a sociedade política Rousseau recorreu à perfectibilidade à capacidade de adaptação e aperfei çoamento do homem para resolver o problema aparentemente insolúvel da vida em sociedade Aproveitando que a natureza humana é mutável seria necessário transformála em algo diferente Com base na razão característica imanente à perfectibilidade os homens iriam criar juntando suas forças uma forma efi cien te de proteger e defender as pessoas O artifício viria em socorro à natureza14 Suponhamos os homens chegando àquele ponto em que os obstáculos prejudiciais à sua conservação no estabelecimento da natureza sobre pujam pela sua resistência as forças que cada indivíduo dispõe para manterse nesse estado Então esse estado primitivo já não pode sub sistir e o gênero humano se não mudasse de modo de vida pereceria Ora como os homens não podem engendrar novas forças mas somente unir e orientar as já existentes não têm eles outro meio de conservar se senão formando por agregação um conjunto de forças que possa sobrepujar a resistência impelindoas para um só móvel levandoas a operar em conserto Rousseau 1978b p 31 14 Émile Durkhéim um dos fundadores da Sociologia no século XIX ressalta com base na leitura des se trecho de O contrato que a sociedade imaginada por Rousseau seria o único meio onde o homem poderia viver Durkheim 1980 p 351 Depreendese desse comentário não só a necessidade de se colocar em prática a teoria de Rousseau como também percebese que Durkheim reconhece traços da Sociedade Política na organização social em que vive 170 ELSEVIER Curso de Ciência Política O Contrato Social se inicia com a constatação de que o homem encontrase em estado de servidão O homem nasce livre e por toda a parte encontrase a ferros O que se crê senhor dos demais não deixa de ser mais escravo do que eles Como adveio tal mudança Ignoroo O que poderá legitimála Creio poder resolver esta questão15 Rousseau 1978b p 22 O Contrato Social apresentase em uma dimensão completamente diferente daquela a que o leitor se acostumou no Discurso da Desigualdade A dimensão histórica cede lugar à atemporalidade observa Jean Starobinski De um só golpe sem passar por etapas intermediárias ele nos faz ter acesso à decisão que funda o reino da vontade geral e da lei racional Rousseau não situa sua hipótese jurídica em uma fase determinada da história concreta da humanidade não determina o gênero de ação que poderá tornar possível sua realização O pacto social não se cum pre na linha de evolução descrita pelo segundo Discurso mas em uma outra dimensão puramente normativa e situada fora do tempo históri co Starobinski 1991 p 42 Cabe esclarecer ao leitor a seguinte premissa o Contrato Social traz a pro posta política de Rousseau para a boa sociedade Nela os homens poderiam recomeçar sua história reconstruindoa racionalmente e pela alienação da von tade de todos em prol da comunidade Essa sociedade constituída com base nos princípios expostos no Contrato Social seria o modelo ideal de organização hu mana levandose em conta a natureza essencial ao homem e a consciência por ele adquirida ainda no estado de natureza O projeto político rousseauniano consistiu em propor reformas às institui ções existentes entre elas o homem sem contudo fazêlo renunciar à liberda de o que implicaria a renúncia à condição de homem Paradoxalmente16 em socorro da natureza Rousseau imaginou a ajuda da convenção do artifício A autoridade legítima só pode assentar legitimamente numa convenção inicial escreve Chevallier 1983 p 159160 pois visto que homem algum tem autori dade natural sobre seus semelhantes e que a força não produz qualquer direito 15 Rousseau não ignora a origem da situação como pretende fazer o leitor acreditar No Discurso sobre a desigualdade conjectura sobre o processo de decadência que dera origem à servidão civil Ao propor resolver a questão Rousseau pretende lançarse ao problema político no plano da moral racional ou seja estabelecer em que condições a mesma transição poderá fazerse legitimamente isto é em favor da liberdade Machado in Rousseau 1978B p 22 n 13 16 O paradoxo se encontra nas teses defendidas pelo autor no Discurso sobre as Ciências e as Artes Rous seau 1978C 171 Capítulo 6 Jean Jacques Rousseau da inocência natural à Sociedade Política Christiane Itabaiana Martins Romêo só restam as convenções como base de toda a autoridade legítima entre os ho mens Rousseau 1978b p 26 Rousseau não tinha dúvidas sobre a impossibilidade de o homem deixar de ser aquilo no que se transformou E se mostrou contundente crítico das ten tativas de construir a felicidade humana com base em modelos inexequíveis que supunham poder o homem voltar a ser o que era ou ser o homem aquilo que não é As reformas expostas em O Contrato permitiriam a consecução da premissa acima exposta além de serem necessárias para preparar o homem para a verda deira vida em sociedade a transformação da natureza é necessária é preciso que o homem mude totalmente para poder se manter nesse meio que ele cria com suas mãos Durkheim 1980 p 352 As reformas propiciam o pacto e concomitantemente são necessárias para a preservação da sociedade constituída A reforma política que visaria criar o ci dadão ou o homem desnaturado estaria ligada à outra reforma a da educação Com base nas duas o cidadão educado estaria apto a encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a força comum e pela qual cada um unindose a todos só obedece contudo a si mesmo permanecendo assim tão livre quanto antes Rousseau 1978b p 32 O verdadeiro pacto diferentemente dos demais propagados em teorias anteriores17 fundase no elemento essencial das convenções a vontade livre das partes Machado in Rousseau 1978b p 29 n 47 A liberdade é condição sine qua non para a realização do contrato e da boa sociedade Renunciar à liberdade é renunciar à qualidade de homem aos direitos da humanidade e até aos próprios deveres Não há recompensa possí vel para quem a tudo renuncia Tal renúncia não se compadece com a natureza do homem e destituirse voluntariamente de toda e qualquer liberdade equivale a excluir a moralidade de suas ações Enfi m é uma inútil e contraditória convenção a que de um lado estipula uma auto ridade absoluta e de outro uma obediência sem limites Rousseau 1978b p 27 Ressaltese que a liberdade praticada pelos cidadãos é diferente da liber dade natural original tratase da liberdade convencional instituída de acordo com as cláusulas do pacto social 17 Para Th omas Hobbes e John Locke o pacto seria o instrumento pelo qual os homens teriam aban donado o estado de natureza e fundado a sociedade organização completamente antitética à primeira Aos pactos de submissão e de consentimento apresentados por esses autores Rousseau dirige a crítica segundo a qual esses não teriam se fundamentado na vontade livre das partes uma vez que serviram para assegurar as desigualdades não autorizadas pela lei natural Chevallier 1983 172 ELSEVIER Curso de Ciência Política Essas cláusulas quando bem compreendidas reduzemse todas a uma só a alienação total de cada associado com todos os seus direitos à co munidade toda porque em primeiro lugar cada um dandose comple tamente a condição é igual para todos e sendo a condição igual para todos ninguém se interessa por tornála onerosa demais Rousseau 1978b p 32 A realização do contrato fundamental pressupõe como visto reformas nas instituições e nos seres humanos pois não há sociedade política sem cida dãos e estes não existem enquanto houver resquícios da natureza degradada no homem Lembrese de que a natureza humana não retrograda e portanto em vez de consertála Rousseau imagina ser necessário alterála por completo Forçado a combater a natureza ou as instituições sociais é preciso optar entre fazer um homem ou um cidadão pois não se podem fazer os dois ao mesmo tempo As boas instituições sociais são as que melhor sabem desnaturar o ho mem retirarlhe sua existência absoluta para darlhe uma relativa e transferir o eu para a unidade comum de sorte que cada particular já não se julgue como tal e sim como uma parte da unidade e só seja perceptível no todo Rousseau 2004 p 1112 Em O Emílio Rousseau dedicouse a tratar da educação mas a relação en tre este tema e a política é clara Sem educar o cidadão de nada valem as refor mas nas instituições Aquele que na ordem civil quer conservar o primado dos sentimentos da natureza não sabe o que quer Sempre em contradição consigo mes mo sempre passando das inclinações para os deveres jamais será nem homem nem cidadão não será bom para si mesmo nem para os outros Rousseau 2004 p 12 O pacto social fruto das reformas é o ato pelo qual os homens usando sua força e liberdade fundam a sociedade política e se tornam cidadãos O pacto social se reduz aos seguintes termos Cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a direção suprema da vontade geral e recebemos enquanto corpo cada membro como parte indivisível do todo Imediatamente esse ato de associação produz em lugar da pessoa par ticular de cada contratante um corpo moral e coletivo composto de tantos membros quantos são os votos da assembleia e que por esse mesmo ato ganha sua unidade seu eu comum sua vida e sua vonta de Rousseau 1978b p 33 173 Capítulo 6 Jean Jacques Rousseau da inocência natural à Sociedade Política Christiane Itabaiana Martins Romêo O corpo político moral e coletivo surgido do pacto toma a forma de uma pessoa pública artifi cial mas que tem as mesmas sensibilidades de uma pessoa comum Assim como a natureza forjou os homens esses formaram o Estado Rousseau qualifi ca o ser artifi cial que surge do contrato Essa pessoa pública que se forma desse modo pela união de todas as outras tomava antigamente o nome de cidade e hoje o de repúbli ca ou corpo político o qual é chamado por seus membros de Es tado quando passivo soberano quando ativo e potência quan do comparado a seus semelhantes Quanto aos associados recebem eles coletivamente o nome de povo e se chamam em particular cidadãos enquanto partícipes da autoridade soberana e súditos enquanto submetidos às leis do Estado Esses termos no entanto con fundemse frequentemente e são usados indistintamente basta saber distinguilos quando são empregados com inteira precisão Rousseau 1978b p 3334 O Soberano assim chamado o corpo politicamente ativo é descrito por Rousseau de maneira especial Sua natureza consiste na ação participação e ga rantia dos particulares que o conformam estejam eles atuando ativamente na soberania cidadãos ou estando eles submetidos à lei súditos Chevallier 1986 Vale a pena ressaltar apesar da clareza do trecho citado acima que Esta do Soberano povo cidadão e súdito compõem uma mesma coisa o corpo polí tico e se diferenciam somente em relação ao papel que cumprem na vida social O termo soberania signifi ca a noção de autoridade suprema tradicionalmente reservada ao Estado e peculiarmente conferida ao povo por Rousseau Súdito e cidadão se diferem em relação à forma de participação política enquanto o súdito é o resquício do homem natural privado o cidadão é o homem modifi cado pela convenção educação O primeiro encontrase subor dinado à lei e o segundo tendo sofrido a desnaturação é o ser que atua como membro do corpo soberano do qual surge a vontade geral Dent 1996 Caberia ao leitor perguntarse sobre a divisão entre súdito e soberano e argumentar que havendo distinção entre eles há também a desigualdade no Estado Civil uma vez que os súditos se submetem à vontade dos cidadãos Rousseau não hesitaria em responder que súdito e cidadão são a mesma pessoa e então os súditos uma vez submetidos à vontade dos cidadãos se sub metem à sua própria vontade E se ambos compõem o corpo político e este por sua vez é Estado e Soberano não se pode falar em submissão de uns a outros Por essa argumentação Rousseau demonstra que os homens vivendo sob as 174 ELSEVIER Curso de Ciência Política cláusulas do pacto social submetemse somente a si próprios e mantêmse po liticamente livres Antes de explorar as características do soberano e suas implicações na or dem política caberia uma referência ao processo de desnaturação do homem 67 Homem desnaturado e vontade geral soberania e cidadania A desnaturação é conceito essencial na obra de Rousseau pois é a partir dele que se constitui a teoria social do pensador Rousseau concebe a ordem social póspacto como aquela em que os papéis sociais são defi nidos em tor no de responsabilidades e compromissos com o bem comum Como os homens naturais foram corrompidos restou a Rousseau apostar na criação do cidadão homem natural reformado e desnaturado Os cidadãos são capazes de identifi car seu papel social e de perceber a liberdade e a igualdade de maneira positiva estas últimas também desnaturadas assim como o sentimento do amor em si Ao transformarse o amor de si o amor próprio dele derivado desapa receria restando apenas o amor de grupo Em relação à liberdade e à igualdade civis que fale Rousseau O que o homem perde pelo contrato social é a liberdade natural e um direito ilimitado a tudo quanto aventura e pode alcançar O que com ele ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo que possui A fi m de não fazer um julgamento errado dessas compensações impõese distinguir entre a liberdade natural que só conhece limites nas forças do indivíduo e a liberdade civil que se limita pela vontade geral o pacto fundamental em lugar de destruir a igualdade natural pelo contrário substitui por uma igualdade moral e legítima aquilo que a natureza poderia trazer de desigualdade física entre os homens que podendo ser desiguais na força ou no gênio todos se tornam iguais por convenção e direito Rousseau 1978b p 36 e 39 A desnaturação signifi caria portanto a reforma do homem natural priva do e mutável de maneira a bloquear nele a infl uência do amorpróprio Somente com a mudança da natureza humana poderia Rousseau assentar a ideia de for mação de um povo Dent 1996 O povo soberano se constitui portanto de homens conscientes do papel social que devem desempenhar e que ao pactuarem submetemse a si próprios em torno do bem comum O cidadão pressupõe a transformação de cada um numa parte de um todo maior e essa transformação é propriamente o pacto Vêse por essa fórmula que o ato de associação compreende um com promisso recíproco entre o público e os particulares e que cada indi 175 Capítulo 6 Jean Jacques Rousseau da inocência natural à Sociedade Política Christiane Itabaiana Martins Romêo víduo contratando por assim dizer consigo mesmo se compromete numa dupla relação como membro do soberano em relação aos parti culares e como membro do Estado em relação ao soberano Rousseau 1978b p 34 A fórmula para a preservação da liberdade está para Rousseau intima mente ligada à vontade geral Nota o leitor que ao se referir a povo e Estado como pólos respectivamente passivo e ativo do Soberano Rousseau supõe resolvida a pior das desigualdades a política18 Para que um povo fosse povo foi necessário um pacto que com base na força e liberdade de cada um tornou a todos um só corpo que ao emanar sua vontade própria a vontade geral ao mesmo tempo se submete a ela Cada um unido no todo se submete e respeita a própria von tade à vontade do corpo político A vontade geral seria a supressão da desigualdade política uma vez que garantiria não haver distinção entre quem manda e quem obedece já que ela emana do corpo político ao qual é aplicada sob a forma de lei Mas a vontade geral não é simplesmente a vontade de todos nem a soma ou maioria das von tades particulares Chevallier 1986 embora Rousseau reconheça a existência destas últimas Enquanto cada um dos membros sendo simultaneamente em conse quência do contrato homem individual e homem social pode ter duas espécies de vontade Como homem individual é tentado a perseguir de acordo com o instinto natural egoísta o seu interesse particular Mas o homem social que nele existe o cidadão procura e quer o in teresse geral tratase de uma busca toda moral feita no silêncio das paixões Chevallier 1986 p 164 Nas palavras de Rousseau Cada indivíduo com efeito pode como homem ter uma vontade par ticular contrária ou diversa da vontade geral que tem como cidadão Seu interesse particular pode ser muito diferente do interesse comum Sua existência absoluta e naturalmente independente pode leválo a considerar o que deve à causa comum como uma contribuição gratuita 18 Segundo o Discurso sobre a desigualdade Rousseau 1978a teria surgido inicialmente a desigual dade social a apropriação do afeto e das relações Em decorrência disso as diferenças econômicas se impuseram Mas a decadência do homem terseia se consumado quando pela força ou pela convenção equivocada os homens passaram a ser servos e senhores Em ambos os casos ao se submeterem ao po der não legitimado pela natureza os homens alienaramse de si próprios e se tornaram politicamente desiguais 176 ELSEVIER Curso de Ciência Política cuja perda prejudicará menos aos outros do que será oneroso o cumpri mento a si próprio Rousseau 1978b p 35 A moralidade comum nas ações do homem social é a base da vontade geral e é o que relativiza a vontade particular Só a lei expressão da vontade geral é capaz pela sua generalidade pela sua impessoalidade e infl exibilidade de suavizar a maioria dos males inerentes ao homem por depender dos homens Só ela permitiu subjugar os indivíduos para tornálos livres encadear lhes a vontade com a sua própria autorização fazer valer o seu consen timento contra a sua recusa Chevallier 1986 p 165 e 171 Se o soberano é cada um dos que o compõem e se ninguém tende a ser in justo consigo mesmo depreendese que cada um obedece a si próprio e que a lei nunca é injusta Assim sendo a vontade geral nunca erra e não cabe ao Soberano oferecer qualquer garantia em face dos particulares Ora o soberano sendo formado tão só pelos particulares que o com põem não visa nem pode visar a interesse contrário ao deles e conse quentemente o poder soberano não necessita de qualquer garantia em face de seus súditos por ser impossível ao corpo desejar prejudicar a todos os seus membros e não pode também prejudicar a nenhum deles em particular O soberano somente por sêlo é sempre aquilo que deve ser Rousseau 1978b p 35 O fato de não fazer mal a si próprio não signifi ca que o soberano possa deixar de impor a obediência à lei Se não o fi zer estará colocando o pacto em risco e com ele toda a sociedade política e o Estado civil Em suma cabe ao so berano forçar o homem a ser livre A fi m de que o pacto social não represente pois um formulário vão compreende ele tacitamente este compromisso o único que poderá dar força aos outros aquele que recusar obedecer à vontade geral a tanto será constrangido por todo o corpo o que não signifi ca senão que o forçarão a ser livre pois é essa a condição que entregando cada cidadão à pátria o garante contra qualquer dependência pessoal Essa condição constitui o artifício e o jogo de toda a máquina política e é a única a legitimar os compromissos civis os quais sem isso se tornariam absur dos tirânicos e sujeitos aos maiores abusos Rousseau 1978b p 36 O Estado instituído tem um objetivo o bem comum Para atingilo neces sário seria dirigir a força comum à luz da vontade geral A soberania consiste na aplicação dessa vontade geral a essa força comum Donde se vê que só pos sui existência abstrata e coletiva e que a ideia que se liga a essa palavra não pode 177 Capítulo 6 Jean Jacques Rousseau da inocência natural à Sociedade Política Christiane Itabaiana Martins Romêo estar unida à de um simples indivíduo Em suma a soberania nada mais é do que o exercício da vontade geral Chevallier 1983 p 16719 Há contudo de se indagar sobre como o soberano Estado e povo pode ria dirigir a força comum A resposta de Rousseau à questão está na distinção entre soberano e governo Toda ação livre tem duas causas que concorrem em sua produção uma moral que é a vontade que determina o ato e a outra física que é o poder que a executa Rousseau 1978b Ao distinguir soberano de governo Rousseau resguardou a legitimidade do poder Ao governo cabe a função de executar e portanto não pode preten derse soberano é apenas executor fi el da vontade do corpo político a vontade geral Dent 1996 A vontade geral como já sabe o leitor não é nem pode ser a vontade par ticular tampouco a soma dessas a vontade de todos A lei que dela emana não pode portanto se fi xar em um objeto particular A execução da lei entretanto necessariamente recai sobre atos individuais e por isso sua execução não pode caber ao soberano É o soberano entretanto o responsável pela aceitação da lei elaborada pelo legislador com base na vontade geral É dele a prerrogativa de sufragar o trabalho do legislador mas é ao governo que atribui a execução e aplicação das leis aos casos concretos e particulares O governo diferentemente do soberano não surge do contrato mas da obediência de todos ao corpo político O governo é o depositário da confi ança do povo não existe por si mesmo mas como corpo intermediário da vontade geral Que será pois o Governo É um corpo intermediário estabelecido en tre os súditos e o soberano para sua mútua correspondência encarre gado da execução das leis e da manutenção da liberdade tanto civil como política Chamo pois de Governo ou administração suprema o exercício legítimo do poder executivo e de príncipe ou magistrado o homem ou corpo encarregado dessa administração Rousseau 1978b p 7475 Rousseau analisou no Contrato Social as formas puras de governo a de mocracia a aristocracia e a monarquia Na democracia o povo todo seria o de positário da confi ança do soberano na aristocracia uma minoria receberia essa função e na monarquia um único magistrado seria o depositário da função exe cutiva Em relação à melhor forma de governo Rousseau mostrou que nenhuma delas é ideal 19 Trecho extraído por Chevallier 1983 dos Manuscritos de Genebra de Rousseau 178 ELSEVIER Curso de Ciência Política Quando pois se pergunta de modo absoluto qual é o melhor Gover no fazse uma pergunta tão insolúvel quanto indeterminada ou em outras palavras ela tem tantas boas soluções quantas combinações pos síveis há nas posições absolutas e relativas dos povos O Governo sob o qual os cidadãos mais povoam e mais se multiplicam é infali velmente o melhor Aquele sob o qual o povo diminui e perece é o pior Rousseau 1978b p 9899 O governo portanto pode realizarse de várias formas de acordo com a formulação clássica democracia aristocracia e monarquia No livro III do Con trato Social Rousseau desenvolve a teoria dos governos matematicamente ana lisando a proporção e a relação entre povo e soberano De suas divagações pode o leitor entender que embora a cada lugar possa servir um tipo de governo o ideal é que haja equilíbrio das relações do todo com o todo ou do soberano com o Estado Podese representar esta última relação por aquela entre os extremos de uma proporção contínua cuja média proporcional é o Governo O Governo recebe do soberano as ordens que dá ao povo e para que o Estado permaneça em bom equilíbrio é preciso que tudo compensado haja igualdade entre o produto ou o poder do Governo tomado em si mesmo e o produto ou a potência dos cidadãos que de um lado são soberanos e de outro súditos Enfi m como não há senão uma média proporcional para cada relação não há mais que um bom governo possível para cada Es tado Como porém inúmeros acontecimentos podem mudar as relações de um povo não só diversos governos podem ser bons para diferentes povos mas também para o mesmo povo em épocas diferentes Rous seau 1978b p 7576 E conclui indicando a diferença substancial entre o governo e a soberania esta última sempre republicana já que é povo e Estado já que é pública As várias formas que o governo pode tomar podem ser reduzidas a três principais Depois de comparar suas vantagens e desvantagens daría mos preferência àquela que é intermediária entre dois extremos e que leva o nome de aristocracia Devese lembrar aqui que a constituição do estado e aquela do governo são coisas inteiramente distintas e não devem ser confundidas O melhor tipo de governo é o aristocrático e o pior tipo de soberania é a aristocrática Rousseau apud Jouvenel 1980 p 424 A soberania tem características completamente diferentes das do governo Enquanto este último é um corpo intermediário de ligação do todo com o todo a 179 Capítulo 6 Jean Jacques Rousseau da inocência natural à Sociedade Política Christiane Itabaiana Martins Romêo soberania é o próprio todo O governo por sua natureza é divisível destituível e limitado pelos desígnios da vontade geral A soberania por sua vez é inalie nável indivisível irrevogável e absoluta O corpo político do qual emana a vontade geral é o soberano e como tal é dirigido pela força motriz constituída por ela A fi nalidade do soberano quanto constituído como Estado é a garantia do bem comum ou seja o bem comum é objetivo buscado no pacto e que alimenta a vontade geral Nesse sentido Rous seau explica e justifi ca as características a inalienabilidade a indivisibilidade a irrevogabilidade e o caráter absoluto e ilimitado respectivamente que atribui à soberania Afi rmo pois que a soberania não sendo senão o exercício da vonta de geral jamais pode alienarse e que o soberano que nada é senão um ser coletivo só pode ser representado por si mesmo O poder pode transmitirse não porém a vontade A soberania é indivisível pela mesma razão por que é inalienável pois a vontade ou é geral ou não o é ou é a do corpo do povo ou so mente de uma parte No primeiro caso essa vontade declarada é um ato de soberania e faz lei no segundo não passa de uma vontade par ticular ou de um ato de magistratura Concluise do precedente que a vontade geral é sempre certa e ten de sempre à utilidade pública Não sendo o Estado mais que uma pessoa moral cuja vida con siste na união de seus membros e se o mais importante de seus cuida dos é o de sua própria conservação tornaselhe necessária uma força individual e compulsiva para mover e dispor cada parte de maneira mais conveniente a todos Assim como a natureza dá a cada homem poder absoluto sobre todos os seus membros o pacto social dá ao corpo político um poder absoluto sobre todos os seus e é esse mesmo poder que dirigido pela vontade geral ganha o nome de soberania Rous seau 1978b p 43 a 48 Por fi m encerrando o Contrato Social Rousseau dedicase à religião civil E então consolida a relação entre a Educação e a Política A religião civil embora obrigatória para todos os cidadãos permite ao indivíduo liberdade em relação a assuntos estritamente pessoais E exatamente por isso impõe rigorosamen te os mandamentos dos quais ou sobre os quais não pode haver dúvida ou descumprimento Mesmo dando origem a contradições em relação ao pensa mento rousseauniano a premissa indiscutível da crença na existência de uma divindade onipotente e infi nitamente benéfi ca na providência na vida depois da morte e no juízo fi nal Cassirer 1980 p 393 deve levar o leitor a conceber 180 ELSEVIER Curso de Ciência Política uma ordem na qual pela elevação da vontade individual no sentido da busca do bem comum todos estariam guiados pela bondade natural aquela que na ig norância dos primeiros momentos do homem sob a Terra o impedia de atentar contra si próprio e seus semelhantes 68 Considerações finais Por tudo que acabou de ler pode o leitor concluir que JeanJacques Rous seau apesar de ter sido um contundente crítico da sociedade e da política de sua época mantinha inabalável crença no ser humano e com criatividade deu início à formulação de uma nova maneira de pensar as relações de poder entre os homens No século das Luzes quando o mundo exultava os progressos sociais e intelectuais do homem Rousseau encarregouse de questionar as formas e as certezas estabelecidas As ciências e as artes as grandes vedetes do século não escaparam ao diagnóstico pessimista mas não menos romântico de Jean Jacques Rousseau O Cidadão de Genebra como Rousseau gostava de ser chamado pre ocupouse com a felicidade e o bemestar bastante distorcidos segundo ele na sociedade de sua época E com paixão defendeu a alteração da natureza huma na Pela educação e pelas reformas políticas o homem cuja natureza fora irre mediavelmente afetada e viciada daria lugar a um novo ser o cidadão Dele do novo ser político comporseia o Estado o povo e o soberano O Contrato Social segundo o próprio Rousseau conferiu unidade à obra do pensador embora muitos de seus comentadores e críticos insistam ser este últi mo livro contraditório ao Discurso sobre a desigualdade Porém o Contrato Social assim como O Emílio seriam o bom fi nal para a história de degradação huma na narrada nos Discursos segundo o próprio autor escreve em JeanJacques Juiz de Rousseau Nos seus primeiros escritos era necessário destruir a ilusão que nos enche de uma absurda admiração pelos instrumentos de nossa infelicidade e corrigir esses falsos conjuntos de valores que acumulam honras sobre talentos perniciosos e desprezam virtudes benévolas apud Cassirer 1980 p 394 A correção dos valores só seria possível com as reformas das instituições criadas pelo homem reformas que pudessem libertar o homem de sua condição de servidão E isso só é possível porque o homem é bom Embora criticado Rousseau deixou sua marca na fi losofi a política inspirou a Revolução Francesa e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão JeanJacques Rousseau dizia que escrevia para o futuro E de fato foi com preendido melhor nos séculos seguintes Sua teoria infl uenciou o pensamento 181 Capítulo 6 Jean Jacques Rousseau da inocência natural à Sociedade Política Christiane Itabaiana Martins Romêo do século XIX principalmente em relação à constituição do Estado Não é pos sível saber como Rousseau analisaria a sociedade atual Ele poderia afi rmar que o contrato foi realizado uma vez que o Estado hoje é conduzido pela vontade geral a Constituição que emana da vontade soberana do povo traduzida pelo legislador Poderia também denunciar a sociedade em que vivemos como fruto de um falso pacto Mas como disse Durkhéim pouco importa que este contrato tenha sido realmente feito e dentro das formas ou não Talvez suas cláusulas jamais tenham sido enumeradas Mas elas são admitidas tacitamen te em todo lugar na medida em que a sociedade é normalmente constituída Durkhéim 1980 p 356 De fato Rousseau fundou uma nova maneira de pensar a política Os pressupostos da vontade geral o papel do legislador e a valorização do povo soberano se fi xaram no pensamento político Nas palavras de Goethe Salinas 1987 p 71 com Voltaire um mundo acaba Com Rousseau um mundo começa 69 Perguntas para reflexão 1 O Estado de Natureza descrito no Discurso sobre a Desigualdade dividese em dois momentos Quais são eles e como se caracterizam 2 O homem natural é dotado de duas paixões Quais são elas e que efeito geram sobre o comportamento do bom selvagem 3 Para Rousseau além da racionalidade a natureza humana tem uma ou tra característica Qual é ela e qual o seu impacto na teoria do autor 4 Qual é a importância da linguagem e da propriedade no pensamento de Rousseau 5 Como Rousseau conceitua a natureza humana 6 O que é desnaturação 7 Explique a relação cidadão povo Estado e Soberano na teoria de Rous seau 8 Para que o Contrato aconteça quais são as reformas necessárias Por quê 9 Governo e Soberano são sinônimos Por quê 10 Vontade geral é a mesma coisa que vontade de todos Por quê 182 ELSEVIER Curso de Ciência Política Bibliografia BLOOM Allan Gigantes e anões Ensaios 19601990 São Paulo Best Seller Nova Cultural 1990 BOBBIO Norberto BOVERO Michelangelo Sociedade e Estado na Filosofi a Política moderna São Paulo Brasiliense 1987 CASSIRER Ernest A Questão de JeanJacques Rousseau In QUIRINO Cé lia Galvão SOUZA Maria Teresa Sadek de O pensamento político clássico Maquiavel Hobbes Locke Montesquieu e Rousseau São Paulo T A Queiroz Editor 1980 CAVALCANTI Themístocles Estudos em homenagem a JJ Rousseau 200 anos do Contrato Social 17621962 Rio de Janeiro FGV Serviço de Publicações 1962 CHEVALLIER JeanJacques História do pensamento político Rio de Janeiro Zahar Editores 1983 As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias Rio de Janeiro Agir 1986 CURTIS Michael The Great Political Theories a comprehensive selection of the crucial ideas in political philosophy from Burke Rousseau and Kant to modern times Nova Yorque Avon Books 1981 v 2 DENT N J H Dicionário Rousseau Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1996 DURKHEIM Émile O Contrato Social e a Constituição do Corpo Político In QUIRINO Célia Galvão SOUZA Maria Teresa Sadek de O pensa mento político clássico Maquiavel Hobbes Locke Montesquieu e Rousseau São Paulo T A Queiroz Editor 1980 JOUVENEL Bertrand de A Teoria de Rousseau sobre as Formas de Gover no In QUIRINO Célia Galvão SOUZA Maria Teresa Sadek de O pen samento político clássico Maquiavel Hobbes Locke Montesquieu e Rousseau São Paulo T A Queiroz Editor 1980 LEVISTRAUSS Claude JeanJacques Rousseau fundador de las ciencias del hombre In LEVISTRAUSS Claude et al Presencia de Rousseau Bue nos Aires Ediciones Nueva Visión 1972 MANENT Pierre História intelectual do Liberalismo Dez lições Rio de Janei ro Imago 1990 MARQUES José Oscar de Almeida Verdades e mentiras 30 ensaios em torno de JeanJacques Rousseau Ijuí RG Editora Unijuí 2005 MATOS Olegário C F Rousseau uma arqueologia da desigualdade São Paulo MG Editores 1978 183 Capítulo 6 Jean Jacques Rousseau da inocência natural à Sociedade Política Christiane Itabaiana Martins Romêo NASCIMENTO Milton Meira do Rousseau da Servidão à Liberdade In WEFFORT Francisco org Os clássicos da política São Paulo Atlas 1989 ROUSSEAU JeanJacques Vida e Obra São Paulo Abril Cultural 1978 Col Os Pensadores 2 ed p V a XXIV Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens São Paulo Abril Cultural 1978a Col Os Pensadores 2 ed p 201 a 320 Do Contrato Social ou Princípios do Direito Político São Paulo Abril Cultural 1978b Col Os Pensadores 2 ed p 1 a 145 Discurso sobre as Ciências e as Artes São Paulo Abril Cultural 1978c Col Os Pensadores 2 ed p 321 a 352 Emílio ou Da educação São Paulo Martins Fontes 2004 SALINAS FORTES Luiz R Rousseau o mundo político como vontade e representação In Filosofi a política 2 Porto Alegre LPM Editores 1985 O Iluminismo e os reis fi lósofos São Paulo Brasiliense 1987 Col Tudo é História Rousseau o bom selvagem São Paulo FTD 1989 Paradoxo do espetáculo Política e poética em Rousseau São Paulo Dis curso Editorial 1997 STAROBINSKI Jean JeanJacques Rousseau a transparência e o obstáculo São Paulo Cia das Letras 1991 WEFFORT Francisco org Os clássicos da política São Paulo Atlas 1989 Activity of the Eleven 8 7 6 5 4 3 2 1 0 What activity do I need How active are you Very Active Active Moderately Active Mildly Active Not Very Active To Bedroom To Studio To Hall5 10 15 20 Max Heathampleness Capítulo 7 Edmund Burke a estética conservadora da arte política Fernando LattmanWeltman1 71 Introdução Faz parte das contradições naturais da vida intelectual que aquele que melhor percebe e compreende determinada forma de vida política e social pode não ser exatamente o nativo mas sim o estrangeiro que por vontade própria ou contingência forçada o que é sempre mais provável acaba por adotar e defender como sua a ordem e o ambiente de sua adoção É discutível ao menos em termos teóricos e conceituais se o irlandês Ed mund Burke deveria ser considerado propriamente um estrangeiro na Inglaterra de fi ns do século XVIII tratandose como era de eminente parlamentar eleito e reeleito por mais de uma circunscrição para a Câmara dos Comuns O que parece Doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro IUPERJ professor e pesquisador do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas CpdocFGV Contato fernandolattmanweltmanfgvbr 186 ELSEVIER Curso de Ciência Política fora de dúvida é que talvez nenhum outro seu contemporâneo tenha tido maior sucesso em caracterizar se não mesmo construir a especifi cidade histórica e cultural do ethos político predominante naquele ambiente social sui generis em que a pecha de conservador podia caber sem maiores complicações à defesa do que provavelmente havia na Europa de seu tempo de mais moderno em termos de institucionalidade política A Inglaterra de Edmund Burke como nos mostram historiadores como Pocock ainda se debatia nas últimas décadas do setecentos com polêmicas acerca da natureza da sociedade civil especialmente no que dizia respeito às ainda íntimas relações entre a religião ou melhor as várias confi ssões em dis puta e o Estado Do mesmo modo ainda convivia com difi culdades institucio nais relativas à delimitação e ao equilíbrio de poderes entre o Rei e as casas do Parlamento principalmente quando defrontadas com monarcas voluntariosos como tudo indicava era o caso infelizmente para Burke e os seus amigos do então soberano inglês Jorge III De modo que ainda poderiam seguir intensos mesmo que intermitentes os grandes debates legados pelas ferozes lutas de cem anos antes Por outro lado era visível a relativa estabilidade política de que goza vam os cidadãos da Ilha desde a chamada Revolução Gloriosa de 1688 assim como as não menos signifi cativas liberdades civis e políticas principalmente se comparadas à situação da grande maioria dos continentais mesmo que ainda restassem importantes confl itos privilégios e desigualdades com base em res quícios da ordem feudal ou o que seguia ainda muito mais preocupante por desavenças religiosas Nascido em 12 de janeiro de 1729 na cidade de Dublin no seio de uma fa mília irlandesa em que ao que tudo indica conviviam tanto o catolicismo como o protestantismo Edmund Burke concluiu seus estudos no Trinity College de sólida formação protestante Chegando à metrópole em 1750 viria a associarse à facção Whig liderada por Lord Rockingham elegendose pela primeira vez por Wendover em 1765 Seria reconduzido à Câmara ainda duas vezes em 1774 por Bristol e por Malton em 1780 Ao longo dessa década ainda atuaria como membro do Executivo deixando afi nal o Parlamento em 1794 Faleceu em sua residência em Beaconsfi eld em 9 de julho de 1797 após a dolorosa perda de seu fi lho três anos antes O início de sua carreira intelectual era comumente datada pela redação de um ensaio de fi losofi a intitulado A vindication of natural society em 1756 Mas seu primeiro trabalho a atrair maior atenção foi um tratado sobre estética A 187 Capítulo 7 Edmund Burke a estética conservadora da arte política Fernando LattmanWeltman philosophical inquiry into the origins of our ideas of the sublime and the beautiful pu blicado em seguida Foi porém como orador ou melhor retórico já que segundo Pocock seu sotaque irlandês não o favorecia muito na tribuna e homem de ação po lítica que Burke não apenas granjeou a admiração ou a inimizade seja de seus contemporâneos seja de seus pósteros mas também foi a partir dessa luta retórica que ele construiu sua refl exão política original Tão original que toda uma nova vertente de compreensão política pôde ser nomeada a partir dela não obstante tratarse justamente da visão de mundo que mais justiça procurava fazer ao passado e às heranças institucionais legadas por este 72 Representação partidos retórica e engajamento A produção intelectual de Edmund Burke como mencionamos precede sua entrada no cenário político inglês Mas não constitui contradição o fato de que muitas de suas melhores obras de teoria política especifi camente vieram a público sob a forma original de peças de oratória quer nos embates com o elei torado quer nas tribunas do Parlamento Foi assim por exemplo que ao se dirigir aos seus eleitores em Bristol em agradecimento ao mandato por eles confi ado em 1774 nosso autor proferiu uma das mais sintéticas e interessantes defesas da autonomia parlamentar no cumprimento de suas responsabilidades diante do povo O parlamento não é um congresso de embaixadores que defendem in teresses distintos e hostis interesses que cada um de seus membros deve sustentar como agente e advogado contra outros agentes e ad vogados mas uma assembleia deliberativa de uma nação com um in teresse o da totalidade onde o que deve valer não são os interesses e preconceitos locais mas o bem geral que resulta da razão geral do todo Elegeis um deputado mas quando o haveis escolhido ele não é o de putado por Bristol e sim um membro do Parlamento Se o eleitor local tiver um interesse ou formar uma opinião precipitada que claramente se oponham ao bemestar real do resto da comunidade o deputado no assunto em pauta deve se abster como os demais de qualquer gestão para leválo a cabo Discurso aos eleitores de Bristol 17741 No discurso e no trecho em questão reaparecem com toda a clareza não apenas o compromisso de Burke com toda uma longeva tradição republicana expressa na afi rmação da res publica como horizonte normativo próprio da ação 1 Aqui e em todas as citações de Burke e também na de Rousseau mais adiante utilizo as traduções publicadas em Weff ort 1990 188 ELSEVIER Curso de Ciência Política política mas também os igualmente previsíveis pressupostos aristocráticos que originaram e sustentaram a evolução das modernas instituições representa tivas liberais Como muitas vezes acontece com a produção discursiva de Burke porém se o conteúdo imediato da elocução se refere à legitimação do que pode haver de mais tradicional como no caso a superioridade do interesse público diante das particularidades e a defesa algo aristocrática da autonomia dos eleitos a forma retórica com que se processa a defesa e a conservação das instituições ancestrais acaba sempre por inovar e situar a legitimação do objeto privilegiado num contexto de novas razões e justifi cativas Seja em um novo tratamento po sitivo da questão como veremos adiante na explicitação de novos sentidos ou mesmo em função das utilidades atribuídas aos valores e às instituições defendi das seja de modo negativo como no trecho acima pela construção da especifi cidade do papel parlamentar em oposição à fi gura conspícua e rigorosamente atual para Burke do advogado Tal como se tornaria claro depois na crítica à Revolução Francesa a referência a este último poderia guardar sentidos ideoló gicos mais precisos o advogado não desempenharia apenas uma ocupação ou ofício politicamente neutro como qualquer outro a sua prática e o espírito com que a reproduziria seriam representativos também de uma mentalidade indivi dualista egoísta e imediatista incompatível com a preservação das altas funções atribuídas por Burke à maneira clássica à prática parlamentar É justamente essa nova capacidade de legitimação do tradicional o que confere ao discurso de Burke e a todo o conservadorismo que dele se origina ou nele se espelha o seu caráter indubitavelmente moderno Como nos ensi naram os sociólogos da cultura como Mannheim é somente em função das exigências e desafi os políticos e intelectuais do novo quer dizer da revolução iluminista e do avanço concomitante das formas de pensar e agir associados aos novos setores mais desenraizados da burguesia que o conservadorismo surge e se afi rma como concepção original do social e do lugar da política em seu enredo Mas que lugar é esse Há aqui também alguma inovação digna de nota Para responder satisfatoriamente a essas questões é preciso ter em mente que pertence à nova tradição do pensamento político moderno inaugurada por Maquiavel a afi rmação da autonomia e da capacidade de intervenção criativa da arte política sobre a realidade Não apenas porque a cada revolução espiritual processada no Ocidente nos últimos séculos o homem mais se afastou dos limi tes impostos à sua discrição pelas forças divinas ou seus supostos intérpretes mas também porque a essa crescente autonomia e responsabilidade somouse 189 Capítulo 7 Edmund Burke a estética conservadora da arte política Fernando LattmanWeltman uma percepção cada vez mais sistemática da especifi cidade do campo próprio de intervenção da política Em especial frente à ética que a dominara e lhe pres crevera seus meios e objetos por quase dois milênios É somente por força de tais desenvolvimentos e rupturas que se tornou possível como nos ensinou o mestre fl orentino a noção de que cabe ao Príncipe o poder demiúrgico de invenção da Ordem através de habilidades especifi ca mente políticas a sua virtù diante das imposições nada divinas da Fortuna A partir de Maquiavel portanto a arte da política passou a desenvolverse de modo autônomo enquanto disciplina intelectual e estabeleceu paulatinamente para si seus próprios critérios de juízo Ou seja do que constitui o bem ou o mal em termos rigorosamente políticos de acordo com as imposições específi cas da esfera daquilo que pode ser efetivamente realizado e não propriamente do que deve ser feito tal como antes era prescrito à política pela ética Burke é à sua maneira fi el a essa tradição e em seu famoso discurso sobre as Causas do descontentamento atual 1770 em que abordou a conjuntura política inglesa à época conturbada segundo o seu ponto de vista por articulações de certo modo reacionárias da Coroa ele desenvolve não somente o tema conhe cido da política como fi losofi a em ação mas também o faz em consonância com a legitimação da nova forma de realização desse ideal o partido político Se antes ao tempo de Maquiavel e sua imaginação ainda fortemente caudatária dos modelos clássicos revividos pelo Renascimento e pelas lições exemplares da Historia Magistra Vitae a História prémoderna sem um sentido teleológico explícito e repositório de exemplos atemporais conforme a conceituação de Ko selleck poderia caber inteiramente à fi gura do Príncipe o ônus e o privilégio de moldar a realidade política dos homens e suas instituições na Inglaterra do século XVIII de Burke não há meios de se obstar o caminho do mal e dotar as nações dos recursos políticos necessários à boa condução dos interesses públicos senão através da associação dos homens de bem em torno dos mesmos ideais e programas Através de partidos políticos Um partido é um grupo de homens unidos para fomentar através de ações conjuntas o interesse nacional na base de algum princípio deter minado sobre o qual todos estão de acordo De minha parte pareceme impossível conceber que alguém acredite em sua própria política ou acre dite que esta possa ter algum peso se se nega a adotar os meios de colocá la em prática A tarefa do fi lósofo especulativo consiste em descobrir os fi ns correspondentes ao governo A do político que é o fi lósofo em ação é a de encontrar meios adequados para alcançar tais fi ns e utilizálos com efi cácia Refl exões sobre as causas do descontentamento atual 1770 190 ELSEVIER Curso de Ciência Política Afi nal pergunta ele que outro meio conhece a humanidade para tornar efetivo todo o potencial criativo de cada indivíduo melhor do que o estímulo e a acolhida coletiva de uma associação fraterna e natural Se os homens não conhecem os princípios dos demais não experimen taram os talentos dos outros nem colocaram em prática seus mútuos talentos e disposições através de esforços comuns nos negócios não há entre eles confi ança pessoal nem amizade nem interesse comum e é evidente que não podem desempenhar nenhum papel público com uniformidade perseverança e efi cácia Em aliança com outros o ho mem mais insignifi cante agregado ao peso de todos tem seu valor e utilidade fora dele os maiores talentos são totalmente inúteis para ser vir ao povo Refl exões sobre as causas do descontentamento atual 1770 Mais uma vez o eco aristotélico do argumento reforça a impressão en ganosa de que podemos estar diante apenas de um retórico tradicionalista e redundante Hábil no manejo das palavras por certo Mas irrelevante em termos teóricos O engano seria porém mais prejudicial a nós do que à reputação do au tor Pois que a defesa do partido político não se restringe a legitimálo em termos tradicionais por evocação de sua naturalidade enquanto associação e dos seus recursos de socialização Ela se faz também e acima de tudo por uma profi ssão de fé na necessidade imperiosa do engajamento e da ação política con sequente Somente através da associação política pode o individuo amplifi car suas eventuais capacidades e articulálas de modo consequente à força de seus pares e correligionários tornandose assim efetivamente apto a infl uir no rumo dos acontecimentos em prol do bem comum A rigor não há para um cidadão consciente e acima de tudo para aqueles que se dedicam à política segundo Burke maior imperativo ético do que a pura e simples busca do poder Quando o homem público não chega a se colocar em condições de cum prir seu dever com efi cácia esta omissão frustra os propósitos de seu mandato quase da mesma forma que se os houvesse traído abertamen te Na verdade não é um resumo muito elogioso da vida de um homem dizer que sempre trabalhou bem mas que se conduziu de tal forma que seus atos não deram margem à produção de nenhuma consequência Refl exões sobre as causas do descontentamento atual 1770 Tratase tal concepção de Burke portanto de uma forma de valorização da política sua arte e sua missão mais condizente entretanto a um momento 191 Capítulo 7 Edmund Burke a estética conservadora da arte política Fernando LattmanWeltman histórico e institucional específi co em que talvez de forma inédita o campo da intervenção criativa se expande e incorpora de modo crescente novos atores e talentos entre eles por que não também os de origem plebeia e oriundos das margens da Commonwealth como o próprio Burke Compreendese assim porque ao contrário do que pode supor uma visão apressada ou anacrônica dos sentidos do seu conservadorismo as concepções de Burke a respeito do papel do cidadão e do homem público de seu tempo e das altas funções por ele atribuídas às novas e importantes instituições da or dem liberal em formação na Inglaterra os partidos e o cada vez mais poderoso Parlamento puderam servir a uma prática política comprometida com a defesa de agendas que vistas a posteriori difi cilmente poderiam ser classifi cadas como necessariamente continuístas ou muito menos retrógradas Datam dessa mesma época e se encontram esposadas nos mesmos dis cursos fundadores na verdade os estruturam causas como a defesa das li berdades políticas e civis asseguradas em seu país cerca de cem anos antes pela chamada Revolução Gloriosa de 1688 ou o reconhecimento da legitimidade dos pleitos dos insurgentes norteamericanos diante dos erros e abusos da política externa inglesa Ora como é possível então que esse campeão parlamentar de causas que poderíamos chamar com pequenos riscos de incorrer em anacronismos de li berais esse ardoroso defensor da evolução institucional inglesa por meio in clusive da revolução possa ter se metamorfoseado no crítico contemporâneo mais feroz do mais importante processo de transformação política e social da era moderna No corifeu de uma nova ideologia política justamente aquela que se ergueu em armas contra o Iluminismo até mesmo legitimando as instituições do Antigo Regime Na defesa da superioridade das tradições diante da iconoclastia inovadora da Revolução Francesa 73 Abstração ideal e concretude histórica É um equívoco portanto interpretar a crítica devastadora de Burke à Re volução Francesa em termos de uma simples reação de classe ou estamento às iniciativas do movimento em especial as de caráter socialmente nivelador como as que procuravam acabar com privilégios imemoriais e como diria Tocquevil le algumas décadas depois de Burke promover a equalização democrática dos franceses É certo que de maneira muito diferente do que ocorre conosco hoje ou pelo menos com a grande maioria entre nós para o nosso autor e também para os seus contemporâneos não há associado à palavra democra cia qualquer conteúdo semântico indiscutivelmente positivo ou muito menos 192 ELSEVIER Curso de Ciência Política autojustifi cativo Para Burke se não devidamente traduzida em instituições e práticas sociais concretas a palavra democracia não é nada além disso uma simples palavra Pior talvez apenas um slogan uma palavra de ordem vazia que pode mover os homens em torno e em direção a nada ou ao caos Com efeito diz Burke a seu nobre interlocutor nas suas Refl exões sobre a Re volução em França o rumo dado aos acontecimentos pelos revolucionários consti tuía verdadeiro crime contra o povo francês e dele nada se poderia esperar em curto prazo de benéfi co Iniciadas originalmente como uma simples carta em atendimento às de mandas de um jovem francês CharlesFrançois Depont que lhe pedia sua opi nião estas Refl exões acabaram por desencadear um desenvolvimento muito pró prio de ideias o que levou Burke a estendêlas por muito mais páginas do que o planejado originalmente tomandolhe vários meses e retardando de modo equivalente portanto a resposta solicitada Foram escritas porém em paralelo aos primeiros acontecimentos da Revolução e refl etem a inquietude de seu au tor diante dos mesmos além é claro de antecipar alguns dos desdobramentos futuros do processo revolucionário Três eventos dramáticos teriam mobilizado em especial o crítico do outro lado da Mancha segundo Pocock a abolição dos direitos feudais em agosto de 1789 a expropriação das terras da Igreja francesa e seu uso como garantia de um novo empréstimo feito pela Assembleia Nacional e a marcha dos parisienses a Versalhes com o retorno forçado da família real a Paris em 6 de outubro daque le mesmo ano Burke sentirase ultrajado pelo tratamento dado aos monarcas pelo povo o que de par com as duras medidas anteriores confi gurava para ele ao mesmo tempo um ataque aos pilares ancestrais da sociedade francesa e uma prova da força aparentemente incontrolável e irresponsável adquirida pelo povo insufl ado porém por setores sociais médios desvinculados de quaisquer compromissos com a ordem e a harmonia da sociedade Mais grave do que os terríveis erros dos revolucionários franceses segun do nosso autor entretanto era a admiração que tais feitos poderiam estar gran jeado do outro lado do Canal na própria Inglaterra A rigor a resposta de Burke aos acontecimentos em França talvez não tivesse nem a dimensão nem o tom que a tornou célebre e tão infl uente a posteriori no mundo das ideias políticas se pregadores como o reverendo Richard Price e sua Sociedade Revolucionária em Londres contivessem seu entusiasmo pela Revolução ao invés de fazer sua apologia Inclusive com sérios desdobramentos segundo Burke e os seus para a própria compreensão histórica e política dos sentidos da evolução institucional 193 Capítulo 7 Edmund Burke a estética conservadora da arte política Fernando LattmanWeltman inglesa por mais de cem anos desde a Guerra Civil o Protetorado a Restaura ção e a Revolução de 1688 Com efeito grande parte das Refl exões se destina a desconstruir não ape nas os argumentos de Price em favor da Revolução Francesa e ao espírito das rupturas por ela patrocinadas mas acima de tudo o modo como aquele associa ra e identifi cara esse movimento ao que ocorrera pouco mais de um século antes em seu país O discurso de Price reinterpretava a Revolução Gloriosa em termos de uma defesa lockeana do direito natural de os povos estabelecerem e é claro também deporem seus governos e elegerem seus soberanos Ou seja funda mentava desse modo o processo pelo qual fora investido no trono Guilherme de Orange Burke muito ao contrário apontava a questão religiosa a exigên cia revolucionária da manutenção de uma linhagem protestante e enfatizava as dimensões de continuidade no processo de substituição do rei já que além de protestante a Casa de Orange estava perfeitamente conectada às linhagens reais por laços de consanguinidade A solução revolucionária inglesa portan to segundo Burke não somente não contou com nada que se pareça com uma teoria de eleição popular ou de soberania do povo à la Locke como também primou pelo estrito respeito à continuidade das tradições do país ao garantir a investidura de um membro da família real Para além da questão histórica de ordem aparentemente apenas interpre tativa o que na verdade se situava no centro da polêmica era portanto uma série de delicadas questões relativas ao direito constitucional inglês em especial aquelas que se referiam às regras de sucessão e às relações ainda bastante com plicadas entre religião ou religiões e a Coroa Envolvendo as ligações entre Igreja e Estado e por último mas não menos importante sua possível separação defi nitiva O que talvez mais nos diga respeito hoje contudo alheios que estamos daquele contexto e mais interessados em questões gerais de teoria política é que o alvo da ira de Burke contra a Revolução Francesa para além dos riscos conjunturais que o movimento poderia representar para a Inglaterra e mais es pecifi camente para ele e seus aliados era pois não tanto os eventuais desejos democratizantes dos seus promotores mas acima de tudo o caráter abstrato ar bitrário artifi cial e indefi nido da ideologia que parecia colocar os revolucionários franceses em movimento tal como uma turba de fanáticos religiosos dispostos a tudo e prontos a destruir sem dó piedade ou refl exão tudo o que atravessas se seu caminho em seu afã de zerar a História e construir o novo a partir de um projeto ideal Sem dúvida que esse movimento iconoclasta voltavase contra grupos sociais e instituições do Antigo Regime a que Burke devotava grande 194 ELSEVIER Curso de Ciência Política valor e respeito Mas essa veneração não era devida como veremos por puro apego tradicionalista ao velho nem por uma identifi cação de classe irrefl etida A razão mais interessante talvez para a veneração que Burke demons trou diante das tradições e instituições de longa duração e a chave para a com preensão de sua sensibilidade política aguçada encontrase na verdade na sua peculiar concepção acerca da ontologia do social e na importância atribuída por ele ao hábito e ao costume na compatibilização entre instituições políticas e comportamento social harmônico O valor de uma instituição social para o Burke retórico e teórico das Re fl exões é medido por sua utilidade Mas esta por sua vez não pode ser sim plesmente aquilatada através de um cálculo racional abstrato ou individual A utilidade real das instituições segundo ele só pode ser comprovada através da sua duração no tempo por sua manutenção e credibilidade O mais importan te contudo é que o verdadeiro juiz dessa utilidade não é o simples indivíduo mas sim o grupo social que não somente pode garantir a perpetuação dessas construções que na verdade dele emanam mas é quem a rigor acolhe os próprios indivíduos quem os socializa como diríamos hoje e quem forma através das gerações a sua cultura traduzida não apenas em objetos aparente mente intangíveis como hábitos costumes e valores mas sim consubstanciada também numa série de patrimônios materiais como obras de arte e arquitetu ra monumentos símbolos ícones e produtos culturais de toda espécie Numa verdadeira herança capaz de dar a um povo sua identidade específi ca entre os demais povos conectandoo por meio de laços sensíveis e emotivos aos seus antepassados e descendentes Através da concepção de uma conformidade à natureza em nossas instituições artifi ciais e invocando a ajuda de seus instintos infalíveis e poderosos para fortalecer as maquinações falíveis e frágeis de nossa razão temos derivado várias outras e obtido consideráveis benefícios a partir da consideração de nossas liberdades à luz de uma herança Por este instrumento nossa liberdade se torna uma liberdade nobre Ela porta um aspecto imponente e majestoso Ela tem um pedigree e ancestrais ilustres Tem seus comportamentos e suas insígnias heráldi cas Tem uma galeria de retratos suas inscrições monumentais seus re gistros evidências e títulos Refl exões sobre a Revolução na França 1790 Por outro lado sendo tal patrimônio tal herança comum um produto não das vontades individuais explícitas e unívocas de quem quer que seja e sim o produto não previsto de inúmeras interações sociais complexas e provavelmen te contraditórias quer dizer um produto da História poderá ele comportar 195 Capítulo 7 Edmund Burke a estética conservadora da arte política Fernando LattmanWeltman uma gama limitada porém frequentemente heterogênea de elementos dando ao povo assim formado em sua relativa unidade uma diversidade política social e cultural interna bastante considerável Longe de se constituir necessariamente num impeditivo à coexistência pa cífi ca desses grupos no seio de uma mesma sociedade a existência dessas dife renças naturais porque histórica e concretamente produzidas pode conter grandes vantagens políticas e institucionais Tal como já fi cara sugerida na elabo ração da defi nição ideal dos partidos para Burke a associação de indivíduos em grupos e a existência de antagonismos entre estes se devidamente controladas em especial pelas instituições pelo costume e pelas tradições aceitas inclusive as hierárquicas podem gerar benefícios políticos como os do equilíbrio evo lução aperfeiçoamento moderação compromisso e responsabilidade Com efeito em outra passagem das Refl exões assim se dirige ele a seu jovem interlocutor francês Vossa Constituição foi suspensa antes de ser aperfeiçoada mas tivestes os elementos de uma Constituição tão próximos quanto se poderia de sejar Em vossos velhos Estados possuístes aquela variedade de partes correspondentes às várias descrições daquilo que vossa comunidade felizmente se compunha tivestes toda aquela associação e toda aquela oposição de interesses tivestes aquela ação e reação que no mundo natural e no mundo político através da luta recíproca das forças dis cordantes elaboram a harmonia do universo Esses interesses opostos e confl itantes que considerais como uma grande mácula tanto na vossa Constituição antiga quanto na nossa atual interpõem uma checagem salutar a todas as resoluções precipitadas elas tornam a deliberação não uma questão de escolha mas de necessidade fazem de toda trans formação uma questão de compromisso que naturalmente implica mo deração produzem temperamentos que evitam o dano grave de refor mas rudes cruéis e incompetentes e que tornam para sempre imprati cáveis todos os exercícios temerários do poder arbitrário por parte de uns poucos ou de muitos Refl exões sobre a Revolução na França 1790 De fato o controle do comportamento político exercido em termos práti cos e portanto não necessariamente autoconscientes através não de algum cálculo extemporâneo mas sim por meio de constrangimentos morais social mente reproduzidos atuando de modo externo aos indivíduos como censura ou internamente enquanto preceitos de alguma eticidade concreta confi gu ra segundo o autor não exatamente uma restrição arbitrária mas muito pelo contrário a sua liberdade verdadeira aquela que lhe foi outorgada por seus 196 ELSEVIER Curso de Ciência Política antepassados e institucionalizada no Estado sob a forma de deveres e direitos concretos historicamente determinados Possuímos uma Coroa transmissível uma nobreza transmissível e uma Câmara dos Comuns e um povo herdando privilégios franquias e li berdades a partir de uma longa linhagem de ancestrais Pareceme que esta política é o resultado da profunda refl exão ou antes o efeito feliz de se seguir a natureza que é sabedoria sem refl exão e acima dela Além disso o povo da Inglaterra bem sabe que a ideia de herança ofere ce um princípio seguro de conservação e um princípio seguro de trans missão sem jamais excluir um princípio de aperfeiçoamento Refl exões sobre a Revolução na França 1790 Desse modo numa apropriação bastante inovadora da teoria contratua lista particularmente a de Hobbes a concepção burkeana do Estado como produto de uma vinculação prática intergeracional ao longo do tempo de certo modo resolve muitas das aporias da teoria original principalmente em suas versões clássicas do século XVII Se as teorias dos contratualistas foram e por incrível que pareça ainda são criticadas por seu caráter supostamente abs trato em especial no que diz respeito ao momento fundador do contrato ou seja como se de fato não pudessem prescindir de um ato coletivo racional de vontade que fundaria concretamente a ordem legítima a teoria de Burke explicitada como não poderia deixar de ser na retórica engajada das Refl exões contorna esse suposto problema ao transferir à História concreta dos povos o que podemos chamar de fundamento racional do Estado A sociedade é de fato um contrato mas o Estado deve ser en carado com outra reverência porque não se trata de uma parceria em coisas subservientes apenas à existência animal bruta de uma natureza temporária e perecível É uma parceria em toda ciência uma parceria em toda arte uma parceria em cada virtude e em toda perfeição Como os fi ns de uma tal parceria não podem ser obtidos senão em muitas gerações ele se torna não apenas entre aqueles que estão vivendo mas entre aqueles que estão vivendo aqueles que estão mortos e aqueles que irão nascer Refl exões sobre a Revolução na França 1790 Antecipandose a importantes desdobramentos fi losófi cos da teoria do Estado que viriam a tomar forma ao longo do século XIX em especial na obra política de Hegel Burke por assim dizer elimina a aporia racionalista do con tratualismo ao defender a tese de que ao se produzir historicamente pelo in vestimento institucional criativo de geração após geração demonstrando assim de modo empírico sua utilidade e garantindo para os súditos a liberdade civil 197 Capítulo 7 Edmund Burke a estética conservadora da arte política Fernando LattmanWeltman única ainda possível de obtenção as instituições do Estado podem agora demandar para si uma nova legitimidade e consequentemente uma obediência de outro tipo Legitimidade e obediência derivadas não da adequação das insti tuições a algum plano racional abstrato ou apriorístico mas sim ao hábito e à própria identidade coletiva construída historicamente Por conformidade como diria Burke a sábios preconceitos adquiridos no processo de socialização e que nos conectam afetiva e moralmente a uma Ordem que desde o momen to em que nos reconhecemos naturalmente enquanto nós também se nos apresenta como naturalmente nossa Se houve no passado algum contrato digno desse nome portanto ele tanto pode ter se perdido na noite dos tempos como não passar de simples mito fundador A rigor para a teoria desenvolvida nas Refl exões não faz diferença O que importa é quão natural é o nosso sentimento de pertencimento ao coleti vo e o quanto nos reconhecemos nas instituições que defi nem nossas liberdades práticas nos limitam e demandam nossa obediência De modo que as falhas e defeitos dessas instituições podem e devem ser sanados até mesmo para ga rantir a continuidade de sua legitimidade Mas qualquer mudança terá de ser feita com cautela sem perda dos referenciais que garantem a naturalidade com que devemos nos relacionar com elas E aqui ressalta com maior nitidez a diferença política fundamental do pensamento burkeano e do conservadorismo que irá se afi rmar a partir dele diante da imaginação política iluminista responsável em última análise pelo caráter utópico e abstrato da Revolução Francesa segundo Burke Pois que en quanto o traço talvez mais característico desta última seja a crença otimista na capacidade humana e no dever ético incontornável de se promover a supe ração de todo o conhecimento precário e duvidoso mesmo que natural e apa rentemente evidente aquilo que ainda se encontra sob a forma préconceitual em prol de ciências seguras que de fato expulsem as trevas a que até então pareciam condenados os homens trazendo enfi m a luz para todos conforme a imagética clássica da Ilustração Burke atribui ao preconceito outro valor e fun ção social Para ele a crença racionalista que o Iluminismo sustentava no sentido da superação progressiva dos preconceitos cujo modelo individualista típico é o do fi lósofo especulativo livrepensador ou ainda melhor o cientista mo derno capaz de navegar contra a corrente do senso comum desmistifi candoo e substituindoo por outro saber trai uma arrogância epistemológica perigosa e consequentemente uma atitude política ainda mais perniciosa e fatal uma ten dência a desvalorizar toda e qualquer prática e instituição concreta que não se amolde ao crivo ideal da crítica racionalista o que de modo não surpreendente 198 ELSEVIER Curso de Ciência Política pode conduzir a iniciativas políticas radicais e temerárias Enquanto por sua vez os preconceitos sociais construídos pelo senso comum ao longo do tempo compartilhados lentamente modifi cados e transferidos de geração a geração não com o sentido explícito de alguma ocultação deliberada da verdade mas até mesmo com tal função são no entanto fundamentais à manutenção da ordem e das expectativas socialmente compartilhadas pelos grupos e indivíduos nas duras lidas do cotidiano Ou seja longe de desviar os seres humanos de alguma rota porventura mais correta em termos abstratos segundo Burke são os pre conceitos social e naturalmente adquiridos e como tal não questionados que os guiariam de modo seguro e sem margem a angústias maiores tal como mapas ou bússolas nas fl orestas oceanos ou desertos da vida É também por valorizar politicamente as diferenças e não a homogeneida de abstrata entre os homens como já mencionamos acima que Burke não consi dera as diversidades cognitivas entre estes como algo necessariamente negativo Muito pelo contrário para ele seria abominável ter de viver em uma sociedade onde a felicidade geral não pudesse ser obtida senão quando todos se puses sem de acordo através de longos e penosos esforços de investigação fi losófi ca e científi ca e de aprendizado universal dos complicados métodos e teorias à luz das quais tais verdades incontestes seriam testadas e a princípio confi rma das Dado que para Burke só poderia ser considerado indubitavelmente útil aquilo que pudesse ser demonstrado em termos rigorosamente práticos pela experiência e não de um homem apenas mas sim de um complexo coletivo historicamente construído no tempo e dado que justamente por ser coletivo tal conhecimento prático válido só pode ser de fato obtido pelo concurso pro vavelmente inconsciente de homens muito distintos com distintas habilidades e saberes em diferentes momentos não há realmente por que julgar necessaria mente maléfi ca a ignorância ou incongruente com a felicidade daqueles que porventura a cultivem Assim para nosso autor longe de se constituir num mal a se combater com as forças da Razão tal como pressupunham e afi rmavam confi antemente os iluministas o preconceito não apenas cumpriria importante função social e psicológica estruturante contribuindo assim para a necessária previsibilidade do mundo como por isso mesmo desempenharia também um papel políti co estratégico na manutenção da ordem e da harmonia sociais Como víramos antes é essa utilidade o que torna bons e veneráveis para Burke preconceitos como por exemplo os da religião os do respeito às classes e estamentos e aci ma de tudo os de reverência ao Estado 199 Capítulo 7 Edmund Burke a estética conservadora da arte política Fernando LattmanWeltman Ao contrário do que sugeriria portanto uma visão sociologicamente re ducionista que veria em Burke e em sua retórica apenas uma defesa reacioná ria do Antigo Regime é no conceito de utilidade social que se encontra a raiz de uma concepção conservadora que pode ter sua obra como ponto de partida De acordo com esta o que se herda deve ser conservado não simplesmente porque alguma tradição assim o determina arbitrariamente mas sim porque nas práticas e instituições de longa duração provavelmente se encontra a superio ridade da sabedoria cumulativa e prática coletivas Uma sabedoria muito mais ampla e consistente de fato melhor testada e confi rmada pelo tempo do que as vãs elucubrações da razão abstrata e individualista típica do Iluminismo triunfante E assim a arte da intervenção institucional e política para Burke é ao mesmo tempo a mais difícil e a mais necessária Pois que embora se trate sem pre de diagnóstico e invenção é preciso aliar à ação política o fi el seguimento daquilo que ele chama de o método da natureza a capacidade de aperfeiçoar e adaptar a novas necessidades aquilo que já demonstrou a sua utilidade e que desse modo não pode ser simplesmente descartado e refeito arbitrariamente sem o necessário respeito ao que nele já foi objeto de intervenções anteriores Todos os vossos sofi stas não podem produzir nada mais adequado para preservar uma liberdade racional e humana do que o método que temos perseguido e têm escolhido nossa natureza ao invés de nossas especulações nossos fôlegos em lugar de nossas invenções para os grandes silos e armazéns de nossos direitos e privilégios Refl exões so bre a Revolução na França 1790 Tratase de uma valorização inegável da continuidade frente à ruptura De modo que inclusive esta última só pode ser legítima em casos extremos justamente aqueles em que se pode claramente identifi car algum grave processo de desvio do rumo natural das coisas no sentido do desvirtuamento do espí rito do objeto da ruptura E nesse caso portanto tal ruptura assume um claro sentido restaurador O método da natureza quando aplicado aos produtos da intervenção política e institucional humana corresponde então à naturalização do artifício e à superação progressiva e paulatina dos eventuais elementos de arbitrariedade intrínsecos ao processo histórico E embora de um ponto de vista estritamente político o pensamento de Burke se colocasse numa posição francamente antagô nica à de Rousseau é curioso perceber como a concepção da ontologia social dos dois se aproxima por mais estranho que isso possa parecer 200 ELSEVIER Curso de Ciência Política No seu famoso Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade en tre os homens Rousseau teria por assim dizer aberto as portas da revolução ao postular o caráter necessariamente arbitrário se não mesmo fraudulento da origem de importantes instituições históricas É o caso famoso da propriedade privada O 1o que tendo tendo cercado um terreno lembrouse de dizer Isto é meu e encontrou pessoas bastante simples para crêlo foi o verdadeiro fundador da sociedade civil Quantos crimes guerras mortes quantas misérias e horrores não teria poupado ao gênero humano aquele que arrancando as estacas ou enchendo o fosso tivesse gritado aos seus semelhantes Guardaivos de escutar este impostor estais perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra é de ninguém Rousseau Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens Como se sabe a saída buscada por Rousseau para a produção da ordem legitima e a superação em defi nitivo das formas arbitrárias e injustas de orga nização social baseouse no racionalismo do Contrato social sem que o pensa dor suíço pudesse superar contudo as difi culdades já mencionadas do contra tualismo e claramente demonstradas nos desafi os que até hoje se manifestam na recepção de sua concepção de vontade geral que como diz Rousseau não se confunde jamais com a vontade majoritária Burke por sua vez reconhece nessa mesma arbitrariedade um elemento inexorável da produção da vida social mas estabelece um outro parâmetro para a legitimação de ordens falhas como esta a que parece estar condenado o gênero humano como vimos não a Razão abstrata de um pacto fundador fora do Tem po e do Espaço mas sim a naturalização utilitária do arbitrário ao longo da duração humana real através de ajustes e intervenções parciais agregadas e não necessariamente conscientes que quando se mostram talvez efetivamente ra cionais do ponto de vista do interesse coletivo transgeracional fazem tais cria ções humanas perdurar e obter respeito e adesão dos grupos sociais concretos À Razão de Rousseau e dos iluministas de seu tempo Burke irá contrapor a História E com esta abre ele as portas do século XIX 74 PósBurke conservadorismo e ciências sociais Se de um lado a História é o conceitochave da ontologia de Burke por outro é fácil também reconhecer em sua obra assim como na de outros con servadores como sugere Nisbet alguns dos elementos centrais do novo pen 201 Capítulo 7 Edmund Burke a estética conservadora da arte política Fernando LattmanWeltman samento sociológico que irá se formar e se tornar autoconsciente ao longo do século XIX Como vimos um dos pressupostos centrais da concepção política de Burke é o da superioridade do conhecimento empírico e prático acumulado nas instituições humanas de longa duração sobre as maquinações da razão abstrata e individual localizada Isto se dá não somente por força da gênese social des se patrimônio que como tal contou com o concurso com os conhecimentos parciais de uma infi nidade de indivíduos em interação e em aperfeiçoamentos sucessivos e por último mas não menos importante com o teste do tempo mas também porque tais produtos coletivos como todo fato social como diria Durkheim ao sistematizar o conhecimento sociológico muitas décadas depois de Burke se inserem de modo relacional num conjunto bem mais amplo de outras instituições o que lhes pode permitir uma série de adaptações mútuas necessárias ao seu funcionamento concomitante Com efeito um dos problemas mais sérios da intervenção institucional se situa justamente no fato de que da das a interação e a comunicação efetiva entre as práticas e instituições no tecido social resultados que se busca obter num determinado ponto podem produzir efeitos não previstos e eventualmente perversos em outros lugares ou esferas da sociedade E é bastante possível que o agente humano que intervém parcial e confi antemente não possua os conhecimentos necessários sobre todas as in terações efetivas ou possíveis entre a área de sua interferência e outras a ela conectadas e das quais ele pode até mesmo nem suspeitar A crença de Burke era a de que a prática coletiva se deixada livre em suas tradições e se devidamente respeitada em seu espírito certamente encontraria em algum prazo os meios mais efi cazes de adaptar mutuamente suas institui ções Assim de par com a superioridade da razão coletiva se afi rmava também a da prática diante da teoria ou melhor dizendo da especulação Sem dúvida que não se tratava de um empirismo ingênuo ou radical e que julgava pres cindir da análise e do trabalho de elaboração conceitual e teórica mas sim de uma atitude intelectual que se recusa a teorizar no vazio sem o controle de evi dências empíricas e do conhecimento acumulado e compartilhado socialmente mesmo que precário ou em grande medida instintivo Tratase portanto de um ceticismo moderado e relativamente humilde diante da realidade social que se observa e sobre a qual se pretende quando necessário intervir politicamente como vimos de modo prudente mas fi rme Desse modo a primazia dada à prática e à sua gênese social abre ca minho para uma das dimensões mais importantes e defi nidora da própria especifi cidade do pensamento sociológico subsequente a Burke e aos seus 202 ELSEVIER Curso de Ciência Política interlocutores no que passará a ser denominado campo ideológico do con servadorismo moderno a atenção às dimensões não necessariamente cons cientes da ação e do comportamento sociais É por isso que o estudo a in terpretação e politicamente falando o respeito aos hábitos e costumes não necessariamente conscientes ou deliberados dos indivíduos e grupos assume dimensão tão importante nesse tipo de pensamento É muito mais nas práticas do que nos discursos ou no caso destes nos seus elementos linguísticos mais estruturados e como diria a posterior teoria estruturalista mais independentes da fala que se detém o observador e intérprete so cial burkeano É justamente naqueles elementos que muito antes de revelar a suposta intenção consciente do agente ou falante nos dizem muito mais sobre o que na verdade o determina como indivíduo concreto situado no tempo e no espaço que se debruça a análise E são esses elementos muito mais amplos que segundo o cânone conservador devem fazer parte da ima ginação e do cálculo sim este nunca se ausenta na prática política conse quente do fi lósofo em ação demandado por Burke É por isso que as formas os rituais e acima de tudo os preconceitos são tão importantes Identifi car ao que concretamente os homens atribuem legiti mação e autoridade quais as fontes do status que distribuem entre si perceber o que conta para eles como sagrado diante do que é tido por profano em suma tudo aquilo que estrutura dá sentido e valor ao mundo para eles é decisivo para a compreensão de suas práticas políticas e do impacto possível ou provável de nossas ações sobre eles Sem dúvida é possível interpelálos racionalmente falando por exemplo a pura linguagem do interesse e do contrato Mas a ca racterística distintiva da abordagem informada pelo pensamento burkeano é a atenção constante ao fato de que tais razões interesses e cálculos jamais se dão no vazio Nem é lícito supor que o contrato ou qualquer outro mecanismo de concertação racional poderá ser facilmente interpretado e assim garantir ade sões equivalentes diante da heterogeneidade que felizmente pode reinar en tre os homens Heterogeneidade de ideias de visões de mundo de prioridades valores perspectivas expectativas etc Voltamos pois à antiga e venerável tradição intelectual que reconhece na prática política acima de tudo uma arte Uma arte de prudência imaginação engajamento e intervenção responsável Se estas poderosas ferramentas de intelecção privilegiadas por Burke ser viram ou têm servido mais ao longo dos anos que nos separam dele a correntes políticas ditas mais conservadoras ou mesmo reacionárias como sugere por 203 Capítulo 7 Edmund Burke a estética conservadora da arte política Fernando LattmanWeltman exemplo Hirschman creio que isso é menos demérito do autor do que dos eventuais antagonistas políticos e ideológicos daqueles liberais socialdemo cratas socialistas etc que não souberam ou não puderam se valer das ideias do grande orador irlandês no sentido de avançar suas próprias plataformas É claro que é perfeitamente possível se ater apenas ao que considero a superfície da argumentação burkeana e em desacordo com a interpretação que aqui privilegio torcer o sentido de sua defesa de tradições num rumo instru mental e passadista tomando as instituições antigas como boas em si mesmas ou de acordo com suas próprias justifi cativas ideológicas Por outro lado tam bém é bastante provável que as ideias e argumentos protohistoricistas e proto sociológicos de Burke se prestem muito melhor à defesa ideológica ou partidá ria de posições políticas conservadoras eou reacionárias do que por exemplo a um uso efi caz por parte de liberais no combate das ideias Dadas as diferenças fundamentais entre as práticas da análise política e social e as do engajamento político mesmo quando tais práticas são tão pró ximas simultâneas e quase que indistinguíveis não creio que o interesse nas ideias de Burke possa se restringir sem prejuízo para qualquer leitor aos inte resses táticos e estratégicos dos setores mais conservadores O próprio Burke como vimos não parece ter encontrado tanta difi culdade em conciliar sua ma neira de encarar os fatos políticos e sociais e a defesa de pontos de vista que se poderiam qualifi car então de tudo menos de conservadores ou muito menos reacionários De qualquer modo era esse espírito empirista adaptativo e prático que tanto advogava para a compreensão dos fatos da política o que a rigor Burke reconhecia ou queria reconhecer como vigente na Inglaterra responsável pelo que julgava ser a felicidade dos ingleses e pela superioridade histórica relativa das suas instituições em formação na época As novas instituições que denominamos liberais e em breve também democráticas que o conservador Burke queria a seu modo e de acordo com seus objetivos mais ou menos conjunturais preservar a todo custo 75 Perguntas para reflexão 1 Como Burke compreendia os papéis dos representantes e dos partidos políticos 2 Qual aspecto da Revolução Francesa mais desagradava a Burke 3 Como é possível segundo o autor avaliar o real valor de uma instituição política e social humana 204 ELSEVIER Curso de Ciência Política 4 Em que sentidos se pode dizer que Burke reinterpretou a tradição con tratualista ocidental 5 Quais os principais pontos de divergência entre as concepções políticas do Iluminismo e do Conservadorismo burkeano 6 Quais as funções do preconceito no pensamento do autor 7 Por que as diversidades de conhecimento entre os homens sua ignorân cia inclusive não constituem problema para a ordem política na concep ção de Burke 8 Qual o significado da expressão método da natureza na concepção da prática política em Burke 9 A que aspectos do comportamento social e político o pensamento burke ano dedica especial atenção em suas análises 10 Argumentos conservadores como os de Burke podem ser utilizados para a defesa política de pontos de vista não necessariamente conservadores Por quê Bibliografia ARMITAGE David Edmund Burke and the Reason of State Journal of the History of Ideas 614 Oct2000 BRYANT Donald C Edmund Burke A Generation of Scholarship and Dis covery The Journal of British Studies 21 nov1962 BURKE Edmund On taste On the sublime and beautiful Refl ections on the French Revolution A letter to a noble lord Nova Yorque Collier 1909 BURKE Edmund Refl ections on the Revolution in France Cambridge Hackett 1987 HIRSCHMAN Albert O A Retórica da intransigência perversidade futilidade ameaça São Paulo Cia das Letras 1992 KINZO Maria DAlva Gil Burke a continuidade contra a ruptura In WEFFORT F org Clássicos da Política São Paulo Ática 1990 v 2 LAPRADE WT Edmund Burke An Adventure in Reputation The Jour nal of Modern History 324 Dec1960 MANNHEIM Karl Essays on Sociology and Social Psychology Londres Routledge Kegan 1959 MORLEY John Edmund Burke A historical study New York Arno 1979 205 Capítulo 7 Edmund Burke a estética conservadora da arte política Fernando LattmanWeltman NISBET Robert Conservantismo In NISBET R BOTTOMORE T orgs História da Análise Sociológica Rio de Janeiro Zahar Editores 1980 NISBET Robert La formación del Pensamiento Sociológico Buenos Aires Amor rortu Editores 1999 v 1 POCOCK J G A Introduction In BURKE Edmund Refl ection on the Revo lution in France Cambridge Hackett 1987 Conservative Enlightenment and Democratic Revolutions The American and French Cases in British Perspective Government and Op position 24 Winter1989 RYAN Vanessa L The Physiological Sublime Burkes Critique of Reason Journal of the History of Ideas 622 April2001 WEFFORT Francisco org Clássicos da Política São Paulo Ática 1990 v 1 How to choose the right fabric for your curtains Consider the room use exposure to sunlight and required insulation For living rooms and bedrooms thicker fabrics like velvet or heavy cotton offer privacy and insulation Sheer fabrics work best in lounges or areas where diffused light is desirable Patterned and printed fabrics can add character while plain fabrics create a classic look Measure width and drop accurately Add extra widths for fullness usually 15 to 3 times the window width depending on the desired look and fabric type Curtains can be lined for extra insulation and longevity Capítulo 8 Kant e o paradoxo da liberdade como obrigação moral Rafael Rossotto Ioris 81 Introdução Apesar de ter sido um dos maiores teóricos do Liberalismo Immanuel Kant importantíssimo fi lósofo alemão do século XVIII não tem sido reconhe cido de maneira direta como um pensador da política De fato dada a enorme importância da refl exão kantiana no que se refere às questões centrais da metafí sica da teoria do conhecimento e da ética seus textos sobre o Direito a Política e as Relações Internacionais foram tradicionalmente subsumidos nas análises mais gerais de sua obra Ainda assim a importância de Kant para o pensamento político particularmente dentro da tradição da política internacional é evidente Como um dos maiores defensores da noção da autonomia individual Kant foi o grande proponente do estabelecimento de uma moralidade que ti Rafael Rossotto Ioris é Professor Assistente do Departamento de História da Universidade de Denver nos EUA É bacharel em Ciências Sociais Mestre em Relações Internacionais e Doutor em História 208 ELSEVIER Curso de Ciência Política vesse um sentido universal permitindo assim a plena realização da liberdade humana tanto dentro da realidade política circunscrita ao ambiente doméstico interno aos Estados quanto em uma escala mundial ou global Kant oferece pois uma rica e necessária obra para todos interessados em refl etir sobre as pos sibilidades e os limites da efetivação de uma ordem política justa e democrática 82 Kant e as Possibilidades do Conhecimento e a Noção da Morali dade Universal Immanuel Kant nasceu em Koenigsberg na Prussia Oriental atual Kali ningrad na Rússia em 1724 numa familia de rigorosa cultura religiosa de base pietista Ele lecionou na universidade local por muitos anos vindo a falecer na mesma cidade em 1804 Sua carreira acadêmica foi longa e ativa Escreveu inú meros livros sob diversos assuntos dentre os quais se destacam os seguintes Crítica da Razão Pura publicada em 1781 Prolegômenos à uma Metafísica Futura de 1783 Ideia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita 1784 Fundamentação da Metafísica dos Costumes 1785 Crítica da Razão Prática 1788 Crítica do Juízo 1790 A Paz Perpétua 1795 Em linhas gerais podemos afi rmar que as investigações fi losófi cas de Kant se ocuparam de quatro áreas principais a natureza do conhecimento e as possibilidades do saber a construção de uma moral de valor universal o sen timento estético a religião e a evolução do gênero humano Na primeira linha de refl exão é impossivel minimizar a importância do autor dado que fora o primeiro a questionar de modo sistemático as possibilidades e condições dentro das quais a obtenção do conhecimento ocorre Ao empreender uma profunda crítica à tradição fi losófi ca ocidental Kant busca superar os limites dentro dos quais havia se encaminhado a refl exão sobre a validade do conhecimento Essa refl exão havia até então se centrado no descobrimento dos procedimentos que poderiam por si só garantir a validade do conhecimento como resultado de um processo específi co de investigação Kant subverte essa consagrada lógica ao afi rmar em sua principal obra sobre a natureza do conhecimento humano Descobri que muitos dos princípios que consideramos objetivos são na realida de subjetivos isto é abrangem as condições sob as quais concebemos o objeto que buscamos conhecer Kant 1980 23 É nesse sentido que devemos entender como a publicação da Crítica da Razão Pura marcou defi nitivamente a história do pensamento fi losófi co De fato até a refl exão sobre a metafísica e a teoria do conhecimento propostas por Kant o pensamento fi losófi co havia seguido duas linhas principais de investigação no que se refere à questão da melhor sistemática de obtenção de um conhecimento 209 Capítulo 8 Kant e o paradoxo da liberdade como obrigação moral Rafael Rossotto Ioris válido A primeira dessas tradições conhecida como Racionalista afi rmava que a razão pode sem a ajuda da experiência empírica encontrar as verdades uni versais Em contraposição a linha de refl exão Empiricista defendia que somente a experiência sensível poderia servir como base sólida para nossos conhecimen tos sobre a realidade Com base nas críticas propostas pelo fi lósofo Iluminista escocês David Hume Kant viria a concordar com a postura Empiricista no que se refere à no ção de que todo conhecimento sobre o mundo deva se edifi car sobre as experi ências sensíveis em oposição à mera refl exão dedutivista Contudo postula o autor alemão a experiência percebida e portanto nosso conhecimento sobre o mundo não deveria ser entendida somente como um refl exo direto do mundo exterior apreendido pelos nossos sentidos Pelo conrário afi rma Kant toda ex periência deve ser tomada já como uma leitura efetivada sobre o mundo sensí vel por meio de processos e estruturas ou categorias cognitivas que elaboram e apresentam o mundo exterior de um modo passível de ser conhecido por nossas faculdades mentais de cognição Como exemplo dessas referidas estruturas ope racionais da mente humana por meio das quais o conhecimento seria constru ído Kant apresenta as faculdades ou formas da intuição do espaço e tempo Essas duas categorias são tomadas por ele como elementos constitutivos do processo mental de apreensão da realidade e que portanto não poderiam ser conside radas como atributos materiais inerentes aos objetos em si mesmos sobre os quais Kant postula estaríamos limitados como seres pensantes na emissão de juízos defi nitivos idem 43 Havendo traçado uma separação clara entre a experiência sensível e a ra zão e tendo atribuído à última e às suas categorias mentais ao invés do mundo material a possibilidade de formulação das condições universalmente válidas para a efetivação do conhecimento humano Kant aplica esse mesmo raciocínio ao campo da ética Nesse sentido esse grande fi lósofo Iluminista alemão viria a propor sua célebre tese de que nossos conceitos morais deveriam se basear não na experiência material concreta ou em nossos sentimentos individuais mas somente na razão humana universalmente presente e chave para nossa compre ensão e intervenção na realidade Nesse sentido dada sua enfática rejeição da postura epistemológica baseada no entendimento cognitivo realista ou seja a negação da possibilidade de que se conheça a coisa ou a essência das coisas em si a fi losofi a moral kantiana se funda na rejeição da possibilidade do estabele cimento de uma moral de base empírica ou seja inspirada por ou direcionada para um determinado conceito de bem que seria assim de caráter particular e historicamente determinado 210 ELSEVIER Curso de Ciência Política Para Kant somente a dignidade universal de todos seres humanos toma dos como igualmente capazes de exercerem sua liberdade poderia servir como fundamento para a construção de uma moral universalmente válida Em sua obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes o autor defende a necessidade da formulação de uma fi losofi a moral pura dado que a razão apresenta além de uma dimensão teórica também uma dimensão prática onde seu objeto não é mais o conhecer mas sim o agir no mundo o que ele viria a defi nir como a razão pura prática Assim de modo semelhante aos procedimentos seguidos para apre sentar uma teoria formal do conhecimento Kant investiga como seria possível o estabelecimento de uma moralidade pura de valor universal Ficaria demarcado assim o caráter formalista da moral kantiana uma vez que para ele dados empíricos não poderiam jamais servir de base para a for mulação de leis morais Essa postulação conforme as proposições kantianas se colocaria diametralmente em oposição à tradição moral clássica que é baseada na noção da formulação de uma ética da felicidade ou da boa vida ou moral e segundo a qual a ação moral deveria ser governada por considerações de in teresse determinadas em experiências concretas de indivíduos ou coletividades específi cas Para Kant a moralidade somente é possível na medida em que a razão que é a base da liberdade humana estabeleça autonomamente sem a ingerência de outras vontades os princípios para a ação livre Assim a mora lidade de uma ação residiria no fato dessa resultar do respeito à uma lei moral universalmente válida Ceder ao costume ou às regras de ação baseadas numa moralidade de cunho social específi co por mais sublime que seja não poderia ser considerado como uma lógica de ação moralmente válida para todos Por tanto a moral universal não poderia derivar da obediência a uma autoridade material como também não pode derivar dos sentimentos por mais altruístas que sejam Kant 1995 23 Temos pois que a moralidade kantiana é centrada nas noções de liber dade e racionalidade humanas Assim uma moralidade efetiva defi nida pela existência de indivíduos autônomos agindo de acordo com leis por eles mes mos defi nidas e em acordo com a autonomia de todos outros indivíduos será chamada pelo fi lósofo de reino dos fi ns e implicará numa realidade onde cada indivíduo agiria de acordo com princípios válidos para todos e que por assim agirem efetivam sua própria liberdade assim como a de todos outros seres hu manos A liberdade humana pertence pois não aos nossos sentimentos mas sim à razão humana uma vez que somente ao nos propormos deveres morais que se tornariam guias efetivos de nossa ações poderíamos exercer nossa liber dade plena de agir moralmente 211 Capítulo 8 Kant e o paradoxo da liberdade como obrigação moral Rafael Rossotto Ioris Não há portanto possibilidade da moralidade sem a existência da liber dade ou seja a capacidade dos seres humanos de se autodeterminarem Ao mesmo tempo a determinação da moralidade universalidade de uma ação es pecífi ca será defi nida entre outros critérios pela observância ao dever moral pois somente agindo moralmente e de acordo com nossa vontade autonoma mente poderemos ser realmente livres Da mesma forma uma ação poderá ser considerada como moralmente válida se resultar de uma motivação que cumpra o dever moral e não se essa mesma ação se coadunar com o dever somente no que se refere aos seus efeitos Para Kant o agir moral é aquele que independen te de todos objetos de vontade e inclinação individuais cumpre uma lei passível de ser universalizável ou seja pode ser válida como princípio para a ação de todos seres humanos Esse princípio de universalização seria o mecanismo central para defi nirmos se a motivação de nossas ações está de acordo com a lei moral universalmente válida Com base nesse princípio Kant formula o que seria a lógica formal do es tabelecimento de leis moralmente válidas Nesse raciocínio o fi lósofo formula a noção de imperativos comandos ou mandamentos para a ação que se dividem entre Hipotéticos aqueles orientados como meio para a consecução de fi ns específi cos e Categóricos que representam uma ação absolutamente necessária como boa em si tais como os verdadeiros princípios morais Nesse sentido os imperativos categóricos não poderiam apresentar nenhum conteúdo empírico ou estar vinculado a qualquer interesse particular podendo somente se confor mar com a pura forma da lei moral sendo pois de natureza formal tal como o próprio princípio de universalização O Imperativo Categórico seria pois a máxima que estabelece o vetor em cima do qual a moralidade universalmente válida possa vir a ser estabelecida Ou seja um regramento para a ação humana para ser tomado como categórico deve estabelecer um princípio moral válido universalmente para todos os seres humanos A norma moral tem assim uma base formal que Kant defi ne como sendo Aja sempre em conformidade a um princípio de ação que possa ser to mada como lei universal idem 59 Motivações e consequências específi cas de nossas ações ainda que possam ser condizentes com o Imperativo Categórico não poderão ser julgadas como morais moralmente válidas para todos a não ser que tenham como fundamento um princípio universal A moral kantiana é pois formal uma vez que busca defi nir os princípios que possam servir de base para o estabelecimento de uma lei moral universal mente válida Para ele somente é moral o que é universalmente válido ou seja poder servir como parâmetro para a escolha do curso de ação por todos os seres 212 ELSEVIER Curso de Ciência Política humanos Kant reinsere assim o tema da moral na esfera da política ainda que não se trate mais da moral tradicional ou aquela defi nida historicamente por cada sociedade específi ca como sua noção de bem moral Da mesma forma a liberdade de cada indivíduo estaria garantida quando a regra a ser seguida de rivar de uma criação autônoma dos sujeitos cumpridores dessa mesma regra e esses forem portanto autônomos ou livres Para o autor são as capacidades do entendimento humano que conferem ao ser humano a capacidade de ser livre autônomo Conhecer não seria a absorção da realidade objetiva em conformi dade à realidade em si mesma mas sim uma atividade prática do entendimento humano de onde ele afi rma que o ato de conhecer não seria uma atividade teó rica mas atividade prática um exercício da liberdade humana Assim no cerne do seu pensamento moral kantiano está a noção de liberdade defi nida como autonomia na determinação do curso e das regras para a ação que deveriam ser válidas para todos seres humanos Por fi m cabe dizer que a efetivação da liberdade individual depende da existência de instituições políticas domésticas e internacionais que possam ga rantir o exercício da autonomia de cada um Será nesse sentido que Kant buscará justifi car o estabelecimento do Estado de Direito tanto no contexto das intera ções interpessoais como no das interações entre Estados soberanos Esse projeto denominado pelo autor de Cosmopolita teria como objetivo fi nal a manutenção da liberdade individual de modo que essa possa ser refl etida em escala univer sal por meio da instituição de normas universais para a ação e interação entre indivíduos efetivamente livres conforme veremos a seguir 83 Kant e a Política da Autonomia Individual Kant foi um grande entusiasta e defensor das propostas políticas do Ilu minismo e um dos maiores proponentes dos ideais Liberais do século XVIII Ele chegou mesmo a escrever um breve artigo sobre essa experiência histórica onde afi rma a necessidade de que cada ser humano assuma seu próprio processo de emancipação pessoal por meio da refl exão crítica e a tomada de decisões de for ma autônoma Em suas próprias palavras O Iluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem Tal menoridade é por culpa própria se a causa reside não na falta de entendimento mas na falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo sem a orientação de outrem Tem a coragem de te servires do teu próprio entendimento Eis a palavra de ordem do Iluminismo Resposta à Pergunta Que é o Iluminismo In A Paz Perpétua e Outros Opúsculos 1995a 11 213 Capítulo 8 Kant e o paradoxo da liberdade como obrigação moral Rafael Rossotto Ioris Como vimos o projeto moral e político de Kant está por sua vez intima mente ligado à sua teoria do conhecimento humano dado que ambas análises se centram na busca dos fundamentos universais que possam permitir um saber e uma lei moral claras Toda sua refl exão deriva pois da noção que toma os se res humanos como seres racionais portanto capazes de proporem a si mesmos princípios morais de ação e interação comuns Devemos entender portanto que a teoria política de Kant é indissociável de sua fi losofi a moral que visa estabe lecer princípios universais para nossas ações no caso concreto de sua refl exão política para nossas ações em sociedade Assim a política kantiana está interes sada acima de tudo em estabelecer os princípios que nos permitam estabelecer uma ordem política universalmente válida e que assim garanta a todos os seres humanos o respeito ao valor intrínseco da natureza humana Da mesma forma para Kant os princípios da política são também os princípios do Direito uma vez que somente a Lei pode estabelecer a justiça o que somente seria possível se nossas estruturas políticas e instituições legais se conformassem com princí pios morais universais Kant deveria pois ser considerado como um dos fundadores da Ciência Jurídica moderna dada sua defesa da noção de que os seres humanos como se res racionais devem ser entendidos não somente como dotados de razão mas também como dotados da capacidade de se autopostularem princípios para regerem suas escolhas vontades e ações Tais princípios serviriam de base para o estabelecimento da vida em sociedade sob a regência do Estado de Direito Em contraposição à essa realidade de caráter legal e moral o chamado Estado de Natureza que não é assumido pelo autor como um fato histórico como havia anteriormente sido aludido como uma possibilidade pelo fi lósofo Contratualis ta e liberal inglês John Locke mas somente como uma hipótese lógica para o estabelecimento dos princípios da vida em sociedade por meio de um arranjo político moral é defi nido por Kant com uma realidade présocial e tomada de maneira similar nesse aspecto somente às noções propostas pelo também fi lósofo contratualista inglês Thomas Hobbes como uma situação de guerra ge neralizada dada a ameaça permanente de hostilidades de todos contra todos uma vez que somente num estado jurídico poderá haver efetiva segurança e paz Para Kant a paz tem que ser assegurada por estruturas jurídicas institu cionais e o Estado de Natureza deve ser superado em todos seus níveis não so mente nas relações entre indivíduos mas também entre os Estados assim como entre Estados e indivíduos por meio do estabelecimento de uma nova ordem jurídica defi nida como Cosmopolita como veremos mais adiante Para o autor a liberdade plena dos seres humanos somente pode se efetivar no convívio social 214 ELSEVIER Curso de Ciência Política através da obediência à lei moral Kant rejeita as noções de matriz individualis ta conforme propostas por Hobbes e por toda a tradição Contratualista que defi nem a condição de liberdade individual e de Direitos Naturais como já exis tindo no contexto présocial do Estado de Natureza De modo alternativo Kant recupera o pensamento préContratualista ao entender que a efetivação da liber dade dos seres humanos depende do convívio social sob regras políticas claras Ele defende portanto que a liberdade humana está condicionada à existência e à obediência de uma ordem legal que por ser fruto da deliberação autônoma de cada membro da comunidade política deve ser tomada também como ordem moral Taylor 1985 319 Da mesma forma Kant é bastante crítico às ideias políticas de vários de seus antecessores particulamente Maquiavel e Hobbes Com relação ao primei ro rejeita sua separação rígida entre a moral e política e com relação ao se gundo rejeita o teor autoritário de sua visão sobre o Estado soberano Ainda assim do mesmo modo que Hobbes Kant também centra sua análise política na transformação de uma realidade associal e de confl ito em uma realidade orde nada pela razão e pela paz Diferentemente de Hobbes contudo Kant entende que o soberano deve se submeter às leis que regem sua ação de governo No mesmo sentido para o autor alemão a liberdade humana estaria condicionada ao cumprimento de leis que teriam sido formuladas por indivíduos agindo au tonomamente como legisladores garantindo assim a liberdade e a igualdade de todos Kant 1995a 78 A infl uência Rousseauniana na obra de Kant também é bastante evidente sendo que o próprio Kant afi rma ter aprendido do pensador Francês o respeito e o interesse pelo homem comum Ao reconhecer o profundo impacto da obra desse pensador francês em seu pensamento político Kant buscou radicalizar o projeto democrático defendido por aquele autor ao ampliar a noção da necessi dade de estruturas políticas democráticas na esfera interna para a realidade das interações entre os Estados dentro do contexto internacional afi rmando assim a existência de uma relação de codependência entre esses dois níveis políticos Diferindo de Rousseau Kant entende que é somente em sociedade que poderemos encontrar os meios para o exercício de nosssa liberdade uma vez que é somente dentro desse convívio que poderemos formular autonomamente leis que nos servirão de guia para nossas ações A noção de Contrato Social em Kant é portanto também muito importante pois é esse mecanismo que legiti ma e funda a sociedade civil O Contrato é assumido contudo somente como um princípio heurístico com vistas a justifi car a ordem legal proposta assim sendo uma ideia prática da razão e fornecer às leis a conotação de funcionarem 215 Capítulo 8 Kant e o paradoxo da liberdade como obrigação moral Rafael Rossotto Ioris como se pudessem emanar da vontade coletiva de um povo inteiro e as sim se considere todo súdito como se ele tivesse assentido pelo sufrágio a seme lhante vontade Kant 1995a 83 Para Kant a vida em sociedade contudo não pode somente se funda mentar no princípio do contrato pois requer também a existência de uma cons tituição pois somente assim poderá existir a liberdade de todos uns em relação aos outros O autor reconhece ainda concordando nesse ponto com o que havia proposto Hobbes que o Chefe de Estado está acima da comunidade política e que portanto não está sujeito à suas punições Contudo analogamente ao racio cínio seguido por Hobbes com relação ao direito de autodefesa assumido por esse autor inglês como permanecendo sempre nas mãos de cada membro da comunidade política para caso o Estado atente contra à sua própria vida Kant defende que embora o Estado possa exigir obediência de todos seus súditos negando assim a noção de um direito de resistência como havia sido proposto por Locke esse mesmo Estado não pode afrontar conta o espírito de liberdade de pensamento livre expressão pois assim estaria negando sua razão de ser como garantidor de uma vida mais plenamente livre dado que todos indivídu os estariam regrados por uma lei moral válida para todos idem 92 Toda a lógica política kantiana deriva da noção da existência de um valor absoluto intrínseco a todos seres humanos que por natureza devem exercer suas racionalidades e assim efetivar sua liberdade ao se tornarem seres auto nômos ou seja capazes de se autodeterminarem ao se proporem livremente normas de comportamento válidas para todos Cabe notar que uma vez que tais normas sejam estabelecidas Kant prega a total obediência às mesmas como necessidade do exercício da liberdade Portanto para ele o cumprimento e obe diência à uma norma que tenha uma validade universal é assumido como a base para o exercício da liberdade humana Kant nega também a validade do argu mento que separa a moral da esfera da política como proposto por Maquiavel Hobbes Para o fi lósofo alemão a moral deve ser a chave para a construção de projetos políticos e a institucionalidade política defi nida pelo Estado de Di reito e um novo tipo de Direito Internacional deverá servir como base para o exercício da moral e da liberdade humanas Moral e política estariam assim novamente imbricadas mas sob um novo sentido que assume a necessidade de instituições políticas para o exercício da liberdade dentro das esferas doméstica e internacional A título de revisão a base do raciocínio político de Kant parte da noção do indivíduo como ser racional portanto moral para a partir disso estabelecer uma defesa da necessidade da ordem legal que garanta a liberdade e plena realização 216 ELSEVIER Curso de Ciência Política da autonomia e do potencial racional de todos indivíduos Para o fi lósofo a busca de uma política defi nida pela moralidade não poderia se dar com base em prin cípios legais históricos de nenhuma sociedade uma vez que esses seriam contin gentes à realidades históricas e culturais particulares Tal busca por um princípio defi nidor de uma ordem política de valor universal deveria pelo contrário se nortear pela realização da autonomia liberdade de todos os indivíduos Em Kant o republicanismo e a busca de uma paz duradoura se conver tem de fato em valor moral e não mais somente em uma técnica do bom go verno ou seja como tendo somente um valor instrumental ou utilitário Em sua obra da maturidade Ideia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita Kant discute a questão da existência de uma lógica evolutiva um propósito racional de matriz progressiva no curso da história da humanidade acabando por defender que a história caminha em direção à emancipação e reali zação do pleno potencial racional dos seres humanos isto é a efetivação de suas disposições naturais enquanto seres racionais capazes de exercer plenamente sua liberdade Ele afi rma ainda que essa lógica evolutiva não seria necessaria mente perceptível por cada indivíduo em suas experências concretas uma vez que ela se demonstraria efetivamente na coletividade gênero humano e não em cada caso individual onde inclusive poderia ocorrer exemplos de negação desse curso emancipatório Kant 1986 27 Ao apresentar nessa mesma obra o que seriam as proposições defi nido ras da lógica do devir histórico Kant afi rma que todas as disposições de cada criatura estão destinadas a se desenvolverem completamente conforme um fi m específi co Primeira Proposição defendendo também que a plenitude das disposições humanas somente pode se efetivar por meio da efetivação plena do exercício da razão Terceira Proposição Da mesma forma postula que o me canismo central do processo evolutivo seria o antagonismo que surge entre in teresses e motivações opostas entre indivíduos e entre esses e suas disposições naturais Quarta e que o maior desafi o da espécie humana cuja solução a natureza a obriga é alcançar uma sociedade civil que administre universalmen te o direito pois somente ela permite a liberdade plena Quinta Proposição Kant seria assim um dos primeiros a propor uma noção de uma história linear e progressiva suplantando assim a clássica noção circular de história que ainda estaria presente em autores considerados em alguns outros aspec tos como modernos tais como Maquiavel Para o fi lósofo alemão a história deveria ser tomada como tendo um plano racional de evolução rumo a maior emancipação dos seres humanos Contudo essa postulação não implica em que se assuma que a natureza seja um agente inteligente autônomo que segue uma 217 Capítulo 8 Kant e o paradoxo da liberdade como obrigação moral Rafael Rossotto Ioris lógica própria mas sim que devemos entender que a expansão da liberdade humana esteja se consagrando na evolução histórica ainda que de modo não linear Para a realização plena das potencialidades humanas Kant afi rma que por estarem acostumados a estarem submetidos a um Senhor os indivíduos somente serão efetivamente livres se houver o estabelecimento de uma or dem de convivência racional e pacífi ca entre os Estados como base para a exis tência de uma sociedade civil universal Sétima Proposição Esse raciocínio nos remete às formulações kantianas sobre as relações internacionais das quais nos ocuparemos a seguir 84 A Paz Perpétua o Direito Cosmopolita e as Relações Internacionais No que se refere a questões de política internacional Kant é claro em di zer que nenhuma república estará segura a menos que se evitem os confl itos entre os Estados o que por sua vez somente será possível se estes passem a se relacionar de modo pacífi co com base em uma noção Cosmopolita de direito internacional O autor defende que em termos ideais a constituição de um Esta do Mundial seria o modo mais fácil de resolver a questão da guerra Ele afi rma ainda contudo que tal projeto é pouco viável uma vez que nenhum Estado iria abrir mão de sua soberania em benefício de uma fonte de autoridade global De modo similar a legalidade interna por sua vez requer a presença de um ambiente de coexistência pacífi ca no plano internacional A própria moralida de e liberdade individuais requerem portanto a transformação da lógica das relações internacionais em direção a uma situação de paz e constitucionalidade não mais defi nida como o direito internacional que se centrava nas questões da legalidadeilegalidade da guerra mas no direito Cosmopolita ou aquele que visa assegurar o valor absoluto dos seres humanos Kant 1995a 135 Kant deposita suas esperanças no fato da humanidade ser capaz de se emancipar de seus preconceitos e no fato da mesma estar ao longo da história se dando conta de que a guerra é um gasto excessivo e limitador do progresso econômico O autor rejeita a noção de uma paz precária presente na tradição Realista e fundada na noção de Equilíbio de Poder uma vez que tal contexto de paz deveria ser entendido somente como um entreato entre confl itos vindouros Para a existência de uma paz efetiva perpétua seria necessária a existência de um número sufi cientemente grande de governos Republicanos democráticos e que por meio de suas populações abdicariam do recurso à guerra como ins trumento de interação no contexto internacional Da mesma forma uma reali dade de paz sociabilidade e moralidade seria instituída por meio de instituições políticas internacionais uma vez que a mera suspensão das hostilidades entre 218 ELSEVIER Curso de Ciência Política os Estados não é em si mesma garantia de paz Desse modo seria necessário um esforço consciente e racional por parte dos governantes e governados com vistas a controlar as causas dos confl itos bélicos e a limitar sua ocorrência Assim a paz universal na perspectiva kantiana é de difícil mas não im possível obtenção dependendo para tanto de um real aperfeiçoamento das ins tituições de governo local e internacional com vistas à emancipação de todos os seres humanos As sociedades humanas são tomadas pelo autor como que predestinadas a atingirem uma situação de paz perpétua ainda que no processo existam contradições e confl itos Assim ainda que de um modo de evolução não linear pois experiências históricas particulares podem parecer contraditórias a essa dinâmica para Kant existiria um rumo na evolução do gênero humano em direção à emancipação universal Nos dois principais textos onde trata do assunto da efetivação de um pro jeto de paz universal A Paz Perpétua e Para uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita Kant defende a criação de entidades políticas regidas por regras autônomas que ele chama de Repúblicas ou democracias no sentido atual no âmbito doméstico assim como a criação de uma nova lógica de base para o direito internacional Da mesma forma ainda que o autor aponte o pa pel pedagógico historicamente exercido pelas guerras no sentido de permitir a interação de povos isolados ele entende que o rumo da Paz é inevitável pois sociedades progressivamente autogeridas darseiam conta da imoralidade dos altos custos e do efeito nefasto sobre o comércio provocado pelos confl itos internacionais Há contudo uma ambiguidade no pensamento do autor no que se refere aos seus apontamentos com relação ao modelo institucional que em es cala universal deveria permitir uma paz efetivamente perpétua Enquanto que no livro A Paz Perpétua Kant defende a formação de uma confederação univer sal de repúblicas livres como forma de evitar os confl itos internacionais na obra Para uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita a defesa se volta para a elaboração de uma constituição de valor universal Kant nos oferece ainda a primeira grande crítica ao direito internacional clássico conhecido então como das gentes conforme defendido por autores como Grotius Pufendorf e Vattel Para Kant esses autores deveriam ser toma dos como consoladores e não como proponentes da paz por serem proponen tes de uma lógica tributária da noção não de uma Paz mas de uma Guerra Perpétua uma vez que suas formulações se preocupavam não em estabelecer os princípios norteadores da paz mas sim da legitimidade da guerra ou das obrigações legais dos Estados quanto envolvidos em situações de confl ito in ternacional Para Kant deveriam existir três eixos do direito Público Direito 219 Capítulo 8 Kant e o paradoxo da liberdade como obrigação moral Rafael Rossotto Ioris do Estado Direito Internacional e o Direito Cosmopolita que considera que cada indivíduo não é membro somente de seu Estado mas também é membro de uma sociedade cosmopolita universal composta por todo o gênero humano e reconhecida no último artigo do seu projeto de paz perpétua que afi rma que o direito Cosmopolita deverá ser regido pela Hospitalidade Universal Kant 1995a 137 No mesmo texto originalmente publicado em 1795 ano em que França e Prussia celebraram a Paz da Basileia permitindo que essa nação germânica abandonasse a coalização antirrevolucionária que ela tinha fi rmado com a Áus tria e a Inglaterra e que havia três anos se opunha aos revolucionários Fran ceses numa irônica argumentação em defesa do estabelecimento de uma paz universal de caráter perpétuo Kant propõe um novo projeto de paz perpétua por meio de uma paródia aos tradicionais tratados de paz de seu tempo que se dividiam em dois tipos preliminar contendo as condições para o término das hostilidades e as condições para a celebração de uma paz defi nitiva e o tratado de paz defi nitivo propriamente dito Kant acabaria por mesclar de uma maneira original os dois modelos de tratados internacionais em um único texto conten do artigos preliminares que especifi cam as condições negativas para a paz e artigos defi nitivos onde as condições positivas para uma paz perpétua são postuladas Assim na primeira parte de A Paz Perpétua Kant expõe o que denomina de artigos preliminares ou condições negativas que deveriam balisar o esta belecimento de uma paz universalmente válida e permanente entre todos os Estados 1 Nenhum acordo de paz será considerado válido se for feito com uma reserva secreta com vistas a uma guerra futura 2 Nenhum Estado independente seja ele grande ou pequeno pode ser adquiri do por outro Estado por herança troca compra ou doação 3 Exércitos permanentes serão gradualmente abolidos 4 Nenhum débito nacional será contratado em conexão com os assuntos exter nos do Estado 5 Nenhum Estado interferirá pela força na Constituição e no governo de outro Estado 6 Nenhum Estado em guerra permitirá atos de hostilidade que tornem impos sível a mútua confi ança em uma época de paz futura Na segunda parte do texto Kant estabelece os seguintes artigos de caráter defi nitivo para uma paz perpétua entre os Estados A Constituição Civil de todos os Estados deve ser Republicana 220 ELSEVIER Curso de Ciência Política Na apresentação da justifi cativa que segue esse primeiro artigo Kant esta belece também uma distinção fundamental entre as formas de Estado e formas de Governo Por formas de Estado deveríamos entender as diferentes maneiras pelas quais um Estado estabelece seu comando ou sua soberania sobre seus sú ditos ou cidadãos A forma de organização do Estado Governo por sua vez defi niria o modelo de constituição desse mesmo Estado onde para o autor existiriam três formas possíveis de organização do poder político no que tan ge ao número de pessoas que conduzam o processo político autocracia poder centrado nas mãos de uma pessoa aristocracia nas mãos de algumas pessoas e democracia nas mãos de todos Da mesma forma Kant propõe outra classifi cação dessa vez quanto à maneira pela qual se estabelece a Constiuição que irá dirigir os assuntos políticos de cada comunidade Para o autor as constituições podem ser republicanas ou despóticas O Republicanismo seria o princípio pelo qual há a separação do poder executivo o governo propriamente dito dos outros poderes enquanto que no Despotis mo o legislativo é também exercido pelo chefe do governo que tende assumir sua própria vontade como vontade da coletividade Kant afi rma ainda que nos casos da vigência de constituições republicanas é inevitável o consentimento dos cidadãos na deliberação sobre declarações de guerra e que esses teriam grande hesitação em embarcar em tal curso de ação dado os riscos de tal projeto para suas próprias vidas Para ele somente em casos de entidades políticas não republicanas entrar em guerra é uma decisão simples e corriqueira e onde há o cumprimento dos princípios republicanos democráticos tal curso de ação ten derá a ser de pouca frequência idem 127 Em seguida o autor apresenta o que chama de segundo artigo defi nitivo O Direito das Nações deverá ser fundado numa Federação de Estados Livres Conforme apontado anteriormente nesse texto Kant não entende como viável a criação de um governo universal mas somente o estabelecimento de uma liga Confederação de Estados Livres Nesse sentido na justifi cação desse último artigo Kant faz uma interessante observação que evidencia seu modera do otimismo quando afi rma que A reverência que cada Estado faz ao conceito de direito prova que o homem possui uma grande capacidade moral ainda que adormecida no presente ibidem 129 No terceiro e último artigo Kant afi rma que O direito Cosmopolita deve guiarse pelas condições da hospitalidade universal Nesse ponto Kant é claro na sua postulação do valor absoluto da vida humana assim como na sua postulação sobre a existência de uma comunida 221 Capítulo 8 Kant e o paradoxo da liberdade como obrigação moral Rafael Rossotto Ioris de política universal composta por todo o gênero humano uma vez que a violação do direito em qualquer lugar da terra se sente em todos os outros ibidem 140 Com suas propostas de reformulação das lógicas fundacionais do direito e da política internacional com vistas à implementação de uma paz de caráter perpétuo Kant apresenta uma crítica defi nitiva à noção de Balança de Poder como princípio ordenador das Relações Internacionais Para ele esse paradig ma seria insufi ciente para a construção e manutenção da paz tanto na esfera doméstica como em escala mundial Em substituição a esse mesmo paradigma entendido pelo autor como um princípio limitado Kant propõe uma nova ló gica de interação entre os Estados e entre os indivíduos que deveria ser fundada na noção de uma cidadania universal como teria sido primeiramente proposta pela Revolução Francesa movimento que estava se consagrando como refe rência para os novos projetos políticos de natureza democrática exatamente no momento em que Kant apresenta suas propostas de redesenho políticojurídico e institucional global Como grande entusiasta dessa revolução Kant visava re defi nir também a lógica do direito internacional que até então se centrava nas questões da interação entre os Estados Direito Público Internacional de modo especial sob os temas da guerra e da paz para inserir nessa refl exão a noção da cidadania universal e assim garantir que o direito das gentes ou dos povos se tornasse de fato um garantidor da liberdade e da segurança dos indivíduos Kant deve ser visto pois como o grande defensor de uma nova noção de direito chamada de Direito Cosmopolita e que se estruturaria em três linhas de refl exão a do direito dos e entre indivíduos na esfera doméstica a do direito entre os Estados tradicional área do Direito Internacional Público conhecido então como direito das gentes ou dos povos e a do direito dos indivíduos assumi dos como um valor universal em si mesmos e constantemente colocados em um contexto de interações recíprocas de caráter global ou seja acima e abaixo das tradicionais fronteiras estatais Boucher 1998 282 Apesar de ser um dos mais sofi sticados formuladores de um modelo po líticolegal visando o estabelecimento de uma situação de paz permanente por meio da atuação de instituições internacionais Kant apresenta um discurso con traditório com relação à guerra De fato apesar de considerála um grande mal à toda a humanidade o autor também entende que historicamente a guerra teria servido como meio de promoção do progresso material além do contato inter civilizacional humano por meio da articulação do que ele chama a insociável sociabilidade dos seres humanos Para o autor a guerra tem posto povos em contato com regiões até então inabitadas ou desconhecidas Também tem sido a 222 ELSEVIER Curso de Ciência Política guerra que tem estabelecido novos contatos e relacionamentos entre Estados e povos Kant 1986 47 A guerra entre os Estados é assumida pois como tendo desempenhado um papel na promoção de melhores padrões de interação entre os mesmos uma vez que a devastação das guerras despertaria nos indivíduos a noção da neces sidade de interações mais duráveis e pacífi cas Isto não quer dizer contudo que Kant aceite a noção jurídica vigente em sua época e que consagrava o direito de guerra desde que para fi ns defensivos e em respeito às leis internacionais De fato para Kant uma paz defi nitiva que somente pode derivar de novos arranjos institucionais SociedadeFederação de Nações entre Estados Livres Repúbli cas deve ser entendida com um dever moral por ser précondição para o esta belecimento do Reino dos Fins onde todos os seres humanos se tratarão como um fi m em si mesmo e não mais como instrumento para a realização da vontade de cada um Assim em seu otimismo moderado que vê na evolução histórica o desenlace progressivo de um mundo composto por indivíduos livres Kant entende de modo similar ao que já havia sido argumentado por Grotius que a proliferação de relações econômicas entre os Estados serviria como impulso adi cional em acréscimo à crescente percepção dos altos custos e da imoralidade da guerra para o estabelecimento de uma paz de caráter perpétuo 85 Kant na Tradição do Pensamento Político Internacional Toda a refl exão política proposta por Kant tem sua realização teórica má xima e culminação prática em sua proposta de convivência pacífi ca permanen te entre os Estados e entre os indivíduos Nesse sentido podemos afi rmar que em Kant a refl exão de Relações Internacionais seria a culminação fi nal e mais elaborada da sua refl exão política A doutrina da Paz Perpétua de Kant con tudo não é importante dada sua originalidade uma vez que autores como o Abée de SaintPierre e até mesmo Rousseau já haviam tratado do tema mas sim por sua base institucional nova e que vincula o ambiente político doméstico ao contexto internacional Desse modo os ensinamentos políticos kantianos devem sempre ser entendidos na interação entre governos Republicanos democráti cos e arranjos estruturas políticas internacionais Hassner 1987 Da mesma forma o republicanismo kantiano se insere nessa mesma linha de refl exão como meio de garantir que a manutenção da paz de modo efeti vo seja realizada por meio do equilíbrio entre o direito de autodeterminação de cada estado soberania e a noção de direitos cosmopolitas hoje conhecidos como direitos universais de cada indivíduo Toda a refl exão política de Kant é de base moral e sua visão sobre as relações internacionais se funda na noção de 223 Capítulo 8 Kant e o paradoxo da liberdade como obrigação moral Rafael Rossotto Ioris um indivíduo moral e no entendimento de direito internacional que tem como objetivo a efetivação de um padrão emancipatório democrátivo para as intera ções de todos os indivíduos em escala planetária Kant foi o primeiro a reconhecer o nexo existente entre a preservação da paz como resultado da deliberação política por parte dos indivíduos mais afe tados pela dinâmica da guerra Foi ele também quem claramente apontou não para a inexistência de políticas externas violentas por parte de países formal mente democráticos mas para o vínculo entre a efetiva deliberação por partes das populações atingidas pelas políticas externas e a desistência do recurso à violência nessas mesmas políticas Kant é pois o mais sofi sticado proponente da formulação que viria a ser conhecida mais tarde como a Teoria da Paz De mocrática ou a noção ainda em debate dentro da refl exão teórica em Relações Internacionais de que democracias não entram em guerra contra outras demo cracias Czempiel 1997 Da mesma forma para Kant não haverá paz a menos que exista uma efe tiva deliberação sob moldes democráticos das decisões de política externa A existência de uma democracia efetiva e não somente uma democracia do ponto de vista formal onde as conquistas eleitorais não implicam na real possibilidade de se exercer uma efetiva infl uência na formulação da política externa não seria garantia da paz uma vez que essa dependeria também do estabelecimento de arranjos políticos que em escala global minimizem a realidade de anarquia e autodefesa da realidade internacional sendo pois um projeto fundado em dois níveis ou realidades codependentes o doméstico e o internacional Assim a rica refl exão política proposta por Kant estabelece a noção de que somente por meio de ações políticas que possam ser consideradas como efetivamente morais ou seja que sirvam como fundamento para a ação de todos os seres humanos e que tanto no contexto doméstico quanto internacional garantam a autonomia de todos os membros seria possível a efetivação de uma realidade política glo balmente democrática livre e garantidora de uma paz verdadeiramente moral e perpétua 86 Perguntas para Reflexão 1 Como o pensamento de Kant se insere na tradição filosófica sobre as con dições de construção de um conhecimento efetivo sobre a realidade 2 Por que Kant critica a validade de padrões morais que dependem de ele mentos empíricos ou subjetivos 224 ELSEVIER Curso de Ciência Política 3 Qual a argumentação proposta por Kant em sua defesa em favor de um projeto de efetivação de uma moralidade de valor universal 4 Por que poderíamos afirmar que o pensamento político de Kant se estru tura com base em suas propostas morais 5 Você acredita que a junção entre moral e política proposta por Kant é algo válido Seria algo viável 6 Por que Kant pode ser considerado como um pensador político liberal 7 Qual a importância da noção de emancipação individual no pensamento político kantiano 8 Como Kant se insere dentro da tradição de pensamento político Contra tualista 9 O que Kant entende como sendo o papel da democracia para a constru ção de uma situação universal de paz permanente 10 Como você avalia o projeto kantiano de construção de uma Paz Perpé tua Seria algo realizável Justifique Bibliografia BOUCHER David Political Theories of International Relations Oxford Oxford University Press 1998 BRENDA Julien O Pensamento vivo de Kant São Paulo Martins Editora 1961 CZEMPIEL ErnstOtto O Teorema de Kant e a Discussão Atual sobre a Relação entre Democracia e Paz In Valério Rohden Org Kant e a Insti tuição da Paz Porto Alegre EdUFRGSGoethe Institut 1997 HASSNER J Immanuel Kant In L Strauss J CROPSEY History of Poli tical Philosophy Chicago University of Chicago Press 1987 KANT Immanuel Critica de la Razon Práctica Coleccíon Austral Madrid EspasaCalpe 1975 A Crítica da Razão Pura Coleção Os Pensadores São Paulo Ed Abril 1980 Ideia de uma Historia Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita São Paulo Brasiliense 1986 Fundamentação da Metafísica dos Costumes Textos Filosófi cos Lisboa Edições 70 1995 225 Capítulo 8 Kant e o paradoxo da liberdade como obrigação moral Rafael Rossotto Ioris A Paz Perpétua e Outros Opúsculos Textos Filosófi cos Lisboa Edições 701995a Resposta à pergunta Que é o Iluminismo In A Paz Perpétua e Ou tros Opúsculos Sobre a expressão corrente Isto é correcto na teoria mas nada vale na prática In A Paz Perpétua e Outros Opúsculos NOUR Soraya A Paz perpetua de Kant fi losofi a do direito internacional e das relações internacionais Sao Paulo Martins Fontes 2004 REISS Hans Org Kants Political Writings Cambridge Cambridge Univer sity Press 1991 TAYLOR Charles Kants Theory of Freedom In Charles TAYLOR Org Philosophy and the Human Sciences Cambridge Cambridge University Press 1985 Custom curtain orders may take longer to produce two to three weeks Make sure to get correct measurements before placing an order Keep in mind the style of curtain heading pencil pleat eyelet etc when measuring for width Always measure the width of the track or pole For length measure from curtain track or pole to the floor If curtains are pooling add extra length accordingly Not all curtains include lining Always consider lining for added light control and insulation Check for return windows and conditions on custom orders before purchasing Capítulo 9 Hamilton Madison e Jay os pressupostos teóricos do federalismo moderno Ricardo Ismael1 91 O debate sobre a distribuição territorial do poder político O federalismo contemporâneo pode ser caracterizado através de dois as pectos principais Representa uma distribuição constitucional de poder entre o governo central e as unidades governamentais constituintes de tal forma que todos podem compartilhar dos processos de produção e implementação de polí ticas públicas Por outro lado ele pode ser visto como uma aliança entre corpos políticos O termo federal é derivado do latim foedus o qual signifi ca aliança Doutor e Mestre em Ciência Política pelo IUPERJ Professor e pesquisador do Departamento de Sociologia e Política da PUCRio respondendo pela Coordenação de Graduação e integrando o corpo docente do Pro grama de PósGraduação em Ciências Sociais Autor do livro Nordeste A força da diferença Os impasses e desafi os da cooperação regional 2005 Nos últimos anos tem trabalhado com os seguintes temas Federa lismo e Desigualdades Regionais em Perspectiva Comparada Instituições Políticas e Avaliação de Políticas Públicas Estado Mercado e Desigualdade Social Contato ricismaelhotmailcom 228 ELSEVIER Curso de Ciência Política Dessa forma é possível dizer que o arranjo federativo é estabelecido e regulado por uma aliança cujas conexões internas refl etem um tipo particular de divisão que deve prevalecer entre os participantes isto é cada um reconhece a integri dade de cada associado e busca promover um tipo especial de unidade entre eles1 A distribuição territorial do poder político é o tema principal do debate em torno do federalismo Daí deriva também sua atualidade tendo em vista a emergência sistemática de confl itos políticos de natureza territorial no mundo contemporâneo a tendência de fortalecimento dos processos de descentraliza ção no âmbito dos Estados Nacionais e não menos importante a ampliação da competição econômica entre as unidades subnacionais estimuladas pela globa lização Além disso o Estado Federal continua sendo uma forma muito atraente de organização do Estado especialmente quando se trata de um país de grande dimensão territorial ou constituído por unidades territoriais associadas a dife rentes etnias Como sabemos o modelo federalista pretende garantir a unidade nacional e territorial preservando a diversidade existente entre os estadosmem bros O livro O federalista constituiuse no primeiro esforço teórico para com preender essa nova forma de organização do Estado Moderno Não por acaso tornouse um clássico para compreender as origens do federalismo norteame ricano contribuindo para esclarecer as raízes das diferentes federações espalha das pelo mundo e por conseguinte suas diferenças e aproximações em relação ao modelo implantado nos Estados Unidos Neste momento cumpre recuperar o debate em torno dos artigos escritos pelos federalistas norteamericanos Ha milton Madison e Jay tratando com especial atenção o período histórico que vai da independência da GrãBretanha passando pela aprovação dos Estatutos da Confederação e chegando à Convenção Federal de 1787 92 Antecedentes históricos do federalismo norteamericano A literatura especializada referente à evolução dos sistemas federais re gistra experiências federalistas na Grécia durante a Antiguidade bem como na Itália e na Alemanha no transcorrer da Idade Média Apesar disso é possível dizer que o federalismo moderno desenvolveuse a partir dos Estados Unidos da América tendo como marco inicial a Constituição Federal elaborada entre maio e setembro de 1787 na Filadélfi a Tratase assim de uma forma particu lar de organização do Estado oriunda do mundo extraeuropeu derivada dos 1 Esta é a perspectiva teórica do cientista político Daniel J Elazar uma referência obrigatória para entender o federalismo no mundo contemporâneo Elazar 1994 229 Capítulo 9 Hamilton Madison e Jayos pressupostos teóricos do federalismo moderno Ricardo Ismael acontecimentos políticos que marcaram a história norteamericana no fi nal do século XVIII Dois arranjos tipicamente federais com base territorial estiveram presen tes no período posterior à declaração de Independência dos Estados Unidos O primeiro deles aprovado no Congresso Continental de 1777 reunia treze estados norteamericanos em uma confederação A estrutura adotada conferia ampla autonomia às unidades estaduais e um limitado papel à confederação a qual tinha poucos meios para impor suas decisões aos estados e também não podia se dirigir diretamente aos cidadãos Foram necessários apenas alguns anos para que aumentasse a oposição ao modelo então em vigor principalmente nos lugares onde não predominavam as atividades rurais e o trabalho escravo ou seja a contestação vinha das economias estaduais mais modernas situadas ao norte do país A federação foi o segundo sistema federal adotado após a con quista da Independência tendo surgido durante a Convenção Federal de 1787 Naquela oportunidade foi elaborada a primeira Constituição Nacional com a participação de representantes dos estados de New Hampshire Massachusetts Connecticut Nova York Nova Jersey Pensilvânia Delaware Maryland Virgí nia Carolina do Norte Carolina do Sul e Geórgia Diferente da confederação o novo modelo reduzia a autonomia dos esta dos e ampliava as atribuições do poder central estabelecendo novas bases para as relações entre os membros do pacto territorial Entretanto o arranjo fede rativo também não se confundia com o unitarismo O processo de centraliza ção tinha limites bem defi nidos representando assim uma forma inovadora de convivência entre a União e as unidades estaduais e destas entre si em que o nível federal assumia responsabilidades sem esvaziar os poderes das unidades estaduais A nova estrutura proposta pela Convenção Federal de 1787 teve de ser ratifi cada por todos os estados norteamericanos sendo Rhode Island o últi mo a aprovála em 1790 93 A defesa pública da nova Constituição federal No processo de ratifi cação da primeira Constituição norteamericana des tacamse os ensaios publicados na imprensa de Nova York por Alexander Ha milton James Madison e John Jay entre outubro de 1787 e abril de 1788 sob o pseudônimo coletivo de Publius Alexander Hamilton 17571804 havia nascido nas Antilhas e chegou aos Estados Unidos ainda na adolescência Participou ativamente da guerra pela independência ocupando o posto de ajudantede campo de George Washington comandante das forças nacionais que enfrenta ram os ingleses Estava presente também na Convenção Federal de 1787 e foi o 230 ELSEVIER Curso de Ciência Política idealizador da iniciativa que redundou na publicação de artigos voltados para a defesa da nova Constituição norteamericana tendo inclusive convidado os outros dois autores Posteriormente ocupou o cargo de Secretário do Tesouro no governo George Washington primeiro presidente da República James Madison 17511836 nasceu no estado da Virgínia É considerado o pai da Constituição dos Estados Unidos por conta de sua atuação na reunião que elaborou o texto constitucional marcada pela formulação de ideias inovado ras e por uma grande habilidade política Criou com Thomas Jefferson o Partido Republicano tendo ocupado em dois mandatos a presidência Estados Unidos John Jay 17451829 nasceu no estado de Nova York Foi o negociador principal do tratado de paz fi rmado com a GrãBretanha em 1783 tendo atuado com destaque na elaboração Constituição de seu estado de origem onde tam bém terminou sendo conduzido ao cargo de governador2 Os três federalistas estavam empenhados em argumentar a favor da subs tituição da confederação pela federação estabelecendo uma nova orientação para a distribuição territorial do poder político Entretanto havia diferenças sig nifi cativas entre eles Hamilton preferia um arranjo político mais centralizado ou seja defendia por convicção um Estado Unitário como meio para o progresso econômico nacional Entretanto entre o modelo em vigor e o novo arranjo pro posto fi cava com este último de sorte que passou a defender o Estado Federal pois enxergava na federação o caminho para a paz e a segurança do país Por sua vez o sistema federal defendido por Madison afastavase das ideias descentrali zantes pregadas por Thomas Jefferson e do unitarismo defendido inicialmente por Hamilton O federalismo norteamericano surgia nesta perspectiva asso ciado ao movimento de centralização política assegurando o fortalecimento do poder no âmbito federal É certo porém que o federalismo emergente também deveria distanciarse de uma centralização excessiva para repetir os contornos do Estado Unitário no qual desapareceriam os valores relacionados ao autogo verno presentes na cultura política dos estadosmembros O modelo federalista proposto por Madison procurava portanto conciliar duas necessidades opos tas centralizar para consolidar a formação do Estado e limitar a ação deste para assegurar a descentralização territorial do poder político 94 A federação como resultado de um complexo processo político Os artigos de Hamilton Madison e Jay foram reunidos no livro O federalis ta no qual é apresentado o referencial clássico do federalismo norteamericano 2 A trajetória na vida pública dos autores de O Federalista expressa bem suas qualidades em particular a capacidade de conciliar a imaginação intelectual e a sensibilidade política Kramnick 1993 231 Capítulo 9 Hamilton Madison e Jayos pressupostos teóricos do federalismo moderno Ricardo Ismael O desenho institucional proposto na Constituição Nacional de 1787 segundo a descrição dos federalistas apresentava as seguintes características principais a tem como inspiração as contribuições teóricas sobre os meios para a correção dos males dos governos republicanos Entre elas destaque para a democracia representativa de Locke e a teoria da separação dos poderes de Montesquieu neste caso procurando garantir a estabilidade política através de um sistema de controles mútuos entre os Poderes Executivo Legislativo e Judiciário b estabe lece uma república federativa em substituição à antiga confederação na qual o governo central ganha poderes em relação aos estados embora ainda seja bas tante expressiva a autonomia dos mesmos c introduz a representação política nacional e mantém a representação política estadual de modo que os estados devem conviver com dois grupos distintos de representantes d defi ne que o Congresso Nacional deve ser bicameral constituído de uma Câmara dos Depu tados em que o número de membros de cada estado é proporcional à sua popu lação e de um Senado no qual cada unidade estadual possui o mesmo número de participantes e estabelece o presidencialismo como sistema de governo É importante chamar a atenção para alguns aspectos do processo político subjacente à formulação do modelo original do federalismo norteamericano Não se pode esquecer que a estrutura federativa representou sobretudo uma saída para o impasse em torno do pacto territorial A inovação alcançada no direito constitucional foi também resultado de uma dinâmica complexa na qual forças políticas defensoras do unitarismo e da completa descentralização saíram derrotadas As ideias de Locke estiveram presentes durante todo o processo polí tico norteamericano no fi nal do século XVIII infl uenciando a guerra contra a GrãBretanha a declaração de Independência e os ordenamentos jurídicos estaduais na confederação Entretanto a Constituição Nacional elaborada em 1787 terminou deixando de lado parte das refl exões de Locke sobre os direitos individuais na sociedade política Não foi enfrentada a questão do trabalho escravo na economia norteamericana o que signifi cava uma clara violação daqueles direitos É certo que essa decisão da Convenção Federal facilitou a adesão dos estados do Sul ao texto constitucional pois terminou deixando a critério dos estados a manutenção ou não da escravatura Como se sabe essa questão retornaria de forma dramática na segunda me tade do século XIX durante a Guerra de Secessão A derrota dos sete estados do sul do país denominados Estados Confederados da América abriu espaço para a provação da décima terceira emenda constitucional em 1865 abolindo a escra vidão em todo o território nacional Abraham Lincoln governante dos Estados 232 ELSEVIER Curso de Ciência Política Unidos nesse período conseguiu vencer um dos mais duros testes contra o ar ranjo federativo adotado no fi nal do século XVIII Talvez por isso mesmo seja considerado por muitos como o maior presidente da história norteamericana É difícil imaginar por outro lado a ratifi cação da Constituição nacional nos estados sem que houvesse a preservação de boa parte dos poderes que pos suíam na confederação É possível dizer dessa forma que a Convenção Federal de 1787 rejeitou a linha centralizadora como forma de viabilizar o referendum posterior nas unidades estaduais A relação entre a União e os estados no texto constitucional revela uma dupla soberania3 ou seja diferentemente do modelo unitário a federação pode ser vista como uma associação de unidades sobera nas em que a soberania da União convive com a dos outros participantes do pacto federativo A autoridade do governo federal por exemplo sobre os esta dos e seus cidadãos tem seus limites defi nidos pela Constituição Um último aspecto do processo político merece ser registrado Na Con venção Federal de 1787 os pequenos estados foram tomados pela preocupa ção de serem dominados pelos grandes caso a representação no Legislativo federal fosse baseada apenas em critérios populacionais A solução encontra da foi adotar um Congresso Nacional bicameral no qual a representação na Câmara dos Deputados seria proporcional à população e por ela escolhida enquanto no Senado cada estado teria igualmente dois representantes indi cados pelas Assembleias estaduais O Poder Legislativo portanto reuniria uma representação política do eleitorado como um todo e outra dos pró prios estados Em outras palavras o federalismo surge combinando no Con gresso Nacional representações de natureza distinta uma delas típica das democracias modernas a representação nacional e uma outra com base no pacto territorial a representação federal O Senado portanto pode ser visto como uma Câmara Territorial em que a tarefa principal é a manutenção da associação entre os estados que deu origem à federação A instituição deve procurar resguardar os direitos dos estados menos populosos igualandoos em número de representantes aos grandes para garantir um equilíbrio federativo e impedir a opressão das unidades estaduais mais populosas Essa característica do federalismo emergente no final do século XVIII entretanto pode trazer prejuízos para 3 A ideia de dupla soberania é mais usada na ciência política O direito constitucional por exemplo não costuma aceitála Não considera que os estadosmembros possuam soberania Entende que os mesmos gozam de autonomia ou seja são livres no campo deixado pela Constituição Nacional Os estados membros estão subordinados ao Estado Federal o qual representa a soberania do país Ferreira Filho 1992 p 4546 233 Capítulo 9 Hamilton Madison e Jayos pressupostos teóricos do federalismo moderno Ricardo Ismael a democracia representativa Os estados menores podem por exemplo im pedir no Senado a aprovação de qualquer iniciativa contra seus interesses iniciada na Câmara dos Deputados Nesse caso poderíamos ter a menor parte da população fazendo valer sua vontade sobre a maioria ou conse guindo vetar as propostas que viessem desta parte4 95 As contribuições dos federalistas norteamericanos para o avan ço da ciência política e do direito constitucional Os artigos do livro O federalista não buscavam apenas descrever o novo sistema federal A tarefa de convencer os estados a ratifi carem o texto consti tucional elaborado em 1787 exigiu um esforço teórico de seus autores parti cularmente no campo da ciência política e do direito constitucional Era pre ciso convencer a opinião pública das potencialidades da estrutura federativa perante a confederação destacando sobretudo sua capacidade de apoiar o governo republicano e de contribuir para um projeto nacional 951 As debilidades de um sistema federal excessivamente descentralizado O Artigo no 1 escrito por Hamilton procurou descrever o projeto em vista pelos três federalistas salientando os temas que seriam tratados na série de arti gos que ali tinha seu ponto de partida Proponhome a discutir em uma série de artigos os seguintes temas de grande interesse A utilidade da União para vossa prosperidade política A insufi ciência da atual Confederação para preservar essa União A necessidade de um governo pelo menos com vigor similar ao do proposto para atingir tal objetivo A conformidade da Constituição proposta com os verdadeiros princípios do governo republicano Sua analogia com a Constituição de vosso próprio estadomembro e fi nal mente a segurança adicional que sua adoção propiciará à preservação desta forma de governo à liberdade e à prosperidade O federalista Artigo no 1 p 36 Nos Artigos nos 21 e 22 ainda expostos por Hamilton foram enumeradas com clareza e objetividade as fragilidades da Confederação sistema federal em vigor desde a independência da GrãBretanha A crítica era inicialmente diri gida a inoperância de suas resoluções pois não passavam de recomendações 4 Alfred Stepan adverte que o Senado na versão de uma Câmara Territorial adotada pelos federalistas norteamericanos pode permitir eventualmente restrições ao exercício democrático sobretudo quando possui poderes maiores do que aqueles atribuídos à Câmara dos Deputados Stepan 1999 234 ELSEVIER Curso de Ciência Política diante da ausência de poderes para aplicar penalidades aos estadosmembros que não as seguissem O defeito mais evidente da subsistente Confederação é a total inexis tência de sanções em suas leis Os Estados Unidos constituídos da ma neira como o foram não têm poderes para exigir obediência ou punir qualquer reação às suas resoluções quer através da aplicação de mul tas pecuniárias pela suspensão ou anulação de privilégios quer por qualquer outro meio constitucional Não há uma delegação expressa de autoridade capaz de permitir o uso da força contra os membros deli quentes O federalista Artigo no 21 p 141 Outra limitação que a Confederação enfrentava era sua dependência dos recursos das unidades estaduais pois não tinha autorização para arrecadar im postos O princípio de regulamentar as contribuições dos estadosmembros para o Tesouro Nacional através de quotas é outro erro fundamental para a Confederação Não há um processo de se evitar tal incon veniente a não ser autorizando o governo nacional a arrecadar suas próprias rendas com seus próprios meios O federalista Artigo no 21 p 143144 Mais grave porém era a impotência da associação política vigente dian te da possibilidade de fi rmar acordos comerciais com outros países Como não podia representar os estadosmembros nas relações internacionais terminava inibindo as chances de uma participação maior da nação no comércio exterior Dos estados do Norte vinha uma grande insatisfação por conta de sua vocação comercial e de ambições na indústria nascente Hamilton conhecia bem esses interesses expressando assim seu inconformismo A inexistência de um poder para regular o comércio é reconhecida una nimemente como sendo um deles É na verdade evidente mesmo ante um exame superfi cial que não outro problema dizendo respeito aos interesses do comércio ou das fi nanças exija com mais vigor uma supervisão federal Sua ausência já representou um obstáculo à lavra tura de vantajosos tratados com potências estrangeiras e deu margem a insatisfações entre os estadosmembros Nenhuma nação familiariza da com natureza da nossa associação política seria bastante insensata para negociar acordos com os Estados Unidos envolvendo privilégios de alguma importância que ela devesse conceder enquanto estivesse ciente de que os compromissos de parte da União poderiam a qualquer 235 Capítulo 9 Hamilton Madison e Jayos pressupostos teóricos do federalismo moderno Ricardo Ismael momento ser violados por seus membros O federalista Artigo no 22 p 147 Os Estatutos da Confederação também não previram a presença de um exército nacional Dessa forma a defesa do território contra alguma agressão estrangeira estava na dependência da disponibilidade de tropas estaduais tor nando operosa e incerta a ação do poder central nessas circunstâncias A competência para mobilizar exércitos é segundo a mais óbvia inter pretação das cláusulas da Confederação apenas o poder de requisitar dos estadosmembros as respectivas contribuições em homens Tal prá tica no decurso da última guerra encontrou toda sorte de obstruções à montagem de um vigoroso e econômico sistema de defesa dando nascimento a uma competição entre os estadosmembros que criaram uma espécie de leilão de homens O federalista Artigo no 22 p 148 A preocupação com a preservação da unidade territorial e com a inte gração política dos estadosmembros apareceu na contribuição de John Jay em particular no Artigo no 2 O federalista procurou mostrar que sem a presença de um governo nacional é grande o risco de separatismos e de fragmentação ter ritorial pois existe a possibilidade de forças centrífugas serem estimuladas por interesses estrangeiros Todavia qualquer que seja nossa situação solidamente unidos sob um governo nacional ou repartidos em certo número de confederações o certo é que todos os países estrangeiros estarão bem a par do que está acontecendo e agirão de acordo com suas conveniências Se porém nos encontrarem privados de um governo atuante cada esta domembro agindo certo ou errado conforme seus dirigentes julgarem conveniente ou repartido em três ou quatro repúblicas ou confede rações independentes e provavelmente discordantes uma favorável à GrãBretanha outra à França uma terceira à Espanha e talvez jogadas umas contra as outras por esses três países que pobre e lamentável fi gura a América apresentará O federalista Artigo no 2 p 48 John Jay ainda no Artigo no 2 procurou vincular a prosperidade econô mica à manutenção da unidade nacional que para ele só estaria assegurada com a implantação da Constituição Federal Aproveitou a oportunidade portanto para atacar os defensores da Confederação na passagem a seguir Até recentemente tem sido opinião geral e não contraditada que a prosperidade do povo da América depende de ele continuar fi rme mente unido os desejos as preces e os esforços de nossos melhores e mais prudentes cidadãos têm sido constantemente orientados nesse 236 ELSEVIER Curso de Ciência Política sentido Todavia agora aparecem políticos que insistem em qualifi car esta posição como errônea e que em vez de buscar a seguran ça a felicidade na União devemos procurala em uma divisão dos estadosmembros em distintas confederações e soberanias Por mais extraordinária que esta doutrina possa parecer ela tem seus adeptos certas personalidades que até há pouco a combatiam estão agora en tre estes Quaisquer que possam ser os argumentos e convicções que revistam tal mudança certamente não seria aconselhável que o povo em geral adotasse novas doutrinas políticas sem estar plenamente convencido de que elas são baseadas na verdade e em sadia orienta ção O federalista Artigo no 2 p 37 952 A República Federativa como uma associação de repúblicas unitárias Os federalistas deveriam ser capazes de enfrentar o debate sobre a conve niência da instalação do governo republicano num país de grandes dimensões territoriais como era o caso dos Estados Unidos Signifi cava neste caso dialo gar com um conjunto de pensadores europeus com destaque para Montesquieu Hamilton no Artigo no 9 sugeriu que a República Federativa que se buscava im plantar se aproximava de uma associação de Repúblicas bem diferente da ideia de um único governo republicano administrando todo o território nacional Foi mais longe quando procurou mostrar que não se encontra no livro O espírito das leis de Montesquieu uma oposição à proposta de uma aliança política entre Repúblicas Unitárias Quando Montesquieu recomenda uma pequena extensão territorial para as repúblicas os exemplos que ele tinha em vista apresentavam áreas bem menores que a de qualquer de nossos estadosmembros com poucas exceções Virgínia Massachusetts Pensilvânia New York Ca rolina do Norte ou Geórgia nenhum deles pode ser comparado com os modelos sobre os quais ele raciocinava e que traduziam os dados em que se apoiava Tão distantes estavam as sugestões de Montes quieu de refl etirem uma oposição à União dos estadosmembros que ele explicitamente cita uma República Confederada como solução para ampliar a esfera do governo popular e reconciliar as vantagens da mo narquia com as do republicanismo O federalista Artigo no 9 p 7273 Alexis de Tocqueville também chamou atenção para os aspectos inova dores da República Federativa adotada nos Estados Unidos no fi nal do século XVIII Em sua maior obra A democracia na América o estudioso francês discutiu a Constituição Federal de 1787 entre outros temas abordados referentes à socieda 237 Capítulo 9 Hamilton Madison e Jayos pressupostos teóricos do federalismo moderno Ricardo Ismael de norteamericana É importante mencionar neste momento sua interpretação do papel do sistema federal e a respeito das condições reunidas pelos Estados Unidos o que permitiu a implantação do federalismo naquele país As paixões fatais às repúblicas crescem segundo Tocqueville com a ex tensão do território Não se deve dizer que seja impraticável como alguns afi r mam a existência de tal forma de governo em uma nação de grande dimensão territorial No entanto a República estará muito menos exposta na pequena do que na grande nação O bemestar e a liberdade dos homens é também maior nas nações de pequeno tamanho do que nas maiores Na verdade as vanta gens das grandes nações aparecem em outros aspectos da realidade como por exemplo nas contribuições para a cultura e para a civilização na distância que consegue do egoísmo das localidades e principalmente no confronto com ou tras grandes nações Os pequenos povos muitas vezes não resistem diante dos confl itos contra povos maiores o que signifi ca dizer que sua própria existência diferentemente das grandes nações está sempre ameaçada Tocqueville acreditava que o modelo federalista foi criado para unir as vantagens das pequenas e das grandes nações bem como para fazer o gover no republicano prosperar em um país de tamanho territorial como os Estados Unidos da América Suas observações mostravam que a União não iria se sobre carregar de tarefas preservando os aspectos da cultura política dominante que deixava a cargo das unidades estaduais o papel principal no processo decisório especialmente quando se tratava dos assuntos que estimulavam a cidadania O federalismo portanto tinha as seguintes características Foi para unir as diversas vantagens que resultam da grandeza e da pe quenez das nações que se criou o sistema federativo A União é uma grande república quanto à extensão mas de certa forma seria possível assimilála a uma pequena república por causa do pouco número de objetos de que seu governo se ocupa Seus atos são importantes mas raros Como a soberania da União é tolhida e in completa o uso dessa soberania não é perigoso para a liberdade A União é livre e feliz como uma pequena nação gloriosa e forte com uma grande Tocqueville 2005 p 182184 Por outro lado a mudança proposta é alvo de algumas críticas do pes quisador francês Em primeiro lugar ressalta que o modelo federalista repousa sobre uma teoria complicada O arranjo de dupla soberania impede que os go vernos se assentem sobre uma ideia fácil acessível ao povo e que possa ser tra balhada no legislativo sem maiores problemas Em segundo lugar destaca que o fracionamento da soberania debilita o governo da União A centralização gover 238 ELSEVIER Curso de Ciência Política namental é incompleta o que pode trazer sérios problemas em caso de agressão estrangeira É importante lembrar que para Tocqueville a centralização poderia ser governamental ligada às leis gerais e à relação com os estrangeiros e admi nistrativa associada aos negócios públicos A descentralização administrativa presente no federalismo era positiva pois estimulava a participação social e por conseguinte poderia garantir o melhor funcionamento da democracia re presentativa A frágil centralização governamental no sistema federal porém debilitava as ações da União particularmente nas circunstâncias de um confl ito externo Em terceiro lugar a soberania dos estados é real natural e nasceu junto com os indivíduos Apresentase no cotidiano sendo percebida sem maior es forço A soberania da União é abstrata artifi cial e não chega aos cidadãos É por assim dizer uma obra por fazer uma ausência a ser preenchida As críticas servem para que Tocqueville alerte sobre a necessidade de cer tas condições para a inserção do sistema federal em um determinado país É pre ciso por exemplo que haja certa homogeneidade de hábitos e costumes entre as unidades estaduais participantes Além disso o país não deve estar localizado em zonas de confl ito onde a centralização governamental é fundamental para derrotar seus inimigos e garantir a própria sobrevivência Estas duas condições estavam presentes segundo Tocqueville no contexto norteamericano posterior à Independência do país Nessas circunstâncias os Estados Unidos foram capa zes de dar início à primeira experiência federativa e diferentemente de outros povos poderiam assegurar as virtudes do modelo federalista 953 Novos mecanismos institucionais para um mundo movido por interesses A evolução dos mecanismos institucionais para garantir maior estabilida de política aos governos republicanos foi o tema abordado por Hamilton por ocasião do Artigo no 9 O arranjo federativo apareceu naquela oportunidade como instrumento adicional somandose a outros meios introduzidos pela ciên cia política para remediar os males dos governos republicanos O modelo fe deralista deveria funcionar como uma barreira contra as facções e insurreições internas assegurando maior estabilidade política aos governos populares A ciência da política entretanto como quase todas as demais ciências progrediu enormemente A efi cácia de vários princípios é agora bem conhecida compreendida em contraste com seu desconhecimento total ou interpretação errônea por parte de nossos antepassados A distribui ção correta do poder entre os diferentes departamentos a adoção do sistema de controles legislativos a instituição de tribunais integrados por juízes não sujeitos a demissões sem justa causa a representação do 239 Capítulo 9 Hamilton Madison e Jayos pressupostos teóricos do federalismo moderno Ricardo Ismael povo no Legislativo por deputados eleitos diretamente tudo constitui novidades resultantes dos acentuados progressos dos tempos moder nos em busca da perfeição Criaramse assim meios e meios poderosos permitindo assim que sejam assegurados os méritos do governo repu blicano e reduzidas ou evitadas suas imperfeições A este elenco de particularidades que tendem a melhorar os sistemas populares de go verno civil aventurome ainda que possa parecer prematuro a acres centar mais uma relativamente ao princípio que fundamentou uma objeção à nova Constituição refi rome à ampliação da órbita na qual tais sistemas têm de girar em atenção às dimensões de determinado Estado ou às da consolidação de vários estadosmembros pequenos em uma grande Confederação O federalista Artigo no 9 p 72 O Artigo no 10 escrito por Madison também tratou da questão da esta bilidade política Nesse momento o federalista natural do estado da Virgínia revelaria toda sua capacidade para compreender uma ordem social movida por interesses legítimos ou não os quais não poderiam ser suprimidos nem tam pouco podiam ser deixados à própria sorte O controle sobre os efeitos das facções foi um dos eixos principais da ar gumentação de Madison servindo também de justifi cativa para sublinhar as vantagens do arranjo federativo pois entre as vantagens prometidas por uma União bem constituída nenhuma merece ser mais detalhadamente acentuada do que sua tendência para conter e controlar a violência das facções O federa lista Artigo no 10 p 78 O conceito de facção é apresentado no início da sua comunicação sendo defi nido como um grupo de cidadãos representando quer a maioria quer a minoria do conjunto unido e agindo sob um impulso comum de sentimentos ou de interesses contrários aos direitos dos outros cidadãos ou aos interesses permanentes e coletivos da comunidade O federalista Artigo no 10 p 78 Apesar das consequências indesejáveis que as ações facciosas podem tra zer Madison advertiu que não é possível eliminálas pois isto signifi caria afas tarse dos princípios liberais que devem nortear a própria Constituição Federal A remoção das causas das facções restringiria a liberdade de organização e a liberdade de pensamento aspectos fundamentais da tradição liberal defendida por Locke A conclusão portanto é que as causas da facção não podem ser removidas restando procurar remédio nos meios de controlar seus efeitos O federalista Artigo no 10 p 80 A alternativa que se apresentava era por um lado fortalecer a democracia representativa menos vulnerável às facções do que a democracia direta Adi 240 ELSEVIER Curso de Ciência Política cionalmente seria útil a representação política nacional aspecto intrínseco ao modelo federalista em discussão A presença de um Congresso Nacional difi cul taria a ação das facções por conta de duas razões principais Em primeiro lugar porque permite ampliar o número de partidos políticos na discussão dos temas ou seja haveria mais diversidade partidária no âmbito nacional do que no es tadual tornando mais difícil a presença de ações facciosas no Legislativo Em segundo lugar porque afasta por assim dizer os deputados federais e os sena dores dos seus estados de origem reduzindo a pressão exercida pelos interesses locais onde a presença das facções se manifesta com frequência Nesse sentido os representantes federais são estimulados a pensar em um projeto nacional de longo prazo que harmonize os diversos interesses envolvidos contribuindo para consolidação da unidade política do país A infl uência de líderes facciosos pode provocar incêndios nos respec tivos estadosmembros mas não será capaz de alastrálos entre os de mais Uma seita religiosa pode degenerar em facção política em par te da Confederação mas a variedade de seitas dispersas por todo o seu território será de molde a preservar os conselhos nacionais contra quaisquer perigos oriundos dessa fonte Uma necessidade violenta de papelmoeda de abolir dívidas de divisão igual da propriedade ou qualquer outro projeto impróprio ou pernicioso terá menos probabili dade de ser aceito por todo o corpo da União do que por um de seus membros do mesmo modo que uma praga poderá infeccionar deter minados distritos ou regiões sem atacar o Estado O federalista Artigo no 10 p 83 A estabilidade política não seria alcançada suprimindo as facções ou qual quer grupo de interesse A perspectiva apresentada por Madison indica que o federalismo poderá operar num mundo constituído por interesses sendo capaz de neutralizar as facções e de resolver os confl itos sociais Entretanto a fonte mais comum e duradoura das facções tem sido a dis tribuição variada e desigual da propriedade Os que a possuem jamais constituíam com os não proprietários um grupo de interesses comuns na sociedade Os que são devedores sofrem discriminação semelhante aos credores Interesses decorrentes da posse das terras de atividades industriais e comerciais de disponibilidade de capital acompanhados de uma série de outros menores surgem das necessidades nos estados membros civilizados e dividemnos em classes diversas motivadas por sentimentos e pontos de vista distintos A coordenação destes diferen tes interesses em choque constitui a tarefa principal da legislação mo 241 Capítulo 9 Hamilton Madison e Jayos pressupostos teóricos do federalismo moderno Ricardo Ismael derna e envolve o espírito do partido e da facção nas atividades neces sárias e comuns do governo O federalista Artigo no 10 p 72 954 Os poderes da União e dos estadosmembros O processo de substituição da Confederação pela União apontava para uma centralização política mas nem de longe signifi caria o esvaziamento po lítico das instâncias subnacionais e o acúmulo excessivo de poderes no plano federal Essa sinalização foi feita por Madison em diferentes artigos publicados No Artigo no 14 por exemplo ele destaca que o governo federal não deve ser investido de todo o poder de elaborar e fazer executar as leis Sua jurisdição é limitada a determinados assuntos que digam respeito a todos os membros da república mas que não sejam atingidos pelas provisões de qualquer das partes O federalista Artigo no 14 p 103 Ainda neste momento chamava atenção para o pacto federativo observando que o objetivo imediato da Constituição Federal é assegurar a união dos 13 estadosmembros iniciais o que sabemos ser praticável e somar a eles outros estadosmembros que possam surgir do seio dos atuais ou de seus vizinhos o que não podemos negar que é igualmente pra ticável O federalista Artigo no 14 p103 Madison voltou a tratar dos poderes da União frente aos estadosmem bros do Artigo no 41 ao do Artigo no 45 enfatizando especifi camente o papel dos governos federal e estadual O federalista ressaltou logo no início que uma vez demonstrado que nenhum dos poderes transferidos para o governo federal é desnecessário ou inadequado o problema seguinte a ser considerado é se o conjunto deles não ameaça a porção de autoridade mantida nos diversos es tadosmembros O federalista Artigo no 45 p 289 Posteriormente procurou mencionar a subordinação do novo desenho institucional ao bemestar da po pulação destacando que o verdadeiro bemestar da grande massa do povo constitui o objetivo supremo a ser atingido e que nenhuma forma de governo terá qualquer outro mérito senão o de adequarse para esse fi m Se o projeto da conven ção ameaçasse o bemestar público meu voto seria no sentido de rejeitálo Se a própria União se revelasse inconsistente com a felicidade do povo eu votaria pela abolição da União O federalista Artigo no 45 p 289290 Em outro momento talvez mais revelador parece querer deixar claro que a vitalidade do federalismo nascente viria dos governos estaduais e não do go verno federal indicando que o processo decisório continuaria em boa medida sendo descentralizado 242 ELSEVIER Curso de Ciência Política Os poderes delegados ao governo federal pela Constituição proposta são poucos e defi nidos os que permanecem com os governos estaduais são numerosos e imprecisos Aqueles serão exercidos principalmente sobre tópicos externos tais como guerra paz negociações e comércio exterior com o qual o poder de tributação estará intimamente ligado Os poderes reservados aos estadosmembros estenderseão sobre todos os tópicos que no curso normal da vida do país dizem respeito às liberdades e bem do povo à ordem interna e aos aperfeiçoamentos e progresso do Estado A atuação do governo federal será mais abrangente e importante em tempo de guerra e de ameaças a dos governos estaduais em tempos de paz e tranquilidade Uma vez que aqueles períodos serão provavelmente bem menores que estes os governos estaduais desfrutarão de mais van tagem sobre o federal O federalista Artigo no 45 p 292 Não convinha silenciar ou adotar subterfúgios quando a discussão dizia res peito ao poder da União Todos os estadosmembros queriam saber o que perderiam para a União a partir da nova confi guração territorial do poder político Hamilton no Artigo no 32 também procurava tranquilizar os signatários do pacto federativo estou disposto a admitir integralmente a procedência do raciocínio segundo o qual os estadosmembros isoladamente deveriam desfrutar uma autoridade independente não sujeita a controles para arrecadar seus impostos a fi m de atender às próprias necessidades Todavia o projeto da convenção visa apenas a uma união ou con solidação parcial os governos estaduais conservariam sem dúvida to das as prerrogativas de soberania que possuíam antes e não expressa mente delegadas por aquele ato aos Estados Unidos Esta delegação expressa ou melhor esta alienação das soberanias estaduais somente aconteceria em três casos quando a Constituição em termos expressos atribuir uma exclusiva autoridade à União quando atribuindo uma autoridade à União em determinado caso em outro proíbe os estados de exercêla e quando atribuindo uma autoridade à União tornaria absoluta e totalmente contraditório e incompatível o exercício da mesma autoridade nos estados Utilizo estes termos para distinguir o último caso de outro que parece assemelharse a ele mas que é de fato essencialmente diferente refi rome ao exercício de uma jurisdição con corrente quando podem ocorrer interferências ocasionais na orienta ção de alguns setores da administração mas sem implicar qualquer contradição ou incompatibilidade relativamente à autoridade constitu cional O federalista Artigo no 32 p 202203 243 Capítulo 9 Hamilton Madison e Jayos pressupostos teóricos do federalismo moderno Ricardo Ismael 955 Um equilíbrio dinâmico entre os três poderes da República Hamilton e Madison eram em linhas gerais seguidores da teoria da sepa ração do poderes de Montesquieu Entretanto defenderam algumas inovações decisivas quando teorizavam sobre o modelo federalista norteamericano Ma dison no Artigo no 51 procurou mostrar a relevância da adoção de um sistema de controles mútuos entre os Poderes Executivo Legislativo e Judiciário Nesse momento revelava seu pessimismo com relação à natureza humana lembrando que devia ser seguido o princípio geral de não se conceder a nenhum homem ou grupo de homens poder ilimitado pois acreditava que ações humanas são movidas por paixões ou por interesses imediatos e egoístas O sistema de con troles mútuos permitia a aplicação dessa premissa tornando possível o equilí brio entre os três poderes do Estado Equilíbrio que não seria assegurado ape nas com a defi nição das competências dos poderes constituídos na Constituição Federal mas sobretudo com a ambição de cada um de defender suas prerro gativas constitucionais Nesse sentido podese falar que Madison pregava um equilíbrio dinâmico derivado mais da interação entre os poderes da República no jogo político federativo Todavia a grande segurança contra uma gradual concentração de vários poderes no mesmo ramo do governo consiste em dar aos que administram cada um deles os necessários meios constitucionais e motivações pessoais para que resistam às intromissões dos outros As medidas para a defesa devem neste como em todos os demais ser compatíveis com as ameaças de ataque A ambição será incentivada para enfrentar a ambição Os interesses pessoais serão associados aos direitos constitucionais Talvez seja um refl exo da natureza humana que tais expedientes tenham validade para o controle dos abusos do governo Mas afi nal o que é próprio governo senão o maior de todos os refl exos da natureza humana Se os homens fossem anjos não seria necessário haver governos Se os homens fossem governados por anjos dispensarseiam os controles internos e externos Ao constituirse um governo integrado por homens que terão autoridade sobre outros ho mens a grande difi culdade está em que se deve primeiro habilitar o governante a controlar o governado e depois obrigalo a controlarse a si mesmo O federalista Artigo no 51 p 322 Hamilton trouxe no Artigo no 51 uma preocupação com o fortalecimento institucional do Poder Judiciário o qual no seu entender seria o mais fraco dos poderes da República Dessa forma propunha a estabilidade dos cargos 244 ELSEVIER Curso de Ciência Política judiciais assegurando a exigência de eleições periódicas apenas para o preen chimento das cadeiras do Congresso Nacional e para a escolha do presidente da República Quem analisa atentamente os diferentes ramos de poder percebe logo que em um governo em que eles são separados uns dos outros o Ju diciário pela própria natureza de suas funções será sempre o menos perigoso para os direitos políticos previstos na Constituição pois será o de menor capacidade para ofendêlos ou violálos O Executivo dispõe não apenas das honrarias mas também da espada O Legislativo além de manter os cordões da bolsa prescreve as normas pelas quais cada cidadão deve regular seus direitos e deveres O Judiciário porém não tem a menor infl uência sobre a espada e a bolsa não participa da força nem da riqueza da sociedade e não toma as resoluções de qualquer natureza Na verdade podese dizer que não tem força nem poderio li mitandose simplesmente a julgar dependendo até do auxílio do ramo executivo para efi cácia de seus julgamentos em consequência de sua natural fraqueza o judiciário está continua mente ameaçado de ser dominado intimidado ou infl uenciado pelos outros ramos e que como nada pode contribuir mais para sua fi rmeza e independência do que a estabilidade nos cargos esta condição deve ser encarada como fator indispensável em sua constituição e em gran de parte como cidadela da justiça e da segurança pública O federalista Artigo no 78 p 470 A Câmara dos Deputados foi o tema escolhido na série que começa no Ar tigo no 54 e termina no Artigo no 58 É importante notar que o arranjo federativo estabelecia uma dupla representação política ou seja um eleitor seria em tese representado por um deputado federal e um deputado estadual Ao refutar uma crítica contra a composição da Câmara dos Deputados Hamilton ou Madison existe uma dúvida sobre a autoria do Artigo no 57 lembram que os eleitores dos deputados federais são os mesmos dos deputados estaduais A terceira objeção contra a Câmara dos Deputados é que seus membros serão recrutados naquela classe de cidadãos que gozam de menos sim patia na massa do povo e são os mais propensos a defender o sacrifício de muitos em proveito de uns poucos Quais serão os eleitores dos deputados federais Não os ricos mais do que os pobres os letrados mais do que os ignorantes não os orgu lhosos herdeiros de nomes famosos mais do que os fi lhos de obscuras e desafortunadas famílias O eleitorado será constituído pela grande massa do povo dos Estados Unidos o mesmo que exercerá o direito 245 Capítulo 9 Hamilton Madison e Jayos pressupostos teóricos do federalismo moderno Ricardo Ismael em cada Estado de eleger o órgão correspondente do Legislativo Esta dual O federalista Artigo no 57 p 353 O fundamental para os federalistas era a realização de eleições legisla tivas frequentes para que os deputados prestassem contas regularmente ao eleitorado Quem são os preferidos pelo voto popular Aqueles cidadãos cujos mé ritos os recomendem à estima e à confi ança de seu país Nenhuma con sideração à riqueza à família à crença religiosa ou à profi ssão poderá restringir o julgamento ou frustrar as tendências do povo Todas estas garantias porém seriam insufi cientes sem o freio de eleições frequentes a Câmara dos Deputados é constituída de for ma a manter em seus membros uma constante lembrança da depen dência deles em relação ao povo O federalista Artigo no 57 p 354 O Senado foi debatido na série que começa no Artigo no 62 e termina no Artigo no 66 Madison ou Hamilton existe dúvida também sobre a autoria do Artigo no 57 procurou mostrar que o Senado pode ser visto como uma Câmara Territorial em que cada um dos Estadosmembros possui o mesmo número de representantes Diferentemente da Câmara dos Deputados que possui como re ferência a democracia representativa esta casa legislativa deve zelar pela manu tenção da União corrigindo e aperfeiçoando o processo decisório no Congresso Nacional tendo em vista a coordenação dos interesses estaduais Os federalistas pareciam saber dos riscos com a igualdade da representação do Senado fortale cendo os estadosmembros menos populosos Entretanto estavam convencidos de que as tensões federativas poderiam ser mais graves caso as unidades maio res tivessem mais representantes no Senado da mesma forma que acontecia na Câmara dos Deputados A igualdade de representação no Senado é outro ponto que evidente mente traduzindo o resultado de concessões mútuas em pressões con fl itantes dos estadosmembros grandes e pequenos Nenhuma lei ou resolução pode agora ser aprovada sem a anuência primeiro de uma maioria dos eleitores depois de uma maioria dos estadosmembros Deve admitir que este complicado controle sobre a legislação pode em alguns casos ser nefasto ou benéfi co e que a defesa específi ca que ele implica em favor dos estadosmembros menores seria mais racional se quaisquer interesses comuns a estes e distintos de outros estados membros fi cassem expostos a determinado perigo Todavia como os estadosmembros maiores sempre estarão em condições pelo poder que exercem sobre os suprimentos de anular exageradas manifestações 246 ELSEVIER Curso de Ciência Política desta prerrogativa por parte dos estadosmembros menores e como a facilidade em elaborar leis e multiplicar o número delas parece ser do ença de que mais sofrem nossos governos não será impossível que esta parte da Constituição seja na prática mais conveniente do que muitos julgam O federalista Artigo no 62 p 382383 O Poder Executivo por sua vez foi abordado na série que começa no Ar tigo no 67 e termina no Artigo no 77 Hamilton no Artigo no 68 falou sobre como seria escolhido o presidente dos Estados Unidos Um Colégio Eleitoral cons tituído por delegados dos Estadosmembros os quais seriam escolhidos pelo eleitorado indicaria o principal nome do governo federal O federalista adverte que julgouse conveniente que a sensibilidade do povo interviesse na escolha da pessoa que irá desempenhar tão importantes funções Tal conveniência foi atendida cometendo o encargo de elegêlo não a um colégio préconstituído mas a delegados escolhidos pelo povo para este fi m específi co e na devida opor tunidade O federalista Artigo no 68 p 417 Sobre o número de representantes de cada unidade estadual na eleição indireta Hamilton esclarece que no projeto elaborado pela convenção isto é que o povo de cada Estado escolherá um número de cidadãos para o colégio eleitoral igual ao de senadores e deputa dos do mesmo Estado no governo nacional que tais representantes se reunirão nos respectivos estadosmembros e votarão em algum nome que julgado digno de ser presidente O federalista Artigo no 68 p 419 No Artigo no 85 o último daqueles que foram registrados no livro O fe deralista Hamilton defendeu a proposta de Constituição Nacional aprovada na Convenção Federal entre maio e setembro de 1787 em oposição aos que dese javam fazer mudanças no texto original Ressaltou que qualquer mudança na quele momento deveria ser aprovada por 13 estadosmembros enquanto uma emenda constitucional posterior precisaria do apoio de apenas dez estados ou seja três quartos do total de participantes do pacto federativo Finaliza porém conclamando o povo do estado de Nova York a ratifi car a nova Constituição dos Estados Unidos mesmo porque não há um único desses reclamantes que não reafi rme sua opinião de que o sistema embora possa ser imperfeito em al guns pontos é no conjunto não apenas bom mas o melhor que as ideias e as circunstâncias do momento permitiram produzir prometendo todos os tipos de segurança que um povo pode razoavelmente desejar O federalista Artigo no 85 p 527 247 Capítulo 9 Hamilton Madison e Jayos pressupostos teóricos do federalismo moderno Ricardo Ismael 96 Considerações finais A leitura atenta dos artigos escritos por Hamilton Madison e Jay permite apontar algumas indicações metodológicas para aqueles que desejam estudar os diferentes federalismos no mundo contemporâneo A análise do texto constitu cional é obrigatória para a compreensão das bases do pacto federativo especial mente quando se trata de conhecer a defi nição das competências dos entes fede rados a repartição do bolo tributário nacional as condições excepcionais para a intervenção da União nos Estadosmembros e os princípios gerais que orientam a cooperação e limitam a competição entre as unidades estaduais A Constituição Federal entretanto representa por assim dizer um aspec to estático do modelo federalista A investigação não deve fi car restrita a essa dimensão devendo ser complementada pela discussão do processo político um indicador recorrente da dinâmica federativa Neste caso urge observar a rela ção entre a União e os estadosmembros e destes entre si Aqui podese dizer ganham visibilidade demandas e interesses estaduais em torno de investimen tos públicos e decisões no âmbito federal elites políticas regionais e nacionais e alianças políticas entre a União e as unidades subnacionais dentro e fora do Congresso Nacional Finalmente os federalistas norteamericanos e em especial Tocqueville nos ensinam que uma investigação para esclarecer o tipo de federalismo prati cado num país não deve deixar de fora a cultura política em termos nacionais e estaduais O conjunto de valores e de atitudes que caracterizam cada sociedade infl uencia o federalismo reinante tornandoo por exemplo mais ou menos cen tralizado ou mais ou menos cooperativo Hamilton Madison e Jay sabiam que a aceitação da proposta aprovada na Convenção Federal de 1787 dependia da consistência teórica da estrutura constitucional formulada da superação de resistências de natureza política e da capacidade de conciliar os valores presentes por todo o território nacional É daí que prospera o modelo federalista em qualquer lugar 97 Perguntas para reflexão 1 É possível dizer que o arranjo federativo implantado nos Estados Unidos no final do século XVIII encontrase situado numa posição intermediária entre o Estado Unitário praticado no mundo europeu e a Confederação adotada logo após a independência do país Explique 248 ELSEVIER Curso de Ciência Política 2 Quais as limitações estabelecidas pelos Estatutos da Confederação de acordo com a exposição feita por Alexander Hamilton nos Artigos de número 21 e 22 3 Quais os princípios liberais defendidos por James Madison no Artigo de número 10 quando trata dos processos para remediar os malefícios das facções 4 Quais as vantagens do arranjo federativo para conter e controlar os efei tos das facções segundo Madison no Artigo de número 10 5 Que se pode dizer sobre o sistema de controles mútuos envolvendo os três Poderes da República na perspectiva apresentada por James Madi son no Artigo de número 51 6 Como foi o envolvimento das unidades territoriais na passagem da Con federação para o modelo federalista 7 Existe uma tensão entre o federalismo e a democracia representativa quando se analisam os papéis do Senado e da Câmara dos Deputados no modelo federalista 8 Como poderia ser descrita a relação entre a União e os Estadosmem bros no arranjo federativo norteamericano implantado no final do século XVIII 9 Quais os aspectos inovadores no campo da organização do estado Moder no defendidos pelos federalistas norteamericanos Explique 10 É possível dizer que os estudos sobre o federalismo se orientam espe cialmente pela análise da evolução do texto constitucional pelo debate sobre o processo político envolvendo a relação entre a União e os esta dosmembros e destes entre si e pela investigação da cultura política predominante em termos nacionais e estaduais Explique Bibliografia DRIVER Stephanie Schwartz A Declaração de Independência dos Estados Uni dos Rio de Janeiro Jorge Zahar 2006 ELAZAR Daniel J Federal systems of the world Nova York Stockton Press 1994 249 Capítulo 9 Hamilton Madison e Jayos pressupostos teóricos do federalismo moderno Ricardo Ismael The Role of Federalism in Political Integration In ELAZAR Da niel J org Federalism and Political Integration Tel Aviv Israel Turtledo ve Publishing 1979 FERREIRA FILHO Manoel Gonçalves Curso de Direito Constitucional 19 ed São Paulo Saraiva 1992 HAMILTON Alexander MADISON James JAY John O federalista Campi nas Rusell Editores 2003 JEFFERSON Thomas Escritos políticos 3 ed São Paulo Abril Cultural 1985 Col Os pensadores vXXIX KRAMNICK Isaac Apresentação HAMILTON Alexander MADISON James JAY John Os artigos federalistas 17871788 Rio de Janeiro Nova Fronteira 1993 MCCULLOUGH David G 1776 A história dos homens que lutaram pela inde pendência dos Estados Unidos Rio de Janeiro Jorge Zahar 2006 MONTESQUIEU Do espírito da leis São Paulo Difel 1962 v 1 SCHULTZE RainerOlaf Federalismo O federalismo na Alemanha São Paulo Fundação KonradAdenauerStiftung Série Traduções no 7 p 15 32 1995 SCHWARTZ Bernard O federalismo norteamericano Rio de Janeiro Forense 1984 SELLERS Charles MAY Henry MCMILLEN Neil R Uma reavaliação da his tória dos Estados Unidos Rio de Janeiro Jorge Zahar 1990 STEPAN Alfred Para uma Nova Análise Comparativa do Federalismo e da Democracia Federações que Restringem ou Ampliam o Poder do De mos Dados Revista de Ciências Sociais Rio de Janeiro v 42 n 2 p 197 251 1999 CONVENÇÃO FEDERAL Constituição dos Estados Unidos da América aprova da em 1787 Disponível na internet httpwwwembaixadaamericana orgbrindexphpactionmateriaid643submenu106itemmenu1 10 10 abril 2007 TOCQUEVILLE Alexis de A democracia na América leis e costumes 2 ed São Paulo Martins Fontes 2005 WRIGHT Benjamin Fletcher Introdução do Editor HAMILTON Alexan der MADISON James JAY John O federalista Brasília Editora Univer sidade de Brasília 1984 Butter Lamb Capítulo 10 Alexis de Tocqueville 18051859 o argumento liberal de defesa da liberdade Lier Pires Ferreira 1 Creio que em qualquer época eu teria amado a liberdade mas na época em que vivemos sintome propenso a idolatrála Alexis de Tocqueville Doutor em Direito Internacional UERJ Mestre em Relações Internacionais PUCRio Bacharel em Direito UFF Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais UFF Advogado Coordenador do Curso de Direito e Professor do PPGDUGF Coordenador Pedagógico e Professor do CPII Con sultor adhoc do INEPMEC Pesquisador do PROEALCUERJ Palestrante em eventos no Brasil e no exterior Autor dentre outras obras de Direito Internacional Ambiental e do Petróleo 2009 Curso de Teoria Geral do Estado 2009 Direitos Humanos Direito Internacional 2006 Curso de Direito Inter nacional Privado 2 ed 2008 Direito Internacional as Novas Disciplinarizações 2006 2a tiragem O Estrangeiro no Brasil 2005 Estado Globalização e Integração Regional 2003 Contato 021 9617 0836 Email lierrioigcombr 252 ELSEVIER Curso de Ciência Política 101 Introdução Quando Alexis de Tocqueville nasceu em 29 de julho de 1805 na cidade de Paris a Revolução Francesa já havia chegado ao fi m1 Mas nem por isso se pode dizer que ele viveu em uma França politicamente estável e na plena vigên cia das liberdades democráticas Ao contrário Tendo vindo ao mundo apenas um ano após a elevação de0 Napoleão à condição de Imperador cresceu sob os impactos desse governo Ao longo de sua existência de pouco mais de cinquen ta anos Tocqueville vivenciou como magistrado político e intelectual o período mais conturbado da história francesa no século XIX no qual se destacam even tos como a queda de Napoleão Bonaparte a restauração da Monarquia sob Luís XVIII bem como a deposição de Carlos X e o fi m do governo Luís Filipe após o que a França abriu o caminho que a conduziu mais uma vez a prostrarse perante de um Bonaparte Luís Napoleão2 Entre a deposição de Carlos X e o governo de Luís Filipe Tocqueville as sistiu aos grandes ciclos revolucionários que varreram a Europa e os EUA entre os anos de 1820 e 1848 Tais eventos são importantes para que se compreenda o pensamento do autor Nascido no seio de uma ilustre família normanda per tencente à petite nobresse o conde de Tocqueville era descendente de um irmão de Joana DArc3 bisneto de Chrétien de Malesherbes4 e neto do marquês de 1 A presente afi rmação tem como base a periodização tecida por Albert Sobuol A Revolução Francesa Rio de Janeiro Zahar 1964 Para o autor a Revolução Francesa termina no dia 09 de novembro de 1799 18 Brumário do ano VII da República Francesa quando os Conselhos dos Anciãos e dos Quinhentos então reunidos na localidade de SaintCloud foram dissolvidos pelas tropas comandadas por Napoleão Bonaparte 2 CharlesLouisNapoléon Bonaparte ou simplesmente Luís Napoleão nasceu em Paris no ano de 1808 fi lho de Luís Bonaparte Rei da Holanda Em 1832 com a morte precoce do único fi lho do antigo Imperador tornouse herdeiro do movimento bonapartista Sobre esse legado foi eleito deputado da Assembleia Consti tuinte de 1848 e presidente da França Em 1851 lastreado em sua imensa popularidade promoveu plebiscito que aprovou uma nova Constituição e em nova consulta popular instituiu o Império aclamandose Napoleão III Seu governo garantiu à França duas décadas de prosperidade Em 1870 após derrotas militares na Europa e no México foi deposto pela Assembleia Nacional que proclamou a Terceira República 3 Joana dArc é uma das fi guras mais emblemáticas da história francesa Nascida na vila de Domrémy na região do Barrois em janeiro de 1412 fi lha de camponeses desde pequena distinguiuse por sua índole piedosa e devota Aos 13 anos declarou que podia ouvir a voz de Deus que a exortava a ser boa e a cumprir os deveres cristãos ao mesmo tempo em que lhe ordenava a libertação da cidade de Orléans posta sob o jugo inglês Quando os confl itos com os ingleses se aproximaram de sua região natal Joana dArc iniciou sua vida pública tendo sido vital na retomada de Paris Em 1430 Joana foi aprisionada pelos borgonheses e condenada à fogueira por heresia Seu sacrifício em 1431 despertou o nacionalismo dos franceses que enfi m lograram expulsar os ingleses de Calais Joana dArc foi canonizada em 1920 pelo papa Bento V 4 Antigo conselheiro de Luís XV e XVI 253 Capítulo 10 Alexis de Tocqueville 18051859 o argumento liberal de defesa Lier Pires Ferreira Rosambo5 além de parente próximo de Chateaubriand6 Por tais laços que lhe impunham vínculos quase indissolúveis com o Ancien Régime foi obrigado em mais de uma ocasião a declinar de cargos e honrarias Em cada um destes mo mentos vencido o homem de Estado triunfou o intelectual Em 1831 quando da derrubada dos Bourbons Tocqueville empreendeu viagem aos EUA cujo fruto dileto Democracia na América o tornaria célebre Em 1950 após decair do ministério de OdilonBarrot onde ocupava o cargo de Se cretário Ministro de Assuntos Estrangeiros começou a escrever O Antigo Regi me e a Revolução publicado simultaneamente em Paris e Londres em 1856 Essas obras são o cerne do presente capítulo No entanto o mesmo não se limitará à análise destes clássicos do pensamento político Duas outras obras de rara men ção nos estudos sobre Tocqueville serão investigadas Da Colonização na Argélia em que procedeu a defesa da colonização francesa no norte da África e Lem branças de 1848 texto póstumo onde repassou os acontecimentos que marcaram a vaga revolucionária desse ano na França Para melhor ordenar a refl exão dos leitores após breve consideração metodológica os textos serão apresentados na ordem cronológica em que foram escritos 102 O método em Tocqueville Em uma obra clássica nas ciências sociais As Etapas do Pensamento Socioló gico Raymond Aron situa Tocqueville entre os precursores da Sociologia7 Anos mais tarde na introdução de uma das muitas edições em português de O An tigo Regime Zevedei Barbu ratifi ca essa proposição assinalando inobstante que sempre que o mencione Tocqueville juntamente com Max Weber Émile Durkheim e Karl Marx eu me veja cercado de olhares interrogativos8 Dian te dessa expressão de perplexidade importa perguntar que elemento permite situar Tocqueville entre os precursores da Sociologia conquanto seja evidente de que se trata sobretudo de um autor preocupado com questões políticas e fi losófi cas A resposta é sem dúvida o método Tal como Montesquieu Tocqueville baseia seu pensamento na defesa da ordem e das instituições políticas No entanto como próprio Montesquieu ele não recorre a uma abordagem estritamente historicista à moda de Maquiavel ou às múltiplas faces do jusnaturalismo tal como procedido por Hobbes Lo 5 Nobre francês cujo guilhotinamento foi um dos marcos mais expressivos da Revolução Francesa 6 F rançois René Chateaubriand político e literato francês nascido em 1768 e falecido em 1848 7 ARON R As Etapas do Pensamento Sociológico 3 ed Brasília UNB 1990 8 TOCQUEVILLE A O Antigo Regime e a Revolução 3 ed Brasília UNB São Paulo Hucitec 1989 254 ELSEVIER Curso de Ciência Política cke e Rousseau Em seus escritos Tocqueville estrutura quadros gerais onde o conhecimento brota de uma perspectiva relacional entre diferentes elementos tais como causas remotas e atuais elementos geográfi cos e culturais bem como normas e instituições sociais Estes quadros gerais derivam para a composição de tipos ideais antecipando quiçá de forma não completamente madura a me todologia de investigação que irá caracterizar as obras de Ferdinand Tônnies e principalmente Max Weber Nas palavras de Célia Galvão Quirino Procurando analisar o que ocorria em diversos países europeus e nos Estados Unidos Tocqueville trabalha com a especifi cidade dessas reali dades considerando tanto a história política e social de cada um quan to as várias contradições do presente tentando por vezes até realizar prognósticos para o futuro Como alguns de seus comentadores tenderíamos também a concordar com a tese de que estaria antecipan do a metodologia de Max Weber ao tentar construir um tipo ideal de democracia A maneira pela qual retira da realidade pesquisada fatos que lhe parecem signifi cativos para a compreensão do fenômeno de mocrático o cuidado com que os relaciona buscando aí encontrar a racionalidade que lhes é específi ca permite que se veja no seu estudo mais do que a democracia tal como ela ocorria no Estados Unidos ou que pudesse vir a ocorrer na França Como declara em carta a John Stuart Mill Partindo de noções que me forneciam as sociedades ame ricana e francesa eu quis pintar os traços gerais das sociedades demo cráticas das quais não existe ainda nenhum modelo completo9 No mesmo curso Raymond Aron consigna que Tocqueville é o sociólogo comparativista por excelência procura iden tifi car o que é importante confrontando espécies de sociedades perten centes a um mesmo gênero ou a um mesmo tipo De modo ge ral em La Démocracie en Amérique Tocqueville é sociólogo no estilo de Montesquieu e diríamos mesmo nos dois estilos que Montesquieu nos legou A síntese dos diferentes aspectos de uma sociedade é feita em LEspirit de Lois graças ao conceito de espírito de uma nação Segundo Montesquieu o primeiro objetivo da sociologia é apreender o conjunto de uma sociedade Não há dúvida de que Tocqueville quer aprender na América o espírito de uma nação para isso emprega as diferentes categorias que Montesquieu distinguiu Discrimina entre as causas históricas e as causas atuais o meio geográfi co e a tradição histórica a ação das leis e dos costumes O conjunto destes elementos se reagrupa 9 QUIRINO Célia Galvão Tocqueville sobre a liberdade e a igualdade WEFFORT FC org Os Clássicos da Política 6 ed vol 2 São Paulo Ática 1996 p 151153 255 Capítulo 10 Alexis de Tocqueville 18051859 o argumento liberal de defesa Lier Pires Ferreira para defi nir na sua singularidade uma sociedade única a sociedade americana Tocqueville porém visa um segundo objetivo da sociologia e pratica um outro método Coloca um problema mais abs trato num nível mais elevado de generalidade o problema da demo cracia das sociedades modernas Isto é fi xa o estudo de um tipo ideal comparável ao tipo de regime político de Montesquieu Partindo da noção abstrata de uma sociedade democrática Toqueville pergunta qual a forma política de que esta sociedade democrática pode se reves tir por que ela se reveste aqui de uma forma e em outro lugar de outra Em outras palavras começa por defi nir um tipo ideal o da sociedade democrática e tenta pelo método comparativo identifi car o efeito das várias causas das mais gerais às mais particulares10 Parece correto assinalar que do ponto de vista metodológico Tocqueville sedimenta duas perspectivas essenciais para a teoria social o método compa rativo e as construções tipológicas inscritas no campo do pensamento liberal Essas perspectivas serão juntamente com o positivismo de Augusto Comte o funcionalismo de Émile Durkheim e o materialismo histórico e dialético de Karl Marx as bases sobre as quais se erguerá a Sociologia e em largos aspectos o amplo conjunto das ciências humanas e sociais 103 A democracia na América Em 1827 com aproximadamente 22 anos Tocqueville ingressa na magis tratura francesa na qualidade de juizauditor atuando no Tribunal de Versalhes De família legitimista entretanto passa a ter problemas políticos após a Revolu ção de 1830 quando os orleanistas depõem os Bourbons Visando a distanciarse da França para evitar complicações indesejáveis requer uma autorização para estudar in loco o sistema penitenciário dos Estados Unidos no que é prontamen te atendido pelo Ministério do Interior As anotações e estudos dessa viagem são as bases sobre as quais constrói a Democracia na América publicada em duas partes em 1835 e 1840 respectivamente É inequívoco que ao desembarcar nos Estados Unidos em maio de 1831 na companhia de Gustave de Beaumont Tocqueville não busca apenas realizar um estudo sobre o sistema penitenciário Seu real interesse é apreender o fun cionamento da nascente democracia dos EUA Inobstante movido por genuína curiosidade intelectual Tocqueville faz muito mais Partindo da origem históri ca dos angloamericanos ou seja o povo dos Estados Unidos tece amplo estudo sobre a própria democracia Nesse estudo as antigas colônias inglesas na Amé 10 ARON R Op Cit p 208221 256 ELSEVIER Curso de Ciência Política rica do Norte e seus cidadãos são apenas o ponto de partida O que investigou de fato foi a democracia em abstrato independente de sua inserção histórica se presente ou futura independente de sua nacionalidade se estadunidense ou francesa Essa visão fi ca clara já na introdução que faz à obra onde afi rma que Dentre as coisas novas que me atraíram a atenção durante a perma nência nos Estados Unidos nada me surpreendeu com mais força do que a igualdade geral de condição entre o povo Prontamente percebi a infl uência prodigiosa que este fato fundamental exerce no curso inteiro da sociedade dá uma direção à opinião pública e um teor particular às leis leva a novas máximas as autoridades governantes e a hábitos peculiares os governados Logo senti que a infl uência deste fato se es tende muito além do caráter político e das leis do país e que seu poder é tão grande sobre a sociedade civil quanto sobre o governo cria opi niões dá azo a novos sentimentos funda costumes novos e modifi ca seja o que for que não produza Quanto mais avancei no estudo da sociedade americana mais percebi que esta igualdade de condição é o fato fundamental de que todos os outros perecem ser derivados e o ponto central onde todas as minhas observações constantemente termi navam Voltei então meu pensamento para nosso próprio hemisfério e pensei que lá discernia algo análogo ao espetáculo que o Novo Mundo me apresentava Observei que a igualdade de condição embora lá não tenha atingido o limite extremo que parece ter alcançado nos Estados Unidos constantemente dele se aproxima e que a democracia governa dora das comunidades americanas parece estar subindo rapidamente ao poder na Europa Por isso concebi a ideia do livro que agora está diante do leitor11 Em outra passagem cujo foco é o indivíduo assim pronunciase Tocque ville Os homens que vivem nos tempos democráticos em que estamos en trando têm naturalmente o gosto pela independência são por natureza impacientes diante de regras e sentem enfado pela permanência até mesmo da condição que eles próprios preferem Têm apego ao poder mas inclinamse a desprezar e mesmo odiar os que o exercitam e fa cilmente escapam ao seu alcance por sua própria mobilidade e insig nifi cância Estas propensões sempre se manifestarão porque têm ori gem no alicerce da sociedade que nenhuma mudança sofrerá durante muito tempo elas evitarão o estabelecimento de qualquer despotismo 11 TOCQUEVILLE A Democracia na América São Paulo Cia Editora Nacional 1969 p 33 257 Capítulo 10 Alexis de Tocqueville 18051859 o argumento liberal de defesa Lier Pires Ferreira e fornecerão armas novas a cada geração que chegue a qual lutará em prol da liberdade da espécie humana12 Democracia Essa palavra de tão larga utilização no pensamento de Toc queville carece no entanto de autêntica precisão conceitual Não há uma única passagem em Democracia na América onde o autor a defi na claramente embora seja certo que forneça ao leitor inúmeras passagens das quais resta evidente que democracia referese à igualização crescente das condições políticas e sociais en tre os homens É o que ocorre por exemplo no Capítulo III da Primeira Parte publicada em 1835 Nesse Capítulo Tocqueville afi rma que A característica notável da condição social dos angloamericanos é a sua essencial democracia A condição social dos americanos é emi nentemente democrática era esse o seu caráter na fundação das colô nias e está mais fortemente acentuado hoje em dia Na América o elemento aristocrático sempre foi fraco desde a nascença e se nos nossos dias não está realmente destruído está seja como for tão inca pacitado que mal lhe podemos atribuir qualquer grau de infl uência no curso dos negócios O princípio democrático pelo contrário ganhou tanta força com o tempo os eventos e a legislação que se tornou não só predominante mas todopoderoso Não há autoridade familiar ou corporativa e é raro ver até a infl uência de caráter individual gozar de qualquer durabilidade A América exibe portanto em seu estado social um fenômeno extraordinário Lá se vêm os homens com a maior igualdade em ponto de fortuna e intelecto ou por outras palavras mais iguais em sua força do que em qualquer outro país do mundo ou em qualquer idade da qual a história tenha preservado a lembrança13 Conquanto para Tocqueville a democracia tenha tido nos EUA as condi ções mais férteis para o seu desenvolvimento a forma pela qual a igualização das condições políticas e sociais se dá na América lhe é exclusiva e peculiar de modo que cada povo ou nação deverá ter em função das características que lhe são singulares seu próprio processo democrático Isso porque para Tocqueville a democracia é um fenômeno universal e irreversível para o qual esse legítimo herdeiro de Montesquieu atribui caráter Providencial divino Como consignado pelo próprio autor O desenvolvimento gradual do princípio da igualdade é portanto um fato da Providência Tem todas as características principais de tal fato é universal durável escapa constantemente à interferência humana e 12 Ibidem p 360361 13 Ibidem p 6066 258 ELSEVIER Curso de Ciência Política todos os eventos bem como todos os homens contribuem para o seu progresso Seria então sensato imaginar que um movimento social cujas causas são tão remotas poderia ser detido pelos esforços de uma geração Pode acreditarse que a democracia que derrubou o sistema feudal e baniu os reis retrocederá diante dos negociantes e capitalistas Parará agora que se tornou tão forte e seus adversários tão fracos Para onde então estamos tendendo Ninguém pode dizer porque nos falham já os termos de comparação As condições do homem são mais iguais presentemente nos países cristãos do que o foram em qualquer época passada ou em qualquer parte do mundo por isso a grande za do que já foi feito não nos deixa prever o que falta conseguir Na sua totalidade o livro que aqui se oferece ao público foi escrito sob a impressão de uma espécie de terror religioso produzido no espírito do autor pela visão dessa revolução irresistível que avançou durante séculos a despeito de todos os obstáculos e que continua avançando no meio das ruínas que causou Não é necessário que o próprio Deus fale para podermos descobrir os sinais indiscutíveis de sua vontade É sufi ciente constatar o curso habitual da natureza e a tendência cons tante dos eventos Se o homem de nossos dias se convencesse por observação atenta e refl exão sincera de que o desenvolvimento gradu al e progressivo da igualdade social é ao mesmo tempo o passado e o futuro de sua história esta descoberta por si só conferiria o caráter de decreto divino à mudança Tentar deter a democracia seria nesse caso resistir à vontade de Deus 14 Como decorrência desse caráter universal e divino Tocqueville admite que a França e todo o mundo cristão está vivendo seu próprio processo de mocrático motivo pelo qual é mais do que necessário conhecêlo Inevitável o movimento democrático não pode ser obstacularizado e nem tampouco reverti do No entanto os povos cristãos metáfora das modernas sociedades ocidentais europeias ainda possuem as rédeas de seu próprio destino por isso o primeiro dever que se impõe aos que dirigem nossos negócios é edu car a democracia renovar se possível sua convicção religiosa purifi car sua moral regular seus movimentos substituir gradativamente sua inexperiência pelo conhecimento dos negócios e seus instintos ce gos pela familiaridade com seus verdadeiros interesses e fazêla confor marse com as ocorrências e com o homem da época É necessária uma nova ciência política para um novo mundo15 14 Ibidem p 3637 15 Ibidem p 37 259 Capítulo 10 Alexis de Tocqueville 18051859 o argumento liberal de defesa Lier Pires Ferreira A apreensão do fenômeno democrático possui portanto um nítido cará ter instrumental Tocqueville tem claro que tal como os americanos mais cedo ou mais tarde a França chegará a uma condição democrática equânime Deve portanto prepararse para usufruir dessa condição da melhor forma possível Ratifi cando essa assertiva afi rma que Não foi portanto para satisfazer minha mera curiosidade que exami nei e estudei a América meu desejo foi encontrar ali instrução com a qual possamos lucrar Reconheci essa revolução como um fato já consumado ou em vésperas de consumação e selecionei a nação entre as que já a sofreram na qual seu desenvolvimento tem sido mais pacífi co e mais completo a fi m de discernir suas consequências natu rais e apurar se possível quais os meios de a tornar mais proveitosa à humanidade16 Embora a democracia seja um fenômeno universal e de certa forma um devenir necessário para todos os povos Tocqueville não lhe atribui um caráter va lorativo ético ou moral Magistrado recusase a julgar Como ele mesmo afi rma quem quer que imagine que pretendi escrever um panegírico estará estranhamente enganado e ao ler este livro perceberá que não foi esse o meu desígnio tampouco é meu objetivo advogar qualquer forma de governo em particular pois sou de opinião que a excelência absolu ta raras vezes se encontra em qualquer sistema de leis Nem mesmo pretendi julgar se a revolução social que acredito seja irreversível é vantajosa ou prejudicial à humanidade17 A igualização crescente das condições sociais e políticas entre os homens não tem portanto um conteúdo ou uma forma preestabelecida devendo ocor rer de maneira diferenciada em função das diversas características sociais bem como das ações políticas envidadas pelo povo Serão essas características e essas ações políticas cidadãs que irão determinar se a democracia será liberal como nos Estados Unidos ou tirânica como vista na segunda fase da Revolução Fran cesa18 Tendo por base sua história pessoal e a própria história da França a par tir de 1789 Tocqueville está verdadeiramente preocupado com o fato de que a democracia possa descambar para a tirania Essa preocupação essencial é o eixo de Democracia onde de modo nítido se coloca a seguinte questão como evitar 16 Ibidem p 4445 17 Idem 18 Para maiores explicações ver Sobuol A op cit 260 ELSEVIER Curso de Ciência Política que o avanço irreversível da igualdade entre os homens não sacrifi que a liberda de Entretanto antes de se ver como Tocqueville busca resolver a tensão entre liberdade e igualdade importa demarcar os grandes riscos que ao seu juízo o processo democrático encerra Tal como se depreende de Democracia na América esses riscos são a tirania da maioria e o despotismo de Estado As refl exões do autor sobre a tirania da maioria concentramse no Capí tulo XV da Primeira Parte Nele Tocqueville afi rma que a própria essência do governo democrático consiste na soberania absoluta da maioria pois nada há nos Estados democráticos que seja capaz de lhe resistir Tocqueville 1969 p 130 Sobre esse ponto vale uma ressalva importante É comum pensar que ao oporse à tirania das massas Tocqueville recai na ode ao individualismo Nada mais falso Tocqueville critica o individualismo caracterizandoo como um comportamento que dispõe cada membro da comunidade a se separar da mas sa de seus semelhantes e a isolarse com sua família e amigos e assim depois de ter formado seu pequeno círculo fechado gostosamente abandona a sociedade geral deixando que ela siga sua própria sorte Tocqueville 1969 p 223 Reco nhecendo sua raiz democrática afi rma que à medida que as condições sociais se tornam mais iguais aumenta o número de pessoas que não devem nada a homem algum e nada esperam de ninguém habituamse a pensar que estão sozinhas que de pendem de si próprias e imaginam que têm o destino em suas própria mãos Assim a democracia projetaas de volta para sempre a si próprias e fi nalmente ameaça confi nálas à solidão de seu próprio ser Tocqueville 1969 p 224225 Ao afastar o homem dos seus e monopolizálo em função de seus próprios interesses o individualismo fi lho dileto da democracia e da liberdade é um dos vãos pelos quais o indivíduo perde o interesse pela coisa pública e franqueia espaços para a atuação tirânica das massas Democrático em sua origem o indi vidualismo pode converterse num atalho para a tirania Não menos contundentes são as preocupações de Tocqueville quanto ao despotismo de Estado conquanto seja certo que esse termo não conste de sua obra19 No Capítulo VI do Livro IV da Segunda Parte aquela publicada em 1840 Tocqueville pondera sobre o tema nos seguintes termos 19 A razão mais plausível para que Tocqueville não tenha cunhado uma expressão própria para tamanho risco do processo democrático é de alguma forma fornecida pelo próprio autor na seguinte passagem Penso portanto que a espécie de opressão que ameaça as nações democráticas é diferente de tudo que jamais tenha existido no mundo nossos contemporâneos não encontrarão em suas memórias nenhum protótipo a que possam comparála Procuro em vão uma expressão capaz de traduzir com exatidão a 261 Capítulo 10 Alexis de Tocqueville 18051859 o argumento liberal de defesa Lier Pires Ferreira Acredito que seja mais fácil estabelecer um governo absoluto e despótico no seio de um povo cujas condições da sociedade sejam iguais do que em quaisquer outros e penso que se tal governo viesse alguma vez a ser estabelecido entre esse povo ele não só oprimiria os homens como even tualmente destituiria cada um de várias das mais altas qualidades do ser humano O despotismo portanto pareceme ser especialmente para se temer nos tempos democráticos Tocqueville 1969 p 352 Pontuados tais riscos devese retornar ao tema proposto como Tocque ville busca resolver a tensão entre igualdade e liberdade Sua resposta tem como início uma ponderação Diz o autor sustento ser máxima ímpia e detestável a que politicamente falando dê ao povo o direito de fazer seja o que for e no entanto asseverei que toda autoridade tem origem na vontade da maioria Estarei então en trando em contradição comigo mesmo Tocqueville 1969 p 133 Não é o que o se crê Para Tocqueville pelo princípio majoritário a maioria ganha o direito de governar a sociedade mas não de tiranizála À moda dos juristas que antecedem à vaga positivista que atingirá seu auge com o pensa mento de Hans Kelsen Tocqueville recusase a fundamentar o direito justo nas expressões ordinárias da legislação Para ele Uma lei geral que tem o nome de justiça foi feita e sancionada não apenas pela maioria deste ou daquele povo mas pela maioria da espé cie humana Os direitos de todos os povos estão portanto confi nados dentro dos limites do que é justo A nação pode ser considerada o júri dotado de poderes para representar a sociedade em geral e para apli car a justiça que é á sua lei Seria concebível pudesse tal júri que repre senta a sociedade ter mais poder que a própria sociedade Quando me recuso a obedecer a uma lei injusta não contesto o direito da maioria comandar mas simplesmente apelo da soberania do povo à soberania da espécie humana Sou portanto de opinião que o poder social superior a todos os outros deve ser sempre colocado em algum lugar mas julgo que a liberdade está em perigo quando esse poder não en contra obstáculos que possam retardar seu curso e lhe dar tempo para ideia em sua integridade que formei da mesma as velhas palavras despotismo e tirania não são apropria das a coisa é em si mesma nova e já que não posso lhe dar um nome vou tentar defi nila Procurarei traçar as novas feições sob as quais o despotismo pode aparecer no mundo A primeira coisa que impressiona a observação é a multidão inumerável de homens todos iguais e semelhantes esforçandose incessante mente por conquistar prazeres desprezíveis e insignifi cantes Acima dessa corrida de homens erguese um imenso poder tutelar que sozinho toma para si o encargo de garantir a satisfação de seus desejos e de prestar vigilância seu destino Esse poder é absoluto minucioso regular providente e brando Tocqueville 1969 p 348349 A esse poder se ousa denominar despotismo de Estado 262 ELSEVIER Curso de Ciência Política moderar sua própria veemência O poder ilimitado é em si próprio uma coisa má e perigosa Não existe na terra poder algum tão digno de honra em si próprio ou revestido de direitos tão sagrados que eu lhe pudesse reconhecer autoridade não controlada e todapoderosa20 É evidente que para Tocqueville o poder soberano da maioria que com total justiça governa a vida social e comanda o Estado não possui legitimidade para esmagar a liberdade quer dos indivíduos quer dos grupos minoritários ainda que o faça pelos canais convencionais do Direito e dos poderes públicos Por isso ao refl etir sobre como evitar que nos desníveis da igualdade se alije a liberdade Tocqueville vê claramente a solução a ação política e a força das instituições Para Tocqueville os Estados Unidos são o país que mais proveito retirou da ação política dos cidadãos ação essa que encontra nas associações políticas seu canal privilegiado conquanto não exclusivo de atuação Para o autor o ci dadão dos Estados Unidos aprende desde a infância a confi ar em seus próprios esforços a fi m de resistir aos males e difi culdades da vida olha para a autoridade social com um olhar de desconfi ança e ansiedade e só reclama a sua assistência quando não conseguir passar sem ela21 E continua relatando que se ocorrer um embaraço numa via pública e a circulação de veículos for sustada os vizinhos formamse imediatamente num corpo deliberativo e essa assembleia extempo rânea dá origem a um poder executivo que remedeia o inconveniente antes de alguém ter pensado em recorrer a uma autoridade preexistente superior à das pessoas imediatamente interessadas22 A passagem abaixo retrata com fi dedig nidade a visão de Tocqueville sobre a intensa ação política do povo americano Não é impossível conceberse a surpreendente liberdade de que os americanos gozam como também podese fazer uma ideia de sua ex trema igualdade mas a atividade política que permeia os Estados Uni dos precisa ser vista para ser compreendida Mal se põe o pé no solo americano já se fi ca abismado por uma espécie de tumulto ouvese por todos os lados um clamor confuso e mil vozes exigem simultaneamen te a satisfação de suas necessidades sociais Tudo está em movimento à nossa volta aqui a quarta parte da população de uma cidade está reunida para decidir a construção de uma igreja ali está em curso a eleição de um representante um pouco adiante os delegados de um distrito estão pregando cartazes consultando a população sobre certos 20 Ibidem p 133134 21 Ibidem p 112 22 Idem 263 Capítulo 10 Alexis de Tocqueville 18051859 o argumento liberal de defesa Lier Pires Ferreira melhoramentos locais noutro lugar os trabalhadores de uma aldeia abandonam seus arados para deliberar sobre o projeto de uma estrada ou de uma escola pública Fazemse reuniões com o propósito exclusi vo de se declarar a desaprovação pela conduta do governo enquanto noutras assembleias cidadãos saúdam as autoridades do dia como os pais de seu país Formamse sociedades que consideram a embriaguez a causa principal dos males do Estado e solenemente se comprometem a dar exemplos de temperança A grande agitação política dos corpos legislativos americanos a única que atrai atenção de estrangeiros é um mero episódio ou uma espécie de continuação do movimento univer sal que tem origem nas classes mais baixas do povo e se estende suces sivamente a todas as categorias da sociedade É impossível despender mais esforço na procura da felicidade Os cuidados da política ocupam um lugar preeminente nas ocupações dos cidadãos dos Estados Uni dos e quase que o único prazer que os americanos conhecem é o de tomar parte no governo e discutir suas medidas23 Essa ação política verdadeiro bastião de resistência contra a tirania e o despo tismo se alimenta dentre outros elementos de elevado espírito público e da hones ta veneração pelo ordenamento jurídico Sobre o espírito público tradução completa daquilo que Montesquieu deno minou virtude cívica Tocqueville afi rma que ele resulta do conhecimento é alimentado pelas leis cresce pelo exercício dos direitos civis e no fi nal confundese com os interesses pessoais dos cidadãos O homem compreende a infl uência que o bemestar de seu país tem no seu próprio tem consciência de que as leis lhe permitem contribuir para essa prosperidade e trabalha para promovêla primeiro porque ela o benefi cia e depois porque ela é em parte trabalho seu24 Esse sentimento que atinge o homem na sua dimensão individual tam bém o caracteriza enquanto parte de uma coletividade qualquer que seja sua inserção social Assim Tocqueville afi rma que não só os ricos e privilegiados contribuem para a elevação desse espírito público mas as próprias camadas inferiores da população dos Estados Unidos compreendem a infl uência exercida pela prosperidade geral em seu próprio progresso social Além disso estão habituadas a considerar essa prosperidade como fruto de seus próprios esforços O cidadão olha para a fortuna do bem público como sua própria fortuna e trabalha para o bem do Esta 23 Ibidem p 126127 24 Ibidem p 121 264 ELSEVIER Curso de Ciência Política do não meramente por um sentimento de orgulho ou dever mas por aquilo a que me atrevo chamar cupidez25 Quanto ao ordenamento jurídico há uma frase que parece resumir toda admiração e importância acerca do papel do direito na sociedade americana depois da ideia geral de virtude não conheço princípio mais elevado do que o do direito ou antes estas duas ideias unidas numa A ideia do direito é simples mente a da virtude introduzida no mundo político26 Para Tocqueville foi a ideia de direito que permitiu aos homens defi nirem a anarquia e a tirania e que os ensinou a ser independentes sem arrogância e a obedecer sem servilismo27 Durante os nove meses em que permaneceu nos Estados Unidos Tocque ville pôde identifi car alguns dos principais elementos que fazem da América uma terra onde a condição democrática não elimina a liberdade Conquanto seja ques tionável que sua observação lhe tenha facultado apreender em detalhes todos os múltiplos elementos sóciohistóricos geográfi cos políticos e econômicos que ar ticula e essa é uma crítica frequente que sua obra recebe de modo sintético se podem destacar os seguintes elementos como aqueles que formam a situação acidental e particular em que se encontra a sociedade americana uma terra vir gem sem países que lhe ameacem a integridade territorial e com fartos recursos naturais hábitos e costumes uniformes onde o papel da religião puritana anteci pa talvez de modo débil a relação estudada por Weber entre a ética protestante e o espírito do capitalismo e fi nalmente a força das instituições sociais da qual participa a noção de virtude cívica Uma parte expressiva do Livro I de Democracia na América investiga precisamente esse arquétipo sóciohistórico e institucional da sociedade americana Neste construto se destacam temas como a condição de mocrática do povo americano e a feição popular da soberania nacional o governo local e os efeitos da descentralização política o poder judicial e suas infl uências na sociedade as associações políticas civis ou públicas a liberdade de imprensa dentre outros Mas nenhum tema parece ter tanta relevância quanto a força das normas constitucionais que edifi cam todo o sistema jurídico dos Estados Unidos Com muita propriedade Tocqueville consigna que Ao examinar a divisão de poderes estabelecida pela Constituição Fe deral observando por um lado o quinhão de soberania reservado aos diversos Estados e por outro o quinhão de poder dado à União faz se evidente que os legisladores federais tinham noções muito claras e 25 Ibidem p 122 26 Ibidem p 123 27 Idem 265 Capítulo 10 Alexis de Tocqueville 18051859 o argumento liberal de defesa Lier Pires Ferreira exatas a respeito da centralização do governo O sistema federal foi criado com a intenção de combinar as diferentes vantagens que resul tam da magnitude e da pequenez das nações e um relance nos Estados Unidos revela as vantagens que a nação derivou de sua adoção Objetivos e ideias tangíveis circulam por toda a União tão livremente como num pais habitado por um só povo Nada detém o espírito de em preendimento O governo solicita a ajuda de todos que tenham talento ou conhecimento para o servir Dentro das fronteiras da União como dentro do coração de um grande império prevalece uma paz profunda no exterior situase entre as nações mais poderosas de terra duas mil milhas de costas estão abertas ao comércio do mundo e como tem a chave do Novo Mundo sua bandeira é respeitada nos mares mais re motos A União é feliz como um povo livre e pequeno e gloriosa e forte como uma grande nação28 A breve análise que se empreende sobre Democracia na América não pode ser concluída sem a menção a dois aspectos essenciais sua força preditiva e o reconhecimento de que Tocqueville tal como consignado por Aron não é ne nhum admirador ingênuo da sociedade americana Aron 1990 p 221 Sobre estes dois temas incidirão os esforços a seguir Democracia na América e a nova ciência política proposta por Tocqueville costumam ser frequentemente incensadas pelos seus êxitos preditivos Esta ad miração é absolutamente legítima todavia não se pode esquecer que seu poder preditivo tem caráter estritamente metodológico não premonitório Como se disse o método em Tocqueville conjuga duas práticas já enunciadas por Mon tesquieu o comparativismo e a construção tipológica Tendo como eixo o binô mio liberdade igualdade Tocqueville contrasta práticas usos e instituições sociais e políticas presentes privilegiadamente nos EUA e na França Conjugan do elementos históricos geográfi cos políticos econômicos e sociais tenta des vendar as contradições do presente e por vezes realizar prognósticos para o futuro Dois dos mais famosos prognósticos presentes em Democracia na América referemse ao avanço dos EUA sobre o território mexicano e ao papel que seria desempenhado pelos EUA e pela Rússia nas décadas vindouras A respeito do avanço dos anglosaxões sobre as antigas possessões espa nholas Tocqueville afi rma que O território ocupado ou possuído agora pelos Estados Unidos da Amé rica forma aproximadamente a vigésima parte da terra habitável Mas por muito extensos que sejam estes limites não se deve supor que a 28 Ibidem p 95101 266 ELSEVIER Curso de Ciência Política raça angloamericana fi cará sempre dentro dos limites dos mesmos na verdade já foi muito além deles As terras do Novo Mundo per tencem ao primeiro ocupante são a recompensa natural do pioneiro mais veloz Até os países já povoados terão certas difi culdades para se garantirem contra estas invasões Já aludi ao que está tendo lugar na província do Texas Os habitantes dos Estados Unidos estão perpe tuamente emigrando para o Texas onde compram terras e embora se conformem com as leis do país estão gradualmente fundando o impé rio de sua própria língua e de suas próprias maneiras A província do Texas faz ainda parte dos domínios mexicanos mas logo não conterá mexicanos Tocqueville 1969 p 160161 Já sobre o papel que os EUA e Rússia irão desempenhar no decurso da história não há dúvidas de que a força analítica de Tocqueville encontrou nos fatos uma base inquestionável de legitimação Diz o autor Em nossa época há duas grandes nações no mundo que começaram em pontos diferentes mas parecem tender para o mesmo fi m Faço alusão aos russos e americanos Ambas cresceram despercebidas e enquan to a atenção da espécie humana se dirigia para outras partes elas su bitamente se colocavam na primeira fi la entre as nações e o mundo descobriu sua existência e sua grandeza quase ao mesmo tempo To das as outras nações parecem ter quase atingido seus limites naturais e apenas têm de manter seu poder mas estas estão ainda no ato de crescimento Todas as outras pararam ou continuam avançando com extrema difi culdade só estas prosseguem com facilidade e celeridade ao longo de um caminho ao qual não se pode perceber nenhum limite Os americanos lutam contra os obstáculos que a natureza lhes opõe os adversários e dos russos são homens Os primeiros combatem a imen sidão e a vida selvagem os últimos a civilização com todas as suas armas As conquistas dos americanos são portanto feitas com o arado as dos russos com a espada O angloamericano confi a no interesse pessoal para conseguir seus fi ns e dá livre expansão à força e ao senso comum espontâneos do povo os russos centralizam toda a autoridade da sociedade num só braço O instrumento principal dos primeiros é a liberdade dos últimos a servidão Seus pontos de partida são diferen tes e seus cursos não são os mesmos no entanto cada um deles parece marcado pela vontade dos Céus para controlar os destinos da metade do globo Tocqueville 1969 p 164165 No que se refere à admiração de Tocqueville pela democracia e em espe cial pela democracia americana há ponderações importantes que não podem 267 Capítulo 10 Alexis de Tocqueville 18051859 o argumento liberal de defesa Lier Pires Ferreira ser negligenciadas Tocqueville considera que a democracia é um fato histórico universal e irreversível Dado posto seu primeiro propósito é investigála a fi m de conhecêla tão profundamente quanto possível Esse propósito essencial aos homens dedicados à vida intelectual encontrase expresso com clareza solar já na introdução que faz à obra Diz o autor confesso que na América vi mais do que a América ali busquei a imagem da própria democracia com suas inclina ções seu caráter seus preconceitos e suas paixões a fi m de saber o que deve mos recear ou esperar de seu progresso Tocqueville 1969 p 45 Ao estudar a América Tocqueville não busca a infância da Europa mas antes o seu futuro 104 Da colonização na Argélia Antes de adentrar especifi camente na análise do texto importa fi rmar que Da colonização na Argélia não é um livro mas antes uma coletânea que reúne três escritos produzidos entre 1837 e 184729 fase intermediária às grandes obras do autor Democracia na América já analisada e O Antigo Regime e a Revolução que será vista adiante Nessa coletânea se encontra aquele que talvez seja o ele mento mais controvertido de seu pensamento a defesa da colonização francesa na Argélia Mas a controvérsia não é o único e talvez não seja mesmo o elemento mais importante da obra ora em destaque Uma visão ainda que breve sobre os textos argelianos de Tocqueville parece importante na medida em que permite a confrontação entre os elementos gerais da sua teoria sobre a inevitabilidade da igualização das condições sociais em face da liberdade e a análise de um caso concreto que lhe sirva como teste Parece inequívoco que a despeito de sua origem aristocrática Tocqueville se identifi ca com os princípios fundamentais da Revolução Francesa liberdade igualdade e fraternidade Em O Antigo Regime e a Revolução ao reconhecer que a igualização das condições sociais e políticas entre os homens é um fenômeno irreversível de nítido caráter Providencial e admitir que a decomposição da velha ordem nobiliar não poderia resultar em outra realidade que não a Revo lução Tocqueville irá perfi larse ao lado daqueles que com maior ou menor en tusiasmo nutrem sincera admiração pelo grande feito dos franceses Inobstante há de se reconhecer que a conquista colonial na Argélia ou alhures é absolu tamente contrária a esses princípios sendo pois ao mesmo tempo antítese da Revolução e da liberdade Como então justifi car as possessões francesas no norte da África Que princípios ou valores podem legitimar a dominação colonial O amor pela liberdade propugnado por Tocqueville tombaria tão facilmente dian 29 As três obras citadas são Lettre sur lAlgérie 1837 Travail sur lAlgérie 1841 e Rapport sur lAlgérie 1847 268 ELSEVIER Curso de Ciência Política te das vantagens advindas da colonização Não seria portanto autêntica a ido latria do autor pela liberdade Antes de responder a essas interrogações há que se assinalar que Tocque ville rejeita frontalmente a escravidão sobre a qual a dominação colonial se ba seia Esta rejeição pode ser verifi cada em diferentes momentos dentre os quais a passagem em que afi rma que em todo Oriente esta odiosa instituição perdeu uma parte de seus rigores Mais por ter se tornado mais doce nem assim tornou se menos contrária a todos os direitos naturais da humanidade30 Embora argu mente em consonância com o período histórico no qual vive que a abolição da escravatura pressuponha a necessidade de indenizar os antigos proprietários de escravos nas colônias africanas é certo que Tocqueville rejeita a escravidão e a humilhante condição que impõe aos escravos Mas é certo que essa refl exão conquanto louvável para a biografi a do autor ainda não explica como Tocqueville justifi ca a colonização francesa na Argélia O primeiro auxílio nessa direção diz respeito à sua convicção de que a dominação colonial cumpre uma função civilizadora função esta que hoje é negativamente avaliada como etnocêntrica e discriminatória na medida em que nega ao outro a humanidade inscrita em você mesmo No entanto Tocqueville crê ou ao menos postula que o domínio colonial na Argélia pode concorrer para o aprimoramento político e sociocultural dos povos autóctones contribuindo por vias transversas para a afi rmação próxima futura de melhores condições de existência É um primeiro argumento Mas as razões mais substanciais que levam Tocqueville a apoiar o domínio colonial na Argélia obedecem a uma lógica de Estado sendo certo que o período no qual ele produz A Colonização coincide com aquele em que exerce suas mais elevadas funções públicas salvo o cargo ministro de Estado Talvez por isso seu apoio à colonização da Argélia possua caráter essencialmente político e social Tocqueville deixa claro que o primeiro motivo a justifi car seu apoio ao domínio da Argélia é a grandeza da França do seu povo e quiçá de sua Revolução Diz Tocqueville não creio que a França pudesse sequer sonhar em libertar a Argélia O abandono da região seria visto aos olhos do mundo como sinal de sua decadência31 E continua argumentan do que se a França recuar de uma empreitada ou tal empreitada não for levada à cabo em função das difi culdades naturais da região ou em face da oposição das 30 TOCQUEVILLE A De la Colonie em Algérie Bruxelas Editons Complexe 1988 p 179 Livre Tradução 31 TOCQUEVILLE A De la Colonie em Algérie Bruxelas Editons Complexe 1988 p 57 Livre Tradução 269 Capítulo 10 Alexis de Tocqueville 18051859 o argumento liberal de defesa Lier Pires Ferreira pequenas tribos bárbaras que a habitam ela parecerá aos olhos do mundo do brarse à própria impotência e sucumbir ao defeito de seu coração Todos crêem que um país que se retira passivamente de seus próprios antigos domínios pro clama que os bons tempos de sua história são passados E abrese visivelmente o período de seu declínio32 E adiante conclui ponderando que a libertação da região além de contrariar os mais altos interesses do Estado e da sociedade francesa seria absolutamente inútil para a própria Argélia Isso é incontestável Se essas possessões territoriais fugirem de nossas mãos elas passarão a ser de algum outro povo na Europa33 Central em sua argumentação essa lógica de Estado não é todavia ex clusiva A ela se juntam outros elementos dos quais o mais importante é o eco nômico Tocqueville faz esse destaque em duas partes Na primeira releva a centralidade do porto de MerselKébir para o comércio marítimo e na segunda a posição geoestratégica da própria Argélia tanto em nível comercial quanto em nível militar A conexão entre os planos políticosocial e econômico uma cons tante na perspectiva metodológica do autor permite identifi car um liame entre o texto em tela e o conjunto dos seus escritos No entanto mesmo com essas considerações é fato que a defesa da colonização da Argélia destoa do conjunto da obra de Tocqueville É bem verdade que premido por seu amor pela liberdade Tocqueville rejeita frontalmente a escravidão sobre a qual a dominação colonial se baseia Essa rejeição pode ser verifi cada em diferentes momentos de Da colonização na Argélia dentre os quais a passagem em que afi rma que em todo Oriente esta odiosa instituição perdeu uma parte de seus rigores Mas por ter se tornado mais doce nem assim tornouse menos contrária a todos os direitos naturais da humanidade Tocqueville 1988 p 179 livre tradução Mas mesmo sob tais escusas é fato que o eixo de Da colonização na Argélia afastase da postura social e política que Tocqueville protagonizou em Democracia na América e voltará a fazêlo em O Antigo Regime e a Revolução Igualmente alguns argumentos como a necessidade de indenizar os antigos proprietários no caso da abolição da es cravatura nas colônias africanas podem ser plenamente coerentes com a época do autor mas soam dissonantes com a herança que seu pensamento deixa para a posteridade De todo modo além da afi rmação metodológica e da percepção de que elementos como território e afi rmação econômica e militar são importan tes para a grandeza de uma nação itens claramente percebidos por Tocqueville em Democracia na América mormente quando trata da expansão americana para 32 Ibidem p 6061 Livre Tradução 33 Ibidem p 6061 Livre Tradução 270 ELSEVIER Curso de Ciência Política o Oeste há pelo menos uma outra grande identidade que se não importante para a compreensão do seu pensamento é pelo menos curiosa para aqueles que se aproximam pela primeira vez de sua obra seu alto poder preditivo Tal como procede em Democracia na América Tocqueville produz aqui pelo menos uma grande previsão cuja realização histórica reproduz fi elmente suas palavras A comissão está convencida de que de nossa maneira de tratar os in dígenas africanos depende o futuro de nossa dominação na África Ela crê que um bom governo pode concorrer para a pacifi cação do país e diminuir notavelmente nosso contingente militar Que em caso contrário a colonização há de se tornar uma questão de vida ou morte entre duas raças A Argélia deveria cedo ou tarde creiam tornarse um campo fechado uma arena murada ou os dois povos deverão com bater sem tréguas e onde um deles deverá morrer Deus afaste de nós senhores um tal destino Tocqueville 1988 p 178179 livre tradução Podese afi rmar em síntese que Da colonização na Argélia é uma obra onde o homem de Estado suplanta o intelectual Conquanto haja elementos de coerência com seus grandes escritos em especial Democracia na América a única já conclu sa até então parece claro que a defesa da liberdade e dos direitos individuais é incompatível com a razão de Estado que motiva sua defesa do domínio colonial sobre a Argélia que em muitos casos parece ser tomada como um ente abstrato e não como uma região concreta historicamente contextualizada e habitada por povos culturalmente relevantes para a própria trajetória civilizacional do Ociden te Por outro lado enquanto campo de testes para as linhas gerais de seu pensa mento Da colonização na Argélia talvez seja um empreendimento de êxito relativo quando não questionável na medida em que a relação democracia liberdade é negligenciada em favor de uma refl exão contextual onde os interesse do Estado francês são o eixo fundamental Assim Da colonização na Argélia é antes de tudo uma obra com propósitos políticos não uma obra sobre política Mas há um aspecto a destacar que talvez permita uma melhor compre ensão da obra em tela Em sua essência tal como Montesquieu Tocqueville é um pensador liberal E o liberalismo visa a garantir o livre desenvolvimento das capacidades individuais A visão colonialista de Tocqueville parece pois um prolongamento de seu liberalismo na medida em que busca legitimar a ação colonizadora da França Nesse sentido a única crítica que o autor receia em face da defesa que procede é a comprovação de que a colonização seria contrária aos interesses da França Podese ver portanto que se não é plenamente coerente com seu pensamento em Da colonização na Argélia Tocqueville é ao menos coe rente consigo mesmo 271 Capítulo 10 Alexis de Tocqueville 18051859 o argumento liberal de defesa Lier Pires Ferreira 105 O Antigo Regime e a Revolução A vaga revolucionária que varre a Europa entre os anos de 1830 e 1850 tem sua máxima expressão na França em 1848 por ocasião das Jornadas de Ju nho34 Dentre as muitas vítimas desse movimento radical encontrase Tocque ville demitido do ministério dos Assuntos Estrangeiros em outubro de 1849 apenas nove meses após assumir sua mais relevante e breve função pública Sua vida de homem de Estado chegada ao fi m não lhe custara mais do que duas décadas Mas o revés do homem público serve uma vez mais ao intelectual Liberto das atribulações da administração e da política Tocqueville submerge em um mar de livros e documentos Ao voltar à tona traz consigo o segundo grande trabalho de sua vida aquele que ao lado de Democracia na América é responsável por seu lugar cativo no pantheon dos grandes pensadores políticos O Antigo Regime e a Revolução Essa obra meticulosamente concebida ao longo de cinco anos surge para o mundo em 1856 exatos 20 anos após a publicação de Estado social e político da França antes e depois de 1789 onde pela primeira vez de modo sistemático Tocqueville refl ete sobre a Revolução Francesa Voltar ao tema da Grande Revolução em meados do século XIX pode pa recer que O Antigo Regime e a Revolução é uma obra de caráter histórico Pobre conclusão O próprio Tocqueville no prefácio à primeira edição deixa isso bem 34 As Jornadas de Junho representaram o ápice da vaga revolucionária que tendo varrido a Europa teve na França seu momento maior Após a vitória do grupo político ao qual Tocqueville pertencia ao qual em O 18 Brumário Marx denomina partido da ordem ou seja orleanistas e legitimistas apoiados por di versos segmentos de burguesia nacional e das eleições para a Assembleia Constituinte nascia ofi cialmente a II República francesa Essa República no entanto que nas palavras de Maurice Agulhon mostravase crescentemente hostil ao socialismo e mais tarde se tornaria abertamente conservadora e até reacionária 1848 o aprendizado da República Rio de janeiro Paz e Terra 1991 p 17 não fará cessar os vícios que originaram os levantes de fevereiro A partir de 15 de maio data da invasão da Constituinte liderada por Blanqui a opinião pública começa a trilhar outros caminhos alterando profundamente no início de junho o caráter conciliador que a caracterizara desde fevereiro A situação tornouse insustentável quando a Comissão Executiva que exercia o governo promulgou um decreto extinguindo as ofi cinas nacionais Já no dia seguinte teve início a grande agitação operária que culminou na madrugada do dia 23 numa grande concentração na praça da Bastilha Começara a revolta operária que entrou para a história com o nome de Jornadas de Junho Em seus três dias o derramamento de sangue foi intenso O triunfo do governo burguês capitaneado por Luís Filipe acarretou a morte de 800 civis nos combates de rua Para reafi rmar seu poder após a restauração da ordem 11 mil cidadãos foram condenados à morte por fuzilamento e dos 25 mil in surretos detidos 3500 foram desterrados As Jornadas de Junho não foram vistas como uma revolução de caráter socialista como será em 1871 a Comuna de Paris ou mera desobediência à ordem constituída Para a burguesia e para os partidários da ordem entre eles Tocqueville representou os riscos que o governo de mocrático trazia em seu interior Daí a palavra de ordem que ecoando nos salões e no Parlamento diziam Que se calem os pobres O sonho de um Estado democrático e libertário que acolhesse os interesses da classe trabalhadora chegara ao fi m naquele momento 272 ELSEVIER Curso de Ciência Política claro ao afi rmar que o livro que publico agora não é uma história da Revolu ção história que foi feita com demasiado brilho para que eu chegue a sonhar em refazêla tratase de um estudo sobre a revolução Tocqueville 1989 p 42 Qual seria pois o caráter desse estudo Seria um trabalho de cunho jurídico ou uma obra essencialmente fi losófi ca Não Tratase antes de tudo de um estudo sociológico de caráter e método análogos aos que foram desenvolvidos em De mocracia na América Tal como consignado por Tocqueville a fi nalidade da obra é fazer compreender por que esta grande revo lução que se preparava ao mesmo tempo em quase todo o continente explodiu em nosso país mais cedo que alhures por que saiu como de si própria da sociedade que ia destruir e como a monarquia pôde cair de uma maneira tão completa e tão repentina Tocqueville 1989 p 45 O que O Antigo Regime e a Revolução possui de história e é inequívoco que possui nada tem a ver com as predileções de Tocqueville pelo passado aristo crático e nobiliar da França e muito menos por um eventual apreço pela obra dos grandes historiadores da Revolução Francesa como Michelet35 Thiers36 ou mesmo Guizot37 O que Tocquevile busca em seu estudo sobre a Revolução de 1789 é apreender o sentido da França de seus dias Ocupase pois com o pre sente não com o passado Em nível estrutural O Antigo Regime e a Revolução é dividido em três partes A primeira delas o tomo I delimita o signifi cado histórico da Revolução Esse sig nifi cado se apresenta por inteiro nas palavras de Tocqueville quando afi rma que a Revolução Francesa é uma revolução política que operou à maneira de uma revolução religiosa e tomou alguns de seus aspectos Vejam quais os traços particulares e característicos que completam a semelhança não somente expandese para longe mas também lá penetra através da pre gação e da propaganda Uma revolução política inspirando o proselitis mo Uma revolução política que se prega com o mesmo ardor e a mesma paixão aos estrangeiros quanto em casa Tocqueville 1989 p 59 E continua afi rmando que a Revolução Francesa agiu em relação a este mundo exatamente como as revoluções religiosas operam em relação ao outro Tem considerado o cidadão de uma maneira abstrata fora de qualquer sociedade particular da mesma maneira como as religiões consideram o homem em geral independente do país e da época Não pesquisou tão somente qual era 35 Michelet Jules Historia da Revolução Francesa da queda da Bastilha à festa de Federação São Paulo Cia das Letras Circulo do Livro 1989 36 Th iers Adolphe Histoire de la Revolution francaise httpwwwdominiopublicogovbr 37 Guizot François Historia de la Civilización em Europa Madri Alianza Editorial 1990 273 Capítulo 10 Alexis de Tocqueville 18051859 o argumento liberal de defesa Lier Pires Ferreira o direito particular do cidadão francês mas também quais os deveres e direitos gerais do homem em matéria política Tocqueville 1989 p 60 A apreensão do signifi cado histórico da Revolução todavia não escla rece por que ela ocorre na França antes que em qualquer outra nação do Velho Mundo ou por que só na França apresenta características que em outros lugares só foram observadas em caráter parcial eou com menor intensidade Decifrar esse enigma é a tarefa que Tocqueville se propõe nas duas partes que se seguem Para tal no tomo II investiga as causas ancestrais da Revolução Já no tomo III o derradeiro analisa o que denomina causas recentes ou imediatas da Revolução A segunda parte de O Antigo Regime e a Revolução principia com um racio cínio surpreendente Tocqueville afi rma que a Revolução cujo objetivo real era abolir por toda parte as institui ções da Idade Média não explodiu nos países onde estas instituições mais bem conservadas faziam sentir ao povo com mais força seu rigor e sua opressão mas ao contrário naqueles onde menos se fazia sentir foi que seu jugo pareceu mais insuportável lá onde era na realidade o menos pesado Tocqueville 1989 p 71 Para corroborar tão surpreendente assertiva Tocqueville fornece dados que ainda hoje intrigam aqueles que se iniciam no estudo das condições sociais e políticas da França prérevolucionária Segundo o autor ao passo que nos Esta dos Germânicos a servidão encontravase com plena força e o povo continuava legalmente preso à terra como na Idade Média enquanto nesses Estados a cor veia senhorial representava até três dias semanais do trabalho rural enquanto o camponês tinha seu trabalho diretamente controlado pelo senhor não sendo capaz portanto de alienar ou hipotecar seu campo enquanto na maioria desses Estados nem mesmo o direito sucessório era garantido havia muito tempo que nada semelhante existia na França o camponês ia e vinha onde queria comprava vendia negociava como o queria Os últimos vestígios da servidão só se notavam numa ou duas províncias do Leste que eram províncias conquistadas Na França o cam ponês não tinha tão somente deixado de ser servo tornarase proprie tário rural Tocqueville 1989 p 71 Por isso dirá Tocqueville é precisamente nesse cenário em que a desigual dade das condições políticas e sociais era menor do que na maioria dos países europeus onde o camponês em larga medida proprietário escapara por comple to ao domínio político da nobreza é precisamente aí que os resquícios da velha ordem são mais insuportáveis E o eram na França de modo tanto ou quanto mais intenso quando se recorda que em sua maioria os direitos feudais restantes ti nham natureza essencialmente pecuniária Tal como consignado por Tocqueville 274 ELSEVIER Curso de Ciência Política Quando a nobreza possui não somente privilégios mas também pode res quando governa e administra seus direitos particulares podem ser ao mesmo tempo maiores e menos visíveis Nos tempos feudais consi deravase a nobreza mais ou menos como consideramos hoje o gover no aguentavam os encargos que impunha tendo em vista as garantias que dava Os nobres tinham privilégios constrangedores possuíam direitos onerosos mas garantiam a ordem pública faziam a justiça mandavam executar as leis socorriam o fraco dirigiam os negócios co muns À medida que a nobreza deixa de fazer essas coisas o peso de seus privilégios tornase maior e sua existência acaba incompreensível PeçoIhes imaginarem o camponês francês do século dezoito ou melhor aquele que conhecem pois sempre permanece o mesmo mu dou sua condição mas não seu estado de espírito Vejamno tal como os documentos que citei o descrevem tão apaixonado pela terra que gasta todas as suas economias para comprála e a com pra a qualquer preço Para adquirila precisa primeiro pagar um direito não ao governo mas a outros proprietários da vizinhança que lhe são tão estrangeiros quan to a administração dos negócios públicos e são quase tão impotentes quanto ele Finalmente a possui nela sepulta seu coração ao mesmo tempo que suas sementes Este pedacinho do solo que lhe pertence neste vasto universo encheo de orgulho e de independência Surgem entretanto os mesmos vizinhos que o arrancam ao seu campo obrigan doo a ir trabalhar alhures sem salário Se quiser defender suas semen tes contra a caça fi ca impedido de fazêlo pelos mesmos homens e os mesmos esperamno na travessia do rio para exigir um direito de pe dágio Encontraos novamente no mercado onde vendemlhe o direito de vender seus próprios gêneros alimentícios e quando de volta a casa quer empregar para seu uso a sobra de seu trigo este trigo que cresceu sob os seus olhos e pelas suas mãos só pode fazêlo após ter manda do moêlo no moinho e cozêlo no forno destes mesmos homens Uma parte da renda de sua pequena posse é destinada a dar rendas para eles e estas rendas são imprescindíveis e irresgatáveis Qualquer coisa que faça sempre encontra no seu caminho estes vizinhos in cômodos que perturbam sua alegria difi cultam seu trabalho comem seus produtos e quando termina com eles outros vestidos de preto apresentamse e tiramlhe a maior parte de sua colheita Imaginem a condição as ne cessidades o caráter as paixões deste homem e calculem se o conse guirem o amontoado de ódio e inveja que se juntou em seu coração O feudalismo continuou sendo a maior de todas as nossas instituições civis quando deixou de ser uma instituição política Assim reduzida provocava ainda muito mais ódio e esta verdade permitenos dizer que 275 Capítulo 10 Alexis de Tocqueville 18051859 o argumento liberal de defesa Lier Pires Ferreira ao destruir uma parte das instituições da Idade Média tornarase cem vezes mais odioso o que delas sobrava Tocqueville 1989 p 7576 Mas o enfraquecimento dos laços feudais ou ao menos seu esfacelamento social e político não é o único motivo pelo qual a França restava transforma da e que fi zera com que a Revolução tivesse sido não apenas inevitável mas fundamentalmente ardorosa e avassaladora Para além das transformações na estrutura fundiária Tocqueville põe ênfase na centralização burocrática e ad ministrativa ou seja num conjunto de transformações operadas em nível do Estado Diz o autor que outrora ouvi um orador falar na centralização administrativa esta bela conquista da Revolução que a Europa nos inveja Admito que a centralização é uma bela coisa consinto que a Europa nos inveja mas sustento que não é uma conquista da Revolução É ao contrário uma conquista do antigo regime aliás a única parte da constituição política do antigo regime que sobreviveu à Revolução porque era a única que podia encaixarse no novo estado social criado por esta revolução To cqueville 1989 p 77 Mais adiante Tocqueville sedimenta seu raciocínio Recapitulemos agora o que dissemos nos três capítulos anteriores um corpo único colocado no centro do reino que regulamenta a administra ção no país todo um mesmo ministro dirigindo a quase totalidade dos negócios interiores em cada província um só agente que cuida de toda a rotina nenhum corpo administrativo secundário ou corpos podendo agir sem autorização prévia tribunais de exceção julgando os negócios ao interesse da administração e dando cobertura a todos os seus agen tes O que signifi ca tudo isto a não ser a centralização que conhecemos Suas formas são menos nítidas que hoje suas diligências são menos reguladas sua existência é mais perturbada mas é o mesmo ser Não foi necessário acrescentarlhe ou tirarlhe nada essencial bastou derru bar tudo que a envolvia para que surgisse tal qual a vemos Como foi possível criar estas instituições tão novas na França no meio dos destroços da sociedade feudal Não foi tanto obra de força e de plenos poderes quanto uma obra de paciência habilidade e tempo Quando a Revolução surgiu ainda não tinham destruído quase nada do velho edifício administrativo da França tinham por assim dizer construído outro sobre seus alicerces Nada indica que para realizar este trabalho difícil o governo do antigo regime tenha seguido um plano profunda mente estudado de antemão contentouse em seguir o instinto que leva qualquer governo a querer dirigir sozinho seus negócios e que sempre 276 ELSEVIER Curso de Ciência Política permanece o mesmo qualquer que seja a diversidade de seus agentes Deixara aos antigos poderes aos nobres e aos aristocratas seus nomes antigos e as honrarias que os acompanhavam mas solapou pouco a pouco sua autoridade Não os expulsou mas tiroulhes lentamente suas atribuições Tirava proveito de seus vícios que jamais tentou corrigir pois só estava interessado em substituílos quase todos por um agente único o intendente cujo próprio nome era desconhecido quando nas ceram A centralização administrativa Os primeiros esforços da Revolução tinham destruído esta grande instituição da monarquia foi restaurada em 1800 Não foram como disseram tantas vezes os prin cípios administrativos de 1789 que triunfaram nessa época e depois mas ao contrário os princípios do antigo regime que voltaram todos a imperar e lá fi caram Se me perguntarem como esta porção do antigo regime assim pôde ser transferida inteiriça na nova sociedade e nela se incorporar responderei que a centralização não pereceu com a Revo lução porque era o próprio começo e o próprio sinal desta Revolução e acrescentarei que quando um povo destrói em seu seio a aristocracia corre em direção à centralização como atrás de si mesmo Então é mais fácil jogálo neste declive que freálo Em seu seio todos os poderes tendem naturalmente à unidade e é preciso muita arte para separálos A revolução democrática que destruiu tantas instituições do antigo re gime tinha portanto que consolidar esta unidade e a centralização en contrava com tanta naturalidade seu lugar na sociedade formada pela Revolução que é fácil entender por que a consideram obra sua Toc queville 1989 p 9394 O trecho acima torna evidente a explicação Tocquevilleana sobre a revo lução A sociedade francesa do século XVIII tornarase demasiadamente demo crática e igualitária para o que conservava de aristocrática e nobiliar ao mesmo tempo que permanecia excessivamente aristocrática e nobiliar para o que já se tornara democrática e igualitária Essa tensão essencialmente dialética eviden cia o quanto a Grande Revolução é fruto de uma dicotomia intensa que não per mite equação Não sendo possível desfazer o longo trajeto já percorrido restou à sociedade completar sua obra Esse raciocínio é importante para que se perceba a originalidade da interpretação Tocquevilleana sobre a Revolução Francesa Ao passo em que todas as grandes interpretações da época com exceção talvez de Guizot afi rmam que a Revolução mudou a França Tocqueville percebe que ela só foi possível porque a França já havia mudado Ou seja enquanto se buscava compreender as novas realidades pelos câmbios ocorridos pela vaga revolucio nária Tocqueville procurava identifi car as mudanças que ocorridas no passado 277 Capítulo 10 Alexis de Tocqueville 18051859 o argumento liberal de defesa Lier Pires Ferreira tornaram possível a Revolução É portanto para os elementos de continuidade e não para os de ruptura que Tocqueville se volta No entanto as condições pelas quais a Revolução era iminente presentes no tomo II não são sufi cientes para explicar que eventos a precipitaram ou de outra forma determinaram sua eclosão Essas respostas são precisamente o que se denominou anteriormente as causas recentes da Revolução A terceira parte de O Antigo Regime e a Revolução é onde essas causas são abordadas Toc queville divideas em três as causas intelectuais as religiosas e as econômicas Ao abordar as causas intelectuais Tocqueville afi rma que A França era de há muito entre todas as nações da Europa a mais li terária Contudo seus homens de letras nunca tinham demonstrado o espírito que revela ram em meados do século XVIII nem ocupado o lugar que então galgaram Todavia não permaneciam como a maioria de seus iguais na Alemanha completamente alheios à política e entrincheirados no domínio da fi losofi a pura e das belasletras Cuida vam sem cessar de assuntos relativos ao governo e esta era na verdade sua ocupação própria Eram ouvidos discorrendo todos os dias sobre a origem das sociedades e suas formas primitivas sobre os direitos pri mordiais dos cidadãos e das autoridades sobre as relações naturais e artifi ciais dos homens so bre os erros e a legitimidade dos costumes e sobre os próprios princípios das leis Penetrando deste modo até as bases da constituição de seu tempo examinavam com curiosidade sua estrutura e criticavam o plano geral Esta espé cie de política abs trata e literária espalhavase em doses desiguais em todas as obras da época sem exceção desde o tratado sisudo até a canção Quanto aos sistemas políticos destes escritores tanto variavam que não seria pos sível tentar conciliálos e transformálos numa teoria única de governo Tocqueville 1989 p 143 Esta ressalva é antes uma constatação do que uma crítica Visa a identifi car suas consequências e não julgar o seu caráter Nesse propósito Tocqueville afi rma que Não foi por acaso que os fi lósofos do século XVIII conceberam noções tão opostas àquelas que ainda serviam de base à sociedade de seu tem po essas ideias foramlhes naturalmente sugeridas pela própria con templação dessa sociedade que tinham sob os olhos O espetáculo de tantos privilégios abusivos e ridículos dos quais sentiam sempre mais o peso e percebiam sempre menos as causas em purrava ou melhor precipitava simultaneamente o espírito de cada um para a ideia da igualdade natural das condições A própria condição destes escrito 278 ELSEVIER Curso de Ciência Política res preparavaos para apreciar teorias gerais e abstratas em matéria de governo e nelas confi ar cegamente No afastamento quase infi nito da prática em que viviam nenhuma experiência moderava suas paixões instintivas nada lhes anunciava os obstáculos que só os fatos concre tos podiam er guer contra as reformas mais desejáveis Não tinham a menor ideia dos perigos que sempre acompanham as revoluções mais necessárias Nem chegavam a prever esses obstáculos pois a total au sência de liberdade política faz com que ignorassem o mundo dos ne gócios mais de que isto lhes era invisível Nele nada realizavam nem mesmo chegando a enxergar o que os outros realizavam Faltavalhes portan to este conhecimento superfi cial que a visão de uma sociedade livre e o eco de tudo que nela se comenta dão até àqueles que menos se preocupam com as coisas do governo Tor naramse mais ousados em suas novidades mais apaixonados por ideias gerais e sistemas mais contendores da sabedoria antiga e mais confi antes ainda em sua ra zão individual que os autores de livros sobre a política Tocqueville 1989 p 144 Adiante completando seu raciocínio Tocqueville afi rma que A própria língua da política tomou algo emprestado à língua dos auto res e encheuse de expressões gerais termos abstratos palavras ambi ciosas um jeitinho literário Ajudado pelas paixões políticas este estilo penetrou em todas as classes e desceu com uma singular facilidade até as camadas mais baixas da população Essas qualidades incorpo raramse tão bem no velho fundo do caráter francês que atribuíram muitas vezes à nossa natureza o que só provinha dessa educação sin gular Ouvi afi rmar que o gosto ou até a paixão que demonstramos há sessenta anos em matéria política para as ideias gerais os sistemas e as grandes palavras vinham de não sei que atributo peculiar à nossa raça que chamavam um pouco enfaticamente o espírito francês como se este pretenso atributo pudesse ter surgido repentinamente em fi ns do século passado após terse escondido durante todo o resto da nossa história Tocqueville 1989 p 148 A segunda das causas recentes destacadas por Tocqueville referese aos efeitos da irreligiosidade que a seu juízo tornarase uma paixão dominante na França antes da Revolução Desde a grande revolução do século XVI quando o espírito de pesqui sa resolveu separar as falsas e as verdadeiras tradições cristãs sempre surgiram espíritos mais curiosos ou mais atrevidos que contestaram ou rechaçaram todas elas de vez Podese dizer de uma maneira geral 279 Capítulo 10 Alexis de Tocqueville 18051859 o argumento liberal de defesa Lier Pires Ferreira que no século XVIII o cristianismo ti nha perdido em todo o continente da Europa uma grande parte de sua força To davia na maioria dos pa íses era antes abandonado que combatido com violência e até aqueles que o deixavam pareciam fazêlo a contragosto Tocqueville 1989 p 149 Mais à frente conclui Em nenhum lugar a irreligiosidade tornarase uma paixão geral into lerante ou opressiva a não ser na França Lá acontecia algo que ainda não se encontrara antes Na França atacam com uma espécie de furor a religião cristã sem mesmo tentar colocar outra em seu lugar Tra balharam com ardor e continuidade para tirar às almas a fé que as en chia e deixaramnas vazias Esse empreendimento ingrato in fl amou uma multidão de homens A absoluta incredulidade em matéria de reli gião que é tão contrária aos instintos naturais do homem e coloca sua alma numa situação tão dolorosa pareceu atraente à multidão O que só en gendrara até então uma espécie de langor doentio promovera desta vez o fanatismo e o espírito de propaganda Tocqueville 1989 p 149150 Não há dúvida de que para Tocqueville essa irreligiosidade está relacio nada à ascendência dos escritores e dos intelectuais sobre a sociedade mormen te pelo fato de que na França a Igreja não possuía nada de mais odioso do que era possível verifi car em outros países europeus Ao contrário Para Tocqueville a Igreja na França era mais tolerante e aberta do que o era alhures Inobstante o poder espiritual da Igreja baseavase nos costumes e nas tradições e a ideologia literária das luzes Voltaire adiante desprezava tudo e todos que fundamentas sem sua identidade seu prestígio e seu poder no passado um passado incom patível com as luzes da razão e com o individualismo burguês Outro aspecto da irreligiosidade investigado por Tocqueville referese ao fato de que a Igreja talvez fosse o lado mais vulnerável da ordem social sob ata que Segundo Tocqueville seu poder enfraqueceuse à medida em que o poder dos príncipes se fi rmou Tinha sido seu superior depois tornouse seu igual e acabou virando simplesmente seu cliente pois se estabeleceu entre eles uma espécie de intercâmbio os príncipes emprestavam à Igreja sua força material e a Igreja emprestava aos príncipes sua autoridade moral eles faziam cumprir os preceitos dela e ela fazia respeitar a vontades deles Tocqueville 1989 p 151 E conclui seu raciocínio da seguinte forma Na maioria das grandes revoluções políticas que apareceram até en tão no mundo aqueles que atacavam as leis estabelecidas tinham res 280 ELSEVIER Curso de Ciência Política peitado as crenças e nas revoluções religiosas aqueles que atacavam a religião não tinham empreendido ao mesmo tempo mudar a natureza e a ordem de todos os poderes e abolir de alto a baixo a antiga constitui ção do governo Portanto sempre houve nos maiores aba los das socie dades um ponto que permanecia sólido Mas na Revolução Francesa tendo leis religiosas sido abolidas ao mesmo tem po que derrubavam as leis civis o espírito humano perdeu completamente seu equilíbrio não soube mais onde agarrarse nem onde parar e surgiram revolucio nários de uma espécie desconhecida que levaram a audácia até a lou cura que ne nhuma novidade poderia surpreender e nenhum escrúpu lo moderar e que nunca hesitaram na hora de executar um intento E não se deve pensar que estes novos se res foram a criação isolada e efêmera de um momento destinada a sumir com ele formaram desde então uma raça que se perpetuou e se expandiu em todas as partes ci vilizadas da terra e que por toda parte preservou a mesma fi sionomia as mesmas paixões o mesmo caráter Encontramos esta raça no mundo quando nascemos e ainda está sob nossos olhos Tocqueville 1989 p 153 O terceiro eixo do tomo III referese à dimensão econômica Ao contrário do que afi rmado pela historiografi a dominante Tocqueville empreende esforços para mostrar que o reinado de Luís XVI foi a época mais próspera da velha mo narquia Entretanto essa prosperidade em vez de concorrer para a estabilidade do regime forneceu a munição que faltava para alimentar as cargas que contra ele se voltaram Para Tocqueville não há dúvida que o esgotamento do reino sob Luís XIV começou na época em que este príncipe ainda triunfava sobre toda a Europa Os primeiros índices apareceram nos anos mais gloriosos do reino A França estava arruinada muito an tes de parar de vencer Tocqueville 1989 p 163 Segundo o autor à medida que se desenvolve na França a prosperidade que acabo de descrever os espíritos parecem entretanto mais inseguros e inquietos o descontentamento público aumenta o ódio contra todas as antigas ins tituições cresce A nação mar cha visivelmente para uma revolução Há mais as partes da França de onde a Revolução ia partir são justamente aquelas onde o progresso era mais visível Tocqueville 1989 p 166 Tocqueville tem claro que a administração estatal à época de Luís XVI não era desprovida de abusos e desmandos Resta evidente no entanto que as práticas da realeza personifi cação do Estado e da sociedade produziam crescentemente nessa mesma sociedade arroubos de repugnância Se os vícios da administração e do Estado não eram novos a ojeriza que causavam era então infi nitamente su 281 Capítulo 10 Alexis de Tocqueville 18051859 o argumento liberal de defesa Lier Pires Ferreira perior à causada no passado Como afi rma Tocqueville nesta época em que a in dústria tinha desenvolvido num maior número de homens o amor à propriedade o gosto e a necessidade do bemestar quem entregara uma parte de sua fortuna ao Estado era quem mais sofria com a violação da lei Tocqueville 1989 p 167 Na visão de Tocqueville em meados do século XVIII produziuse na Fran ça uma aceleração e um adensamento dos fenômenos que há décadas cristali zavamse na sociedade À dinâmica de desagregação sociopolítica e à centrali zação administrativa somavamse os efeitos da fi losofi a das luzes da negação da religiosidade e da prosperidade econômica que enredando o Estado e os diversos segmentos da burguesia e do campesinato tornavam os vícios da ad ministração tanto mais intoleráveis quanto maiores eram os seus impactos sobre a vida particular quer em nível estritamente material quer em nível eminente mente simbólico Dessa forma se deu a passagem da política para a Revolução 106 Lembranças de 1848 Lembranças de 1848 é uma obra póstuma e inacabada escrita em julho de 1859 pouco antes da morte de Tocqueville Seu propósito é resgatar suas memó rias sobre esse anochave na história política da França no século XIX quando o povo ousou enfrentar a nova ordem estabelecida e propor de maneira ardente e furiosa uma revolução para além da Revolução Nestas Lembranças Tocqueville abarca um período não superior a dois anos entre a eclosão do processo em fevereiro de 1848 e sua saída do ministério no último quartel de 1849 Obra de caráter pessoal voltada para o próprio autor e para um pequeno círculo de ami gos Lembranças de 1948 parecem revelar de forma contraditória sua ratio essendi no encontro com o grande público Afi nal se o fi m de sua carreira pública abrira os espaços necessários para o advento de O Antigo Regime e a Revolução obra es sencial para que se possa compreender a Revolução de 1789 este último suspiro é decisivo para entender o derradeiro levante revolucionário francês na primeira metade do século XIX a Revolução de 1848 Lembranças de 1948 é uma obra sem par salvo por aquela que do ponto de vista político e social talvez lhe seja a mais distante O 18 Brumário de Karl Marx Nunca na história da Teoria Política dois autores haviam escrito relatos tão magnífi cos e ideologicamente tão díspares quanto os que aqui são citados Apesar disso vale reproduzir as palavras de Renato Janine Ribeiro na introdu ção da edição de Lembranças de 1948 utilizada para a confecção desse breve capí tulo em suas diferenças os dois autores convergem num ponto fundamental a denúncia da política como teatro Ribeiro 1991 282 ELSEVIER Curso de Ciência Política A face teatral da política cerne das Lembranças de 1848 que encerram esta análise sumária do pensamento de Tocqueville tem como uma de suas expres sões mais contundentes um trecho retirado do programamanifesto de 1847 que visando orientar a conduta do grupo parlamentar ao qual Tocqueville per tencia foi posteriormente abandonado por aqueles que o haviam encomendado Chegará o tempo em que o país se encontrará novamente dividido em dois grandes partidos A Revolução Francesa que aboliu todos os privi légios e destruiu todos os direitos exclusivos deixou con tudo subsistir um o da propriedade É necessário que os proprietários não se iludam sobre a força de sua situação e que não imaginem que o direito de pro priedade seja uma muralha intransponível pelo fato de que até agora em nenhum lugar tenha sido transposta pois nosso tempo não se asse melha a qualquer outro Quando o direito de pro priedade não era mais que a origem e o fundamento de muitos outros direitos era defendido sem esforço ou melhor não era atacado cons tituía então um muro de proteção da sociedade cujas defesas avança das eram todos os outros direitos os golpes a ele não chegavam nem sequer se procurava seria mente atingilo Hoje porém quando o di reito de propriedade tornase o último remanescente de um mundo aristocrático destruído o único a se manter de pé privilégio isolado em meio a uma sociedade nivelada sem a cobertura dos muitos outros di reitos mais contestados e mais odiados corre um perigo maior pois só a ele cabe sustentar a cada dia o choque direto e incessante das opiniões democráticas Logo a luta política travarseá entre os que possuem e os que não possuem o grande campo de batalha será a propriedade e as principais questões políticas girarão em torno das modifi cações mais ou menos profundas que serão introduzidas no direito dos proprietários Então voltaremos às grandes agitações públicas e aos grandes partidos Como é possível que os sinais precursores desse futuro não che guem a todos os olhares Vamos acreditar que seja por acaso por efei to de um capricho passa geiro do espírito humano que vemos aparecer de todos os lados essas doutrinas singulares que levam nomes diver sos mas que têm todas por principal característica a negação do direito de propriedade e que tendem pelo menos a limitar a reduzir a en fraquecer seu exercício Quem não reconhece aí o último sintoma des ta velha enfermidade de mocrática da época cuja crise talvez se aproxima Tocqueville 1991 p 4142 O tema da nova revolução que se avizinha não mais campesina ou bur guesa mas pré socialista e operária é retomado em um discurso proferido na 283 Capítulo 10 Alexis de Tocqueville 18051859 o argumento liberal de defesa Lier Pires Ferreira Câmara dos Deputados em janeiro de 1848 poucos meses antes da eclosão dos confl itos de fevereiro Falando aos seus pares Tocqueville consigna que Dizse que não há perigo porque não há agitação dizse que como não há desordem material na superfície da sociedade as revoluções estão longe de nós Senhores permitime dizervos que creio que vos enganais Sem dúvida a desordem não está nos fatos mas entrou bem profundamente nos espíritos Olhai o que se passa no seio dessas clas ses operárias que hoje eu o reconheço estão tranquilas É verdade que não são atormentadas pelas paixões políticas propriamente ditas no mesmo grau em que foram por elas atormentadas outrora mas não vedes que suas paixões de políticas tornamse sociais Não vedes que pouco a pouco propagamse em seu seio opiniões ideias que de modo nenhum irão somente derrubar tal lei tal ministério mesmo tal gover no mas a sociedade abalando as bases nas quais ela hoje repousa Não escutais o que se diz todos os dias em seu seio Não ouvis que entre elas as classes operárias repetese constantemente que tudo o que se acha acima é incapaz e indigno de governálas Que a divisão dos bens ocorrida no mundo até o presente é injusta Que a propriedade repou sa em bases que não são igualitárias E não credes que quando tais opi niões adquirem raízes quando se propagam de maneira quase geral quando penetram profundamente nas massas devem acarretar cedo ou tarde não sei quando não sei como as mais terríveis revoluções Tal é senhores minha convicção profunda no momento em que esta mos creio que dormimos sobre um vulcão disso estou profundamente convencido Diziavos ainda há pouco que esse mal deverá cedo ou tarde não sei como nem de onde eles virão mas levará cedo ou tarde a gra víssimas revoluções neste país podeis fi car disso convencidos To cqueville 1991 p 4243 A impressão de Tocqueville sobre o cenário que se avizinha é brutal E vem sendo sistematicamente evocada ao longo desse discurso Seu conteúdo dramático tem conotação crescente e busca legitimarse nos fatos do passado Nesta linha Tocqueville relata que Quando passo a procurar em diferentes tempos em diferentes épocas entre diferentes povos qual foi a causa efi caz que provocou a ruína das classes que governavam vejo claramente tal acontecimento tal homem tal causa acidental ou superfi cial acreditai porém que a causa real e efi caz que faz com que os homens percam o poder é que se tornaram indignos de o manter Pensai senhores na antiga Monarquia ela era mais forte que vós por sua origem apoiavase melhor que vós em an 284 ELSEVIER Curso de Ciência Política tigos costumes usos crenças era mais forte que vós e no entanto caiu no pó E por quê Acreditais que tenha sido por tal acidente particular Julgais que fora obra de tal homem do défi cit do Jeu de Paume de La Fayette de Mirabeau Não senhores há outra causa é que a classe que então governava tornarase por indiferença egoísmo vícios incapaz e indigna de governar Eis a verdadeira causa Tocqueville 1991 p 43 Em sua dimensão analítica do período que antecede a Revolução de 1848 Tocqueville não volta sua atenção para as modifi cações estruturais da economia como fará Marx em O Dezoito Brumário mas à moda de Montesquieu para os câmbios institucionais e para a imensa dimensão social patriótica e nacionalista que a ladeia É com foco nessa dimensão que Tocqueville faz seu apelo fi nal ao parlamento francês e por que não dizer à própria sociedade francesa Pois senhores se é justo ter essa preocupação patriótica em todos os tem pos até que ponto não é mais justo ainda têla em nosso Não ouvis então como direi um vento de revolução que paira no ar Não se sabe onde ele nasce de onde vem nem acreditai o que carrega e é em tempos como esse que fi cais calmos na presença da degradação dos costumes pú blicos porque a palavra não é sufi cientemente forte Falo aqui sem amar gura falovos creio eu até sem espírito de partido ataco homens contra os quais não tenho cólera mas enfi m sou obrigado a dizer a meu país qual é minha convicção profunda e meditada Pois bem minha convicção pro funda e meditada é que os costumes públicos estão se degradando é que a degradação dos costumes públicos vos levará em curto espaço de tempo brevemente talvez a novas revoluções Estaria por acaso a vida dos reis presa por fi os mais fi rmes e mais difíceis de partir do que a dos outros ho mens Tereis à hora em que nos encontramos a certeza de um amanhã Sabeis o que pode ocorrer na França daqui a um ano um mês um dia tal vez Vós o ignorais mas sabeis que a tempestade está no horizonte e que ela marcha sobre vós deixarvoseis antecipar por ela Senhores suplico vos que não o façais não vos peço suplicovos de bom grado cairia de joelhos diante de vós tão sério e real creio ser o perigo tanto creio que o assinalar não é recorrer a uma vã forma de retórica Sim o perigo é grande Conjuraio enquanto ainda é tempo corrigi o mal por meios efi cazes não atacando seus sintomas mas o próprio mal Conservai as leis se que reis conservai mesmo os homens se isso vos agrada não oponho a isso obstáculo algum mas por Deus mudai o espírito do governo pois repito vos esse espírito está conduzindovos ao abismo Ibidem p 4344 É desnecessário notar que essas predições sombrias não foram acolhidas com a devida atenção Ao contrário Tocqueville relata a ocorrência de risos in sultantes pelo lado da maioria enquanto a oposição mais por interesse parti 285 Capítulo 10 Alexis de Tocqueville 18051859 o argumento liberal de defesa Lier Pires Ferreira dário do que por convicção aplaudia vivamente Mas o fato é que a França e seus mandatários não eram capazes de enxergar os sinais nítidos da crise que se avizinhava Essa incredulidade não passa despercebida pelo autor A verdade é que ninguém acreditava ainda seriamente no perigo que eu anunciava embora estivéssemos tão perto da queda Há vários anos a maioria dizia todos os dias que a oposição punha a sociedade em perigo e a oposição repetia sem cessar que os ministros arruinavam a Monarquia Tantas vezes já o haviam dito sem muita convicção quer por um lado quer pelo outro que acabaram por não acreditar em absolu to no que diziam no momento em que os fatos viriam dar razão a ambos os lados Mesmo meus amigos particulares acreditavam que havia um pouco de retórica em minha exposição E agora quando me vejo diante de mim mesmo vasculhando curiosamente as lembranças para ver se de fato estava tão assustado quanto aparentava descubro que não percebo sem difi culdade que o acontecimento justifi cou minhas opiniões mais rápido e de forma mais completa do que eu previra Não eu não esperava por uma revolução tal qual iríamos ver e quem podia esperála Creio que eu percebia mais claramente do que qualquer outro as causas gerais que faziam a Monarquia de Julho pender à ruína Não via os acidentes que iriam precipitála No entanto os dias que ainda nos separavam da catástrofe escoavamse rapidamente Ibidem p 4445 A teatralidade que subjaz à análise Tocquevilleana dos eventos de 1848 poderia ser defi nitivamente assinalada pela caracterização dos principais per sonagens dessa trama medonha Sua montagem é emblemática e conquanto contestável como todas as caracterizações permite revelar mais de um século depois o perfi l contraditório e humano de cada um destes grandes senhores da França Em nível meramente exemplifi cativo destacarseá a feição de Luís Bo naparte aquele que num futuro tão próximo será o restaurador da ordem e da estabilização pela qual Tocqueville tanto almeja Embora esse príncipe descendesse da raça mais nobre da Europa e ocul tasse no fundo de sua alma todo o orgulho advindo dessa herança não se considerando indubitavelmente semelhante a qualquer outro homem possuía a maior parte das qualidades e dos defeitos que pertenciam mais particularmente às camadas subalternas da sociedade Tinha costumes regulares e gostava de vêlos transpostos a sua volta Era ordeiro na con duta simples nos hábitos comedido nos gostos naturalmente amigo da lei e inimigo de todos os excessos moderado em todas as atitudes mas não em seus desejos humano mas não sensível cúpido e doce não tinha paixões ardentes nem fraquezas ruinosas ou vícios extraordinários De rei 286 ELSEVIER Curso de Ciência Política só possuía uma virtude a coragem Tinha uma cortesia extrema que mais se assemelhava à de um comerciante do que à de um príncipe Não gos tava das letras ou das belas artes mas amava a indústria com paixão Sua memória era prodigiosa capaz de reter obstinadamente os menores deta lhes A conversação original prolixa difusa trivial anedótica repleta de pequenos fatos saborosa e sensata proporcionava toda a satisfação que se pode encontrar nos prazeres da inteligência quando delicadeza e ele vação estão ausentes Sua presença era notável mas restrita e afetada pela pouca amplitude de sua alma Esclarecido fi no fl exível e tenaz voltavase somente para o útil e era dominado por um desprezo tão profundo pela verdade bem como por uma incredulidade tão grande na virtude que suas luzes estavam obscurecidas e ele não apenas não via a beleza sempre presente na verdade e na honestidade mas também já não com preendia que elas frequentemente são úteis conhecia profundamente os homens mas apenas por seus vícios incrédulo em matéria de religião como o sécu lo XVIII e cético em política como o XIX sem credo não tinha fé alguma na crença alheia seu amor pelo poder e pelos cortesãos pouco honestos era tão natural que parecia terse originado no trono sua ambição era limitada somente pela prudência que nunca se fartava nem se enfurecia e sempre se mantinha perto da terra Muitos príncipes pareceramse com esse retra to mas o que havia de peculiar no caso de Luís Filipe era uma analogia ou seja uma espécie de parentesco e de consanguinidade presente entre seus defeitos e os de sua época o que o tornava para os contemporâneos e em particular para a classe que possuía o poder um príncipe atraente e sin gularmente perigoso e sedutor Se colocado à frente de uma aristocracia talvez tivesse exercido sobre ela uma feliz infl uência Chefe da burguesia solidifi cou o que não passava de uma propensão natural dessa classe seus vícios casaramse em família e essa união que a princípio constituía a for ça de uma das partes resultou na desmoralização da outra e acabou por arruinar as duas Ibidem p 3537 Todavia montado o cenário restam os atos E eles ocorreram com uma in tensidade que só a paixão que move a vida política francesa pode explicar Em uma composição que só o intelecto livre é capaz de realizar Tocqueville parece convergir com Marx na percepção do proletariado como um novo ator social ator este que após 1848 não poderá mais ser ignorado Mas é na noção de espírito público virtude cívica que remonta a Montesquieu que Tocqueville parece re velarse por completo quiçá fi nalmente unindo o intelectual o homem de Estado e o cidadão É ela que permite compreender o desprendimento do nobre que na defesa da verdade que sabe existir em seu chamamento ousa dizer que se ajo elharia perante seus pares na Assembleia fossem nobres burgueses ou mesmo 287 Capítulo 10 Alexis de Tocqueville 18051859 o argumento liberal de defesa Lier Pires Ferreira socialistas É no espírito público amparo das instituições políticas e sociais repu blicanas que Tocqueville visualiza a última fronteira das noções de honra e valor que emolduraram a velha ordem nobiliar e feudal É ela que permite ao autor retirarse de cena e bradar ao longe uma verdade que ninguém deseja escutar É ela que o permite manterse de pé mesmo quando seus propósitos estão vencidos 107 Considerações finais Compreender as relações entre democracia e liberdade é o norte pelo qual se pode apreender em sua completude o pensamento de Tocqueville Entretan to como é praxe entre os grandes mestres do pensamento social e político des de Maquiavel o conhecimento em Tocqueville não tem propósitos meramente epistemológicos Desde o advento da modernidade e particularmente desde Descartes a ciência tem um propósito prático instrumental Em outras pala vras o conhecimento é mais do que uma forma de conhecer o mundo mas um mecanismo para nele intervir Por isso em Democracia na América Tocqueville afi rma não ignorar Que muitos de meus contemporâneos pensaram que os povos não são jamais aqui na terra senhores deles próprios e obedecem necessaria mente não sei qual força insuperável e ininteligente que nasce dos acontecimentos anteriores da raça do solo ou do clima Tratase de doutrinas falsas e covardes que não produziriam jamais senão homens fracos e nações pusilânimes A Providência não criou o gênero humano nem inteiramente independente nem completamente escravo Ela tra ça é verdade em torno de cada homem um círculo fatal de onde não pode sair mas nos seus vastos limites o homem é poderoso e livre e assim os povos As nações de agora não podem evitar que as condições dos homens se tornem iguais mas depende delas que a igualdade os conduza à servidão ou à liberdade às luzes ou à barbárie à prosperi dade ou à miséria Tocqueville 1969 p 364 É a esse propósito fundamental que Tocqueville se dedica Conhecer o inevitável e a partir desse conhecimento buscar interferir para que o curso dos acontecimentos não seja forte o sufi ciente para solapar radical e violentamente valores fundamentais que se pretenda preservar Em palavras mais simples o conhecimento do fenômeno democrático pode contribuir para que o crescimen to inevitável da igualdade de condições entre os homens não suprima a liberda de Por isso em Democracia na América o foco do autor se volta para os Estados Unidos Tocqueville tem como certo que Mais cedo ou mais tarde chegaremos como os americanos a uma igualdade de condição quase completa Mas não concluo que por isso que alguma vez sejamos necessariamente levados a extrair as mesmas 288 ELSEVIER Curso de Ciência Política consequências políticas que os americanos obtiveram a partir de uma organização social semelhante Estou longe de supor que eles tenham escolhido a única forma de governo que a democracia possa adotar mas em virtude da causa geradora das leis e maneiras nos dois países ser a mesma é de imenso interesse para nós saber o que isso produziu em cada um deles Tocqueville 1969 p 44 Tocqueville portanto não considera que a organização social e política dos Estados Unidos seja superior à da França38 Mas identifi ca que pelas con dições peculiares de sua história de sua geografi a e do seu desenvolvimento social a trajetória democrática dos Estados Unidos possui lições que podem ser úteis para a França e para as outras sociedades do Velho Mundo São essas lições que em primeiro lugar Tocqueville deseja apreender Outra questão que não se pode olvidar é que Tocqueville é um nobre de estirpe Com a nobreza e com a antiga ordem aristocrática estão seu coração e seu espírito Isso é patente em todas as suas obras em particular O Antigo Regime e a Revolução e Lembranças de 1848 Entretanto sua condição aristocrática não é sufi ciente para obstacularizarlhe a visão das novas realidades que se afi rmam ao seu redor Tal como consignado por Aron para Tocqueville democracia se justifi ca pelo fato de que favorece o bemestar do maior número mas este bemestar não tem brilho ou grandeza e não deixa de apresentar perigos políticos e morais Com efeito toda democracia tende à centralização e em consequência tende a uma espécie de des potismo Aron 1990 p 221 Assim reconhecendo ser inútil lutar pela preservação das antigas distin ções e privilégios aristocráticos é precisamente o sacrifício da liberdade que To cqueville deseja evitar Em palavras fi nais há uma última questão a pontuar Em que pesem os êxitos preditivos do pensamento de Tocqueville que tanta admiração desperta naqueles que iniciam seus estudos sobre o autor não se pode avaliar uma obra política e fi losófi ca pelo êxito de suas previsões para o futuro mas sim pela pro priedade de sua leitura sobre o presente Por isso uma obra só se torna clássica quando seu conteúdo transborda sua contemporaneidade e avança sobre o futuro Esse é precisamente o caso de Tocqueville Sua análise de Democracia na América bem como a coerência e originalidade de sua interpretação sobre as causas e processos que provocaram a eclosão da Revolução Francesa expostos em O Antigo Regime a Revolução que de alguma maneira concorrem para formar 38 Na verdade o autor é ácido em diversos planos de sua análise particularmente quando se refere à situação dos indígenas e dos negros 289 Capítulo 10 Alexis de Tocqueville 18051859 o argumento liberal de defesa Lier Pires Ferreira uma teoria geral das revoluções não seriam tão apreciáveis e vitais se não mos trassem mais do que a mera análise dos fatos As reconstituições e os resgates de Tocqueville talvez não sejam perfeitos e podem ser mesmo criticáveis como de fato o são Seus elementos descritivos principalmente em Democracia na América parecem por vezes forçados e artifi ciais Por outro lado em Da Colonização na Argélia em que pesem passagens como o ataque que faz às políticas escravocra tas como quando afi rma que o homem não possui jamais o direito de possuir outro homem e o fato de que tal possessão seja praticada hoje em dia não a torna legítima Tocqueville 1962 p 54 muitas das posturas assumidas sugerem uma franca contradição com o espírito de liberdade que afl ora constantemente de seus escritos e que mais do que o método ou a busca pela ordem e pelo equi líbrio social são a marca registrada do autor Mas não existe vida ou obra intelectualmente válida e humanamente ho nesta sem contradições Quanto se fala que Tocqueville é um clássico e portanto uma referência obrigatória para todos aqueles que buscam na refl exão e no co nhecimento instrumentos ótimos para uma participação social profícua e conse quente é porque se reconhece que apesar dos equívocos e insufi ciências sua obra transcende ao tempo e ao seu país causando impacto signifi cativo no mundo con temporâneo Neste sentido mais do que aos franceses e aos europeus do século XIX Tocqueville tem muito a dizer hoje para todos os povos que buscam concre tizar pela democracia a liberdade e o bemestar É pois um autor indispensável para a França para a América Estados Unidos ou mesmo para o Brasil 108 Perguntas para reflexão 1 Situe o pensamento de Tocqueville no contexto histórico do autor 2 Do ponto de vista ideológico qual a causa subjacente que conduz e orien ta seu pensamento 3 Explique como Tocqueville constrói sua abordagem metodológica 4 Qual o sentido de democracia e o sentido de liberdade imanentes à sua obra 5 Quais as medidas necessárias para que a igualização crescente das con dições políticas e sociais entre os homens não seja um óbice a liberdade Em sua resposta articule as seguintes categorias a Tirania da Maioria b Despotismo de Estado e c Individualismo 290 ELSEVIER Curso de Ciência Política 6 Por que os Estados Unidos serviam como modelo eou paradigma de aná lise do fenômeno democrático 7 Como Tocqueville justifica a presença colonial francesa na Argélia Essa justificativa é efetivamente contraditória com o conjunto de sua obra Fundamente sua resposta 8 Em O Antigo Regime e a Revolução Tocqueville dá uma interpretação singular sobre a eclosão da Revolução Francesa Explique como o autor constrói essa interpretação destacando os elementos que a tornam original 9 O Tocqueville que se revela como homem público e intelectual nas Lem branças de 1848 é mais parecido com o autor de Da Colonização ou aproxi mase mais fortemente daquele que imerso em sua dimensão intelectual logrou escrever Democracia na América e O Antigo Regime e a Revolução Justi fique sua resposta 10 Em sua visão qual a herança intelectual de Tocqueville e como esse legado pode auxiliar uma reflexão crítica do Brasil contemporâneo Bibliografia AGULHON Maurice 1848 o aprendizado da República Rio de janeiro Paz e Terra 1991 ARON Raymond As etapas do pensamento sociológico 3 ed Brasília UNB 1990 BARBU Zevedei Introdução TOCQUEVILLE Alexis O Antigo Regime e a Revolução 3 ed Brasília UNB São Paulo Hucitec 1989 CHEVALIER JeanJacques As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias Rio de Janeiro Agir 1995 QUIRINO Célia Galvão Tocqueville sobre a liberdade e a igualdade WEFFORT F C org Os Clássicos da Política 6 ed São Paulo Ática 1996 v 2 RIBEIRO Renato Janine Introdução TOCQUEVILLE A Lembranças de 1848 São Paulo Cia das Letras 1991 TOCQUEVILLE Alexis Oeuvres complètes Paris Gallimard 1962 T III v 1 Democracia na América São Paulo Cia Editora Nacional 1969 De la Colonie en Algérie Bruxelas Editons Complexe 1988 O Antigo Regime e a Revolução 3 ed Brasília UNB São Paulo Hucitec 1989 Lembranças de 1848 São Paulo Cia das Letras 1991 Capítulo 11 John Stuart Mill a luta contra a opressão Aparecida Maria Abranches1 111 Introdução Nas duas obras de Stuart Mill que serão analisadas Da liberdade e Consi derações sobre o Governo Representativo chama atenção o fato de elas terem sido inspiradas por um profundo amor e crença na humanidade Este é um aspecto que me parece frequentemente ofuscado quando nos detemos exclusivamente em compreender o pensamento do autor pelo ângulo da antinomia liberalismo versus socialismo As simpatias e antipatias que uma ou outra dessas ideolo gias provoca logo se projetam mais sobre o autor do que propriamente sobre as obras de maneira que ao lêlas costumamos ter mais a preocupação em encon trar ora o liberal em pureza cristalina ora um inimigo belicoso do socialismo De fato encontramos neste autor algumas das premissas mais importantes do Mestre em sociologia pelo IUPERJ e Doutora em Ciência Política pelo IUPERJ Professora Adjunta de Ciência e Política da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro Contato pareabranches yahoocombr 292 ELSEVIER Curso de Ciência Política liberalismo econômico tal como a limitação à interferência do Estado na vida econômica e a defesa do mercado autoregulável Em Da liberdade ele diz que Restrições ao comércio e à produção são de fato limitações e qualquer limita ção é um mal Mill 1963 p 1078 Porém ele mesmo diz absterse de discutir as questões de liberdade próprias à doutrina do livrecomércio preocupandose mais com os fundamentos da liberdade individual os quais seriam distintos dos fundamentos daquela doutrina As duas obras que serão tratadas devem ser compreendidas no contexto da própria vida do autor e das transformações culturais sociais e políticas da Europa e especifi camente da Inglaterra a partir da década de 1830 período po liticamente conturbado quando se assiste à ascensão da classe média ao poder político com a reforma do Parlamento e a reivindicação do sufrágio universal pelo movimento cartista Mill nasceu em 8 de maio de 1806 vindo a falecer em maio de 1873 Filho de James Mill alto funcionário da Companhia das Índias Orientais e um dos criadores do utilitarismo Mill desde cedo foi submetido pelo pai a um regime austero de educação que segundo a vontade de James Mill visava depurar a mente do fi lho de todo sentimentalismo vulgar e preparála para uma conduta racional diante da vida Por isso aos cinco anos Mill já sabia grego e aos oito la tim e álgebra Uma de suas tarefas que fazia parte do método educativo do pai era ensinar latim a seus irmãos que também eram os seus únicos companheiros Em 1820 quando viaja à França de onde retorna um ano depois tem início uma crise existencial que iria culminar num questionamento dos ensinamentos do pai e da maneira como até então sua vida fora conduzida Fato importante na reviravolta em sua vida foi a leitura das memórias de Marmontel em que o au tor relata a morte do pai A cena provocou grande comoção em Mill levandoo às lágrimas o que o fez perceber que era capaz de ter sentimentos Além desse fato que lhe fez descobrir as emoções Mill aproximouse da poesia de Woo dsworth e Coleridge que o introduzem na até então desconhecida cultura dos sentimentos 1 Esses fatos foram importantes para o questionamento do rigoroso racio nalismo do pai e do utilitarismo Tendo como seu principal expoente Jeremy Benthan 17481832 o utilitarismo defendia um racionalismo radical contra toda sorte de dogmatismo e obscurantismo Defendia o método empírico refu tando asserções indemonstráveis como a teoria do direito natural e a teoria con tratualista De acordo com o utilitarismo a principal fi nalidade dos homens é a felicidade resultando esta de um cálculo dos prazeres e das dores Mill mantém 1 Ver Leppenies 1996 293 Capítulo 11 John Stuart Mill a luta contra a opressão Aparecida Maria Abranches o empirismo e a certeza quanto a ser a felicidade a fi nalidade da vida mas acre dita que ela possa ser alcançada também por outros meios que não o do cálculo racional visando exclusivamente a felicidade Os fatos mencionados supra lhe revelam a existência de uma vida subje tiva interior escapável a fórmulas rígidas de aferição das satisfações humanas Em Da liberdade ele dá um exemplo de como a sua descorberta dos aspectos subjetivos da experiência humana contribuiu para a sua defesa da liberdade de pensamento e de expressão Em uma época diz ele em que as pessoas se per diam em admiração pelo que chama de civilização Mill 1963 p 53 Rous seau trouxe à tona O valor superior da simplicidade da vida o efeito enervante e desmoralizador das peias e das hipocrisias da sociedade artifi cial Mill 1963 p 53 É somente com a mais ampla aceitação da diversidade e de garan tias que elas se pronunciem que o objetivo fi nal dos homens pode ser alcançado À medida que os homens tenham o direito de se pronunciar e defender suas ideias mais caras por meio de debates é que esses mesmos homens podem ter acesso seguro à verdade resultando disso o melhoramento e a felicidade da hu manidade Ao empirismo então ele acrescenta a diversidade e a liberdade de expressão como método efi caz contra o dogmatismo e o obscurantismo É pela via dos dilemas pessoais embora não exclusivamente que Mill chega a um dos principais fundamentos do seu liberalismo político a liberda de de expressão e a proteção dos indivíduos contra a interferência ilegítima do Estado e da Sociedade Além dessa via há de considerarse que Mill vive em uma época que colhe os frutos bons e maus da Revolução Industrial Bons no que diz respeito à afl uência material e à destruição das barreiras tradicionais e legais que aprisionavam os homens à posição social de nascimento e a porções determinadas do território maus porque os frutos materiais da Revolução In dustrial não eram colhidos por todos com o que se tem grande miséria e mais que isso a sua visibilidade Visibilidade que irá provocar tanto os temores das elites tradicionais e das novatas quanto irá atrair a atenção dos legisladores e do Estado com propósitos reformadores e intervencionistas Nesse contexto fi gura também a classe trabalhadora que por meio do movimento cartista irá exigir o sufrágio universal Neste cenário a democracia popular entra na ordem do dia dividindo opiniões Há aqueles que se posicionam terminantemente contrários a ela Outros a defendem Entre estes está Stuart Mill que vê na extensão da cidadania política não só um direito mas também um meio de aperfeiçoamento da humanidade Ao analisarmos Da liberdade e Considerações sobre o Governo Re presentativo tenhamos em mente a perspectiva de um reformador humanitário que vê na democracia um instrumento de melhoria do caráter humano 294 ELSEVIER Curso de Ciência Política 112 Da Liberdade Um libelo contra a interferência ilegítima da sociedade e do Estado na liberdade individual Assim pode ser defi nida a obra de Stuart Mill sobre a liberdade Publicada em 1859 cerca de 20 anos depois de A Democracia na América de Alexis de Tocqueville podese dizer que o autor contribui para dar uma maior nitidez àquela que seria uma das maiores ameaças dos séculos democráticos à liberdade individual a tirania da maioria Em termos similares aos do escritor francês que denuncia o controle mo ral que uma maioria despótica poderia ter a ponto de minar no indivíduo até o desejo de pensar escravizandolhe a alma escreve Mill alertando sobre um poder ainda mais devastador do que aquele exercido pela autoridade pública constituída A par de outras tiranias a da maioria encaravase com receio a prin cípio e ainda hoje vulgarmente se encara quando exercida através de atos das autoridades públicas Contudo as pessoas que refl etem per ceberam que quando a própria sociedade faz o papel de tirano a so ciedade coletivamente sobre os indivíduos separados que a compõem os meios de exercer a tirania não se limitam aos atos que pode levar a efeito pelas mãos dos funcionários políticos A sociedade pode exe cutar e executa seus próprios mandatos e se expede mandatos errados ou mandatos quaisquer em assuntos nos quais não se deve introme ter pratica tirania social mais temível do que muitos tipos de opressão política porquanto muito embora não venha apoiada por penalida des extremas não permite que se lhe escape facilmente penetrando muito mais profundamente nos detalhes da vida escravizando a pró pria alma Não é sufi ciente portanto a proteção contra a tirania do magistrado necessária também a proteção contra a tirania da opinião e do sentimento predominantes contra a tendência da sociedade para impor por meios outros que não penalidades civis as próprias ideias e práticas como regras de conduta para aqueles que discordem delas Mill 1963 p 7 Diferentemente da análise sociológica especifi camente a de Émile Durhkeim segundo a qual sob o impacto da divisão do trabalho o controle moral da sociedade sobre o indivíduo se abrandaria Stuart Mill identifi ca uma maior rigidez desse controle como associado ao progresso dos negócios huma nos Ao contrário de um sentimento de fraqueza diante de ameaças externas o que em outros tempos teria justifi cado a submissão dos súditos à autoridade de 295 Capítulo 11 John Stuart Mill a luta contra a opressão Aparecida Maria Abranches um governante agora a sociedade viase robustecida encarandose a si própria como fonte da autoridade política O fato de emanar dela a autorização dos atos dos magistrados sob o imperativo da vontade da maioria reforçarlheia a auto ridade moral sobre os indivíduos Dessa forma mais perigoso para Stuart Mill não seria tanto o controle moral da sociedade mas o fato de não haver garantias legais contra a sua interferência na liberdade dos indivíduos Invertida a relação de poder em que outrora procuravase limitar o po der do governante contra a liberdade dos súditos seja por reconhecimento de imunidades destes seja por controles constitucionais sobre o poder daquele agora a tarefa da fi losofi a política seria buscar um fundamento justo para a limitação do poder do povo sobre si mesmo Tal fundamento será o da auto proteção defi nido de forma positiva isto é não contraditório com o princípio da soberania popular Este ensaio tem por objetivo sustentar um princípio muito simples ca paz de governar em absoluto as relações da sociedade com o indivíduo no sentido da compulsão e controle seja que se lance mão da força física sob a forma de penalidades legais seja que se aplique a coerção moral da opinião pública Tal princípio é o de que a autoproteção é único objetivo pelo qual se pode garantir aos homens individual ou coletivamente interferir na liberdade de ação de qualquer deles Mill 1963 p 12 Com esse princípio Stuart Mill compatibiliza duas ordens de direito o co letivo ou social e o individual Por meio da ação coercitiva da própria sociedade nenhum indivíduo poderia causar dano a outro indivíduo A proposição acima se completa da seguinte forma O único objetivo a favor do qual se possa exercer legitimamente pres são sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada contra a vontade dele consiste em prevenir danos a terceiros Não basta que se leve em conta o próprio bem físico ou moral da pessoa Não se tem o direito de obrigálo a fazer ou deixar de fazer por ser melhor para ele ou porque lhe promova a felicidade ou ainda porque na opinião de terceiros fazêlo seria mais prudente ou mais acertado Mill 1963 p 12 Nesta relação indivíduo e sociedade a esta caberia o poder moral o que Stuart Mill não parece negarlhe enquanto ao primeiro fi calhe assegurada a independência relativamente a todos os atos em que não houver prejuízos a ter ceiros Quando um ato for nocivo a terceiro o causador do dano estará sujeito a castigo legal ou desaprovação social Excetos os atos maléfi cos a outros em 296 ELSEVIER Curso de Ciência Política todos os demais o indivíduo é livre para agir como bem lhe aprouver respon sabilizandose por suas consequências quando estas forem danosas tão somente a ele próprio Escreve Mill A parte única da conduta de cada um pela qual é responsável perante a sociedade é a que entende com terceiros Na parte que diz respeito tão só a ele próprio a independência é por direito absoluta Mill 1963 p 13 Haveria porém atos obrigatórios para com outros passíveis de constran gimento legal e social São atos positivos cuja omissão pode acarretar danos a terceiros Prestar testemunhos em tribunais de justiça interferência em favor de indefesos contra maustratos e salvar vidas constituem situações em que os indivíduos poderiam ser obrigados a agir independentemente da sua vontade Mas esses casos constituem exceção em relação à regra geral que responsabiliza os indivíduos por danos causados a terceiros Por isso situações como essas de veriam ser examinadas conforme as especifi cidades do caso O direito a não interferências externas restringirseia àqueles em condi ções de orientarem livremente suas vontades e condutas no sentido do melhora mento próprio Crianças menores e pessoas necessitadas de cuidados de tercei ros deveriam ser protegidas contra seus atos justifi candose a interferência Da mesma forma Stuart Mill considera legítima a tutela das vontades sobre povos que ainda não teriam alcançado o estágio civilizatório do qual a Inglaterra seria paradigmática de desfrute da liberdade e da igualdade Tais povos poderiam ser considerados em menoridade sobre os quais o despotismo seria legítimo conquanto que a meta fosse aperfeiçoálos A formulação do princípio da autoproteção cujo objetivo é a limitação da interferência legítima da sociedade ou do Estado na liberdade individual teria na Inglaterra função preventiva O despotismo da maioria seria um fato nos Estados Unidos assim como passara incólume pela Revolução Francesa Na Inglaterra em virtude de circunstâncias peculiares da sua história política o poder moral da maioria ainda não havia se dilatado ao ponto de orientar os atos dos governantes Como consequência benéfi ca os ingleses podiam gozar de uma considerável prevenção contra a interferência direta do poder legislativo ou executivo na conduta privada Mill 1963 p 11 Contudo a tendência histórica apontava para o fortalecimento da sociedade com a diminuição do poder do indivíduo Mill 1963 p 17 Essa tendência encontraria seu estí mulo natural na disposição dos homens para impor suas regras de conduta a outros daí a necessidade de buscar adesão moral ao princípio da autoproteção junto à própria sociedade 297 Capítulo 11 John Stuart Mill a luta contra a opressão Aparecida Maria Abranches A disposição dos homens seja como governantes seja como concida dãos no sentido de impor suas próprias opiniões e inclinações como regras de conduta para os demais encontra apoio tão enérgico por par te de alguns dos piores como dos melhores sentimentos inerentes à na tureza humana que difi cilmente é possível restringila senão pelo uso da força e como o poder não está em declínio mas sim aumentando a menos que possa erguer forte barreira de convicção moral contra esse mal teremos de esperar nas condições atuais do mundo vêlo crescer Mill 1963 p 17 o grifo é meu Embora as mais severas ameaças à liberdade individual nas democracias modernas advenham de uma maioria despótica Stuart Mill parece tomar cui dado ao formular o princípio da autoproteção para não colocar em risco as imunidades de que a sociedade em conjunto deveria gozar perante o Estado O caminho para obtenção de um bem como o aperfeiçoamento da relação entre so ciedade e indivíduo não poderia colocar em perigo um bem já conquistado Ou seja o resultado da luta histórica entre a liberdade e a autoridade que de acordo com o credo liberal estaria manifesto na antinomia sociedade versus Estado Daí a interpelação à própria sociedade no sentido de criação de uma forte barreira de convicção moral contra as interferências ilegítimas na liberdade individual Afora os atos que poderiam causar danos a outros no mais os indivíduos teriam direito a inteira independência Conforme observa David Held o princí pio da autoproteção gerou a defesa de muitas das liberdadeschave associadas como governo democrático liberal Held 1987 p 79 Essas liberdades estariam associadas àqueles atos em que a sociedade não teria interesse senão indireto Stuart Mill situa tais atos na região apropriada da liberdade humana o do mínio interior da consciência humana Tratase das liberdades de pensamento e de sentimento e a estas associadas a liberdade de expressão e publicação das opiniões em quaisquer assuntos Além dessas arrolamse as liberdades de asso ciação gostos ocupações e o direito do indivíduo de formular um plano de vida próprio em conformidade com seu caráter A defesa contra a interferência ilegítima da sociedade na conduta indivi dual não exclui os atos que se limitem a prevenir determinada pessoa de seguir um curso que lhe causará danos próprios Vícios privados como consumo des mesurado de bebidas alcoólicas falta de decoro na vida sexual ociosidade etc poderiam ocasionar prejuízo moral perda de credibilidade e isolamento social para o indivíduo consequências naturais da própria falta A fi m de prevenir que o indivíduo cause tais danos a si mesmo seria legítima a interferência es pecialmente por parte de pessoas mais próximas como os amigos Essa inter 298 ELSEVIER Curso de Ciência Política ferência no entanto deve se limitar à admoestação conselhos persuasão e até afastamento abstendose de atitude mais enérgica no sentido de punição contra o indivíduo A abstenção em relação ao faltoso consigo mesmo constitui além de exercício da própria liberdade por parte daquele que reprova determinada conduta instrumento de pedagogia moral que sem uso de penalidades adver tiria tanto ao faltoso como a outros dos danos que poderiam causar a si próprios 1121 Em defesa das minorias A defesa da liberdade individual está intimamente associada ao que se pode denominar uma verdadeira profi ssão de fé com relação aos direitos das minorias Mill introduz esse tema em Da liberdade ao abordar as razões pelas quais a sociedade deve absterse de interferir na ação de terceiros quando estas não lhe dizem respeito diretamente Em primeiro lugar a sociedade não deve interferir porque ela já possui instrumentos sufi cientes de educação e aprimora mento dos indivíduos Além de seus membros poderem absterse da companhia daqueles cujas atitudes reprovam ela também é senhora daquela época da vida em que as pessoas ainda não são consideradas adultas Nessa época escreve A sociedade teve absoluto poder sobre eles durante toda a primeira porção da existência teve todo o período da existência da menoridade em que lhe foi possível experimentar se lhe era facultado tornálos ca pazes de conduta racional na vida Mill 1963 p 93 Se em consequência dessa autoridade a sociedade deixar qualquer nú mero considerável de seus membros desenvolverse como simples crianças in capazes de reagirem à consideração racional de motivos distantes terá de cul parse a si mesma pelas consequências Mill 1963 p 94 Outro argumento empregado para justifi car por que a sociedade não deve interferir com terceiros é que quando interfere é mais provável que o faça er radamente e em lugar impróprio Mill 1963 p 95 Tanto o erro como o acerto da interferência advêm da mesma origem ou seja daquilo que a opinião pública considera acertado Porém a opinião pública nada mais é do que a opinião de uma maioria sobre o que considera certo ou errado imposto aos demais como lei Orientada pelo seu próprio padrão de julgamento a opinião pública que nos Estados Unidos era formada pelos brancos e na Inglaterra pela classe média impõe seus preceitos como dogmas religiosos tornando seus sentimentos pes soais de bem e de mal obrigatórios para os demais A Inglaterra no tempo de Mill oferecia inúmeros exemplos de imposição da opinião pública sobre as minorias Costumes remanescentes de antigas perse 299 Capítulo 11 John Stuart Mill a luta contra a opressão Aparecida Maria Abranches guições religiosas como a obrigação de confi ssão religiosa em tribunais denun ciariam a interferência na liberdade dos indivíduos de não professarem fé algu ma leis proibitivas de consumo e de venda de bebidas alcoólicas sob o pretexto de defesa dos direitos sociais eram elaboradas perseguições aos mórmons em virtude de sua doutrina admitir a poligamia eram exemplos de interferência na liberdade mesmo em uma nação ciosa do grau a que teria alcançado em termos de tolerância para com a diferença É na defesa dos direitos das mulheres que talvez Mill mais se destaque na memória dos estudiosos contemporâneos no que diz respeito às minorias Em Da liberdade há duas menções Uma no contexto em que o autor defende a liberdade mesmo quando esta conduz a escolhas que são contrárias às suas próprias opiniões Ao defender o direito dos seguidores da religião mórmon de exercitála livremente diz reprovar o fato de que nesta religião as mulheres constituíam a metade subjugada daquela comunidade enquanto a outra os ho mens era emancipada Essa situação seria um fl agrante de infração do princípio da liberdade Em outra referência critica o poder quase despótico dos maridos sobre as mulheres pedindo a remoção desse mal por meio da concessão às mulheres dos mesmos direitos que aos homens e proteção da lei Os argumentos em favor dos direitos das mulheres são mais detidamente desenvolvidos em The Subjection of Women2 Neste livro Stuart Mill argumenta que a subordinação das mulheres constituía um entrave à melhoria da humanidade Devido ao subde senvolvimento do caráter feminino das faculdades mentais e morais decorren tes da subordinação os homens se tornaram egoístas agressivos vaidosos e adoradores de sua própria vontade Held 1987 p 89 É nesta linha de argumentação a respeito das efeitos nocivos da subordi nação das mulheres para o caráter masculino que Mill defende a mais ampla li berdade de opinião associada a sua defesa dos direitos das minorias Quando a sociedade por meio da abstenção da coação moral naquilo em que os indivíduos não causem danos a outrem permite que as capacidades morais e intelectuais se desenvolvam ocorre que Na proporção do desenvolvimento da própria indivi dualidade cada pessoa se torna de maior valia para si mesma sendo portanto capaz de tornarse mais valiosa para outrem Mill 1963 p 72 Os progressos que a humanidade lograra até então haviam sido frutos da originalidade e da força de caráter daqueles que souberam combinar desejos e impulsos com as crenças e restrições que enfi m pelo exercício das faculdades de percepção jul gamento sentimento discriminatório e atividade mental puderam elevarse aci ma dos comuns Para que tais faculdades se desenvolvessem seria preciso que os 2 Sobre este livro ver Held 1987 300 ELSEVIER Curso de Ciência Política homens pudessem exercer a capacidade de escolha E para o exercício da escolha duas condições se fariam necessárias liberdade e variedade de situações Essas duas condições que segundo Mill poucos ingleses estariam aptos a compreender e aceitar foram postuladas por Wilhelm Humboldt que defendera que a meta para a qual todo homem deveria se voltar com vistas à infl uência benéfi ca sobre os seus semelhantes era a da individualidade do poder e do desenvolvimento Essa defesa da individualidade se faz em meio ao que o autor considera o império do costume e da uniformidade enrijecidos sob o infl uxo da massa da opinião pública representada na fi gura dos reformadores sociais puritanos e so cialistas Berlin 1981 Neste contexto em que o costume e a tradição estariam prevalecendo sobre o caráter Mill adverte sobre a perigosa indiferença quanto à liberdade individual Ao sustentar esse princípio o de que em questões que não se relacio nem com terceiros a individualidade deve afi rmarse a maior difi cul dade com que se depara não consiste na apreciação dos meios para cer tos fi ns reconhecidos mas a indiferença das pessoas em geral para com o próprio fi m Se todos sentissem constituir o livre desenvolvimento da individualidade um dos elementos essenciais do bemestar que não é só elemento coordenado com tudo quanto se designa pelos termos civi lização instrução educação cultura mas forma por si parte e condição necessária de tudo quanto há não haveria perigo que se subestimasse a liberdade e deixaria de apresentar difi culdade o ajustamento entre ela e o controle social Mill 1963 p 64 A desatenção para com a liberdade poderia acarretar prejuízos tanto para o autodesenvolvimento quanto para a humanidade Eliminadas as condições que permitem aos indivíduos desenvolver suas faculdades natas resultariam seres amesquinhados incapazes de traçar um plano de existência próprio Para ele As faculdades humanas de percepção julgamento sentimento discrimina tório atividade mental e até preferência moral exercitamse somente quando se procede a uma escolha Quem faz qualquer coisa por ser costume não está esco lhendo Mill 1963 p 66 Aleijados das qualidades que lhes tornam humanos homens e mulheres de nada serviriam para o progresso moral e intelectual da humanidade Outro argumento em defesa das minorias relacionase com a sua discus são a respeito da disputa em torno da questão da verdade No segundo capítulo Mill introduz o tema hasteando a bandeira em favor da liberdade de opinião e de expressão O princípio que norteia toda a sua refl exão e defesa é o da discus são livre Colocando em perspectiva o bemestar da humanidade observa 301 Capítulo 11 John Stuart Mill a luta contra a opressão Aparecida Maria Abranches Mas o mal peculiar inerente ao silenciamento da expressão de uma opi nião consiste em que está roubando a raça humana tanto a posteridade quanto a geração existente os que discordam da opinião ainda mais do que quantos a sustentam Se a opinião for acertada fi cam privados da oportunidade de substituir a verdade ao erro se for errada perdem o que importa em benefício quase tão grande a percepção mais clara e a impressão mais viva da verdade produzida pela colisão com o erro Mill 1963 p 20 Desta proposição o autor deriva duas hipóteses que são consideradas se paradamente uma em que a opinião seja considerada falsa outra em que ela seja considerada verdadeira para fi ns de permitilhe o confronto com a opinião acei ta Na primeira hipótese o erro fundamental é a presunção de infalibilidade Recusar ouvir uma opinião porque estão certos de que ela é falsa im porta em supor que a certeza deles é o mesmo que certeza absoluta Todo silenciamento de discussão implica em hipótese de infalibilida de Pode concederse baseiese a condenação neste argumento comum nem por isso é pior por ser comum Mill 1963 p 21 O problema não é que os homens se considerem infalíveis pois não se consideram mas que não tomem precauções contra a falibilidade admitindo que a opinião que professam possa estar errada A certeza pode vir da concor dância coletiva baseada no que seria a infalibilidade do mundo em geral Nesse caso o que não se percebe é que geralmente o mundo para cada indivíduo signifi ca a parte do mundo com a qual entra em contato o partido a seita a Igreja a classe da sociedade a que pertence Mill 1963 p 22 Tal indivíduo confi ante na autoridade coletiva observa Mill não se abala nem quando percebe que outras épocas países seitas igrejas classes e partidos pensaram e pensam mesmo agora exatamente o contrário Mill 1963 p 22 Essa presunção de certeza não considera que as épocas não são mais infalíveis do que os indivíduos e fundada no seu próprio mundo ignora os os mundos discordantes das outras pessoas A melhor maneira de se precaver contra falibilidade é a mais completa liberdade de opinião e de expressão Para que a verdade de uma opinião pos sa ser atestada é preciso considerar que Existe a maior diferença entre supor verdadeira uma opinião porque com todas as oportunidades para contestála não foi refutada e supôla verdadeira para o fi m de não permitir que a refutem Mill 1963 p 23 Desse modo pontifi ca A completa liberdade de contradição e desaprovação da nossa opinião é a condição única que nos justifi ca supôla verdadeira para fi ns de ação e em nenhuma outra condição pode um ser com fa 302 ELSEVIER Curso de Ciência Política culdades humanas ter qualquer segurança racional de estar com a razão Mill 1963 p 23 Em outro trecho ele escreve O hábito fi rme de corrigir e completar a própria opinião cotejandoa com a de outras pessoas longe de causar dúvida e hesitação ao pôla em prática é o único fundamento estável para que se tenha confi an ça nela eis que tomando conhecimento de tudo quanto pelo menos obviamente podese dizer contra ele tendo assumido posição contra todos os contraditores sabendo ter ido em busca de objeções e difi culdades ao invés de evitálas certo de não ter posto de lado qualquer esclarecimento de qualquer origem que fosse tem o direito de pensar que seu julgamento é melhor o do que o de outra pessoa ou de qual quer multidão que não tenha passado por semelhante processo Mill 1963 p 25 Na segunda hipótese Mill analisa as vantagens que resultam para uma opinião estabelecida do confronto com outra que se lhe apresente como rival sendo necessário para isso supôla verdadeira De acordo com essa hipótese mesmo que se tenha certeza de que uma opinião seja falsa abafála ainda seria um mal Eis como ele apresenta a proposição Passemos agora para a segunda divisão do argumento e afastando a hipótese de que possa ser falsa qualquer das opiniões recebidas vamos supôlas verdadeiras examinando o valor da maneira pela qual é pro vável venha a considerarse quando não se encara livre e abertamente a verdade que encerram Seja qual for a relutância com a qual alguém que possui forte opinião admita a possibilidade de ser ela falsa deve sentirse abalado ao considerar que por mais verdadeira que seja se não for discutida inteira frequente e destemerosamente poderseá reputála como dogma morto e não verdade viva Mill 1963 p 40 Quando uma opinião estabelecida não é submetida ao debate seja por se presumila verdadeira seja por ausência de ambiente que permita a livre ex pressão das ideias resultam as seguintes consequências maléfi cas Primeiro um prejuízo para a cultura do entendimento à medida que o necessário conheci mento dos fundamentos de uma doutrina passa a ser desprezado Nesse caso quando não há o constante exercício de discussão de tais fundamentos à sua defesa quando for necessária faltará a necessária convicção para que ela não ceda terreno ante o mais leve simulacro de argumentação Segundo além de ignorantes dos fundamentos os homens também deixam de sentir a signifi cação das ideias que esposam 303 Capítulo 11 John Stuart Mill a luta contra a opressão Aparecida Maria Abranches Contudo a verdade é que não só se esquecem os fundamentos da opi nião na falta de discussão como frequentemente até a signifi cação da própria opinião As palavras que formulam deixam de sugerir ideias ou sugerem tão só pequena porção daquelas para as quais originaria mente se empregavam Em lugar de concepção vigorosa e crença viva restam apenas pequenas frases retidas de cor ou se alguma parte so mente se retém o invólucro externo perdendose o âmago mais precio so Mill 1963 p 45 Esse seria o caso da maioria dos crentes em relação às doutrinas cristãs Máximas como dever amar o próximo como a si mesmo vender tudo o que tem e dar aos pobres entre outras embora possam ser apregoadas com sinceridade a maioria não pensa realmente praticálas Eis o resultado do fato de as pesso as receberem uma doutrina não por convicção mas como credo hereditário não ativamente mas passivamente Quando os indivíduos não podem defender as opiniões que professam baseados em fundamentos e quando não lhes sente a signifi cação a doutrina perde a vitalidade Ela até pode continuar existindo mas deixa de progredir As condições e procedimentos segundo os quais se pode evitar a morte de uma opinião prevalecente consistem em propiciar um ambiente para a livre discussão o que remete à cultura e às instituições políticas de uma nação em que os defensores de determinadas ideias que julguem verdadeiras devem estar dispostos a ouvir o lado oposto pois aquele que só conhece seu próprio lado da questão pouco sabe dela Mill 1963 p 42 É mister agir como Cícero que sempre estudava o caso do adversário estudandoo com maior empenho até do que aquele que defendia O procedimento exige ainda que se escute a defesa de uma ideia diretamente daqueles que a professam realmente que a defendem com vigor Só assim a questão pode ser apreciada da forma mais plausível e persuasiva e com isso depararse com as difi culdades reais na defesa do próprio argumento Pondo em prática esse método dialógico na aferição da verdade de uma ideia Mill como em várias outras passagens de Da liberdade colocase no lu gar daqueles que poderiam objetarlhe estar postulando a falta de unanimidade como condição indispensável do verdadeiro conhecimento Ao que ele res ponde que com o aperfeiçoamento dos homens o número de doutrinas não mais disputadas ou duvidosas irá aumentando constantemente Mill 1963 p 50 sendo essa situação até mesmo um fator de bemestar dos homens Porém a despeito do bem que tal redução das ideias discordantes possam propiciar nem por isso podemos estar certos de que todas as suas consequências sejam 304 ELSEVIER Curso de Ciência Política benéfi cas A perda oriunda daquela situação é evidente ou seja a perda de tão importante auxílio à apreensão inteligente e vívida da verdade Mill 1963 p 50 Mesmo que os homens alcancem um grau tão elevado de concordância ainda seria possível e mesmo necessário manter o procedimento dialógico o método de discussão negativa Ele lembra as dialéticas socráticas e as dis cussões escoláticas da Idade Média que obrigavam os argumentadores a reve rem sempre os fundamentos de suas ideias e com isso fomentar o progresso da cultura do entendimento Mill analisa ainda uma terceira hipótese além das duas precedentes De acordo com estas pode ser falsa a opinião aceita e em consequência alguma outra verdadeira ou sendo verdadeira a opinião aceita ser essencial um confl ito com o erro oposto Mill 1963 p 52 Eis como é apresentada a terceira hi pótese Existe porém caso mais comum do que qualquer um destes quando as doutrinas em confl ito em lugar de serem uma verdadeira e outra falsa dividem entre si a verdade da qual a doutrina aceita inclui tão só parte Mill 1963 p 52 Uma opinião aparentemente falsa poderá conter fragmento da verdade que falta a uma outra Sendo as opiniões geralmente tão só meiasverdades por serem os homens falíveis é de desejarse que opostos se reconciliem e com binem por meio de ardorosos combates Em tais combates é provável que o fragmento de verdade que falta esteja exatamente do lado daqueles que estão em minoria como exceção à opinião comum Ele dá como exemplo as ideias de JeanJacques Rosseau numa época em que eram certos os progressos da hu manidade em que os homens perdiamse em admiração pelo que se chama civilização Mill 1963 p 53 Nesse contexto escreve com que choque explodiram os paradoxos de Rosseau como se fossem bombas nesse meio des locando a massa compacta da opinião lateral e forçandolhes os elementos a se recombinarem sob melhor forma e com ingredientes adicionais Mill 1963 p 53 Para o bem a humanidade é bom que os homens desconfi em de opiniões dominantes e dêem ouvidos à parcela em minoria pois é sempre provável que os dissidentes tenham algo a dizer digno de ouvirse e que a verdade per deria algo se não se manifestassem Mill 1963 p 55 113 O Governo Representativo Em Da liberdade há duas preocupações fundamentais a limitação da in terferência legítima da sociedade na liberdade individual e a livre expansão das capacidades individuais ou melhoramento dos indivíduos Fundamental para a realização de ambas seriam o respeito para com as minorias e o direito de estas 305 Capítulo 11 John Stuart Mill a luta contra a opressão Aparecida Maria Abranches se expressarem livremente Essas preocupações norteiam outra obra Considera ções sobre o Governo Representativo publicada em 1861 Nesse trabalho Mill defende a democracia como a melhor forma de gover no conciliandoa com o Estado liberal Mill fi gura entre os pensadores liberais entre os quais nos lembramos de Madison que procuram equacionar a questão sobre a combinação possível ou não entre a liberdade e a igualdade De acordo com John Rawls a controvérsia sobre a melhor forma de expressar os valores da liberdade e da igualdade situase na tradição do pensamento democráti co associada a Locke de um lado que dá maior peso ao que Constant chamava as liberdade dos modernos as liberdades de pensamento e consciência certos direitos básicos da pessoa e de propriedade e o império da lei e a de Rous seau de outro que dá mais peso ao que Constant chamava de as liberdades dos antigos as liberdades políticas iguais e os valores da vida pública Rawls 1993 p 467 Stuart Mill situase nesse debate ao que tudo indica procurando conciliar e recombinar opiniões contraditórias que nesse caso tratase da con vergência entre os princípios do Estado liberal e os da democracia Seguindo o propósito de encontrar e promover uma convergência salutar entre os dois princípios ele descarta a possibilidade de que a democracia seja praticada de forma direta defendendo como a forma idealmente melhor a democracia representativa As razões por que a democracia direta é objeto de sua recusa fi cam evidentes em Da liberdade Primeiro pelo que constata ser a tirania da maioria e em segundo pelo mal que essa tirania poderia causar ao livre desenvolvimento individual e consequentemente ao desenvolvimento da humanidade como um todo Em um contexto em que a soberania popular se erigia como fonte da legitimidade política a conciliação entre dois poderes por si sós enérgicos o do Estado e o do povo exigia limitações constitucionais para que não exorbitassem em relação aos indivíduos ou melhor em relação àque les cujas opiniões se encontrassem em minoria Desse modo conforme observa Held 1987 Mill percebeu a tirania da maioria e o fl orescimento do poder go vernamental como duas ameaças interrelacionadas Devido a essas ameaças que seriam os dois perigos fundamentais da época moderna Mill concentra sua atenção à relação entre burocracia e democracia examinandolhes as vantagens e desvantagens com vistas a encontrar o melhor equilíbrio entre elas Antes de prosseguir na análise da relação entre burocracia e democracia convém obser var como ao contrastar essas duas formas Mill introduz um elemento novo à clássica tipologia das formas de governo as quais segundo Aristóteles podem ser defi nidas como governo de um monarquia de poucos aristocracia e de mui tos democracia 306 ELSEVIER Curso de Ciência Política Embora defensor irrelutante da democracia Mill não descarta as outras como formas não virtuosas de governo as quais teriam sido necessárias ou ain da o seriam em contextos sociais e culturais que não apresentassem as con dições favoráveis ao Governo Representativo Para esta forma de governo o representativo três condições seriam indispensáveis 1 que o povo esteja dis posto a recebêlo 2 que esteja disposto e seja capaz de fazer o que for necessário para preserválo 3 que esteja disposto e seja capaz de cumprir com os deveres e desempenhar as funções que lhe impõe Mill 1964 p 50 A terceira é funda mental para as outras duas É devido à ausência da terceira condição que a monarquia absoluta não apenas se justifi cara ou se justifi ca como também proporcionara as circuns tâncias para que monarcas de vigor e talento surgissem na História tais como Elizabeth Henrique IV e Gustavo Adolfo Em tais contextos o povo ainda não havia aprendido a primeira lição de civilização a da obediência Nas suas palavras Raça que tivesse recebido treino em energia e coragem pelas lutas con tra a natureza e contra vizinhos mas que ainda não se houvesse fi xa do em obediência permanente a qualquer superior comum mui pouco provavelmente adquiriria semelhante hábito sob o governo coletivo do seu próprsio corpo A assembleia legislativa que se formasse com os seus próprios elementos refl etiria simplesmente a própria insubordina ção turbulenta Recusaria aprovação a todos os procedimentos que im pusessem à selvagem independência de que gozam qualquer restrição visando ao aperfeiçoamento Mill 1964 p 53 Se no caso acima o povo caracterizase por ser ativo demais justifi cando a monarquia há outros em que ocorre exatamente o oposto também justifi can do a mesma essa forma de governo Tratase da situação em que o povo se carac teriza pela passividade extrema e pronta submissão à tirania Nesse caso se um povo assim prostrado pelo caráter e pelas circunstâncias obtives se instituições representativas escolheria inevitavelmente os tiranos como representantes e o jugo se tornaria mais pesado pelo dispositivo que prima facie seria de esperarse tornálo mais leve Mill 1964 p 53 Foi com o auxílio de uma autoridade central que povos assim puderam de senvolver as capacidades de autogoverno Homens como Hugo Capeto Riche leu e Luís IV são citados como exemplares de atitudes que reprimem déspotas locais chamando a si a fé e a esperança de todos os reprimidos localmente Outro obstáculo ao governo representativo também superado por monarquias ilimitadas é o espírito regional inveterado Podemos dizer tratarse de situa 307 Capítulo 11 John Stuart Mill a luta contra a opressão Aparecida Maria Abranches ções em que as rivalidades locais e regionais impedem a solidariedade nacional condição para o que ele diz ser a primeira lição de civilização a obediência Além das causas acima enumeradas que tornam o governo representa tivo inaplicável e justifi ca a monarquia absoluta há ainda outras que se não corroboram uma defesa da aristocracia assinalam a justifi cação de um elemento aristocrático na forma de arranjo que deverá ter o governo representativo tal como Stuart Mill o idealiza Verifi quemos quais são essas causas e suas conse quências na seguinte passagem Podese assinalar em um povo uma centena de outras enfermidades ou defi ciências que por tanto o tornam incapaz de tirar o melhor pro veito do governo representativo quanto a estas contudo não é igual mente evidente que o governo de um ou de poucos revele qualquer tendência a curar ou remediar o mal Fortes preconceitos de qualquer espécie adesão obstinada a velhos hábitos defeitos positivos do ca ráter nacional ou simples ignorância e defi ciência de cultura mental se prevalecerem em um povo refl etirseão fi elmente nas assembleias legislativas e se acaso a administração executiva a gerência direta dos negócios públicos estiver nas mãos de pessoas comparativamente li vres de tais defeitos frequentemente maior bem resultará para eles se não se virem tolhidos pela necessidade de se submeterem ao assenti mento voluntário de tais corpos Mill 1964 p 56 Dentre essas enfermidades a defi ciência de cultura mental que pode re fl etirse na assembleia representativa constitui preocupação de Mill quanto à extensão do sufrágio o que vai leválo à proposição do voto plural como vere mos mais adiante O que importa nesse momento é assinalar que relativamente à baixa cultura mental que o governo popular ou democracia possa exibir Mill extrai da defi nição clássica do governo aristocrático a ideia aristotélica de que este seria o governo dos melhores Mill utliza esse elemento aristocrático para qualifi car o papel da burocracia nas democracias modernas No entanto embora ele impute elementos qualifi cadores como treinamento experiência e preparo intelectual e profi ssional à burocracia para as atividades do governo indica tam bém os males que o insulamento e agigantamento burocráticos podem produ zir nos governos democráticos A passagem a seguir ilustra as conveniência e inconveniência do governo de poucos em contexto de baixa cultura intelectual O caso que exige mais acurada consideração com referência às insti tuições é o que muita vez se depara de porção pequena mas dirigen te da população de raça diferente de origem mais civilizada ou de outras particularidades de circunstâncias marcadamente superior em 308 ELSEVIER Curso de Ciência Política civilização e caráter geral a todo o resto Em tais condições o governo pelos representantes da massa teria a oportunidade de privar o povo de grande parte do benefício que lhe adviria da maior civilização das fi leiras superiores enquanto o governo pelos representantes destas pro valvemente fi rmaria a degradação da multidão e nenhuma esperança lhes deixaria de tratamento decente senão libertandose dos elementos mais valiosos de adiantamento futuro Mill 1964 p 57 Então se por um lado o governo dos melhores pode resultar em bene fícios para a nação por outro pode resultar em degradação da massa dos ci dadãos à medida que esta seria privada de tomar parte no governo Em outra passagem o tipo de benefício resultante da restrição do governo a poucos fi ca mais claro Referindose à aristocracia como burocracia cuja defi nição é gover nantes por profi ssão Mill escreve que a estima de que gozavam as aristocracias por profi ssão em governos em que elas fl oresceram como os de Veneza e de Roma estava diretamente relacionada ao sucesso externo e engrandecimento do Estado A felicidade e melhoramento do povo não eram as metas desse tipo de governo Tais metas são as que devem perseguir um governo popular sendo necessário que as instituições políticas sejam de tal forma que permitam o maior número possível de cidadãos tomarem parte nas funções públicas Promovese o autodesenvolvimento dos indivíduos permitindolhes que exerçam suas ca pacidades morais e intelectuais por um lado excluindo o menor número possível do sufrágio por outro facultando a todas as classes de cidadãos a mais ampla participação nos detalhes das questões judiciárias e administrativas como pelo julga mento por juri admissão a cargos municipais e acima de tudo pela maior publicidade possível e liberdade de discussão Mill 1964 p 75 Ao difundir esses mecanismos de inclusão política o governo democráti co representativo não apenas promove o autodesenvolvimento como também passa a dispor de efi ciente remédio contra um mal característico da burocracia Embora a burocracia seja vantajosa porque acumula experiência ela tende à rotina o que a faz perder em vitalidade A rotina é uma enfermidade que ataca os governos burocráticos e da qual vem a morrer A burocracia tende sempre a tornarse pedantocracia O governo popular propicia um ambiente dinâmico ao introduzir um elemento externo de liberdade evitando a prostração bu rocrática Esse elemento externo caracterizarse pela crítica vigilante de capa cidade igual exterior ao corpo Mill 1963 p 127 Assim como em Da liberdade ele defende que a liberdade de expressão é necessária ao desenvolvimento das faculdades humanas o mesmo ele defende em relação à burocracia no sentido do seu próprio melhoramento 309 Capítulo 11 John Stuart Mill a luta contra a opressão Aparecida Maria Abranches 1131 Os perigos do Estado agigantado3 e da tirania da maioria Mill identifi ca a origem da burocracia nas aristocracias profi ssionais ou aristocracias de funcionários públicos as quais se distinguem das aristocracias defi nidas pela posição social como a da Inglaterra As aristocracias por profi s são adquirem treinamento específi co para a administração dos negócios públi cos enquanto as do outro tipo adquirem esse treinamento por dever hereditário de exercer tais funções A importância de se salientar essa origem profi ssional é poder associála à expansão do poder do Estado como um dos perigos junto com a tirania da maioria às liberdades individuais e aos benefícios que essas liberdades poderiam proporcionar ao autodesenvolvimento pessoal Em Da li berdade Mill adverte que quanto mais científi ca e efi ciente for a burocracia não só os governados mas também os seus membros e os governantes tornamse escravos Os governantes são escravos da própria organização e disciplina tan to quanto os governados em relação aos governantes Mill 1963 p 127 O enrijecimento burocrático quando concentra em si todas as atividades gover namentais impede que as capacidades mentais gerais do povo se desenvolvam Então escreve ele embora os indivíduos talvez não realizem tão bem o que se tem vis ta como os funcionários do governo seria de desejar o fi zessem aque les de preferência a estes como elemento da própria educação mental maneira de aumentarlhes as faculdades ativas fazendoos exercitar o julgamento e proporcionandolhes conhecimento familiar dos assuntos que de tal modo lhes passa à esfera de ação Mill 1963 p 123 Além de não proporcionar meios para a educação mental e desenvolvi mento do interesse pelas questões públicas haveria risco para a própria gover nabilidade Quando os indivíduos em tudo passam a depender do Estado e dos seus funcionários se o Estado não consegue corresponder às expectativas há risco de revolução Em países de civilização mais adiantada e de espírito mais insubordi nado o público acostumado a esperar tudo faça o Estado por ele ou pelo menos nada faça por si mesmo não só sem pedir licença ao Estado para fazer mas até mesmo como deve ser feito consideram natural mente o Estado responsável por todo mal que lhes acontece e se o mal ultrapassa a paciência de que dispõem levantamse contra o governo fazendo o que chama de revolução Mill 1963 p 126 3 Faço uso da expressão usada por Held 1987 310 ELSEVIER Curso de Ciência Política Stuart Mill ilustra o que seria tal Estado agigantado com o que seria o bom désposta Leiamos um trecho dessa alegoria que lhe abre caminho para escrever sobre as virtudes do governo representativo A suposição consiste em que o poder absoluto em mãos de indivíduo eminente asseguraria execução virtuosa e inteligente de todos os deve res do governo Estabelecerseiam boas leis que passariam a vigorar reformarseiam leis más colocarseiam os melhores homens em to das as posições de confi ança a justiça seria tão bem administrada os ônus públicos tão leves e tão judiciosamente impostos todos os ramos da administração conduzidos tão pura e inteligentemente quanto as cir cunstâncias do país e o seu grau de cultura intelectual e moral o permi tissem Inclinome de boa vontade a conceder tudo isso no interesse da argumentação devo porém assinalar quão ampla é a concessão de quanto mais se precisa conseguir até mesmo certa aproximação de tais resultados do que se exprime pelas simples palavras bom déspota Obtêlos importaria de fato em terse não simplesmente bom monarca mas um que tudo visse Teria de ser informado em todas as ocasiões corretamente com detalhe considerável da conduta e do funcionamento de cada ramo da administração em todos os distritos do país e teria de ser capaz nas vinte e quatro horas por dia que são tudo quanto se concede tanto a um rei quanto ao mais modesto dos trabalhadores para que dispense parte efetiva de atenção e supervisão a todos os elemen tos desse vasto campo ou pelo menos terá de ser capaz de distinguir e escolher dentre a massa dos súditos não somente grande abundância de homens honestos e capazes em condições de conduzirem todos os ramos da administração pública sob supervisão e controle mas também o menor número de homens de virtudes e talentos eminentes merecedo res de confi ança não só para agirem independentemente de supervisão mas para exercêla sobre terceiros Tão extraordinárias são as faculdades e energias exigidas para a execução dessa incumbência de qualquer ma neira suportável que o bom déspota que estamos supondo difi cilmente se poderia imaginar como consentindo em encarregarse dela a menos que fosse para evitar males intoleráveis e como preparo intermediário para algo por vir Mas o argumento vale mesmo sem esta imensa relação no cômputo Suponhase desaparecida a difi culdade Que teríamos en tão Um homem de atividade mental superhumana gerindo os negócios de um povo mentalmente passivo A própria ideia de poder absoluto importa em semelhante passividade A nação como um todo e todos os indivíduos que a compõem fi cam privados de qualquer voz potencial no próprio destino Não exercem qualquer vontade com respeito a seus interesses coletivos Uma vontade que não a deles tudo decide sendo 311 Capítulo 11 John Stuart Mill a luta contra a opressão Aparecida Maria Abranches legalmente crime desobedecerlhe Que espécie de seres humanos se for mariam sob semelhante regime Que desenvolvimento atingiriam o pen samento ou as faculdades ativas desse povo Mill 1964 p 3435 Ainda que tal déspota por ser bom não exercesse poder repressivo so bre os súditos não conseguiria proporcionarlhes o bem que só pode resultar de governo livre o caráter ativo e independente Tal caráter é o que Mill entende por melhoramento do povo e que se obtém por meio de instituições políticas que promovam a liberdade Por isso escreve Não há difi culdade alguma em mostrarse que a forma de governo ideal mente melhor é aquela em que a soberania ou poder controlador supre mo em última instância se encontra investido no agregado inteiro da co munidade tendo cada cidadão não só voz nessa soberania extrema mas sendo chamado pelo menos acidentalmente a tomar parte realmente no governo pelo desempenho de alguma função pública local ou geral Mill 1964 p 39 A superioridade do governo popular reside em dois princípios a autopro teção e autodependência O primeiro tem como substrato o fato de que cada um é único guardião seguro dos próprios direitos e interesses Mill 1964 p 40 o segundo que os indivíduos realizam melhor os seus interesses desenvolvendo capacidades convenientes se não fi cam na dependência de terceiros A admissão desses princípios não signifi ca afi rmação de que os homens sejam universalmen te egoístas O contrário desse egoísmo se verifi caria mesmo nas elites políticas e empresárias da época que fazem de boa vontade sacrifícios consideráveis especialmente de seus interesses pecuniários em benefício das classes trabalha doras Mill 1964 p 41 No entanto seria exatamente o excesso de zelo e de consideração pelo próximo que estaria produzindo maior mal aos trabalhadores e erram antes por benefi ciálas prodigamente e sem discriminação Mill 1964 p 40 Em contexto de exclusão política da classe trabalhadora o parlamento fi ca privado de saber o ponto de vista dessa classe a qual se tivesse representação estaria em melhores condições de defender seus interesses Sobre isso escreve É condição inerente aos negócios humanos que nenhuma intenção por mais sincera que seja de proteger os interesses de outrem a torne segu ra ou salutar se começarmos por atarlhes as mãos E ainda é mais evi dentemente verdadeiro que somente pelas próprias mãos se conseguirá qualquer melhoramento positivo e duradouro das suas circunstâncias na vida Por meio da infl uência conjunta desses dois princípios todas as comunidades livres aboliram a injustiça social e o crime e alcança ram prosperidade mais brilhante Mill 1964 p 42 312 ELSEVIER Curso de Ciência Política A democracia apresentase ainda vantajosa pelo efeito moral que exerce sobre os indivíduos no que diz respeito à sua relação com o outro Mill examina essa questão classifi cando os homens em tipos passivos e tipos ativos O pri meiro tipo é favorecido se não estimulado pela monarquia e pela aristocracia enquanto o segundo pela democracia O problema moral do tipo passivo é que lhe apraz a inatividade do outro pois lhe aumenta o sentimento de segurança e de consideração própria O passivo é uma pessoa satisfeita com o que tem e não deseja que outro tenha aquilo que ele próprio não é capaz de alcançar A passivi dade produz pessoas invejosas e incapazes de se empenharem em qualquer ati vidade que represente melhoramentos coletivos Ela produz seres fracos ames quinhados O ativo ao contrário é empreendedor que ao fazer o melhor para si o faz por todos direta ou indiretamente O governo democrático favorece esse tipo humano franqueandolhe a igualdade de condições Ele diz ainda que relativamente a governo parcialmente popular em que mesmo os que não partilham dos privilégios completos da cidadania usufruem liberdade Constitui contudo grande estímulo adicional à iniciativa e confi ança em si próprio de qualquer um quando sente estar em igualdade de con dições sem se preocupar que o êxito depende da impressão que venha a causar aos sentimentos e disposições de um corpo a que não pertence Mill 1964 p 47 Além da extensão dos direitos políticos o governo popular estimula o ser ativo à medida que lhe dá algo para fazer a favor do público Esse dispositivo constitui remédio contra o confi namento na vida privada e o desinteresse pelo público Dessa forma Obrigamno a sentir parte do público e tudo quanto for para o benefício deste sêloá também para ele Mill 1964 p 49 Nesse sentido o governo democrático constitui verdadeira escola de espírito público e por estas razões Mill defende o governo democrático representativo e não direto tal como na concepção de Rousseau Eis como ele se expressa Por todas essas considerações é evidente que o único governo capaz de satisfazer inteiramente todas as exigências do estado social é aquele em que o povo todo participe que é útil qualquer participação mesmo nas funções públicas mais modestas que a participação deverá ser por toda a parte tão grande quanto o grau geral de melhoramento da comunida de o permita e que é de desejarse como situação extrema nada menos do que a admissão de todos a uma parte do poder soberano Todavia desde que é impossível a todos em uma comunidade que exceda a uma única cidade pequena participarem pessoalmente tão só de algu 313 Capítulo 11 John Stuart Mill a luta contra a opressão Aparecida Maria Abranches ma porções muito pequenas dos negócios públicos seguese que o tipo ideal de governo perfeito tem de ser o representativo Mill 1964 p 49 Até esse ponto foram apresentadas as virtudes da democracia relativa mente a outras formas de governo e ao predomínio que o Estado possa vir a ter em sociedade de massa Resta agora discorrer sobre as enfermidades de que pa decem a democracia Enfermidades essas que explicam o porquê da preferência de Mill pelo governo representativo mas arranjado de uma determinada forma como veremos Na citação anterior a justifi cação do governo representativo fun dase na ideia de que nas condições de democracia de massa não seria possível a participação direta tal como na Grécia clássica e como proposto por Rousseau Doravante são apresentadas razões que dizem respeito à natureza humana e às limitações de inteligência e preparo dos homens Essa parte da discussão é a que mais diretamente diz respeito ao problema da tirania da maioria e como encon trar soluções institucionais que lhe mitiguem a infl uência Se a democracia é superior às outras formas de governo porque promove maiores esclarecimento e independência do público por outro lado ela não se distingue das demais igualandose em defi ciência por duas razões a existência de interesses sinistros isto é egoístas tanto nos homens em geral como nos governantes e a orientação por interesses imediatos em oposição aos reais Esse segundo tipo de interesse deriva da falta de inteligência da capacidade de se perceberem os benefícios de longo prazo que possam resultar de uma ação no presente Mill argumenta que quanto a estes últimos mesmo reis neles in correram promovendo benefícios para uma geração inteira sem perceber que na verdade o que faziam era pavimentar o caminho para a escravidão Se até por governantes supostamente esclarecidos tais equívocos foram cometidos por que não duvidar que o governo de maioria numérica não possa neles incorrer também Pergunta o autor Além dessas duas causas derivadas da natureza hu mana e estimuladas pelas circunstâncias devese considerar o efeito que o po der exerce sobre os homens No momento em que um homem ou uma classe de homens se acha com o poder nas mãos os interesses individuais do homem ou os in teresses distinto da classe adquiremlhe aos olhos grau inteiramente novo de importância Vendose adorado por outros tornase adorador de si mesmo e julgase que tem o direito de ter o próprio valor contado cem vezes mais do que o de outras pessoas enquanto a facilidade que adquire de fazer o que quer sem pesar consequências enfraquece in sensivelmente os hábitos que fazem os homens fi car na expectativa das consequências capazes de afetálos Mill 1964 p 85 314 ELSEVIER Curso de Ciência Política Pela combinação dos interesses egoístas e imediatos e a ascensão ao poder explicase a corrupção a que estão sujeitas todas as formas de governo Por isso Temse de instituir governos para os seres humanos como são ou como sejam capazes de se tornar rapidamente Mill 1964 p 85 Na democracia portanto o sistema representativo se faz necessário não apenas pela impossibilidade de participação direta mas também para prevenir tais riscos de corrupção Por isso o sistema representativo deve ser arranjado de maneira tal que previna tanto o prevalecimento dos interesses sinistros da maioria sobre as minorias como a ofuscação dos mais capazes nos negócios públicos A solução proposta por Mill é a adoção do modelo de representação proporcional de Thomas Hare e a adoção do voto plural O primeiro corrigiria principalmente o problema do risco de prevalecimento dos interesses egoístas da maioria assegurando a re presentação da minoria o segundo principalmente contornaria o problema da defi ciência de inteligência no governo popular Embora Mill defenda a democracia e a maior inclusão possível de pessoas no sufrágio ele é na verdade bastante cético quanto à participação popular Sem dúvida alguma suas precauções dizem respeito à afl uência da classe trabalhado ra ao universo da cidadania política pela extensão do sufrágio universal Essa era a principal reivindicação do movimento cartista de meados da década de 1830 até a década de 1840 quando é derrotado Além de seus próprios temores Mill expressa a apreensão das elites da época incluindo aí a classe média que havia conquistado direitos políticos em 1832 e às quais o conceito de demo cracia popular era estranho segundo Karl Polany4 quanto ao que lhe parecia ser a inevitabilidade do sufrágio universal Na sua defesa do voto plural exorta seus compatriotas mas como chegará certamente a ocasião em que a única escolha possível será entre este o voto plural e o sufrágio universal quem não desejar o último não pode deixar de começar desde já a reconciliarse com o primeiro Mill 1964 p 119 Sem dúvida Mill reconhece que há pessoas qualifi cadas e de visão mais ampla na classe trabalhadora como os mais especializados e os membros dos sindicatos Em uma discussão a respeito da equalização dos salários na época os trabalhadores mais experientes e qualifi cados se opunham a medida prevendo como ela poderia afetar negativamente a atividade industrial Esses constitui riam a elite da classe trabalhadora porém padeceria do mesmo mal que todas as outras minorias a de não serem ouvidos Então o sistema representativo de veria ser de tal forma organizado que permitisse o equilíbrio entre as diversas minorias de classe sexo território etc e a maioria Na ausência de um arranjo 4 Ver Karl Polanyi 2000 315 Capítulo 11 John Stuart Mill a luta contra a opressão Aparecida Maria Abranches que permita a representação das minorias a democracia seria tão somente fal sa democracia A democracia pura é o governo de todo o povo pelo povo todo igualmente representadoMill 1964 p 88 No entanto o que se praticava era o governo de todo o povo por simples maioria do povo exclusivamente representada Mill 1964 p 88 A primeira afi rma o princípio da igualdade enquanto a última o privilégio sendo portanto falsa democracia 1132 O sistema de representação proporcional e o voto plural Dois dispositivos poderiam garantir que a democracia pura se efetivasse a representação proporcional e o voto plural De acordo com Jairo Nicolau A representação proporcional tem duas preocupações fundamentais a assegurar que a diversidade de opiniões de uma sociedade esteja refl etida no Parlamento e b garantir a equidade matemática entre os votos dos eleitores e a representa ção parlamentar Nicolau 2002 p 31 Estas são duas das vantagens que Stuart Mill viu na proposta de sistematização da representação proporcional feita por Thomas Hare em Tratado sobre eleição de representantes parlamentar e municipal publicado em 1851 Resumidamente Hare propunha que o número de cadeiras do parlamento fosse divido pelo número de eleitores obtendose com essa conta a quota a ser alcançada para fi ns de eleição do representante Este sistema ga rantiria a representação nacional pois o eleitor poderia votar em candidatos de qualquer parte do país e com isso expressar interesses outros que não apenas os locais O eleitor poderia votar em mais de um candidato ordenando a cédula eleitoral conforme a sua preferência Se o candidato preferido não conseguisse se eleger o eleitor teria a chance de verse representado pelo segundo e assim por diante Haveria ainda o dispositivo da transferência de votos Uma vez atin gida a quota necessária os demais votos seriam transferidos para os seguintes até que se conseguisse preencher todas as cadeiras Além da representação na cional e da representação das minorias esse sistema teria ainda a vantagem de garantir uma identifi cação pessoal entre o eleito e o eleitor evitando que esse corresse o risco de se ver representado por alguém em que não votou Esse sis tema seria ainda benéfi co à medida que elevariam pessoas mais capacitadas ao parlamento as quais infl uenciariam positivamente os representantes das maio rias e com isso elevaria o padrão intelectual da Casa dos Comuns No entanto apesar do sistema de representação de Hare minorar em grande parte os defeitos da democracia ainda assim o poder fi caria em mãos da maioria numérica sendo necessário agregar ainda outros expedientes a fi m de se aproximar o governo popular da forma idealmente melhor Sobre isso escreve Mill 316 ELSEVIER Curso de Ciência Política Mas mesmo nessa democracia o poder absoluto se o preferisse exercer fi caria com a maioria numérica e essa se formaria exclusivamente de uma única classe semelhante em inclinações preconceitos maneiras gerais de pensar e para não dizer mais que não seria a mais altamente culta A constituição portanto ainda estaria sujeita aos males caracte rísticos do governo de classe com toda certeza em grau muito menor do que a do governo exclusivo de uma classe que ora usurpa o nome de democracia mas ainda sem nenhuma restrição efi caz exceto a que se encontrasse no bom senso moderação e indulgência da própria classe Mill 1964 p 109 No Capítulo VII Mill já havia chamado a atenção para a necessidade de se limitar o caráter da representação mediante sufrágio mais ou menos restrito Mill 1964 p 88 No capítulo VIII em que retoma o tema pondera a respeito do quanto e de que tipo de pessoa poderia ser impedida de votar tendo em vista a exclusão do menor número possível Ele volta a alegar a importância da parti cipação política mais ampla para a educação geral Prova do caráter pedagógico da democracia se encontraria na grande obra do Sr De Tocqueville e de outros viajantes sobre os americanos Na América cada americano é em certo sentido patriota e pessoa de inteligência culta Mill 1964 p 110 Porém se os Estados Unidos forneciam provas de tão grande benefício da democracia por outro lado sua experiência também indicava as defi ciências desse governo De fato a vida política na América é a escola mais valiosa mas é a es cola da qual se excluem os professores mais hábeis sendo os primeiros espíritos do país afastados tão efi cazmente da representação nacional e das funções públicas em geral como se fossem considerados formal mente incapazes O demos sendo também na América a única fonte do poder toda a ambição do país para ele gravita como acontece em países despóticos em relação ao monarca perseguem o povo como o déspota com adulação e bajulação e os efeitos corruptores do poder acompanham bem de perto as infl uências de melhoramento e enobreci mento que se possa ter Mill 1964 p 111 Por causa da exclusão dos melhores e do cortejo que se faz das maiorias restrições seriam necessárias Porém ao considerarmos as restrições que Mill propõe conforme veremos é preciso ter em vista que o autor tem em perspecti va a extensão gradativa do sufrágio universal não a sua negação Limitações ao voto existiam na Inglaterra como o critério censitário isto é o voto condiciona do pelo pagamento de impostos diretos Com vistas a maior ampliação possível do sufrágio Mill propõe que o pagamento de impostos diretos seja estendido 317 Capítulo 11 John Stuart Mill a luta contra a opressão Aparecida Maria Abranches aos mais pobres por menor que fosse a taxa cobrada Além da extensão do su frágio esse expediente aumentaria a responsabilidade por parte dos eleitores com relação às despesas públicas ao elegerem seus representantes Quanto aos que dependem de auxílio Mill concorda que estes sejam excluídos do voto pois segundo ele Quem não pode pelo próprio trabalho bastarse a si mesmo não tem direito a reivindicar o privilégio de servirse do dinheiro de terceiros Mill 1964 p 114 Mas ele acredita que com o tempo a classe dos dependentes iria diminuir de maneira que os que fi cassem fora do sufrágio seriam em número diminuto confi gurandose sufrágio universal Sem dúvida Mill ao defender algum condicionamento pecuniário para o exercício do voto e da representação o faz por temer uma ingerência dema siada dos cidadãos pouco ou não produtivos sobre os mais ricos Além disso esses cidadãos poderiam exercer uma infl uência negativa no caráter dos repre sentantes que poderiam se tornar irresponsáveis no que diz respeito aos gas tos públicos visto serem estes os que votam os impostos Porém a maior preo cupação de Mill não é com o voto dos mais pobres Lembremos que sua defesa da democracia consiste no argumento de que pela inclusão do maior número ela proporciona a melhoria de caráter e da educação de todos quantos venham dela participar Sua preocupação maior é com o voto dos ignorantes apesar de haver mais chances de que estes se encontrem em maior número entre os pobres conforme ele mesmo diz Por ser esta sua maior preocupação é que ele defende a exclusão dos analfabetos Eis como ele se pronuncia a respeito Considero totalmente inadmissível que qualquer pessoa participe de eleições sem ser capaz de ler escrever e ainda juntarei executar as operações comuns da aritmética Mill 1964 p 112 No entanto o problema do analfabetismo poderia deixar de ser um entrave à participação com o tempo Mill defende o ensino universal como uma obrigação da sociedade pois segundo ele A justiça pede mesmo quando o sufrágio não depende disso da alfa betização que os meios de adquirir essas noções elementares estejam ao alcance de todos ou gratuitamente ou com uma despesa que o mais pobre que ganhe o próprio pão possa satisfazer Mill 1964 p 1123 Em Da liberdade ele defende a obrigatoriedade do ensino pelo Estado seja diretamente seja obrigando os pais a provêla aos fi lhos Devido à preocupação de Mill ser maior com relação à ignorância do que com a pobreza é que ele irá defender a introdução do voto plural nas eleições parlamentares junto com o sistema de Hare O voto plural signifi ca o direito de um eleitor ter mais de um voto Esse direito seria facultado àque 318 ELSEVIER Curso de Ciência Política les que demonstrassem ter mais capacidade intelectual independentemente da condição fi nanceira Eis como ele esclarece esse ponto Deixeme juntar que considero absolutamente necessário como parte do plano de pluralidade seja facultado ao indivíduo mais pobre da co munidade reivindicarlhe os privilégios se lhe for possível provar que a despeito de todas as difi culdades e obstáculos a eles tem direito no que respeita à inteligência Mill 1964 p 118119 Em outra passagem ele declara considerar inadmissível que se confi ra a superioridade de infl uência à importância da propriedade Mill 1964 p 117 Embora a propriedade possa ser uma espécie de prova não há garantias con tra o que possa haver de incidental na sua posse Somente a superioridade mental individual pode ser critério para a obtenção do direito ao voto plural Profi ssionais liberais com prática comprovada pessoas formadas em universi dades de qualidade reconhecida formariam preferencialmente o público desti natário do direito ao voto plural Com os dispositivos do voto plural e da representação proporcional a de mocracia estaria precavida dos riscos principais o do padrão demasiadamente baixo da inteligência política e o da legislação de classe Mill 1964 p 115 Desse modo estaria mais próxima da forma idealmente melhor Mas para aperfeiçoála mais ainda rumo ao sufrágio universal seria necessário incluir as mulheres na participação política No estado social em que Mill se encontrava na sua época escreve ele Não há ninguém hoje em dia que sustente que as mu lheres devem conservase em servidão pessoal sem pensamento sem desejos ou ocupações reduzidas à posição de escravas domésticas dos maridos dos pais ou dos irmãos Mill 1964 p 122 Então uma vez que a liberação civil e política das mulheres já não encon trava obstáculos rígidos nos costumes eis o que ele diz e com o que fi nalizo a minha exposição Esperemos que perseguindo a obra de derrubar um após outro os res tos da estrutura decrépita do monopólio da tirania não seja este o últi mo a desaparecer que as opiniões de Benthan do Sr Samuel Bailey do Sr Hare e de muitos outros dentre os pensadores políticos mais vigo rosos desta época e deste país para não falar dos outros sejam aceitas por todos os espíritos que não se tornaram obstinados pelo egoísmo ou preconceito inveterado e que antes de passar outra geração o acidente de sexo não mais do que o acidente de pele não se julgue razão bastan te para privar o possuidor de proteção igual e dos justos privilégios de cidadãos Mill 1964 p 125 319 Capítulo 11 John Stuart Mill a luta contra a opressão Aparecida Maria Abranches 114 Conclusão As duas obras aqui analisadas devem ser compreendidas em um contexto em que a democracia volta ao vocabulário político desde que seu signifi cado puro como governo do demos fora perdido com a decadência da democracia gre ga por volta do século III aC A Revolução Francesa e a Americana foram sem dúvida eventos que contribuíram para esse novo alvorecer Da época desses acontecimentos até aquela em que Stuart Mill escreve impérios e restaurações monárquicas se sucederam na Europa Junto com esses fatos atitudes relutantes e temerosas retardaram a participação da classe trabalhadora no universo da ci dadania política Dos fi ns do século XIX até a Segunda Guerra a literatura políti ca vai dar ensejo as formulações da chamada teoria das elites com Gaetano Mos ca Vilfredo Pareto e Robert Michels Desiludidos em suas próprias esperanças democráticas esses autores se mostram céticos e críticos do governo popular Em 1942 com a publicação de Capitalismo socialismo e democracia de Joseph Schumpeter ventos benfazejos voltam a soprar em favor da democracia Porém a nova teoria democrática propõese realista e o realismo signifi ca descartar da meta democrática o bem comum e sobretudo a premissa segundo a qual o cidadão comum é capaz de observar e interpretar corretamente os fatos Schumpeter 1961 p 309 e proceder a escolhas corretas Sem tais atributos res tariam pessoas com senso de responsabilidade reduzido ausência de vontade efetiva tudo isto explicando a ignorância do cidadão comum e a falta de bom senso em assuntos da política interna e externa Schumpeter 1961 p 318 Quão diferente era o julgamento de Stuart Mill quanto à capacidade de homens e mulheres comuns Capacidade potencial é verdade mas o bastante para que em meio a tantas descrenças em relação à democracia ele pudesse defendêla não apenas como um procedimento para a escolha dos governantes mas principalmente como um instrumento moral ético e sobretudo do discer nimento político 115 Perguntas para reflexão 1 De acordo com Stuart Mill quais seriam as duas principais ameaças à liberdade individual na sociedade moderna 2 O que o autor entende por tirania da maioria 3 O que é o princípio da autoproteção 320 ELSEVIER Curso de Ciência Política 4 O que significa a interferência ilegítima da sociedade na liberdade indivi dual 5 Apresente os argumentos do autor em defesa das minorias 6 Por que a mais ampla liberdade de pensamento e de expressão deve ser garantida 7 Quais os argumentos do autor em favor do governo democrático e espe cificamente do governo representativo 8 Por que o governo do bom déspota não é desejável nem aplicável 9 Quais são as deficiências do governo democrático do que elas decorrem e o que pode corrigilas 10 De que modo Stuart Mill fundamenta a sua defesa do voto plural consi derandose a sua compreensão dos critérios riqueza e educação na quali ficação do eleitor Bibliografia BERLIN Isaiah John Stuart Mill e as fi nalidades da vida In Quatro ensaios sobre a liberdade Brasília Editora da Universidade de Brasília 1981 HELD D Modelos de democracia Belo Horizonte Paideia 1987 LEPPENIES W As Três Culturas São Paulo EdUsp 1996 MILL Stuart Da liberdade São Paulo Ibrasam 1963 Considerações sobre o governo representativo São Paulo Ibrasa 1964 NICOLAU Jairo Sistemas eleitorais 4 ed Rio de Janeiro FGV 2002 POLANYI Karl A grande transformação 8 ed Rio de Janeiro Campus 2000 RAWLS John O liberalismo político São Paulo Ática 2000 SCHUMPETER Joseph A Capitalismo socialismo e democracia Rio de Janeiro Fundo de Cultura 1961 Capítulo 12 Leituras de Marx Paulo M dAvila Filho 121 Introdução Ser radical é tomar as coisas pela raiz Ora a raiz para o homem é o próprio homem Marx Contribuição à Crítica da Filosofi a do Direito de Hegel1 Meu método analítico não parte do Ho mem mas do período social economica mente dado Marx O capital2 Doutor e Mestre em Ciência Política pelo IUPERJ Bacharel em História com especialização em História da Filosofi a pelo IFCSUFRJ Coordenador da Área de Ciência Política do Departamento de Sociologia e Política da PUCRio onde é professor e pesquisador do Programa de Graduação e de Pósgraduação em Ciências Sociais Contato pdavilafrdcpucriobr 1 O trecho é citado por George Lukács em História e consciência de classe 1989 p 97 Esta é uma das passagens prediletas de Lukács Ele a utiliza com frequência em seus textos 2 O trecho é citado por Luís Althusser em Pour Marx A favor de Marx 1979 p 194 Althusser tem grande predileção por esta passagem de Marx e a utiliza como introdução ao artigo Marxismo e Humanismo contido em seu livro 322 ELSEVIER Curso de Ciência Política As passagens acima sugerem certa diversidade de perspectivas contidas na obra do intelectual alemão Karl Marx Uma diversidade muito pouco ex plorada nos bancos escolares frequentemente preocupados em formar alunos a partir de um enquadramento já cristalizado do pensamento de autor alemão Afi nal qual o ponto central da teoria de Marx O sujeito revelado na primeira passagem ou a estrutura sugerida na segunda Este texto sustenta que ambas as perspectivas convivem como tensão na obra marxiana Falar de Marx e do marxismo contudo não é tarefa fácil como se não bas tassem as difi culdades próprias do objeto complexo e diverso nos deparamos ainda com outro problema apesar de ser um autor pouco lido o que se lê dele são alguns trechos alguns artigos no máximo uns poucos livros Marx é muito conhecido chegando a ser mesmo familiar para um bom número de pessoas Em geral quase todo o mundo já ouviu falar do marxismo ou tem uma opinião formada a respeito do que seja o verdadeiro marxismo Mesmo entre os estudiosos existe uma tendência a atribuir à diversidade complexa da tradição marxista uma única formulação determinada uma espé cie de marxismo genuíno O mais curioso é que esse é um comportamento co mum tanto entre seus defensores como entre seus críticos A operação consiste em eleger alguns elementos desse pensamento e lhes conferir o status de expres são clarividente do conjunto da obra Uma tentação dogmática3 que difi culta o debate entre ambos Isso talvez se deva ao fato de que o marxismo está liga do a discussões políticas muito apaixonadas Uma das confusões mais comuns de ambas as partes é abordar sem estabelecer as devidas diferenças a obra de Marx e o marxismo em geral como se fossem um só objeto indiferenciado Tal procedimento reduz as diferentes interpretações da obra de Marx e os novos conteúdos e métodos introduzidos pelos seus seguidores a uma única leitura de Marx Falar de Marx é também falar de seu fi el companheiro de trabalho par ceiro político e intelectual Friedrich Engels Fernandes 1984 Engels é o fi lho primogênito de um industrial bemsucedido em Manchester um jovem comu nista que em agosto de 1844 em sua viagem de volta à Alemanha depois de viver longo tempo na Inglaterra visita Marx em Paris Durante alguns dias a troca intelectual intensa e a grande identidade teórica fi zeram surgir uma par ceria incomum que resultou em uma amizade que durou toda a vida de Marx Engels teria dito que a partir desse encontro estabeleceuse nossa completa concordância em todos os domínios teóricos e daí data nosso trabalho comum 3 A palavra dogmática pode ser atribuída a uma pessoa que afi rma uma opinião de modo categórico sem admitir contestação ou que possui uma pretensão de conhecimento absoluto sobre as coisas 323 Capítulo 12 Leituras de Marx Paulo M dAvila Filho Apud Fedosseiev et alii 1983 p 79 O primeiro grande trabalho comum seria o importante texto A Ideologia Alemã de 1845 considerado um marco na obra de Marx Apesar de Marx considerar sua empreitada teórica um grande esforço de síntese e superação das teorias com as quais dialogava Konder 1988 as tensões e a diversidade contida em sua obra podem ser creditadas em parte ao seu percurso intelectual e a suas por assim dizer infl uências Esse percurso foi bem captado primeiro por Lênin em um trabalho intitulado As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo 1913 produzido a partir da própria narra tiva de Marx e Engels Tratase de um texto sintético em que o revolucionário russo identifi ca na economia política inglesa Adam Smith e David Ricardo na teoria política do socialismo francês Babeuf Saint Simon e Charles Fourier e na fi losofi a alemã Hegel e Feuerbach as três generosas fontes do pensamento dos fundadores do marxismo as quais considera o que de melhor criou a humanida de no século XIX Lênin 1977 O texto não possui grande envergadura analítica tarefa que muitos anos mais tarde coube ao historiador da escola inglesa Eric Hobsbawm no primeiro volume de História do marxismo 19794 Com isto em absoluto quereremos dizer que seja impossível ou incor reto se elaborar sínteses sobre Marx e o marxismo Desejo simplesmente cha mar atenção para a necessidade de abordálos sempre levando em conta o seu conteúdo multifacetário sua pluralidade e riqueza De modo coerente com esta perspectiva acredito que a análise subsequente é apenas uma das diversas pos sibilidades interpretativas neste campo O que talvez a diferencie de outras é o fato de que não procura afi rmar uma única leitura possível de Marx ao contrá rio defende a existência de várias e as considera válidas5 Para ilustrar a ideia central deste texto seguiremos o percurso de um con ceito caro a Marx e Engels o conceito de ideologia6 A perspectiva de encontrar nas obras de Marx e Engels uma única defi nição da noção de ideologia me pa rece tarefa impossível Dos Manuscritos econômicos e fi losófi cos de 1844 passando 4 Tratase de um dos mais notáveis intelectuais de nosso tempo o historiador de origem inglesa Eric J Hobsbawn Procuraremos seguir neste trabalho as orientações de cunho metodológico apontadas pelo autor em sua introdução à obra intitulada História do marxismo em que este apresenta alguns pressupos tos básicos para trabalhar com uma História do marxismo 5 Não sou indiferente à tese que advoga ser a teoria marxista uma totalidade A obra marxista é sem dúvida uma totalidade Rocha 1989 só que não homogênea mas composta de tensões internas e infl e xões diversas ao longo de toda a sua trajetória como qualquer outra o é Toda a teoria passa por revisões e sofre modifi cações pelo seu próprio autor que é um indivíduo no mundo e em constante mutação 6 Sobre o conceito de ideologia em Marx Engels e no pensamento marxista no século XX ver também Mcdonouhg 1977 Willians 1979 DAvila 1991 324 ELSEVIER Curso de Ciência Política por diversos trechos de A Ideologia Alemã 18457 até o seu famoso trabalho O capital publicado em 1867 podemos encontrar infl exões distintas no sentido de conformar uma noção do que venha a ser ideologia Essas infl exões vão sus tentar duas vertentes opostas dentro do marxismo os chamados estruturalistas e os humanistas DAvila 1991 122 Aviso aos navegantes Marx e o marxismo Antes de seguirmos o percurso traçado no entanto é preciso esclarecer uma questão que embora seja aparentemente óbvia tem gerado muitas confu sões Tratase de distinguir a obra marxiana e o marxismo Apesar de possuírem estreita relação não devem ser confundidos enquanto objetos do ponto de vista da análise A primeira diz respeito ao conjunto de textos produzidos por Marx O segundo a todo um movimento teórico cultural e político que tem início a partir do surgimento dos primeiros intelectuais que se disseram signatários de Marx e que vem em constante transformação e desenvolvimento até os dias de hoje Não pretendo com essa diferenciação sugerir um verdadeiro ou genuíno pensamento de Marx depurado de supostas interpretações falaciosas mas tão somente me referir à produção literária de Marx escrita ao longo de sua vida 18181883 Como sugere Hobsbawn não se quer pressupor que o objeto seja um único marxismo específi co para não falar mesmo de um verdadeiro marxismo con traposto a outros falsos e desviantes Não existe um único mar xismos mas sim muitos marxismo frequentemente empenhados em ásperas polêmicas internas a ponto de negarem uns aos outros o direi to de se declarem marxistas Hobsbawn 1979 p 13 Os trabalhos produzidos por Marx vão desde sua monografi a de fi m de curso em 1835 com o título sugestivo de Refl exão de um jovem perante a esco lha de uma profi ssão e sua defesa da tese de doutorado em fi losofi a em 1841 versando sobre a Diferença da fi losofi a da natureza em Demócrito e Epícuro passando por seus textos produzidos nos anos de trabalho como jornalista na Gazeta Renana entre 18421843 pelo laborioso esforço de revisão crítica das obras de Hegel e dos jovens hegelianos entre 1843 e 1845 que envolve textos como Crítica à Filosofi a do Direito de Hegel 1843 A questão judaica 1843 Manuscritos econômicos e fi losófi cos de 1844 e o conhecido Onze teses so bre Feurbach 1845 pelo mergulho decisivo na economia política período em 7 Os trabalhos de Marx e Engels quando mencionados aparecerão com uma data entre parênteses que corresponde ao ano de sua primeira publicação Quando citados trechos dessas obras a data de referên cia é a da publicação consultada 325 Capítulo 12 Leituras de Marx Paulo M dAvila Filho que produziu títulos famosos como o Manifesto Comunista 18471848 e O capital 1867 além dos textos políticos e os textos históricos e de conjuntura sobre a França entre 1847 e 1875 Luta de classes na França 1850 O Dezoito de Brumário de Louis Bonaparte 18511852 e Guerra Civil em França 1871 Nesse longo trajeto Marx jamais deixou de aliar sua refl exão teórica ao envolvimento com a política de seu tempo As possibilidades do pensamento de Marx contudo estarão em boa me dida estabelecidos em função das interpretações que se faz dele Isso no entan to já faz parte da história do marxismo um campo em aberto que abriga amplo leque de possibilidades tanto no tocante às interpretações da obra de seu fun dador como às formas e contornos diferenciados que assume enquanto teoria explicativa e movimento político que se pretende transformador da realidade do mundo e da vida humana Trabalhar com o pensamento marxista implica ter consciência de se tratar de um tema não só vasto de uma riqueza interior assaz complexa mas tam bém em constante construção O conjunto de questões abordado por esta escola teórica vai desde a estrutura econômica de uma sociedade até escritos sobre estética Neste exato instante existem marxistas ocupandose de tais problemas e sua atividade também faz parte da história desse pensamento a história do marxismo não pode ser considerada como algo acaba do já que o marxismo é uma estrutura de pensamento ainda vital e sua continuidade foi substancialmente ininterrupta desde o tempo de Marx e Engels Hobsbawn 1979 p 13 Este texto não se propõe a tarefa de decidir a validade das diversas cor rentes de interpretação da obra marxiana A validade das linhas interpretativas e das concepções abordadas se remete a sua capacidade crítica e explicativa enquanto instrumento teórico de análise dos fenômenos sociais e não em pautas abstratas como hermenêutica ou exegese8 Não implica uma posição agnós tica9 diante do que é ou do que não é marxista e menos ainda diante do que o próprio Marx queria verdadeiramente dizer Hobsbawm 1979 p 28 Não 8 Hermenêutica é um termo originalmente teológico designando a metodologia própria da interpre tação ou exegese interpretação gramatical e histórica da Bíblia O termo passou depois a designar todo o esforço de interpretação científi ca de um texto difícil que exige uma explicação Ver Japiassu e Marcondes 1991 9 O termo agnosticismo criado na segunda metade do século XIX designa a incapacidade de conhe cimento de tudo que vá além dos nossos sentidos que extrapole a experiência sensível O agnóstico não nega a existência de Deus como um ateísta apenas considera impossível afi rmála ou negála Aqui o termo é aplicado no sentido de descrente 326 ELSEVIER Curso de Ciência Política pretendo tampouco pesar em uma balança da justiça e da autenticidade em nome de uma verdade qualquer as interpretações mais ou menos corretas do pensamento de Marx pelos marxistas posteriores O propósito muito pelo contrário é sugerir que a diversidade encontrada possui respaldo nas obras de seus fundadores A primeira geração de marxistas ainda teve a possibilidade de consul tar Marx e Engels mas como é evidente depois de 1895 isso não foi mais possível Portanto tornase inevitável que a obra dos fundadores seja analisada de modo diverso por seus diferentes sucessores Hobs bawn 1979 p 1410 Considero que os grupos ou organizações que reivindicam o marxismo como fundamento teóricoprático fazem parte da história deste pensamento mesmo porque as interpretações e desdobramentos concretos cuja incorreção fosse demonstrável pertencem também a esta história Não há nenhuma pre tensão de penetrar neste labiríntico universo no âmbito deste ensaio11 Parto aqui da compreensão de que a obra marxiana é uma obra aberta e limitarmeei a apresentar ao menos duas possibilidades de interpretála 123 A diversidade em Marx e Engels Feitas as ressalvas anteriores e estabelecidos os parâmetros da análise po demos retornar ao problema da diversidade ou das tensões no pensamento de Marx e ilustrálas com o desenvolvimento do conceito de ideologia Duas vertentes do pensamento fi losófi co crítico infl uenciam diretamente o conceito de ideologia de Marx e Engels de um lado a crítica da epistemo logia tradicional e a revalorização da atividade do sujeito realizada pela fi loso fi a alemã particularmente por Georg Wilhelm Friederich Hegel e de outro o 10 Um bom exemplo do que o historiador inglês acaba de mostrar é o debate em torno do jovem Marx e do Marx maduro Em que momento ao romper com Hegel e Feuerbach Marx se teria tornado verdadeiramente marxista Haveria uma ruptura nesse momento Certamente para o próprio autor isso não deveria constituir uma questão crucial como passou a ser para os marxistas após 1932 ano de pu blicação de seus escritos de juventude No máximo podia sentir necessidade de esclarecer sua posição em relação a algumas questões referentes à infl uência de Hegel como o fez no posfácio à segunda edição in glesa de O capital Segundo Hobsbawn com cuja tese compartilhamos o marxismo possui uma unidade que deriva tanto do coerente corpo teórico elaborado por Marx e dos problemas práticos específi cos que ele esperava resolver por seu intermédio quanto da continuidade histórica dos principais grupos orga nizados de marxistas todos os quais passíveis de serem colocados numa árvore genealógica Tratase porém segue o autor de uma unidade na diversidade baseada em objetivos comuns e sobretudo na comum adesão ao corpo doutrinário derivado dos escritos de Marx e Engels 11 A este respeito ver Perry Anderson 1980 327 Capítulo 12 Leituras de Marx Paulo M dAvila Filho materialismo de Ludwig Feuerbach Garaudy 1983 Essas duas tendências se encontram como tensão constante na formulação dos fundadores do marxismo em particular no tocante ao tema da ideologia Por vezes encontramos em seus escritos uma determinação da materialidade em relação aos homens e por ou tras uma valorização do homem em relação às suas possibilidades históricas De algum modo estas duas infl exões vão permanecer e sustentar duas tradições no pensamento marxista O estruturalismo e o humanismo respectivamente12 Essa polarização já seria sufi ciente para demonstrar a complexidade da questão da ideologia em Marx e Engels As difi culdades no entanto são ainda maiores Podem ser identifi cadas ao menos três fases distintas onde a questão aparece com contornos diferenciados sem que se recorra à ideia de rupturas epistemológicas13 entre elas A primeira fase compreende os seus primeiros escritos e vão culminar nos Manuscritos Econômicos e Filosófi cos de 1844 A característica desse período é o debate fi losófi co A crítica às concepções de Estado de Hegel e a crítica da religião Estas são defi nidas como inversões que obscurecem o verda deiro caráter das coisas A expressão ideologia ainda não aparece de forma textual mas os elementos do futuro conceito estão presentes em suas críti cas A segunda fase começa com o rompimento em relação às formulações de Feuerbach e a esquerda hegeliana ou seja os discípulos críticos do idealismo de Hegel em 1845 e cujo texto fundamental é a ideologia alemã É o período da construção por Marx e Engels do materialismo histórico Nesse contexto o conceito de ideologia é introduzido pela primeira vez A ideia de uma in versão é conservada porém os verdadeiros problemas da humanidade não são as ideias errôneas mas as contradições sociais reais e aquelas são con sequências destas A terceira fase começa com a redação dos Manuscritos de 18571858 os Gundrisse e culmina em O capital 1866 A palavra ideologia quase desaparece dos textos de Marx porém mantémse a ideia desta como negatividade e inversão A análise específi ca das relações sociais capitalistas 12 A relação que estou propondo não se estabelece de maneira mecânica sendo uma consequência lógica da outra Quero apenas chamar a atenção para a existência de afi nidades eletivas nexos entre as infl uências fi losófi cas de Marx e as formas redecodifi cadas que assumiram em sua obra como tensões que por sua vez contribuirão para originar duas vertentes distintas do pensamento marxista 13 Epistemologia é um termo que possui várias acepções aqui ele é tomado como campo de investiga ção ou disciplina que versa sobre a ciência ou teoria do conhecimento na perspectiva consagrada pelo pensamento anglo saxão Ver Japiassu e Marcondes 1991 A ruptura epistemológica sugere no texto uma hipotética ruptura com padrões de produção de conhecimento até então desenvolvidos por Marx A alusão é a expressão do fi lósofo Gaston Bachelard utilizada por Althusser em A favor de Marx e traduzida como corte epistemológico usado para designar estas rupturas 328 ELSEVIER Curso de Ciência Política levao à conclusão de que a conexão entre consciência invertida a ideologia e realidade invertida contradições sociais não se faz de forma abstrata mas sim através de mecanismos concretos fenomenais postos em ação pelo de senvolvimento do modo de produção capitalista Por exemplo na economia capitalista as leis de mercado são uma inversão do primado da produção e submete esta àquelas assim como os homens às coisas Podemos perceber que uma tentativa de encontrar em Marx e Engels uma única defi nição de ideologia esbarra em pelo menos dois problemas Um diz respeito às infl exões teóricas distintas que convivem no interior da obra desses pensadores referentes às infl uências fi losófi cas diversas que constituem a base para o desenvolvimento de suas formulações Outro remete às formas diferen ciadas de tratamento da questão em fases distintas de sua produção O único traço marcante que se pode identifi car é a caracterização do conceito em ques tão como algo iminentemente negativo Seja como sinônimo de erro ou como elemento que oculta a realidade mesmo que isso aconteça em uma sociedade concreta também invertida em seus valores e mecanismos como a formação social capitalista Se for verdade que ao longo de sua obra existe um forte traço de continui dade a ideia de ideologia com uma conotação negativa por outro lado embora não diga de maneira explícita Marx nos Manuscritos Econômicos e Filosófi cos de 1844 e mais tarde em algumas passagens de O capital ao abordar a teologia em butida no processo de trabalho nos possibilita pensar a capacidade do homem de produzir formas de agir e pensar recriar a objetividade abrindo assim cam po para uma interpretação extremamente diversa de ideologia como elemento positivo da criação humana o que veremos mais adiante 124 O primado da estrutura Procurarei a partir de agora apontar certas infl exões distintas do pen samento dos fundadores do marxismo e suas possíveis interpretações Como dito as obras de Marx e Engels expressam noções distintas do conceito de ideologia Segundo muitos intérpretes da obra de Marx é com A Ideologia Alemã que Marx irá superar as limitações de caráter antropológico utópico ou ideológico reveladas em suas obras de juventude inclusive nos Manus critos Econômicos e Filosófi cos de 1844 A ideologia alemã escrita em 1845 em colaboração com Friedrich Engels constitui uma etapa decisiva nesse processo de transformação do socialismo em ciência Vaz quez 1986 p 164 329 Capítulo 12 Leituras de Marx Paulo M dAvila Filho Nesta perspectiva a valorização do sujeito e da subjetividade pode signi fi car alguma forma de idealismo o que a tornaria a teoria supostamente contrá ria portanto à proposta do materialismo histórico 14 Comecemos pois pela Ideologia Alemã As ideias dominantes são apenas a expressão ideal das relações materiais dominantes são as relações materiais dominantes compreendidas como ideias Marx 1982a p 13 Podemos obser var preliminarmente nesta passagem que daí decorrem pelo menos duas possi bilidades interpretativas em primeiro lugar a identifi cação da existência de uma ideologia dominante o que pode parecer pressupor uma ideologia dominada Ou então outra possibilidade que se relaciona com um segundo aspecto contido nesse trecho a ideologia é o refl exo com respeito às relações materiais que os homens mantêm Nesse sentido em uma determinada formação social com re lações de produções dadas só pode existir uma ideologia a que domina e que é fruto dessas relações de produção Vamos prosseguir no texto em questão Não partimos daquilo que os homens dizem imaginam ou concebem nem dos homens como descritos pensados imaginados concebidos a fi m de chegar aos homens em carne e osso Partimos dos homens reais ativos e à base de seus processos de vida real demonstraremos o desen volvimento dos refl exos e ecos ideológicos desse processo de vida Os fantasmas formados no cérebro humano são também necessariamente sublimações de seu processo de vida material que é empiricamente ve rifi cável e limitado por premissas materiais Moral religião metafísica todo o resto da ideologia e de suas formas correspondentes de cons ciência não retêm mais aparência de independência Marx 1982a p 14 É possível perceber aqui que a ideologia é fruto ou refl exo das condi ções materiais que a engendram nos homens A ideologia não é independente da estrutura15 Dessa maneira a interpretação indicada anteriormente é per 14 Materialismo histórico e materialismo dialético são termos usados por Marx e Engels para desig nar a teoria científi ca que estavam produzindo Teoria que levaria em conta a matéria o real concreto e seu caráter histórico e dialético e não a especulação abstrata idealista descolada das bases materiais do mundo Ver Penna 1986 15 Utilizo aqui a categoria de estrutura que Louis Althusser resgata para o marxismo e que designa o conjunto das relações de uma determinada formação social Aplicamos essa noção no sentido em que expressa o conjunto das relações materiais de produção da vida humana O autor de Pour Marx e Para Ler O Capital teria segundo seus estudiosos cunhado essa expressão do fi lósofo alemão do século XVI Spinosa Os campos de estrutura dAvila 1991 estabelecendo uma analogia Portanto o estruturalis mo clássico de Levi Straus não é a única fonte do pensador marxista 330 ELSEVIER Curso de Ciência Política feitamente aceitável Não pode haver uma ideologia que seja independente das relações sociais de produção da vida A ideologia é fruto dessas relações As consciências são dominadas pela ideologia dominante não havendo espaço para uma ideologia dominada Seguiremos com essa linha de interpretação dei xando a outra possibilidade de interpretação do conceito de ideologia para ser retomada mais adiante Se em toda ideologia os homens e suas circunstâncias aparecem de ca beça para baixo como uma câmara obscura esse fenômeno surge tanto do seu processo de vida histórico como a inversão dos objetos na retina surge de seu processo de vida físico Marx 1982a p 14 Se antes pudemos observar que a ideologia é produzida pela estrutura de produção da vida humana à qual os homens estão sujeitados sendo por tanto apenas suportes dessa ideologia e não sujeitos agora é possível notar que a sua forma de dominação é através da distorção produzindo uma falsa consciência16 Onde termina a especulação na vida real aí começa a ciência real positiva a representação real da atividade prática do processo prático de desenvolvimento dos homens Marx 1982a p 15 A citação acima é fundamental para a compreensão da linha interpreta tiva da ideologia em Marx O marxismo é um pensamento que postula em sua origem transformações dos limites históricoestruturais da vida humana nos marcos do capitalismo Logo se a falsa consciência por não conhecer o real como ele é não pode transformálo algo precisa substituíla Esse algo dentro da lógica com a qual se está trabalhando será a ciência positiva que por defi ni ção é livre das deformações da ideologia No período em que escreveram A Ideologia Alemã Marx e Engels esta vam como estiveram ao longo de suas vidas polemizando com teorias con sideradas rivais de seus projetos fi losófi cos e políticos Na época realizavam uma espécie de acerto de contas com a fi losofi a clássica alemã com a econo 16 A expressão falsa consciência é muito controvertida entre os marxistas principalmente quando relacionada com a questão da ideologia Tom Bottomore organizador do Dicionário do Pensamento Marxista 1983 p 185 afi rma a ideologia portanto conserva sempre em Marx e Engels sua co notação crítica e negativa mas o conceito só se aplica às distorções relacionadas com o ocultamento de uma realidade contraditória e invertida Nesse sentido a defi nição tão frequente de ideologia como falsa consciência não é adequada na medida em que não especifi ca o tipo de distorção criticada abrindo dessa forma caminho a uma confusão de ideologia com todos os tipos de erro Ora Marx e Engels em A Ideologia Alemã fazem justamente isso usam a expressão ideológico para designar qualquer tipo de erro ou qualquer pensamento científi co como corretamente observou o pai do estruturalismo marxista Louis Althusser Usamos portanto a expressão em toda a primeira parte deste capítulo pois estamos seguindo a interpretação estruturalista da obra marxiana 331 Capítulo 12 Leituras de Marx Paulo M dAvila Filho mia política inglesa e com os socialistas franceses chamados por eles de utó picos A noção de ideologia é central para qualifi car os desvios teóricos de seus conterrâneos para denunciar o efeito de obscurecer a realidade negativa das relações capitalistas contido no pensamento da economia política inglesa e por fi m superar o socialismo utópico dos franceses substituindoo pelo auto intitulado socialismo científi co que ambos propugnavam A ideia de ide ologia como falsa consciência ou consciência enganosa permitia diferenciar o seu pensamento científi co que desvenda o real das ideologias que ocultam a realidade Todo o pensamento com quem polemizavam era desqualifi cado como ideológico A compreensão de Marx e Engels sobre ideologia no entanto não possui um caráter apenas circunstancial ou conjuntural Em outros dois textos posterio res Engels vai aprofundar a concepção que estamos seguindo Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofi a Clássica Alemã 18871988 e Cartas a F Mehring 1893 Toda a ideologia uma vez surgida se desenvolve em conexão com o material concreto dado e desenvolve esse material ainda mais se assim não fosse deixaria de ser ideologia isto é ocupação com pensamentos como entidades independentes e sujeitos apenas as suas próprias leis O fato de que as condições materiais de vida das pessoas em cujas men tes esse processo de pensamento ocorre em última análise determine o curso desse processo continua sendo necessariamente desconhecido de tais pessoas pois de outro modo não haveria um fi m a toda a ideologia Engels 1985a p 417 Nesse trecho Engels atribui à ideologia uma autonomia relativa às con dições materiais Aspecto fundamental que é incorporado pela linha interpre tativa que acompanhamos até então ao menos pelos não economicistas17 A noção da ideologia como terreno de ilusão no entanto permanece A consciên cia que não se reconhece como tal é alienada Neste ponto encontramos a relação por alguns postulados entre alienação e falsa consciência18 17 A ideia da existência de uma autonomia mesmo que relativa do conjunto da superestrutura em par ticular da ideologia só é admitida por correntes marxistas não alinhadas ao chamado marxismo vulgar ou economicista muito em voga na época da chamada II Internacional e nas correntes seguidoras de Stalin Estes embebidos das obras de Engels referentes à dialética da natureza conceberiam a dialética da vida humana em todas as suas dimensões sociais como decorrência de leis naturais A infl uência do pensamento evolucionista do século XIX parece bem clara Nos meios acadêmicos tais noções passaram a ser denominadas economicistas ou mecanicistas 18 Tratase aqui dos intelectuais marxistas que buscam encontrar uma relação nas obras de Marx entre alienação e falsa consciência Louis Althusser por um lado e Antonio Gramsci por outro refutam essa tese Ver Itsván Mesáros 1981 332 ELSEVIER Curso de Ciência Política A Ideologia é um processo realizado pelo chamado pensador concien temente é claro mas com uma falsa consciência Os verdadeiros moti vos que o impelem continuam sendo desconhecidos dele pois se assim fosse não seriam um processo ideológico Daí ele imaginar motivos fal sos ou aparentes Engels 1985b p 557 A identidade entre falsa consciência e ideologia está nesse caso tex tual É uma carta datada de 1893 redigida portanto cerca de cinquenta anos após a edição de A Ideologia Alemã Outro elemento no entanto nos chama a atenção neste pequeno trecho e se articula com o trecho anterior Nele Engels identifi ca um sujeito que realiza um processo ideológico uma falsa cons ciência apesar de este estar em última análise determinado pelas condi ções materiais Além de a ideologia possuir uma autonomia relativa possui também um sujeito No entanto esses elementos não são novos e estão como possibilidades de infl exões distintas de acordo com a linha interpretativa que se programe na Ideologia Alemã A divisão do trabalho só se realiza realmente a partir do momento em que surge uma divisão do trabalho material e mental A partir des se momento a consciência pode realmente orgulharse de ser alguma coisa mais do que a consciência da prática existente de que ela real mente representa alguma coisa sem representar alguma coisa real a partir de então a consciência está em posição de emanciparse do mun do e proceder a formação de uma teoria ideologia fi losofi a ética etc purasMarx e Engels 1982a p 23 A divisão no trabalho manifestase também na classe dominante como divisão do trabalho mental e material de modo que dentro desse uma parte aparece como sendo os pensadores da classe seus ideólo gos enquanto a atitude de outros é mais passiva e mais receptiva Marx e Engels 1982a p 39 No primeiro trecho é possível notar que a ideia de autonomia relativa de consciência já está presente embora Marx e Engels estivessem falando não da consciência real positiva mas da falsa consciência produzida a partir da divi são do trabalho ou seja a consciência alienada19 No segundo notase a identi fi cação do sujeito que realiza o processo ideológico Deparamonos com a noção 19 A expressão consciência alienada é a preferida pelos pensadores marxistas que estudam as disfun ções causadas pela divisão social do trabalho Ver Itsván Mesáros 1981 333 Capítulo 12 Leituras de Marx Paulo M dAvila Filho dos intelectuais burgueses como ideólogos20 portanto portadores da falsa consciência Os elementos constituídos pela noção de um sujeito e de autonomia re lativa também são incorporados pela linha interpretativa em foco Apesar da autonomia existe uma determinação em última instância das forças materiais e o sujeito não é um produtor da ideologia mas apenas o seu realizador Quem produz a ação participa dela não é um sujeito da História é um sujeito na História21 ele é atravessado pela ideologia e se torna seu suporte não pode produzila apenas realizála Essas determinações materiais dizem respeito às estruturas sociais O estruturalismo marxista está inteiramente assentado nesta ideia Recapitulemos este viés da compreensão de Marx sobre a ideologia condizente com a matriz do marxismo estruturalista existe apenas uma ideologia que é dominante pois reflete as relações sociais dominantes Essa ideologia é uma falsa consciência em oposição à consciência verda deira representada pela ciência A ideologia possui uma autonomia relativa das estruturas materiais e não possui um sujeito que a produz mas que a realiza À luz dos textos de Marx e de Engels apresentados até agora as inter pretações que se seguiram acima tornamse absolutamente sustentáveis22 mas possuem algumas nuanças Uma delas diz respeito à proposição lógica de que se existe uma ideologia dominante deve haver uma dominada que brotaria a partir das diferentes relações dos indivíduos com a produção material da vida Posição que no restante é concordante com o que vimos acima É uma variante que encontra respaldo no pensamento originário do marxismo particularmente 20 Para os fundadores do marxismo todo o pensador burguês era um ideólogo portador da falsa cons ciência ao menos nos escritos de 1945 Neste momento Marx e Engels defi nem os ideólogos como aqueles que não estão vinculados diretamente ao processo produtivo Antonio Gramsci classifi ca esse tipo de intelectual de tradicional porém indo mais além na análise do papel dos intelectuais e em sua conceituação Grasmsci 1982 o autor identifi ca a existência do intelectual orgânico da burguesia volta do para a organização e controle da produção Para o pensador todos os homens são intelectuais não se pode separar o homofaber do homosapiens mas nem todos exercem a função de intelectuais 21 Para fi ns explicativos tomamos emprestada a formulação de Louis Althusser sujeito da História Althusser 1979 aquele que dela participa que a realiza como suporte de estruturas em movimento estruturas que fazem de fato o processo histórico 22 Consideramos interpretações válidas aquelas que se sustentam em uma apreensão lógica e dentro dos parâmetros comuns da linguística da gramática No entanto sabemos que em meio a inúmeras traduções de uma língua para outra esta afi rmação possui suas limitações 334 ELSEVIER Curso de Ciência Política em passagens da Ideologia Alemã sobre a divisão social do trabalho e o surgimen to dos ideólogos de uma classe23 É importante marcar que nesta linha de interpretação ciência e ideologia são termos antitéticos Enquanto a ideologia oculta o real e obscurece a verdade a ciência positiva desvenda o real revela a verdade ilumina a realidade Nesta chave de entendimento é a ciência particularmente a ciência crítica do marxis mo quem será capaz de despertar as falsas consciências para que adquiram uma verdadeira consciência e possam transformar o mundo Em uma das mais citadas passagens de Marx a décima primeira tese sobre Feuerbach ele afi rma até hoje os fi lósofos se limitaram a interpretar o mundo de diversas maneiras cabe no entanto transformálo O materialismo histórico e dialético será essa nova ciência 125 A valorização do sujeito A segunda vertente de pensadores marxistas contemporâneos contudo não estabelece uma distinção inconciliável entre ciência e ideologia Ambas se interpenetrariam Seriam representantes dessa vertente os chamados marxistas humanistas As ciências naturais abandonarão então sua orientação mate rialista ou antes idealistas e se tornarão a base de uma ciência humana uma base para a vida e outro para a ciência é a priori uma falsidade Marx 1987a p 180 Podemos notar nesse trecho dos Manuscritos Econômicos e Filosófi cos de 1844 uma tensão infl exionando para o sentido da relação entre ciência e ideo logia bem distinta de A Ideologia Alemã Essa distinção marca a diferença entre vertentes bastante distintas que seguiram caminhos muitos diferentes como o marxismo humanista estruturalista e historicista Vimos que a produção teórica dos fundadores do marxismo foi generosa em termos de possibilidades inter pretativas absolutamente discrepantes A tradição humanista do marxismo procura identifi car não apenas mais de uma ideologia portanto ideologias como também identifi ca sujeitos ativos capazes de produzilas por intermédio da práxis24 Através de um estudo não 23 A ideia de que existem ideólogos de uma classe nos inspira a possibilidade de existirem ideólogos também de outras classes dentro das variações possíveis das interpretações aqui desenvolvidas 24 Expressão cunhada por Marx para designar a relação indissolúvel dialéticoontológica entre sujeito e objeto A práxis é uma categoria que busca apreender o Homem e sua atividade como sujeito dentro de seus parâmetros concretoôntico O ser social engloba não só as determinações da esfera material mas ainda o conjunto das relações humanas inclusive a espiritualidade objetivada enquanto valores ontológicossociais Reconhecida a anterioridade da matéria é preciso reconhecer a superioridade do 335 Capítulo 12 Leituras de Marx Paulo M dAvila Filho lógicoformal mas concretoôntico25 admite a possibilidade de constituição de várias ideologias Pressupomos o trabalho numa forma que o marca como exclusivamente humana o que distingue o pior arquiteto da melhor das abelhas é o fato de que o arquiteto levanta sua estrutura na imaginação antes de construíla na rea lidade No fi m do processo de trabalho temos um resultado que já existia na imaginação do trabalhador em seu começo Marx 1977a p 202 Vimos nesse pequeno trecho de O capital que a perspectiva que enuncia mos acima também encontra seu respaldo nas obras de Marx O autor nos Ma nuscritos Econômicos e Filosófi cos de 1844 ao abordar a interação do homem com a natureza no processo de trabalho atribuilhe uma roupagem interpretativa na qual é enfatizado o homem e sua capacidade criadora e não as estruturas Assim como os meios para realizar um trabalho no exemplo de Marx não basta que o pensamento tenda à matéria é preciso que a matéria também tenda ao pensa mento Marx 1987a p 183 pensamento enquanto práxis ativa sobre ela Práxis é uma categoria central no pensamento de Gramsci 1986 que articula objetividade e subjetividade na conformação do sujeito 25 Estes termos lógico formal e concreto ôntico são muito utilizados por Georg Lukács Segundo o pensador húngaro a obra de Marx é toda ela um estudo ontológico No primeiro capítulo de sua obra Ontologia do Ser social afi rma qualquer leitor sereno de Marx não pode deixar de notar que todos os seus enunciados concretos se interpretados corretamente revelamse em última análise como enunciados diretos acerca de algum tipo de ser ou seja são afi rmações ontológicas Luklács 1985a p87 O mesmo autor em A Falsa e a Verdadeira Ontologia de Hegel 1979 p 4647 demonstra que o equívoco fundamental de Hegel foi submeter as contradições e dialéticas à categorias lógicas formais e não instaurar categorias ontologicamente concebidas Segundo Lukács Engels teria cometido o mesmo erro no Anti Durhing ao tentar demonstrar a Durhing os mecanismos da sua dialética Dessa forma as primeiras gerações de marxistas teriam sido infl uenciadas por tal equívoco O pensador húngaro cita Engels para elucidar melhor sua proposição Tomemos um grão de cevada diz Engels milhares desses grãos são triturados fervidos e usados para fabricar a cerveja que é depois consumida Mas se o tal grão de cevada encontra as condições normais para ele se cai em um terreno favorável sofre uma altera ção específi ca isto é germina O grão enquanto tal morre é negado e em seu lugar desponta a planta que ele gerou a negação do grão Lukács 1979 p 53 Na realidade diz Lukács em inúmeros casos o grão de cevada é destruído essa seria a expressão ontologicamente legítima e não o temo negar logica mente determinado mas insensato no plano ontológico Só em determinado caso concreto prossegue o autor é que já está contido no começo o ser do ser com diria Hegel Muitos equívocos referentes ao determinismo histórico de alguns marxistas foram cometidos em nome dessa formulação lógico formal Ainda segundo Lukács Marx em O capital ao analisar as formas concretas de dominação as contradi ções e mecanismos concretos de funcionamento de um sistema o capitalismo está realizando um estudo concretoôntico Lukács 1985b 336 ELSEVIER Curso de Ciência Política A partir da teleologia26 originária no processo de trabalho a consciência humana ganha uma subjetividade que não é mais o refl exo invertido das con dições objetivas A consciência é a exterioridade interiorizada ou a objetivida de subjetivada através da práxis e que retorna como subjetividade objetivada no fruto do trabalho Se o fruto desse trabalho é puramente exterior ao sujeito lhe é estranho a subjetividade humana não se reconhece nele e se produz uma cons ciência alienada de si e não uma falsa consciência27 consciência não ver dadeira A consciência portanto já não é colocada em termos de verdadeira ou não mas sim como consciência possível e ganha ao mesmo tempo um estatuto de autonomia relativa28 que lhe possibilita recriar de maneira consciente a ob jetividade Desse modo a distinção em termos hermenêuticos entre ideologia e ciência desaparece embora permaneça em termos gnoseológicos29 É possível concluir que a partir do momento em que a consciência deixa de ser refl exo e passa a ser também agente transformador a ideologia deixa de ser unicamente produto das relações de produção da existência ou uma falsa consciência ou seja pura negatividade A ideologia passa a ser fruto da práxis humana em sua relação subjetiva com a matéria e capaz de transformála Sendo assim não há uma única ideologia refl exo das condições materiais dominantes mas ideologias fruto da práxis criadora e da capacidade teleológica30 do pensa mento humano O homem passa a ser de fato sujeito produtor através da práxis de ideologias Essa ideologia não é fruto da abstração de ideólogos mas da ação 26 O termo designa o estudo dos fenômenos a partir de suas fi nalidades como constituidores de seu sentido ao contrário das considerações sobre suas causas ou origens Ver Japiassu e Marcondes 27 A consciência alienada desde Hegel até Marx ao menos nos primeiros escritos deste não signifi ca necessariamente uma falsa consciência mas a consciência espontânea possível de uma determinada formação social 28 A expressão autonomia relativa tem aqui sentido diferente da utilizada pela linha explicativa an terior pois não se trata de maior ou menor grau de autonomia da sua condição de refl exo do processo material de produção da vida mas de um conjunto de possibilidades limitadas é claro da práxis huma na 29 Queremos dizer nessa passagem que o problema da distinção entre ciência e ideologia não se estabe lece nesse caso pelo critério da busca do discurso verdadeiro mas sim pela distinção dos métodos ins trumentos e operações mentais bem como as formas de expressão que as distingue Ciência e ideologia não são a mesma coisa embora se misturem nos processos mentais que as constituem Uma não é mais encarada como verdade e outra como falsidade e viceversa 30 A teleologia supõe um sujeito mas não necessariamente um sujeito metafísico pois este se funda na práxis já defi nida anteriormente e implica a consciência de uma possibilidade posta no interior de uma determinada formação social bem com a busca racional de meios adequados a fi ns humanos produzidos através da práxis histórica Ver Karel Kosik 1986 337 Capítulo 12 Leituras de Marx Paulo M dAvila Filho criadora do movimento das massas e sua produção de cultura aspirações cos tumes crenças etc Se a ideologia é fruto da ação humana também é formadora dessas ações A teoria fi losófi ca ou científi ca como qualquer atividade do homem está permea da pela ideologia não há como separálas Essas teorias no entanto só se trans formam em ideologia quando ganharem legitimidade junto à prática dos atores sociais quando apropriadas pela vida das massas quando se transformam em substrato cultural compartilhado Só dessa maneira essas teorias ganham a força material que possuem as ideologias Aqui a ideologia é concebida a partir de uma relação dialética o conjunto das formas do pensar humano é permeado pela ideologia que lhe é anterior mas ao mesmo tempo é valorizada a capacida de humana de produzir novas ideologias Estas só se tornarão ideologias de fato enquanto uma consciência coletiva Nesse sentido a ideologia é fundadora de e ao mesmo tempo fundada pela ação dos homens Nesta chave que estamos chamando de humanista a preocupação é res gatar uma dialética materialista centrada no homem em sua relação com a obje tividade com as estruturas e condições sociais que ele mesmo criou ou seja as objetivações Uma dialética que leve em consideração não apenas uma lógica ra cional abstrata mas as condições ontologicamente concretas nas quais se operam as opções dos sujeitos humanos Uma ontologia que vê na práxis uma media ção categórica necessária entre a subjetividade dos sujeitos e a objetividade que eles transformam Uma práxis como essência humana da História Uma História como produto dessa práxis e não algo que lhe é estranho superior anterior ou mesmo seu determinante único imutável A perspectiva procura justamente desagregar essa anterioridade única defi nida a priori Noção que está presente por exemplo em Lênin A História é sempre mais variada mais rica mais complexa e mais astuta do que imaginam as vanguardas mais conscientes dos melhores partidos e das classes mais avançadas Lênin 1982 p 57 Enfi m uma teoria centrada no Homem em sua ação e refl exão Konder 1980 Um humanismo fi losófi co muitas vezes esquecido pelos marxistas e seus crí ticos apesar de estar presente na obra de Marx em diversos escritos entre os quais destacamos os Manuscritos Econômicos e Filosófi cos de 1844 a Crítica da Filosofi a do Direito de Hegel 1843 as Onze Teses sobre Feuerbach 1843 e passagens de O capital 1867 e em algumas cartas enfi m ao longo de boa parte da sua obra fi losófi ca 126 A diversidade marxista Depois da morte de Marx o conceito de ideologia começou a adquirir novos signifi cados de acordo com as leituras que os marxistas contemporâneos 338 ELSEVIER Curso de Ciência Política faziam de sua obra e da inclusão de suas próprias formulações Assim como a obra de Marx o marxismo não tem uma teoria única da ideologia A diversidade apontada é reproduzida pelos autores marxistas contemporâneos As interpre tações eou formulações desses autores são muitas vezes diferentes chegando mesmo em alguns casos a ser discrepantes Várias são as linhas de pensamento que se abrigam sob o imenso guardachuva do marxismo Cabe ressaltar que está subjacente a toda essa polêmica um debate acerca do grau de autonomia que possuem as representações a ideologia em relação às condições de produção de uma determinada formação social Está também em disputa a centralidade da produção das ideologias se no sujeito na práxis ou nas estruturas de produção nas relações sociais de produção No segundo caso o sujeito o Homem passa a ser apenas um suporte e não um produtor E fi nalmente encontrase em confl ito a ideias do caráter puramente negativo da ideologia como ilusão e dominação e à posição que advoga ter a ideologia em conteúdo positivo enquanto produção humana e agente de transformação Resumindo o argumento aqui explorado apresentamos duas formas de conceber o signifi cado da ideologia no pensamento de Marx e Engels que cor respondem a duas formas distintas e instigantes de interpretar o conceito Uma delas valoriza a estrutura e suas determinações na análise social outra valoriza o sujeito como elemento criador O estruturalismo e o humanismo respectiva mente foram as duas grandes vertentes enfatizadas nesta empreitada Entre os primeiros podemos incluir Louis Althusser o argelino naturali zado francês que estabelece uma oposição entre a ciência a verdade e a ideolo gia o enganoso Desse modo o conceito ganha um caráter negativo como ilusão falsidade e como instrumento de dominação Esta corrente se subdivide entre aqueles que reconhecem a existência de várias ideologias em confl ito e os que acreditam só haver uma que é a dominante Entre os segundos podemos citar o revolucionário russo Lênin o marxista italiano Antonio Gramsci e o húngaro George Lukács que desfazem a oposição acima referida mas dividemse quan to à possibilidade de existirem ideologias relacionadas à luta de classe e outros confl itos sociais ou se há apenas uma um campo que representa a globalidade da produção de sentidos pelos homens31 Na análise precedente procuramos sustentar a impossibilidade de se ex trair uma única defi nição a respeito dos sentidos atribuídos ao termo ideologia pelos fundadores do marxismo O objetivo desse percurso no entanto foi dar 31 A perspectiva encontra ainda outros rumos em marxistas como Habermas Adorno e Horkhaimer na tradição da Escola de Frankfurt e na Escola de Budapeste com Karl Korch Agnes Heller István Mészáros e Karel Kosik entre outros Ver DAvila 1991 339 Capítulo 12 Leituras de Marx Paulo M dAvila Filho visibilidade à tensão existente na obra de Marx entre as determinações da es trutura e a valorização do sujeito criador Esta tensão estará presente na análise marxista de diversos objetos Na teoria da história no grau de autonomia do ator social frente às estruturas sociais portanto em uma teoria da ação e no grau de autonomia e padrões de interação nas relações entre as esferas por exemplo econômica social política e cultural da humanidade Mesmo se consideramos isoladamente uma dessas esferas para fi ns de aná lise a tensão permanece Tomando como objeto certamente por vício de forma ção a política os dois vieses voltam a se confrontar De certa forma estarão em relevo os enquadramentos distintos do lugar da política na vida humana Se ela a política é um ato de criação do sujeito ainda que constrangido pelas circunstân cias sociais ou se é uma derivação de estruturas que lhe sobre determinam 127 Marx o sujeito e a política A relação de Marx com a política poderia parecer óbvia afi nal de contas o fi lósofo economista ou cientista social foi antes de tudo um intelectual que pensou a política com a fi nalidade de intervir para transformar o mundo em que vivia Ele foi um dos fundadores da I Internacional32 e no fi m do século XIX havia se tornado a principal referência teórica do movimento socialista europeu Nenhum outro autor ganhou tanta projeção social fora dos muros da acade mia como Marx Revoluções foram feitas em seu nome O alemão contudo não construiu uma teoria sistematizada da política Apesar de todo o ativismo políti co Marx será acusado pelo discurso acadêmico de não valorizar a política como objeto A crítica é procedente de fato não encontramos sequer uma obra que sistematize uma teoria do Estado ou uma análise do governo enquanto sistema de poder como em Weber ou Durkheim por exemplo Isso não signifi ca dizer que Marx não tenha pensado sobre o signifi cado da política em seu modelo analítico O problema da percepção acerca do lugar ocupado pela política no constructo marxiano também pode ser enquadrado a partir das lentes apresentadas até aqui A dimensão da tensão contida em sua obra sobre a questão da política pode ser percebida na análise de alguns de seus trabalhos Em texto escrito em 1859 Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política a estrutura econômica aparece como a base real sobre a qual se elevam as estruturas jurídica e política da sociedade A formulação está em acordo com 32 Internacional neste contexto signifi ca a Associação Internacional dos Trabalhadores 18641876 A Primeira Internacional foi uma federação internacional de organizações da classe trabalhadora de vários países da Europa central e ocidental 340 ELSEVIER Curso de Ciência Política a clássica distinção entre a infraestrutura econômica que determina em última instância a superestrutura jurídicopolítica contida mais uma vez em A Ideolo gia Alemã de 1845 Nestes textos a política aparece como um epifenômeno um fenômeno subordinado à estrutura econômica Por esta razão o poder político e o Estado em uma estrutura capitalista só pode estar a serviço dos interesses da classe que domina o mundo do trabalho e da produção o capitalista A política assim é confi nada ao mesmo lugar da ideologia garantir a manutenção das rela ções de produção e exploração capitalista do trabalho Em um trecho famoso do Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política Marx resume de forma magistral o argumento O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral de vida social político e espiritual Não é a consciência do homem que de termina o seu ser mas ao contrário é o seu ser social que determina sua consciência Em uma certa etapa de seu desenvolvimento as forças pro dutivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes Sobrevém então uma época de revolução social Com a transformação da base econômica toda a enorme superes trutura se transforma com maior ou menor rapidez Marx 1987b p 30 Nesta chave a política não possui capacidade criadora ela é o resultado de um processo nunca a ação que conduz É possível interpretar que o papel do ator que deseja a revolução social é saber aguardar o momento em que as con tradições chegarão ao seu limite e só então agir de acordo Em outros textos contudo como as cartas a Ludwig Kulgeman redigi das em 1862 Marx apresentava outras perspectivas analíticas Os instrumentos teóricos para a análise do econômico das relações sociais de produção não ga rantem a avaliação da diversidade de formas de Estado das diversas formas do exercício do poder político Mais de uma década depois em Crítica ao Programa de Gotha escrito em 1875 Marx afi rma A sociedade hodierna é a sociedade capitalista que existe em todos os países civilizados mais ou menos modifi cadas pelo desenvolvi mento histórico particular de cada país mais ou menos desenvolvida O Estado hodierno pelo contrário muda com as fronteiras do país No Império prussoalemão é diferente de na Suíça na Inglaterra é di ferente de nos Esta dos Unidos O Estado hodierno é portanto uma fi cção Marx 1985 p 24 Seguindo essa linha nos Gundrisse 1858 notas reunidas em um ensaio realizado visando a redação de O Capital em seu segundo volume publicado postumamente 19391941 encontrase uma interessante análise das distinções 341 Capítulo 12 Leituras de Marx Paulo M dAvila Filho na formação dos Estados americano e russo Neste viés a forma dos Estados é determinada por diferenças sociopolíticas e não apenas nas relações sociais ca pitalistas de produção da vida econômica A perspectiva acima se coaduna com uma outra abordagem contida nos chamados textos históricos ou políticos Em Luta de Classe na França 1850 e no Dezoito de Brumário de Luís Bonaparte 1851 anteriores à década de 1870 portan to a diversidade marxiana encontra o ator O ator social o agente da ação e suas escolhas ainda que constrangidas pelas condições sociais nas quais a disputa política se realiza Mais uma vez fi camos diante da valorização do sujeito peran te a trama dos acontecimentos A alegoria da política enquanto teatro encontra aqui um palco privilegia do Logo no segundo parágrafo do Dezoito de Brumário em uma passagem co nhecida mas nem sempre interpretada com cuidado Marx já deixa claro quem ou o que é o protagonista de sua narrativa Os homens fazem a sua própria história mas não a fazem segundo sua livre vontade em circunstâncias escolhi das por eles próprios Marx 1982d p 417 Este trecho poderia sugerir que o que impede os homens de fazerem a história são as estruturas ou as determi nações econômicas mas não é disto que se trata Na sequência fi ca claro que Marx se refere a uma espécie de autonomia relativa das representações simbó licas e da cultura política como ambiente que orienta e constrange os persona gens da trama social Os homens fazem a história mas não a fazem segundo a sua livre von tade em circunstâncias escolhidas por eles próprios mas nas circuns tâncias imediatamente encontradas dadas transmitidas A tradição de todas as gerações mortas pesa sobre o cérebro dos vivos como um pe sadelo E mesmo quando estes parecem ocupados em revolucionarse a si e às coisas mesmo a criar algo que ainda não existe é precisamente nestas épocas de crise revolucionária que esconjuram temerosamente em seu exílio os espíritos do passado para com esta linguagem em prestada representar a nova cena da história universal Marx 1982d p 417 Neste trecho porém Marx estava criticando as tentativas de colar a ima gem dos movimentos políticos entre 1848 e 1851 na França com a revolução 342 ELSEVIER Curso de Ciência Política francesa de 178933 e o posterior império napoleônico Luís Bonaparte o sobrinho do o revolucionário Napoleão Bonaparte como uma paródia do período épico francês A sua verdadeira revolução seria capaz de romper com toda a tradição romper com os grilhões da fantasia das máscaras e do discurso vazio Marx quer diferenciar a sua revolução proletária do engodo representado pelas revo luções inspiradas nas revoluções burguesas A revolução social do século XIX não pode tirar a sua poesia do pas sado mas apenas do futuro Não pode começar consigo mesma antes de se limpar de toda a superstição perante o passado As revoluções anteriores necessitavam de reminiscências da história universal para dissimularem o seu próprio conteúdo A revolução do século XIX tem que enterrar os seus mortos para chegar ao seu próprio conteúdo Ali a frase ultrapassava o conteúdo aqui o conteúdo ultrapassa a frase Marx 1982d p 419 Se na passagem anterior o sujeito já aparece como agente embora traves tido do passado nesta é concebida a possibilidade da ruptura com as estruturas sociais econômicas e culturais É a emancipação por excelência da vontade polí tica sobre as coisas Não só o conteúdo ultrapassa a frase mas a ação deliberada supera as coisas transcende A teleologia antes embutida no processo de traba lho na qual imaginamos o produto da ação e agimos de acordo agora é alçada ao fazer político Não há transformação sem sujeito A crença na capacidade criativa da política chega ao paroxismo É não somente possível como desejável o rompimento com todos os grilhões sociais Se as determinações das estruturas podem trazer problemas à análise po lítica obscurecendo o papel do agente a perspectiva da ruptura também enseja difi culdades ao entendimento da conexão entre a ideia de mudança tradição e cultura A análise da política contudo fi ca mais rica dessa forma Sua valoriza ção depende do protagonismo do ator político e da ideia de agência Por essa razão a matriz do marxismo humanista é mais generosa com a possibilidade da interpretação da política como ato de criação ou como categoria de mediação necessária entre as aspirações ideações valores e fi ns humanos e a vida social 33 A referência aqui são a dois momentos distintos da história francesa O primeiro é o da Revolução Francesa de 1789 ao qual se seguiu o período mais agudo da Convenção 17921795 liderado pelos jacobinos e marcado pelo Terror e um outro momento o do Diretório 17951799 capitaneado pelos Girondinos um período mais brando das aspirações revolucionárias e que será suplantado pelo golpe de estado de Napoleão Bonaparte 1799 abrindo as portas para o período da história francesa chamado de Império Napoleônico 18041814 Quase meio século mais tarde em 1848 eclode na França uma revolução que após passar por um período mais radical e outro mais brando culmina com o golpe de estado de Luís Bonaparte sobrinho de Napoleão em 1851 343 Capítulo 12 Leituras de Marx Paulo M dAvila Filho os constrangimentos estruturais as formas de exercício do poder e as circuns tâncias nas quais os processos sempre diversos do confl ito social se realizam Marx como um homem de ação atento aos movimentos políticos de seu tempo não fi cou alheio a esta possibilidade de encarar a autonomia relativa da política É possível identifi car contudo uma outra tensão similar à anteriormente referi da agora entre agência ou agenciamento do ator e estrutura Segundo Raymond Aron 1990 reconhecido comentador das obras dos clás sicos da sociologia ao comparar as narrativas de Karl Marx e Alexis de Tocqueville sobre a crise política francesa de 1848 apresenta ponto de vista diferente Tocqueville mantém o caráter específi co ou a autonomia pelo menos relativa da ordem política Marx ao contrário procura em todas as ocasi ões encontrar uma correspondência termoatermo entre os acontecimen tos no plano político e na infraestrutura social Aron 1990 p 266 Aqui a infraestrutura diz respeito aos interesses de classe Interesses que pontuam toda a narrativa Esses interesses são provenientes da posição ocupada pelas classes ou fra ções de classe dentro da estrutura produtiva das relações de produção Este é o tributo que Marx paga ao seu modelo de análise alicerçado na contradição entre o capital e o trabalho Contradição esta que descreve a dialética política do mun do moderno e constitui a base do seu materialismo histórico Esta perspectiva nunca sai do horizonte do autor Uma coisa porém é ancorar interesses que movem a agência política às estruturas sociais de produção outra bem diferente é sugerir que essas estruturas determinam o resultado da ação Marx não está negando a autonomia relativa da política mas combatendo toda e qualquer in terpretação voluntarista da política Conduz sua fabulação em uma linha tênue entre a valorização do sujeito da ação política e suas conexões com a estrutura social produtiva Tratase de mais uma tensão entre as determinações das relações sociais de produção e da estrutura de classes e o agenciamento político operado pelos atores sociais grupos de interesse ou frações de classe em ação na trama polí tica O desfecho não seria apenas o refl exo das forças materiais mas depende também da composição do conjunto de ações dos atores sociais movidos por seus interesses constrangidos pelas estruturas e pela cultura política 128 Marx e a História Talvez o texto que melhor expresse a tensão que estamos explorando seja o seu mais conhecido trabalho Possivelmente o panfl eto mais famoso da his 344 ELSEVIER Curso de Ciência Política tória O Manifesto Comunista 18471848 Não é o texto de maior envergadura teórica ou analítica É um texto de exortação à militância escrito no contexto das disputas políticas em torno das revoluções e levantes de 1848 Nesse perío do o sentimento é de que a Europa é tomada por uma onda revolucionária e Marx não fi ca alheio a esse sentimento produzindo um trabalho que revela sua aposta política na revolução onde quer que ela possa eclodir Nas palavras de Hobsbawn Nunca na história da Europa e poucas vezes em qualquer outro lugar o revolucionarismo foi tão endêmico tão geral tão capaz de se espalhar por propaganda deliberada como por contágio espontâneo Karl Marx assim como Aléxis de Tocqueville em Lembranças de 1848 1991 talvez tenha sido um dos intelectuais que mais profundamente captou o espírito dos movimentos revolucionários que culminam em 1848 Marx no Manifesto Comunista 1982c tem a fortuna de apresentar sua versão da gênese do mundo moderno consubstanciada na intangível luta de classes entre o proletariado e a burguesia Encontrava assim os atores principais do grande teatro da política moderna os personagens capazes de corporifi car a sua fi losofi a da história de matriz hegeliana compondo os elementos da contradição dialética que pode riam levar a superação do mundo burguês a burguesia não forjou apenas as armas que lhe trazem a morte tam bém gerou os homens que vão usar estas armas os operários modernos os proletários na mesma medida que a burguesia se desenvolve desenvolvese também o proletariado Marx e Engels 1982c p 112 O manifesto é um texto de referência para o movimento operário e comu nista no mundo todo É o texto mais lido e comentado de Marx muito já se escre veu sobre essa obra sobre os mais diferentes ângulos e abordagens34 No prefácio à edição alemã de 1872 Marx 1982c nos conta que A Liga dos Comunistas uma associação operária internacional que nas circunstâncias em que então exis tia não podia obviamente deixar de ser secreta encarregou os abaixoassinados no congresso realizado em Londres em novembro de 1847 da redação para pu blicação de um programa teórico e prático pormenorizado do Partido Assim nas ceu o Manifesto Comunista cujo manuscrito seguiu viagem para Londres para ser impresso poucas semanas antes da revolução de fevereiro de 1848 na França Publicado pela primeira vez em alemão depois em inglês teve inúmeras edições e foi publicado em diversas línguas e países nos anos setenta oitenta e noventa do século XIX Décadas mais tarde parece ter feito mais sucesso do que assim que foi lançado Segundo Engels no prefácio a edição alemã de 1890 poucas foram 34 Ver Laski e Schumpeter 1982 e Coutinho 1998 345 Capítulo 12 Leituras de Marx Paulo M dAvila Filho as vozes que responderam quando gritávamos ao mundo proletários de todos os países univosMarx e Engels 1982c p 101 No Manifesto está contida tanto a estrutura em movimento como a ação dos sujeitos encarnados no ator coletivo classe social É possível compreender a ação desses atores como cumprindo um destino já traçado na concepção da fi losofi a da história mas ao mesmo tempo a conjuntura clamava pela urgência da intervenção dos homens organizados a partir de interesses a revolucionar os mais diversos contextos do mundo europeu O Manifesto parece sintetizar o dilema weberiano35 entre o homem da ciência com seus instrumentos suas determinações e análise macroestruturais e a liderança política enlevada pela ética da convicção plena de motivação militante Os aspectos conjunturais da obra não são relegados pelos autores nos pre fácios subsequentes como no da edição alemã de 1872 Embora as condições muito se tenham alterado nos últimos vinte e cinco anos os princípios gerais desenvolvidos neste Manifesto conservam ain da hoje sua plena correção A aplicação prática destes princípios como o próprio Manifesto torna claro dependerá sempre e em toda a parte das circunstâncias históricas existentes e por isso não se atribui de modo algum nenhuma importância especial às medidas revolucionárias propostas no fi m do capítulo II Marx e Engels 1982c p 95 Os princípios gerais que estruturavam em 1848 a teoria marxiana da His tória no entanto são a tônica da valorização do Manifesto Comunista em suas edições posteriores Valor enquanto síntese teórica de um trabalho científi co ini ciado em 1845 com a Ideologia Alemã Engels após lamentam ter de escrever o prefácio à edição alemã de 1883 sem a parceria de Marx tratase da primeira edição após sua morte realiza uma síntese preciosa dos princípios contidos na obra O pensamento basilar que percorre todo o Manifesto a saber que a produção econômica e a estrutura social dela necessariamente decor rente de qualquer época histórica política e intelectual dessa época que consequentemente toda a história desde a dissolução da posse comunitária primordial da terra tem sido uma história da luta de clas ses lutas entre classes exploradas e exploradoras dominadas e domi nantes em diferentes etapas do desenvolvimento social que esta luta porém atingiu agora uma etapa em que a classe explorada e oprimida o proletariado já não se pode libertar da classe exploradora e opres sora a burguesia sem ao mesmo tempo libertar para sempre toda a 35 Ver Weber 1982 346 ELSEVIER Curso de Ciência Política sociedade de exploração da opressão e das lutas de classes Marx e Engels 1982c p 98 Em uma nota à edição alemã de 1890 complementa Já alguns anos antes de 1845 estávamos Marx e eu ambos a aproximarnos desta ideia ideia que em minha opinião está destinada a fundamentar na ciência da história o mesmo progresso que a teoria de Darwin fundamentou na ciência natural Marx e Engels 1982c p 99 grifo meu O problema da concepção de História em Marx é controverso mesmo en tre os próprios marxistas Defrontamonos com pelo menos dois grandes veios que correspondem à tensão que vem sendo explorada Um opera com determi nações históricas exteriores ao sujeito enquanto outro privilegia a vontade dos sujeitos nos processos de mudança calcados na categoria de práxis valorizando assim a ação transformadora Fora da identidade marxista muitos comentado res da obra de Marx se digladiaram em torno da espinhosa questão Hannah Arendt 1979 por exemplo reconhece essa tensão ao procurar demonstrar que Marx combina a crença iluminista no progresso e no poder da ação humana com os desígnios superiores das fi losofi as teológicas tornadose a História um objeto resultante de um processo de fabricação Segundo Arendt ao imaginar ser possível fazer História Marx conceberia a existência de um fi m para a própria História identifi cado com o encerramento da manufatura humana da História com a abolição da luta de classes A partir desse momento uma nova História seria encenada cujos elementos propulsores seriam ainda desconheci dos Nessa perspectiva a necessidade histórica e o caráter teleológico da ação humana em Marx se confundem originando um edifício teórico no qual a História se confi gura em um processo cujos limites são cognoscíveis O conteúdo teleológi co do conceito de trabalho em Marx fundamento ontológico da ideia de homem nos escritos de juventude seria aplicado ao fazer histórico da humanidade Para François Furet 1986 por outro lado tratase menos de uma tensão do que de uma ambiguidade Observa que na análise das revoluções Marx ora inclui ora exclui a noção de necessidade histórica A revolução na França seria interpretada como resultado inevitável do advento da sociedade burguesa em forma de percurso e desfecho ao passo que a ausência de revolução na Alema nha de 1848 ou seu fracasso é explicada centralmente pela incapacidade dos atores a pusilanimidade da burguesia alemã Furet 1986 p 4445 O fracasso da revolução não invalida no entanto a existência prévia de uma sociedade burguesa ameaçada pela classe operária e que encontra para além das revolu ções outras formas de se exprimir ressalta Furet que é taxativo acerca do caráter contraditório da análise marxiana 347 Capítulo 12 Leituras de Marx Paulo M dAvila Filho No primeiro caso Marx reduz a revolução à manifestação de seu conteú do social enquanto no segundo consideraa unicamente como uma das vias possíveis mas não inevitáveis de afi rmação da sociedade burguesa No primeiro caso subordina o político no segundo emancipao prova de uma contradição inerente à sua teoria da História notadamente na análise das revoluções francesas do século XIX Furet 1986 p 6465 Nos trabalhos sobre as revoluções no século XIX na França a tensão men cionada permanece é verdade Não cremos porém tratarse de uma contra dição inerente O olhar lançado sobre o mundo moderno indica para Marx a existência de atores sociais movidos pela necessidade e pelo interesse compo nentes indissociáveis dos processos históricos no mundo burguês Ainda que admitida uma inevitável afi rmação do mundo burguês sobre os escombros da velha ordem isso não signifi ca que se percam de vista as condições particulares de cada passagem O fato de Marx enxergar uma fraqueza na burguesia alemã e isso representar uma perspectiva de ascensão do proletariado ainda que não confi rmada aponta menos uma contradição do que o reconhecimento de possi bilidades de vias distintas para os processos de ruptura Essas duas tendências de fato se encontram como tensão constante nas formulações de Marx como venho repetidamente salientando ora encontramos um determinismo da materialidade prática do mundo social sobre os indiví duos ora uma valorização da ação humana racional em relação às suas possi bilidades históricas Há em Marx um movimento geral da história em direção ao capitalismo e com este à formação inerente do germe de sua ruína o proleta riado Conhecidos os princípios ordenadores do movimento histórico a relação entre forças produtivas e as relações de produção podemos identifi car os limites de cada formação social Deriva daí o conceito de necessidade histórica en contrado em alguns textos como no Prefácio à Crítica da Econômia Política como indicado anteriormente É preciso lembrar contudo que com o capitalismo uma nova dinâmica histórica se apresenta A superação da formação social virá com a ação dos no vos atores sociais principalmente o proletariado Em que pese a ideia de ima nência muitas vezes atribuída a essa assertiva tratase de notar que o movimen to histórico passa a considerar a ação dos atores sociais Marx revela estes atores de modo notável no Manifesto Comunista de 1848 129 Palavras finais Não há nada mais ousado no universo do que o homem pois o conteúdo mais íntimo de sua historicidade é precisamente a ousadia engendrada pela te 348 ELSEVIER Curso de Ciência Política leologia do trabalho Ao produzir socialmente os homens passam a se produzir como seres que reconhecem alternativas e se apaixonam por elas Como assi nalou Marx em cada novo projeto o arquiteto imagina um edifício melhor Nesse sentido o fenômeno humano de fato foi gesto irresponsável da nature za consigo mesma uma inconsequência que cabe exclusivamente à consciência resgatar e atribuir um sentido Para realizar esta missão a consciência não deve somente começar perquirindo a si mesma pois não está apenas nela a chave para compreender as tendências do movimento do mundo da práxis humana As opções sejam dos indivíduos ou das classes sempre se encontram constran gidas pelas condições históricas e sociais nas quais se plasmam O fenômeno humano no entanto caracterizase de certa forma como rebeldia permanente da criatura em relação a seu criador a natureza Por isso como nos mostra Marx em boa parte da sua obra o homem é um ser que conhece e se reconhece à me dida mesmo que se constrói A matéria tomado o conceito em sua amplitude fi losófi ca é anterior ao pensamento a realidade entretanto é um pressuposto e um resultado como concreto pensado enquanto produto da práxis humana conforme apontou Marx ao apresentar o seu método em Para a Crítica da Eco nomia Política 1859 Neste momento a realidade o concreto tornase objeto para o homem Sua tentação idealista é atribuirlhe um em si que possui uma anterioridade que ele Homem não possui como se existisse já no universo adormecido anterior ao homem Um anterior que pode ser Deus a economia as estruturas sociais o espírito etc O marxismo é uma fi losofi a profana e como tal deve ser encarada aos mol des dos hereges sem respeitar dogmas ou verdades imutáveis Por essa razão não se deve debruçar sobre este objeto com os medos de quem se vê diante de uma Bíblia Por outro lado não menos nocivo pode ser o comportamento característico dos anos 90 do século passado século XX que procurou des constituir a validade e a importância de Marx e do marxismo transformando a riqueza de suas contribuições em meras vulgaridades Ambas as perspectivas possuem pouco rendimento e credibilidade 1210 Perguntas para reflexão 1 Quais seriam algumas das dificuldades de se falar de Marx e do marxis mo 2 Quais seriam as três principais fontes de inspiração da obra de Marx e Engels 349 Capítulo 12 Leituras de Marx Paulo M dAvila Filho 3 Defina os sentidos de obra marxiana e de marxismo apresentados no texto Por que é importante estabelecermos uma distinção entre a obra marxiana e o marxismo 4 Por que é possível dizer que o tratamento dado ao conceito de ideologia pode nos ajudar a enxergar a diversidade contida na obra de Marx 5 No que consiste o primado da estrutura na obra de Marx e que textos expressariam melhor a ideia de determinação das estruturas sobre a vida humana 6 Explique o sentido da valorização do sujeito contida na obra de Marx e indique os textos que expressariam melhor esta ideia 7 O estruturalismo marxista e o humanismo marxista são vertentes de pensamento que extraem suas perspectivas da obra marxiana Explique o que as distingue e cite ao menos um autor que represente cada verten te 8 Em que medida a valorização do sujeito contida na obra de Marx con tribuiria mais para o reconhecimento do papel da ação política na vida humana do que a perspectiva do primado da estrutura Em quais tex tos de Marx podemos encontrar a perspectiva que valoriza certa autono mia da política em relação às estruturas econômicas 9 Explique a teoria da história contida no Manifesto Comunista 10 Depois de conhecer o texto proposto explique com suas palavras por que podemos falar em leituras de Marx Bibliografia ALTHUSER Luis Aparelhos ideológicos de Estado 2 ed Rio de Janeiro Graal 1985 Para ler o capital Rio de Janeiro Zahar Editores 1979a v I A favor de Marx 2 ed Rio de Janeiro Zahar Editores 1979b Materialismo histórico e materialismo dialético São Paulo Global Editora 1979c ANDERSON Perry Considerações sobre o marxismo ocidental 2 ed São Paulo Brasiliense 1980 ARENDT Hannah Entre o passado e o futuro São Paulo Perspectiva 1979 350 ELSEVIER Curso de Ciência Política ARON Raymond As etapas do método sociológico São Paulo UNBMartins Fontes 1990 BOTTOMORE Tom Dicionário do Pensamento Marxista 2 ed Rio de Janeiro Zahar Editores 1988 COUTINHO Carlos Nelson O Manifesto Comunista 150 anos Depois Karl Mark Friedrich Engels São Paulo Fundação Perseu Abramo Contrapon to 1998 DAVILA Paulo Filho As Ideologias de Marx Um Mergulho na Diversida de Marxista Monografi a mimeo Rio de Janeiro IFCS UFRJ 1991 ENGELS Friederich Ludwig Feuerbach e o fi m da Filosofi a Clássica Alemã In Obras escolhidas Vol III Lisboa Edições Avante 1985a Cartas a F Mehring Lisboa Edições Avante 1985b Col Obras Escolhidas v III Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científi co Lisboa Edições avan te 1985c Col Obras Escolhidas v III FEDOSSEIEV P N et al Karl Marx Biografi a Lisboa Edições Avante 1983 FERNANDES Florestan Marx e Engels 2 ed São Paulo Ática 1984 Coleção Grandes Cientistas Sociais FURET François Marx e a Revolução Francesa Rio de Janeiro J Zahar 1989 GARAUDY Roger Para Conhecer o Pensamento de Hegel Porto Alegre LPM 1983 GRAMSCI Antonio Concepção Dialética da História 6 ed Rio de Janeiro Ci vilização Brasileira 1986 Os intelectuais e a Organização da Cultura 2 ed Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1982 Maquiavel A Política e o Estado Moderno Rio de Janeiro Civiliza ção Brasileira 1968 HEGEL Friederich A fenomenologia do espírito São Paulo Nova Cultural 1988 HOBSBAWN Eric História do Marxismo Rio de Janeiro Paz e Terra 1979 JAPIASSU Hilton MARCONDES Danilo Dicionário Básico de Filosofi a Rio de Janeiro Zahar 1991 KONDER Leandro A Derrota da Dialética a Recepção das Ideias de Marx no Brasil Rio de Janeiro Campus 1988 Lukács In Fontes do Pensamento Político Porto alegre LPM 1980 KOSIK Karel Dialética do Concreto 4a ed Rio de Janeiro Paz e Terra 1986 351 Capítulo 12 Leituras de Marx Paulo M dAvila Filho LASKI Harold Joseph SCHUMPETER Joseph Alois O Manifesto Comunista de Marx e Engels 3 ed Rio de Janeiro Zahar 1982 LENINE V I Materialismo e empiriocriticismo Lisboa Edições Avante 1982 O que Fazer In Lisboa Edições Avante 1977 Col Obras Esco lhidas v I As três partes e as três fontes constitutivas do marxismo Lisboa Edi ções Avante 1978 Col Obras escolhidas v II LUKÁCS Georg História e consciência de classe Estudos da dialética Marxista 2 ed Rio de Janeiro Elfos 1989 A ontologia do Ser Social In NETTO José Paulo org Lukács Coleções Grandes Cientistas Sociais São Paulo Ática 1985a A ontologia de Marx Questões metodológicas preliminares In NETTO José Paulo org Lukács Coleções Grandes Cientistas Sociais São Paulo Ática 1985b A falsa e a verdadeira ontologia de Hegel São Paulo Livraria Ciên cias Humanas 1979 MARX Karl ENGELS F A Ideologia Alemã Lisboa Edições Avante 1982a Col Obras escolhidas MARX Karl Manuscritos Econômicos e Filosófi cos de 1844 São Paulo Nova Cultural 1987a Col Os Pensadores Prefácio à Crítica da Economia Política São Paulo Nova Cultural 1987b v I Col Os Pensadores Para a crítica da economia política São Paulo Nova Cultural 1987c v I Col Os Pensadores Onze Teses sobre Feuerbach São Paulo Nova Cultural 1987d v I Col Os Pensadores Crítica ao Programa de Gotha Lisboa Edições Avante v III 1985 Col Obras Escolhidas Cartas a Kugelmann Lisboa Edições Avante v II 1983a Col Obras Escolhidas Os Grundrisse Manuscritos Econômicos e Filosófi cos de 185758 Lis boa Edições Avante v II 1983b Col Obras escolhidas Luta de Classes na França Lisboa Edições Avante v II 1983c Col Obras Escolhidas A Guerra Civil em França Lisboa Edições Avante v II 1983d Col Obras Escolhidas Manifesto do Partido Comunista Lisboa Edições Avante v I 1982c Col Obras Escolhidas 352 ELSEVIER Curso de Ciência Política O 18 de Brumário de Louis Bonaparte Lisboa Edições Avante v I 1982d Col Obras Escolhidas O capital Livro I O Processo de Produção do Capital São Paulo Difel 1977a v I Crítica da Filosofi a do Direito de Hegel In Temas de Ciências Humanas São Paulo Civilização Brasileira 1977b v II MCDONOUGH Roisin Da ideologia Centre for Contemporary Cultural Stu dies da Universidade de Birmingham 2 ed Rio de Janeiro Zahar Edito res 1977 MEZÁRÓS Itsván Marx A Teoria da Alienação Rio de Janeiro Zahar Edito res 1981 PENNA Lincon A Marx e o Materialismo Histórico In Cadernos de Ciên cias Sociais Rio de Janeiro IFCS UFRJ 1986 n 2 PORTELLI Hugues Gramsci e o Bloco Histórico 4 ed Rio de Janeiro Paz e Terra 1987 ROCHA Ronald Teses Tardias Capitalismo e Revolução Social no Brasil Moder no São Paulo Interferência 1989 TOCQUEVILLE Alexis de Lembranças de 1848 as Jornadas Revolucionárias em Paris São Paulo Companhia das Letras 1991 WEBER Max A Ciência como Vocação In C Wright Mills org Ensaios de sociologia Rio de Janeiro Guanabara 1982 WEBER Max A Política como Vocação In CWright Mills org Ensaios de Sociologia Ed Guanabara 1982 WILLIANS Raymond Marxismo e Literatura Rio de Janeiro Zahar Editores 1979 VAZQUEZ Adolfo Sanchez Filosofi a da Práxis 3 ed Rio de Janeiro Paz e Terra 1977 Capítulo 13 O pensamento político de Max Weber e as concepções weberianas da sociedade brasileira Eduardo de Vasconcelos Raposo1 131 Introdução A vasta eclética e vigorosa obra de Max Weber 18641920 foi responsá vel por uma contribuição fundamental para a estruturação das ciências sociais no século XIX em um novo patamar Suas abordagens seus métodos suas teo rias e suas análises nos permitiram avançar signifi cativamente em um momento em que a divisão do trabalho acadêmico ainda não havia separado de maneira tão nítida a sociologia da ciência política e da antropologia cultural Trabalhan do interdisciplinarmente com essas e outras disciplinas Weber nos legou um Doutor em Ciências Políticas tendo estudado no IUPERJ e no Instituto de Estudos Políticos de Paris IEP para onde retornou nos meses de dezembro de 1998 e janeiro de 1999 na condição de pro fessor convidado Trabalhou por nove anos no CPDOCFGV Desde 1990 é professor e pesquisador do Departamento de Sociologia e Política da PUCRio onde foi diretor coordenando atualmente seu programa de PósGraduação em Ciências Sociais Contato raposopucriobr 354 ELSEVIER Curso de Ciência Política importante acervo de conhecimentos que nos possibilitou melhor conhecer as civilizações do mundo moderno o signifi cado social de suas crenças religiosas a racionalidade de suas práticas econômicas suas organizações sociais e suas formas de dominação política Hoje em dia com o acelerado processo de globali zação as ciências sociais em um movimento paradoxal se especializam ao mes mo tempo que quebram suas rígidas fronteiras criadas sobretudo no século XX quando as instituições eram mais sólidas e mais nítidas Tal movimento talvez nos permita de novo contar com uma interdisciplinaridade mais compatível com o mundo atual mais interdependente e mais desconhecido Entre os autores clássicos considerados fundadores da ciências sociais modernas como Karl Marx e Emilie Durkeim Weber foi o pensador que mais nos deixou uma refl exão sistemática e específi ca sobre o exercício do poder Nes te campo situamse seus trabalhos sobre Estado autoridade dominação políti ca legitimidade e organização que se tornaram referências indispensáveis para a compreensão das instituições políticas das sociedades modernas O presente trabalho pretende ser uma introdução ao pensamento político de Max Weber que estimule e convide à leitura de seus originais Para melhor compreensão dos argumentos e textos que serão aqui expostos dividimos esta apresentação nos quatro seguintes pontos 1 Uma breve notícia biográfi ca de Max Weber 2 A sociologia política de Max Weber 3 A contribuição dos conceitos weberianos para o entendimento da for mação social e política brasileira 4 A atualidade de Max Weber 132 Uma breve notícia biográfica Max Weber nasceu em Erfurt capital da Turíngia Estado localizado na região central da Alemanha no dia 21 de abril de 1864 Sua mãe Helene Fallens tein Weber tinha uma compreensão protestante e liberal do mundo Seu pai também Max Weber pertencia a uma família abastada de fabricantes e comer ciantes de produtos têxteis tendo exercido a advocacia e sido parlamentar de orientação nacionalliberal na dieta municipal de Berlim quando a família para lá se mudou em 1869 Em sua formação Weber teve oportunidade de conviver em reuniões pro movidas na casa de seus pais onde morou até os 29 anos de idade com escrito res políticos e professores o que presumivelmente estimulou e favoreceu sua vocação precoce para a leitura e a vida intelectual 355 Capítulo 13 O pensamento político de Max Weber e as concepções weberianas Eduardo de Vasconcelos Raposo Após terminar o colegial em 1882 Weber vai estudar Direito em Heidel berg participando também de aulas em outros campos do saber como história fi losofi a e economia Um ano e meio depois de sua ida para Heidelberg com 19 anos de idade vai prestar serviço militar por um ano na fronteira da Alemanha com a França na cidade de Estrasburgo Findo esse período matriculase nas Universidades de Berlim e Göttingen onde dois anos mais tarde em 1886 pres tou exame de Direito Em 1889 apresenta sua tese de doutoramento que teve como título A Contribution to the History of Madieval Business Organizations Em 1890 pres ta um segundo exame em Direito que o credencia para ensinar na Universidade de Berlim apresentando o trabalho Roman Agrarian History and its Signifi cance for Public and Private Law Em 1893 casase com Marianne Schnitger sobrinha neta de seu pai assumindo um ano mais tarde a cátedra de Economia da Universidade de Friburgo Em 1919 transferese para a Universidade de Mu nique falecendo um ano depois com 56 anos de idade Weber foi um intelectual erudito fruto da tradição humanista e racional e do ambiente político e cultural da Alemanha do fi nal do século XIX Precoce mente dedicouse ao estudo sistemático de disciplinas como história economia fi losofi a teologia sociologia política e direito tendo aprendido várias línguas como as indogermânicas o russo e o hebraico A partir de sua formação familiar onde conviveu com as convicções nacio nalistas liberais e protestantes de seus pais Weber presenciou e viveu o proces so de unifi cação da Alemanha liderado por Bismarck que veio a se incorporar ao conjunto dos EstadosNação da Europa Ocidental que se modernizava Essa circunstância colaborou sem dúvida para a atenção que deu aos temas políticos e institucionais e a importância que obteve sua sociologia política onde analisou a natureza do poder da política e da dominação no contexto da construção dos EstadosNação Weber que em sua vida adulta alternou fases de depressão e fases de profícuo trabalho intelectual deixou extensa e inigualável obra que se tornou referência obrigatória para os estudiosos das Ciências Sociais 133 A sociologia política de Max Weber Trataremos aqui dos conceitos de Política Estado Poder Patri monialismo Estamento Burocrático e Tipos de Dominação que serviram de base para relevantes interpretações da formação social e institucional do Bra sil algumas das quais serão comentadas na próxima sessão 356 ELSEVIER Curso de Ciência Política Quando se fala de sociologia política weberiana o primeiro aspecto a ser ressaltado é que os fenômenos políticos são ali tratados como fatos particulares portadores de uma lógica própria não sendo necessariamente epifenômenos que apenas refl etem outras dimensões da sociedade Como fi ca bastante claro em textos como Classe Estamento e Partido de seus Ensaios de Sociologia nessas diferentes instâncias sociais ocorrem disputas por poder privilégios e recursos sendo que as mesmas podemse infl uenciar reciprocamente sem que haja uma hierarquia predeterminada O poder condicionado economicamente não é decerto idêntico ao poder como tal Pelo contrário o aparecimento do poder econômico pode ser a consequência do poder existente por outros motivos O ho mem não luta pelo poder apenas para enriquecer economicamente O poder inclusive o poder econômico pode ser desejado por si mesmo Muito frequentemente a luta pelo poder também é condicionada pelas honras sociais que ele acarreta Nem todo poder porém traz honras sociais o chefe político americano típico bem como o grande especu lador típico abrem mão deliberadamente dessa honraria Geralmente o poder meramente econômico em especial o poder fi nanceiro puro e simples não é de forma alguma reconhecido como base de honras sociais Nem é o poder a única base de tal honra Na verdade ela ou o prestígio podem ser mesmo a base do poder político ou econômico e isso ocorreu muito frequentemente O poder bem como as honras podem ser assegurados pela ordem jurídica mas pelo menos normal mente não é a sua fonte primordial A ordem jurídica constitui antes um fator adicional que aumenta a possibilidade de poder ou honras mas nem sempre pode assegurálos Weber 1982 p 126 A esse respeito Weber em seu texto A Objetividade do Conhecimento nas Ciências e na Política Sociais encontrado no livro Sobre a Teoria das Ciências Sociais é bem claro ao ressaltar que Se existe luta não tem apenas como objeto os interesses de classe como tanto nos agrada pensar hoje em dia mas também as concepções do mundo Como é natural isto não cerceia a verdade do fato de que a concepção do mundo pelo qual alguém toma partido é em larga medi da determinada por um grau de afi nidade eletiva que o une ao inte resse de classe para utilizar aqui este último termo já aparentemente unívoco Weber 1991 p 9 Considerados esses pontos iniciais alguns conceitos básicos no âmbito de sua sociologia política podem ser encontrados em seu clássico texto A Política 357 Capítulo 13 O pensamento político de Max Weber e as concepções weberianas Eduardo de Vasconcelos Raposo como Vocação de seus ensaios de sociologia Nesse trabalho originalmente uma conferência Weber pergunta para logo em seguida responder O que entendemos por política O conceito é extremamente amplo e compreende qualquer tipo de liderança independente em ação Falase da política fi nanceira dos bancos da política de descontos do Reichsbank da política grevista de um sindicato podese falar da política educacional de uma municipalidade da política do presiden te de uma associação voluntária e fi nalmente até mesmo da política de uma esposa prudente que busca orientar o marido Hoje nossas refl exões não se baseiam decerto num conceito tão amplo Queremos compreender como política apenas a liderança ou a infl uência sobre a liderança de uma associação política e daí hoje de um Estado Weber 2002 p 55 Sua refl exão sobre política nos leva necessariamente ao conceito de Es tado O que é um Estado Sociologicamente o Estado não pode ser defi nido em termos de seus fi ns Difi cilmente haverá qualquer tarefa que uma associação política não tenha tomado em suas mãos e não há tarefa que não se possa dizer que tenha sido sempre exclusivamente e pecu liarmente das associações designadas como políticas hoje o Estado ou historicamente as associações que foram predecessoras do Estado moderno Em última análise só podemos defi nir o Estado moderno so ciologicamente em termos dos meios específi cos peculiares a ele como peculiares a toda associação política ou seja o uso da força física We ber 2002 p 55 Desemboca tal refl exão em sua consagrada defi nição segundo a qual O Estado é uma comunidade humana que pretende com êxito o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determinado território Weber 2002 p 56 Avançando em suas refl exões sobre mando e obediência Weber nos fala das formas legítimas de dominação que são entendidas como probabilidades de se encontrar obediência dentro de um grupo determinado para mandatos espe cífi cos Chama a atenção para as justifi cativas íntimas e para os meios exteriores sobre os quais repousam os diferentes tipos de domínio Para Weber três justi fi cativas interiores legitimam o domínio e cada tipo de dominação repousa so bre um quadro administrativo sendo que é a natureza da ligação desse quadro administrativo com seu senhor que determina o tipo de dominação Para Weber há três justifi cativas interiores e portanto legítimas de domínio A Dominação 358 ELSEVIER Curso de Ciência Política Tradicional a Dominação Carismática e a Dominação Legal Tais tipos de do minação são tipos ideais e puros raramente sendo encontrados em tal condição na realidade 1331 A Dominação Tradicional A Dominação Tradicional está ligada à autoridade do ontem eterno isto é dos mores santifi cados pelo conhecimento inimaginavelmente antigo e da orientação habitual para o conformismo É o domínio exercido pelo patriarca e pelo príncipe patrimonial de outrora Weber 2002 p 56 Como também pode ser lido em seu trabalho Economia y Sociedad Weber 1977 uma dominação é tradicional quando sua legitimidade descansa na san tidade de ordenações e poderes de mando herdado de tempos imemoriais Sua legitimidade baseiase na força da tradição é assim porque sempre foi assim Desse modo suas ordens são legítimas por estarem de acordo com o costume Os senhores que exercem o domínio baseados na tradição possuem a prerrogativa da livre decisão pessoal e seus comandados obedecem por leal dade pessoal A administração é composta por funcionários da casa parentes A autoridade é exercida como se o grupo fosse a família É uma dominação tão rotineira como a dominação racional Formas específi cas de dominação tradicional podem ocorrer em razão do tipo de relação mantida entre o senhor e seu quadro administrativo A forma pu ramente patriarcal ocorre originalmente quando existe carência de um quadro administrativo pessoal do senhor Com a aparição de um quadro administrativo e militar ligado ao senhor a dominação tradicional tende a se transformar em dominação patrimonial que tendo se originado na tradição é exercida em virtude de um direito próprio Nessa modalidade de dominação o quadro administrativo dependia totalmente do senhor não tendo nenhuma garantia contra sua arbitrariedade No patrimonialismo puro há uma separação absoluta entre os adminis tradores e os meios administrativos No patrimonialismo estamental por sua vez ocorre exatamente o contrário o administrador tem a propriedade total ou pelo menos de parte importante dos meios de administração Na forma de dominação estamental o quadro administrativo é independente tem reconhe cimento social e se apropria de determinados poderes e de suas chances de ganho econômico O Patrimonialismo e o Feudalismo constituemse em subtipos da domina ção tradicional sendo que no Feudalismo o governo substitui o relacionamento 359 Capítulo 13 O pensamento político de Max Weber e as concepções weberianas Eduardo de Vasconcelos Raposo paternal por uma vassalagem determinada contratualmente O Feudalismo se caracteriza por um certo tipo de controle dos meios de dominação pela pro priedade difusa das funções que seriam mais tarde centralizadas nas mãos do Estado 1332 A dominação carismática A Dominação Carismática ocorre quando há o reconhecimento e a con fi ança por parte dos súditos na liderança e nas qualidades sobrenaturais e ex cepcionais do senhor que se prontifi ca a usálas para cumprir uma missão que frequentemente revoluciona a ordem tradicional estabelecida Estariam nesse caso o profeta o senhor de guerra eleito o governante ple biscitário o grande demagogo e o líder de partido político A Dominação Caris mática ocorre em meio a uma situação extraordinária e não será protagonizada por um funcionário mas por um líder radical que demonstre o seu carisma em virtude de poderes mágicos revelações heroísmo ou outros dons e que exercerá o poder de maneira extremamente pessoal Os funcionários são selecionados em razão de sua devoção pessoal ao lí der e não devido a sua qualifi cação profi ssional e difi cilmente se constituirão em uma organização Tudo depende do julgamento do líder É um tipo de do minação instável que não tem fundamento legal nem se baseia na tradição e só dura enquanto os fatos que a geraram permanecer e enquanto for mantido o carisma do líder Na dominação carismática não há fonte regular de renda e sim doações Não há também regulamentos e tudo se inspira em missões atribuídas carisma ticamente pelo líder Para Weber na História se alterna o carisma do grande homem e a rotini zação da burocracia O declínio do carisma é uma tendência histórica importan te dando lugar à dominação tradicional ou racional indicando geralmente a diminuição da importância da ação individual 1333 A Dominação Legal Finalmente há o domínio em virtude da legalidade em virtude da fé na validade do estatuto legal e da competência funcional baseada em regras racionalmente criadas Nesse caso esperase obediência no cumprimento das obrigações estatutárias É o domínio exercido pelo moderno servidor do Estado e por todos os portadores do poder que sob esse aspecto a ele se assemelham Weber 2002 p 56 360 ELSEVIER Curso de Ciência Política Existe Dominação Legal quando um sistema de regras que é aplicado judicial e administrativamente de acordo com princípios verifi cáveis é válido para todos os membros do grupo associado O tipo puro de Dominação Legal é aquele que se exerce por meio de um quadro administrativo burocrático É importante ressaltar que quem domina o aparato burocrático não é um burocrata e sim um líder político que também é submetido às leis A Dominação Legal realizase com as modernas estruturas dos Estados com a divisão entre as esferas públicas e privadas com moeda e colheita de tributos exér citos permanentes funcionários treinados e especializados leis e normas administra tivas interpretadas racional e impessoalmente com as sociedades de massas merito cráticas e de caráter permanente Nos Estados modernos a separação entre o quadro administrativo os fun cionários administrativos e os trabalhadores em relação aos meios materiais de organização administrativa é completa 134 A contribuição dos conceitos weberianos para o entendimento da formação social e política brasileira Os trabalhos e conceitos elaborados por Weber infl uenciaram inúmeras e signifi cativas interpretações da realidade social brasileira No que se refere à for mação de nosso Estado Nacional talvez o campo mais fértil para suas infl uên cias os trabalhos mais originais e que alcançaram maior prestígio acadêmico foram Os donos do poder de Raymundo Faoro e As bases do autoritarismo brasileiro de Simon Schwartzman Esses textos utilizaram os conceitos de patrimonialismo e patrimonialis moburocrático características herdadas de nossas origens históricas portu guesas para lançar luz sobre o caráter da nossa formação social e institucional analisando o Estado brasileiro a partir de uma dinâmica própria e não como um epifenômeno ou metáfora da ordem econômica ou da estrutura de classes da sociedade No prefácio à segunda edição em Os donos do poder Formação do patronato político brasileiro publicado pela primeira vez em 1958 Faoro adverte os leitores sobre sua orientação teórica afi rmando que seu livro não segue apesar de seu próximo parentesco a linha de pensamento de Max Weber Não raro as sugestões weberianas seguem outro rumo com novo conteúdo e diverso colorido De outro lado o ensaio se afasta do marxismo ortodoxo sobretudo ao sustentar a autonomia de uma ca 361 Capítulo 13 O pensamento político de Max Weber e as concepções weberianas Eduardo de Vasconcelos Raposo mada de poder não diluída numa infraestrutura esquemática que da ria conteúdo econômico a fatores de outra índole Faoro 1984 p XI Sobre a autonomia de uma camada de poder na experiência brasileira perspectiva teórica que dá continuidade a seu diálogo com Weber Faoro logo no início de seu texto chama atenção para nossa descendência ao comentar a natureza centralizada do poder na formação da nação portuguesa Ao príncipe afi rmao prematuramente um documento de 1098 incumbe reinar regnare ao tempo que os senhores sem a auréola feudal apenas exercem o dominare asse nhoreando a terra sem governála Faoro 1984 p 341 Em continuidade ao diagnóstico sobre a natureza das relações de poder estabelecidas pela Coroa Portuguesa advertenos que Entre o rei e os súditos não há intermediários um comanda e to dos obedecem A recalcitrância contra a palavra suprema se chama rá traição rebeldia à vontade que toma deliberações superiores O chefe da heterogênea hoste combatente não admite aliados e sócios acima dele só a Santa Sé o papa e não o clero abaixo dele só há delegados sob suas ordens súditos e subordinados Faoro 1984 p 52 Assim como na política também na área econômica Tudo dependia comércio e indústria das concessões régias das delegações graciosas arrenda mentos onerosos que a qualquer momento se poderiam substituir por empre sas monárquicas Faoro 1984 p 9 Faoro acreditava que características patrimoniais do mundo português como a ausência de relações contratuais entre o rei e seus súditos e o consequen te centralismo de tal sistema transmitiramse para nossas terras Patrimonial e não feudal o mundo português cujos ecos soam no mundo brasileiro atual as relações entre o homem e o poder são de outra feição bem como de outra índole a natureza da ordem econômi ca ainda hoje persistente obstinadamente persistente Na sua falta o soberano e o súdito não se sentem vinculados à noção de relações contratuais que ditam limites ao príncipe e no outro lado asseguram 1 Faoro citando Vitorino Magalhães Godinho Ensaios Lisboa Sá da Costa 1968 p 27 v 2 2 Raimundo Faoro se faz valer de J Lucio de Azevedo Épocas de Portugal econômico 2 ed Lisboa Clássica 1947 p13 e Ângelo Ribeiro O Rei e a integridade Patrimônio da coroa In História de Por tugal Porto Portucalense 1929 tomo II p168 e segs para construir sua compreensão do caráter da formação do Estado português 362 ELSEVIER Curso de Ciência Política o direito de resistência se ultrapassadas as fronteiras de comando Faoro 1984 p 17183 Na ausência de uma burguesia forte que pudesse limitar as forças centrí petas e tentaculares da Coroa Portuguesa nada parecia ameaçar seu poder O Estado tornase uma empresa do príncipe que intervém em tudo empresário audacioso exposto a muitos riscos por amor à riqueza e à glória empresa de paz e empresa de guerra Estão lançadas as bases do capitalismo de Estado politicamente condicionado que fl orescia ideo logicamente no mercantilismo doutrina em Portugal só reconhecida por empréstimo sufocada a burguesia na sua armadura mental pela supremacia da coroa Faoro 1984 p 21 Para Faoro tais características atravessaram os mais diferentes períodos de nossa história demonstrando uma permanência singular e que se constitui em fator explicativo para nossa tendência política e institucional centralizadora De D João I a Getúlio Vargas numa viagem de seis séculos uma estrutura po líticosocial resistiu a todas as transformações fundamentais aos desafi os mais profundos à travessia do oceano largo Faoro 1984 p 733 Como em camadas de uma arqueologia histórica particular o capitalismo e o patrimonialismo se ajustaram nas terras brasileiras para dar corpo e forma às nossas instituições Nas palavras de Faoro A realidade histórica brasileira demonstrou a persistência secular da estrutura patrimonial resistindo galhardamente inviolavelmente à repetição em fase progressiva da experiência capitalista Adotou do capitalismo a técnica as máquinas as empresas sem aceitarlhe a alma ansiosa de transmigrar Faoro 1984 p 736 Para Faoro o Estado brasileiro era controlado e explorado em causa pró pria por um grupo social o chamado estamento burocrático categoria que para Weber originavase do patrimonialismo que era por sua vez uma forma de dominação tradicional comum aos sistemas centralizados Característico principal o de maior relevância econômica e cultural será o do predomínio junto ao foco superior de poder do quadro ad ministrativo o estamento que de aristocrático se burocratiza progres sivamente em mudança de acomodação e não estrutural Faoro 1984 p 733 3 Bloch Marc Feudalism In Encyclopaedia of the social sciences New York Macmillan 1954 p 210 v 6 363 Capítulo 13 O pensamento político de Max Weber e as concepções weberianas Eduardo de Vasconcelos Raposo Assim Sobre a sociedade acima das classes o aparelhamento político uma camada social comunitária embora nem sempre articulada amorfa muitas vezes impera rege e governa em nome próprio num círculo impermeável de comando Essa camada muda e se renova mas não re presenta a nação senão que forçada pela lei do tempo substitui moços por velhos aptos por inaptos num processo que cunha e nobilita os recémvindos imprimindolhes os seus valores Faoro 1984 p 737 Faoro chama atenção também para uma das principais características do domínio patrimonial a fragilidade das fronteiras existentes entre os mundos público e privado Num estágio inicial o domínio patrimonial desta forma constituído pelo estamento apropria as oportunidades econômicas de desfrute dos bens das concessões dos cargos numa confusão entre o setor público e o privado que com o aperfeiçoamento da estrutura se extrema em competências fi xas com divisão de poderes separandose o setor fi scal do setor pessoal Faoro 1984 p 7364 A respeito da importante diferenciação entre os conceitos de patrimo nialismo e feudalismo que expressam signifi cativas consequências para o de senvolvimento social e institucional dos países descobertos e colonizados ou pelos países da Europa Continental ou da Europa Ibérica Cláudio Véliz nos ofe rece uma visão bastante clara Para Véliz os países ibéricos entraram na Idade Moderna como frutos administrativos legais e políticos de uma monarquia pós feudal já fortemente centralizada O feudalismo nos diz Vêliz acaba quando as monarquias centrais atingem sufi ciente poder para se imporem Assim sendo el feudalismo nunca formó parte de la tradición cultural y política latinoame ricana No podía haber sido transplantado desde Espãna ni de Portugal puesto que en la época de los grandes descubrimientos y conquistas el feudalismo incluso en su variante especifi camente ibérica había dejado de ser um rasgo signifi cativo de la organización política de las naciones metropolitanas E mais Esta experiencia feudal ha sido um fator cardinal en el desarrollo de la tra dición política occidental y se encuentra sin duda alguna en la raiz misma del parlamentarismo europeo dal liberalismo y de todas lãs variantes social democráticas que se originaran de elles Las instituciones representativas 4 Weber Max Wirtschaft und Gessellschaft Köln Berlin Wiepenheur C Witsch 1974 p 170 171 175 761 769 apud Faoro 1998 págs 749 364 ELSEVIER Curso de Ciência Política y los parlamentos son inequivocamente produto de la Edad Media y resultado directo del desarrollo del feudalismo Vêliz 1984 p 15165 Também para Faoro o Brasil não teve um passado feudal onde o campo se impunha à cidade Ao contrário o poder central é que se impunha à elite agrá ria que dependia de seus recursos e favores Cabe ressaltar que no Brasil o primeiro autor a se manifestar contra a tese que afi rmava ter sido o feudalismo o regime político e econômico aqui implan tado por Portugal foi Roberto Simonsen em 1937 para quem à época da descoberta Portugal Já não vivia em regime feudal o rei é um autêntico capitalista seus vassalos chegam ao Novo Mundo com o desejo de enriquecer Os poderes que lhes são delegados têm apenas o objetivo de assegurarlhes lucros Apenas a forma jurídica dessa con cessão assemelhase às instituições feudais Seu conteúdo em compen sação é exclusivamente capitalista Topalov 1978 p 14 Para Raimundo Faoro nunca houve nem proprietários nem caciques lo cais fortes o bastante para ameaçarem efetivamente o poder central Afi rma que no Brasil o poder central nunca esteve em perigo em parte porque nunca teria sido efetivamente questionado Outra importante interpretação do Brasil de inspiração weberiana inti tulada As bases do autoritarismo brasileiro foi realizada por Simon Schwartzman Buscando outros caminhos Simon inicia seu trabalho afi rmando que o entendi mento da vida política brasileira passa necessariamente pela análise das contra dições entre o centro econômico e mais organizado da sociedade civil no país localizado em São Paulo e o núcleo do poder central muito mais fi xado no eixo Rio de JaneiroBrasília Schwartzman 1998 p 9 Para desenvolver tal perspectiva acredita dever explorar o contraste entre o Estado patrimonial irracional centralizador autoritário e os setores da socieda de que se pretendem autônomos descentralizadores e representantes do raciona lismo privado dos grupos sociais mais organizados Schwartzman 1998 p 10 Para tanto acredita que a análise política contemporânea deve recuperar o conceito de patri monialismo que embora utilizado por Max Weber sobretudo para 5 Véliz defende a tese de que a ausência de quatro fatores foram responsáveis pelo caráter centralista das disposições sociais e políticas latino americanas 1 Ausência de experiência feudal na tradição latino americana 2 ausência do fenômeno de dissidência religiosa e o resultante centralismo latitudinário da religião dominante 3 ausência de qualquer acontecimento ou circunstância ao largo desses anos comparável com a Revolução Industrial europeia 4 ausência de aspectos da evolução social e política associados com a Revolução Francesa 365 Capítulo 13 O pensamento político de Max Weber e as concepções weberianas Eduardo de Vasconcelos Raposo se referir a sociedades tradicionais de determinado tipo parecenos de grande atualidade e importância A expressão neopatrimonialis mo talvez seja adequada para aplicarse ao sentido atual do conceito Schwartzman 1998 p 39 Simon chama atenção para o fato de não serem os elementos tradicio nais os mais centrais do conceito de patrimionialismo e que o contraste real mente importante a ser considerado é como feudalismo Se no Estado patrimonial o príncipe organiza seu poder político sobre áreas extrapatrimoniais exatamente como exerce seu poder patriarcal ajudado por pessoas ligadas a ele por laços de dependência no Estado feudal o senhor governa com a ajuda de uma aristocracia que tem reconhecimento social pró prio Nas palavras de Weber citado por Simon Quando existe uma associação de estamentos nos sistemas feudais o senhor governa com a ajuda de uma aristocracia autônoma e conse quentemente comparte sua administração com ela o senhor que admi nistra de forma pessoal no sistema patrimonial é ajudado seja por pes soas de sua unidade familiar seja por plebeus Eles formam um estrato social sem propriedades e que não tem honra social por mérito próprio materialmente são totalmente dependentes do senhor e não tem nenhu ma forma própria de poder competitivo Todas as formas de dominação patriarcal e patrimonial de sultanismo despótico e os estados burocráti cos pertencem a esse último tipo O estado burocrático é particularmente importante em seu desenvolvimento mais racional ele é característico precisamente do estado moderno Schwartzman 1998 p 45 Assim sendo os Estados modernos formados sem a presença de revolu ções burguesas podem ser considerados patrimoniais Este patrimonialismo moderno ou neopatrimonialismo não é sim plesmente uma forma de sobrevivência de estruturas tradicionais em sociedades contemporâneas mas uma forma bastante atual de domi nação política por um estrato social sem propriedades e que não tem honra social por mérito próprio ou seja pela burocracia e a chamada classe política Schwartzman 1998 p 4546 Ainda sobre a relação conceitual existente entre esses dois tipos de domi nação a linha de continuidade que Weber estabelece entre dominação patri monial tradicional e dominação burocrática que o leva a falar muitas vezes em patrimonialismo burocrático deve ser vista em contraste com a continuidade que parece existir entre feudalismo e dominação 366 ELSEVIER Curso de Ciência Política racionallegal que surge historicamente associada à emergência do ca pitalismo Schwartzman 1998 p 46 Simon se pergunta se realmente se trata de dois tipos tão distintos Afi nal para Weber a burocracia era uma característica essencial das formas moder nas de dominação política Schwartzman 1998 p 4647 O patrimonialismo e o feudalismo são então sistemas tradicionais de poder enquanto o patrimonialismo burocrático neopatrimonialismo e a dominação racionallegal constituemse em sistemas modernos do exercício do poder sen do fundamental para tal distinção a existência ou não de um contrato presente nos sistemas ocidentais modernos Schwartzman 1998 p 47 Dando sequência a seu argumento o autor pergunta para em seguida res ponder Mas que ocorreria nos países onde não existiu uma burguesia ascen dente com a mesma força e importância que a burguesia da Europa Ocidental Continuariam tradicionais Ou teriam desenvolvido uma forma própria de dominação moderna e racional mas sem o componente contratual Schwart zman 1998 p 48 Acredita que tal questão deve ser entendida no contexto da diferença que Weber estabelece entre racionalidade formal legal e racionalidade subs tantiva Racionalidade legal entendida como uma série de normas explícitas de comportamento o que limita o poder arbitrário do governante e racionalidade substantiva que valoriza determinados objetivos independentemente de regras e regulamentos formais Para Simon Weber considerava então a possibilidade de existência de sociedades modernas sem a existência de contrato social formado por leis de atribuição de direitos É possível então conclui Simon a existência de socie dades portadoras de burocracias racionais sem serem necessariamente legais o que caracterizaria os sistemas políticos neopatrimoniais e que permitiria resu me o autor uma nova visão da formação política do Brasil 135 A atualidade da sociologia política de Max Weber Para fi nalizar algumas palavras devem ser ditas sobre a atualidade do pen samento de Max Weber confrontado a um mundo signifi cativamente diferente daquele do século XIX no qual o sociólogo alemão produziu seus trabalhos De fato podemos supor que o processo de racionalização e construção do mundo moderno tão caro à perspectiva analítica que moveu as refl exões de Weber encontrase em franca decomposição comprometendo a capacidade interpretativa não só de sua teoria como das outras grandes narrativas do século XIX que foram concebidas em outro momento da vida das nossas sociedades e instituições 367 Capítulo 13 O pensamento político de Max Weber e as concepções weberianas Eduardo de Vasconcelos Raposo A esse respeito como ressalta o sociólogo Ulrick Beck da Universidade de Munique e autor de textos sobre o atual estágio das sociedades ocidentais por ele chamado de modernização refl exiva vivemos em outra época comandada por outros imperativos sociais Para Beck a diferença está no fato de que atual mente as pessoas não estão sendo libertadas das certezas feudais e religiosas transcendentais para o mundo da sociedade industrial mas sim da sociedade industrial para a turbulência da sociedade do risco global Beck 1985 p 18 Também para Scott Lash outro teórico da modernização refl exiva Não está mais em questão aqui a justaposição direta e dicotômica da tradição e da moder nidade cara aos papas da teoria sociológica clássica Weber Durkheim Simel e Tönnies Lash 1995 p 139 Para Lash o que estaria ocorrendo atualmente em nossas sociedades seria a passagem da modernidade simples para a moder nidade refl exiva Na visão de Anthony Giddens também teórico das sociedades do mundo contemporâneo como esclareceu Max Weber a autoridade burocrática costumava ser uma condição para efi ciência organizacional Em uma sociedade orde nada de maneira mais refl exiva atuando no contexto da incerteza artifi cial isso não mais acontece Os velhos sistemas burocráticos começam a desaparecer dinossauros da era póstradicional Giddens 1994 p 15 Giddens porém relativiza o esgotamento dos princípios que regeram o mundo moderno Para ele a sociologia weberiana estabeleceu uma ligação en tre efi ciência das organizações hierarquia burocrática e racionalidade social e acreditava que Não é totalmente óbvio que essa forma de organização esteja desa parecendo completamente hoje ou que vá ocorrer uma transição em grande escala em direção a sistemas de autoridade descentralizada e mais fl exíveis como afi rmaram muitas pessoas Toda mudança social tende a ser dialética um movimento unidirecional geralmente produz também tendências opostas Portanto é provável que isso aconteça com as organizações Na esfera econômica por exemplo a autoridade fl exível para alguns provavelmente signifi ca restrições crescentes para outros em diferentes áreas ou contextos As grandes corporações que são ameaçadas podem muito bem encontrar meios de se defenderem os processos de descentralização em um setor poderiam criar uma cen tralização renovada em outro Giddens 1994 p 140 Para fi nalizar algumas poucas considerações são necessárias Primeiro não cremos que as mudanças que estamos presenciando no mundo atual suca 368 ELSEVIER Curso de Ciência Política teiem abruptamente todo o aparato institucional da modernidade como nos fa zem crer algumas teorias que apaixonadas pelas suas próprias descobertas só a elas conseguem enxergar Estamos em transição e ainda somos relativamente modernos submetidos a Estados nacionais mesmo que enfraquecidos em suas soberanias que funcionam a partir de uma racionalidade legal apesar de todas as rachaduras nessa construção Como dito na introdução a desconstrução das fronteiras do mundo mo derno que segmentam os diversos setores das sociedades também pode pro piciar a recuperação de um olhar interdisciplinar que pode levar os cientistas sociais contemporâneos a cultivar de novo o gosto pela interdisciplinaridade como foi o caso de Weber Por último Weber se tornou um clássico no sentido de suas refl exões terem transcendido sua época Seus conceitos continuarão a ser básicos para refl exões sobre política poder dominação organização e legitimidade da mes ma maneira que os estudos dos grandes intérpretes dos séculos passados ainda lançam luz sobre as sociedades do mundo contemporâneo 136 Perguntas para reflexão 1 Que circunstâncias culturais e políticas vividas por Weber colaboraram para a importância que os temas políticos e institucionais adquiriram na sua obra 2 Segundo o texto lido o que se pode entender por fenômenos políticos que são tratados como fatos particulares não sendo necessariamente reflexos de outras dimensões da sociedade 3 O que vem a ser política para Weber 4 O que vem a ser Estado para Weber 5 Explique os três tipos puros de dominação e as justificativas interiores que os legitimam 6 Qual a natureza dos quadros administrativos dos três tipos puros de do minação 7 O que você entendeu pelos conceitos de patrimonialismo estamento e feudalismo 369 Capítulo 13 O pensamento político de Max Weber e as concepções weberianas Eduardo de Vasconcelos Raposo 8 Segundo Faoro que relações podem ser estabelecidas no contexto da formação nacional brasileira entre o Estado brasileiro o patrimonialismo e o estamento burocrático 9 Segundo os termos de Schwartzman como o conceito de neopatrimonia lismo pode nos ajudar a compreender o Brasil 10 A partir do texto lido que argumentos atribuem atualidade à sociologia de Max Weber Bibliografia BECK Ulrick A Reinvenção da Política Rumo a uma Teoria da Moder nização Refl exiva In GIDDENS Anthony BECK Ulrich LASH Scott orgs Modernização refl exiva São Paulo Editora Unesp 1995 FAORO Raymundo Os donos do poder Formação do patronato político brasilei ro 6 ed São Paulo Globo 1984 GIDDENS Anthony A Vida em uma Sociedade PósTradicional In GID DENS Anthony BECK Ulrich LASH Scott orgs Modernização refl exiva São Paulo Editora Unesp 1995 Para além da esquerda e da direita São Paulo Editora Unesp 1994 SCHWARTZMAN Simon Bases do autoritarismo brasileiro Rio de Janeiro Campus 1998 TOPALOV Christian Estruturas agrárias brasileiras Rio de Janeiro Livraria Francisco Alves Editora 1978 VÉLIZ Cláudio La tradición centralista de América Latina Barcelona Editora Ariel 1984 WEBER Max Ensaios de sociologia 5 ed Rio de Janeiro Guanabara Koogan 2002 Sobre a Teoria das Ciências Sociais São Paulo Editora Moraes 1991 Economia y sociedad Buenos Aires Fondo de Cultura Economica de Argentina 1977 Butter Lamb Capítulo 14 O Constitucionalismo antiliberal de Carl Schmitt democracia substantiva e exceção versus liberalismo kelseniano Gisele Silva Araújo1 Rogerio Dultra dos Santos2 Mestre e Doutora em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro IUPERJ Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ e Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro UERJ Atualmente é Professora Adjunta de Sociologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro UNIRIO Professora de Filosofi a do Direito e Teoria Política da Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro UERJ e Pesquisadora bolsista do Setor de História da Fundação Casa de Rui Barbosa FCRB Suas atividades têm como temas prio ritários Teoria Sociológica Teoria Política Teoria do Direito Teoria Constitucional Pensamento Social e Político Brasileiro e Sociologia do Direito Endereço para contato gssaraujoyahoocombr Doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro IUPERJ mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina UFSC e graduado em Direito pela Universidade Católica do Salvador UCSal Professor Adjunto do Departamento de Direito Público da Universidade Federal Fluminense UFF Professor Permanente do Programa de PósGraduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense UFF Professor Colaborador do Programa de PósGraduação em Sociologia Política da Universidade Estadual do Norte Fluminense UENF e 372 ELSEVIER Curso de Ciência Política 141 Introdução A dinâmica política e a confi guração das constituições contemporâneas não podem ser compreendidas sem que se tenha em conta a teorização do jurista e politólogo alemão Carl Schmitt 18881985 O século XX a era dos extremos no dizer de Eric Hobsbawn exacerbou a distinção entre amigo e inimigo núcleo fundamental do conceito do político daquele pensador Além de ter sido um autor fundamental na confi guração constitucional da Alemanha préSegunda Grande Guerra através do seu conceito de estado de exceção suas ideias políticas e jurídi cas se tornaram centrais na construção dos Estados ditatoriais do mundo ociden tal em particular da Alemanha nazista No entanto essa identifi cação de Schmitt como o grande jurista do III Reich encobre a pertinência de sua vigorosa crítica ao falseamento da democracia operado pelas instituições representativas liberais Nesse sentido quer seja pela sua importância histórica quer pela atualidade de seu pensamento Carl Schmitt é um autor essencial para a teoria política para a teoria constitucional e para o estudo das relações entre EstadosNação Se por um lado as ideias de um autor podem ser estudadas em si mesmas por outro a recuperação do contexto no qual são produzidas lhes confere maior densidade e signifi cado históricos Pela sua contextualização se percebe o quanto determinados conceitos embora universalizáveis foram produzidos para lidar com problemas particulares daquele específi co momento histórico1 O momento histórico no qual Schmitt produz seus mais relevantes trabalhos é a Alemanha da República de Weimar período no qual tem lugar o clássico debate protagonizado por ele e pelo jurista austríaco Hans Kelsen 18811973 Schmitt e Kelsen desen volvem argumentações opostas quanto à natureza da política quanto ao conceito de democracia e quanto às instituições jurídicas viáveis para os tempos moder nos A teoria de Carl Schmitt condensa particularmente o debate entre liberdade e igualdade autoridade e democracia presente na tradição do pensamento euro peu moderno aí incluídos por exemplo Hobbes Kant e Rousseau Para uma exposição propedêutica de autor e temática tão complexos este capítulo foi organizado em três partes principais A primeira dedicase a uma breve biobibliografi a de Carl Schmitt incluindo também referências ao momen avaliador ad hoc na área do Direito do Ministério da Educação Coordenou a edição do livro Direito e Política Porto Alegre Síntese 2004 Endereço para contato rogeriodultrayahoocombr 1 Com efeito o modelo de Estado que surge na obra de Carl Schmitt não pode ser visto somente como um conjunto de conceitos abstratos mas como a necessidade de se resolver uma determinada crise de ordem jurídica e política no momento em que ela se tornou crucial para defi nir o futuro da Ale manha Nesse sentido os conceitos políticojurídicos presentes na obra de autores como Carl Schmitt são de natureza estrutural isto é serviram de condição de existência para eventos históricos específi cos Entretanto por serem conceitos estruturais têm a capacidade de servirem como instrumentos de cons trução de ordens políticas diversas daquelas nas quais se originaram Santos 2006 373 Capítulo 14 O Constitucionalismo antiliberal de Carl Schmitt Gisele Silva Araújo Rogerio Dultra dos Santos to histórico da República de Weimar e do nacionalsocialismo A parte central deste capítulo dedicase aos argumentos políticoconstitucionais centrais de Carl Schmitt destacandose o conceito do político como distinção existencial entre amigo e inimigo a concepção de democracia substantiva fundamentada na igualdade e a institucionalidade constitucional fundada na decisão política da comunidade homogênea Finalmente desenvolvese na última parte a con traposição entre Schmitt e Kelsen Este último autor não será recuperado pelo positivismo jurídico exposto na Teoria Pura do Direito mas pelas suas obras po líticas nas quais sustenta uma concepção de democracia parlamentar Das suas concepções derivamse estruturas constitucionais liberais que foram o alvo da ácida crítica de Carl Schmitt num debate que defi niu os rumos das democracias ocidentais durante todo o século XX 142 Biobibliografia de Carl Schmitt O constitucionalista católico alemão Carl Schmitt representa a conden sação do pensamento jurídico antiliberal do século XX Schmitt nasceu em 11 de julho de 1888 em Plettenberg na Vestfália cidade de maioria protestante Frequentou durante toda sua vida escolas católicas Entrou na Universidade de Berlim para cursar Direito depois de terminados os estudos secundários em 1907 Migrou para a Universidade de Estrasburgo quando em 1910 termina sua graduação com tese fi nal em direito criminal Trabalha como assistente de juiz até 1915 quando se alista na infantaria do exército alemão Incapacitado para as atividades do front por danos físicos sofridos em treinamento foi transferi do para o ComandoMaior de Guerra em Munique na seção responsável pela administração e produção de decretos sobre todas as autoridades civis na Alta Bavária Durante seu serviço em Munique passa a se interessar pela distinção entre estado de guerra estado de sítio e ditadura Schwab 1989 Terminada a guerra Schmitt tornase professor da Escola de Administra ção de Negócios em Munique onde permanece de 1919 a 1922 Durante a dis cussão sobre o parlamentarismo que culminará na Constituição de Weimar de 11 de agosto de 1919 Schmitt publica Romantismo político 1919 Não obstante a complexidade da obra de Schmitt talvez seja possível distinguir seu argumento de fundo como sendo o fracasso do racionalismo moderno expresso no libera lismo Como sugere Carlo Galli 1996 p VIII e s é através deste postulado enunciado em Romantismo político que Schmitt analisa a crise política e institu cional da Alemanha entre 1918 e 1933 Para Schmitt o liberalismo é a expressão do romantismo na esfera política O indivíduo liberal vê a política como uma oportunidade para manifestar o seu juízo subjetivo em debates intermináveis 374 ELSEVIER Curso de Ciência Política sem assumir a responsabilidade pela resolução efi ciente de confl itos reais Insti tucionalmente essa forma política se manifesta na lógica de funcionamento do parlamento contemporâneo local de discussão mas não de decisão política Apesar dessa crítica ao liberalismo Schmitt adere inicialmente à Repú blica liberal de Weimar com infl uência do suporte que o Partido do Centro Católico dá à construção da República A Constituição de Weimar no entanto contém o famoso art 48 dispositivo que autorizava o Presidente num momento de crise e com o consentimento do Parlamento a suspender direitos individuais e a depender da interpretação constitucional a afastar toda a Constituição2 A inspiração para a inclusão desse artigo numa Constituição de corte liberal vinha dos modelos legislativos de estado de guerra de beligerância de emergência ou de comoção intestina como o art 68 da Constituição Imperial prussiana3 Em oposição aos inúmeros limites atribuídos pela clássica legislação liberal do esta do de sítio essa redação confi gurava uma autorização ilimitada para o exercício do poder político Na história republicana alemã de pouco mais de 13 anos os poderes emergenciais do art 48 foram demandados mais de 250 vezes A as sembleia constituinte justifi cou a existência desse artigo apesar da experiência nefasta do estado de guerra Kriegszustand do Império germânico na neces 2 Art 48 Se um estado não cumprir as obrigações colocadas pela Constituição do Reich ou pelas leis do Reich o Presidente do Reich pode obrigar através do uso de força armadaNo caso da segu rança pública ser seriamente ameaçada ou perturbada o Presidente do Reich pode fazer exame das medidas de necessidade para restabelecer a lei e a ordem se necessário usandose força armada Na perseguição deste fi m pode suspender os direitos civis descritos nos artigos 114 115 117 118 123 124 e 154 parcial ou inteiramenteO Presidente do Reich deve informar o Reichstag imediata mente sobre todas as medidas empreendidas que são baseadas nos parágrafos 1 e 2 deste artigo As medidas devem ser suspensas imediatamente se o Reichstag assim exigirSe o perigo for iminente o Governo do Estado pode para seu território específi co implementar as etapas como descrito no parágrafo 2 Estas etapas devem ser suspensas se assim exigido pelo Presidente do Reich ou pelo Reichstag Detalhes adicionais serão fornecidos pela lei do Reich Deutschland Die Verfassung des Deutschen Reichs vom 11 August 1919 Disponível em httpwwwdhmdelemohtmldokumente verfassungindexhtml Acesso em 20 nov 2005 Os artigos referenciados no texto do Art 48 dizem respeito aos direitos fundamentais estabelecidos pela Constituição como os de liberdade Art 114 de inviolabilidade de domicílio Art 115 de privacidade de correspondência Art 117 de liberdade de opinião e ausência de censura Art 118 de reunião Art 123 de associação inclusive religiosa Art 124 e de herança Art 154 3 Art 68 O Kaiser pode se a segurança pública no território federal estiver ameaçada declarar o estado de guerra em qualquer parte dele Até a promulgação de um estatuto imperial regulando as condições a forma de proclamação e os efeitos de tal declaração as provisões que se aplicam são aquelas do estatuto prussiano de 4 de Junho de 1851 Nenhum estatuto imperial foi promulgado e a lei de 1851 fi cou valendo até o fi m do Império Rossiter 1963 p 36 375 Capítulo 14 O Constitucionalismo antiliberal de Carl Schmitt Gisele Silva Araújo Rogerio Dultra dos Santos sidade do tempo O paradigma da atuação constitucional por mecanismos de emergência consolidouse com o Reichspräsident Friedrich Ebert que durante os anos iniciais da República de Weimar seria auxiliado por Carl Schmitt Segundo Franz Neumann em A decadência da democracia alemã 1933 o sis tema constitucional de Weimar conturbado pelos mecanismos de emergência apresentava um equilíbrio tênue entre o liberalismo e o socialismo A Repúbli ca havia constitucionalizado direitos trabalhistas no intuito de abafar as reivin dicações socialistas e comunistas Ao mesmo tempo não se criara um Estado corporativo já que o poder político pertencia exclusivamente ao Parlamento não sendo dividido com sindicatos que também não se subordinavam legalmen te ao Estado A incorporação de direitos sociais na Constituição combinavase portanto com uma estrutura fundamentalmente liberal De acordo com Neu mann essa composição se explica por ter o Reich o objetivo primordial de evi tar o bolchevismo realizando uma aparente trégua na luta de classes Diante de uma situação de estabilidade econômica o capitalismo poderia sustentar o conjunto de direitos sociais reconhecidos na Constituição de 1919 Quando os lucros começaram a escassear o movimento contra a organização social do tra balho intensifi couse O alvo passou a ser o sistema liberalparlamentar que em funcionamento representava a plataforma da emancipação trabalhista Neu mann 1933 p 2943 Para Neumann a equação entre direitos sociais que necessitavam de cons tante regulamentação e um legislativo desenhado nos moldes do liberalismo teve por consequência a autolimitação do Parlamento Este passou a debruçarse ex clusivamente sobre princípios gerais abstendose de suas competências regula mentares quanto aos direitos sociais deixando a sua aplicação para os minis tros Blankettgesetze Neumann 1933 p 354 Um enorme poder foi transferido portanto para instâncias burocráticas vinculadas ao Poder Executivo o que no entender de Neumann fragilizou o controle parlamentar da produção legislativa eliminou a dissidência política dentro do parlamento e deu um status de governo de fato à burocracia Os poderes emergenciais contidos no art 48 da Constituição de Weimar e essa administrativização da política indicam que o desejo por um executivo forte e a demanda por poderes de emergência adequados eram então dois elementos para o mesmo problema Rossiter 1963 p 35 Nesse contexto turbulento de 1922 a 1928 Schmitt tornase professor de Direito na Universidade de Bonn passando em seguida à Universidade de Ber 4 O termo Blankettgesetze signifi ca norma em branco ou seja uma norma que necessita ser preenchida com o conteúdo de outra para adquirir sentido e ter aplicação No caso o Executivo passou a se encarre gar administrativamente do problema alterando o princípio canônico de divisão dos poderes 376 ELSEVIER Curso de Ciência Política lim onde ocupa a cadeira Hugo Preuss o autor da redação fi nal da Constitui ção de Weimar Após a crise da bolsa de valores de 1929 Schmitt passa a traba lhar com Johanes Popitz secretário do ministro das Finanças do Reich Trabalha em casos relativos à declaração de estado de emergência com base no art 48 da Constituição de 1919 Em 1932 sua atuação na remoção do Gabinete Prussiano pelo Presidente do Reich com base naquele artigo o leva ao ofi cialato do Con selho Prussiano de Estado Schwab 1989 p 1316 Como consultor jurídico do Reich Schmitt colaborou praticamente com todos os presidentes desde Ebert até Hitler Em 1933 já inscrito no Partido NacionalSocialista elabora o docu mento jurídico que dá suporte ao golpe de Estado perpetrado por Hitler Desde então Schmitt encabeça o grupo de professores universitários que constituem a Associação de Juristas NacionalSocialistas A republicanização do instituto imperial do estado de comoção intes tina não alcançou a estabilidade econômica demandada pela situação crítica da Alemanha derrotada após a Primeira Guerra Mundial Entretanto com o trans correr dos anos o art 48 da Constituição de Weimar passou a ter como função dar ao Poder Executivo competência legislativa Esse processo de centralização política conseguiu paulatinamente limitar a autonomia dos sindicatos que foram perdendo suas funções originais As lideranças sindicais passaram a representar os trabalhadores em um semnúmero de organismos estatais tornandose poli ticamente fracas e dependentes do Estado Segundo Neumann 1933 p 379 a alternativa impossível era a guerra civil O Decreto de emergência suspendendo indefi nidamente os direitos civis no começo de 1933 foi o fi at constitucional para a instauração de uma ditadura que durou até 1945 Em 1936 por suas ligações antigas com colegas judeus Carl Schmitt sofre perseguição pública da polícia política do regime nazista a Gestapo o que o faz abdicar de suas atividades públicas Passa então a lecionar na Universi dade de Berlim até ser preso pelos russos em 1945 permanecendo por mais de um ano num campo de internação norteamericano nesta mesma cidade Em 1947 é convocado como testemunha no Julgamento de Nuremberg sem sofrer acusações diretas Não retorna mais a Berlim passando a viver nos arredores de Plettenberg a partir de maio de 1947 aí permanecendo recluso até a morte Dentre as mais de 250 obras publicadas por Carl Schmitt destacamse além de Romantismo político de 1919 A ditadura 1921 Teologia política 19221933 A situação históricoespiritual do parlamentarismo contemporâneo 1923 Catolicismo romano e forma política 1924 Teoria da Constituição 1928 O defensor da Constitui ção 1931 Legalidade e legitimidade 1932 O conceito do político 1932 e O nomos da terra 1953 377 Capítulo 14 O Constitucionalismo antiliberal de Carl Schmitt Gisele Silva Araújo Rogerio Dultra dos Santos 143 Liberalismo neutralização e antagonismo político 1431 A modernidade a ordem romântica liberal e a técnica No texto já citado de 1919 Romantismo político Carl Schmitt associa o libe ralismo ao romantismo vendo a ordem política moderna como resultado de um processo de despolitização O sujeito romântico tem a mesma atitude espiritual do sujeito burguês ambos mantém uma relação individualista com o mundo transformandoo em mera ocasião de gozo estético No romantismo o mundo é visto como uma espécie de objeto pessoal e o signifi cado da realidade deriva de uma opção estética individual Transposta para a política esta visão romântica estetiza os confl itos reais e a religião a moral a ciência e a política são tratadas como temas da crítica de arte ou para a produção artística pura e isolada do indivíduo todas as diferenças e contrastes factuais como bem e mal amigo e inimigo Cristo e antiCristo podem se tornar contrastes estéticos e objetos de in triga numa novela e podem ser esteticamente inseridos no efeito de uma obra de arte Schmitt 1998 p 17 Para Schmitt portanto o ocasionalismo5 se transfor ma na atitude fi losófi ca estruturante do liberalismo burguês com consequências práticas na esfera do político Os antagonismos sociais são deslocados de sua realidade concreta e transportados para o mundo imaginário construído pelo sujeito romântico Em razão disso os confl itos políticos representarão apenas uma oportunidade de argumentação entre homens isolados para deleite dos sentidos sem que se pretenda uma decisão efetiva que concretize uma resolução prática O romantismo tende à poetização dos confl itos políticos eliminando qualquer decisão palpável Lessa 2003 p 32 No texto A era das neutralizações e despolitizações 1929 Schmitt expõe as transformações espirituais pelas quais passou a Europa e os fundamentos da civilização construída no século XIX que culminaram com a estetização da po lítica operada pelo liberalismo Para o autor quatro grandes passos seculares caracterizaram a história europeia moderna no século XVI predominou a esfera 5 Para Schmitt a metafísica do movimento romântico caracterizase por sua atitude em relação ao mun do especifi cada pelo conceito desintegrativo de occasio manifesto nas ideias de ocasião oportunidade e chance em contraposição polêmica ao conceito ordenador e normativo de causa que signifi ca a força da causalidade calculável e normativa do mundo Assim seguindo a tradição da fi losofi a de Malebranche para quem o mundo surge como mera ocasião para a manifestação da autoridade divina esta atitude carac teristicamente ocasional pode persistir ao mesmo tempo em que alguma outra coisa tome o lugar de Deus como fator decisivo e autoridade última como por exemplo o Estado o povo ou mesmo o sujeito indivi dual Schmitt 1998 p 18 No caso do romantismo indivíduos isolados tomam o mundo como occasio para a sua manifestação estética Na formulação de Schmitt o romantismo é o ocasionalismo subjetifi cado uma forma secularizada da atitude metafísica do ocasionalismo deísta originário 378 ELSEVIER Curso de Ciência Política teológica o século XVII foi o estágio da metafísica no século XVIII viveuse a época do humanitáriomoral o novecento é fi nalmente o século do estágio econômico6 Os tempos heróicos do racionalismo ocidental estão no século XVII quando as experiências científi conaturalistas se integravam num sistema metafísico O século seguinte é a vulgarização do anterior acometido do mo ralismo kantiano e de um romantismo humanista Este romantismo representa a etapa intermediária do estético entre o moralismo e o economicismo é o caminho mais seguro e mais cômodo para a economização universal da vida es piritual e para uma constituição espiritual que encontra suas categorias centrais da existência humana na produção e no consumo que viria a caracterizar o século XIX Schmitt 1992 p 107109 Desde a passagem do estágio teológico para o metafísico anunciase o telos ou seja o horizonte de sentido do processo de transformação espiritual europeu o destino implícito é a neutralidade No entanto essas etapas em sequência correspondem ao pensamento da elite e outros estratos sociais na mesma sociedade podem estar ligados a diferentes centros espirituais Assim na passagem do século XIX para o século XX as massas saltaram por cima de todas as etapas intermediárias e a crença nos milagres e no além se trans forma logo para elas sem nenhum termo médio numa religião do milagre da técnica das realizações humanas e da dominação da natureza Schmitt 1992 p 110 Na sociedade de massas do século XX a técnica pretende ser o novo centro espiritual e a crença na técnica derivada da crença nos milagres corresponde à ilusão de ter encontrado um solo defi nitivamente neutro A neutralidade teria vencido as eternas lutas em torno de questões teológicas metafísicas morais e mesmo econômicas já que a técnica se apresenta como algo agradavelmente objetivo Schmitt 1992 p 115 sobre o qual e a partir do qual não há desacordo possível Portanto o processo de contínua neutralização do centro espiritual re sulta na crença de que a técnica poderá substituirse como meio de resolução dos desacordos do passado Entretanto a técnica tem limitações intrínsecas sendo incapaz de resolver confl itos em matéria teológica metafísica moral ou econô mica e de decidilos em favor de uma posição qualquer incluindo aí a posição de neutralidade a neutralidade da técnica é algo de diferente da neutralidade de to das as outras esferas até agora A técnica é sempre somente um instru 6 A semelhança com a lei dos três estados de Comte é explicitamente mencionada por Schmitt que entretanto rejeita o seu caráter de lei evolutiva da humanidade ou de fi losofi a da história Schmitt 1992 p 107 379 Capítulo 14 O Constitucionalismo antiliberal de Carl Schmitt Gisele Silva Araújo Rogerio Dultra dos Santos mento e arma e justamente porque ela serve a qualquer um ela não é neutra Da imanência da técnica não brota nenhuma decisão humana e espiritual e menos ainda uma em favor da neutralidade Toda espé cie de cultura cada povo e cada religião cada guerra e cada paz pode se servir da técnica como arma A decisão sobre liberdade e servi dão não está na técnica enquanto técnica Ela pode ser revolucionária e reacionária servir à liberdade e à opressão à centralização e à des centralização De seus princípios e pontos de vista apenas técnicos não resulta nem um questionamento político e nem uma resposta política Schmitt 1992 p 1167 A proposição nuclear do pensamento schmittiano no que respeita à formação da modernidade política é a existência de um processo de secula rização Säkularisierung de conceitos como Deus progresso liberdade Es tado esfera pública Sua concepção de história não é iluminista já que o de senrolar da modernidade configura um processo de redução paulatina da compreensão do mundo Põese ao contrário como um autor decadentista para quem o progresso técnico não fornece à humanidade instrumentos de libertação do mundo mas meios através dos quais o homem perde a ca pacidade de conduzir sua vida de forma autônoma O processo de neutra lização procura conceitos normativos que pretendem ser inquestionáveis porque supostamente dotados de universalidade e necessidade7 O ápice desse processo pretende colocar a técnica como centro espiritual da socie dade moderna e tem como expressão política o romantismo político ou seja o liberalismo O liberalismo é no século XX a expressão política desta infactível pretensão de neutralidade Baseado na crença na neutralidade da técnica o Estado liberal oculta artificialmente as disputas entre interesses e visões de mundo pretendendo que a ação política resulte da pura apli cação da técnica retirando dos homens a visão real de seus conflitos e sua capacidade de decisão 7 Segundo Marramao 1983 o conceito schmittiano de secularização remete à noção de uma trans posição de crenças e modelos de comportamento da esfera religiosa para a secular Schmitt não fala propriamente de transposição Uberschreitzung mas de reocupação Umbesetzung de uma posição funcional embora o termo correto para a construção de sua sociologia dos conceitos presente no seu Teologia política 1922 seja efetivamente o primeiro segundo a interpretação de Galli 1986 p 348 349 e 428429 Assim o conceito não se refere à dessacralização Entzauberung do mundo Weber nem como declínio da religião ruptura da sociedade com a religião ou como mundanização o que re meteria a um processo de racionalização das esferas da cultura já que estariam as mesmas numa relação de emancipação com a esfera religiosa como de resto sugere o termo Säkularisierung Marramao 1983 p 6061 380 ELSEVIER Curso de Ciência Política 1432 O pluralismo de valores e o conceito do político Defi nir que o século XX pretende ter como centro espiritual a técnica signi fi ca noutros termos considerar que a sociedade moderna se estrutura de maneira instrumental desprovida em seu centro de algo capaz de defi nir as respostas polí ticas para confl itos reais Sem uma estrutura central capaz de decidir sobre pra quê servirse da técnica nada e portanto nenhum sistema político Schmitt 1992 p 116 pode ser deduzido da área central da vida espiritual A pretensão do acordo universal com base na técnica não se cumpre e os desacordos teológicos metafísicos morais e econômicos permanecem indecidíveis Diante desse conti nuado pluralismo de valores e sentidos Schmitt 1992 p 119 e da técnica como arma que pode servir a quaisquer valores a afi rmação do século XX como sendo o estágio da técnica é provisória A defi nição do sentido próprio e defi nitivo do século XX continua em aberto e é tarefa especifi camente política O processo da constante neutralização das diversas áreas da vida cul tural chegou ao seu fi m porque ele chegou à técnica A técnica não é mais terreno neutro no sentido daquele processo de neutralização e toda política forte há de se servir dela Só pode ser portanto algo de provisório o concebermos o século atual num sentido espiritual como o século técnico O sentido defi nitivo só se produzirá quando se mos trar qual espécie de política é sufi cientemente forte para se apoderar da nova técnica e quais serão os verdadeiros agrupamentos de amigos e inimigos que crescerão neste novo terreno Schmitt 1992 p 119 A exposição anterior remete diretamente a um dos mais conhecidos textos de Schmitt O conceito do político 1932 Ainda que provisoriamente a técnica colocou se no centro espiritual da sociedade moderna Sendo ela incapaz de fornecer bases racionais para a solução de confl itos persiste um pluralismo de valores gerando an tagonismos de várias naturezas religiosos morais jurídicos e econômicos O sentido selecionado pela sociedade para ocupar o centro de sua vida espiritual será aquele capaz de por sua própria força recriar a unidade por sobre esse pluralismo O po lítico é exatamente essa dotação de unidade existencial a um agrupamento humano amigo estabelecendo a possibilidade limite de um antagonismo real contra um ini migo público O antagonismo especifi camente político então pode estar baseado em quaisquer daqueles confl itos Toda contraposição religiosa moral econômica étni ca ou outra transformase numa contraposição política se tiver força sufi ciente para agrupar objetivamente os homens em amigos e inimigos Schmitt 1992 p 63 Portanto dependendo do grau de intensidade que alcança qualquer con fl ito pode tornarse político e o que lhe dá singularidade é a distinção amigo 381 Capítulo 14 O Constitucionalismo antiliberal de Carl Schmitt Gisele Silva Araújo Rogerio Dultra dos Santos inimigo cuja especifi cidade se defi ne pela relação que mantém com a possibi lidade real de aniquilamento físico Schmitt 1992 p 59 Em outras palavras o agrupamento amigoinimigo é aquele que contém a possibilidade da guerra esta eventualidade excepcional que revela a intensidade do confl ito propria mente político8 Somente esta unidade política formada a partir do mais intenso dos confl itos pode ser a sede da soberania real O político pode extrair sua força dos mais variados setores da vida hu mana de contraposições religiosas econômicas morais e outras Ele não designa um âmbito próprio mas apenas o grau de intensidade de uma associação ou dissociação entre os homens cujos motivos podem ser de cunho religioso nacional no sentido étnico ou cultural econô mico ou outro e que em diferentes épocas provocam diferentes ligações e separações Político em todo caso sempre é o agrupamento que se orienta na perspectiva da eventualidade séria Por isso ele é sempre o agrupamento humano determinante e a unidade política portanto se estiver presente será sempre a unidade normativa e soberana no sentido de que a ela caberá sempre por defi nição resolver o caso deci sivo mesmo que seja um caso excepcional Schmitt 1992 p 64 Na condição de pluralismo de valores a soberania reside na unidade po lítica estabelecida com base no antagonismo amigoinimigo e que forma o agru pamento que decide o confl ito extremo Na sociedade moderna vários agrupa mentos sociais podem existir classes sociais comunidades religiosas sindica tos associações econômicas e profi ssionais grupos nacionais clubes esportivos tornando plurais as fi delidades e obrigações dos indivíduos No entanto o 8 O agrupamento político amigoinimigo se revela na eventualidade da guerra O caráter determinante desta eventualidade não é abolido pelo fato de ser ela algo excepcional porém justamente se fundamenta nisto Podemos dizer que aqui como outrora justamente a eventualidade excepcional tem um sig nifi cado especialmente decisivo e revelador do núcleo da coisa Pois somente no combate real apresenta se a consequência extrema do agrupamento político de amigo e inimigo A partir desta possibilidade extrema é que a vida das pessoas adquire uma tensão especifi camente política Um mundo no qual estivesse completamente afastada e desaparecida a possibilidade de tal confronto um globo terrestre fi nalmente pacifi cado seria um mundo sem distinção entre amigo e inimigo e consequentemente um mundo sem política Poderiam nele existir muitos contrastes talvez muito interessantes concorrências e intrigas de toda sorte mas logicamente não haveria qualquer oposição com base na qual se pudesse pedir das pessoas o sacrifício de suas vidas e se permitisse às pessoas o derramamento de sangue e a morte de outras Também aqui não interessa à determinação conceitual do político se ansiamos ou não por tal mundo sem política como situação ideal O fenômeno do político apenas pode ser compreendido mediante a referência à real possibilidade do agrupamento amigoinimigo independente do que daí decorre para a apreciação religiosa moral estética econômica do político Schmitt 1992 p 61 382 ELSEVIER Curso de Ciência Política agrupamento determinante que decide o caso extremo de confl ito é o Estado9 e qualquer agrupamento que enfrente o Estado tornase não apenas seu con corrente ou opositor mas seu inimigo O Estado não é um agrupamento dentre os outros tantos possíveis na sociedade pluralizada Se ao lado das associações religiosas culturais econômicas e outras os homens ainda formam uma asso ciação estatal isto se dá por causa de seu singular caráter político Na sociedade moderna é ao Estado que cabe conjuntamente a determinação de seus próprios inimigos internos e externos o jus belli o direito da declaração de hostis inimi zade pública e o direito de dispor da vida física dos homens Schmitt 1992 p 74 A unidade política última do Estado se traduz na conexão entre proteção e obediência Referindose a Hobbes Schmitt declara o protego ergo obligo é o cogito ergo sum do Estado Schmitt 1992 p 7810 144 Soberania constituição como decisão e estado de exceção A unidade política confi gurada no Estado a partir do agrupamento ami goinimigo que possui caráter político é portanto a sede da soberania A Teoria do Estado desenvolvida no século XIX defi niu o conceito de soberania como poder supremo não derivado Para Schmitt esta é uma fórmula vazia de sen tido posto que não indica a forma concreta do poder soberano defi nição que decorre de uma lacuna no pensamento jurídico ocidental de origem liberal Para ele a unidade política soberana tem por função concreta a tomada de decisão sobre a reconstituição da ordem soberania que se revela nos casos em que esta mesma ordem é perturbada por uma situação excepcional Portanto toda ordem seja jurídica política seja a segurança e a ordem públicas tem como fun damento uma decisão Entscheidung emanada da unidade política e não uma norma fundamental Dessa forma a única defi nição passível do resgate concreto 9 Em todo caso não se pode imaginar nenhuma instância que tivesse podido ou querido oporse a uma decisão referente ao caso de guerra do governo alemão daquela época sem com isso se tornar ela mesma inimiga política e ser atingida por todas as consequências desse conceito e ao contrário nem a Igreja nem um sindicato se predispunham à guerra civil Isto basta para fundamentar um conceito razoável de soberania e de unidade A unidade política é justamente por essência a unidade determinante indepen dentemente de que forças ela extrai seus últimos motivos psicológicos Ela existe ou não existe Quando ela existe é a unidade suprema isto é aquela que determina o caso decisivo Schmitt 1992 p 689 10 Hobbes designou como a meta propriamente de seu Leviathan expor novamente aos olhos dos ho mens a mutual relation between Protection and Obedience cuja observação inviolável é requerida tanto pela natureza humana quanto pelo direito divino Hobbes experimentou esta verdade nos tempos ruins da guerra civil porque então deixam de existir todas as ilusões legitimistas e normativas com as quais os homens costumam enganar a si mesmos sobre realidades políticas em épocas de segurança imperturbada Schmitt 1992 p 789 383 Capítulo 14 O Constitucionalismo antiliberal de Carl Schmitt Gisele Silva Araújo Rogerio Dultra dos Santos da historicidade do conceito de soberania é É soberano quem decide sobre o estado de exceção Ausnamezustand Os dois termos centrais nessa defi nição de soberania são decisão e exceção Decisão remete ao caráter pessoal da manifestação concreta do poder político confi gurando o que será chamado por Schmitt de fundamento do pensamento jurídicopolítico decisionista Exceção se refere a um estado ou situação Zus tand excepcional e confl itivo não previsto pela ordem jurídica e que se defi ne como um caso de extrema necessidade de perigo para a existência do Es tado ou algo como tal mas que não pode ser circunscrito numa tipifi cação tatbestandsmäβig Schmitt 2001 p 23 e s 30 e s A apreciação do conceito de decisão leva como se verá às defi nições centrais de Schmitt na sua Teoria da Constituição Defi nida a Constituição como Decisão tratarseá de conceituar a situação de exceção na qual se manifesta o Soberano e sua constitucionalização como estado de exceção 1441 Soberania como decisão A própria existência da ordem social e portanto da ordem jurídica pressupõe um ato de decisão constitutiva emanado da unidade política A deci são é para Schmitt a origem e fundamento de toda a fenomenologia do direito Hofmann 1999 p 78 as manifestações concretas do direito só são possíveis o direito só se realiza por emanarem de um ato decisório de caráter pessoal Referindose a Hobbes no livro Sobre os três modos de pensar a ciência jurídica 1934 Schmitt compreende todo direito como um ato do soberano todo direito todas as normas e leis todas as interpretações de leis todas as ordens são para ele essencialmente decisões do soberano e o soberano não é um monarca legítimo ou uma instância competente mas o soberano é exatamente aquele que decide soberanamente Direi to é lei e lei é o comando que decide uma disputa jurídica Auctoritas non veritas facit legem Schmitt 1996b p 29 A decisão representa o surgimento de uma vontade soberana que elimina a desordem existente no estado de natureza através da fundação da ordem es tatal a decisão soberana é o princípio absoluto numa referência a Hobbes uma ditadura estatal criadora estabelecida sobre a insegurança anárquica pré e infraestatal Schmitt 1996b p 31 A decisão é o momento em que o soberano atua efetivamente como um juiz que decide de acordo com a contingência o contexto concreto que informa o caso excepcional A necessidade que tem Ho bbes de compreender os desígnios concretos da realidade social levao como jurista a identifi car a decisão como a forma fundamental da unidade do Estado 384 ELSEVIER Curso de Ciência Política A caracterização da soberania em Schmitt que procura romper com os termos do Estado liberal clássico e portanto escapar do romantismo político aponta igualmente para uma formação específi ca do Estado baseado na decisão da uni dade política soberana Para Carl Schmitt portanto se o direito é necessário como forma do Es tado por excelência a legitimação da ordem política não se dá pela via jurídica a não ser que ela esteja fundada na autoridade existencial da decisão soberana Cumprindo seu papel histórico de neutralização do centro espiritual da socie dade moderna as instituições jurídicas liberais encobrem a realidade última da decisão soberana que funda a ordem política e social Assim estas instituições não têm a capacidade de operar a partir da legitimidade substancial da decisão soberana pretendendo que a soberania seja exercida exclusivamente dentro da ordem jurídica perdendo sua função concreta e essencial de reconstituir esta mesma ordem Informado pela metafísica romântica o liberalismo é a forma po lítica que refuta o espaço soberano da decisão fundamento da ação concreta do homem no mundo É por conta disso que a Teoria do Estado de origem liberal esquece segundo Schmitt de formular um conceito substancial de soberania 1442 Constituição como decisão Em Carl Schmitt não há lugar para ilusões legitimistas no sentido de um fundamento moral ou racional da ordem normativa A ordem social políti ca e jurídica emana de uma decisão e será legítima se provier do agrupamento amigoinimigo que constitui a unidade política Nesta reside o Poder Consti tuinte e a ela cabe a decisão soberana de constituir a ordem Em sua monumen tal obra a Teoria da Constituição 1928 Carl Schmitt distingue três acepções do termo Constituição que guardam total consonância com os postulados expostos até aqui o conceito absoluto o conceito relativo e o conceito positivo Em sentido absoluto Constituição designa a unidade concreta de um agrupamento humano e é resultado das forças ativas e reais da sociedade11 Em sentido rela tivo o que se tem não é propriamente a Constituição mas um conjunto de Leis 11 Há três signifi cações oferecidas por Carl Schmitt para Constituição em sentido absoluto 1 a con creta maneira de ser resultante de qualquer unidade política existente 2 uma maneira especial de ordenação política e social Constituição signifi ca aqui o modo concreto da supra e subordinação Constituição é a forma especial de domínio que afeta a cada Estado e neste caso o Estado é a Cons tituição como o Estado é Monarquia é Aristocracia ou é Democracia e 3 é o princípio do devenir dinâmico da unidade política Dos distintos interesses contrapostos opiniões e tendências deve formarse diariamente a unidade política integrarse segundo a expressão de Rudolf Smend Sch mitt 1932 p 46 385 Capítulo 14 O Constitucionalismo antiliberal de Carl Schmitt Gisele Silva Araújo Rogerio Dultra dos Santos Constitucionais particulares que não apresenta unidade a partir de si mesmo Mesmo a constitucionalidade de tal ou qual lei só pode ser determinada a partir de uma unidade exógena e anterior12 Entre a constituição real da sociedade sentido absoluto e o conjunto de leis constitucionais sentido relativo situase a Consti tuição em sentido positivo A Constituição em sentido positivo surge mediante um ato do poder constituinte Este ato constitui a forma e modo da unidade políti ca cuja existência é anterior Não é pois que a unidade política surja porque se haja dado uma Constituição A Constituição em sentido positivo contém somente a determinação consciente da concreta forma de conjunto pela qual se pronuncia ou decide a unidade política Sch mitt 1932 p 24 A Constituição positiva é portanto uma decisão consciente tomada pela unidade política preexistente titular do Poder Constituinte que defi ne a sua forma e seu modo de união A Constituição não retira a unidade de si mesma e não é válida em virtude de sua justiça normativa ou de sua ordenação siste mática A essência da Constituição não está contida numa lei ou numa norma No fundo de toda normatização reside uma decisão política do titular do poder constituinte quer dizer do Povo na Democracia e do Monarca na Monarquia autêntica Schmitt 1932 p 27 Para Carl Schmitt há duas classes de legitimi dade a dinástica e a democrática correspondendo respectivamente à unidade política do Príncipe e do Povo13 A legitimidade dinástica está baseada na au toridade de uma família e se constitui através da continuidade da dinastia e da sucessão hereditária A legitimidade democrática se baseia na concepção de que o Estado é a unidade política do Povo Num e noutro caso a Constituição em sentido absoluto isto é a unidade política precede a Constituição positiva e as leis constitucionais Numa democracia o povo tem que existir e ser suposto 12 A relativização do conceito de Constituição consiste em que em lugar de fi xarse o conceito unitá rio de Constituição como um todo se fi xa somente o de lei constitucional concreta mas o conceito de lei constitucional se fi xa segundo características externas e acessórias chamadas formais Schmitt 1932 p 13 Sejam leis esparsas seja uma Constituição escrita não se fala aqui de Constituição unitária ou em sentido absoluto Schmitt também rejeita o conceito de Jellinek de que são constitucionais as leis que têm um procedimento de reforma difi cultado porque pelo procedimento de reforma não pode defi nir se a essência do objeto reformado Uma reforma constitucional feita constitucionalmente depende do ponto de vista lógico e cronológico da Constituição Schmitt 1932 p 23 Daí que as leis constitucio nais devem retirar sua unidade da Constituição em sentido absoluto ou da Constituição positiva 13 Somente se pode falar de legitimidade de uma Constituição por razões históricas e sempre sob o ponto de vista da distinção entre legitimidade dinástica e democrática Schmitt 1932 p 101 386 ELSEVIER Curso de Ciência Política como unidade política se há de ser sujeito de um Poder Constituinte Schmitt 1932 p 70 A Constituição positiva ou seja a Constituição como decisão não é uma soma de prescrições particulares reformáveis como as leis constitucionais ou os diversos artigos que compõem as Constituições escritas Enquanto as Leis Cons titucionais podem ser suspensas durante o estado de exceção a Constituição positiva é intangível somente podendo ser revogada pela via revolucionária transformandose a própria unidade política concreta do agrupamento humano O fundamento de legitimidade da Constituição é portanto a unidade política concreta que a precede Uma Constituição é legítima isto é reconhecida não somente como situação de fato mas também como ordenação jurídica quando a força e autoridade do Poder constituinte em que descansa sua decisão é reconhecida A decisão política adotada sobre o modo e forma da exis tência estatal que integra a substância da Constituição é válida por que a unidade política de cuja Constituição se trata existe e o sujeito do Poder constituinte pode fi xar o modo e forma dessa existência Não necessita justifi carse numa norma ética ou jurídica tem seu sentido na existência política Uma norma não seria adequada a fundar nada aqui O especial modo da existência política não necessita e nem pode ser legitimado Schmitt 1932 p 101 1443 Soberania e estado de exceção Defi nida a soberania como a decisão que reconstitui a ordem e a Cons tituição positiva como a decisão de autoconstituição que emana da unidade po lítica preexistente resta esmiuçar o segundo termo do conceito de soberania o estado de exceção Na parte 1432 deste capítulo observouse que o caráter distin tivo do agrupamento político amigoinimigo reside na eventualidade da guerra que permanece possível ainda que como uma situação excepcional Além disso é neste momento da eventualidade excepcional que se revela a intensidade do confl i to propriamente político e tornase evidente a unidade política soberana Tanto o reconhecimento da existência da situação excepcional concreta como a ação levada a cabo para reconstituir a normalidade jurídica e social são atributos es pecífi cos do Soberano Para Giorgio Agamben no livro Estado de exceção 2003 a soberania schmittiana tem como escopo regular ou reinstalar a ordem jurídica numa situação de desordem somente mensurada de forma objetiva pelo próprio soberano Agamben 2003 p 9 387 Capítulo 14 O Constitucionalismo antiliberal de Carl Schmitt Gisele Silva Araújo Rogerio Dultra dos Santos Soberania é portanto decisão numa situação de exceção Ora nesse sentido regular juridicamente a soberania equivale a juridicizar a situação de exceção No entanto tal situação não é passível de circunscrição jurídica isto é não permite a defi nição de casos típicos de exceção que possam ser previstos em lei Segundo Schmitt a abordagem jurídica tradicional é limitada diferente do conceito de estado de sítio ou de estado de emergência previsto pela ordem jurídica liberal o estado de exceção é um caso histórico e somente pode ser identifi cado na prática O problema é como dotar de defi nição objetiva uma situação concreta que só pode ser mensurada subjetivamente É no conceito de estado de necessidade que Schmitt reconhece a substância do estado de exceção O estado de necessidade defi ne uma situação especial onde a lei perde o seu caráter obrigatório Tal situação se torna ela própria o fundamento último e a fonte mesma da lei pois tem o poder geral de justifi car uma ação inicial mente ilícita transformandoa em algo permitido pelo direito A teoria medieval do Estado sustentava que a necessidade age aqui como uma justifi cação de uma transgressão em um único e específi co caso através de uma exceção Mas é somente nos autores do fi nal do século XIX e início do século XX que a ideia de necessidade vai receber o signifi cado de um estado da lei onde deixa de sig nifi car uma situação isolada e singular de não obrigatoriedade da lei e se reveste efetivamente de fundamento da ordem jurídica O motivo dessa transformação segundo Agamben é que os juristas de Jellinek a Duguit vêem na necessidade o fundamento de validade dos decretos com força de lei emanados pelo execu tivo no estado de exceção Agamben 2003 p 357 O estado de exceção deve portanto permitir a suspensão de toda a ordem jurídica vigente identifi cando concretamente a própria existência do Estado a fi m de preserválo Para Schmitt dada a sua excepcionalidade e sua impossibi lidade de tipifi cação só se pode indicar juridicamente a quem é permitido agir em tal circunstância Se esta ação não está submetida a nenhum controle se não se distribui como na prática da Constituição fundada no Estado de Direito entre diversas instâncias que se limitam e se equilibram mutuamente então é evidentemente claro quem é o soberano Ele decide tanto so bre o caso de exceção extrema como sobre o que deve ser feito para remediálo Ele se situa fora da ordem jurídica vigente e contudo per tence a ela pois é responsável pela decisão de se a Constituição pode suspenderse in toto Todas as tendências do desenvolvimento do mo derno Estado de Direito apontam o eliminar do soberano neste sentido Schmitt 2001 p 24 388 ELSEVIER Curso de Ciência Política A determinação das circunstâncias em que o estado de necessidade e o de exceção está confi rmado depende portanto de uma decisão de caráter pessoal que cabe ao Soberano A decisão que reconhece e declara o estado de exceção entretanto não é somente política mas se recobre de um sentido jurídico já que funciona como elemento criador de condições concretas de normalidade essenciais para que qualquer ordenamento jurídico possa ter validade O esta belecimento desta situação de ordem das condições de vida demonstra quem é o soberano O caso de exceção revela a essência da autoridade estatal da maneira mais clara Nele a decisão se separa da norma jurídica e em uma formulação paradoxal a autoridade demonstra que não necessita ter direito para criar direi to Schmitt 2001 p 28 Daí que a unidade política soberana se revele nestas si tuações de exceção o normal não demonstra nada a exceção demonstra tudo Schmitt 2001 p 29 É através do estado de exceção que se exerce a soberania suspendese toda a ordem jurídica com a fi nalidade de reconstituíla As teorias do Estado liberais repudiam esta ideia porque ela expõe a decisão inevitável que sustenta toda a normalidade constitucional O Estado de Direito ao dividir as compe tências e instaurar o mútuo controle procura adiar hinauszuschieben a questão da soberania o máximo possível Schmitt 2001 p 2627 O processo de secula rização cuja forma política é o liberalismo se apoia na pretensão de neutralida de da técnica e pretende afastar a soberania como decisão No entanto se a téc nica não institui nem o consenso valorativo nem a neutralidade e o Moderno é inaugurado por uma catástrofe de paradigmas a soberania decisionística não a mediação é o modo politicamente adequado de arbitrálo Galli 1996 p 353 145 Democracia substantiva e cesarismo a crítica à representação parlamentar Os vários conceitos de Carl Schmitt analisados até aqui confi guram um ar cabouço teórico vigoroso para sua crítica ao liberalismo em particular à pretensão de legitimidade democrática que reside no instituto da representação parlamentar Viuse que a unidade política concreta é o Soberano ou seja quem decide sobre o estado de exceção A legitimidade da ordem normativa consiste então na corres pondência entre a ordem e a unidade política préexistente titular da soberania Nas sociedades em que o Príncipe é a unidade política a ordem normativa que dele emana possui legitimidade dinástica Nas sociedades modernas em que o Estado pre tende ter legitimidade democrática o povo tem que existir e ser suposto como uni dade política se há de ser sujeito de um Poder Constituinte Schmitt 1932 p 70 Numa democracia portanto se o povo deve ser o Soberano ele deve constituir uma 389 Capítulo 14 O Constitucionalismo antiliberal de Carl Schmitt Gisele Silva Araújo Rogerio Dultra dos Santos unidade política preexistente deve ser o titular do Poder Constituinte e deve decidir sobre o estado de exceção Assim o Estado somente será democrático se suas decisões representarem efetivamente a vontade do povo No livro A situação históricoespiritual do parlamentarismo contemporâneo 1923 Schmitt argumenta que com o surgimento das democracias de massa em meados do século XIX o sistema representativo instituído através do Parlamento tornouse incapaz de produzir a legitimidade democrática a partir da relação entre eleitores e parlamentares Schmitt 1996a O direito de voto proporcional inaugura o princípio segundo o qual os parlamentares representam todo o povo decidindo conforme suas próprias consciências sem se submeterem à vontade dos eleitores Para Schmitt isto suprime a legitimidade de um sistema que foi intelectualmente construído para estabelecer o vínculo direto agora impossível nas sociedades de massa entre eleitor e parlamentar Este vínculo que tem por objetivo realizar a identidade entre o Estado e o povo esbarra na organização do sistema eleitoral inadequado para fazer valer uma vontade popular concreta não manipulável nem parcial ou elitista Sch mitt 1996a A discussão e a publicidade que seriam os princípios legitimadores dos parlamentos europeus perderam a credibilidade Os parlamentos do mundo atual vinculados a uma democracia repre sentativa de massas caracterizarseiam pelo deslocamento inclusive físico do centro de decisão dos plenários para os gabinetes do espaço público e da discussão racional para o espaço das negociações secretas e oportunistas de interesses econômicos À crítica ao sistema parlamentar como um todo Schmitt acrescenta a cota de responsabilidade dos partidos que hoje já não se enfrentam como opiniões em discussão diskutierende Mei nungen mas sim como poderosos grupos de poder social ou econômi co calculando os múltiplos interesses e suas possibilidades de alcançar o poder e realizando a partir desta base fática compromissos e coali zões As massas são conquistadas através de um aparato de propagan da cujos melhores resultados estão baseados em um apelo às paixões e aos interesses imediatos Schmitt 1996a p 9 A Realpolitik resultante não assume seus pressupostos e a realização da democracia liberal que deveria signifi car consenso e aceitação transformase em um instrumento prático e técnico completamente distanciado de um funda mento democrático a crença no parlamentarismo num government by discus sion pertence ao mundo intelectual do liberalismo Não pertence à democracia Assim se o parlamentarismo não é naturalmente um instrumento da democra cia mas sim do liberalismo o princípio representativo tornase inviável e sem sentido Tentar encontrar um novo princípio para a legitimação do parlamento 390 ELSEVIER Curso de Ciência Política como locus específi co de elites políticas especialmente selecionadas para o de sempenho público é não perceber a nova e desprezível verachteten confi guração de uma classe dirigente voltada exclusivamente para suas desprezíveis negociatas Schmitt 1996a p 11 Para se chegar à identifi cação de uma verdadeira demo cracia liberalismo e democracia devem ser separados para que se reconheça a estrutura heterogênea que constitui a moderna democracia de massas Schmitt 1996a p 12 Para Carl Schmitt se as decisões do Estado democrático devem ser as de cisões da unidade política do povo a democracia depende de um princípio de identidade entre Povo e Estado que se expressa de modo mais puro no modelo da democracia direta de Rousseau Assim o exercício da democracia deve pro curar sua origem moderna naquilo que há de mais profundo na proposta rous seauniana ou seja na essência do conceito da volonté générale segundo a qual é a homogeneidade que conduz à unanimidade da vontade gerando identidade entre governantes e governados Portanto dentre os princípios da liberdade e da igualdade somente este último pode valer como princípio democrático Sch mitt 1932 p 261 A liberdade não é um princípio políticoformal mas princípio liberal que designa uma esfera de não interferência do Estado Também não é qualquer igualdade geral adequada como princípio democrático14 A igualda de democrática se dirige ao interior do Estado onde todos são iguais no per tencimento a um determinado povo e distintos dos estrangeiros A igualdade perante a lei igualdade de sufrágio igualdade de acesso a cargos etc são casos de aplicação da essência da igualdade democrática A igualdade democrática é pois uma igualdade substancial Todos os cidadãos podem ser tratados como iguais ter igualdade frente ao sufrágio etc porque participam dessa substân cia Schmitt 1932 p 265 Democracia portanto não corresponde a um método para a seleção de governantes como na democracia procedimental do liberalismo mas à democracia substancial que se traduz na reiteração contínua da unidade política do povo O núcleo da democracia tendose afastado o liberalismo que confundia seus pressupostos é a homogeneidade política substancial deri vada da igualdade como manifestação institucional de uma organização social determinada 14 Do fato de que todos os homens são homens não pode deduzir nada específi co nem a religião nem a moral nem a política nem a economia A distinção econômica entre produtor e consumidor por exemplo ou a distinção jurídica entre credor e devedor não podem aclararse naturalmente pelo fato de que tanto o produtor como o consumidor tanto o credor como o devedor sejam homens A ideia de igualdade humana não contém um critério nem jurídico nem político nem econômico Sua signifi cação para a Teoria Constitucional estriba em que corresponde ao individualismo liberal e está a serviço do princípio dos direitos fundamentais Schmitt 1932 p 263 391 Capítulo 14 O Constitucionalismo antiliberal de Carl Schmitt Gisele Silva Araújo Rogerio Dultra dos Santos Igualdade é portanto homogeneidade do povo e a substância que constitui a igualdade democrática pode ter várias manifestações históricas como a religião a virtude cívica e a partir do século XIX a nacionalidade com a consequente cons tituição do Estado nacional Schmitt 1996a p 16 Diante da heterogeneidade da sociedade moderna o Estado democrático defi nese pela permanente fi nalidade da homogeneização garantindo a igualdade substancial concreta da sociedade que é condição para a continuidade da unidade política do povo e portanto para a legitimidade democrática Para Schmitt inclusive a força política de uma de mocracia se evidencia em saber remover ou afastar o estranho e o diferente o que ameaça a homogeneidade Tal tarefa pode ser conduzida pela paulatina assimi lação pacífi ca como a proteção de minorias nacionais dentro da Nação15 ou pela eliminação da população heterogênea através de opressão ou expulsão Em Sch mitt portanto democracia baseiase na ideia de um povo situado concretamente no tempo e no espaço comunidade nacional capaz de manifestar politica mente a sua vontade concepção que entra em choque com a fórmula universalista e racional do liberalismo Galli 1996 p 538 No entanto mesmo na defi nição rousseauniana de democracia baseada na igualdade substancial do povo não há negação absoluta da representação já que o corpo de cidadãos não abarca todo o povo presente e futuro mas so mente os membros adultos do povo num determinado momento Para fi xar seu conceito de democracia Schmitt valese de dois princípios políticoformais que estruturam os modos de participação do povo numa democracia identidade e representação o povo pode alcançar e manter de dois modos distintos a situação da unidade política Pode ser capaz de atuação política já em sua realida de imediata por virtude de uma homogeneidade forte e consciente em consequência de fi rmes fronteiras naturais ou por quaisquer outras razões e então é uma unidade política como magnitude real atual em sua identidade imediata consigo mesma O princípio contraposto parte da ideia de que a unidade política do povo como tal nunca pode 15 A proteção internacional das minorias hoje existente trata de garantir um caminho pacífi co para a homogeneização Com ela não se protege como Nação à minoria nacional como Nação não pode ter direitos políticos frente à Nação dominante porque então se suprimiria com o princípio da nacionalida de o princípio democrático mesmo A atual regulação internacional da proteção das minorias nacionais se encontra melhor enfocada como proteção dos direitos individuais dos homens em particular a quem se garante como indivíduos igualdade liberdade propriedade e o emprego de sua língua materna Isto responde ao pensamento de introduzir por caminhos pacífi cos a homogeneidade nacional e com ela o suposto da Democracia Schmitt 1932 p 269 392 ELSEVIER Curso de Ciência Política acharse presente em identidade real e por isso tem que estar sempre representada pessoalmente por homens Schmitt 1932 p 23716 Assim não há Estado sem representação Schmitt 1932 p 239 e o grau de identidade e representação numa democracia será determinado pelo grau de ho mogeneidade e heterogeneidade da unidade política A democracia é uma forma política que corresponde ao princípio da identidade querse dizer identidade do povo em sua existência concreta consigo mesmo como unidade política O povo é o portador do Poder constituinte e se dá a si mesmo uma Constituição Schmitt 1932 p 259 Aplicado o princípio da identidade graças a um máximo de homoge neidade natural ou historicamente dada temse a tendência a um mínimo de gover no onde o povo dotado da aptidão para distinguir entre amigo e inimigo pratica imediatamente a resolução dos assuntos políticos sem discussão Ao contrário uma sociedade bastante heterogênea que reúne em unidade política grupos humanos distintos em termos nacionais confessionais ou de classe exige um máximo de re presentação e um máximo de governo O extremo desta situação entretanto acarreta o perigo de ser ignorado o sujeito da unidade política uma res populi sin populus Schmitt 1932 p 249 Defi nida como tal a democracia tem como paradoxo a exigência de que o povo decida sobre questões fundamentais de sua organização sem ser um corpo or ganizado e na sociedade moderna apresentando grande heterogeneidade interna Assim mesmo mantendo a homogeneidade substancial da unidade política que confere legitimidade democrática ao Estado há de se ter algum grau de represen tação A condição para que a representação não institua uma res populi sin populus é a efetiva manifestação da vontade do povo A vontade popular concreta que não se realiza pela representação parlamentar pode ser identifi cada através da manifes tação simples e imediata da massa através da aclamação popular Zuruf acclamatio ou por um indivíduo que encarne esta vontade Schmitt 1996a Assim embora o procedimento eleitoral seja o método mais difundido para fi xar a representação para Schmitt a forma natural da manifestação imediata da vontade do povo é a voz de assentimento ou repulsa da multidão reunida a aclamação Schmitt 1932 p 96 Por isso é um erro antidemocrático ter por norma absoluta e defi nitiva da Demo cracia estes métodos do século XIX Schmitt 1932 p 96 16 A representação em Carl Schmitt é um fenômeno exclusivamente público e consiste em fazer per ceptível e atualizar um ser imperceptível mediante um ser de presença pública Schmitt 1932 p 242 Portanto não tem caráter normativo e nem procedimental mas sim existencial A unidade política é representada como um todo e o representante é independente posto que não é funcionário nem agente nem comissário mas é a expressão pública do que estava imperceptível 393 Capítulo 14 O Constitucionalismo antiliberal de Carl Schmitt Gisele Silva Araújo Rogerio Dultra dos Santos A democracia plebiscitária aparece então como a forma adequada de ma nifestação e expressão vitais da volonté générale realização daquele princípio da identidade como já dito identidade do povo em sua existência concreta consigo mesmo como unidade política A volonté générale uma vez realizada na aclamação representa o poder constituinte exercitandose publicamente em contraposição di reta com a forma vazia e artifi cial do voto individual secreto privado e escrutinado que mantém a irresponsabilidade anônima de uma computação aritmética da repre sentação indireta Schmitt 1996a p 22 Fiel a este princípio de identidaderepre sentação pela aclamação a guarda da Constituição tornase atributo daquele que é o povo em ação o chefe do executivo que encarna o Soberano Schmitt se vincula assim ao cesarismo como forma política por excelência um Estado ditatorial centra do na fi gura mítica do Líder que necessita legitimarse pela mobilização emocional das massas e resolve por cima as tensões sociais em movimento No entanto na sua armação teórica é essa confi guração de Estado ditatorial que consegue concreti zar o princípio de legitimidade verdadeiramente democrático A partir desta análise da representação e da democracia é possível pon tuar as conclusões lógicas dos conceitos de Carl Schmitt a a democracia não se confunde com o liberalismo por consistir não em igualdade formal mas em igualdade substancial homogeneidade b na modernidade a democracia de massas pode realizarse sem utilizar o sistema de representação parlamentar vinculandose a um princípio de identidade entre representantes e represen tados e especialmente c um Estado antiliberal organizado como uma di tadura não é necessariamente antidemocrático porque funciona através da identifi cação da vontade do povo e da homogeneidade política Nesse sentido é possível sustentar diz Schmitt a legitimidade democrática da ditadura Sch mitt 1996a p 22 146 Considerações finais Schmitt e Kelsen Notase a partir do panorama aqui exposto que o processo de seculariza ção do qual resulta a sociedade moderna é uma das teses fundamentais de Carl Schmitt Quando o século XX faz da técnica o seu centro espiritual e diante da sua infactível pretensão de neutralidade o sentido próprio desse século torna se franqueado às múltiplas possibilidades de confi guração do agrupamento amigoinimigo A ideia de que a sociedade moderna é oriunda de um processo de racionalização que culmina num pluralismo de valores é compartilhada por Schmitt com um de seus maiores interlocutores senão o maior o jurista austríaco Hans Kelsen A semelhança não é por acaso ambos são oriundos da mesma matriz do pensamento germânico e recebem infl uência da teoria da mo 394 ELSEVIER Curso de Ciência Política dernização e da teoria do Estado do sociólogo alemão Max Weber 18641920 Para os três autores a ciência e a técnica não são capazes de produzir verdades no que se refere às decisões axiológicas isto é relativas a valores que guiam em última instância a ação humana Apesar desta percepção comum Schmitt e Kel sen derivarão daí proposições diametralmente opostas Kelsen fi cou conhecido principalmente pelo positivismo jurídico exposto na sua Teoria Pura do Direito publicada pela primeira vez em 1934 e em segunda e defi nitiva edição em 1960 No entanto sua defesa do liberalismo da represen tação parlamentar e da democracia procedimental está exposta principalmente nos textos sobre democracia que vão de 1923 a 1955 publicados esparsamente e reunidos nos volumes Escritos sobre la democracia y el socialismo 1988 e A demo cracia 1993 Partindo também da afi rmação de que a sociedade moderna encer ra um pluralismo de valores e de que juízos éticos não são passíveis de determi nação técnica ou científi ca Kelsen distingue as autocracias das democracias em função da possibilidade de afi rmação última de um valor Nas sociedades em que prevalece um valor absoluto seja de base metafísica ou religiosa a autori dade que o personifi ca profere juízos de valor que têm pretensão de universa lidade A autoridade tem então legitimidade para impor o valor absoluto como norma deontológica17 confi gurando uma autocracia Kelsen 1988 p 228 Ao contrário nas sociedades em que há pluralismo de valores os vários e distintos juízos de valor são equivalentes entre si nenhum podendo se impor aos demais A democracia que em Carl Schmitt remete à igualdade substancial em Kelsen se refere à liberdade de julgamento fundada na equivalência e relatividade dos juízos de valor Kelsen como Schmitt recorre à teoria de Rousseau No entanto enquan to Schmitt recupera do autor genebrino a noção de democracia como igualda de substantiva Kelsen busca o conceito de liberdade civil para fundamentar seu conceito de democracia Numa sociedade em que se apresenta o pluralismo de valores a liberdade civil consiste na formação de um ordenamento normativo onde os destinatários são igualmente os próprios autores das normas baseado na igual possibilidade de todos manifestarem sua opinião18 Para Kelsen a au 17 As normas jurídicas sendo atos de vontade que estabelecem um dever ser são expressões de valores preferidos Uma norma quer dizer a expressão da ideia de que algo deve ser constitui um valor Kel sen 1988 p 231 18 Se a sociedade em geral e o Estado em particular devem ser possíveis deve ser válido um ordena mento normativo que regule o comportamento mútuo dos homens e em consequência deve aceitarse o domínio do homem sobre o homem por meio de tal ordenamento Não obstante se o domínio é inevitável se não podemos deixar de estar dominados queremos ser dominados por nós mesmos A li 395 Capítulo 14 O Constitucionalismo antiliberal de Carl Schmitt Gisele Silva Araújo Rogerio Dultra dos Santos tocracia se baseia numa desigualdade fundamental que confere a uma pessoa família ou grupo a autoridade legítima para decidir sobre o ordenamento nor mativo A democracia por sua vez corresponderia ao pluralismo de valores e à igualdade formal equivalência de juízos de valor pois consistiria essencial mente num método para a decisão coletiva acerca de quais normas e portanto valores devem ser impostos à coletividade A liberdade garantida pela demo cracia é portanto a liberdade civil de Rousseau ou seja a autonomia pública e não as liberdades negativas dos modernos caracterizadas por direitos individuais invioláveis pelo Estado Nesse sentido a democracia é essencialmente procedi mento de autodeterminação19 deve considerarse a participação no governo quer dizer na criação e na aplicação das normas gerais e individuais do ordenamento social que constituem a comunidade como a característica essencial da de mocracia O fato desta participação ser direta ou indireta quer dizer que a democracia seja direta ou representativa não afeta a que a demo cracia seja em todo caso uma questão de procedimento de um método específi co de criação e aplicação do ordenamento social que constitui a comunidade este é o critério distintivo desse sistema político ao qual se chama propriamente democracia A democracia não é um conteúdo específi co do ordenamento social salvo na medida em que o proce dimento em questão é ele mesmo um conteúdo desse ordenamento quer dizer um conteúdo regulado por este ordenamento Kelsen 1988 p 210 Como se vê à diferença de Carl Schmitt Kelsen afastou a concepção rousseauniana de vontade geral como igualdade substancial compartilhada pela unidade política A liberdade civil como fundamento da democracia implica a afi rmação do princípio da maioria para o estabelecimento de uma ordem nor mativa ou seja da vontade de todos Para que a vontade de todos não represente o absolutismo da maioria Kelsen recupera o princípio liberal da defesa das liberda des negativas como corolário inafastável da democracia Para Kelsen a demo cracia moderna não pode separarse do liberalismo político já que a liberdade de pôr em discussão os valores plurais da sociedade democracia exige que certas esferas de interesses do indivíduo sejam protegidas por lei como di berdade natural se transforma em liberdade social ou política Ser livre social ou politicamente signifi ca certamente estar sujeito a um ordenamento normativo signifi ca liberdade subordinada à lei social Mas signifi ca estar sujeitos não a uma vontade alheia senão à própria a um ordenamento normativo e a uma lei em cujo estabelecimento o sujeito participa Kelsen 1988 p 231 19 Notese a semelhança desta defi nição de democracia como autonomia e como procedimento com a que será defi nida e defendida algumas décadas depois por Jurgen Habermas 396 ELSEVIER Curso de Ciência Política reitos ou liberdades humanas fundamentais liberalismo para salvaguardar as minorias contra o domínio arbitrário das maiorias Kelsen 1988 p 243 Dessa forma a democracia se distingue fundamentalmente da autocracia já que apesar de impor uma ordem normativa baseada na decisão da maioria tolera a oposição preserva a liberdade de opinião e forma a ordem normativa mediante discussão e compromisso20 Democracia como liberdade positiva e liberalismo como liberdade nega tiva se harmonizam nos conceitos constitucionais de Kelsen Se Constituição lei regulamento ato administrativo e sentença ato de execução são simples mente os estados típicos da formação da vontade coletiva no Estado moderno Kelsen 1988 p 110 eles são simultaneamente atos de limitação dessa mesma vontade A Constituição democrática reúne a soberania popular e os direitos indivi duais a autonomia pública e a autonomia privada Como expressão da soberania popular a Constituição é obra dos representantes do povo acolhidos no poder legislativo Como limitação da soberania popular a Constituição vin cula os atos legislativos e executivos inferiores aos limites por ela postos que guardam os direitos das minorias Daí que a Constituição se for democrática não seja somente um conjunto de regras sobre os órgãos e os procedimentos da legislação mas também um catálogo de direitos fundamentais dos indiví duos ou liberdades individuais Kelsen 1988 p 115 Dessa forma a garantia da constitucionalidade não pode estar confi ada ao legislativo ou ao executivo exigindo a independência da jurisdição constitucional Ao assegurar a elaboração constitucional das leis e em particular sua constitucionalidade material a justiça constitucional é um meio efi caz de proteção da minoria contra os abusos da maioria A dominação des ta última somente é suportável se é exercida de forma regular Se se considera que a essência da democracia se acha não na onipotência da maioria mas no compromisso constante entre os grupos representados no Parlamento pela maioria e pela minoria e como consequência disso na paz social a justiça constitucional aparece como um meio particular mente idôneo para fazer efetiva esta ideia Kelsen 1988 p 152 Kelsen e Schmitt portanto não são opostos quanto à concepção da socie dade a eles contemporânea Para ambos o processo de racionalização que con 20 Dado que os princípios de liberdade e igualdade tendem a uma minimização do poder a democracia não pode constituir um poder absoluto e nem sequer um poder absoluto da maioria O poder da maioria do povo se distingue de qualquer outro não somente porque por defi nição implica uma oposição quer dizer uma minoria mas também porque politicamente reconhece a existência da mesma e protege seus direitos Kelsen 1988 p 242 397 Capítulo 14 O Constitucionalismo antiliberal de Carl Schmitt Gisele Silva Araújo Rogerio Dultra dos Santos fi gura a sociedade moderna não substitui a teologia e a metafísica na defi nição unitária dos valores sociais Os valores a partir dos quais se defi ne a ordem normativa da sociedade tornaramse matéria de apreciação subjetiva e foram portanto pluralizados em juízos de valor incomensuráveis entre si A conse quência para ambos os autores é que o relativismo moral e o confl ito de valores são inevitáveis Relativismo moral e decisão política sobre os valores que devem predominar são elementos comuns em suas teorias Entretanto a partir desta concepção sociológica comum as teorias de Kelsen e Schmitt assumem direções opostas Para o autor austríaco dado o fato da pluralidade de valores na sociedade moderna a construção de uma ordem normativa só pode ser feita de maneira legítima através da democracia como procedimento método adequado para se lecionar os valores que assumirão caráter deontológico Kelsen reúne liberdade positiva e igualdade formal respectivamente como princípios da democracia e do liberalismo e afi rma sua indissociabilidade O resultado é uma democracia procedimental com proteção aos direitos individuais A democracia procedimen tal em Kelsen é a mediação adequada entre valores plurais e normas unitárias Carl Schmitt ao contrário associa o princípio da igualdade substancial como homogeneidade à democracia Neste sentido embora conceda que as Consti tuições modernas que organizam o Estado Democrático de Direito combinam os princípios da democracia e do liberalismo eles não são indissociáveis Se o Estado moderno há de ser democrático a vontade do povo deve manifestar qual o valor que lhe constitui como unidade política e através dessa afi rmação deve poder realizar sua decisão soberana Dessa forma Schmitt rejeita a pretensão de neutralidade normativa dos ordenamentos liberais que acomoda identidades plurais e destitui o Estado moderno da legitimidade baseada na unidade política do povo em torno de um valor democraticamente identifi cado Os problemas do Estado burguês de direito levantados por Schmitt e de batidos duramente com Kelsen defi niram a forma e a dinâmica das organizações políticas nacionais contemporâneas Se em Kelsen o Ocidente pretendeu encon trar a resposta para a ordem democrática procedimental em Schmitt cristaliza se uma crítica ainda hoje pertinente à representação parlamentar de natureza liberal A complexifi cação das sociedades de massa tornou o parlamento pouco representativo se não nada representativo da vontade do povo falsean do portanto os ideais democráticos Ademais se a efetividade da representação parlamentar depende da discussão pública baseada na igualdade e na liberdade de opinião é preciso que se demonstre ainda hoje quais são os mecanismos que impedem a prevalência dos interesses dos mais fortes notadamente os in 398 ELSEVIER Curso de Ciência Política teresses econômicos dominantes Decerto a justifi cação ditatorial e cesarista de Schmitt não atende às pretensões de uma democracia que simultaneamente concretize a vontade do povo sem o propósito da homogeneização Entretanto em que pese o revigoramento das teses kelsenianas num dos expoentes da teoria política contemporânea como Jurgen Habermas por exemplo a crítica de Carl Schmitt às defi ciências democráticas da representação parlamentar perma necem mais do que nunca sem resposta 147 Perguntas para reflexão 1 O que caracteriza a sociedade moderna para Carl Schmitt e por qual processo passou a Europa Ocidental para constituir tal sociedade 2 Por que o liberalismo é o romantismo político 3 Diante dos vários agrupamentos possíveis nas sociedades o que distingue a unidade propriamente política Quais são os seus atributos distintivos fundamentais 4 Por que para Carl Schmitt o Soberano é quem decide sobre o estado de exceção 5 Quais as acepções do conceito de Constituição em Carl Schmitt e como elas se relacionam com o conceito de soberania 6 Quais são as especificidades do conceito jurídico de estado de exceção 7 Qual é a crítica fundamental que Carl Schmitt estabelece ao liberalismo em particular à representação parlamentar na sua pretensão de garantir a democracia 8 Como o conceito de democracia substantiva se relaciona com a vontade geral de Rousseau e com a ideia de homogeneidade nas sociedades moder nas pluralizadas 9 Como se garante na teoria de Carl Schmitt que o Estado democrático decida de fato segundo a vontade do povo 10 Quais são as distinções fundamentais entre o modelo de Estado de Carl Schmitt e o modelo de Estado de Hans Kelsen 399 Capítulo 14 O Constitucionalismo antiliberal de Carl Schmitt Gisele Silva Araújo Rogerio Dultra dos Santos Bibliografia AGAMBEN Giorgio Stato di eccezione Homo sacer II I Torino Bollati Bo ringhieri 2003 ARAÚJO Gisele Silva Democracia substancial e procedimental como fundamen tos da legitimidade constitucional A utilização de argumentos sociológicos da clássica Teoria Constitucional nas Teorias Políticas Contemporâneas Monografi a Graduação em Direito Faculdade de Direito da Universi dade Estadual do Rio de Janeiro Rio de Janeiro UERJ 2005 GALLI Carlo Genealogia della politica Carl Schmitt e la crisi del pensiero politico moderno Bolonha Il Mulino 1996 HOFMANN Hasso Legitimità contro legalità la fi losofi a política di Carl Schmitt Nápoles Edizioni Scientifi che Italiane 1999 KELSEN Hans Teoria Pura do Direito Tradução de João Baptista Machado 2 ed São Paulo Martins Fontes 1987 Escritos sobre la democracia y el socialismo Tradução de Javier Mira Benavent Manuel Atienza Juan Ruiz Manero e Alfredo J Weiss Madri Debate 1988 Teoria Geral do Direito e do Estado Tradução de Luis Carlos Borges São Paulo Martins Fontes 1998 Fundamentos da democracia Tradução de Jefferson Luis Camar go e Marcelo B Cipolla In KELSEN Hans A democracia Tradução de Vera Barkow et al São Paulo Martins Fontes 1993 LESSA Renato de Andrade A Política como ela é Carl Schmitt e o rea lismo político como agonia e aposta In LESSA Renato Agonia aposta e ceticismo ensaios de fi losofi a política Belo Horizonte Editora UFMG 2003 p 1561 MARRAMAO Giacomo Poder e secularização as categorias do tempo Tradu ção de Guilherme Alberto Gomes de Andrade São Paulo UNESP 1995 1983 NEUMANN Franz The decay of german democracy 1933 In SCHEUER MAN William E Editor The Rule of Law under siege selected essays of Franz L Neumann and Otto Kirchheimer BerkleyLos AngelesLondres University of California Press 1996 pp 2943 ROSSITER Clinton Constitutional dictatorship crisis government in the modern democracies Reprint of 1948 fi rst edition Nova YorkBurlingame Har court Brace World Inc 1963 SANTOS Rogerio Dultra dos O Constitucionalismo antiliberal no Brasil Cor porativismo Positivismo e Cesarismo na formação do Estado Novo Tese 400 ELSEVIER Curso de Ciência Política Doutorado em Ciência Política Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro Rio de Janeiro IUPERJ 2006 SCHMITT Carl O conceito do político Tradução de Álvaro Valls Petrópolis Vozes 1992 Politische Romantik Zweite Aufl age Berlin Duncker Humblot 1998 1925 Sobre el parlamentarismo Tradução de Thies Nelson y Rosa Grueso 2 ed Madri Tecnos 1996a Sobre los tres modos de pensar la ciencia jurídica Estúdio preliminar traducción y notas de Montserrat Herrero Madrid Tecnos 1996b Teología política I cuatro capítulos sobre la teoría de la sobera nía In AGUILAR Héctor Orestes org Carl Schmitt teólogo de la políti ca México Fondo de Cultura Económica 2001 p 1962 Teoría de la Constitución Tradução de Alfredo Gallego Anabitarte Madrid Revista de Derecho Privado 1932 SCHWAB George The challenge of exception an introduction to the political ideas of Carl Schmitt between 1921 1936 2 ed Com nova introdução Connecticut Greenwood Press 1989 1970 Capítulo 15 Hayek e os benefícios da liberdade individual Yuri Kasahara1 151 Introdução Nascido na cidade de Viena Áustria em 8 de maio de 1899 Friedrich August von Hayek adquiriu notoriedade com suas contribuições no campo da economia principalmente em trabalhos sobre teoria monetária e ciclos econômi cos escritos ao longo das décadas de 1930 e 1940 A essa altura Hayek tornarase um respeitado professor da London School of Economics na Inglaterra quando teve a oportunidade de travar calorosos debates com o ilustre John M Keynes sobre a pertinência do esforço governamental em infl uenciar a intensidade dos ciclos econômicos Apesar de sua identidade profi ssional como economista consagrada com um Prêmio Nobel em 1974 Hayek dedicou parte considerável de sua vida a estudos nas mais diversas áreas como psicologia epistemologia e teoria po Doutor em Ciência Política pelo IUPERJ e pesquisador associado do Centre for Development and the Environment University of Oslo Email para contato yurikasaharasumuiono 402 ELSEVIER Curso de Ciência Política lítica Esse percurso por diferentes domínios do conhecimento traduziuse em inúmeros livros e artigos escritos ao longo de seus 93 anos de vida No caso em particular de seus trabalhos sobre teoria política Hayek se mostrou um resoluto defensor da liberdade humana como importante mecanis mo promotor do desenvolvimento econômico e social Ao morrer em 1992 seus escritos políticos e sua argumentação favorável aos efeitos benéfi cos da combi nação de um Estado de Direito garantidor de liberdades individuais com me canismos de livremercado o alçaram à condição de um dos principais teóricos do neoliberalismo político e econômico em ascensão no mundo ocidental desde o fi nal dos anos 1970 Apesar de sua inegável fi liação às tradições do pensamento liberal clás sico caracterizada por uma defesa intransigente de certos direitos individuais como a encontrada nos textos de John Locke ou Thomas Paine ou mais recen temente no trabalho de Robert Nozick o objetivo deste capítulo é explorar as peculiaridades do liberalismo defendido por Hayek A natureza de suas críticas a uma excessiva intervenção do Estado na vida social o colocaria ao lado de um liberalismo inspirado em premissas céticas fazendo com que suas principais re ferências sejam autores como Adam Smith Bernard de Mandeville David Hume e Edmund Burke Além desse ceticismo procuraremos mostrar que a visão de Hayek apresenta uma argumentação utilitarista para a defesa da liberdade indi vidual na medida em que ela não deveria ser vista como um fi m em si mesmo mas como uma forma mais efi ciente para enfrentar as incertezas inerentes à vida social No seu entender uma sociedade composta por seres humanos livres seria mais rica material e culturalmente pois as possibilidades de experimentação e de inovação de seus membros seriam ampliadas 152 Ordem espontânea x organização racional Um requisito indispensável para entender a centralidade da liberdade individual no pensamento hayekiano é compreender sua teoria social Para Hayek de modo geral as sociedades deveriam ser concebidas como sistemas de regras e valores criados gradativamente por meio das interações entre diferen tes indivíduos e aprimorados por mecanismos de tentativa e erro ao longo das gerações Teríamos portanto na tradição de uma sociedade um conhecimento acumulado resultado de experiências coletivas no enfrentamento das vicissitu des da vida social A principal característica dessa tradição seria seu aspecto co letivo sendo compartilhada por todos os membros de uma sociedade por meio de princípios morais e valores enraizados nas práticas sociais A estabilidade dessas regras morais seria o substrato necessário para que indivíduos pudessem 403 Capítulo 15 Hayek e os benefícios da liberdade individual Yuri Kasahara interagir com certo grau de previsibilidade e produzir uma ordem social onde a regularidade da conduta dos elementos determinará o caráter geral da ordem resultante mas não todos os detalhes de sua manifestação específi ca Hayek 1985a p 42 Em outras palavras a partir de certas regras consensuais básicas sobre o que será considerado uma conduta justa os indivíduos encontrariam o suporte necessário para o estabelecimento de inúmeras experiências que não po deriam ser previstas inicialmente Um ponto a ser destacado nessa concepção é o caráter não estático do padrão moral de uma sociedade uma vez que a impre visibilidade das condutas humanas gera incentivos para um constante processo de reformulação das regras sociais Essa teoria social em grande parte inspirada em autores do Iluminismo escocês do século XVIII irá sustentar a ideia de que a própria concepção de li berdade individual surge como um desdobramento desse caráter dinâmico da tradição Tomando como exemplo a trajetória da common law inglesa Hayek irá sustentar que a valorização da liberdade individual emergiu no Ocidente como o resultado de um processo adaptativo das instituições inglesas em resistir às infl uências das teorias absolutistas em voga na Europa Continental ao longo dos séculos XVII e XVIII No caso inglês um sistema de direito consuetudinário construído por meio de cumulativas decisões judiciais descentralizadas e ampa radas nos usos e costumes dessa sociedade teria fomentado uma percepção de que o exercício da autoridade real deveria estar submetido ao respeito de certos princípios gerais de justiça Assim as restrições impostas ao exercício do poder real em prol da defesa de certos princípios gerais como a liberdade religiosa e da autoridade do Parlamento teriam garantido um ambiente propício ao desen volvimento espontâneo de uma sociedade livre na qual cada um pode usar seu conhecimento com vistas a seus propósitos Hayek 1985a p 62 Em tal sociedade uma vez que a autoridade política teria seu poder coercitivo circuns crito pela obrigação em respeitar certas regras gerais de conduta os indivíduos se veriam livres para conduzir suas vidas segundo seus objetivos particulares fossem eles egoístas ou altruístas e promover desse modo a constituição de uma ordem social de inédita complexidade A metáfora da mão invisível utilizada por Adam Smith em Uma investiga ção sobre a natureza e a causa da riqueza das nações para descrever o funcionamento do mercado representaria perfeitamente segundo Hayek todas as característi cas dessa ordem espontânea livre indivíduos que a partir do respeito a certas regras abstratas como direitos de propriedade poderiam estabelecer interações de troca que visariam a satisfação de seus desejos e projetos particulares e con tribuiriam para maior produção de riquezas coletivas 404 ELSEVIER Curso de Ciência Política Essa concepção evolutiva de uma sociedade livre defendida por Hayek procura se contrapor a uma concepção racionalista que interpretaria todas as instituições sociais como o resultado da vontade e do desígnio humanos Segun do essa corrente inspirada nos trabalhos dos fi lósofos René Descartes e Thomas Hobbes as únicas instituições sociais legítimas seriam aquelas concebidas logi camente pela Razão Nesse sentido qualquer regra moral ou instituição oriunda da tradição deveria ser vista no mínimo com desconfi ança na medida em que ainda não teria recebido o aval da racionalidade para legitimála Para Hayek a principal e mais nefasta consequência dessa concepção é a criação de uma argumentação favorável à expansão do âmbito de atuação do governo princi palmente no que diz respeito ao uso de suas capacidades coercitivas Segundo Hayek a pretensão racionalista em prever e controlar todos os desdobramentos possíveis da vida social poderia fazer com que um governo considerasse legí timo buscar a melhor organização da sociedade para que esta pudesse alcan çar determinados objetivos Esse projeto por sua vez levaria necessariamente à imposição de determinadas condutas vistas como necessárias aos indivíduos restringindo sua liberdade e o uso criativo dos recursos existentes na sociedade Dessa forma a ideia de uma reconstrução racional da vida social se mostraria antagônica a uma ordem fundada no princípio da liberdade individual O temor de Hayek de que a disseminação dessa concepção racionalista acabasse por suplantar os benefícios de uma ordem livre é apresentada em seu livro mais popular O caminho da servidão Publicado em 1944 nele Hayek apre senta a tese de que a característica mais marcante dos regimes nazifascistas e socialistas seria a crescente intervenção do Estado na atividade econômica Para Hayek a ideia de uma economia planifi cada ou administrada de modo centra lizado pelo Estado como presente nos experimentos soviético e nazifascista teria criado as brechas para uma inédita concentração de poderes nas mãos do governo visto agora como o artífi ce de um projeto coletivo Consequentemente teríamos a criação de um governo com uma capacidade inédita de interferência na vida privada dos indivíduos e a substituição de uma ordem espontânea livre por uma sociedade enrijecida e opressora O principal objetivo do argumento apresentado por Hayek não era o de mera crítica ao socialismo por meio de sua associação ao fenômeno nazifascista mas alertar às democracias liberais sobre a possibilidade de que destino seme lhante se abatesse sobre elas No entender de Hayek o sucesso do esforço de guerra a ascensão das teorias keynesianas e as pressões das classes trabalhado ras criavam fortes argumentos favoráveis a uma maior intervenção do Estado e sua atuação como planejador das atividades econômicas na busca por maior 405 Capítulo 15 Hayek e os benefícios da liberdade individual Yuri Kasahara bemestar social Argumentos esses que após o fi nal da Segunda Guerra Mun dial seriam os fundamentos para a criação de um vasto sistema de proteção social e amplas políticas de redistribuição de renda em quase todas as demo cracias capitalistas do Ocidente Enquanto para muitos essas iniciativas eram vistas como a única forma de salvar o capitalismo e o próprio liberalismo para Hayek no entanto representavam a possibilidade de um futuro incerto para as sociedades livres do Ocidente 153 A fragmentação do conhecimento e os limites da ação estatal A denúncia de Hayek aos limites do planejamento estatal seria justifi cada por um argumento aparentemente simples mas pertinente nenhum governo por mais capacitado que fosse poderia reunir todo o conhecimento existente em uma sociedade e utilizálo de modo mais efi ciente e criativo do que o uso livre feito por seus cidadãos Essa impossibilidade residiria no fato de o conhecimen to social por princípio encontrarse fragmentado entre os milhares de membros de uma mesma sociedade uma vez que é o resultado agregado do uso particular que cada indivíduo faz das regras e instituições sociais existentes bem como das circunstâncias de suas condições de vida Como esse conhecimento não é algo objetivo capaz de ser apreendido materialmente mas o resultado de inúmeras interações praticadas cotidianamente pelos indivíduos na busca de seus inte resses pessoais a ação estatal sempre representaria uma dentre muitas possibi lidades previsíveis ou não de utilização do conhecimento coletivo Em outras palavras o planejamento estatal promoveria uma limitação na capacidade indi vidual em utilizar o conhecimento social disponível de forma criativa Assim antes de tudo a liberdade individual deveria ser vista como um mecanismo efi caz de promoção do progresso social Se houvesse homens oniscientes se pudéssemos conhecer não só tudo aquilo que afeta a satisfação de nossos desejos atuais mas também to dos os nossos futuros desejos e necessidades haveria pouco a dizer em favor da liberdade A liberdade é essencial para dar chance ao imprevisível e ao imponderável nós a queremos pois aprendemos a esperar dela a oportunidade para realizar muitos de nossos objetivos Justamente porque cada indivíduo conhece tão pouco e em particular porque raramente sabemos qual de nós sabe o que é melhor confi a mos nos esforços independentes e concorrentes de vários para propi ciar o surgimento daquilo que nós gostaríamos de ter quando virmos Hayek 1993 p 29 406 ELSEVIER Curso de Ciência Política A partir desta linha de argumentação Hayek irá empreender inúmeras críticas às concepções socialdemocrata e socialista hegemônicas nas décadas do pósguerra e defensoras da promoção de uma maior justiça social por meio de políticas redistributivas que seriam vistas como a principal função de um go verno O erro fundamental dessas políticas contudo seria a errônea utilização de critérios morais para o julgamento dos resultados agregados produzidos pela atuação das forças de mercado Para Hayek a classifi cação da distribuição de riquezas resultante da apli cação das regras de um mercado competitivo em termos como justa ou injusta não seria válida se considerarmos que ela não é o resultado de uma ação cons ciente de um indivíduo ou de um grupo Segundo essa perspectiva critérios de justiça ou princípios de moralidade só poderiam ser aplicados para ações intencionais praticadas por um indivíduo ou uma organização que afetassem outros indivíduos Seria legítimo portanto censurar e punir as ações de um indivíduo que prejudicasse terceiros ou louvar e recompensar ações benevolen tes e altruístas O mesmo no entanto não poderia ser aplicado ao resultado de inúmeras relações privadas estabelecidas livremente pelos indivíduos e em res peito às regras existentes de conduta justa A distribuição de riquezas resultante dessas inúmeras interações visto que é um resultado involuntário e impessoal de milhares de interações de indivíduos perseguindo seus objetivos pessoais não poderia ser portanto considerada boa ou ruim Desse modo o conceito de justiça social é necessariamente vazio e sem sig nifi cado porque em uma ordem livre nenhuma vontade é capaz de determinar as rendas relativas das diferentes pessoas ou impedir que elas dependam em parte do acaso Só é possível dar sentido à expres são justiça social numa economia dirigida ou comandada tal como um exército em que os indivíduos recebem ordens quanto ao que fa zer De fato nenhum sistema de normas de conduta individual jus ta e portanto nenhuma ação livre dos indivíduos poderiam produzir resultados que correspondessem a qualquer princípio de justiça distri butiva Hayek 1985b p 88 Importante desdobramento lógico dessa moralização dos resultados pro duzidos por uma ordem de mercado como ressalta a passagem acima seria a arbitrariedade resultante dos critérios utilizados para nortear a intervenção es tatal na atividade econômica e a redistribuição dos recursos coletivos Dado que algo similar a uma vontade geral rousseauniana deveria ser considerado irrea lista em uma sociedade complexa uma decisão sobre qual critério redistributivo mérito pobreza etnia grupo profi ssional seria considerado legítimo não po 407 Capítulo 15 Hayek e os benefícios da liberdade individual Yuri Kasahara deria ser consensual em uma sociedade livre Enquanto em pequenos grupos ou organizações poderíamos mais facilmente estabelecer metas e objetivos comuns em uma sociedade complexa habitada por indivíduos com diferentes concep ções sobre felicidade e diferentes projetos de vida qualquer critério escolhido representaria um uso ilegítimo da capacidade coercitiva do Estado Critérios de justiça que não se limitassem ao estabelecimento de normas gerais de conduta justa mas que perseguissem objetivos específi cos como a melhoria de condições de vida de um determinado grupo social provavelmente levariam a interven ções estatais indesejáveis na forma como os indivíduos exercem sua liberdade em suas relações privadas mesmo que essas fossem justifi cadas por aparentes argumentos de maior justiça social ou felicidade coletiva Consequentemente qualquer critério adotado seria visto como injusto por aqueles que não comun gassem dos mesmos princípios distributivos adotados pelo Estado Assim O que nos é prometido como um caminho para a liberdade na verdade é uma estrada para a servidão Pois não é difícil ver quais são as conse quências quando uma democracia embarca no rumo do planejamento estatal O objetivo do planejamento sempre será descrito por algum termo vago como o bemestar geral Não haverá acordo real sobre quais fi ns deverão ser alcançados e o efeito das pessoas concordarem sobre a necessidade de um planejamento central sem um acordo prévio sobre seus fi ns poderia ser comparado a um grupo de pessoas que se comprometesse em viajar sem saber para onde desejam ir como re sultado pode ser feita uma viagem na qual muitos não gostariam de participar Hayek 1944 p 143 Do ponto de vista econômico essa crescente intervenção estatal gradati vamente minaria os fundamentos que garantiriam a uma ordem livre sua maior capacidade de inovação e de uso criativo e efi ciente dos recursos de uma so ciedade As restrições à liberdade individual na condução das atividades eco nômicas acabariam reduzindo os incentivos para que os indivíduos usassem seus conhecimentos particulares para a geração de maiores ganhos pessoais seja por meio do enfraquecimento dos mecanismos de competição como a utilização de subsídios a criação de extensas proteções trabalhistas e monopólios estatais bem como tarifas e legislações protecionistas a determinados setores ou pela adoção de pesados mecanismos redistributivos por meio de excessivas cargas tributárias Como resultado no longo prazo as medidas que visariam redistri buir as riquezas produzidas pela dinâmica de mercado competitivo consagra das no modelo de um Estado de BemEstar acabariam por destruir os mecanis mos responsáveis por gerar essas mesmas riquezas 408 ELSEVIER Curso de Ciência Política Assim se o governo não quiser meramente facilitar a obtenção de certos pa drões de vida pelos indivíduos mas tornar certo que todos alcancem esses padrões ele só poderá fazêlo despojando os indivíduos de qual quer possibilidade de escolha sobre o que desejam Portanto o Estado de BemEstar tornase um Estado Domiciliar no qual um poder pater nalístico controla a maior parte da renda da comunidade e a distribui para os indivíduos na forma e nas quantidades que considera serem necessárias ou merecidas Hayek 1993 p 260 Essa premissa de desconfi ança radical na capacidade do governo em coor denar de maneira mais efi caz e justa as relações econômicas estabelecidas entre os indivíduos não nos deve levar à conclusão de que Hayek seja contrário a qualquer intervenção do Estado na economia De acordo com as premissas da tradição liberal Hayek não nega em nenhum momento a necessidade de uma instância responsável pela aplicação de uma justiça pública materializada no Es tado para a resolução de impasses ou efeitos negativos gerados pelas interações entre indivíduos Também não deixa de reconhecer que inúmeros indivíduos possam mostrarse extremamente desfavorecidos pelos resultados agregados produzidos por uma ordem de mercado ou apresentar trajetórias de vida que não proporcionem condições favoráveis para que sejam capazes de aproveitar minimamente as oportunidades geradas pelo progresso de uma sociedade Essa posição faz com que Hayek não seja contrário a uma atuação reguladora do Estado na ordem do mercado nem à existência de políticas que procurem garan tir condições mínimas de inserção dos indivíduos na dinâmica de um mercado competitivo ou que assegurem um nível de bemestar mínimo a seus cidadãos Dessa forma legislações trabalhistas e ambientais um sistema público de edu cação saúde e previdência bem como políticas de renda mínima não seriam incompatíveis com as refl exões de Hayek em uma sociedade livre sem interferirmos no mercado podemos ob viamente estabelecer um mínimo abaixo do qual ninguém precisa cair por meio da provisão para todos de alguma garantia contra infortú nios Há na verdade muito que podemos fazer para melhorar a es trutura em que os mercados podem operar de forma benéfi ca Hayek 1990 p 115 A questão levantada por Hayek é saber como essa atuação estatal pode ser julgada legítima sem ferir os princípios de um governo liberal diante da cres cente complexidade da vida social moderna Em sua opinião essas intervenções estatais seriam completamente legítimas desde que 409 Capítulo 15 Hayek e os benefícios da liberdade individual Yuri Kasahara 1 o governo não monopolize determinados serviços e novos métodos de prestação desses serviços pelo mercado não sejam proibidos 2 os recursos para a prestação dos serviços sejam obtidos por meio de uma taxação baseada em princípios uniformes e que esses impos tos não sejam utilizados como um instrumento de redistribuição da renda e 3 as necessidades satisfeitas sejam coletivas de toda a comunidade e não meramente necessidades coletivas de grupos particulares Hayek 1990 p 111 A aplicação efetiva desses critérios no entanto esbarraria na dinâmica particular das democracias modernas Como exploraremos a seguir o princí pio representativo e a regra da maioria características típicas das democracias contemporâneas exerceriam fortes pressões para que governos eleitos não se fi assem a esses critérios na formulação e implementação de suas políticas 154 Liberdade e democracia Fiel à tradição liberal clássica a posição de Hayek frente ao sistema demo crático é de cautela A democracia entendida como um governo representativo cujas decisões são regidas pelo princípio da maioria seria historicamente um aliado contingente dos princípios liberais visto que buscam objetivos diferentes Assim o liberalismo dedicase às tarefas do Estado e sobretudo à limitação do seu poder enquanto o movimento democrático lidaria com a questão de quem deve dirigir o Estado Hayek1994 p 55 Essa tensão é mais bem compreendida quando analisamos como a ideia de igualdade é interpretada nas duas tradições Para Hayek a igualdade em uma ordem liberal poderia ser resumida à ideia de isonomia ou igualdade for mal na qual todos os indivíduos deveriam ser julgados perante a lei segun do suas condutas sem qualquer distinção de credo etnia gênero ou riqueza No arcabouço liberal essa seria a única igualdade considerada indispensável visto que os desdobramentos do exercício da liberdade inexoravelmente pro duziriam distribuições desiguais dos recursos materiais e do reconhecimento de uma sociedade Mesmo a ideia de uma busca de igualdade de condições e oportunidades extremamente comum nas refl exões liberais deveria ser vista com reticência na medida em que geraria um debate nebuloso sobre aquilo que seria necessário para sua satisfação substantiva e a possibilidade de que a deter minados grupos fossem concedidos privilégios ferindo o princípio da isonomia Na verdade como ressalta Hayek o objetivo histórico da teoria liberal ao buscar a igualdade jurídica foi estabelecer limites à ação do Estado para que este não 410 ELSEVIER Curso de Ciência Política utilizasse sua capacidade coercitiva para o favorecimento ou perseguição de de terminados indivíduos e grupos A tradição democrática por sua vez apesar de comungar com a tradição liberal a defesa do princípio da isonomia estabelece a igualdade política como prérequisito indispensável para a legitimação de uma ordem social O proble ma segundo Hayek é que a busca pela igualdade política acaba colocando como principal objeto de preocupação da tradição democrática a defi nição de critérios legítimos para a tomada de decisões coletivas Uma vez respeitados esses cri térios qualquer decisão passaria automaticamente a ser vista como legítima a despeito de seu teor O princípio majoritário regularmente adotado pelas demo cracias modernas por exemplo possibilitaria a uma maioria impor sua vontade a uma minoria fazendo com que a existência de determinados procedimentos democráticos concedesse legitimidade a políticas redistributivas ou a restrições a liberdades individuais Nas palavras de Hayek essa diferença poderia ser re sumida da seguinte forma A diferença entre os dois princípios tornase mais evidente quando procuramos o contrário de cada um na democracia tratase de um governo autoritário no liberalismo porém é o totalitarismo Nenhum dos dois sistemas exclui o contrário do outro uma democracia poderia exercer poder totalitário e é no mínimo imaginável que um governo autoritário siga princípios liberais Hayek 1994 p 55 Diante da ameaça de uma democracia ilimitada a tradição liberal clássica foi inventiva na busca por soluções conciliatórias Para Hayek o constitucio nalismo o princípio da divisão de poderes e a descentralização administrativa são alguns exemplos de criações institucionais da luta contra o absolutismo que acabaram sendo úteis para conter a ameaça de maiorias tirânicas em tempos de mocráticos Os desdobramentos históricos experimentados pelas democracias modernas no entanto estariam mostrando as limitações desses artifícios em impedir um crescente uso abusivo do poder governamental Esses desdobra mentos por sua vez poderiam ser considerados mais graves do que os ideais de uma economia planejada ou socialista Na perspectiva de Hayek a origem dessa ameaça estaria em certas ca racterísticas institucionais das democracias contemporâneas principalmente de seus órgãos legislativos A principal delas seria a fusão em um mesmo corpo legislativo da prerrogativa de estabelecer normas gerais de conduta justa com a responsabilidade em aprovar as regras de atuação do governo Originalmen te os parlamentos e corpos legislativos teriam por função controlar e regular o governo não a de elaborar normas de conduta justa Como vimos anterior 411 Capítulo 15 Hayek e os benefícios da liberdade individual Yuri Kasahara mente Hayek imagina que as normas de conduta justa não são necessariamente positivadas em códigos ou legislações criadas por órgãos parlamentares mas o resultado acumulado de experiências que vão se cristalizando por exemplo na jurisprudência do direito consuetudinário common law São esses princípios que por sua vez deveriam nortear não só a fi scalização do governo pelo le gislativo mas também a própria atuação do legislativo como materializado na tradição constitucionalista Atualmente no entanto a concepção democrática conferiria aos corpos legislativos a legitimidade para emendar os conteúdos das regras de conduta justa existentes por meio da possibilidade de reformas cons titucionais Além disso qualquer decisão do corpo legislativo mesmo de caráter administrativo seria equiparável a uma norma geral de conduta justa mesmo que essa decisão não atendesse aos requisitos de generalidade e impessoalidade necessárias ao reconhecimento de uma lei em seu sentido estrito1 Essa concentração de poderes produziria efeitos deletérios devido à pró pria dinâmica política das democracias representativas modernas Como os go vernos necessitam formar maiorias para a aprovação de suas políticas eles aca bam se vendo obrigados a fazer concessões aos diferentes grupos organizados da sociedade Grupos que por sua vez estariam representados nos membros do legislativo que ajudam a eleger O resultado desse processo de negociação é a aprovação de medidas que na maioria dos casos benefi ciariam grupos parti culares ou concepções de vida específi cas em detrimento do respeito a regras de conduta justa universais Dessa forma o próprio legislativo tornase um espaço para que diferentes grupos de interesse possam infl uenciar o governo no intuito de que este satisfaça seus projetos e necessidades particulares A consequência óbvia dessa dinâmica é a disseminação de um confl ito distributivo no qual os diferentes segmentos da sociedade procuram estabele cer como serão partilhados os custos da expansão dos serviços governamentais e dos benefícios ofertados a grupos específi cos Setores industriais passam a bus car isenções fi scais e subsídios públicos enquanto sindicatos lutam por benesses do Estado a seus associados transferindo os custos dessas medidas a toda a coletividade Abrese a porta assim para que regras arbitrárias sejam adotadas pelo governo apresentando o resultado de uma barganha majoritária formada por múltiplos interesses particularistas como socialmente justa 1 Para Hayek uma norma de conduta só pode ser considerada justa se for aplicável a um número desconhecido de casos futuros e a todas as pessoas igualmente nas circunstâncias objetivas descritas pela norma a despeito dos efeitos que a observância dessa regra irá produzir em situações particulares 1990 p 77 Como exemplo dessas normas de conduta justa poderíamos citar as leis contratuais tri butárias e penais 412 ELSEVIER Curso de Ciência Política Uma legislatura ilimitada que não seja impedida por convenção ou provisões constitucionais de decretar medidas coercitivas discrimina tórias e específi cas como tarifas taxas ou subsídios não pode ser im pedida de agir de forma desmesurada Apesar da inevitáveis tentativas em disfarçar essa compra de apoio como um auxílio benéfi co aos ne cessitados essa pretensão moral difi cilmente pode ser levada a sério A concordância de uma maioria em como distribuir os espólios extor quidos de uma minoria dissidente difi cilmente pode clamar qualquer legitimidade moral para sua atuação mesmo quando invoca a ilusória justiça social para defendêla Hayek 1994 p 157 A única solução viável segundo Hayek seria uma reestruturação institu cional da democracia representativa dividindo as funções atualmente acumu ladas por seus órgãos legislativos Uma esfera deveria continuar sendo respon sável pelo controle da atuação governamental nos moldes atuais enquanto uma nova esfera legislativa deveria monopolizar a prerrogativa de elaboração das normas de conduta justa ou em termos mais específi cos o texto constitucional O objetivo primordial desta última seria o de preservar o conjunto de normas de conduta justa de uma coletividade ao mesmo tempo que promoveria reformas necessárias para adaptálas às novas circunstâncias trazidas pela evolução da vida social Esse órgão legislativo por exemplo deveria estabelecer o conjunto de liberdades individuais a ser respeitado pelas decisões governamentais re gras contratuais e penais bem como tributárias estipulando a quantidade de recursos fi nanceiros disponíveis ao governo para a condução de suas ações Obviamente essa proposta não soluciona o dilema de saber quem seria responsável por controlar o funcionamento dessa segunda instância evitando efetivamente que interesses particularistas possam infl uenciar suas decisões Uma maneira de contornar esse dilema seria a promoção de alterações nos pro cedimentos de seleção dos ocupantes desse órgão Esses cargos poderiam ser eletivos mas seus ocupantes deveriam ser pessoas de notório conhecimento e reputação em sua área de atuação profi ssional ou reconhecidas publicamente por seus serviços prestados à comunidade teriam mandatos longos de 10 a 15 anos mas sem a possibilidade de reeleição Além disso as decisões desse corpo deveriam respeitar critérios de generalidade bem como ser passíveis de julga mento em uma corte encarregada de averiguar a constitucionalidade de suas proposições Com esse novo arranjo institucional Hayek acredita que seria pos sível que o processo de formulação das regras de conduta justa de uma socie dade não fosse dominado por uma dinâmica que transforma o Estado em um instrumento para a satisfação de interesses particulares 413 Capítulo 15 Hayek e os benefícios da liberdade individual Yuri Kasahara 155 Conclusão o fim da política Essa breve apresentação dos principais argumentos contidos nos escritos políticos de Hayek nos permite indagar sobre o papel da ação política em seu sentido clássico Em outras palavras qual a legitimidade de que indivíduos pos sam buscar a realização de um projeto coletivo por meio de um processo delibe rativo conjunto Uma primeira impressão nos levaria a acreditar que na obra de Hayek haveria pouco espaço para se pensar a legitimidade de uma ação política visto que essa refl etiria pretensões indesejáveis de controle da vida social ou ainda representaria o esforço de grupos de interesse em conquistar benefícios parti culares as expensas do bemestar coletivo Em tal interpretação qualquer ação política deveria ser vista de modo reticente uma vez que seria uma ameaça po tencial à liberdade individual Porém a imagem de um mundo habitado por indivíduos megalômanos ou autointeressados tampouco abriria espaço para o fl orescimento da liberdade individual como um ideal coletivo Uma segunda interpretação possível seria ver na ação política um impor tante mecanismo de inovação social pelo qual os membros de uma sociedade ex perimentam novas formas de organização coletiva Nesse cenário os indivíduos veriam na ação política uma forma de tornar públicos certos princípios de justiça que lentamente são engendrados a partir das múltiplas relações travadas no seio de uma sociedade A ação política vista pelo seu lado criativo possibilitaria que a própria ideia de liberdade individual despontasse como uma interessante e profícua proposta de organização da vida social Apesar da primeira interpretação não se mostrar implausível a segunda interpretação parece mais coerente com a posição de Hayek acerca do valor da liberdade individual Respeitando as premissas de sua teoria social Hayek não confere à liberdade individual ou a qualquer direito individual um caráter abso luto inerente à condição humana ou transcendente a qualquer experiência cole tiva Num mundo habitado por indivíduos de conhecimento escasso e objetivos diversos a liberdade individual só pode surgir a partir de um longo processo de interações sociais que a elevem ao patamar de uma regra de conduta justa Desse modo somente por meio de ações políticas confl itos tentativas e ajustes a liberdade individual poderia ser reconhecida como um princípio estruturante das leis e instituições de uma sociedade Essa posição estaria corroborada na reticência apresentada por Hayek em afi rmar a existência de um conjunto específi co de leis e instituições que mate rializaria de forma defi nitiva uma ordem liberal Em sua opinião eleger deter minado arranjo institucional e jurídico como legítimo seria negar o fato de que 414 ELSEVIER Curso de Ciência Política o progresso social é por defi nição um processo em aberto Do mesmo modo Hayek em nenhum momento afi rma que a liberdade individual seria o único princípio legítimo de organização de uma sociedade A liberdade individual se ria apenas um dentre muitos princípios que podem estruturar o conjunto de regras de conduta justa de uma coletividade e mesmo sua adoção não se mostra algo inevitável no longo prazo Essa concepção estaria refl etida no esforço em preendido pelos escritos de Hayek em defender a liberdade individual e uma ordem de mercado por meio de argumentos que mostrem sua utilidade e su perioridade para a organização de uma sociedade complexa em contraste com uma sociedade guiada por ideais centralizadores e coletivistas O liberalismo e suas instituições desse modo estariam muito distantes de representar um fi m da história ou a impossibilidade de o ser humano infl uenciar de modo conscien te e racional as condições de sua existência Antes de tudo o liberalismo e as ins tituições nele inspiradas deveriam ser vistos como um mecanismo mais efi ciente para a administração das mudanças inerentes ao desenvolvimento social Nenhuma dessas conclusões são argumentos contrários ao uso da ra zão mas são somente argumentos contra os usos que requerem poderes exclusivos e coercitivos por parte do governo não são argumentos con tra a experimentação mas argumentos contra todo poder monopolista e exclusivo de experimentar em determinada área e contra a con sequente exclusão de soluções melhores do que aquelas com as quais aqueles no poder mostramse comprometidos Hayek 1993 p 70 A partir dessa concepção o liberalismo defendido por Hayek não poderia deixar de reconhecer a importância da ação política no constante aprimoramen to da vida social Em sociedades modernas principalmente naquelas pouco afeitas às premissas liberais poderíamos dizer que é justamente na disputa de visões de mundo presentes na dinâmica política que a liberdade deve ser capaz de convencer a opinião pública sobre seu valor e benefícios Sem indivíduos que acreditem de fato nos benefícios trazidos por uma ordem liberal e guiem efeti vamente suas ações por meio dessa crença uma sociedade livre jamais poderia existir Em seu conjunto poderíamos considerar a obra de Hayek como um mo numental esforço de convencimento de seus leitores das inúmeras vantagens produzidas por uma ordem liberal objetivando a produção de um debate pú blico capaz de estimular o consenso necessário para sua legitimação Com isso os escritos de Hayek são um convite à refl exão sobre quais deveriam ser os ob jetivos de nossa ação política em um mundo marcado pela diversidade humana 415 Capítulo 15 Hayek e os benefícios da liberdade individual Yuri Kasahara e movido por incertezas e acasos A seu ver o comprometimento radical com o princípio da liberdade individual seria a única alternativa sob todos os aspec tos satisfatória 156 Perguntas para reflexão 1 Explique como estão relacionadas as ideias de progresso coletivo e liber dade individual no pensamento de Hayek 2 A partir da teoria social de Hayek explique como a liberdade individual pode surgir como um valor coletivo 3 Segundo Hayek por que o direito consuetudinário é tido como mais justo do que um sistema de regras mais rígido previamente codificado 4 Qual a posição de Hayek diante do princípio democrático 5 Qual a posição de Hayek diante da ideia de justiça social e das políticas redistributivas que inspira Apresente os argumentos que sustentam essa posição 6 Quais seriam os critérios a serem adotados pelo governo para tornar sua intervenção legítima 7 Hayek mostrase descrente em relação ao funcionamento das democra cias representativas modernas Apresente os argumentos que justificam essa postura e as possíveis reformas sugeridas pelo autor para o melhor funcionamento das instituições democráticas 8 Qual a posição de Hayek sobre a ação política Debata a questão a partir das ideias de Hayek sobre a liberdade individual 9 Qual a posição de Hayek diante das desigualdades produzidas pelo social e econômico 10 Você concorda com as ideias de Hayek Como você acha que uma ordem liberal poderia ser implementada em um país como o Brasil Bibliografia BIRNER J VAN ZIJP R orgs Hayek Coordination and Evolution Londres Routledge 1994 416 ELSEVIER Curso de Ciência Política CRESPIGNY A de F A Hayek Liberdade para o Progresso In CRES PIGNY A de MINOGUE K R orgs Filosofi a política contemporânea Brasília Editora da UNB 1982 HAYEK F A The Road to Serfdom London Routledge Kegan Paul 1944 Direito legislação e liberdade Normas e ordem São Paulo Visão 1985a v I Direito legislação e liberdade A miragem da justiça social São Paulo Vi são 1985b v II New Studies in Philosophy Politics Economics and the History of Ideas Lon don Routledge 1990 The Constitution of Liberty London Routledge 1993 Liberalismo Palestras e Trabalhos Cadernos Liberais n 5 São Paulo CESPInstituto Friedrich Naumann 1994 KRESGE S WENAR L Hayek on Hayek an Autobiographical Dialogue Lon don Routledge 1994 Capítulo 16 A justiça em John Rawls da relação entre os homens às relações internacionais Leonardo Carvalho Braga1 161 Introdução John Bordley Rawls nasceu em 21 de fevereiro de 1921 em Baltimore Ma ryland sendo o segundo de cinco fi lhos de William Lee advogado e especialis ta em Direito Constitucional e Anna Bell Rawls de origem alemã e presidente da liga local do eleitorado das mulheres Aos 18 anos 1939 Rawls ingressou na Universidade de Princeton onde estudou fi losofi a Após ter concluído seus estudos participou da Segunda Grande Guerra no Pacífi co Ao fi nal da guerra Doutorando e Mestre em Relações Internacionais pelo IRIPUCRio Graduado em Relações Inter nacionais pela UNESA Desenvolveu sua dissertação de mestrado sobre a justiça em John Rawls e as relações internacionais com o título de A justiça internacional e o dever de assistência no Direito dos Povos de John Rawls Professor na graduação e na especialização em Relações Internacionais da La SalleRJ Institutos Superiores Professor na graduação em Relações Internacionais da Universidade Estácio de Sá Contato leonardobragahotmailcom 418 ELSEVIER Curso de Ciência Política Rawls volta a Princeton 1946 e prepara sua tese de doutorado iniciando logo em seguida 1949 seu aprofundamento no estudo da teoria política Faz pós doutorado entre 19521953 em Oxford Em 1962 tornase professor titular de fi losofi a em Harvard e em 1991 professor emérito A sua primeira grande obra foi lançada em 1971 entitulada Uma Teoria da Justiça O trabalho de Rawls alcançou um reconhecimento mundial extraordiná rio Seu texto foi traduzido em mais de 25 países e provocou inúmeras outras contribuições no mundo todo Rawls trata aqui numa visão contratualista da distribuição de bens sociais entre as pessoas a partir do critério de justiça como equidade que possibilitaria uma distribuição equitativa e assim justa desses bens Nos anos 1980 e 1990 Rawls se dedica ao ensino em Harvard e a responder às críticas que vários comentadores desenvolveram desde a publicação de Uma Teoria da Justiça Além disso escreve o O liberalismo político 1993 Agora Rawls desenvolve a questão do pluralismo razoável a existência de várias visões de mundo diferentes e sua relação com o consenso de sobreposição que possibi lita que tais visões diferentes e mesmo eventualmente antagônicas possam co existir na sociedade e corroborar um entendimento político de justiça aceito por todos Em O direito dos povos 1999 Rawls projeta para as relações internacionais os princípios de justiça que seriam então escolhidos entre os povos tendo como referência o exercício do liberalismo político e do consenso de sobreposição O caminho traçado por Rawls em sua trilogia tem como norte o combate à desigualdade social e econômica entre as pessoas e entre os povos Rawls no intuito de tentar resolver tais desigualdades procura trabalhar com padrões de compensação na sociedade nacional e internacional São aqui o princípio da diferença e o dever de assistência para cada caso respectivamente as soluções propostas para tanto Rawls falece em 24 de novembro de 2002 em Lexington Massachusetts aos 81 anos Ao tratarmos do conjunto da obra de Rawls devemos atentar para alguns pontos O contratualismo rawlsiano para chegar ao direito cuida da compreen são do conceito de justiça o que implica um estudo e uma análise não sobre o ordenamento jurídicolegal leis a priori mas acerca da concepção fi losófi ca de justiça Há algo anterior às leis Há o princípio moral há a doutrina São esses princípios e essa doutrina que transformam a justiça como conceito em justiça como direitos palpáveis concretos legais e supostamente legítimos Sejam eles quais forem Rawls está particularmente atento à justiça como conceito ex presso em princípios para então transformaremse em direitos 419 Capítulo 16 A justiça em John Rawls da relação entre os homens às Leonardo Carvalho Braga O contratualismo em Rawls possui uma base construtivista e normativa Isso signifi ca dizer que os princípios de justiça por ele apresentados são resulta do de um diálogo social em que os indivíduos ponderam sobre seus interesses uns com os outros e sobre a possibilidade de que esses interesses se encaixem num funcionamento coletivo que leve à satisfação de todos ou à possibilidade da mesma Uma vez elaborados os princípios de justiça passam a ser o referencial maior para a realização dos interesses dos indivíduos e se os princípios foram escolhidos por todos igualmente todos podem dele se benefi ciar para alcançar sua satisfação pessoal A normatividade está assim na aposta de que o respeito e a garantia desses princípios e consequentemente direitos possibilitarão a reali zação razoável dos planos de vida dos indivíduos e devem então ser buscados como um meio mas também como um fi m Assim é para a sociedade fechada nacional como é também para a socie dade dos povos É preciso garantir que os indivíduos e os povos possam gozar de um sistema de liberdades que lhes possibilite realizar seus planos de vida Na difi culdade de garantir essa possibilidade o Estado e a sociedade dos povos cada qual em seu nível de atuação deve contribuir para que os obstáculos a essa efetivação sejam superados Rawls domesticamente assume uma postura key nesiana e no plano internacional uma postura liberal intervencionista em que as defi ciências econômicas sociais e políticas devem ser corrigidas para garantir o pleno exercício de liberdades e direitos que satisfaçam a existência humana como realização plena do ser 162 Uma teoria da justiça Se a inclinação dos homens ao interesse próprio torna necessária a vigilân cia de uns sobre os outros seu sentido público de justiça torna possível a sua associação segura Entre indivíduos com objetivos e propósitos díspares uma concepção partilhada de justiça estabelece os vínculos da convivência cívica o desejo geral de justiça limita a persecução de outros fi ns Rawls 2000 p 5 A justiça rawlsiana procura resolver o confl ito pela distribuição de bens sociais entre as pessoas O primeiro ponto de superação desse confl ito como pensado por Rawls é considerar a sociedade como um sistema equitativo de co operação Para a solução do confl ito gerado pela distribuição dos benefícios da cooperação social Rawls desenvolve princípios de justiça aplicados à estrutura básica da sociedade que sejam aceitos por todos de maneira equitativa A esco lha dos princípios de justiça é feita de modo que as pessoas não sejam capazes de propor supostos princípios de justiça que favoreçam mais a umas que a outras 420 ELSEVIER Curso de Ciência Política A sociedade é então regulada por uma concepção política de justiça a fi m de promover os justos termos de cooperação entre seus membros Tal concepção política de justiça é chamada por Rawls de justiça como equidade Assim a justiça na concepção de Rawls deve através das instituições sociais garantir que não ocorram distinções arbitrárias entre as pessoas na atri buição de direitos e deveres básicos na sociedade e garantir também regras que proporcionem um equilíbrio estável entre reivindicações de interesses concor rentes das vantagens da vida social e na distribuição de renda e riqueza É então a partir da concepção política de justiça gestada numa condição de equidade entre as pessoas que se desenha o cenário de justiça social rawlsiano 1621 A concepção pública de justiça e a sociedade rawlsiana Em Uma Teoria da Justiça Rawls defi ne a sociedade como uma associação humana mais ou menos autosufi ciente de pessoas que em suas relações mútuas reconhecem certas regras de conduta como obrigatórias e que na maioria das vezes agem de acordo com elasRawls 2000 p 5 Para Rawls essas regras refl etem um sistema de cooperação entre as pessoas caracterizando a sociedade como um empreendimento cooperativo que visa vantagens mútuas Assim a sociedade é cooperativa Os habitantes de um determinado espaço físico comum reconhecem re gras sociais que norteiam a sua conduta social e possuem uma inclinação à coo peração entre si a partir de uma identidade de interesses A sociedade enquanto esse empreendimento cooperativo no entanto afi rma Rawls não está isenta de confl itos As pessoas concordam que é melhor para elas individualmente fazer parte de um meio cooperativo mas não necessariamente concordam quanto à distribuição de benefícios produzidos pela cooperação social Rawls acredita que cada um preferirá obter para si uma parcela maior a uma menor dos bens produzidos pela cooperação social destacando como um dado característico da sociedade e como motivo de geração de confl itos que há uma escassez modera da implícita dos recursos naturais Segundo Rawls é preciso que a sociedade estabeleça regras sociais que norteiem o convívio humano a fi m de que a cooperação e não o confl ito pre valeça no meio social Essas regras são os próprios princípios de justiça social De acordo com Rawls os princípios de justiça fornecem um modo de atribuir direitos e deveres nas instituições básicas da sociedade e defi nem a distribuição apropriada dos benefícios e encargos da cooperação social Rawls 2000 p 5 A discussão sobre a justiça em John Rawls nasce portanto da necessidade de se 421 Capítulo 16 A justiça em John Rawls da relação entre os homens às Leonardo Carvalho Braga estabelecer um parâmetro distributivo dos benefícios obtidos através da coope ração social com o qual as pessoas concordem Questão importante a ser destacada concerne à publicidade das regras ou princípios acordados Rawls quer deixar claro que tais regras são de conheci mento de todos do corpo social como se fossem resultado de um grande contrato social entre todos os homens que fazem parte da sociedade A implicação desse fato é muito importante porque signifi ca que a publicidade das regras garante que os homens saibam quais os limites de suas ações e das ações dos outros o que promove uma base comum para a determinação de expectativas mútuas Outra importante questão acerca do contratualismo rawlsiano faz refe rência ao papel das instituições sociais Estas defi nem os direitos e os deveres das pessoas e infl uenciam decisivamente suas expectativas em relação ao que almejam para as suas vidas uma vez que nascem em posições sociais diversas Esse fato faz com que as pessoas tenham expectativas de vida também diversas não só em ambição mas também em condição de as realizar É sobre essas desi gualdades que os princípios de justiça são aplicados 1622 O contrato social rawlsiano e os princípios de justiça Para resolver o confl ito sobre a distribuição dos benefícios produzidos pela cooperação social Rawls cria a sua alegoria do contrato social com o objeti vo de formular os princípios de justiça que regularão a vida em sociedade e que servirão como parâmetro distributivo dos benefícios sociais Na alegoria do contrato social rawlsiano os homens encontramse na cha mada posição original Rawls 2000 p 19 que corresponde ao estado de natureza das teorias contratualistas tradicionais De acordo com a posição original que é meramente hipotética os homens não sabem entre outras coisas que lugar ocupam na sociedade se são ricos ou pobres qual a sua classe e seu status social Além disso não têm informação alguma a respeito de seus dotes e habilidades naturais nem sobre suas capacidades físicas e mentais tais como força ou defi ciência física inteligência ou ausência desta Essa posição original é assim carac terizada pelo que Rawls denomina de véu de ignorância Rawls 2000 p 146 ou seja pela falta de informação que os homens possuem a respeito de si mesmos e dos outros É sob o véu de ignorância que os homens escolhem os princípios de justiça e é ele que garante que ninguém será favorecido ou desfavorecido quando da escolha dos princípios de justiça em função da sorte natural ou da sorte social de cada um Rawls não considera justo ou injusto que exista esta ou aquela posição mais ou menos favorecida ou que uma pessoa nasça com dotes e habilidades 422 ELSEVIER Curso de Ciência Política naturais mais desenvolvidas e desfrute de uma posição social mais relevante Rawls no entanto entende que justa ou injusta pode ser a maneira pela qual as instituições sociais tratam tais desigualdades Os menos aptos e capazes física e mentalmente e que não dispõem de uma posição social relevante podem não ter as mesmas chances de realizar as perspectivas que planejarem para as suas vidas se dependerem somente de suas habilidades e dotes por natureza defi cientes e se além disso as instituições sociais não procurarem de alguma forma diminuir os efeitos dessas defi ciências Pensar a posição original com o recurso do véu de ignorância signifi ca anular as arbitrariedades sociais e naturais da condição de existência humana Assim a concepção de justiça social deve ser tal que permita dispor as pessoas ainda que possuam características diferentes tanto sociais como congênitas numa posição inicial de igualdade Dessa forma a alegoria rawlsiana da justiça cria um ambiente em que todas as pessoas estão por assim dizer na mesma posição hipoteticamente Ne nhuma delas desfruta de privilégios sociais ou naturais congênitos que lhes permitam se benefi ciarem mais da cooperação social do que outras Essa situa ção inicial então garante que as inclinações e aspirações particulares além das concepções individuais do bem não infl uenciem a escolha dos princípios de justiça Dessa maneira é possível afi rmar que na concepção de justiça como equida de as pessoas encontramse numa posição que lhes permite chegar ao consenso de quais regras os princípios de justiça serão por elas adotadas Rawls 2000 p 13 É importante apresentar também a elaboração do conceito de equilíbrio refl exivo elaborado por Rawls A ideia desenvolvida por ele sobre o equilíbrio refl exivo é observar se os princípios escolhidos pelas pessoas combinam com as suas ponderações sobre a justiça De acordo com Rawls a posição original delimita um momento em que as pessoas avaliam uma interpretação da situação inicial quando estão reunidas para a realização do contrato social pela capa cidade dos princípios escolhidos em atender às suas convicções mais profundas Rawls acredita que somente um consenso acerca das diversas concepções de justiça e pretensões de posições sociais pode possibilitar a existência de uma sociedade estável Segundo Rawls é preciso que os planos dos indivíduos se encaixem uns nos outros para que se evite assim que as expectativas legítimas de cada um sejam simplesmente desconsideradas e frustradas Por meio desses avanços e recuos às vezes alterando as condições das circunstâncias em que se deve obter o acordo original outras vezes modifi cando nossos juízos e conformandoos com os nossos princípios 423 Capítulo 16 A justiça em John Rawls da relação entre os homens às Leonardo Carvalho Braga suponho que acabaremos encontrando a confi guração da situação ini cial que ao mesmo tempo expresse pressuposições razoáveis e produza princípios que combinem com nossas convicções devidamente apura das e ajustadas A esse estado de coisas eu me refi ro como equilíbrio re fl exivo Tratase de um equilíbrio porque fi nalmente nossos princípios e opiniões coincidem e é refl exivo porque sabemos com quais princí pios nossos julgamentos se conformam e conhecemos as premissas das quais derivam Rawls 2000 p 23 A posição original na teoria ralwsiana de justiça é assim elemento fun damental para a compreensão do procedimento de escolha dos princípios de justiça e para a própria concepção de justiça como equidade Isso porque ao se considerar que a posição original tem por base a isenção das pessoas a respeito de informações particulares sobre suas habilidades talentos e posições sociais fi ca assegurado um processo equitativo de escolha dos princípios de justiça sem o favorecimento de umas em detrimento de outras Restanos então identifi car os princípios de justiça O primeiro princípio garante um sistema de liberdades básicas para to dos igualdade equitativa de oportunidades e uma divisão igual da renda e da riqueza O segundo princípio é decorrente do primeiro Considerando que al gumas pessoas que não se sabe quem são são menos favorecidas que outras pela sorte natural ou social é compreensível que no momento de elaboração do contrato seja escolhido um princípio que as proteja dessas contingências natu rais e sociais Assim as pessoas se dão conta de que quando caírem os véus de ignorância que as cobrem algumas delas encontrarseão em posição de desvan tagem em relação às outrasAs pessoas concordam então em admitir que tais desigualdades serão aceitas se e somente se forem vantajosas especialmente para os menos favorecidos da sociedade Desse modo não é afi rmado que a dis tribuição de bens sociais deva ser igual mas que em sendo desigual benefi cie de forma especial os menos favorecidos Os dois princípios de justiça são então apresentados por Rawls desta ma neira a Cada pessoa tem um direito igual a um esquema plenamente ade quado de iguais liberdades básicas que seja compatível com um esque ma idêntico de liberdades para todos b As desigualdades sociais e económicas devem satisfazer duas condi ções por um lado têm de estar associadas a cargos e posições abertos a todos segundo as circunstâncias da igualdade equitativa de oportuni 424 ELSEVIER Curso de Ciência Política dades por outro têm de operar no sentido do maior benefício possível dos membros menos favorecidos da sociedade Rawls 2001a p 277 O sistema de Rawls confi gura uma sociedade liberal em que ele considera injusto que as pessoas menos aptas social e naturalmente não desfrutem dos mesmos bens sociais e não tenham as mesmas oportunidades de perseguir seus interesses próprios Assim Rawls admite que a desigualdade social e econô mica exista mas que em existindo benefi cie especialmente as pessoas menos favorecidas pela sorte natural e social Esse é o sentido do segundo princípio de justiça Para Rawls não é sufi ciente manter o princípio de igualdade equitativa de oportunidades pelo qual se busca garantir acesso às posições sociais seme lhantes àquelas pessoas que dispõem de dotes e habilidades semelhantes Desse modo são satisfeitas as maiores expectativas daquelas pessoas que estão em me lhor situação Mas antes afi rma Rawls é preciso garantir que os menos aptos sejam em algum grau favorecidos A justiça rawlsiana consiste nessa premissa de compensação em função mesmo da defesa do liberalismo As compensações têm o papel de manter plenamente ativas as liberdades das pessoas menos favo recidas porque as preservam as pessoas numa condição de igualdade política e social enquanto agentes plenamente capazes de buscar realizar os seus planos de vida dentro das possibilidades de que a vida dispõe com as liberdades as oportunidades e o sentimento de autorespeito 163 O liberalismo político o liberalismo político entende o facto do pluralismo razoável como um pluralismo de doutrinas abrangentes que inclui as doutrinas religiosas e não religiosas Este pluralismo não é visto como um desastre mas antes como o resultado natural das actividades da razão humana no contexto de instituições livres duradouras Rawls 2001a p 22 O liberalismo político em Rawls trata na sua própria raiz liberal de con ceber a sociedade como uma coletividade composta por visões de mundo di ferentes Estas são por sua vez relacionadas a possibilidades de realização do humano a partir de critérios religiosos fi losófi cos e morais diferentes e even tualmente divergentes O que é preciso para garantir a escolha de princípios de justiça que garantam a existência e o convívio pacífi co entre essas diferenças é exatamente a imagem do véu de ignorância Está no espírito do liberalismo aceitar as diferença e tornar o meio social uma possibilidade de coexistência partilhada entre os diferentes entre si Esse pluralismo razoável que possibilita 425 Capítulo 16 A justiça em John Rawls da relação entre os homens às Leonardo Carvalho Braga o convívio de diversas doutrinas abrangentes defendidas por seus cidadãos so mente é possível a partir da validade de uma concepção política de justiça pela qual os princípios de justiça escolhidos têm cunho político e podem ser aceitos por todos os cidadãos independentemente de suas crenças pessoais religiosas morais ou fi losófi cas 1631 A concepção e as faculdades das pessoas Compreender a concepção e as faculdades das pessoas é um passo neces sário à própria compreensão e maior esclarecimento do contrato social rawlsia no Segundo Rawls as pessoas possuem duas faculdades morais a capacidade para uma concepção de bem e a capacidade para um sentido de justiça e as faculdades da razão de juízo de pensamento e inferência A primeira das faculdades morais a capacidade para uma concepção de bem é segundo Rawls a capacidade de formar rever e racionalmente prosseguir uma concepção da vantagem ou bem racional de cada um Rawls 2001a p 46 E a ideia de concepção de bem em si é expressa por Rawls como um esquema de fi nalidades mais ou menos determinado Rawls 2001a p 46 como um conjunto de fi ns e objetivos que cada pessoa deseja atingir para a sua vida A concepção de bem envolve a visão que cada pessoa tem do mundo a partir de considerações diversas religiosas fi losófi cas ou morais que susten tam a concepção de bem que cada pessoa elabora para si mesma Esse esquema de fi nalidades incorpora relacionamentos com outras pessoas além de ligações com grupos e associações A segunda faculdade moral da pessoa como pensada por Rawls é a capa cidade para um sentido de justiça Defi nido por Rawls um sentido de justiça é a capacidade de compreender aplicar e agir de acordo com a con cepção pública da justiça que caracteriza os justos termos da coopera ção social e expressa também um desejo de agir em relação aos outros segundo termos que os outros próprios possam também subs crever publicamente Rawls 2001a p 46 Na teoria da justiça em Rawls as pessoas desenvolvem a capacidade para um sentido de justiça quando da própria elaboração dos princípios de justiça e da percepção de que todos agirão de acordo com eles É a fé pública de que os princípios serão respeitados que faz com que as pessoas desejem respeitálos Rawls considera as pessoas como seres racionais que possuem interesses próprios e razoáveis dispõemse à realização do contrato pelo sentido de jus tiça que possuem Assim elas não agem somente motivadas pelo racional nem somente pelo razoável mas de acordo com o que a racionalidade e a razoabili 426 ELSEVIER Curso de Ciência Política dade permitem Rawls considera de início as pessoas como autointeressadas que no momento da realização do contrato social procurarão elaborar princípios de justiça que favoreçam as suas posições particulares O véu de ignorância vem exatamente impedir que isso ocorra De qualquer modo as pessoas são conside radas como agentes racionais que possuem interesses próprios apesar de não possuírem interesses nos interesses das outras pessoas Para além de considerar as pessoas exclusivamente racionais Rawls as considera também razoáveis Isso signifi ca dizer que as pessoas quando perce bem a si mesmas como iguais dispõemse a propor princípios de conduta social que estabeleçam justos termos de cooperação e também se dispõem a agir de acordo com eles contanto que as outras pessoas também o façam É o razoável que permite o exercício da negociação dos termos de cooperação e que possibi lita a confi guração do equilíbrio refl exivo tratado anteriormente As pessoas ra zoáveis mais que racionais promovem o entendimento acerca dos princípios escolhidos porque se dispõem efetivamente à prática do debate e à realização do consenso Nesse sentido nas palavras de Rawls sabermos que as pessoas são razoáveis quando outras pessoas estão envolvidas implica sabermos que estão dispostas a orientar sua conduta por um princípio a partir do qual elas e os ou tros podem raciocinar em comum Rawls 2001a p 71 n1 A concepção da pessoa em Rawls se caracteriza então pela complementaridade entre o racional e o razoável tendo por base a afi rmação da reciprocidade A sociedade rawlsiana não é expressão nem da busca exclusiva do auto interesse do extremo egoísmo racional nem da não busca ou altruísmo estrito Assim segundo Rawls a sociedade é expressa pela reciprocidade a partir da observação de que todas as pessoas possuem seus objetivos próprios que dese jam realizar e todas estão dispostas a propor justos termos de cooperação que acreditam que as outras pessoas razoavelmente possam aceitar fazendo com que todas as pessoas se benefi ciem da cooperação social 1632 A relação entre doutrinas abrangentes e consenso de sobreposição Além de caracterizar a concepção de justiça como pública Rawls a ca racteriza também como concepção política A concepção de justiça rawlsiana considera o entendimento das pessoas acerca dos elementos constitucionais es senciais e das questões básicas de justiça cujos princípios e valores todos os cidadãos possam subscrever Rawls 2001a p 39 A fi m de compreender melhor a justiça rawlsiana como uma concepção política é fundamental atentarmos a um ponto A concepção política de justiça deve ser compreendida como uma perspectiva independente Isso signifi ca que 427 Capítulo 16 A justiça em John Rawls da relação entre os homens às Leonardo Carvalho Braga ela não deve ter infl uência referência ou justifi cação fundada em qualquer dou trina abrangente de base mais ampla seja fi losófi ca religiosa ou moral mas que no entanto possa ser sustentada por elas Isso é importante porque as pessoas mesmo que afi rmem doutrinas abrangentes diferentes entre si são capazes a partir de então de sustentar coletivamente uma concepção de justiça que não privilegie esta ou aquela crença abrangente Alguns críticos de Rawls argumentam que desconsiderar as concepções de bem das pessoas que são elaboradas com base nas doutrinas abrangentes fi losófi cas religiosas ou morais implica correr o risco de permitir a existência ou a defesa de uma concepção de bem que não seja a melhor para a sociedade como um todo De acordo com Mulhall e Swift1 se por um lado é importante desconsiderar as contingências naturais e sociais que marcam as pessoas e aca bam por favorecer ou prejudicar a realização de seus planos de vida pela escolha de princípios de justiça viciados por outro lado colocar sob o véu de ignorân cia também as concepções de bem que essas pessoas trazem consigo pode dar margem a que eventuais concepções de bem irrazoáveis ou inferiores ganhem representatividade no meio social Presumindose que haja concepções de bem melhores que outras seria mais sensato que cada pessoas apresentasse sua con cepção de bem e que as piores não fossem admitidas Rawls pensa de maneira diferente O que ele imagina quando coloca sob o véu de ignorância a concepção de bem das pessoas não é simplesmente permitir que esta ou aquela concepção melhor ou pior seja defendida enquanto tal mas que seja permitido preservar a capacidade de se escolher uma concepção de bem seja ela qual for A ideia de Rawls é preservar a capacidade de elaborar rever e perseguir uma concepção de bem e não a concepção em si Isso é de fundamental importância para o exercício da tolerância e da democracia traços característicos bastante relevantes na teoria rawlsiana porque é através desse exercício que se preserva a liberdade das pessoas dos cidadãos A liberdade é o valor que Rawls pretende preservar e por isso é importante permitir que cada pessoa possa escolher de forma autônoma graças a sua capacidade para uma concepção de bem a aquela que melhor congrega suas crenças seus interesses e sua visão de mundo e não que esteja presa a ela desde sua origem A compreensão da justiça rawlsiana como uma concepção política está necessariamente relacionada ao entendimento do que Rawls designou de doutri nas abrangentes e consenso de sobreposição Para desenhar um cenário de consenso acerca dos princípios de justiça Rawls atribui às pessoas a capacidade para um 1 Cf Mulhall S Swift A El individuo frente la comunidad El debate entre liberales y comunitaristas p 43 428 ELSEVIER Curso de Ciência Política sentido de justiça É essa capacidade que permite entre as pessoas defensoras de doutrinas abrangentes diversas e concorrentes o exercício democrático de convívio de diferentes concepções de vida pois é através dele que as pessoas dispõem da capacidade de compreender aplicar e agir de acordo com a con cepção pública de justiça que caracteriza os justos termos da cooperação social Rawls 2001a p 46 É a partir desse cenário em que as pessoas vêem a si mesmas como livres e iguais racionais e razoáveis e possuidoras das capacidades para uma con cepção de bem e para um sentido de justiça que a teoria rawlsiana de justiça se efetiva Pois é nesse momento que se confi gura o consenso de sobreposição Rawls concebe o consenso de sobreposição como um consenso de doutrinas abran gentes razoáveis a favor da concepção política de justiça Somente pelo esta belecimento de uma base comum é que as pessoas podem debater acerca dos princípios de justiça que desejam para a sociedade Essa base comum é a políti ca É nesse sentido que a concepção política da pessoa e mais especifi camente a capacidade para um sentido de justiça ganha maior peso na teoria rawlsiana de justiça porque é através dele que as pessoas decidem aceitar e agir de acordo com princípios que todas elas consensualmente subscrevem Assim segundo Rawls a sociedade bemordenada é aquela que tem por base uma concepção política da justiça Isto é uma concepção pela qual os cidadãos que afi rmam doutrinas abrangentes opostas promovam um consenso de sobreposição subs crevendo essa concepção política da justiça como aquela que aproxima o conteú do dos seus juízos políticos o que pensam e o que esperam sobre as instituições básicas da sociedade 164 O direito dos povos Se não for possível uma Sociedade dos Povos razoavelmente justa cujos mem bros subordinam o seu poder a objetivos razoáveis e se os seres humanos fo rem em boa parte amorais quando não incuravelmente descrentes e egoístas poderemos perguntar com Kant se vale a pena os seres humanos viverem na terra Rawls 2001b p 169 Rawls percebe a Sociedade dos Povos a partir da seleção de seus princí pios de justiça como um ambiente defi nido pela igualdade de todos os povos enquanto povos no qual todos eles estão prontos para estabelecer entre si or ganizações cooperativas Esse ambiente tem por base uma condição equitativa dos povos em relação ao comércio por eles realizado e uma disposição para 429 Capítulo 16 A justiça em John Rawls da relação entre os homens às Leonardo Carvalho Braga cumprirem dispositivos de assistência mútua dos povos bemordenados para com os povos onerados 1641 Motivação e esperança Se o objetivo na sociedade fechada era o de propor princípios de justiça que constituíssem um parâmetro para a distribuição dos bens produzidos pela cooperação social na caracterização de uma sociedade liberal agora em O direito dos povos Rawls está preocupado em conceber um cenário no qual seja possível sociedades democráticas constitucionais razoavelmente justas existirem como membros da Sociedade dos Povos Rawls 2001b p 169 considerando natu ralmente a diversidade cultural entre os povos Agora para a Sociedade dos Povos Rawls elabora a sua utopia realista e defende o argumento da paz democrática kantiana ao propor princípios de justiça que sejam validados entre os povos Seu intuito é combater a injustiça política causadora dos grandes males da história humana elencados por ele como a guerra injusta e a opressão a perseguição religiosa e a negação da liberdade de consciência a fome e a pobreza para não mencionar o genocídio e o assassinato em massa Rawls 2001b p 78 Assim a ideia de desenvolver uma utopia realista tem seu entendimento quando Rawls a partir da verifi cação da realidade social vigente tenta construir um mundo em que esses males terão desaparecido Para Rawls é de fundamen tal importância pensar que esse mundo ainda não existente pode ser um dia alcançado Começo e termino com a ideia de uma utopia realista A fi losofi a política é realisticamente utópica quando expande aquilo que geralmente se pensa como os limites da possibilidade política prática Nossa esperança para o futuro da sociedade baseiase na crença de que a natureza do mundo so cial permite a sociedades democráticas constitucionais razoavelmente jus tas existirem como membros da Sociedade dos Povos Rawls 2001b p 6 Segundo Rawls tão logo políticas sociais justas sejam implementadas es ses males hão de desaparecer porque resultarão numa distribuição de sucesso entre os povos Ele assume uma postura fi rme em defesa de sua utopia realista Não devemos permitir que esses grandes males do passado e do pre sente solapem a nossa esperança no futuro da nossa sociedade per tencente a uma Sociedade dos Povos liberais e decentes ao redor do mundo Do contrário a conduta errônea má e demoníaca dos outros também nos destrói e sela a sua vitória Antes devemos sustentar e fortalecer nossa esperança desenvolvendo uma concepção razoável e 430 ELSEVIER Curso de Ciência Política funcional de direito político e justiça que se aplique às relações entre os povos Rawls 2001b p 29 Rawls afi rma que mesmo que não nos seja possível vivenciar no presen te a Sociedade dos Povos como ele a elabora é importante acreditarmos que ela pode concretizarse no futuro A utopia realista pensada por ele tem seu signifi cado na percepção de que a partir da realidade é possível desenhar um arranjo social capaz de ser realizado Rawls acredita que os limites do possível não são dados pela realidade em que vivemos pois o que venha a existir pode ser resultado de mudanças que os homens fazem nas e das instituições políti cas e sociais Enquanto acreditarmos por boas razões que é possível uma ordem política e social razoavelmente justa e capaz de sustentar a si mes ma dentro do país e no exterior poderemos ter esperança razoável de que nós ou outros algum dia em algum lugar a conquistaremos podemos então fazer algo por essa conquista Apenas isso deixando de lado o sucesso ou o fracasso é sufi ciente para eliminar os perigos da resignação e da incredulidade Ao demonstrar como o mundo social pode concretizar as características de uma utopia realista a fi losofi a política provê um objetivo de esforço político de longo prazo e ao trabalhar rumo a ele dá signifi cado ao que podemos fazer hoje Rawls 2001b p 168 Para Rawls o exercício a que se propõe a fi losofi a política estabelece uma meta a ser alcançada a realização própria da paz democrática da Sociedade dos Povos É preciso acreditar que essa paz democrática ainda que presentemente embrionária encontrase num processo pulsante de gestação em cada Povo e fe cunda na própria capacidade de se entender ser e sentirse Povo razoavelmente justo dessa utopia realista O Direito dos Povos rawlsiano possui então um elemento fortemente normativo Para Rawls o direito internacional e as relações entre os povos são compreendidos a partir da sua realidade inegável mas levando em con ta a questão do dever ser Está presente em Rawls assim como caracterís tica da teoria normativa um exercício teleológico de justiça que o direito internacional tentará efetivar como expressão maior do bem dos povos O fim último é a própria como dito realização da paz democrática entre os povos 431 Capítulo 16 A justiça em John Rawls da relação entre os homens às Leonardo Carvalho Braga 1642 A Sociedade dos Povos um exercício de tolerância Rawls apresenta cinco tipos de povos para se pensar a possibilidade da construção de sua Sociedade dos Povos povos liberais razoáveis povos de centes Estados fora da lei sociedades sob o ônus de condições desfavoráveis e absolutismos benevolentes Rawls acredita que a Sociedade dos Povos possa ser composta por povos bemordenados que são os povos liberais razoáveis democracias constitucionais liberais e povos decentes Os povos liberais são identifi cados por Rawls a partir de três caracterís ticas A primeira delas trata da representação de um governo constitucional razoa velmente justo que de acordo com Rawls é aquele governo cujo povo de tém de modo efi caz o seu controle político e eleitoral tem os seus interesses fundamentais defendidos e está amparado por uma constituição escrita ou não escrita A segunda característica dos povos liberais trata do que Mill chamou e Rawls aqui utiliza de afi nidades comuns a que estão ligados os seus cidadãos Tais afi nidades comuns vêm a confi gurar a própria nacionalidade do povo quando expressa a partilha entre seus cidadãos por exemplo da língua da religião dos limites geo gráfi cos da história nacional e da identidade de raças A terceira ca racterística atribuída por Rawls aos povos liberais trata do seu caráter moral Aqui a conduta racional dos povos através das eleições de suas leis e de seu governo está cerceada pela razoabilidade Assim a política externa dos povos li berais pode ser entendida como expressão da racionalidade de seus respectivos governos sujeitos à sua razoabilidade É o ser racional e o ser razoável ao mes mo tempo que permitem que os povos ofereçam termos justos de cooperação a outros povos Rawls caracteriza também os povos decentes O povo decente é defi nido como aquele que possui uma hierarquia de consulta decente e é chamado por Rawls de povos hierárquicos decentes Rawls atribui aos povos decentes dois cri térios que devem ser observados para que eles façam parte da Sociedade dos Povos O primeiro critério estabelece que os povos decentes não têm objetivos agressivos e reconhecem que para alcançar os seus interesses legítimos frente aos outros povos devem valerse da diplomacia do comércio e de outros meios pacífi cos Os povos decentes acreditam no comércio como meio de satisfação de necessidades e de cooperação e aceitam a situação simétrica que desfrutam quando se confi gura a posição original entre os povos O segundo critério de acordo com Rawls é dividido em três partes A primeira delas afi rma que os povos decentes a partir da ideia de justiça que possuem voltada para o bem comum garantem aos seus cidadãos a manutenção e preservação dos direitos humanos uma vez que esta é condição essencial para 432 ELSEVIER Curso de Ciência Política aqueles povos que estabelecem entre si um sistema de cooperação política e so cial Rawls ainda afi rma que os direitos humanos não são exclusivos dos povos liberais mas que os povos decentes também são capazes em maior ou menor grau de assegurálos aos seus cidadãos Rawls explicita alguns desses direitos humanos como o direito à vida aos meios de subsistência e segurança à liberdade à liberação de escravidão servidão e ocupação forçada e a uma medida de liberdade de consciência sufi ciente para assegurar a liberdade de reli gião e pensamento à propriedade propriedade pessoal e à igualdade formal como expressa pelas regras da justiça natural isto é que casos similares devem ser tratados de maneira similar Rawls 2001b p 85 A segunda parte do segundo critério afi rma que o sistema de Direito dos povos decentes deve estabelecer deveres e obrigações morais aos seus cidadãos para o bom funcionamento da sociedade que compõem As pessoas nos povos decentes são consideradas como seres responsáveis e cooperativos dos seus res pectivos grupos devendo assim mostrar um comprometimento forte com as obrigações e deveres frente às outras pessoas da sociedade que partilham Por fi m a terceira parte do segundo critério trata de haver uma crença sincera e razoável por parte dos juízes e do sistema jurídico como um todo de que as leis efetivamente são um refl exo da ideia de justiça do bem comum no sentido de que não foram elaboradas sem a aprovação de seus cidadãos mas que traduzem sim o entendimento destes e de seus representantes acerca dos princípios de justiça como instrumentos para a realização do bem comum É importante destacar ainda um ponto mais na discussão entre os povos liberais e os povos decentes Rawls considera que esses dois povos utilizam dis tintas ideias de justiça Os povos liberais desenvolvem a ideia de justiça baseada nos mais amplos direitos individuais Os povos decentes por outro lado tratam a justiça de acordo com a ideia do bem comum que refl ete por sua vez uma ideia mínima de direitos Para Rawls um quadro de manutenção de direitos mínimos é sufi ciente para qualifi car um povo decente a fazer parte da Sociedade dos Po vos em função mesmo da tolerância de que se dispõem as sociedades liberais para com as não liberais Rawls afi rma que contanto que as instituições básicas de uma sociedade não liberal cum pram certas condições específi cas de direito política e justiça e levem seu povo a honrar um Direito razoável e justo para a Sociedade dos Povos um povo liberal deve tolerar e aceitar essa sociedade Rawls 2001b p 78 Ao tratar do papel dos povos decentes na teoria rawlsiana Cabrera afi rma que de fato estes não devem ser entendidos como regimes ditatoriais ou des 433 Capítulo 16 A justiça em John Rawls da relação entre os homens às Leonardo Carvalho Braga potismos em que os seus cidadãos não possuem voz alguma Mas ao contrário os povos decentes são expressão da escolha livre de seus cidadãos por um de terminado modo de vida que não o liberal A existência dos povos decentes na Sociedade dos Povos é explicada então pela natureza ainda que não liberal mas aceitável de modo de vida Assim nas palavras de Cabrera The inclusion of the consultation hierarchy allows Rawls to claim that a decent nonliberal people is not merely a despotism or dictatorship but is a people with a unique way of life worthy of respect and noninterference from other peoples so we must respect the modes of life freely chosen by those citizens of de cent nonliberals states even if some in the nonliberal people have provisionally surrendered some of the rights we think are their due Cabrera 2001 p 92 Ainda na caracterização dos povos como as partes que realizam o contrato social no plano internacional Rawls trata da questão da soberania Rawls enten de que os povos não dispõem da soberania tradicional como considerada para os Estados Diferentemente destes aos povos à luz dos princípios de justiça elaborados no Direito dos Povos são negados os direitos tradicionais à guerra e à autonomia interna irrestrita Afi nal a Sociedade dos Povos é composta como pensa Rawls por povos liberais e povos decentes que mantêm entre si relações de paz de acordo com o pluralismo razoável no entendimento do liberalismo político Em relação à autonomia interna dos Povos o Direito dos Povos exige fortemente o respeito aos direitos humanos dentro dos limites de cada povo e entre eles e mantém permanente vigilância sobre a sua preservação Assim rompese com a concepção tradicional de soberania pela qual o Estado detém o poder excludente coercitivo legítimo sobre seus habitantes num determinado espaço geográfi co Para Rawls mais perigoso ou imperfeito que considerar a possibilidade da existência de povos decentes na Sociedade dos povos é pensar a existência humana sujeita toda ela a um tipo único de pensar o ordenamento da vida Qual quer que seja seu fundamento mesmo ariano religioso ou liberal constituise numa expressão de totalitarismo doentio A exposição da humanidade a um único padrão de comportamento que não permita o afl oramento do pluralismo 2 Cabrera Luis Toleration and tyranny in Rawlss Law of Peoples p 9 A inclusão da hierarquia con sultiva permite a Rawls defender que um povo não liberal decente não é meramente um despotismo ou uma ditadura mas é um povo com um tipo de vida único merecedor de respeito e de não interferência de outros povos então nós devemos respeitar os modos de vida livremente escolhidos pelos cidadãos de Estados não liberais decentes mesmo que alguns povos não liberais tenham provisionalmente recua do em alguns dos direitos que nós pensamos ser dever deles garantir Tradução do A 434 ELSEVIER Curso de Ciência Política razoável confi gura um despotismo desprezível ao qual a vida humana não se pode submeter A Sociedade dos Povos ao possibilitar a convivência entre povos decentes e povos liberais ainda que na forma de uma utopia realista contribui a partir da especulação e da conjectura para a construção no futuro de um cenário rico em manifestações religiosas morais e fi losófi cas envoltas num sistema cooperativo que tem como fi m maior a concretização plena e o aperfeiçoamento contínuo da justiça política entre os povos É essencial à teoria rawlsiana de justiça entre os povos como também o é para a sociedade fechada a concepção de tolerância Rawls entende que a tole rância dos povos liberais para com os povos não liberais mas decentes é expres sa não somente pelo exercício de sanções políticas por vias militares econômicas ou diplomáticas com o objetivo de fazer com que tal povo não liberal mude o seu comportamento Porém mais do que isso Rawls acredita que a tolerância tem seu signifi cado em dois fatores O primeiro trata da própria questão do li beralismo político concebido por Rawls como dito acima O segundo fator cuida do reconhecimento dessas sociedades não liberais como membros de boa repu tação sujeitos de direitos e deveres e plenamente cooperativos com os povos liberais para a formação de esquemas maiores de cooperação entre as partes na Sociedade dos Povos Aqui Beitz nos auxilia a compreender a postura rawlsiana quanto à questão da tolerância Rawls believes that some degree of cultural diversity is inevitable and that this will be refl ected in a diversity of political forms some of which may be in compatible with liberal principles but still satisfy conditions that justify their re cognition as cooperating members of international society Beitz 2000 p 43 Assim a fonte dessa tolerância vem exatamente do liberalismo político que as sociedades democráticas liberais consideram como fundamental para o próprio exercício da liberdade individual Está presente nas bases do pensa mento liberal Não podemos esquecer que Rawls relaciona a razão de ser da Sociedade dos Povos com o fi m dos grandes males da humanidade a guerra injusta e a perseguição religiosa a opressão e a negação da liberdade de cons ciência a fome e a pobreza e o genocídio e o assassinato em massa Todos eles estão relacionados à liberdade à existência do ser como um ser livre cheia de possibilidades e realizações no que há de melhor no espírito liberal a escolha de 3 Beitz Charles Rawlss Law of Peoples p 4 Rawls acredita que algum grau de diversidade cultural é inevitável e que isso será refl etido na diversidade de formas políticas algumas das quais podem ser incompatíveis com princípios liberais mas ainda satisfazer condições que justifi cam em reconhecimento como membros cooperativos da sociedade internacional Tradução do A 435 Capítulo 16 A justiça em John Rawls da relação entre os homens às Leonardo Carvalho Braga ser o que se quer ser Mesmo que esse ambiente liberal tenha suas regras e seus preceitos Mesmo que o ser seja o ser liberal Porque é o ser liberal que permite o não ser liberal através mesmo do exercício próprio e pleno da capacidade de ser as possibilidades do ser dentro de um ordenamento político moral de justiça partilhado que respeite a manifestação das diferenças morais fi losófi cas e reli giosas em suas mais diversas representações A capacidade de nós pessoas ou povos sermos o que desejamos ser dentre as várias possibilidades da existên cia humana individual e coletiva é traço característico do pensamento liberal e deve sêlo também na sua prática Por isso a Sociedade dos Povos não é composta somente por sociedades liberais porque estão em sua gênese liberal o conceito e a necessidade de to lerância entre as partes como marca própria do liberalismo político Os povos liberais então toleram os povos decentes a partir da certeza e da constatação de que os últimos cumprirão assim como os primeiros as condições específi cas de direito e de justiça a serem escolhidas e seguidas por eles mesmos como os parâmetros reguladores da Sociedade dos Povos razoavelmente justa Assim os povos liberais e decentes estão prontos a oferecer uns aos outros e a aceitar termos justos de cooperação que sejam aprovados por todos na certeza de que todos os honrarão A ideia é de elaborar princípios de justiça que sejam razoá veis para povos liberais e para povos decentes O critério de reciprocidade está marcadamente presente na Sociedade dos Povos como está na sociedade fecha da A certeza mútua do cumprimento desses termos faz então da Sociedade dos Povos um ambiente seguro A Sociedade dos Povos calcada no mesmo ideal de pluralismo razoável só poderia ser plural assim como é resultado da convivência pacífi ca entre di ferentes visões de mundo em torno de um conjunto de princípios de justiça po lítica A tolerância para Rawls assume o importante papel de conciliar os povos liberais e os povos decentes num mesmo ambiente no qual são partilhados prin cípios de justiça a partir da prática do respeito mútuo à essas representações cul turais enquanto povos que são As democracias liberais em nome desse respeito mútuo fruto próprio do liberalismo político e da concepção liberal de sociedade devem permitir que povos decentes existam como povos que são respeitando sua cultura e suas tradições sem tentar convertêlos em democracias liberais Rawls acredita que os povos decentes podem ao longo do tempo perceber como superior a constituição das sociedades como sociedades democráticas Rawls afi rma o valor do liberalismo político através do exercício do plura lismo razoável que permite o convívio entre povos liberais e povos decentes 436 ELSEVIER Curso de Ciência Política Certamente o mundo social dos povos liberais e decentes não é um mundo que pelos princípios liberais seja plenamente justo Alguns podem sentir que permitir essa injustiça e não insistir em princípios liberais para todas as sociedades exige razões fortes Creio que há tais razões O mais importante é manter o respeito mútuo entre os povos Cair no desprezo por um lado e na amargura e no ressentimento por outro só pode causar dano Essas relações não são uma questão da estrutura básica liberal ou decente de cada povo visto em separado Antes sustentar o respeito mútuo entre os povos na Sociedade dos Po vos constitui uma parte essencial da estrutura básica e do clima político dessa sociedade Rawls 2001b p 81 Cabrera contribui aqui para o entendimento do pensamento rawlsia no ao reforçar a postura adotada por Rawls de não interferência dos povos liberais nos povos decentes em relação às diferentes visões de mundo defen didas por eles Cabrera acredita que a defesa de valores liberais para todos os povos pode sugerir como uma defesa da democracia um imperialismo ocidental que pode levantar suspeitas sobre a sua razão de ser Assim Ca brera entende que It should be acknowledge here that discussion of any attempts by one state to encourage another to recognize a larger set of civil rights is bound to raise concern about Western imperialism or renewed adventurism in the name of democracy Any attempt by a liberaldemocratic state to persuade a hierar chical state to liberalize is likely to be greeted with suspicion about motive and the means to be used Cabrera 2001 p 64 Assim para Rawls mais valioso que defender ferozmente princípios de mocráticos liberais para todos os povos é preservar a pluralidade de manifes tações culturais políticas e sociais dentro dos limites do razoável que os povos liberais e os povos decentes se propõem a cumprir O respeito ao outro calcado na tolerância daquilo que nos é diferente fornece a base de justifi cação da exis tência da Sociedade dos Povos como pensada por Rawls plural e razoável 1643 Os princípios de justiça entre os povos e seu exercício O modelo de representação da posição original para a Sociedade dos Po vos obedece à mesma orientação apresentada no caso interno em quase todos 4 Cabrera Luis Op cit p 6 Deve ser observado aqui que a discussão sobre tentativas de um Estado encorajar outro a reconhecer um conjunto mais amplo de direitos civis leva à preocupação acerca do imperialismo ocidental ou aventura renovada em nome da democracia Qualquer tentativa de um Estado liberaldemocrático de persuadir um Estado hierárquico a liberalizar é visto com suspeita sobre os motivos e os meios a serem utilizados Tradução do A 437 Capítulo 16 A justiça em John Rawls da relação entre os homens às Leonardo Carvalho Braga os seus aspectos Os povos são capazes de cooperar entre si ao estabelecerem conjuntamente os princípios de justiça para a sociedade por eles formada Além disso os povos estão também cobertos pelo véu de ignorância As sim eles não conhecem o tamanho de seu território a população ou a força rela tiva uns dos outros como também desconhecem a condição de seus recursos na turais e o nível de desenvolvimento econômico que possuem Dessa maneira os povos vêem a si mesmos como livres e iguais por gozarem de posição equitativa no momento de escolha dos princípios que nortearão a Sociedade dos Povos Rawls entende que de acordo com essa situação os povos estão simetricamente dispostos em relação uns aos outros o que garante a imparcialidade na escolha dos princípios de justiça entre eles Na sociedade fechada os cidadãos elaboram os princípios de justiça e ofe recem uns aos outros o que consideram justos termos de cooperação razoáveis para que os outros cidadãos também aceitem Na Sociedade dos Povos as partes selecionam entre diferentes formulações ou interpretações dos oito princípios do Direito dos Povos É oportuno então elencálos conforme faz Rawls em O Direito dos Povos São eles 1 Os povos são livres e independentes e a sua liberdade e independên cia devem ser respeitadas por outros povos 2 Os povos devem observar tratados e compromissos 3 Os povos são iguais e são partes em acordos que os obrigam 4 Os povos sujeitamse ao dever de não intervenção 5 Os povos têm o direito de autodefesa mas nenhum direito de instigar a guerra por outras razões que não a autodefesa 6 Os povos devem honrar os direitos humanos 7 Os povos devem observar certas restrições especifi cadas na conduta da guerra 8 Os povos têm o dever de assistir outros povos vivendo sob condições desfavoráveis que os impeçam de ter um regime político e social justo ou decente Rawls 2001b p 4748 Assim Rawls percebe a Sociedade dos Povos a partir da seleção de seus princípios de justiça como um ambiente defi nido pela igualdade de todos os po vos enquanto povos no qual todos estão prontos para estabelecer entre si orga nizações cooperativas Esse ambiente tem por base uma condição equitativa dos povos em relação ao comércio por eles realizado e uma disposição dos povos para cumprirem dispositivos de assistência mútua dos povos bemordenados para com os povos onerados 438 ELSEVIER Curso de Ciência Política Segundo Rawls o objetivo de longo prazo dos povos bemordenados é trazer para a Sociedade dos Povos essas sociedades oneradas ou povos onera dos que carecem de tradições culturais e políticas além de capital humano e material para se tornarem bemordenadas Nesse sentido Rawls entende que os povos bemordenados têm o dever de assistir os povos onerados até que estes disponham de condições sufi cientes para se tornarem membros da Sociedade dos Povos O dever de assistência identifi cado no oitavo princípio de justiça para os povos é especifi cado melhor por Rawls como dispositivos para assistên cia mútua entre os povos em tempos de fome e seca e na medida do possível dispositivos para assegurar que em todas as sociedades liberais e decentes razoáveis as necessidades básicas dos povos sejam cumpridas 165 O direito dos povos como direito internacional da teoria à prática O papel do dever de assistência é ajudar sociedades oneradas a tornaremse membros plenos da Sociedade dos Povos e capazes de determinar o caminho do futuro por si mesmas Rawls2001b p 155 O que o dever de assistência proporciona assim como o princípio da di ferença o faz para as pessoas menos favorecidas é a melhora na qualidade de vida dos povos onerados possibilitandolhes desfrutar de uma condição que lhes permita desenvolver os seus interesses agora como povos bemordenados perante outros povos de acordo com os valores de dignidade tolerância e auto respeito 1651 Diretrizes para o dever de assistência Rawls identifi ca três diretrizes que devem ser consideradas para que se efetive o dever de assistência A primeira diretriz é considerar que uma socieda de bem ordenada não precisa ser uma sociedade rica Rawls afi rma que Uma sociedade com poucos recursos naturais e pouca riqueza pode ser bem ordenada se as suas tradições políticas sua lei e sua estrutura de propriedade e classes juntamente com as crenças morais e religiosas e a cultura subjacentes são tais que sustentem uma sociedade liberal decente Rawls 2001b p 139140 Rawls afi rma ainda que o dever de assistência dos povos bemordenados para com os povos onerados não implica necessariamente um princípio de jus tiça distributiva a fi m de regulamentar as eventuais desigualdades econômicas e sociais entre os povos Rawls acredita que um princípio dessa natureza não 439 Capítulo 16 A justiça em John Rawls da relação entre os homens às Leonardo Carvalho Braga apresenta claramente um limite da ação da assistência a partir do qual tal dever possa ser suspenso Além disso entende que os níveis de riqueza e de bemestar entre os povos possam variar mas que não é o objetivo do dever de assistência ajustar esses níveis A segunda diretriz apontada por Rawls para o cumprimento do dever de assistência trata de considerar como elemento de extrema importância a cultura política de uma sociedade onerada pois é fundamentalmente nela que Rawls acredita encontrarem as causas e as formas da riqueza de um povo Desse modo considera que os povos em geral mesmo quando dotados de poucos recursos podem a partir dos parâmetros do racional e do razoável se tornar bemordena dos Rawls destaca ainda como elementos importantes para que um povo onera do se torne um povo bemordenado as virtudes políticas o funcionamento de sua estrutura básica a capacidade de inovação e de industrialização e o talento cooperativo dos seus cidadãos Assim Rawls afi rma sem negar a importância do dinheiro que mais do que oferecer apoio fi nanceiro aos povos onerados é importante cuidar das eventuais defi ciências políticas e sociais e dos desvios de conduta dos governantes que não permitem a realização plena da justiça na sociedade Isso porque em função da má administração ou por exemplo da corrupção os recursos fi nanceiros e materiais podem não ser bem utilizados e a sociedade não alcançará os níveis de bemestar desejado para um povo bem ordenado Nas palavras de Rawls O que se deve perceber é que meramente dispensar fundos não será su fi ciente para retifi car as injustiças políticas e sociais básicas embora o dinheiro muitas vezes seja essencial Mas uma ênfase sobre os direitos humanos pode ajudar regimes inefi cazes e a conduta dos governantes que forem insensíveis ao bemestar do seu próprio povo Rawls 2001 p 140141 A terceira diretriz para o cumprimento do dever de assistência está rela cionada ao alvo requerido para que a assistência não seja mais necessária De acordo com Rawls os povos onerados devem receber a assistência até o mo mento em que sejam capazes de gerir os seus próprios negócios de um modo razoável e racional Rawsl 2001b p 142143 Esse é o alvo da assistência um momento de conquista por parte dos povos onerados de autonomia própria para o exercício de suas virtudes políticas e sociais e de suas atividades econô micas sem o auxílio dos povos bem ordenados Rawls chama a atenção de que é preciso evitar o paternalismo ou seja que chegado o momento sufi cientemente adequado os povos onerados tenham garantidas a liberdade e a igualdade como um povo agora bem ordenado Rawls considera muito importante que o espaço 440 ELSEVIER Curso de Ciência Política público dos povos outrora onerados sejam respeitados enquanto confi guração e expressão da cultura local de um povo bem ordenado Acredita também que as manifestações culturais diversas desses povos apesar de diferentes são boas em si mesmas e por isso é valioso para os seus cidadãos estarem à elas vincu lados desenvolvendo laços cívicos de convivência e de partilha de uma cultura comum Nas palavras de Rawls certamente é um bem para os indivíduos e associações estarem vin culados à sua cultura particular e participarem da sua vida pública e cívica comum Dessa maneira pertencer a uma sociedade política par ticular e sentirse à vontade no seu mundo cívico e social ganham ex pressão e plenitude Isso não é pouca coisa É um argumento a favor da preservação de espaço signifi cativo para a ideia de autodeterminação de um povo Buscamos um mundo em que desapareçam os ódios étnicos que levam a guerras nacionalistas Um patriotismo adequado é apego ao nosso povo e ao nosso país disposição para defender suas reivindicações legítimas e ao mesmo tempo respeitar as reivindicações de outros povos Rawls 2001b p 146147 Na Sociedade dos Povos os povos também são considerados livres e iguais entre si como povos que são como representantes de coletividades e portanto como fontes legítimas de reivindicações como as pessoas são na socie dade fechada Os povos tomam parte no contrato social internacional da mesma maneira que as pessoas o fazem no caso interno Todos os povos têm os mesmos direitos inclusive o direito de ser assistido enquanto for um povo onerado a fi m de que possa num futuro próximo fazer parte da Sociedade dos Povos Assim da mesma maneira que as pessoas menos favorecidas são bene fi ciadas pelo princípio da diferença os povos onerados são benefi ciados pelo dever de assistência que os povos bem ordenados têm para com eles O raciocí nio no dois casos é o mesmo Rawls defende uma situação inicial de igualdade para as pessoas entre si e para os povos entre si e provê condições que pos sibilitem que essa igualdade se perpetue a partir da reparação de defi ciências congênitas e sociais A posição original é utilizada também no segundo caso na Sociedade dos Povos para tratar os povos como iguais sem distinções arbitrárias que viciem a escolha dos princípios de justiça Assim o dever de assistência e o princípio de diferença têm o mesmo papel Rawls imagina uma sociedade fechada e dos Povos como aquela em que os que dela fazem parte indivíduos e povos res pectivamente possam a partir de uma situação equitativa buscar a realização dos seus planos de vida dentro dos limites do racional e do razoável Rawls 441 Capítulo 16 A justiça em John Rawls da relação entre os homens às Leonardo Carvalho Braga imagina uma sociedade que evite e minimize as arbitrariedades e contingências da vida humana e social e não que as perpetue É preciso garantir com convicção e determinação mas sem paternalismos exagerados que as pessoas e os povos disponham de condições sufi cientemente necessárias que os capacitem a reali zar os seus objetivos de vida 1652 O debate entre cosmopolitismo e comunitarismo O exercício do dever de assistência voltado para sanar defi ciências in ternas de outros povos pode pressupor eventualmente a ruptura de alguns padrões tradicionais de confi guração das relações internacionais especialmente o da soberania Afi nal apontar um povo como onerado e dizer que ele precisa de assistência parece sugerir a violação desse padrão tão caro aos povos a não ser que o governante em determinado caso solicite essa assistência O debate sobre a então validade do dever de assistência põe de um lado aqueles que acreditam ser bom e necessário intervir em assuntos internos e do outro aqueles que se opõe a tal prática interventora O que está na base dessa dis sensão é a relação entre validar atos intervencionistas em povos supostamente onerados em defesa de princípios de justiça gerais e o respeito a princípios de justiça criados numa particularidade historicamente determinada A tentativa de preservar o exercício de direitos gerais que deveriam ser protegidos por to dos os povos internamente pode ser encarado como um desrespeito a um con junto de direitos específi cos criados por uma coletividade A linha entre garantia e desrespeito a direitos é muito tênue em função mesmo da compreensão e do acordo que podemos desenvolver sobre quais direitos devem ser preservados e que atos internos signifi cam a violação destesO debate entre comunitaristas e cosmopolitas tenta dar conta desse dilema Segundo Morrice é possível identifi car três pontos principais sobre o de bate entre liberais e comunitaristas Morrice 2000 p 235238 O primeiro ponto trata do indivíduo Os liberais em geral assumem que o indivíduo possui uma identidade ou valor anterior e independente da sociedade como se o indivíduo possuísse uma essência anterior à formação da sociedade Os comunitaristas acreditam por outro lado que o indivíduo é constituído pela comunidade na qual vive e que os valores que o infl uenciam e guiam sua vida são dados pela sociedade O segundo ponto referese à comunidade Os liberais tendem a valo rizar o individualismo contra o coletivismo autointeresse contra bem comum e mercado livre contra regulação estatal Os comunitaristas argumentam que esse individualismo e autointeresse são destrutivos da vida social da comunidade da coesão social e da solidariedade Além disso consideram que há um bem 442 ELSEVIER Curso de Ciência Política comum e um interesse da comunidade que são maiores que o bem ou interesse individual O terceiro ponto cuida da justifi cação dos princípios políticos Os liberais buscam uma base neutra para princípios de justiça política que sejam universais Para os comunitaristas o papel da fi losofi a política não é o de estabelecer a exis tência neutra de princípios universais mas explicitar os valores e signifi cados partilhados da comunidade A justifi cação de princípios políticos não se pode dar de acordo com a posição comunitarista pela neutralidade da comunidade política mas sim no reconhecimento de que existem visões de mundo diversas Assim de um modo geral o liberalismo procura defender a dignidade e a inte gridade do indivíduo e procura também promover a base imparcial ou objetiva para a formulação e a aplicação universal dos princípios de justiça O comuni tarismo por outro lado afi rma que os indivíduos não podem viver e que não vivem efetivamente suas vidas inteiras fora de suas comunidades e destacam as consequências antisociais do individualismo liberal Além disso o comunitaris mo a partir da noção de relativismo moral também questiona a posição liberal de neutralidade estatal para a formulação e justifi cação dos princípios de justiça Quando esse debate é colocado no campo das relações internacionais po demos considerar novamente os três pontos destacados acima Assim os cos mopolitas consideram o indivíduo como humano e não somente como cidadão e a comunidade global como de todos os humanos e não composta somente de várias comunidades políticas particulares neste caso os Estados nacionais pri vilegiadamente pois o que está em jogo é a validade de princípios universais que não sejam restritos a este ou àquele cidadão ou a esta ou àquela comunidade política mas que sejam aplicados a toda a espécie humana Os cosmopolitas acreditam que antes de fazerem parte de uma comunidade política específi ca os indivíduos possuem características comuns que os identifi cam como seres humanos E assim sendo a caracterização dos indivíduos como seres humanos é mais importante que sua constituição como cidadãos Para os cosmopolitas a noção de comunidade ameaça liberdades e direitos individuais além de sugerir que a divisão do mundo entre nós e eles negligencia a importância da vali dade e da aplicação de princípios de justiça universais A tendência e talvez a falha do cosmopolitismo é defender o liberalismo como ponto de vista válido universalmente o que sugere invalidar todos os outros pontos de vista que pos sam existir dentro dos limites do razoável Diferentemente dos cosmopolitas os comunitaristas rejeitam a caracteri zação dos indivíduos como seres humanos existentes a priori de suas respectivas comunidades políticas por acreditarem constituir isso risco de um imperialismo 443 Capítulo 16 A justiça em John Rawls da relação entre os homens às Leonardo Carvalho Braga cultural que crie preceitos e valores universais para todos os indivíduos indepen dentemente de suas crenças e culturas particulares Por isso os comunitaristas defendem a ideia de relativismo moral É essa ideia que garante a preservação das comunidades políticas enquanto tais ou seja enquanto locus privilegiador de culturas distintas O comunitarismo defende conceitos e valores como existências sociais e culturais distintas e que somente é possível pensar a justiça dentro de um contex to históricosocial particular A diversidade cultural é a defesa contra a opressão resultante da homogeneização liberal do cosmopolitismo Já não se elaboram uma idealização e uma abstração do agente humano ao contrário tratase do outro concreto no sentido em que o outro é resultado de história práticas costu mes e padrões diferentes do eu E isso exige que mais que uma universalização de direitos e deveres haja respeito à preservação do particular do local do ex clusivo do diferente Para o comunitarismo a imposição de padrões universais constitui uma injustiça e uma violação à integridade dos grupos diversos Nesse debate o liberalismo político rawlsiano acredita que é possível a convivência de povos que defendem doutrinas abrangentes diferentes e que a tolerância válida entre pessoas na sociedade fechada é característica do libera lismo político também entre os povos A maneira mais adequada de simples mente não homogeneizar globalmente as pessoas e pretender que elas defen dam um ponto de vista universal calcado na democracia liberal é considerar os povos como sujeitos do Direito Internacional com as suas diferentes e razoáveis visões de mundo num exercício que a tolerância permite realizar 1653 O direito dos povos da teoria à prática A partir de agora utilizarnosemos mais repetidamente das palavras de Rawls para tratar sumariamente de uma questão polêmica que é desenvolvida desde os escritos kantianos e que permanece nos dias de hoje o intervencionis mo Rawls parece assumir uma postura paradoxal Ao mesmo tempo que de fende o modelo democráticoliberal como referência maior de organização so ciopolítica com toda a defesa de direitos humanos mais amplos possíveis que isso sugere compreende que a realidade das relações internacionais não pode abarcar somente essa experiência liberal mas que encerra também outras que devem apesar de não liberais ser respeitadas Mas ao que se deve esse res peito às outras sociedades que não as liberais Ralws afi rma que a garantia do exercício de alguns direitos humanos pode ser motivo sufi ciente para que as so ciedades liberais respeitem as não liberais e que assim essas sociedades podem 444 ELSEVIER Curso de Ciência Política ser entendidas como bemordenadas e compondo a Sociedade dos Povos Bem ao tratar da realização da paz democrática Rawls afi rma que ela está sujeita a cinco condições que devem ser cumpridas pelos povos São elas 1 certa igualdade imparcial de oportunidade especialmente na educa ção a fi m de que todas as partes de sua sociedade possam participar dos debates da razão pública e possam também contribuir para as políticas sociais e econômicas 2 uma distribuição decente de renda e riqueza para que sejam garan tidos a todos os cidadãos os meios necessários para que façam uso inteligente e efi caz das suas liberdades básicas 3 ter a sociedade como empregador em última instância por meio do governo pois assim há um quadro de percepção de segurança e de oportunidade de trabalhos e cargos signifi cativos que mantém a sen sação de autorespeito entre cidadãos 4 assistência médica básica assegurada para todos os cidadãos 5 fi nanciamento público das eleições e disponibilização da informação pública sobre questões políticas Rawls 2001b p 6465 De acordo com Rawls à medida que cada povo liberal satisfaz essas con dições fi ca menos inclinado a guerrear com Estados fora da lei não liberais As sim as possibilidades de guerra restringemse a casos de legítima defesa ou pro teção dos direitos humanos Mas não podemos nos esquecer do rol apresentado em Uma Teoria da Jus tiça acerca dos direitos humanos que os homens numa sociedade liberal defen deriam a partir da noção de bens sociais primários Estes bens são defi nidos por Rawls como coisas que se supõe que um homem racional deseja não importa mais o que ele deseje Rawls 2000 p 27 Rawls considera que as pessoas pre fi ram ter uma quantidade maior a uma menor desses bens independentemente dos seus planos de vida Por isso mesmo são chamados bens sociais primários Segundo Rawls é a partir da posse desses bens que as pessoas acreditam poder alcançar seus planos de vida com maior sucesso Rawls caracteriza esses bens amplamente como direitos liberdades e oportunidades assim como renda e ri queza Rawls 2000 p 98 Além disso procura defi nilos mais especifi camente em cinco grupos a direitos e liberdades básicos que são igualmente dados por uma lis ta b liberdade de circulação e livre escolha da ocupação face a um quadro de oportunidades plurais 445 Capítulo 16 A justiça em John Rawls da relação entre os homens às Leonardo Carvalho Braga c poderes e prerrogativas de cargos e posições de responsabilidade nas instituições políticas e económicas da estrutura básica d rendimento e riqueza e por fi m e as bases sociais do respeito próprio ou autorespeito Rawls 2001a p 181182 Os direitos e liberdades básicos a que se refere Rawls no item a da lis ta acima são apresentados posteriormente do seguinte modo liberdade de pensamento e liberdade de consciência as liberdades políticas e a liberdade de associação bem como as liberdades especifi cadas pela liberdade e integridade da pessoa e fi nalmente os direitos e liberdades cobertos pelo princípio do do mínio da lei Rawls 2001a p 278 Os direitos logo acima elencados parecem compor os itens 1 e 2 daqueles que os povos liberais devem cumprir a fi m de alcançarem a paz democrática Aqui devemos entender que a paz democrática não implica que todos os povos sejam democráticos já vimos como isso é trabalhado por Rawls O sinônimo de democracia entre os povos se dá pela compreensão da existência do outro que me é diferente e do convívio tolerante que os diferentes estabelecem entre si Em relação aos povos não liberais mas decentes Rawls afi rma que eles devem honrar as leis da paz seu sistema de Direito deve ser tal que res peite os direitos humanos e imponha deveres e obrigações a todas as pessoas no seu território Seu sistema de Direito deve seguir uma ideia de justiça do bem comum que leve em conta o que vê como interesses fundamentais de todos na sociedade E fi nalmente deve haver uma crença sincera e não irrazoável da parte de juízes e outros funcioná rios de que a lei é realmente guiada por uma ideia de justiça do bem comum Rawls 2001b p 88 Se Rawls considera que a Sociedade dos Povos é composta por povos li berais e não liberais mas decentes a razão de ser do Direito dos Povos além de preservar estes povos como são parece então estar relacionada aos chamados por Rawls de povos onerados Estados fora da lei e absolutismos benevolentes Es ses são os povos respectivamente que não são expansionistas mas carecem de tradições políticas e culturais de capital humano e conhecimento técnico e muitas vezes dos recursos materiais e tecnológicos necessários para que sejam bem ordenadosRawls 2001b p 139 são expansionistas na perspectiva clás sica do Estado como ator egoístaracional e honram a maior parte dos direitos humanos mas negam aos seus membros um papel signifi cativo nas decisões políticas Rawls 2001b p 83 446 ELSEVIER Curso de Ciência Política Esses devem ser os povos causadores dos grandes males da humanidade como afi rma Rawls a guerra injusta e a opressão a perseguição religiosa e a negação da liberdade de consciência a fome e a pobreza para não mencionar o genocídio e o assassinato em massa Rawls 2001b p 7 Vamos lembrar o 8º princípio de justiça entre os povos pensado por Rawls o dever de assistência os povos têm o dever de assistir outros povos vivendo sob condições desfa voráveis que os impeçam de ter um regime político e social justo ou decente Rawsl 2001b p 48 Aqui a questão sobre o intervencionismo ganha cor Rawls afi rma ainda que O objetivo a longo prazo das sociedades relativamente bemordena das deve ser o de trazer as sociedades oneradas tal como os Estados fora da lei para a sociedade dos povos bem ordenados Os povos bem ordenados têm um dever de assistir as sociedades oneradas Rawls 2001b p 139 Rawls ainda trata da relação do 8º princípio dever de assistência com o 1º liberdade e independência e o 4º não intervenção de modo a privilegiar o dever de assistência Um princípio como o quarto o da não intervenção obviamente terá de ser qualifi cado no caso geral de Estados fora da lei e de violações graves dos direitos humanos Embora adequado a uma sociedade de povos bemordenados fracassa no caso de uma sociedade de povos de sordenados na qual as guerras e violações sérias dos direitos humanos são endêmicas Rawls 2001b p 48 E continua O direito à independência e igualmente o direito à autodeterminação são válidos apenas dentro de certos limites Assim nenhum povo tem o direito de autodeterminação ou um direito de secessão à custa de subjugar outro povo Tampouco pode um povo protestar contra a sua condenação pela sociedade mundial quando as suas instituições internas violam os direitos humanos ou limitam os direitos das minorias de viver entre ele O direito de um povo à independência e à autodeterminação não é escudo contra a condenação ou mesmo contra a intervenção coerci tiva de outros povos em casos graves Rawls 2001b p 4849 Visualizamos essa discussão muito claramente hoje A questão acerca da intervenção ou da não intervenção chega mesmo a causar debates calorosos e posições antagônicas fervorosas A polêmica levantada sobre o intervencionis mo faz referência às razões aos meios e aos fi ns da intervenção Aternosemos brevemente aos fi ns A crítica feita é a de que há uma tentativa de ocidentaliza 447 Capítulo 16 A justiça em John Rawls da relação entre os homens às Leonardo Carvalho Braga ção do mundo e de democratização das outras sociedades Essa crítica parece fazer sentido quando levamos em conta os desígnios cosmopolitas de libertação e liberalização das sociedades no mundo como apresentados anteriormente A paz democrática para os cosmopolitas inspira de fato a necessidade de que a democracia seja o modelo político a ser adotado para que ela efetivamente seja perpétua Tudo isso em função da abstração pela qual o homem é considerado Não existem homens concretos no plural para o cosmopolitismo mas apenas o homem como única representação da espécie humana Os comunitaristas ca minham em direção contrária Para eles o homem é uma experiência concreta factual e histórica Abstrair a existência humana para tentar pensar numa essên cia humana constitui um erro e um perigo de universalização incompatível com as diferentes representações sociais do humano ou dos homens Em Rawls há outra percepção Nem cosmopolista nem comunitarista Talvez um pouco dos dois E talvez aí esteja a grande riqueza da contribuição de Rawls para a compreensão de um direito internacional O liberalismo político rawlsiano se opõe à ocidentalização e à democratização do mundo para garantir a paz entre os povos Ao contrário está no espírito liberal aceitar diferenças culturais religiosas fi losófi cas morais etc que são resultado de um processo histórico particular de construção social Essas diferenças devem ser respeita das Claro que há condicionantes Para Rawls o respeito às diferenças entre os povos está ligado ao respeito aos direitos humanos mínimos dentro dos povos É preciso garantir um nível de liberdade e de representação política que permita aos indivíduos que compõem os povos um patamar mínimo de seu exercício em povos liberais e não liberais mas decentes povos hierárquicos Por isso o Direito dos Povos não é etnocêntrico ou ocidental especialmen te porque o critério de reciprocidade entre os povos é satisfeito povos liberais e não liberais são capazes de cumprir internamente e uns em relação aos outros critérios de conduta que os princípios de justiça entre eles estabelecem Assim é mantido o respeito mútuo entre os povos e não se confi guram o desprezo a amargura e o ressentimento entre eles nem a dominação porque enquanto povos são iguais É assim realizado o Direito dos Povos ou pelo menos esse é o exercício que devemos tentar fazer o respeito às diferenças e o contrato às necessidades e padrões mínimos de conduta individual e coletiva 166 Conclusão O caminho que percorremos até aqui foi o de apresentar os principais as pectos da formulação do pensamento de John Rawls sobre a justiça entre os homens e entre os povos Foinos possível observar algumas semelhanças no 448 ELSEVIER Curso de Ciência Política contratualismo ralwsiano nessas duas esferas da ação humana Talvez a mais signifi cativa delas seja a defesa do liberalismo político Para Rawls um liberal não há valor maior a ser defendido que a liberdade humana e é essa liberdade que permite que homens e povos escolham num determinado momento da his tória quais serão os critérios de justiça que nortearão as suas vidas A defesa do liberalismo político é de fundamental importância para que sejam escolhidos princípios de justiça que possibilitem a realização razoável dos planos de vidas que os homens desejam para si enquanto indivíduos e en quanto componentes de uma coletividade É a liberdade que garante a possibi lidade dessa realização Na difi culdade ou na dúvida de que essa realização possa ser alcançada o Estado tem de proteger os menos afortunados natural e socialmente preservan doos da má sorte na distribuição de renda e riqueza e de participação político social O princípio da diferença tenta dar conta disso ao propor algum sistema de compensação ou proteção social aos menos favorecidos Da mesma forma o dever de assistência nas relações internacionais tenta prover aos povos onera dos a possibilidade de a partir do respeito aos direitos humanos oferecer uma vida em que a liberdade e a participação dos indivíduos sejam minimamente garantidas Fica muito claro então o papel intervencionista da justiça e do direito rawlsianos tendo por base o liberalismo político para evitar que visões de mun do diferentes sejam castradas e para que não corramos o perigo de fazer da intervenção um exercício etnocêntrico ou ocidental a garantia de bemestar e da possibilidade de realização dos planos de vida a partir de um mínimo comum partilhado entre os homens e entre os povos 167 Perguntas para reflexão 1 Qual é a proposta da justiça rawlsiana 2 Qual a importância do véu de ignorância na teoria de Rawls 3 Qual a relação entre doutrinas abrangentes e consenso de sobreposição e qual sua importância no pensamento rawlsiano de justiça 4 Quais as principais considerações do comunitarismo 5 Quais as principais considerações do cosmopolitismo 6 De que maneira o liberalismo político de Rawls se insere neste debate comunitarismo x cosmopolitismo 449 Capítulo 16 A justiça em John Rawls da relação entre os homens às Leonardo Carvalho Braga 7 Qual é a proposta do Direito dos Povos 8 O que faz com que os povos não liberais mas decentes possam compor a Sociedade dos Povos 9 De que modo podemos relacionar o princípio da diferença com o dever de assistência 10 Como relacionamos o Direito dos Povos com o intervencionismo Bibliografia BEITZ Charles International Ethics Nova Jersey Princeton University Press 1985 Political Theory and International Relation Princeton Nova Jersey Princeton University Press 1979 International Liberalism and Distributive Justice World Politics v 51 n 2 1999 Social and cosmopolitan liberalism International Affairs 75 3 1999 Rawlss Law of Peoples Ethics 110 4 2000 BROWN Chris John Rawls The Law of Peoples and International Poli tical Theory Ethics and International Affairs v 14 2000 The construction of a realistic utopia John Rawls and internatio nal political theory Review of International Studies 28 2002 CABRERA Luis Toleration and tyranny in Rawlss Law of Peoples Polity winter 2001 CITTADINO Gisele Pluralismo direito e justiça distributiva Elementos da fi lo sofi a constitucional contemporânea Rio de Janeiro Lumen Juris 2000 KUKATHAS Chandran PETTIT Philip Rawls Uma Teoria da Justiça e os seus Críticos Trad Maria Carvalho Lisboa Gradiva 1995 MOELLENDORF Darrel Cosmopolitan justice Colorado Westview Press 2002 MORRICE David The liberalcommunitarian debate in contemporary po litical philosophy and its signifi cance for international relations Review of International Studies v 26 2000 MULHALLS S SWIFT A El individuo frente la comunidad El debate entre liberales y comunitaristas Madri Temas de Hoy 1996 RAWLS John Uma Teoria da Justiça Trad Almiro Pisetta Lenita Esteves São Paulo Martins Fontes 2000 450 ELSEVIER Curso de Ciência Política Justicia como equidad Materiales para una teoria de la justicia 2 ed Trad Miguel Angel Rodilla Madri TECNOS SA 1999 O Liberalismo Político Trad João Sedas Nunes Lisboa Presença 2001a O Direito dos Povos Trad Luís Carlos Borges São Paulo Martins Fontes 2001b VITA Alvaro de Uma concepção liberaligualitária de justiça distributiva DADOS v 14 n 39 1999 Justiça Distributiva A Crítica de Sen a Rawls DADOS v 42 nº 1999 Justiça Liberal Argumentos liberais contra o neoliberalismo Rio de Ja neiro Paz e Terra 1993 A justiça igualitária e seus críticos São Paulo UNESP 2000 Capítulo 17 Estado mínimo contra a fase histórica camaleônica do Estado capitalista um estudo da teoria neoliberal de Robert Nozick Wallace dos Santos de Moraes1 171 Vida e obra Robert Nozick nasceu em Nova York em 1938 no seio de uma família de russos emigrados e faleceu em janeiro de 2002 em Harvard Graduouse em Filosofi a na Universidade de Columbia onde participou como ativo militante de um pequeno partido político socialista Na sua pósgraduação em Princeton teve contato com as ideias neoliberais infl ectindo sua posição política de mi Professor adjunto da Universidade Federal Fluminense Pesquisador senior do NEICIUPERJ e do INCTPPED Doutor e mestre em Ciência Política IUPERJ Bacharel e licenciado em História UFRJ Pósgraduado em História contemporânea UFF Contato moraeswsyahoocombr 452 ELSEVIER Curso de Ciência Política litante socialista passou a defensor ardoroso do neoliberalismo Sem embargo foi em Harvard como professor que se tornou um ícone deste pensamento no mundo político com a obra Anarquia Estado e Utopia 1974 objeto de pesquisa neste ensaio Nozick foi autor de dentre outras obras Philosophical explanations Explicações fi losófi cas 1982 e Socratic puzzles Quebracabeças socráticos 1997 mas nenhuma teve o impacto e a importância política daquela de modo que procuraremos descrever aqui as principais teses hipóteses e metodologias de senvolvidas ao longo daquele livro Antes é mister frisar que normalmente os intelectuais inseremse em uma determinada escola de pensamento quando não inauguram uma Nozick segue a matriz da escola conhecida como neoliberal mais precisamente da liber tariana uma de suas correntes centrais1 Cabe destacar que o autor pertence a uma tradição inaugurada por John Locke na segunda metade do século XVII na Inglaterra defensora das formas mais variadas do capitalismo da qual fi zeram parte vários intelectuais como Adam Smith John Stuart Mill David Ricardo Paul A Samuelson Milton Friedman Friedrich Hayek pensadores dos séculos XVIII XIX e XX Todavia tratase de um intelectual que não se limita a repro duzir o que outros disseram Com independência inserese no campo como um publicista importante da corrente que defende pois se caracterizou por criar ideias originais que subsidiaram o fortalecimento da escola citada O livro em tela foi publicado em 1974 no início da crise do chamado Estado de BemEstar no Primeiro Mundo Entender o momento histórico de sua publica ção é de fundamental importância pois podemos perceber se a obra segue uma tendência ou se cria um novo patamar de discussão Decerto o legado de Nozick é importante para ratifi car uma tendência que começara em meados da década de 1940 com os escritos de Hayek2 ao mesmo tempo sua publicação crítica ao Es tado intervencionista valorizase sobremaneira tendo em vista o início da crise do capitalismo e desse modelo de Estado início da década de 1970 Mas qual a principal tese do autor Tratase da defesa incondicional de que 1 O libertarianismo formado por um conjunto pequeno de doutrinadores mas com um poder de lobby considerável e ideias variadas caracterizase por defender a primazia do livre mercado como uma instância justa de um individualismo ególatra um exorbitante enaltecimento da propriedade privada ilimitada e um repúdio a toda forma de coletivismo Morresi p 2002 Podemos classifi car o libertaria nismo portanto como uma corrente central do neoliberalismo 2 F Hayek foi o principal teórico crítico do Welfare State criador e divulgador do chamado neolibe ralismo A primeira obra nesse sentido foi escrita em 1944 O caminho da servidão Tratase de crítica contundente aos regimes do Leste Europeu à época e à nova face do Estado capitalista de orientação socialdemocrata 453 Capítulo 17 Estado mínimo contra a fase histórica camaleônica do Estado capitalista Wallace dos Santos de Moraes Um Estado mínimo limitado às funções restritas de proteção contra a força o roubo a fraude de fi scalização do cumprimento de contra tos e assim por diante justifi case que o Estado mais amplo violará os direitos das pessoas de não serem forçadas a fazer certas coisas e que não se justifi ca e que o Estado mínimo é tanto inspirador quanto certo Duas implicações dignas de nota são que o Estado não pode usar sua máquina coercitiva para obrigar certos cidadãos a ajudarem a outros e que não pode proibir atividades a pessoas que desejam realizálas para seu próprio bem ou proteção Nozick 1991 1974 p 9 Pois bem se a principal proposta do autor é a defesa do Estado mínimo então para não fi carmos reféns dos seus argumentos é preciso historiar alguns modelos de organização estatal estudar seus meandros a fi m de poder identi fi car claramente contra o que escreve Nozick Depois discutiremos os principais postulados do autor que virão acompanhados de suas metodologias hipóteses e teses 172 Contextualização da obra Os escritos de Nozick atentam diretamente contra dois modelos de Esta do o Estado de orientação socialdemocrata e o de tipo socialista A argumenta ção para tal amparase na defesa exacerbada do individualismo que para efeito deste aspecto signifi ca que os homens não devem ser obrigados a preocuparse com os outros e da liberdade de não ter de cooperar com o bemestar de outrem por meio do pagamento de impostos ou com quaisquer outros esforços No fun do são pressupostos diferentes que chegam aos mesmos objetivos o Estado mí nimo sem intervenção no mercado e sem garantir a priori direitos ou quaisquer benesses para todos na sociedade em particular aos despossuídos dos meios de produção Para melhor entender os escritos libertarianos de Nozick faremos um breve histórico privilegiando as principais diferentes funções do Estado feudal absolutista e do Estado capitalista de orientação liberal socialdemocrata e ne oliberal vividas por boa parte da humanidade ao longo dos últimos séculos Advertese que o conceito de tipo de Estado aqui utilizado se fi lia a uma con cepção mais geral de relação entre estrutura econômica relações de produção mais forças produtivas e estrutura jurídicopolítica Estado Isto é cada tipo de Estado capitalista feudal escravista é resultado portanto de uma estrutura jurídicopolítica histórica particular cuja função é reproduzir de um modo tam bém particular determinadas relações de produção 454 ELSEVIER Curso de Ciência Política Cumpre ainda afi rmar que o Estado capitalista se diferencia dos demais por apresentarse como defendente do interesse geral da sociedade em função da apa rente universalidade de suas instituições Os Estados précapitalistas como o ab solutista afi rmam abertamente o caráter particularista de suas instituições isto é no caso em questão o papel desse Estado era guarnecer os interesses dos grandes proprietários de terras Esse modelo de Estado vigorou nos princípios da Época Moderna em boa parte da Europa Ocidental Como regra o Estado absolutista só admite que as classes dominantes ocupem as funções de comando do Estado3 Um dos aspectos mais importantes deste Estado é sua política econômica o mercantilismo Privilegiando apenas o aspecto do desenvolvimento comercial percebese que o comércio tinha barreiras jurídicas e ideológicas como existência de alfândegas dentro das próprias fronteiras dos países lei que condenava a usura e estigmatização das atividades mercantis Esses aspectos impediam o pleno desen volvimento das relações comerciais e o rápido enriquecimento dos proprietários É contra esse Estado que os portadores de princípios liberais se levan taram vitoriosamente Por consequência o Estado de tipo capitalista formado após as revoluções burguesas dos séculos XVII XVIII e XIX caracterizase pela defesa do livrecomércio da universalidade de suas instituições franqueadas a todos os cidadãos e como suposto representante do interesse geral O grande diferencial deste modelo de Estado para os de tipo précapitalistas é a igualdade jurídica entre os cidadãos todos são iguais perante a lei mesmo em meio a grandes desigualdades econômicas e sociais isto é juridicamente os desiguais econômica e socialmente são considerados como se fossem iguais Como consequência do anteriormente exposto e para o melhor entendi mento das teses de Nozick a existência do Estado capitalista foi dividida em três fases liberal socialdemocrata e neoliberal4 Comecemos com a descrição da ideologia política a qual Nozick se fi lia o liberalismo No interior dessa dis cussão virão as características do Estado capitalista na sua fase liberal O liberalismo normalmente é dividido em três classifi cações gerais eco nômica política e cultural Aqui incluo uma espécie de irmão siamês do libera lismo que é o positivismo jurídico5 Vejamos 3 Na sociedade feudal dividida em ordens homens livres e servos e estamentos nobreza clero e plebe não existia a fi gura do indivíduocidadão 4 Cumpre destacar que o modelo de Estado nos diversos países nunca será idêntico a outro portanto procurarei aqui destacar as características gerais do capitalismo e de seus respectivos Estados ao longo dos séculos XIX XX e XXI até porque no escopo deste trabalho seria impossível analisar caso a caso 5 O liberalismo confi gura junto com o positivismo e em certa medida com o nacionalismo institutos centrais que sustentam as sociedades capitalistas desde o século XIX 455 Capítulo 17 Estado mínimo contra a fase histórica camaleônica do Estado capitalista Wallace dos Santos de Moraes O liberalismo econômico constituise no núcleo duro deste pensamento que segundo grande parte da literatura especializada tem suas raízes nos es critos do escocês Adam Smith no século XVIII6 não obstante os escritos de John Locke no século XVII já tivessem a defesa de uma nova caracterização da prin cipal instituição sustentadora desta ideologia a saber a apologia da inviolabi lidade da propriedade privada como prioridade máxima de todo governo Em outros termos esse autor defendera que nenhum governo poderia atentar con tra os direitos de propriedade privada por ser um direito natural que inclusive tem primazia sobre a liberdade e a vida Moraes p 2003 A doutrina liberal dos séculos XVII e XVIII surgiu desafi ando as restrições feudais à propriedade privada ao comércio à produção e à livretroca de trabalho por salários Nesse sentido a classe social benefi ciária deste pensamento é a burguesia dona dos meios de produção fábricas e indústrias bancos e grandes extensões de terras normalmente voltada para o comércio de mercadorias na busca incessante por lucros Por outro lado os não proprietários ao serem expulsos dos campos comuns e dos domínios feudais passaram a ser donos de uma única coisa sua força de trabalho restandolhes vendêla a um proprietário sob pena de perecerem Nesse sentido sua liberdade que era bastante restrita no feuda lismo pois o servo por exemplo tinha restrições para locomoverse de um lugar a outro no capitalismo este trabalhador muda de situação jurídica e passa a ser livre como os pássaros para vender sua força de trabalho to davia indubitavelmente não conseguirá locomoverse sem dinheiro Assim sua liberdade continua restrita sob outros termos na medida em que não pode viver autonomamente sem que seja produzindo riquezas ou subordi nandose ao vender sua força de trabalho para um proprietário em troca de um salário que lhe permita viver7 O liberalismo político teve suas raízes na luta contra o poder absoluto da monarquia na Inglaterra no século XVII Sua luta foi por distribuir o poder entre os grandes proprietários de terra únicos que podiam ocupar as cadeiras do Parlamento inglês Cabe lembrar que no século XIX liberalismo e democra cia estavam em campos opostos Os liberais eram contra a participação popu lar nas decisões políticas negando aos não proprietários por exemplo o voto 6 Mais precisamente em 1776 com a publicação de A riqueza das nações 7 A melhor descrição deste processo é feita por K Marx 1983 1867 pois rica em detalhes Ver tam bém Polanyi 2000 e Moraes 2007 456 ELSEVIER Curso de Ciência Política bem como a própria ocupação de cargos chaves do Estado8 Sua argumentação pautavase no medo de uma ditadura da maioria que poderia por conseguinte afetar os lucros e o desenvolvimento do capitalismo No aspecto cultural o liberalismo tem seus princípios relacionados com a liberdade de opção sexual e de usos e costumes opondose fortemente ao con servadorismo No plano jurídico o liberalismo caminhou pari passu com o positivismo Como a ideologia liberal atua como sustentadora do capitalismo o respeito às leis é de fundamental importância Aliás os elaboradores e benefi ciários das leis mormente detentores do poder sempre defenderão que todos devem res peitálas por questões óbvias Isto independente do modelo de Estado e de eco nomia vigentes Por consequência as leis para o positivismo jurídico devem ser respeitadas visando ou não justiça social Este é o seu princípio primeiro separar lei de justiça Como as leis eram criadas pelos grandes proprietários ou pelos seus representantes nas Assembleias Legislativas seus objetivos estavam sempre atrelados à defesa do desenvolvimento capitalista livre de limites Dessa maneira as leis não serviam como entrave ao desenvolvimento econômico ao contrário ajudavamno por exemplo ao proibir reivindicações dos trabalhado res bem como o direito de greve por melhores condições de vida Destarte o liberalismo como ideologia sustentadora e impulsionadora do capitalismo defende e é bastante efi caz ao impor ao mundo uma nova caracte rística ao Estado uma nova organização do Direito uma nova divisão social do trabalho e novas relações de produção ao solapar as restrições feudais sobre a circulação de mercadorias trabalho e capital desempenhando assim um papel revolucionário porque contra o sistema estabelecido Ao mesmo tempo o libe ralismo estimulou o crescimento das cidades e dos complexos urbanos indus triais Enfi m ele impõe ao mundo uma mudança que busca apresentarse como irreversível e nesse sentido temse mostrado bastante efi caz O Estado capitalista de orientação liberal portanto historicamente situa do no século XIX como forma hegemônica de organização política da sociedade tem seus princípios relacionados no plano da natureza humana com o indivi dualismo a liberdade no e para o mercado e a desigualdade entre os homens como um valor positivo A justifi cativa para a defesa desses princípios é que levam em conjunto ao progresso e ao pleno desenvolvimento Assim o papel do Estado para a teoria mencionada é precipuamente o de garantir a propriedade privada dos meios de produção a divisão social do tra balho e a ausência ou minimização do controle estatal sobre o mercado baseado 8 Para o aprofundamento desta questão ver Miguel 2002 457 Capítulo 17 Estado mínimo contra a fase histórica camaleônica do Estado capitalista Wallace dos Santos de Moraes na argumentação de que só assim é possível alcançar o auge do desenvolvimen to o qual por conseguinte conduziria ao bemestar da sociedade Entretanto esse modelo de Estado não provê direitos aos trabalhadores Sua justifi cativa apresentase como defendente do ótimo desenvolvimento eco nômico que direitos aos trabalhadores obstaculizariam Dito isto podese en tender porque no século XIX não existiam direitos aos que viviam do trabalho Com efeito o Estado postase de maneira muito clara na defesa dos interesses das classes proprietárias dominantes Não obstante o Estado capitalista não é imune às pressões Embora seu papel seja o de garantir a reprodução do capital por vezes em função das lutas populares ele pode assumir um papel reformista com relação à garantia da ex ploração de uma classe sobre outra Portanto esse Estado cede às pressões 173 Uma nova fase do estado capitalista o modelo camaleão Pedagogicamente podemos dizer que o Estado capitalista assume três feições diferentes ao longo da história as quais estão diretamente relacionadas com a luta de classes Isto é como se trata de um Estado cedente à medida que os trabalhadores organizadamente passam a contestar o capitalismo e concomi tantemente reivindicam direitos imediatos o Estado capitaneado pelas classes dominantes por vezes em confl ito entende que é melhor conceder direitos Além de criar direitos para os que vivem do trabalho também é posta em práti ca uma política de inclusão de camadas subordinadas da população na institu cionalidade por meio da participação eleitoral o voto passa a ser universal e são retiradas algumas barreiras para a chegada ao poder por meio deste Todavia paralelamente o Estado mantém a coerção sobre os segmentos sociais que não se subordinam ao poder do Estado capitalista Estas políticas podem ser reduzi das em duas palavras coerção e convencimento9 No decorrer das primeiras décadas do século XX vários acontecimentos fazem mudar o papel do Estado capitalista duas grandes guerras mundiais exacerbado crescimento e um certo grau de politização da classe operária Revo lução Russa de 1917 e em derradeiro a crise de superprodução de 1929 Esses fatos seguem concomitantes com as grandes reivindicações dos trabalhadores organizados Daí emerge a característica camaleônica do Estado capitalista que diferentemente de outros modelos de Estado se metamorfoseia com vistas a manter o poder capitaneado pelos interesses das classes dirigentes10 A mudan 9 Conceitos caros a Gramsci 10 O próprio crescimento do fascismo é uma forma de expressão do estado camaleão O Estado muda de face mas continua a garantir os interesses do capital como um todo 458 ELSEVIER Curso de Ciência Política ça de cor do camaleão diante dos seus possíveis inimigos para manterse vivo exemplifi ca bem o ocorrido com o Estado capitalista sobretudo na passagem do modelo liberal para o socialdemocrata Este modelo mostrouse hegemôni co enquanto a luta e organização do movimento estiveram fortalecidas mais ou menos dependendo da correlação de forças em cada país entre as décadas de 192019301940 até as décadas de 198019902000 consubstanciandose em adoção de políticas socialdemocratas Aqui antes de avançarmos cumpre advertir o leitor a respeito da forma como a literatura trata o assunto Normalmente nem se faz alusão ao Estado capitalista como outras dicotomias ou outros parâmetros ignorando assim sua relação jurídicopolítica Com efeito o período de criação de direitos e de inclu são dos trabalhadores na institucionalidade democrática é tratado como uma be nesse estatal ou como se fosse papel do Estado fazêlo ignorando por completo a história dessa instituição Assim utilizando termos próprios parte da literatura saudosa desse período do Estado capitalista denominao como Estado de Bem estar Welfare state ou Estado Providência Por outro lado os críticos o chamam de Estado Assistencialista Intervencionista ou Empresário Ou mesmo criam uma determinada dicotomia que responderia pela existência de dois modelos Estados mínimo e máximo Como penso que esses conceitos não dão conta na sua plenitude dos acontecimentos históricos do período tampouco do papel exercido pelo Esta do pois privilegiam apenas as características que servem aos seus interesses estando mais a serviço de suas matrizes ideológicas interpretativas do que com o compromisso histórico ao valorizar ou desvalorizar extremamente o mode lo em questão resolvi seguir outra metodologia para solucionar a questão Por consequência preferi cunhar o Estado capitalista na sua fase socialdemocrata pela expressão estado camaleão buscando representar um movimento bali zado em seu momento histórico caracterizado pelas pressões dos trabalhadores organizados por direitos um recuo ideológico das classes proprietárias em seu liberalismo impenitente que culmina em algumas mudanças na função do Esta do menos voltada para o mercado e mais republicana11 O termo camaleão re presenta o fato de o Estado mudar de face para sobreviver junto com o capitalis mo criando direitos sociais e estendendo os direitos políticos à quase totalidade 11 A aplicação de uma legislação social segundo Polanyi 1980 p 51 visava conter os interesses exclusivos do mercado e do liberalismo econômico pois este interpretou mal a história da Revolução Industrial porque insistiu em julgar os acontecimentos sociais a partir de um ponto de vista econômico O problema maior era a ausência de garantias sociais aos trabalhadores que a ideia de mercado auto regulável ignora 459 Capítulo 17 Estado mínimo contra a fase histórica camaleônica do Estado capitalista Wallace dos Santos de Moraes dos trabalhadores por outro lado faz tudo isso mantendo suas características essenciais como garantidor do pleno funcionamento da economia capitalista da exploração e da desigualdade que o acompanham O conceito de estado camaleão tem como fi to expressar um momento histórico estatal em que os trabalhadores organizados pressionam o Estado capitalista a garantir melhores condições de vida trabalho e participação O Estado cede às pressões assume uma nova postura estipulando direitos so ciais embora esse jamais tenha sido o seu papel todavia mesmo neste ínterim o seu objetivo é garantir o pleno funcionamento da reprodução do capital das suas instituições e frear a luta dos trabalhadores desvirtuandoos de suas ideias socialistas A qualidade distintiva fundamental do estado camaleão é a adoção de políticas socialdemocratas principalmente nos países do primeiro mundo tendo como melhor exemplo os países escandinavos Essas políticas buscam colocarse entre a proposta socialista de negação absoluta do mercado e a li beral de negação de direitos para os trabalhadores12 Com efeito o Estado ga rante o funcionamento do mercado por meio da garantia de suas instituições como a propriedade privada dos meios de produção a divisão social do tra balho o império da lei mas ao mesmo tempo institui direitos para os não proprietários através do Direito do Trabalho e Previdenciário por exemplo Suas políticas caracterizamse por forte intervenção na economia criando es tatais obras públicas regulando preços limitando na maior parte das vezes apenas na teoria a propriedade ao uso social etc Essas políticas trazem em última instância uma redefi nição clara do papel do Estado abandonando a ortodoxia liberal mas sem esquecer de manter o controle sobre as ações dos trabalhadores Cumpre ainda ressaltar que quanto mais reivindicativas e organizadas estiveram as classes trabalhadoras mais direitos arrancaram do Estado Só a par tir desta premissa podemos entender os diferentes níveis de direitos para os tra balhadores nos diversos Estados ocidentais Outrossim como o estabelecimento de direitos está diretamente ligado às reivindicações em muitos Estados nacio 12 Segundo EspingAndersen 1995 p 73 o welfare state teve algumas implicações importantes economicamente signifi cou um abandono da ortodoxia da pura lógica do mercado em favor da exi gência de extensão da segurança do emprego e dos ganhos como direitos de cidadania moralmente a defesa das ideias de justiça social solidariedade e universalismo Politicamente o welfare state foi parte de um projeto de construção nacional a democracia liberal contra o duplo perigo do fascismo e do bolchevismo 460 ELSEVIER Curso de Ciência Política nais alguns segmentos dos trabalhadores em função de suas lutas corporativas conseguiram mais vantagens que outros13 Por outro lodo a postura defensiva e setorial dos sindicatos de trabalha dores europeus a posteriori proporcionou a convivência pacífi ca entre capital e trabalho sendo ainda mais arraigada com a criação dos partidos operários abandonando o projeto de superação do capitalismo como objetivo imediato Assim o objetivo do capital era contemplado passar o trabalho de antagonista estrutural para interlocutor e participante da democracia representativa vigente no Ocidente14 Para efeito dos países periféricos do capitalismo e em particular do Brasil no qual a implementação de direitos fi cou muito aquém dos países imperialis tas do centro do capitalismo o conceito normalmente usado para designar o período em questão é nacionaldesenvolvimentismo Não obstante o método de análise aqui pensado aplicase perfeitamente aos casos dos países periféricos ou seja é a força dos trabalhadores que determina as alterações das funções do Estado capitalista Só mais uma ressalva a força dos trabalhadores não deve ser medida pela sua participação na institucionalidade capitalista Entretanto depois do franco descenso reivindicativo do movimento so cial da crise das sociedades de capital póscapitalistas15 do Leste Europeu asso ciados à estagnação dos anos de forte crescimento econômico anteriores da crise do petróleo e fi scal a economia capitalista entra em crise ao longo da década de 1970 cedendo espaço para se pensar em um retorno ao liberalismo como solução Assim o Estado capitalista sem o perigo da revolução social entra em processo de retorno ao seu papel original típico da fase liberal do século XIX A nova orientação do Estado consiste em uma retomada das propostas liberais signifi cando que o Estado não deve intervir na economia deixando o mercado livre autoregulável inclusive o de trabalho Com o fi to de retomar os lucros do grande capital o que efetivamente se consegue o Estado passa a destruir aquilo que fez para impedir a revolução social direitos dos trabalhadores em todo o mundo são fl exibilizados estatais são privatizadas a previdência social é vista como perdulária Junto com esses aspectos há um controle maior sobre 13 O caso brasileiro é exemplar para este aspecto durante a Era Vargas apenas os trabalhadores urba nos mais reivindicativos tinham direitos 14 Sobre este assunto ver Mészáros 2003 principalmente o capítulo 3 15 Este conceito foi desenvolvido por I Mészáros 2002 para designar por exemplo a União Soviética que não seria uma sociedade socialista por não romper com o poder do capital com a divisão social do trabalho nem entrar em processo de defi nhamento do Estado Daí chamála de sociedade de capital póscapitalistas 461 Capítulo 17 Estado mínimo contra a fase histórica camaleônica do Estado capitalista Wallace dos Santos de Moraes a infl ação e a moeda e um aumento da repressão sobre os pobres16 através de políticas de segurança do tipo tolerância zero É aqui que desponta a impor tância da obra de Nozick na luta pela hegemonia dessas ideias ou pelo retorno ao Estado mínimo liberal Cumpre portanto observar contra o que Robert Nozick direciona suas críticas De maneira geral contra as características do estado camaleão do so cialismo do anarquismo clássico de Bakunin Kropotkin Proudhon de maneira mais particular contra as ideias de John Rawls defensor de uma certa justiça distributiva respeitando os marcos do capitalismo17 Enfi m Nozick atenta con tra toda e qualquer ideia de justiça distributiva de igualdade econômica e social de coletivismo e de intervenção do Estado na economia Nesse sentido sua obra faz parte de uma biblioteca que se mostrou bastante vitoriosa pois ganhou os meios de comunicação de todo o mundo e colocou as ideias de outros modelos de Estado estado camaleão socialismo ou mesmo de sua ausência anarquis mo como um verdadeiro anátema Feitas as advertências necessárias traduzidas na historicização da vida e obra do autor bem como das características do Estado capitalista em suas dife rentes fases podemos descrever suas teses Como um tratado clássico de Ciên cia Política Nozick discute seus temas centrais como Estado a propriedade e a justiça Comecemos pelos seus postulados 174 Os postulados norteadores da obra de Nozick A obra de Nozick em questão está dividida em três partes A primeira jus tifi ca a existência do Estado mínimo a segunda alega que nenhum Estado mais amplo pode ser justifi cado porque é moralmente injusto e atenta contra a liber dade das pessoas A última parte busca igualmente justifi car o Estado mínimo mas por meio de argumentos ditos utópicos Enfi m toda a obra tem o objetivo de legitimar o Estado mínimo por meios racionais e utópicos e desqualifi car qualquer outra forma de organização estatal Sem embargo quais os caminhos postulados e metodologias escolhidos por Nozick Para chegar às suas teses o autor recorre metodologicamente a quatro postulados centrais 1 a teoria da mão invisível 2 a teoria do estado de nature za para justifi car a existência do Estado mesmo que nenhum Estado real jamais tenha surgido dessa maneira Nozick 1991 p 22 3 a teoria do individualis mo metodológico 4 a desigualdade econômica e social como um valor positivo 16 Ver Wacquant 2003 17 O debate entre Rawls e Nozick ganhou espaço considerável na academia dos Estados Unidos e depois extrapolou suas fronteiras 462 ELSEVIER Curso de Ciência Política reverberandose em desigualdade em propriedades Estas opções metodológi cas dizem muito pois tratase de tendência majoritária da matriz explicativa liberal que abstraindo dos fatos concretos busca reescrever a história estatal e social por meio de deduções racionais 1 Seu principal princípio condutor é o da mão invisível como modo expli cativo da história do papel do Estado uma vez que assevera que os fatos são construídos desprovidos de intencionalidade de indivíduos grupos frações de classe ou classes sociais Vejamos As explicações da mão invisível minimizam o emprego de ideias que constituem os fenômenos a serem explicados Em contraste com expli cações diretas não explicam modelos complicados incluindo as ideias do modelo plenamente desenvolvidas como objetos dos desejos ou crenças das pessoas Uma explicação da mão invisível mostra que o que parece ser produto do trabalho intencional de alguém não foi produzido pela intenção de ninguém Poderíamos denominar o tipo oposto de explicação da mão oculta Uma explicação da mão oculta explica o que parece ser apenas um conjunto desconexo de fatos que com certeza não é produto de trabalho intencional como o produ to do trabalho intencional de um indivíduo ou grupo Nozick 1974 1991 p 34 As explicações do estado de natureza da esfera política são explica ções potenciais fundamentais do mesmo e possuem força explica tiva e poder de esclarecimento mesmo que incorretas Apreende mos muito observando como o Estado poderia ter surgido mesmo que ele não tenha surgido dessa maneira Se não surgiu dessa ma neira aprenderíamos muito também verifi cando por que não sur giu ou tentando explicar por que a parte particular do mundo real que diverge do modelo do estado de natureza é o que é Nozick 19741991 p 23 2 Para explicação de sua teoria do estado de natureza Nozick opta por ba searse no equivalente lockeano afi rmando que considerações da fi losofi a política convergem para ele Decerto toda e qualquer opção que fazemos para descrever um fato histórico é fruto de nossas escolhas teóricas e me todológicas seja na seleção das fontes do período dos personagens etc Portanto quando Nozick escolhe como princípio de sua teoria os escritos de John Locke 1689 para nós que conhecemos a obra deste autor signifi ca que haverá uma valorização extremada da propriedade privada enquanto uma instituição ilimitada e absoluta cujo papel central do Estado deve ser 463 Capítulo 17 Estado mínimo contra a fase histórica camaleônica do Estado capitalista Wallace dos Santos de Moraes garantila Todavia se ele partisse do estado de natureza de Rousseau18 se gundo o qual por exemplo a propriedade foi construída pela usurpação ou mesmo se sua opção fosse caminhar pelo materialismo histórico de Karl Marx segundo o qual a propriedade foi construída pela forçaviolência difi cilmente suas conclusões poderiam ser as mesmas No resgate do estado de natureza lockeano Nozick afi rma que os limites da lei de natureza estabelecem que ninguém deve prejudicar a outrem em sua vida liberdade e propriedade Cabe lembrar que para Locke a propriedade pri vada fora fundada pelo trabalho pelo mérito sendo portanto absolutamente legítima Outro fator importante que o singulariza em sua época é asseverar que no estado de natureza já existia a propriedade privada que por consequência é elevada ao status de direito natural Com efeito para garantir esses direitos bá sicos das leis da natureza Locke afi rma que os homens realizaram um contrato que criou o Estado Já Nozick substitui o contrato e a criação imediata do Esta do criando etapas que não vão de encontro aos princípios lockeanos mas que estabelecem novas inferências Para ele na passagem do estado de natureza até o advento do Estado foram criadas primeiro agências de proteção cujos objeti vos eram garantir os direitos naturais do pensamento lockeano vida liberdade e propriedade dos associados como veremos adiante 3 Por fi m para justifi cativa de seu individualismo metodológico Nozick es creve as seguintes palavras Individualmente todos resolvemos às vezes suportar alguma dor ou sacrifício por um benefício maior ou para evitar maior dano Em todos os casos algum custo é incorrido em troca do bem geral maior Por que não analogamente sustentar que algumas pessoas tem que arcar com alguns custos a fi m de benefi ciar mais outras pessoas tendo em vista o bem social geral Mas não há entidade social com um bem que suporte algum sacrifício para seu próprio bem Há apenas pessoas individuais pessoas diferentes com suas vidas individuais próprias Usar uma dessas pessoas em benefício das outras implica usála em proveito das demais Nada mais O que acontece é que alguma coisa é feita com ela em benefício dos outros Conversas sobre bem social ge ral disfarçam esta situação intencionalmente Usar uma pessoa dessa maneira além de indicar desrespeito não leva em conta o fato de que ela é uma pessoa separada que é sua a vida de que dispõe Ela não obtém algum bem que contrabalance seu sacrifício e ninguém tem o direito de obrigála a isso e ainda menos o Estado ou o governo que 18 De acordo com o texto Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os ho mens 1755 1983 464 ELSEVIER Curso de Ciência Política alegam que lhe exige a lealdade o que outros indivíduos não fazem e que por conseguinte deve ser escrupulosamente neutro entre seus cidadãos Nozick 1974 1991 p 48 Esse individualismo metodológico se expressa sobretudo ao elevar os indivíduos ao patamar de seres autônomos na e independentes da sociedade que não precisam e não devem preocuparse com ela Esta premissa atinge o apogeu quando o autor defende que os homens não devem ser tributados em favor do bemestar de outrem pois se assim ocorrer o indivíduo estará sendo sacrifi cado injustamente 4 Todas essas discussões estão acompanhadas da premissa de que a desigual dade é um fator positivo que não deve ser atacado Ao contrário é a desi gualdade que impulsiona o desenvolvimento gerando por fi m um bem estar para todos A grande objeção quando se diz que todos têm direito a várias coisas tais como igualdade de oportunidades à vida etc é fazer valer esse direito é que esses direitos exigem uma infraestrutura de coisas materiais e atos e outras pessoas podem ter direitos e títulos a elas Ninguém tem direito a alguma coisa cuja realização exige certos usos de coisas e atividades sobre as quais outras pessoas têm direitos e tí tulos Os direitos e títulos de outras pessoas a coisas particulares esse lápis seu corpo etc e a maneira como resolvem exercer esses direitos e títulos estabelecem o meio externo de qualquer dado indivíduo e os meios que ele terá à sua disposição Nozick 1974 1991 p 262 No mesmo diapasão em suas discussões sobre o papel do Estado Nozick evoca um anarquista individualista com o qual simula um diálogo Qual é o problema desse diálogo Primeiro o autor não cita qual pensador defende as ideias descritas segundo o pensamento anarquista clássico colocase indubita velmente contra o Estado mas não pelos motivos que Nozick diz serem defen didos pelo suposto anarquista individualista terceiro o pensamento libertário é intrinsecamente antiindividualista e contra a propriedade privada e a divisão social do trabalho que o Estado capitalista garante Isto posto podemos ter com clareza que embora Nozick reivindique questões do pensamento anarquista ele nada tem que ver com o pensamento clássico e hegemônico do anarquismo Vejamos As próprias maneiras em que uma agência ou associação de proteção dominante em um território fi ca aquém de ser um Estado proporcio nam o foco à queixa do anarquista individualista contra o Estado Isso porque sustenta ele que quando o Estado monopoliza o uso da força 465 Capítulo 17 Estado mínimo contra a fase histórica camaleônica do Estado capitalista Wallace dos Santos de Moraes em um território e pune aqueles que violarem seu monopólio e quando proporciona proteção a todos forçando alguns a comprar proteção para outros ele viola as restrições morais indiretas sobre a maneira como indivíduos podem ser tratados Daí conclui ele o Estado em si é intrin secamente imoral Nozick 1974 1991 p 66 Nozick também estabelece um diálogo com a teoria de John Rawls19 Este por sua vez defende os princípios fundamentais do capitalismo como a ga rantia da propriedade privada o mercado a divisão social do trabalho a desi gualdade econômica e social como um fator benéfi co etc todavia suas refl exões caminhem para um favorecimento do que ele chamou de menos favorecidos por meio de intervenções estatais como tributação das grandes fortunas etc assemelhandose ao defendido pelos socialdemocratas Portanto as críticas de Nozick não são feitas a todas as teses de Rawls pois fazem parte grosso modo da mesma matriz interpretativa isto é entendem o capitalismo como a melhor forma organizacional da economia e da vida ambos inclusive ignoram os fatos concretos históricos para elaboração de suas teses Portanto a crítica de Nozick à obra de Rawls que por vezes fi gura na literatura de maneira bastante equi vocada como se fossem água e vinho são praticamente pontuais restritas à contrariedade da tributação para fi ns redistributivos Conhecidos seus postulados passemos às concepções sobre um compo nente central do pensamento capitalista e particular de Nozick 175 Concepções sobre a propriedade No decorrer da história da sociedade humana a propriedade privada tem se mostrado determinante nas relações de poder de liberdade de sobrevivência de Estado enfi m nas relações políticas sociais e econômicas Nozick além de não se abster de ter uma concepção acerca da propriedade colocaa como tema central de seu pensamento Aqui tal como na matriz capitalista o autor busca por inferências racionais defender a tese da legitimidade da propriedade che gando à conclusão de que se ela é legítima deve ser legalizada mas para além disso dois raciocínios a acompanham o Estado tem o dever de protegêla é a sua existência que possibilita o progresso o desenvolvimento da humanidade Para o novaiorquino o objeto de justiça em propriedade consiste em três tópicos principais O primeiro é a aquisição inicial das propriedades o segundo diz respeito à transferência de propriedades de uma pessoa a outra e o terceiro a reparação da injustiça na propriedade Estes tópicos guiam suas refl exões so bre a legitimidade da propriedade descritas nos parágrafos seguintes 19 Mais precisamente consubstanciada no livro Uma Teoria da Justiça de 1971 466 ELSEVIER Curso de Ciência Política Segue argumentação de Nozick que coloca a propriedade como fruto dos dotes naturais de determinadas pessoas Este argumento não só justifi ca sua existência como a desigualdade de sua distribuição as pessoas têm direito a seus dotes naturais 1 Se pessoas têm direito a alguma coisa elas têm direito a tudo que de corre dela através de tipos especifi cados de processos 2 As propriedades de pessoas decorrem de seus dotes naturais Logo 3 As pessoas têm direito às suas propriedades 4 Se pessoas têm direito a alguma coisa então devem têla e isso elimi na qualquer presunção de igualdade que possa haver sobre proprie dades Nozick 1974 1991 p 242243 Em consonância com Nozick no estado de natureza a propriedade é ad quirida de acordo com o princípio de justiça na aquisição e desse ponto em diante segundo o princípio de justiça na transferência por troca de propriedade possuída por outra por serviços compromissos ou presentes Nozick 1974 1991 p 305306 Aqui está subjacente a ideia de que a propriedade foi possível para todos no estado de natureza tal como defendido por Locke Logo suas deduções apontam para o fato de que hodiernamente aquele que não a tem foi porque ou não quis trabalhar tendo em vista que a propriedade é fruto do trabalho ou porque a trocou por outras benesses Segundo esse pensamento o que decorrer daí só pode ser fruto de justiça salvo o roubo que deve ser reprimido com todo rigor Aliás por isso a neces sidade da existência do Estado mínimo cuja função é precipuamente reprimir àqueles que atentem contra a propriedade privada alheia Um objeto que passa à propriedade de alguém muda a situação de to das as outras pessoas uma vez que antes elas tinham liberdade de usálo o que não acontece mais Esta mudança na situação dos outros retirandolhes a liberdade de agir no tocante a um objeto que antes não tinha dono porém não precisa tornarlhes pior a situação Se eu me aproprio de um grão de areia de Coney Island ninguém mais pode fazer o que quiser com aquele grão Mas sobram grãos à vontade para que façam com eles o que quiserem Ou se não grãos de areia outras coisas Alternativamente as coisas que faço com o grão de areia de que me apropriei pode melhorar a posição dos demais compensandolhes a perda de liberdade para usálo O ponto crucial é se a apropriação de um objeto sem dono torna pior a situação dos demais Nozick 1974 1991 p 195 467 Capítulo 17 Estado mínimo contra a fase histórica camaleônica do Estado capitalista Wallace dos Santos de Moraes A conclusão a que o autor chega é que se as propriedades de cada pessoa são justas então o conjunto total de distribuição das propriedades é justo Além disso a apropriação de algo em comum a todos pode tornar melhor a vida das demais pessoas Nesse sentido na argumentação em prol da constituição da propriedade podemos perceber que os argumentos são individualistas posses sivos com vistas ao mercado Invertamos a lógica para melhor entender Isto é se as distribuições feitas até aqui foram justas como podemos justifi car a injustiça atual ou o que temos a dizer sobre ela sobretudo com referência à posse de propriedades Para Nozick a propriedade que não for adquirida com base nos princípios de justiça na aquisição e na transferência gera o terceiro tópico por ele elencado aliás um tópico absolutamente necessário tratase da reparação da injustiça na propriedade As perguntas que ele faz a si mesmo são as seguintes se injustiça passada modelou de várias maneiras propriedades pre sentes algumas identifi cáveis e outras não o que agora deve ser feito para corrigir essas injustiças Que obrigações têm os autores da injus tiça para com aqueles cuja posição é pior do que poderia ter sido se a injustiça não fosse praticada Ou que teria sido se uma compensação tivesse sido paga imediatamente Como se é que isso ocorre as coisas mudam se os benefi ciários e os colocados em pior situação não são as partes diretas no ato de injustiça mas por exemplo seus descenden tes Nozick 1974 1991 p 173 O autor ao problematizar essas questões fundamentais acerca dos crité rios de justiça da distribuição da propriedade mostra toda sua destreza refl e xiva todavia decepciona sobremaneira ao não apontar as soluções não co nheço um tratamento teoricamente sofi sticado ou exaustivo dessas questões Nozick 1974 1991 p 173 É claro que existem tratamentos teoricamente sofi sticados e exaustivos dessas questões pelo menos desde o século XIX mas Nozick nega essas concepções pois não coadunam com suas teses O que está em tela para a teoria de Nozick é a sua completa objeção contra todas as tentativas de impor à sociedade um padrão de distribuição deliberadamente escolhido seja ele uma ordem principalmente de igualdade Quando o autor assume a posição de negação absoluta de todo padrão de distribuição deliberadamente escolhido devese levar em conta que a sociedade atual está permeada por grandes desigualdades que não foram construídas por quaisquer mãos invisíveis mas por interesses de determinadas classes ao longo da História Contudo devese saber que a posição aparentemente isenta de Nozick favorece as desigualdades construídas pela história 468 ELSEVIER Curso de Ciência Política Por fi m cabe lembrar quando Nozick discute temas como proibição leis ordem indenização e risco que seu principal objetivo é encontrar a melhor for ma de defender a propriedade privada A forma de punir e de compensar estão latentes como papel do Estado Punese aquele que atentar contra a propriedade e compensase aquele que sofre de alguma forma no pleno uso de sua proprie dade 176 Concepções sobre o Estado 1761 Defesa do Estado Mínimo Com o objetivo de demonstrar como surgiu o Estado Nozick imagina uma possibilidade racional sem compromisso com os fatos históricos Assim seu trabalho explica que primeiramente a organização social era anárquica isto é não existia o Estado A passagem daquele estádio para a organização societal com um Estado segundo sua concepção não ocorreu de forma direta Portanto da anarquia ao Estado como hoje o conhecemos a humanidade passou por fa ses intermediárias como a criação das agências de proteção do Estado ultramí nimo o Estado mínimo e o Estado interventor A discussão sobre o papel do Estado iniciase com uma questão funda mental da fi losofi a política que precede qualquer outra sobre como o Estado deve ser organizado se ele deve ou não realmente existir Por que não temos a anarquia Nozick 1974 1991 p 18 Sua resposta acompanhase do crité rio minimax que comparativamente coloca o estado de natureza hobbesiano mais pessimisticamente descrito com o Estado possível mais pessimistica mente descrito incluindo futuros Estados Sua conclusão é que o pior estado de natureza certamente ganharia em tal comparação Nozick 1974 1991 p 18 Aqui Nozick distinguese fundamentalmente do anarquismo clássico que concebe o Estado como opressor maior e garantidor das injustiças em geral e da propriedade em particular ao defender que sempre será melhor a existência de qualquer Estado comparativamente com qualquer estado de natureza A partir da resolução da questão se o Estado deve ou não existir Nozick começa a descrição racional dedutiva do seu surgimento tendo sua gênese nas agências privadas de proteção Mais uma vez baseado no estado de natureza lockeano o libertariano esta dunidense afi rma que como resultado da necessidade dos homens em resguar dar suas propriedades vidas e liberdades foram criadas primeiro as agências privadas de proteção com as quais os indivíduos associados eram defendidos Concomitantemente algum tipo de legislação estava sendo composta para re primir aqueles que atentassem contra os bens básicos da sociedade lockeana 469 Capítulo 17 Estado mínimo contra a fase histórica camaleônica do Estado capitalista Wallace dos Santos de Moraes Com a proliferação dessas agências sobre as mais variadas regiões a associação mais forte conseguiu o monopólio da proteção com respectivo monopólio da força surgindo aí o que Nozick cunhou de Estado ultramínimo cujo único obje tivo era defender os chamados direitos naturais reivindicados pelo pensamento liberal A transição das agências privadas de proteção para o Estado ultramíni mo ocorrera através da mão invisível que conduziunos para algo melhor em uma maneira moralmente permissível sem que ninguém tivesse seus direi tos violados Ao mesmo tempo que esse Estado era maior que as agências de proteção ele não dava conta de todo o território portanto não abrangendo todas as pessoas A grande diferença da agência de proteção dominante para o Estado segundo Nozick é que a primeira em um território não só carece do necessário monopólio sobre o uso da força mas também não consegue fornecer proteção a todos em sua jurisdição Em vista disso a agência dominante parece fi car aquém da condição de Estado Dessa forma faziase então necessária a ampliação do Estado ultramínimo para mínimo Essa transição diznos o autor tem moral mente que ocorrer pois seria intolerável que pessoas mantivessem o monopólio no Estado ultramínimo sem fornecer serviços de proteção a todos mesmo que isso implicasse uma redistribuição específi ca Os operadores dessa organização estatal estão moralmente obrigados a criar o Estado mínimo Nozick 1974 1991 p 68 Assim sendo o objetivo da obra de Nozick é fazer ver que o Estado míni mo é moralmente legítimo bem como as transições anteriores e que ele abrange a todas as pessoas de uma determinada região inclusive aos chamados inde pendentes aqueles que eram contrários à criação do Estado e das agências privadas de proteção Dessa forma Da anarquia gerada por grupamentos espontâneos associações de pro teção mútua divisão de trabalho pressões de mercado economias de escala e autointeresse racional surge algo que se assemelha muito a um Estado mínimo ou a um grupo de Estados mínimos geografi camente distintos A natureza do serviço coloca não só diferentes agências em concorrência pela preferência dos clientes mas também as lança em violentos confl itos entre si Quando apenas uma agência exerce realmente o direito de proibir ou tros de usar seus procedimentos duvidosos para impor justiça privada isso a torna o Estado de fato Nozick 1974 1991 p 160 O Estado ultramínimo mantém o monopólio do uso da força exceto a necessária a autodefesa imediata e dessa maneira exclui a retaliação privada ou de alguma agência por lesões cometidas e exigência de indenização Mas proporciona serviços de proteção e cumprimento de 470 ELSEVIER Curso de Ciência Política leis apenas àqueles que adquirem suas apólices de proteção e respeito às leis Nozick 1974 1991 p 42 Percebemos anteriormente que Nozick parte do princípio de que existia já no estado de natureza um homem de negócios voltado para o mercado Isso implica a descrição de características do homem capitalista moderno como per tencentes à natureza humana cioso por lucro vendo tudo em forma de cifrão De tal modo encaixase a defesa do Estado mínimo na teoria do autor isto é um Estado limitado às funções restritas de proteção da propriedade privada contra a força dos despossuídos o roubo e pela fi scalização do cumprimento de contratos Nozick portanto advoga a instauração de um Estado mínimo visto que esta é a única maneira de não prejudicar o direito ao livre desenvolvimento individual Na segunda parte do trabalho Nozick argumenta que nenhum Estado mais poderoso ou extenso que o mínimo é legítimo ou justifi cável porque sim plesmente fere os direitos dos indivíduos principalmente se tem meios eou objetivos redistributivos isto é obrigar algumas pessoas a contribuir por algo que gere o bemestar de outrem 1762 Contra o Estado maior que o mínimo A fi m de demonstrar que o Estado mínimo é moralmente legítimo e que não é imoral em si temos que provar também que as transições anteriores são moralmente legítimas Argumentaremos que a transição do Estado ultramínimo para o mínimo tem moralmente que ocorrer Seria moralmente intolerável que pessoas mantivessem o monopólio no Estado ultramínimo sem fornecer serviços de proteção a todos mesmo que isso requeresse uma redistribuição específi ca Nozick 1974 1991 p 6768 Percebase na passagem acima que o Estado mínimo justifi case funda mentalmente porque deve fornecer serviços de proteção a todos A proteção aqui não é entendida como proteção do emprego da saúde na educação Longe e contra isto O Estado deve garantir os bens individuais da sociedade Este é seu único papel justifi cável Por isso um Estado maior que o mínimo não se justifi ca moralmente pois o Estado intervém na individualidade das pessoas obrigandoas inclusive a pagar impostos para o provimento de saúde educa ção bemestar para aqueles que não têm condições fi nanceiras Na busca de seus objetivos Nozick apresenta a relação de D1 distribuição entre todos justa com uma passagem para D2 onde alguns despontam em pro 471 Capítulo 17 Estado mínimo contra a fase histórica camaleônica do Estado capitalista Wallace dos Santos de Moraes priedade A questão central discutida é que nenhum princípio de estado fi nal ou distributivo padronizado de justiça pode ser continuamente implementado sem interferência contínua na vida das pessoas Exemplifi cando o anteriormente exposto segue uma das passagens mais inteligentes da obra de Nozick pois para ele a tributação de salários ou o con fi sco de lucros através de princípios padronizados signifi cam apropriação de atos de outras pessoas Vejamos Seja isso feito através de tributação dos salários ou dos salários acima de certo volume ou de confi sco de lucros ou ainda se há uma grande panela social de modo que não é claro o que vem de onde e para onde vai os princípios padronizados implicam a apropriação de atos de ou tras pessoas Tomar os resultados do trabalho de alguém equivale a tomarlhe horas e dirigilo para que execute várias atividades Se pes soas o obrigam a realizar certo trabalho ou trabalho não remunerado durante certo período de tempo elas decidem o que você tem de fazer e a que fi nalidades seu trabalho deve atender à parte suas próprias deci sões Esse processo pelo qual lhe tomam essa decisão transformamnos em coproprietários de sua pessoa dãolhes um direito de proprietário sobre você da mesma maneira que ter esse controle e poder de decisão parcial por direito sobre um animal ou objeto inanimado implicaria ter um direito de propriedade sobre eles Os princípios de justiça distributiva de resultado fi nal e a maioria dos padronizados instituem a posse parcial por outros de pessoas seus atos e trabalho Esses princípios implicam uma mudança da ideia libe ral clássica de propriedade de si mesmo para uma de direito de proprie dade parciais sobre outra pessoas Nozick 19741991 p 191192 Por que não podemos violar pessoas tendo em vista o bem social maior Individualmente todos resolvemos às vezes suportar alguma dor em benefício maior ou para evitar maior dano Vamos ao dentista para evi tar maior sofrimento mais tarde Em todos os casos algum custo é incorrido em troca do bem geral maior Por que não analogamente sustentar que algumas pessoas têm que arcar com alguns custos a fi m de benefi ciar mais outras pessoas tendo em vista o bem social geral Usar uma dessas pessoas em benefício das outras implica usála e benefi ciar os demais Nada mais O que acontece é que alguma coisa é feita com ela em benefício dos outros Usar uma pessoa dessa ma neira além de indicar desrespeito não leva em conta o fato de que ela é uma pessoa separada que é sua a vida de que dispõe Ela não obtém algum bem que contrabalance seu sacrifício e ninguém tem o direito de obrigálo a isso e ainda menos o Estado ou o governo que alegam 472 ELSEVIER Curso de Ciência Política que lhe exige a lealdade o que outros indivíduos não fazem e que por conseguinte deve ser escrupulosamente neutro entre seus cidadãos Nozick 1974 1991 p 48 Todos os padrões distributivos que incluem um componente igualitário são subvertidos ao longo do tempo por atos voluntários de indivíduos isolados como também toda situação padronizada com um conteúdo sufi ciente para ter sido realmente proposta como representando o âma go da justiça distributiva Nozick 19741991 p 184 As passagens anteriores são centrais e dizemnos muito 1 explicita uma crítica em conjunto à teoria de John Rawls ao estado de orientação socialdemo crata ao socialismo e enfi m a todas as políticas redistributivistas 2 evidencia dois pressupostos clássicos do liberalismo o da desigualdade econômica e so cial entre os homens enquanto um valor benéfi co e a valorização do fruto do tra balho do proprietário 3 como resumo das suposições anteriores nada justifi ca que o Estado tribute os ricos em favor dos pobres outro princípio liberal Só se justifi ca que o Estado tribute os ricos para o benefício deles próprios sobretudo para garantirlhes segurança em sua propriedade vida e liberdade Em resumo Nozick contesta até mesmo os impostos que o Estado se questra dos cidadãos sobretudo se eles têm por destino vias distributivas pois em consonância com sua visão é ilegítimo querer frear ou repartir os bens so ciais visto que são fruto do trabalho de quem os produziu Pari passu o cidadão tampouco tem direito de reclamar proteção social do Estado Aqui está claro o individualismo possessivo do autor Derradeiramente reconhecendo que as desigualdades econômicas re sultam frequentemente em desigualdades em poder político Nozick fazse uma pergunta com o fi to de convencernos de que as desigualdades econô micas teriam menos infl uências e consequentemente menor poder político com o Estado mínimo não poderia uma maior igualdade econômica e um Estado mais extenso como meio de realizar isso ser necessária e justifi cada a fi m de evitar as desigualdades políticas com as quais as desigualdades eco nômicas estão muitas vezes correlacionadas Nozick 1974 1991 p 293 294 Resposta Pessoas em boa situação econômica desejam maior poder político em um Estado não mínimo porque poderão usar esse poder para obter benefí cios econômicos diferenciais Nos casos em que existe um centro de po der não é de surpreender que pessoas tentem usálo para promover seus próprios fi ns O uso ilegítimo do Estado por interesses econômicos para seus próprios fi ns baseiase em um poder ilegítimo preexistente do Esta 473 Capítulo 17 Estado mínimo contra a fase histórica camaleônica do Estado capitalista Wallace dos Santos de Moraes do de enriquecer algumas pessoas à custa de outras Eliminese esse po der ilegítimo de conferir benefícios econômicos diferenciais e eliminase ou se reduz drasticamente o motivo para querer infl uência política O Estado mínimo é o que melhor reduz as possibilidades dessa tomada ou manipulação do Estado por pessoas que desejam poder ou benefícios econômicos especialmente se combinado com um corpo de cidadãos ra zoavelmente alerta uma vez que é o alvo minimamente desejável para tal tomada ou manipulação Nozick 1974 1991 p 294 Neste aspecto o autor está amparado em várias pesquisas históricas e na percepção popular que mostram a prática patrimonialista recorrente do Estado servindo aos interesses dos que têm mais infl uências sobre ele 177 Utopia Nozick termina sua obra com um capítulo descrevendo sua utopia Ini cialmente o autor estabelece alguns critérios para a elaboração da utopia O primeiro e mais importante deles diz respeito à total liberdade de locomoção caso os indivíduos não se satisfaçam com o lugar e suas regras20 Outro aspecto diz respeito à existência e legitimidade da propriedade privada como inviolável Aos poucos as regras do mercado bem como as principais instituições do capi talismo vão se colocando como resultados dos sonhos do autor apresentados como se fossem sonhos de todos Para não me alongar aqui digo que Nozick repete as mesmas teses desenvolvidas nas partes I e II da obra só que por outros caminhos chamados por ele de utópicos Em outros termos a parte III da obra tem o objetivo de mostrar que mesmo se caminhássemos por outras estradas chegaríamos à defesa do Estado mínimo do individualismo e das principais instituições do capitalismo como melhor forma de organizar a sociedade for mando o melhor mundo possível Argumentamos na Parte I que o Estado mínimo é moralmente legíti mo na parte II dissemos que nenhum Estado mais extenso poderia ser moralmente justifi cado que qualquer um deles violaria violará os direitos do indivíduo Vemos agora que esse Estado moralmente apro vado o único moralmente legítimo e o único moralmente tolerável é o que melhor realiza as aspirações utopistas de incontáveis sonhadores e visionários Ele preserva tudo o que podemos conservar da tradição utopista e abre o resto dela às nossas aspirações individuais Nozick 1974 1991 p 357 20 Tratase de uma alusão explícita aos regimes autoritários do Leste Europeu da década de 1970 que impediam que as pessoas emigrassem de seus países 474 ELSEVIER Curso de Ciência Política 178 Críticas metodológicas Para problematizar criticamente as teses de Nozick farei a seguir uma crítica interna por meio de sua própria argumentação dedutiva A primeira ob jeção crítica diz respeito ao fato de não ser lógico que a maioria das pessoas que dependiam de sua terras livres para viverem autonomamente concedessem a criação do Estado e da propriedade privada que as excluíam O segundo aspecto passa pela seguinte pergunta por quais pessoas serão criadas as associações de proteção Se as associações de segurança são criadas pelos grandes proprietários elas não podem surgir de um contrato muito me nos de unanimidade Logo elas não são moralmente justas Qual seria a vanta gem para os pobres fazerem um contrato que apenas regulariza a grande pro priedade do rico Por que o pequeno proprietário ou o sem propriedade faria um contrato participando de uma associação em que suas vantagens são muito inferiores ou inexistentes enquanto outros usufruem grandiosamente A partir da criação das agências de proteção surge a ideia do independen te que não adere à criação das agências como fazer Entendo que a pergunta provocativa não é o que deve ser feito com o independente do ponto de vista moral como propõe Nozick mas ver se se justifi ca tal como o autor afi rma a criação das agências de proteção Portanto o que poria em xeque a tese do au tor pois se a criação das agências viola direitos de liberdade de outros que não encamparam o Estado logo ela é injusta imoral e não se justifi ca Falta a Nozick perquirir se o número de independentes era maior que o de pessoas que queriam a criação do Estado Empiricamente é mais plausível que os independentes fossem em número muito maior que os que queriam o Esta do tendo em vista que poucos se benefi ciaram com a sua criação cujo objetivo maior era a garantia da propriedade O mais provável é que poucos tenham se organizado para constituir o Estado e depois tenham imposto aos demais atra vés da força Isto é demonstrado por toda pesquisa histórica séria Talvez isso explique porque Nozick prefere fazer deduções sobre a criação do Estado 179 Conclusão A obra de Robert Nozick já é um clássico do pensamento liberal contem porâneo Suas deduções racionais são inteligentes e fazem refl etir sobretudo acerca do papel do Estado em nossa sociedade Conquanto não precisamos con cordar com elas Sua defesa intransigente do Estado mínimo que signifi ca o des compromisso exacerbado com os pobres com a forma de provimento do Estado de saúde educação e moradia gratuitas estão na ordem do dia sem contar a não interferência do Estado no mercado por meio da privatização das estatais 475 Capítulo 17 Estado mínimo contra a fase histórica camaleônica do Estado capitalista Wallace dos Santos de Moraes O livro em tela de 1974 ganhou força tal associado a vários outros trabalhos intelectuais e a uma conjuntura específi ca de enfraquecimento dos movimentos autônomos dos trabalhadores que nas últimas décadas os meios de comunica ção em todo o mundo e inclusive no Brasil parecem seguidores de suas teses Podese portanto afi rmar que o mundo em que vivemos hoje é resultado dos escritos de Robert Nozick com extremas desigualdades e défi cit de provi mento por meio do Estado das necessidades básicas da sociedade sobretudo dos mais pobres Não é preciso escrever mais nada embora caiba uma última questão Nozick tem razão quando defende que o papel histórico do Estado ca pitalista não é de prover direitos para os trabalhadores mas apenas de controlá los 1710 Perguntas para reflexão 1 Descreva o contexto de elaboração da obra de Robert Nozick 2 Aponte os pressupostos que guiam o desenvolver das teses de Nozick 3 Ao descrever suas teses Nozick filiase a uma determinada ideologia po lítica Apontea e descreva suas principais ideias 4 Aponte a principal característica distintiva do Estado capitalista para os demais escravista e feudal 5 Explique o processo que faz com que o Estado Capitalista abandone sua postura de não intervenção no mercado 6 Qual o papel dos trabalhadores na mudança de fase do Estado 7 Descreva o significado de Estado mínimo 8 Qual o papel de meios redistributivos na sociedade para a teoria de No zick 9 Explique a relação das ideias de Nozick com as do anarquismo clássico 10 Disserte sobre a relação entre positivismo jurídico liberalismo e capita lismo Bibliografia ANDERSON Perry Balanço do neoliberalismo In SADER Emir GENTI LI Pablo Orgs Pósneoliberalismo as políticas sociais e o Estado democráti co Rio de Janeiro Paz e Terra 1995 476 ELSEVIER Curso de Ciência Política BAKUNIN Michael A Textos anarquistas Porto Alegre LPM 2006 BOITO JR Armando A burguesia no governo Lula Revista Crítica Marxis ta Rio de Janeiro n 21 p 5276 2005 ESPINGANDERSEN Gosta The Three Worlds of Welfare Capitalism Nova Jersey Princeton University Press 1990 HARVEY David A condição pósmoderna13 ed São Paulo Loyola 1992 HOBBES Thomas Leviatã ou Matéria forma e poder de um estado eclesiástico e civil Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva 3 ed São Paulo Abril Cultural 1983 Col Os Pensadores HOBSBAWM Eric A era dos extremos São Paulo Companhia das Letras 1995 KROPOTKINE Pedro A conquista do pão Rio de Janeiro Ed da Organização Simões 1953 LOCKE John Segundo Tratado sobre o Governo Tradução de Anoar Aiex e E Jacy Monteiro 3 ed São Paulo Abril Cultural 1983 Col Os Pensado res LUPERFOY Steven org The possibility of Knowledge Nozick and His Cri tics Nova Jersey Rowman Littlefi eld Publishers 1987 MACPHERSON C B Teoria política do individualismo possessivo de Hobbes até Locke Rio de Janeiro Paz e Terra 1979 MANDEL Ernest A crise do capital os fatos e sua interpretação marxista Campinas Editora da Unicamp 1990 MARX K O capital crítica da economia política São Paulo Victor Civita 1867 1983 v 1 tomo 2 capítulo 24 MÉSZÁROS I O século XXI socialismo ou barbárie São Paulo Boitempo 2003 Para além do capital rumo a uma teoria da transição São Paulo Boitempo 2002 MIGUEL Luis Felipe Sorteios e representação democrática Lua Nova n 50 2000 p 6996 A democracia domesticada bases antidemocráticas do pensamento democrático contemporâneo Dados v 45 n 3 Rio de Ja neiro 2002 MORAES W S Um capítulo esquecido da História do Direito a forma ção do capitalismo e uma contradição interna dos Direitos Humanos In GUERRA S BUZANELLO J C orgs Direitos humanos uma abordagem interdisciplinar Rio de Janeiro Freitas Bastos 2007 477 Capítulo 17 Estado mínimo contra a fase histórica camaleônica do Estado capitalista Wallace dos Santos de Moraes Empresariado industrial e Direito do Trabalho a partir do re ferencial teórico proposto por Poulantzas Ensaio elaborado para apre sentação no XII Encontro Regional de História ANPUHRio entre dias 14 e 18 de agosto de 2006a na Universidade Federal Fluminense UFF Campus do Gragoatá Niterói RJ Notas introdutórias para o estudo da História do Direito do Trabalho no Brasil Trabalho apresentado no II Encontro Brasileiro de His tória do Direito realizado na UFF entre dias 20 e 24 de agosto de 2006b O lugar conceitual da propriedade no Segundo Tratado de Governo Dissertação apresentada ao Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro IUPERJ como requisito parcial para a obtenção do grau de mestre em Ciência Política 2003 MORRESI S D Robert Nozick e o liberalismo fora do esquadro Lua Nova São Paulo n 5556 2002 NOZICK Robert Philosophical Explanations Harvard Harvard University Press 1981 Anarquia Estado e Utopia Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1974 1991 The Nature of Rationality Princeton University Press 1993 Meditaciones sobre la vida 1989 Barcelona Gedisa 1997 Interview with Robert Nozick Laissez Faire Books 24 de jan 2002 OCONNOR James USA a crise do Estado capitalista Rio de Janeiro Paz e Terra 1977 PAUL Jeffrey org Reading Nozick Essays on Anarchy Satet and Utopia Oxford Basil Blackwell 1982 PETRAS J Os fundamentos do neoliberalismo No fi o da navalha crítica das reformas neoliberais de FHC OURIQUES N D RAMPINELLI J A Orgs São Paulo Xamã 1997 POLANYI Karl A grande transformação Rio de Janeiro Campus 2000 POULANTZAS N Poder político e classes sociais do Estado capitalista Porto Portucalense 1971 As classes sociais no capitalismo de hoje Rio de Janeiro Zahar Editores 1975 O Estado o poder o socialismo Rio de Janeiro Graal 2000 PURDY J S The Libertarian Conceit The American Prospect n 35 1997 478 ELSEVIER Curso de Ciência Política ROUSSEAU Jeanjacques Discurso sobre a origem e os fundamentos da desi gualdade entre os homens Tradução de Lourdes Santos Machado 3 ed São Paulo Abril Cultural 1983 Col Os Pensadores SAES Décio Cidadania e capitalismo uma crítica a concepção liberal de cidadania Revista Crítica Marxista n 16 São Paulo Boitempo 2003 WACQUANT Loic Punir os pobres a nova geração da miséria nos Estados Uni dos 2 ed Rio de Janeiro Revan 2003 WOLKMER Antônio Carlos História do Direito no Brasil Rio de Janeiro Fo rense 2005 Butter Lamb 1 Descreva o contexto de elaboração da obra de Robert Nozick R a obra foi elaborada em 1974 buscando frear movimentos autônomos de trabalhadores É uma obra que confronta toda a tradição de pensadores que focam na noção de justiça distributiva 2 Aponte os pressupostos que guiam o desenvolver das teses de Nozick R para chegar às suas teses o autor recorreu metodologicamente a quatro postulados centrais a teoria da mão inivisível a teoria do estado de natureza para justificar a existência do estado a teoria do individualismo metodológico e a desigualdade econômica e social como um valor positivo 3 Ao descrever suas teses Nozick filiase a uma determinada ideologia política Apontea e descreva suas principais ideias R Robert Nozick é libertário Defende a liberdade como principio central Apoia a ideia de um governo limitado quanto aos poderes direitos individuais livre mercado democracia etc 4 Aponte a principal característica distintiva do Estado capitalista para os demais escravista e feudal R a contraprestação no caso o salário Escravos não recebiam salários e podiam ser castigados caso não trabalhassem ou fizessem algo errado No sistema feudal os trabalhadores também não recebiam salários porém recebiam um espaço de terra para sobreviverem e davam grande parte da produção ao senhor feudal como pagamento mas não eram castigados Já no capitalismo o trabalhador recebe o salário e também não pode ser castigado 5 Explique o processo que faz com que o Estado Capitalista abandone sua postura de não intervenção no mercado R Esse processo está relacionado com o Estado camaleão onde os trabalhadores pressionam o Estado capitalista a garantir melhores condições de vidatrabalho e o Estado cede assumindo novas posturas como a intervenção no estado como forma de controle desses trabalhadores 6 Qual o papel dos trabalhadores na mudança de fase do Estado R eles são fundamentais para a luta de classes pois o Estado é cedente ou seja à medida que os trabalhadores se organizam e passam a contestar o capitalismo e concomitantemente reivindicar direitos o Estado entende que essa é a melhor forma de manter a população sem conflitos é concedendo alguns direitos Isso faz com que o Estado mude de fase constantemente 7 Descreva o significado de Estado mínimo R Estado mínimo significa que o Estado deve encontrar limites em seu próprio poder Deve se abster de intervir em determinados assuntos que pertencem tão somente a vontade particular se limitando à proteção de seus cidadãos e ao cumprimento de leis para isso apenas 8 Qual o papel de meios redistributivos na sociedade para a teoria de Nozick R os meios redistributivos na sociedade para Nozick são ilegítimos pois de acordo com ele nenhum Estado por mais poderoso ou extenso que o mínimo é legitimo ou justificável porque simplesmente fere os direitos dos indivíduos principalmente se tem meios ou objetivos redistributivos ou seja de obrigar alguma pessoa a contribuir por algo que gere o bemestar de outrem 9 Explique a relação das ideias de Nozick com as do anarquismo clássico R as ideais de Nozick se relacionam com o anarquismo ao passo em que o anarquismo é uma ideologia política que se opõe a todo tipo de hierarquia e dominação As ideias de Nozick são baseadas exatamente nisso por isso a defesa tão profunda ao Estado mínimo 10 Disserte sobre a relação entre positivismo jurídico liberalismo e capitalismo R Positivismo Jurídico é uma corrente da filosofia do direito que procura reduzir o Direito apenas àquilo que está positivado ou seja que está na lei e utilizar um método científico para estudálo O positivismo crê no progresso do sistema capitalista e nos benefícios gerados pela industrialização O Liberalismo é uma filosofia política e moral baseada na liberdade consentimento dos governados e igualdade diante da lei Está de mãos dadas com o capitalismo pois a base do mesmo é a livre concorrência base fundamental do liberalismo Como podemos observar os três se complementam o positivismo se limitando a lei o liberalismo se ligando a liberdade e livre concorrência e o capitalismo que nada mais é do que a materialização de tudo isso
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CURSO DE CIÊNCIA POLÍTICA GRANDES AUTORES DO PENSAMENTO POLÍTICO MODERNO E CONTEMPORÂNEO Preencha a ficha de cadastro no final deste livro e receba gratuitamente informações sobre os lançamentos e as promoções da Elsevier Consulte também nosso catálogo completo últimos lançamentos e serviços exclusivos no site wwwelseviercombr CURSO DE CIÊNCIA POLÍTICA GRANDES AUTORES DO PENSAMENTO POLÍTICO MODERNO E CONTEMPORÂNEO CIPBrasil Catalogaçãonafonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros RJ Curso de ciência política grandes autores do pensamento político e contemporâneo autores Adolfo Wagner et al organizadores Lier Pires Ferreira Ricardo Guanabara Vladimyr Lombardo Jorge prefácio Candido Mendes de Almeida Rio de Janeiro Elsevier 2010 Inclui bibliografia ISBN 9788535231618 1 Ciência política I Ferreira Lier Pires II Guanabara Ricardo III Jorge Vladimyr Lombardo IV Wagner Adolfo 083308 CDD 320 CDU 32 C986 2010 Elsevier Editora Ltda Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei no 9610 de 1921998 Nenhuma parte deste livro sem autorização prévia por escrito da editora poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados eletrônicos mecânicos fotográficos gravação ou quaisquer outros Copidesque Livia Maria Giorgio Revisão Gráfica Maria da Gloria Silva de Carvalho Editoração Eletrônica SBNigri Artes e Textos Ltda Elsevier Editora Ltda Conhecimento sem Fronteiras Rua Sete de Setembro 111 16o andar 20050006 Centro Rio de Janeiro RJ Brasil Rua Quintana 753 8o andar 04569011 Brooklin São Paulo SP Brasil Serviço de Atendimento ao Cliente 08000265340 sacelseviercombr ISBN 9788535231618 Nota Muito zelo e técnica foram empregados na edição desta obra No entanto podem ocorrer erros de digitação impressão ou dúvida conceitual Em qualquer das hipóteses solicitamos a comunicação ao nosso Serviço de Atendimento ao Cliente para que possamos esclarecer ou encaminhar a questão Nem a editora nem o autor assumem qualquer responsabilidade por eventuais danos ou perdas a pessoas ou bens originados do uso desta publicação Dedicatórias Para Vera Pimenta Miriam Ferreira e Lier Pires Ferreira Neto que o consórcio entre o amor e a razão seja o balizador maior de nossas vidas Lier Pires Ferreira Para Rafaela Guanabara e todos os meus alunos e exalunos Ricardo Guanabara Para meus pais Luzia e José pelo que sou hoje Vladimyr Lombardo Jorge HIV or other sexually transmitted infections after birth Agradecimentos Para Heloyza Menandro e Geraldo Fragoso mãos amigas e braços fortes que me suportaram quando quase tudo se fez ausência Lier Pires Ferreira A Christiane Romêo cujo apoio vontade e perseverança ajudaram a tornar possível esta obra e aos amigos de verdade sempre presentes nos momentos difíceis Ricardo Guanabara Aos que sempre acreditarem em mim Vladimyr Lombardo Jorge Helping Babies Survive Os Autores Lier Pires Ferreira Doutor em Direito Internacional UERJ Mestre em Relações Internacionais PUCRio Bacharel em Direito UFF Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais UFF Professor advogado e consultor jurídico e educacional Palestrante em diferentes eventos no Brasil e no exterior Autor do Curso de Direito Internacional Privado 2 ed 2008 Direitos Humanos e Direito Internacional 2006 Direito Internacional e as novas Disciplinarizações 2006 2a tir O estrangeiro no Brasil 2005 e Estado globalização e integração regional 2003 dentre outras obras Contato lierrioigcombr Ricardo Guanabara Doutor e Mestre em Ciência Política pelo IUPERJ Graduado em Ciências Sociais pela UFF e em Direito pela PUCRio Professor do IBMECRJ e da UCAMCentro Tem experiência nas áreas de Ciência Política e Direito com ênfase em Direito Constitucional Atua principalmente nos seguintes temas Direito Constitucional Teoria Política Teoria do Estado Historia Política e Direitos Fundamentais Contato guanabarahotmailcom Vladimyr Lombardo Jorge Doutor e Mestre em Ciência Política pelo IUPERJ Graduando em Ciências Sociais pela Uni versidade Federal Fluminense UFF Professor adjunto de Ciência Política da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro UFRRJ Contato vljorgeuolcombr Adolfo Wagner Doutorando do Programa de PósGraduação da Faculdade de Serviço Social do Centro de Ciências Sociais da UERJ Mestre em Ciência Política pela UFRJ Pesquisador do Programa de Estudos de América Latina e Caribe PROEALCCCSUERJ Professor Assistente da CEFET Química Unidade Maracanã Contato adolfowbighostcombr Aparecida Maria Abranches Mestre em Sociologia pelo IUPERJ e Doutora em Ciência Política pelo IUPERJ Professora adjunta de Ciência Política da Univerdidade Federal Rural do Rio de Janeiro Contato pareabranchesyahoocombr Christiane Itabaiana Martins Romêo Doutora e Mestre em Ciência Política pelo IUPERJ Graduada em Ciências Sociais pela UFF e Direito pela PUCRio Professora Adjunta do IBMECRJ Contato christianeibmecrjbr Douglas Ribeiro Barboza Doutorando e Mestre em Serviço Social pela CAPESUERJ Bolsista e Pesquisador associado do Programa de Estudos de América Latina e Caribe PROEALCCCSUERJ Contato douglasbarbozayahoocombr Eduardo de Vasconcelos Raposo Doutor em Ciências Políticas tendo estudado no IUPERJ e no Instituto de Estudos Políti cos de Paris IEP para onde retornou nos meses de dezembro de 1998 e janeiro de 1999 na condição de professor convidado Trabalhou por nove anos no CPDOCFGV Desde 1990 é professor e pesquisador do Departamento de Sociologia e Política da PUCRio onde foi diretor coordenando atualmente seu programa de PósGraduação em Ciências Sociais Contato raposopucriobr Fernando LattmanWeltman Doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro IUPERJ professor e pesquisador do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas CpdocFGV Contato fernandolattmanweltmanfgvbr Gisele Silva Araújo Mestre e Doutora em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janei ro IUPERJ Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ e Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro UERJ Atualmente é Professora Adjunta de Sociologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro UNIRIO Professora de Filosofi a do Direito e Teoria Política da Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro UERJ e Pesquisadora bolsista do Setor de História da Fundação Casa de Rui Barbosa FCRB Suas atividades têm como temas prioritários Teo ria Sociológica Teoria Política Teoria do Direito Teoria Constitu cional Pensamento Social e Político Brasileiro e Sociologia do Direito Contato gssaraujoyahoocombr Leonardo Carvalho Braga Doutorando e Mestre em Relações Internacionais pelo IRIPUCRio Graduado em Rela ções Internacionais pela UNESA Desenvolveu sua dissertação de mestrado sobre a justiça em John Rawls e as relações internacionais com o título de A justiça internacional e o dever de assistência no Direito dos Povos de John Rawls Professor na graduação e na especialização em Relações Internacionais da La SalleRJ Institutos Superiores Professor na graduação em Re lações Internacionais da Universidade Estácio de Sá Contato leonardobragahotmailcom Marcelo da Costa Maciel Doutor em Ciência Política e Mestre em Sociologia pelo IUPERJ Professor adjunto da Uni versidade Federal Rural do Rio de Janeiro UFRRJ Contato marcelocmacielbolcombr Paulo M dAvila Filho Doutor e Mestre em Ciência Política pelo IUPERJ Bacharel em História com especializa ção em História da Filosofi a pelo IFCSUFRJ Coordenador da Área de Ciência Política do Departamento de Sociologia e Política da PUCRio onde é professor e pesquisador do Programa de Graduação e de Pósgraduação em Ciências Sociais Contato pdavilafrdcpucriobr Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco Doutorando em Ciência Política pelo IUPERJ Mestre em Teoria do Estado e Direito Cons titucional pela PUCRio Professor de Sociologia Jurídica do Departamento de Direito da PUCRio Contato pvillasboasjurpucriobr Rafael Rossotto Ioris Doutorando em História pela Universidade Emory nos EUA Mestre em Relações Interna cionais pela UnB Bacharel em Ciências Sociais pela UFRGS Professor de Relações Inter nacionais do IBMEC e do Centro Universitário Metodista no Rio de Janeiro Autor do livro Culturas em choque a globalização e os desafi os para a convivência multicultural 2007 Contato riorisyahoocom Ricardo Ismael Doutor e Mestre em Ciência Política pelo IUPERJ Professor e pesquisador do Departamento de Sociologia e Política da PUCRio respondendo pela Coordenação de Graduação e integrando o corpo docente do Programa de PósGraduação em Ciências Sociais Autor do livro Nordeste A força da diferença Os impasses e desafi os da cooperação regional 2005 Nos últimos anos tem trabalhado com os seguintes temas Federalismo e Desigualdades Regionais em Perspectiva Com parada Instituições Políticas e Avaliação de Políticas Públicas Estado Mercado e Desigualdade Social Contato ricismaelhotmailcom Rogerio Dultra dos Santos Doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro IU PERJ mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina UFSC e graduado em Direito pela Universidade Católica do Salvador UCSal Professor Adjunto do Departa mento de Direito Público da Universidade Federal Fluminense UFF Professor Permanente do Programa de PósGraduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminen se UFF Professor Colaborador do Programa de PósGraduação em Sociologia Política da Universidade Estadual do Norte Fluminense UENF e avaliador ad hoc na área do Direito do Ministério da Educação Coordenou a edição do livro Direito e Política Porto Alegre Síntese 2004 Contato rogeriodultrayahoocombr Silene de Moraes Freire Doutora em Sociologia pela USP Mestre em Serviço Social pela UFRJ Professora e procien tista da UERJ Pesquisadorabolsista de produtividade do CNPq e coordenadora do Progra ma de Estudos de América Latina e Caribe do Centro de Ciências Sociais da UERJ PRO EALCCCSUERJ Contato silenefreireigcombr silenefreiregmailcom Wallace dos Santos de Moraes Professor adjunto da Universidade Federal Fluminense Pesquisador senior do NEICIUPERJ e do INCTPPED Doutor e mestre em Ciência Política IUPERJ Bacharel e licenciado em História UFRJ Pósgraduado em História contemporânea UFF Contato moraeswsyahoocombr Yuri Kasahara Doutor em Ciência Política pelo IUPERJ e pesquisador associado do Centre for Development and the Environment University of Oslo Email para contato yurikasaharasumuiono Prefácio Curso de Ciência Política A nova busca do paradigma O presente trabalho inserese com originalidade no corpus deste conhe cimento e na nossa interrogação contemporânea É uma obra que de vez en tra resolutamente na pósmodernidade desta ciência Via de regra os escorços históricos detêmse no começo do século XX e mal chegam inclusive a Weber Deparamos agora uma análise ambiciosa que envolve não só a plena atualida de mas o faz de maneira interdisciplinar no reenvio entre as ciências sociais e especialmente a economia e os novos patamares do questionamento jurídico do fi m do século passado Atinge o paradigma indo ao campo dos reenvios na maior ambição entre modelos e alternativas Implica uma visão abrangente de nosso tempo que vai para além das facilidades da determinante liberal como fait accompli O escorço todo do capitalismo explícito aí está tal como a justiça sai da normatividade para encontrar uma axiologia já liberada das desconstruções e da preliminar epistemológica Cobraríamos ainda na senda tão rica a que leva a sua amplitude o estudo sobre Nicholas Luhmann exatamente na fronteira do repto à própria noção das totalidades do que seja a vis política emergente e a reifi cação da consciência contemporânea Atentese ainda à marca polêmica em que as temáticas via de regra amea çadas de redundância pedagógica discutem a refl exão de Maquiavel John Rawls ou Carl Schmitt pela sua premissa crítica versus o pensamento crista lizado destes autores em qualquer tratado desta estirpe Ao mesmo tempo a publicação indica a emergência de toda uma nova geração de especialistas que evidencia no seu matiz interdisciplinar a maturação dos estudos de pósgradu ação no país e especialmente no Rio de Janeiro XIV ELSEVIER Curso de Ciência Política Ao lado das universidades públicas aí está reiteradamente este contri buto dos autores do IUPERJ a entidade pioneira da pósgraduação da UCAM na comparação com a USP no quadro da excelência da ciência política e da sociologia na última trintena O propósito é ambicioso mas quiçá e no seu re mate com Robert Nozik privanos de uma teoria política já prospectiva da nova emergência do aparelho público contemporâneo Está em causa a facilidade com que se elimina na globalização contemporânea a viabilidade dialética ainda da alternativa a sancionar a tranquilidade com que um modelo econômico do iní cio do novo século teria já atingido a um status hegemônico Mais que Toni Negri a prospectiva fundante da teoria política emergente vai a Slavoj Zizek ou a Lucien Febvre mostrando o quanto a reifi cação da cons ciência contemporânea não bloqueia o nosso emergente processo social como civilização E se a história cauteriza hoje a dialética o chamado efeito paralaxe de Zizek tal não impede que a ideologia capitalista se exponha a uma cons tante desestabilização ideológica e à perenidade do pensamento maquiavélico Ou do que seja hoje não obstante todo o exorcismo da dialética a continuidade necessariamente fi nita das contradições suspensas no itinerário que se abre à recuperação da subjetividade contemporânea E por ela desta nova subversão em que as diferenças se resgatem como o primeiro dever de um mundo exilado da velha luta de classes da dominação colonial ou das pseudopedagogias da vindicação da autenticidade histórica Candido Mendes de Almeida Reitor da Universidade Candido Mendes Presidente do Fórum de Reitores do Rio de Janeiro Membro da Academia Brasileira de Letras Bibliografia RIBEIRO Renato Janine FILOSOFIA AÇÃO E FILOSOFIA POLÍTICA Re vista Brasileira de Ciências Sociais São Paulo v 13 no 36 1998 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS0102 69091998000100010lngptnrmiso Acesso em 15 Ago 2008 doi 101590S010269091998000100010 Introdução No Brasil a bibliografi a que versa sobre as bases do pensamento político e jurídico do Ocidente é por certo vasta e qualifi cada tendo se consolidado entre os anos 1970 e 1980 quando o mercado editorial passou a ofertar boas obras so bre o tema escritas tanto por renomados autores estrangeiros como por qualifi cados profi ssionais brasileiros No entanto um exame desse acervo bibliográfi co revela uma importante lacuna a maior parte dele inicia pelos próceres do pensa mento político moderno Maquiavel adiante e no máximo chega aos autores da transição do século XIX para o século XX tais como Marx que faleceu em 1883 e Weber morto em 1920 Didático e de bom padrão analítico esse acervo parece esquecer no entan to que os fundamentos teóricos da política e do direito na civilização ocidental não nasceram na Modernidade sendo certo também que não foram exauridos com as formulações de Marx e Weber Antes que os modernos fi rmassem as ba ses do absolutismo legitimando o fi m gradual do feudalismo autores antigos e medievais concorreram decisivamente para o arquétipo daquilo que em sentido lato se denomina teoria política Esses autores no entanto têm sido ignorados Igualmente ao longo do século XX intelectuais como Rawls e Nozick produzi ram obras que tais como os escritos de Hobbes ou Rousseau são basilares para a compreensão do pensamento políticojurídico Por isso no alvorecer do século XXI uma obra de cunho geral e didático que vise a concorrer positivamente para a formação de estudantes e para o aperfeiçoamento de profi ssionais oriun dos privilegiadamente do direito das relações internacionais e das ciências so ciais não pode deixar de considerar um arco históricocultural mais amplo sem olvidar a clareza expositiva e a densidade teórica das abordagens Essa é a razão essencial do Curso de Ciência Política que pelas mãos da Editora CampusElsevier ora ofertamos ao público leitor Com fulcro numa pers pectiva transdisciplinar este Curso vem colmatar a expressiva lacuna que existe na bibliografi a sobre o tema disponível no país Seu propósito é levar aos lei tores textos de qualidade escritos por professores que com diferentes forma XVI ELSEVIER Curso de Ciência Política ções e inserções profi ssionais lecionam cotidianamente a matéria em cursos de graduação e pósgraduação Nesse desiderato apresenta autores das eras anti ga moderna e contemporânea tidos como essenciais para a construção e para a compreensão do que hoje denominamos Ocidente Tratase pois de uma obra sobre autores clássicos que produzindo em épocas e contextos sociais tão díspares quanto Aristóteles Locke e Carl Schmitt nos permitem tomar cons ciência de nossa historicidade Curso de Ciência Política é portanto um livro sobre obras e autores clássi cos E são clássicos justamente porque apesar da distância cronológica da qual deles nos separamos continuam atuais posto que vitais para que possamos ela borar prática e refl exivamente o mundo em que vivemos bem como suas insti tuições políticas e jurídicas em particular o Estado Por isso reiteramos a com preensão de que um clássico é uma obra que lemos ou supomos devemos ler Ribeiro 1998 p 144 De fato conceitos e categorias como democracia libera lismo contrato social representação política e direitos humanos todos caros ao mundo ocidental não caíram do céu nem brotaram por acaso das entranhas da terra Por detrás de cada um deles como de tantos outros abordados neste Curso há uma refl exão profunda sobre questões que afl igiram e ainda afl igem diversas gerações exigindo de cada uma delas respostas adequadas não raro com profundos sacrifícios As respostas dadas pelos autores aqui elencados tornaramse clássicas porque foram capazes de ultrapassar os contextos nos quais foram produzidas e tornaramse referências que animaram não apenas as gerações subsequentes mas também outros povos e nações É absolutamente irrelevante perguntar se a forma como interpretaram o mundo e conceberam suas formulações está correta ou não O que importa é que acreditando nelas puseramse em ação e fi zeram tantos outros sonhar e agir Foi portanto guiados por essas preocupações que fi zemos a seleção dos autores que estão presentes neste Curso de Ciência Política Ratifi cando a pers pectiva de que as bases do pensamento político e jurídico do Ocidente foram lançadas bem antes do despontar da Era Moderna no primeiro capítulo aborda mos a enorme contribuição de autores da Antiguidade e da Idade Média Nesse capítulo propedêutico quatro autores gregos são comentados Sócrates Platão Aristóteles e Políbio o primeiro pensador a refl etir sobre a importância de uma forma de governo dividida para produzir estabilidade política dando assim origem à teoria do governo misto Do período medievo são focadas as obras de Santo Agostinho São Tomás de Aquino Guilherme de Ockham e Marcílio de Pádua Tratase como bem sabe o leitor de uma iniciativa rara se não inédita XVII Introdução nos manuais congêneres existentes no Brasil Os demais capítulos são dedica dos cada um deles a um autor das eras moderna e contemporânea Dentre os primeiros encontramse nesta ordem Maquiavel Thomas Hobbes John Locke Montesquieu e JeanJacques Rousseau Dentre os contemporâneos incluímos em sequência Edmund Burke Emmanuel Kant O Federalista obra magna de Alexander Hamilton James Madison e John Jay Alexis de Tocqueville John Stuart Mill Karl Marx Max Weber Carl Schmitt Frederich Hayek John Rawls e Robert Nozik alguns dos quais nunca ou quase nunca são contemplados em obras do gênero Desejamos pois que os leitores possam explorar no âmbito das salas de aulas e do exercício teórico e profi ssional todas as possibilidades que o presente Curso de Ciência Política pretende oferecer Esperamos honestamente que nossa pequena obra possa contribuir para a formação de jovens valores bem como des pertar em profi ssionais já estabelecidos o renovado gosto pela pesquisa e pela refl exão sobre os fundamentos da ciência política elemento essencial tanto para a compreensão de nossa realidade quanto para sua necessária transformação Os organizadores Lier Pires Ferreira Ricardo Guanabara Vladimyr Lombardo Jorge Bleeding vaginally after the first 20 weeks of pregnancy Do not waitcall your doctor right away It may be something serious This information was adapted from the American College of Obstetricians and Gynecologists May 2021 Presented by the Wisconsin Initiative for Perinatal Quality Care wwwwipqcorg For more information on bleeding or spotting during pregnancy visit wwwacogorg and search bleeding during pregnancy Introdução à 2a edição A despeito dos avanços nos últimos anos ainda é muito difícil publicar no Brasil Essa difi culdade é tão ou mais signifi cativa quando se trata de uma área consolidada com a presença de autores renomados e obras já clássicas como é o campo da Ciência Política De fato como asseveramos na Introdução à 1a edição a bibliografi a sobre o tema no país é vasta e representativa tendo se consolidado entre os anos 1970 e 1980 Nesse quadro como explicar o êxito desse Curso de Ciência Política Há fatores objetivos que ajudam a explicar tal êxito Primeiramente há que se recordar que o exame das obras já editadas no Brasil sobre a trajetória do pensamento político e jurídico no Ocidente tendo como eixo a linha de autores revela que a maior parte delas inicia pelos clássicos do pensamento político mo derno como Maquiavel e Hobbes e no máximo chega aos autores da transição do século XIX para o século XX tais como Marx ou Weber Esquecem no entan to que os fundamentos teóricos da política e do direito não nasceram na Mo dernidade e não tiveram fi m com Marx ou Weber Antes dos modernos autores do mundo antigo e medieval fi rmaram as bases da teoria política e ao longo do século XX pensadores como Rawls e Nozick produziram obras que tais como os escritos de Locke ou Montesquieu são fundamentais para a compreensão do pensamento político e jurídico Nosso Curso de Ciência Política acertou assim ao compreender que uma obra de cunho geral e didático voltada para a for mação de estudantes e para o aperfeiçoamento de profi ssionais jamais poderia deixar de considerar um arco históricocultural mais amplo sem abrir mão da clareza expositiva e da densidade teórica dos diferentes capítulos Outra questão essencial foi a seleção dos colaboradores Todos os coau tores são profi ssionais titulados e com efetiva presença em sala de aula São portanto profi ssionais que aliam sólida formação teórica e vasta experiência no magistério superior inseridos em algumas das mais qualifi cadas instituições de ensino superior do Rio de Janeiro e do Brasil XX ELSEVIER Curso de Ciência Política Por fi m há que se destacar a parceria com a Editora CampusElsevier Tratase de um dos maiores e mais qualifi cados grupos editoriais presentes no mercado brasileiro apto a produzir obras de excelência com ótimo padrão grá fi co difusão nacional e grande credibilidade junto a leitores e estudiosos Essas são as razões para a grande aceitação pelo público de nosso Curso de Ciência Política Em sua segunda edição ele continua preenchendo a expres siva lacuna que existe na bibliografi a sobre o tema levando aos leitores textos de qualidade escritos por professores qualifi cados e experientes que com suas abordagens permitem ao público tomar consciência de nossa historicidade Nessa segunda edição nosso Curso de Ciência Política também busca cor rigir algumas imperfeições contidas na edição anterior com vistas a facilitar a leitura e melhorar cada vez mais Desejamos pois que a obra continue contri buindo para a formação de jovens valores e renovando em profi ssionais já esta belecidos o gosto pela pesquisa e pelo estudo da teoria política Rio de Janeiro 30 de maio de 2010 Lier Pires Ferreira Ricardo Guanabara Vladimyr Lombardo Jorge Sumário Prefácio Curso de ciência política A nova busca do paradigma XIII Candido Mendes de Almeida Introdução XV Lier Pires Ferreira Ricardo Guanabara e Vladimyr Lombardo Jorge Introdução à 2a edição XIX Lier Pires Ferreira Ricardo Guanabara e Vladimyr Lombardo Jorge Capítulo 1 A contribuição do pensamento antigo e medieval para o desenvolvimento da Ciência Política 1 Marcelo da Costa Maciel Capítulo 2 Há vícios que são virtudes Maquiavel teórico do realismo político 25 Ricardo Guanabara Capítulo 3 A teologia política de Hobbes 49 Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco Capítulo 4 John Locke lei e propriedade 87 Vladimyr Lombardo Jorge Capítulo 5 Montesquieu a centralidade da moderação na política 125 Silene de Moraes Freire Adolfo Wagner e Douglas Ribeiro Barboza Capítulo 6 Jean Jacques Rousseau da inocência natural à Sociedade Política 147 Christiane Itabaiana Martins Romêo Capítulo 7 Edmund Burke a estética conservadora da arte política 185 Fernando LattmanWeltman XXII ELSEVIER Curso de Ciência Política Capítulo 8 Kant e o paradoxo da liberdade como obrigação moral 207 Rafael Rossotto Ioris Capítulo 9 Hamilton Madison e Jay os pressupostos teóricos do federalismo moderno 227 Ricardo Ismael Capítulo 10 Alexis de Tocqueville 18051859 o argumento liberal de defesa da liberdade 251 Lier Pires Ferreira Capítulo 11 John Stuart Mill a luta contra a opressão 291 Aparecida Maria Abranches Capítulo 12 Leituras de Marx 321 Paulo M dAvila Filho Capítulo 13 O pensamento político de Max Weber e as concepções weberianas da sociedade brasileira 353 Eduardo de Vasconcelos Raposo Capítulo 14 O Constitucionalismo antiliberal de Carl Schmitt democracia substantiva e exceção versus liberalismo kelseniano 371 Gisele Silva Araújo e Rogerio Dultra dos Santos Capítulo 15 Hayek e os benefícios da liberdade individual 401 Yuri Kasahara Capítulo 16 A justiça em John Rawls da relação entre os homens às relações internacionais 417 Leonardo Carvalho Braga Capítulo 17 Estado mínimo contra a fase histórica camaleônica do estado capitalista um estudo da teoria neoliberal de Robert Nozick 451 Wallace dos Santos de Moraes Capítulo 1 A contribuição do pensamento antigo e medieval para o desenvolvimento da ciência política Marcelo da Costa Maciel1 11 Introdução A importância perene da filosofia política A atividade teórica é muito mais uma forma de poíesis criação do que de mímesis imitação da assim chamada realidade Tratase da elaboração mental da realidade pela qual esta se apresenta como algo dotado de sentido para o homem No trabalho teórico o discurso racional é a ferramenta indispensável pois é por meio dele que se pretende codifi car e transmitir os resultados de uma infi ndável investigação dos fenômenos Partindo de tais premissas podemos entender a história do pensamento político como algo mais do que uma sucessão de modos de compreensão do mundo político Cada teoria política ao elaborar uma imagem acerca do que é Doutor em Ciência Política e Mestre em Sociologia pelo IUPERJ Professor Adjunto da Uni versidade Federal Rural do Rio de Janeiro Contato marcelocmacielbolcombr 2 Curso de Ciência Política ELSEVIER ou deveria ser o mundo realiza de fato uma construção intelectual da realida de Contudo as fabulações da teoria política são geralmente assumidas como descrições e avaliações de contextos reais Com isso ressaltase o seu caráter mimético e correse o risco de perder de vista o seu caráter poiético ou seja a sua dimensão criativa e propositiva Podemos considerar a produção teórica no campo da política como a fa bricação sempre em contexto polêmico de discursos argumentativos que pre tendem evidenciar as condições reais da natureza humana e da vida em socieda de para com base nelas prescrever modos de organização e exercício do poder político Porém não podemos esquecer que tais discursos necessariamente par tem de pressupostos Estes atuam como princípios para a construção e verifi cação dos discursos não sendo eles próprios verifi cáveis posto que não são diretamente inferidos da experiência mas fundamentados pela argumentação fi losófi ca Isso faz de toda teoria política uma espécie de fi cção não no sentido de fantasia ou devaneio mas de construção de mundos possíveis pelo pensa mento e pelo discurso A imensa diversidade de paradigmas na história do pensamento políti co é uma evidência de que os mesmos são obras de verdadeiros inventores de mundos sociais possíveis e não o resultado de uma imediata e inequívoca observação do mundo Cada paradigma é um modelo para a formulação de teo rias as quais como dissemos não se referem simplesmente àquilo que aparece mas contêm proposições sobre o que deveria existir Assim a refl exão política ao pretender descreverreproduzirimitar a realidade empírica fertiliza a nos sa percepção dessa realidade com proposições ou antecipações que uma vez incorporadas à vida social passam a constituir a própria realidade Ao longo do tempo a refl exão política tem sido produtora de formas de comportamento e organização políticas uma vez que muitos de seus pressupostos e conceitos têm sido incorporados ao mundo das instituições moldando nossa representação comum e ordinária do mundo O desenvolvimento da ciência política como uma ciência empírica jamais pôde dispensar a atividade de refl exão teórica porque muitos dos objetos que a ciência tem investigado constituem de fato o resultado de um processo de sedimentação daquilo que a teoria enquanto poíesis contribuiu para criar Por conseguinte podemos afi rmar que uma ciência política emancipada da fi losofi a política é a rigor impossível já que a fi losofi a consiste numa espécie de fonte da qual emanam as dimensões da realidade consideradas relevantes isto é aquelas que importam à análise científi ca Não é por outra razão que continuamos lidan 3 Capítulo 1 A contribuição do pensamento antigo e medieval Marcelo da Costa Maciel do com os chamados clássicos do pensamento político aqueles fabuladores que nos ensinaram a fazer determinadas perguntas sobre o mundo político Fo ram eles os criadores de uma tradição que não é inerte e que não nos interessa hoje apenas como objeto de uma história das ideias políticas mas como campo dinâmico e polêmico de formulação e compreensão da realidade Em um livro que pretende discutir os fundamentos da teoria política parecenos bastante razoável que o primeiro capítulo se dedique à gênese do pensamento político na Grécia antiga A tradição geralmente localiza o nasci mento da disciplina na época clássica sendo Platão e Aristóteles aqueles que estabeleceram seus primeiros alicerces Não há dúvidas quanto a isso Porém consideramos relevante sublinhar o impacto que por um lado a atividade fi lo sófi ca de Sócrates e por outro o desafi o da Sofística tiveram sobre aqueles que pretenderam fazer da política uma ciência Além disso vale a pena destacar já no contexto do helenismo uma importante contribuição para a consolidação da política como campo de refl exão Tratase do pensamento de Políbio séc II aC com sua teoria cíclica das formas de governo e sua defesa do governo misto Este capítulo pretende também contribuir para o preenchimento de uma injustifi cável lacuna na história do pensamento político qual seja a refl exão so bre a importância da fi losofi a medieval para a formação do pensamento político moderno O reconhecimento do caráter eminentemente cristão da fi losofi a me dieval não deve levar a corroborar uma imagem distorcida e hoje já felizmente desacreditada de que a Idade Média tenha sido do ponto de vista intelectual uma era de trevas Pelo contrário o incontornável diálogo entre fi losofi a e teo logia promovido pelo pensamento medieval produziu imensa variedade de teo rias sobre rigorosamente todos os campos da realidade dentre eles a políti ca Não se pode interpretar o período medieval como uma espécie de intervalo que interrompe a tradição iniciada na Antiguidade pagã sendo esta retomada apenas a partir de Maquiavel no contexto do Renascimento Mostraremos o lu gar de destaque que as questões relativas à política ocuparam nas refl exões de fi lósofos medievais primeiro aqueles que se tornaram cada qual em seu tempo os portavozes ofi ciais do pensamento cristão Santo Agostinho e São Tomás de Aquino em segundo lugar um pensador cristão considerado heterodoxo Guilherme de Ockham e fi nalmente um autor que refutou abertamente a in terferência da Igreja sobre o poder secular realizando ainda no século XIV a defesa de um Estado laico e de um conceito essencialmente político de soberania Marsílio de Pádua De todos os pensadores que serão comentados neste capítulo inicial pre tendese destacar suas mais relevantes contribuições para uma refl exão sobre a 4 Curso de Ciência Política ELSEVIER política É claro que não estaremos tratando exclusivamente de teorias políticas pelo menos no sentido moderno do termo mas de debates fi losófi cos em que se colocaram temas e problemas que acompanham a história do pensamento político na modernidade tais como a natureza da política a conceituação do po der político as modalidades de organização e exercício desse poder as relações entre o poder e a sociedade entre o Estado e o indivíduo e entre a lei natural e a liberdade humana Temos a certeza de que a apresentação do pensamento político sob uma perspectiva histórica que remonta às suas origens antigas e me dievais colaborará para uma compreensão mais rica da nossa disciplina pois foi através do diálogo com este lastro fi losófi co que ela se constituiu e consolidou como tradição intelectual 12 A política no pensamento antigo 121 Sócrates e os sofistas Vários elementos de originalidade presentes no pensamento de Sócrates justifi cam o papel de divisor de águas que ele ocupa na história da fi losofi a anti ga Não é necessário aqui sublinhar a novidade do seu método de fi losofar por ele concebido como uma busca obstinada e rigorosa pelo conceito nem tampou co a sua concepção da fi losofi a como um modo de vida posição com a qual se manteve o tempo todo comprometido e que ao fi nal lhe custou a própria vida O que mais nos interessa no contexto de uma avaliação do legado do pensamen to antigo para a constituição da Ciência Política é a radical mudança que Sócra tes imprime na direção da pesquisa fi losófi ca ao fazer do mundo humanamente construído o mundo do ethos objeto de uma discussão racional Sem dúvida a atividade fi losófi ca de Sócrates dedicada à incessante in vestigação racional dos fundamentos do agir humano sobretudo do agir na ci dade abriu o caminho para o nascimento não só da Ética como da Filosofi a Política pois a sua ciência tal como ele próprio a defi niu diante de seus acusa dores consistia na ciência do homem Sua preocupação nunca fora perscrutar os mistérios que residiam sob a terra e nos céus mas levar o homem ao conheci mento de si mesmo Nesse sentido Sócrates é precursor de Aristóteles pois an tes de este último estabelecer a Ética como a ciência da práxis humana Sócrates formula uma concepção da alma psiquê como a sede da consciência moral de cada indivíduo e um conceito de virtude aretê como o resultado do autoconhe cimento donde resulta que o homem bom é aquele que mantém desperta sua autoconsciência e age de acordo com suas exigências Porém esse apelo socrático à autoconsciência trouxe o perigo da intro dução da dúvida acerca dos fundamentos morais legais e religiosos que orien 5 Capítulo 1 A contribuição do pensamento antigo e medieval Marcelo da Costa Maciel tavam a conduta humana e sustentavam as instituições da cidade Com Sócra tes nasce o projeto de uma ciência dos valores humanos na qual o sentido dos costumes e das leis era algo a ser examinado com os rigores da razão Talvez a fi losofi a política de Platão tenha sido a primeira tentativa de execução de tal projeto mas é Sócrates o iniciador do trabalho de escrutínio fi losófi co no campo moral e político Tal procedimento realizado com incomparável ironia e domínio da pala vra certamente abalou os preconceitos sociais da democracia ateniense tendo sido considerado uma ameaça devido à infl uência que poderia exercer princi palmente sobre os jovens Por isso Sócrates é acusado de corromper a juventude ateniense bem como de descrer das divindades e de ensinar aquilo que não sa bia Das três acusações talvez encontremos alguma pertinência na terceira mas apenas no sentido de que realmente ele não possuía um conjunto de verdades a serem transmitidas mas ensinava o exercício da dúvida como o único princípio para a obtenção da certeza De fato a contribuição de Sócrates para a formação do pensamento político não consiste em nenhuma doutrina ou mesmo esboço de doutrina sobre a pólis mas na introdução de uma postura investigadora e eminentemente crítica acerca das instituições sociais É imperioso salientar que em Atenas do século V aC o plano dos valores morais e políticos não despertou o interesse apenas de Sócrates mas também dos sábios nas artes da retórica e da oratória os sofi stas Não é difícil entender por que aqueles que dominavam o uso da palavra tenham dirigido a sua aten ção para o mundo das convenções humanas Na democracia ateniense o poder político absolutamente secularizado era exercido através de um processo de discussão entre os cidadãos no qual a argumentação racional era critério funda mental para a apresentação e avaliação das propostas relativas ao bem da cida de O discurso argumentativo tornouse então instrumento efi caz no processo decisório e os que podiam pagar pelas valiosas lições dos mestres da eloquência tornandose exímios oradores viam bastante ampliadas as suas possibilidades de persuadir a assembleia ecclesia infl uenciando sua decisão Foi grande a importância do movimento sofístico para o estabelecimento do mundo político como objeto de refl exão metódica Desvinculando o domínio do ethos do domínio da physis os sofi stas puderam fundamentar o conhecimento das coisas humanas na linguagem Esta porém é de certa forma dessacraliza da posto que as palavras não são mais vistas como a expressão das coisas em si mesmas mas como nada mais que convenções humanas Assim surge um duplo humanismo o homem e o mundo por ele criado tornase o centro das 6 Curso de Ciência Política ELSEVIER preocupações dos sábios e o ponto de vista humano o fundamento para a elabo ração de um discurso racional sobre esse universo O humanismo ontológico e epistemológico dos sofi stas foi responsável por uma concepção extremamente relativista dos valores éticos políticos e re ligiosos que perdem o caráter absoluto e universal à medida que se acentua o seu caráter convencional e circunstancial Tal relativismo expresso de modo eloquente no famoso fragmento de Protágoras de Abdera O homem é a medida de todas as coisas tem raízes no próprio contexto político da Atenas democrática do século V aC no qual a medida humana de fato havia adquirido singular importância uma vez que os cidadãos faziam e alteravam as leis por meio de discussões públicas que confrontavam diferentes interesses e pontos de vista Em resumo podemos afi rmar que assim como o pensamento socráti co a corrente sofística representou verdadeira revolução cultural orientando os caminhos da refl exão fi losófi ca posterior O interesse pelo homem em lugar da physis universal invertendo a ordem de preocupações da geração fi losófi ca anterior o questionamento radical e demolidor de preconceitos tradicionais e o hábil domínio do discurso argumentativo são certamente traços que aproxi mam Sócrates e os sofi stas e que revelam por que o contexto intelectual e político de Atenas no século V aC foi responsável pela gênese do pensamento político ocidental Não queremos com isso todavia sugerir uma total identifi cação entre o humanismo socrático e o sofístico já que a pretensão de atingir a verdade e o compromisso de obediência aos deuses declarados pelo primeiro se afastam bastante da tendência ao ceticismo epistemológico e da indiferença religiosa presentes no segundo 122 Platão O interesse de Platão pelos assuntos políticos está enraizado na sua pró pria experiência de vida particularmente na sua relação com Sócrates Ter pre senciado o processo de julgamento e condenação do mestre foi com certeza um fato que deixou repercussões profundas sobre seu projeto fi losófi co Uma das mais importantes dessas repercussões é a centralidade assumida pela dimensão política em seu pensamento Isto porque a condenação de Sócrates aos olhos de Platão revelava até que ponto podem chegar os males consequentes de uma ina dequada organização do poder político manifestava quão injusta pode ser uma cidade quando suas instituições jurídicopolíticas estão apartadas do verdadeiro conhecimento enfi m era uma evidência concreta da necessidade urgente de se estabelecer uma relação entre fi losofi a e política por meio da qual o poder pu desse ser visto como uma espécie de corolário do saber 7 Capítulo 1 A contribuição do pensamento antigo e medieval Marcelo da Costa Maciel Por tudo isso podemos dizer que é a partir de Platão que o mundo da pólis é assumido defi nitivamente como parte integrante da agenda fi losófi ca Com relação a Platão podemos ir mais longe afi rmando ser a política o ponto culmi nante e a síntese de todos os seus esforços fi losófi cos Se como vimos na seção anterior Sócrates e os sofi stas foram responsáveis pela eleição do plano das con venções humanas como campo de refl exão é Platão o primeiro grande fi lósofo a elaborar de modo sistemático uma fi losofi a política Nela Platão não apenas descreve e avalia os modos de organização política então existentes mas acima de tudo constrói à luz da razão um projeto político Tal projeto contudo não é nem jamais poderia ser exclusivamente político mas sim políticopedagógico já que depende de um adequado aprendizado e visa em última instância a con dução dos homens à Verdade e ao Bem A refl exão política de Platão como de resto todo o seu sistema fi losófi co tem como base a sua teoria do conhecimento exposta de modo alegórico no famoso mito da caverna É desnecessário reproduzirmos aqui o relato em que Platão descreve a busca do homem pela Verdade a qual culmina com a aquisi ção da Ideia do Bem É preciso apenas ressaltar que o conhecimento verdadeiro episteme só é atingido mediante esforço e deliberada atitude de estranhamento com relação a tudo o que se assenta na opinião comum doxa Tratase de fato de um processo de conversão do olhar para o mundo que passa a ser encara do como um universo de aparências encobrindo a verdadeira realidade que se situa no plano inteligível O mais importante para o nosso propósito que é demonstrar a contribuição de Platão para a história do pensamento político é sublinhar que para ele a Ideia do Bem simbolizada na alegoria pela fi gura do sol consiste no ápice do conhecimento e aquele que ao fi nal de um longo e árduo processo de ascensão ao mundo real consegue contemplála está apto a conduzir os outros homens no caminho da Verdade e a organizar a cidade segundo leis e instituições essencialmente boas e justas Assim a política passa a ser vista ela própria como um conhecimento inserido em um plano maior que exige a contemplação da verdadeira essência do Bem devendo o poder ser exercido como missão decorrente da aquisição da sabedoria e não por ambição ou desejo do poder pelo próprio poder Com base nesse ideal Platão realiza a crítica de diversos sistemas políti cos historicamente existentes inserindoos em uma visão cíclica marcada por uma inexorável tendência à corrupção Essa tendência à corrupção manifestase inevitavelmente porque aos olhos de Platão todos os modos de exercício do poder se desvencilhados do conhecimento que conduz ao Bem são imperfeitos e fadados a degenerar Além do saber não há outro fundamento para o poder 8 Curso de Ciência Política ELSEVIER político capaz de fazêlo escapar ao processo de geração e morte que caracteriza tudo o que é humano Isto porque para Platão os governos refl etem as carac terísticas dos homens que os conduzem e somente a contemplação do mundo inteligível permite ao homem transcender o domínio do perecível e elevarse pelo pensamento ao domínio da verdadeira realidade que é eterna e perfeita Donde se conclui que apenas uma aristocracia intelectual feita de homens que se tornaram perfeitos à medida que se tornaram sábios pode assegurar um go verno estável e essencialmente justo já que a justiça é uma virtude e como tal consequência do Bem que nada mais é que a outra face da Verdade A teoria cíclica das formas de governo exposta por Platão no livro VIII do diálogo A República é uma das primeiras tentativas de análise sistemática dos modos de organização e exercício do poder político na história do pensamento ocidental Platão começa defi nindo a timocracia ou timarquia como o governo caracterizado pela ambição de glórias e honras militares A cidade de Esparta na qual o poder estava nas mãos de uma aristocracia guerreira é um exemplo empírico dessa forma de governo Nela acentuase o caráter militar do Estado e ignorase a necessidade de que ele tenha um fundamento fi losófi co A tendência à corrupção é inevitável porque a glória militar é alcançada por meio de vitórias e conquistas e estas propiciam a acumulação de riquezas A elite no governo tornase também uma classe endinheirada que faz uso do poder para aumentar sua riqueza Assim é de esperar uma alteração no caráter original da timocracia e sua transição para a forma de governo conhecida como oligarquia Na oligarquia o poder é exercido pelos ricos e para os ricos Esse governo fundase na desigualdade econômica e acirra tal desigualdade uma vez que as leis visam em última instância atender aos interesses da minoria rica A massa dos pobres impossibilitada de interferir sobre o governo é explorada dentro da legalidade instituída pelos detentores do poder Tratase também de uma forma imperfeita ou corrompida de governo pois segundo Platão à medida que a riqueza se concentra decresce a virtude A camada governante interessa da apenas em preservar seus privilégios econômicos negligencia o saber único fundamento seguro para o exercício do poder político A oligarquia está fadada à decadência porque engendra as condições para uma rebelião dos pobres explorados contra os ricos no poder Os primeiros to mam consciência de que são maioria e que podem derrubar a minoria que os oprime Esta conturbação social faz cair a oligarquia e propicia o surgimento de outro regime qual seja a democracia De acordo com Platão a origem mais remo ta da democracia seria a revolta contra o governo oligárquico a qual conduziria à tomada do poder das mãos de uma minoria e sua transferência para um grande 9 Capítulo 1 A contribuição do pensamento antigo e medieval Marcelo da Costa Maciel número de indivíduos até então excluídos dele Uma vez derrubada a oligarquia instaurase um sistema no qual a maioria dos homens tem o direito de partici par das tomadas de decisão Convertemse eles de meros governados a quem cabe simplesmente obedecer à condição de cidadãos isto é partícipes da arena política O governo democrático do qual a pólis ateniense fornece o melhor exem plo também recebeu a crítica de Platão que o insere no ciclo de corrupção que abarca todos os governos não fundados sobre o conhecimento da Verdade A democracia orientase pela vontade da maioria dos cidadãos a qual não necessa riamente será a mais justa e adequada A participação de muitos na elaboração das leis não é garantia de sua perfeição já que o prérequisito para tanto seria a contemplação da Ideia do Bem o que exige longo processo de busca e aprendi zado A democracia institucionaliza e legitima o erro coletivo uma vez que uma multidão ignara tem o poder de decidir Para Platão o resultado do processo legal encaminhado contra Sócrates tornara patente o caráter imperfeito da de mocracia Além disso Platão traz à tona certas distorções a que a forma democráti ca de governo está sujeita A igualdade dos cidadãos na arena política é mera mente formal se entre eles as desigualdades econômicas propiciam um acesso diferenciado à educação sobretudo no que tange ao conhecimento das técnicas do discurso Platão tem em mira o privilégio desfrutado pelos indivíduos de classes abastadas que podem pagar caro pelas aulas de retórica e oratória mi nistradas pelos sofi stas não por outra razão considerados por ele mercadores do saber tendo assim maiores oportunidades de nos debates realizados nas assembleias fazer seus interesses particulares parecerem interesses gerais Não haveria portanto garantia de que as decisões tomadas pelo processo democrá tico seriam de fato as melhores para a cidade e não apenas para aqueles que sabiam manipular a assembleia por meio de um discurso persuasivo porém não comprometido com a Verdade Platão ressalta ainda os efeitos perniciosos da liberdade instaurada e fo mentada pela democracia O gosto pela liberdade se não acompanhado do senso de moderação que só a sabedoria pode proporcionar tende a se tornar radical e a pôr em xeque toda e qualquer relação de obediência como a do fi lho para com o pai a do jovem para com o mais velho e a do aluno para com o mestre A própria obediência à lei passa a ser vista como uma restrição à liberdade havendo por isso o risco de desordem social Platão no livro VIII de A Repú blica referindose ao governo democrático alerta para o fato de que da maior liberdade é que surge a maior servidão Também na democracia o poder político 10 Curso de Ciência Política ELSEVIER por não estar baseado no fundamento correto está destinado a corromperse e a engendrar uma outra forma imperfeita de governo sendo esta a pior de todas qual seja a tirania Segundo Platão a origem da tirania é a desordem resultante do regime democrático A aversão a toda forma de obediência e hierarquia levaria ao des prezo pela lei e ao enfraquecimento do governo Tal situação tenderia a se agra var dando lugar a uma completa desordem social ou anarquia Nesse contexto a tomada do poder por uma minoria fortemente interessada nele para a defesa de seus interesses é uma possibilidade sempre presente Por isso é natural que surja a fi gura do demagogo aquele que pretende restabelecer a ordem apresen tandose como protetor do povo contra a ameaça de instauração de uma oligar quia Ele recebe a adesão da massa e a conduz porque é visto por ela como o seu defensor Assim os indivíduos atendem às suas exigências de recolher impostos e formar exércitos Com isso esse líder se fortalece cada vez mais passando a explorar economicamente o povo e a eliminar aqueles que poderiam oferecer lhe resistência Quando o povo percebe o tipo de domínio ao qual se encontra submetido e se rebela conhece a verdadeira face do demagogo que é a de um tirano Este oprime abertamente o povo fazendo de todos escravos Com a descrição da origem e da natureza da tirania Platão conclui a sua exposição sobre as formas de governo que aparecem dispostas em uma suces são marcada pela inevitável tendência à corrupção É importante salientar que os governos degeneram porque são imperfeitos desde o seu fundamento Só o governo perfeito não estaria sujeito à corrupção pois seu alicerce é seguro Tal alicerce é o saber Porém não a ilusão de saber fornecida pela opinião vulgar sempre limitada às aparências e distante das essências O poder político cumpre a tarefa que lhe compete que é gerar o bem da cidade quando exercido por aqueles que conhecem a natureza mesma do bem pois só assim tal poder não se perverteria em mero instrumento de opressão ou de conquista de glória e riqueza 123 Aristóteles É com Aristóteles que o empreendimento fi losófi co assume o caráter de um projeto de sistematização de todos os campos do saber Por isso quase todas as disciplinas científi cas modernas consideramno o seu precursor Sem dúvida ele também exerce esse papel com relação à Ciência Política Apesar do pionei rismo de Sócrates e dos sofi stas ao introduzirem as questões éticas e políticas no debate fi losófi co e da importância de Platão ao mostrar que o saber deve conduzir o poder e que a perfeita organização da cidade é uma consequência 11 Capítulo 1 A contribuição do pensamento antigo e medieval Marcelo da Costa Maciel da busca pela Verdade foi Aristóteles que desenvolveu a concepção da Política como ciência autônoma isto é uma área de conhecimento que embora articu lada a outras tem o seu objeto e o seu fi m próprios Não é por acaso que ele é o autor do primeiro grande tratado sobre política na história do pensamento ocidental a obra A Política escrita em meados do século IV aC Aristóteles inicia a obra discutindo acerca da origem do Estado ou seja da sociedade política e revela que tal origem remonta a leis naturais O Estado teria um fundamento natural pois seria o resultado de um processo desencadeado por força da natureza Em primeiro lugar existe a atração natural entre os sexos com vistas à reprodução Essa atração responsável pela união do homem com a mulher gera uma primeira espécie de vínculo social que é o vínculo conjugal Esse vínculo se estabelece para a garantia da sobrevivência da prole e porque a cooperação entre homem e mulher permite satisfazer melhor as necessidades materiais Assim surge a primeira sociedade a família ou sociedade doméstica Segundo Aristóteles o homem seria um zoon politikon ou seja um animal político pois teria uma tendência natural à vida em sociedade Existiria na pró pria natureza humana um desejo de viver em sociedade responsável pela união de muitas famílias e a formação do pequeno burgo Essa associação assim como a família possui uma utilidade pois nela a cooperação entre os indivíduos se am plia e a divisão do trabalho permite o provimento das necessidades cotidianas Tais fatores são responsáveis pelo natural crescimento do burgo e pela for mação da pólis a cidade completa Esta se caracteriza pela autarquia isto é pela autosufi ciência econômica e pela necessidade de um governo ou constituição po lítica Em linguagem moderna podemos designála como Estado ou seja uma sociedade organizada que pressupõe a existência de um poder encarregado da elaboração e imposição de regras para a convivência social É exatamente esse modo de vida que segundo Aristóteles distingue o homem dos outros animais pois viver em uma sociedade política exige a capacidade de estabelecer distin ções de natureza moral Tais distinções que estabelecem o que é bom ou mau certo ou errado justo ou injusto não são dadas pela natureza mas instituídas por regras sociais e garantidas por meio da autoridade política Aristóteles está na raiz de uma concepção organicista do Estado segundo a qual este constitui um todo que dá sentido às suas partes integrantes De acor do com essa concepção os indivíduos são elementos da família e esta é parte do Estado o qual deve ser colocado acima das partes exatamente porque as contém O Estado seria um grande organismo de que os indivíduos seriam membros O membro só tem sentido como parte do organismo Assim o indivíduo não é um ser autônomo que se basta a si mesmo mas depende da totalidade social Esta 12 Curso de Ciência Política ELSEVIER precisa estabelecer uma certa ordem no convívio de muitos indivíduos e famí lias Daí a necessidade de um poder propriamente político O modo de exercício desse poder depende da organização própria de cada Estado A constituição política de cada povo defi ne quem está autorizado a par ticipar do poder isto é quem possui a virtude de cidadão Este termo não se refe re a todo e qualquer habitante da cidade mas àqueles que podem tomar parte na autoridade política não se encontrando simplesmente submetidos a ela As for mas de governo variam de acordo com a defi nição da classe dos cidadãos e do grau em que eles podem interferir sobre o exercício do poder político No livro III de A Política Aristóteles defi ne diferentes formas de governo classifi cando as como justas ou injustas O critério dessa classifi cação não consiste no número daqueles que participam do governo mas sim no interesse por este visado que deve ser o interesse geral e não o interesse de quem exerce a autoridade As sim há governos justos de um só de alguns ou de muitos cada qual podendo corromperse e originar governos injustos desde que se desviem do interesse geral A realeza é o governo no qual o poder político é exercido por um único in divíduo Porém é um governo justo porque visa o interesse geral e não apenas o interesse do governante Não se confunde com a tirania que é a forma injusta ou corrompida do governo de um só pois o tirano oprime seus governados e faz uso do poder apenas para o seu próprio benefício Outra forma de governo justo é a aristocracia isto é o governo de uma minoria ou elite Por defi nição a aristocracia reúne os melhores da sociedade aqueles que possuem a virtude do mando o que exige prudência e responsabili dade Essa camada de notáveis no poder seria encarregada da promoção do bem do Estado Todavia quando existe uma minoria no poder utilizandoo apenas para defender seus próprios interesses sobretudo os interesses econômicos já não se trata de uma aristocracia mas sim de sua forma corrompida que é a oli garquia um governo que não visa o bem da sociedade mas apenas o da classe que governa A república também é apresentada por Aristóteles como uma forma justa de governo Nela muitos desfrutam do status de cidadão e isso garante a par ticipação direta nas tomadas de decisão do Estado Ela é justa desde que o en volvimento de muitos seja um meio para chegar ao bem comum Porém este objetivo pode também desvirtuarse conduzindo a um regime aparentemente republicano mas que na verdade é a sua corrupção Tratase da demagogia que se defi ne como o governo da massa ou multidão o qual segundo Aristóteles 13 Capítulo 1 A contribuição do pensamento antigo e medieval Marcelo da Costa Maciel tende a só enxergar os interesses dos pobres e muitas vezes conduz à violência e à ilegalidade Resumindo podemos dizer que para Aristóteles o bom governo é mo vido pelo interesse público e não privado e para que isso ocorra é preciso que o poder político pertença às instituições e não aos indivíduos A constituição política é uma espécie de estrutura que orienta o exercício do poder ditando a direção que ele tomará A realeza a aristocracia e a república são exemplos de constituições políticas justas porque repousam sobre leis justas isto é voltadas para a realização do interesse geral Aristóteles opõese a Platão quando este último afi rma ser a posse do verdadeiro conhecimento o único critério seguro mediante o qual se pode defi nir quem deve exercer o governo Para o primeiro não há uma única forma de governo justo e além disso existe maior probabilidade de que uma multidão reúna mais virtudes do que um único indivíduo ou uma minoria Por isso a sociedade mais justa é aquela em que um grande número de indivíduos par ticipa igualmente do mando e da obediência compartilhando do poder e das prerrogativas políticas O maior exemplo disso é o regime republicano pois nele a comunidade dos cidadãos inclui a maioria da população e esse corpo político exerce diretamente o poder Por outro lado a pior de todas as formas de governo é aquela em que os cidadãos são igualmente reduzidos à condição de escravos e submetidos ao governo de um só ou seja a tirania Esse governo contradiz a própria noção de cidadania ao não reconhecer as diferentes virtudes dos membros da sociedade política e ao privar a todos do direito de interferência sobre o poder A tirania é contrária à natureza das coisas pois entre homens livres e iguais não é a razão mas simplesmente a força que determina que um seja o senhor de todos 124 Políbio Como pudemos perceber até aqui os pensadores da época clássica época do apogeu da democracia e da fi losofi a gregas foram responsáveis pela trans formação da política em objeto de um saber racional e demonstrativo Iniciase então uma tradição que se manteve durante todo o período helenístico em que o mundo grego passa por profundas transformações a começar pela instaura ção do império macedônico que por um lado põe fi m à autonomia política das cidadesEstado e por outro propicia um contato maior entre distintas tradições culturais tais como a grega a judaica e a egípcia A fi losofi a do helenismo exa tamente por ter sido produzida em um contexto de perda das referências tradi cionais é marcada pela ênfase dada aos campos da ética e da política dos quais 14 Curso de Ciência Política ELSEVIER se esperavam orientações práticas As escolas helenísticas como o epicurismo o estoicismo o ceticismo e o ecletismo buscavam na razão critérios para a condu ção da vida individual e para a organização da sociedade política A obra de Políbio pensador grego que viveu em Roma no século II aC é representativa da refl exão política helenística e como tal se insere na tradi ção iniciada pelos clássicos É nítida a infl uência que Platão com sua teoria das formas de governo inseridas em um ciclo marcado pela inevitável decadência exerceu sobre o pensamento de Políbio Da mesma forma podese perceber nele o impacto da visão aristotélica acerca da distinção entre constituições políticas justas e corrompidas Políbio debruçouse sobre as ideias clássicas e pretendeu realizar uma espécie de síntese ao elaborar a sua teoria do governo misto do qual a República romana é o modelo por possuir instituições que estabelecem um equilíbrio entre as vantagens da monarquia representadas pela autoridade dos cônsules da aristocracia garantidas pela existência do Senado e da de mocracia asseguradas pelo respeito aos interesses e direitos dos cidadãos Aos olhos de Políbio a constituição política romana era excelente por gerar tal equi líbrio permitindo assim que o Estado prosseguisse em sua expansão No livro VI de sua História que traz uma análise detalhada da constituição romana Políbio justifi ca assim o seu interesse pelo tema Devese considerar a constituição de um povo como a causa primordial do êxito ou do insucesso de todas as ações apud Bobbio 1997 p 65 A análise polibiana das constituições parte da divisão aristotélica entre constituições justas e corrompidas conside rando como formas justas o reino a aristocracia e a democracia e como formas corrompidas a tirania a oligarquia e a oclocracia Este último termo que expressa a corrupção do governo popular vem substituir o termo demagogia utilizado por Platão e Aristóteles Literalmente signifi ca o governo da multidão ou da massa sendo uma forma corrompida por desprezar os costumes tradicionais a religião as leis o respeito aos pais e aos mais velhos O critério empregado por Políbio para discriminar entre governos justos e corrompidos afastase todavia do critério aristotélico o interesse visado uma vez que para ele a oposição se faz entre de um lado governos baseados na força e na arbitrariedade e de ou tro governos fundados no consenso e na legalidade Após defi nir e classifi car as formas de governo Políbio seguindo um ra ciocínio semelhante ao de Platão elabora uma concepção cíclica segundo a qual cada uma das formas justas tende a degenerar provocando o surgimento da for ma injusta correspondente Assim o processo histórico seria feito de etapas que alternam boas e más constituições tendendo sempre porém à degeneração Tal processo se inicia com o estabelecimento do reino que tende a se corromper ori 15 Capítulo 1 A contribuição do pensamento antigo e medieval Marcelo da Costa Maciel ginando uma tirania A queda da tirania por obra dos melhores na sociedade instaura a aristocracia a qual também tende a se corromper transformandose numa oligarquia Tal regime é derrubado com a rebelião do povo contra os abu sos da minoria no poder da qual surge a democracia Porém com o tempo esse sistema se encaminha para a ilegalidade e a desordem gerando a oclocracia En quanto na teoria cíclica de Platão uma forma de governo corrompida gera outra também corrompida já que somente a aristocracia intelectual por ele proposta seria um governo perfeito e estável no ciclo apresentado por Políbio uma forma boa degenera em uma corrompida sendo tal degradação um processo natural e inevitável Ao fi nal do ciclo instaurase a oclocracia Essa forma corrompida por sua vez será suplantada por uma forma justa o reino retornandose assim ao ponto de partida do ciclo que se repete infi nitamente De acordo com Políbio o principal objetivo que uma constituição polí tica deve almejar é a estabilidade pois só com ela a constituição pode de fato cumprir sua função que é estabelecer uma ordem na vida social Nesse sentido até mesmo as constituições por ele classifi cadas como boas seriam problemá ticas porque seriam todas instáveis não conseguindo escapar ao processo de degradação natural A razão para isto reside no fato de que são formas simples tais como as suas formas corrompidas correspondentes A solução proposta por Políbio é a constituição mista em que estejam combinadas as três formas boas Nas palavras do próprio Políbio Está claro de fato que precisamos considerar ótima a constituição que reúne as características de todas as três formas apud Bobbio 1997 p 69 Um governo misto é aquele que faz coexistirem os princí pios monárquico aristocrático e democrático o que é possível quando existe um rei sujeito ao controle do povo sendo o povo por sua vez controlado por um senado O caráter misto da constituição lhe confere estabilidade isto é maior duração e capacidade de resistir a mudanças Isto porém não a torna eterna o que signifi ca que em última instância nem mesmo os governos mistos estão livres do destino inescapável de tudo o que existe que é a decadência Até o Estado romano que alcançou estabilidade e excelência devido à sua estrutura mista na qual o poder era repartido entre os cônsules o Senado e o povo esta ria sujeito à lei natural e portanto após a ascensão expansão e glória passaria pelo declínio e a destruição Devemos ainda ressaltar o caráter precursor da refl exão política de Polí bio que com a sua teoria do governo misto defende um mecanismo de controle recíproco dos poderes numa perspectiva muito semelhante à das teorias políti cas modernas que propõem um sistema de equilíbrio dos poderes como a teoria da separação dos poderes de Montesquieu e o sistema de freios e contrapesos 16 Curso de Ciência Política ELSEVIER proposto pelos federalistas Da mesma forma a sua ênfase no estudo dos efei tos das constituições políticas faz dele um clássico no sentido de um autor cujo pensamento é permanentemente relevante pois este tema tornouse central na refl exão política moderna e contemporânea 13 A política no pensamento medieval 131 Santo Agostinho O encontro entre a fi losofi a grega e a religião cristã ocorrido no contexto cultural do helenismo teve consequências profundas sobre a formação do pen samento medieval A busca de uma conciliação entre o pensamento racional e a verdade revelada permitiu o nascimento de uma fi losofi a cristã considerada por Santo Agostinho a verdadeira fi losofi a Os primeiros séculos da era cristã fo ram marcados por esse movimento do cristianismo que buscou universalizarse não só como religião mas também como fi losofi a e para tanto foi fundamental a produção intelectual dos Padres da Igreja a Patrística A doutrina elaborada nesse período tanto na sua vertente grega como na latina estabeleceu os temas e problemas para os quais a Escolástica a mais típica manifestação do pensa mento medieval pretendeu dar solução É possível inferir uma fi losofi a política do pensamento patrístico a partir de suas refl exões sobre as relações entre a Igreja e o poder secular Essa fi losofi a parte da ideia de que o poder terreno é um instrumento para a instauração de uma ordem imposta por Deus Nesse sentido os príncipes a quem tal poder foi confi ado seriam ministros de Deus Tratase de uma concepção essencialmente teocrática segundo a qual o poder temporal deve estar a serviço do poder es piritual visão que permite tanto a legitimação da autoridade política por meio de seu fundamento na autoridade divina como a legitimação da dimensão po lítica da Igreja originando uma cultura clerical que submete as leis civis às leis divinas e coloca a Igreja acima do Estado Carlos Magno coroado pelo Papa Imperador de toda a Cristandade manifesta bem essa complexa relação que se pretendeu estabelecer entre a Igreja e o Estado Principal representante da Patrística latina Santo Agostinho século V considera a necessidade do poder político e portanto do Estado uma conse quência do pecado original A formação da sociedade é um meio pelo qual os homens buscam amenizar os efeitos da corrupção originada pela queda de seus primeiros pais É inevitável que as sociedades sejam todas imperfeitas já que suas leis são construídas por homens decaídos A Cidade dos homens opõe se por defi nição à Cidade de Deus reino de perfeição completamente regido pela lei eterna e perfeita de Deus Caberia à Igreja a missão de reformar as ins 17 Capítulo 1 A contribuição do pensamento antigo e medieval Marcelo da Costa Maciel tituições humanas a partir do ensinamento de Cristo o Redentor conduzindo a Cidade dos homens e preparandoa para o restabelecimento defi nitivo da Cidade de Deus que ocorreria com a segunda vinda de Cristo e o Juízo Final Rejeitando a premissa aristotélica da sociabilidade natural humana que insere a existência do Estado na ordem natural premissa que será acolhida mais tarde por São Tomás de Aquino Santo Agostinho não vê sentido na discussão acerca das formas de governo justas e injustas uma vez que todas estariam mar cadas pela mancha da corrupção humana Esse diagnóstico conduz à imperiosa valorização de outra instituição a Igreja fi gura terrestre da Cidade de Deus capaz de fazer a mediação entre a lei eterna e a lei temporal porém para tanto necessitando assumir também um caráter político Em completa harmonia com o princípio do fi losofar na fé segundo o qual a fi losofi a auxilia o homem a conhecer o seu Criador condição sine qua non para a felicidade individual a fi losofi a política de Santo Agostinho atribui à Igreja um papel imprescindível na busca da felicidade para toda a humanidade pois este fi m exige a restauração do mundo decaído por meio da adequação das leis humanas às leis divinas o que implica o reconhecimento da autoridade da Igreja O apelo às leis divinas e à supremacia do poder de Deus sobre quaisquer poderes humanos atribui um caráter crítico ao pensamento político de Santo Agostinho pois fornece critérios para o julgamento das autoridades seculares e das leis positivas Estas são injustas e não têm nenhum valor se contrariam a ordem natural estabelecida por Deus Tal postura pode até assumir caráter contestador uma vez que dela decorre a necessidade de resistir à autoridade política quando esta é pautada por interesses puramente humanos e não está a serviço da vontade divina 132 São Tomás de Aquino Santo Agostinho partindo do princípio da submissão da razão à reve lação e do poder secular ao poder divino colocou as bases para uma refl exão política cristã a qual foi desenvolvida ao longo da Idade Média atingindo a sua forma mais acabada em São Tomás de Aquino já no século XIII Todavia enquanto Santo Agostinho como de resto toda a fi losofi a patrística elabora um pensamento cristão por meio de uma aproximação entre o cristianismo e o platonismo São Tomás de Aquino benefi ciandose de um contato maior com o pensamento de Aristóteles graças ao trabalho de tradução e interpretação de suas obras realizado pelos árabes encontra no corpus aristotelicum fundamentos mais seguros para uma fi losofi a e uma política cristãs Realizando uma inter pretação cristã da metafísica aristotélica São Tomás considera Deus o primeiro 18 Curso de Ciência Política ELSEVIER motor Este porém não é só aquele que põe os seres em movimento mas sen do o Ser em si mesmo é o Criador de todos os outros seres que consistem em graus inferiores do Ser só podendo ser chamados de seres por participação no Ser divino Ainda partindo de Aristóteles para o qual todo ser existe tendo em vista um bem que lhe é próprio São Tomás afi rma que o Ser Supremo além de Criador é também o Legislador de todo o cosmos por ele criado o qual governa segundo sua lei eterna Esta atribui a cada ser deste mundo uma fi nalidade que é o seu bem A base aristotélica da refl exão de São Tomás de Aquino é responsável por uma importante diferença entre a sua fi losofi a política e a de Santo Agostinho O Estado e o poder político em vez de serem concebidos como obras contingentes criadas pelos homens em resposta às necessidades resultantes de sua própria corrupção são vistos por São Tomás como incluídos no plano perfeito de Deus São realidades que decorrem da agência criadora de Deus como todo ser decor re do Ser em si e como este é essencialmente bom e perfeito as coisas criadas ganham sentido quando se contempla a excelência de toda a ordem da criação E Deus viu que tudo era bom Gênesis 1 31 São Tomás de Aquino adere à premissa aristotélica da sociabilidade na tural humana vista como a força responsável pela formação das cidades terres tres Assim a necessidade do poder político ganha nova interpretação pois ela não é um sinal do pecado humano mas uma necessidade natural de cuja satis fação depende a própria realização do homem A cidade como toda forma de associação só existe porque tem em vista um bem Este bem não é simplesmente a autopreservação o que reduziria os agregados humanos à mesma condição daqueles que existem entre animais mas consiste na felicidade geral que en globa e ultrapassa os interesses privados Deus criou os homens para viverem em sociedade pois só a vida em sociedade é uma vida plena ou feliz digna da condição do homem na escala das criaturas Por isso é necessário haver um go verno terrestre que regule a multidão levandoa a alcançar o bem coletivo A função da autoridade política é ordenar a sociedade humana para que ela atinja a sua perfeição isto é produza o bem previsto pelo desígnio divino Quanto à forma que essa autoridade deve revestir São Tomás prescreve a mo narquia Antes de mais nada ela conta com fundamentos nas Escrituras que apresentam os reis do povo hebreu como escolhidos por Deus Além disso tem como modelo o governo que o próprio Deus exerce sobre todo o universo O Ser Criador é também Legislador e Juiz e submete todas as coisas a uma unidade de comando Por isso o poder para realizar as tarefas necessárias à organização 19 Capítulo 1 A contribuição do pensamento antigo e medieval Marcelo da Costa Maciel e ao bom funcionamento da coletividade humana legislar julgar administrar deve estar concentrado nas mãos de um rei Seguindo mais uma vez Aristóteles São Tomás de Aquino demarca a di ferença entre um rei e um tirano Este último não tem em mira o bem do povo mas apenas o seu próprio interesse assim como não estabelece leis justas mas utilizase da violência para impor sua vontade A esse tipo de autoridade deve se resistir pois ela desvirtua a sociedade humana de sua própria razão de ser A derrubada de um tirano contudo é um dever de todo o povo e não de qualquer indivíduo em particular e se for feita por iniciativa de um ou de apenas alguns indivíduos pode fomentar a divisão do povo e leválo a uma outra espécie de mal que é a completa desintegração da sociedade ou seja a anarquia São Tomás de Aquino apresenta os critérios segundo os quais as leis hu manas normas impostas pela autoridade política podem ser consideradas jus tas Em primeiro lugar elas precisam estar de acordo com a lei natural mani festação da lei eterna de Deus no mundo por Ele criado a qual por sua vez recebe a forma de preceitos positivos nas Sagradas Escrituras e nas regras es tabelecidas pela Igreja a lei divina revelada A autoridade secular portanto não deve exercer poder fora do controle da autoridade divina representada na terra pela Igreja na fi gura de seu chefe o Papa O poder real não é ainda visto como soberano pois se encontra submetido ao poder de Deus O atendimento a essas exigências é condição para que as leis humanas atinjam o seu fi m que é o bem da sociedade defi nido em termos aristotélicos como uma espécie de meio termo ou equilíbrio na repartição da riqueza material justiça distributiva e nas relações estabelecidas entre os indivíduos justiça comutativa Percebese assim no pensamento político de São Tomás o recurso a con ceitos da fi losofi a pagã mas sem jamais abalar o valor absoluto atribuído à Pala vra de Deus segundo a qual Cristo Deus feito homem teria confi ado a Pedro o exercício de sua suprema autoridade 133 Guilherme de Ockham O pensamento de Guilherme de Ockham século XIV baseado numa te oria do conhecimento empirista e nominalista e numa rigorosa separação entre fé e razão expressa no plano político a decadência da concepção teocrática do poder que orientara toda a refl exão política medieval Crítico feroz do caráter demasiadamente secular que aos seus olhos a instituição religiosa havia ad quirido Ockham é um dos pioneiros na defesa da autonomia do poder político com relação ao poder espiritual colocando as bases para o pensamento político moderno e sua exigência de um Estado laico 20 Curso de Ciência Política ELSEVIER Ockham rejeita completamente a tese segundo a qual o Papa enquanto sucessor de Pedro teria recebido de Cristo a plenitude de poderes afi rmando que essa espécie de poder que a tudo submete seja na ordem espiritual seja na temporal é contrária ao espírito do Evangelho pois instaura uma verdadeira escravidão O principal ministério do sacerdócio é servir e o Papa como Sumo Pontífi ce é o primeiro servo de Cristo Sua função não é dominar os homens e os reis mas zelar para que a Igreja continue fi el aos ensinamentos de Cristo os quais têm por base o Amor que liberta Segundo Ockham a estrutura mono crática da Igreja que atribui apenas a um indivíduo o poder de estabelecer as regras para toda a comunidade cristã não tem sentido pois nega a presença do Espírito Santo em todos os fi éis contrariando assim o relato bíblico do Pen tecostes e o sacramento do Batismo A preocupação excessiva com o poder e a riqueza estaria transformando a Igreja em uma instituição puramente mundana afastandoa assim de sua verdadeira vocação Se a relação dos próprios fi éis cristãos com o Papa não deve ser de sub missão muito menos a do poder político com o poder eclesiástico O Estado não está numa hierarquia supostamente estabelecida por Deus situado abaixo da Igreja mas as autoridades de ambas as instituições são distintas e autônomas A competência do poder temporal pertence aos reis e não ao Papa Rejeitando as doutrinas de Santo Agostinho e de São Tomás de Aquino as quais apesar das diferenças já aqui salientadas vinculam a ordem mundana a uma ordem sagrada superior Ockham retira do poder político qualquer caráter religioso e assim dá um passo decisivo para o surgimento de um pensamento político desvencilhado da teologia Entretanto mais do que interessado em defender a autonomia do poder real em face do poder papal o franciscano Guilherme de Ockham pretende com sua postura eminentemente crítica demonstrar a necessidade de uma urgente e profunda reforma na estrutura da Igreja de modo a fazêla recuperar o espírito essencialmente cristão do qual havia se desvirtuado Para isso seria necessário reconhecer o caráter funesto da teocracia a falibilidade do Papa o Amor como único mandamento a reger a comunidade dos fi éis e a pobreza como o modo de vida mais autenticamente evangélico As ideias de Ockham revelam de forma bastante eloquente a crise da Escolástica isto é do grande empreendimento intelectual da Idade Média no qual por diferentes modos de argumentação pretendeuse realizar um perfeito equilíbrio entre fé e razão A ruptura desse equilíbrio acarretou no campo da refl exão política a separação entre a ordem mundana e a ordem espiritual entre o poder político e o poder eclesiástico e entre o direito civil e o direito canônico 21 Capítulo 1 A contribuição do pensamento antigo e medieval Marcelo da Costa Maciel o que criou condições para o fl orescimento do pensamento renascentista com sua ênfase na autonomia da razão sua valorização do indivíduo e sua crítica aos poderes tradicionais As obras de Ockham apesar de censuradas exerce ram infl uência decisiva sobre diversos pensadores do século XIV tais como Jean Buridan Nicole dOresme Nicole de Autrecourt John Wyclif e Jan Huss que procuraram realizar a dissolução das grandes sínteses fi losófi coteológicas da Escolástica 134 Marsílio de Pádua Marsílio de Pádua contemporâneo de Guilherme de Ockham também se insere na tendência de separação entre fé e razão que marca o fi m da Escolástica Sua obra Defensor Pacis publicada em 1324 foi censurada pela Igreja e ele con siderado herético tendo sido excomungado logo após sua publicação A razão para isto reside na sua teoria de que o poder temporal deriva diretamente do povo e não de Deus o que confere ao Estado caráter essencialmente laico Mar sílio já não tem como referência o Império universal que abrange todo o mundo cristão mas o Estado nacional comunidade delimitada territorialmente cons truída com base na razão e na vontade humanas e submetida a uma autoridade própria Essa autoridade tem natureza exclusivamente política não estando vin culada à autoridade religiosa Assim como a razão não pode estar a serviço da fé o Estado não existe para a realização de uma ordem providencial mas atende a fi nalidades huma nas e terrenas a saber a regulação da convivência social e a promoção da feli cidade geral Para a consecução de tais fi nalidades o Estado precisa exercer um poder que nada tem que ver com o poder de Deus sobre o universo Assim no plano social existe uma soberania que não se confunde com a autoridade do Criador sobre todas as suas criaturas mas consiste em uma autoridade fundada no consentimento dos próprios homens À soberania terrena compete defi nir os critérios de orientação da vida coletiva sempre tendo em vista a justiça e a utili dade social e para tanto ela deve estabelecer leis e fazer uso de instrumentos de coação para que estas sejam cumpridas Marsílio de Pádua afastandose da perspectiva tomista desvencilha a discussão sobre as leis civis das noções de lei eterna e lei natural Antecipando em alguns séculos tanto Locke com sua concepção do contrato social como um pacto de consentimento como Rousseau com sua ideia de soberania popular Marsílio afi rma que o verdadeiro legislador é o povo ou aqueles designados expressamente pelo povo que tem poder para decidir o que é conveniente para si próprio As leis civis se impõem soberanamente sobre a coletividade dos ci 22 Curso de Ciência Política ELSEVIER dadãos e essa soberania decorre exatamente do fato de que elas são a expressão da vontade do povo Assim podemos perceber que na teoria de Marsílio de Pádua a soberania é não só exclusivamente política como popular Além disso ela se identifi ca com o poder da lei o que faz desse pensador do fi m da Idade Média um indiscutível pioneiro da defesa do Estado de direito A lei com a qual o governante está com prometido é aquela expressamente promulgada pelo povo e não um suposto direito natural que seria constituído por leis eternas e universais conhecidas pela razão e pelas Escrituras e impostas pela autoridade da Igreja Marsílio mais radical que Ockham chega a inverter a ordem estabelecida pela teologia política medieval na vida terrena é a Igreja que deve se submeter ao Estado pois a Igreja não é uma instituição política mas simplesmente o nome que se dá ao conjunto dos cristãos O seu chefe não detém poder superior àquele compartilhado pela comunidade dos cidadãos mas está ele também como todo cidadão sujeito às leis civis Enfi m a plenitudo potestatis é agora identifi cada com o Estado Com Marsílio de Pádua os conceitos de soberania e de Estado recebem formulações totalmente novas Tais formulações refl etem a luta pela afi rmação da autonomia da sociedade política contra as interferências da Igreja e de sua fi losofi a política Nesse sentido são expressões do profundo e irresistível pro cesso de secularização que marca o fi m do pensamento medieval e o alvorecer do pensamento moderno 14 À guisa de conclusão O objetivo deste capítulo inicial foi ressaltar a importância da refl exão rea lizada pelos antigos e medievais para o estabelecimento de temas problemas e conceitos que fazem parte da tradição do pensamento político ocidental Não foi nossa intenção fazer uma análise detalhada de cada um dos fi lósofos men cionados tarefa que certamente excederia os limites deste capítulo mas des tacar algumas de suas contribuições no plano da discussão sobre a sociedade e o poder político Esperamos ter deixado claro que a história das ideias políticas é feita também por uma galeria de pensadores já bem distantes no tempo que completamente inseridos nas polêmicas de suas épocas buscaram apreender e expressar o mundo político através do logos A galeria aliás é bem mais extensa do que a seleção aqui realizada Por isso mesmo este capítulo mais do que fornecer um mapeamento da fi losofi a po lítica produzida na Antiguidade e na Idade Média pretendeu suscitar a curiosi dade do leitor para este universo extremamente interessante e diversifi cado do ponto de vista intelectual Este fi m já justifi ca o empreendimento pois a curio 23 Capítulo 1 A contribuição do pensamento antigo e medieval Marcelo da Costa Maciel sidade é o primeiro motor da busca pelo saber e de acordo com Sócrates é esta busca que dá sentido e valor à vida 15 Perguntas para reflexão 1 Por que o diálogo com a Filosofia é importante para a Ciência Política contemporânea 2 Qual o papel de Sócrates na história do pensamento político ocidental 3 Qual a importância da Sofística no contexto político de Atenas do século V aC 4 Por que a filosofia de Platão é eminentemente política 5 Como Aristóteles realiza a distinção entre as formas de governo justas e corrompidas 6 Quais os argumentos de Políbio em defesa do governo misto 7 Em que sentido a reflexão política de Santo Agostinho pode assumir um caráter crítico 8 Como São Tomás de Aquino concebe as relações entre a Igreja e o Esta do 9 Sintetize a crítica que Guilherme de Ockham faz à estrutura e às orien tações da Igreja 10 Em que sentido as ideias de Marsílio de Pádua antecipam o pensamento político moderno Bibliografia AGOSTINHO Santo Santo Agostinho São Paulo Nova Cultural 2000 Col Os Pensadores ALBUQUERQUE Newton de Menezes Teoria Política da Soberania Belo Ho rizonte Mandamentos 2001 AQUINO São Tomás de Santo Tomás São Paulo Nova Cultural 1988 Col Os Pensadores ARISTÓTELES Ética a Nicômaco In Aristóteles São Paulo Nova Cultural 1987 Col Os Pensadores A Política São Paulo Martin Claret 2002 24 Curso de Ciência Política ELSEVIER BOBBIO Norberto A Teoria das Formas de Governo Brasília Editora da UnB 1997 CHÂTELET François DUHAMEL Olivier PISIERKOUCHNER Évelyne História das Ideias Políticas Rio de Janeiro Zahar 2000 LESSA Renato Por que rir da fi losofi a política ou a ciência política como téchne In Agonia aposta e ceticismo Ensaios de Filosofi a Política Belo Horizonte Editora da UFMG 2003 MARCONDES Danilo Iniciação à História da Filosofi a Rio de Janeiro Zahar 2000 PLATÃO Defesa de Sócrates In Sócrates São Paulo Nova Cultural 1991 Col Os Pensadores A República In Platão São Paulo Nova Cultural 2000 POLÍBIOS História Brasília Editora da UnB 1985 REALE Giovanni ANTISERI Dario História da Filosofi a Volume I Antigui dade e Idade Média São Paulo Paulus 2005 RUBY Christian Introdução à Filosofi a Política São Paulo Editora da Unesp 1998 Capítulo 2 Há vícios que são virtudes Maquiavel teórico do realismo político Ricardo Guanabara1 21 Introdução Difi cilmente há de se encontrar um pensador tão polêmico na ciência ou fi losofi a política quanto Nicolau Maquiavel Se pudesse nem o próprio persona gem imaginaria o quanto as páginas de seus textos provocariam tantas discus sões e nunca é demais dizer inspirariam tantas ações políticas nos últimos cinco séculos Tal fato demonstra o feito notável de ao longo da História um pensador ter servido a líderes e correntes políticas distintas no espectro político Para inú meros pensadores e homens da política os escritos maquiavelianos serviram ora como guia de refl exão ora como guia de ação Doutor e Mestre em Ciência Política pelo IUPERJ Graduado em Ciências Sociais pela UFF e em Direito pela PUCRio Professor do IBMECRJ e da UCAMCentro Tem experiência nas áreas de Ciência Política e Direito com ênfase em Direito Constitucional Atua principalmente nos seguintes temas Direito Constitucional Teoria Política Teoria do Estado História Política e Direitos Funda mentais Contato guanabarahotmailcom 26 ELSEVIER Curso de Ciência Política Não se poderia esquecer a admiração despertada pelo pensador fl orentino em fi guras como Napoleão Bonaparte ou mesmo em Antonio Gramsci pensador da esquerda italiana no século XX Se é correto dizer que a Igreja julgou peca minosas as lições de Maquiavel também é correto salientar que tais lições per manecem desafi ando o saber político contemporâneo como a comprovar que se a política tem uma lógica ela foi em grande parte apreendida e revelada por Maquiavel Nas páginas que se seguem abordaremos a trajetória desse grande pensa dor começando pela sua conturbada história de vida passando pelo contexto social de sua obra e a essência de seus escritos sobretudo de O Príncipe Nessa breve viagem temas como a natureza humana a história as habilidades polí ticas a fortuna estarão presentes tendo como pano de fundo o Renascimento movimento que abriu as portas para um mundo novo e devolveu ao homem sua capacidade criadora De que maneira isso transparece na obra de Maquiavel é o que este texto buscará mostrar 22 Breve relato biográfico É possível dizer que a vida de Maquiavel é marcada por fases bem distin tas constituídas por uma infância e juventude em que o autor teve sólida edu cação e formação humanística seguida por uma vida profi ssional curta porém intensa capaz de fornecer vasto material sobre a prática política em tempos de renascimento1 A formação sólida e a prática política se encontrariam mais tarde nas páginas dos textos maquiavelianos A última fase é marcada pela tentativa infrutífera de retorno à vida pública fase esta vivida no afastamento e no ostra cismo nos arredores de Florença Sigamos pois a trajetória da vida desse pensa dor para em seguida adentrarmos o estudo de sua obra política sobretudo de O Príncipe o mais famoso de seus trabalhos Se o fi m da vida de nosso pensador foi marcado pela infelicidade e pela frustração a infância e a adolescência revelaram grande preocupação familiar com a sua formação Seu pai Bernardo era formado em Direito e com inser ção na guilda dos advogados de Florença Itália Sua mãe Bartolomea também possuía boa formação sobretudo literária Assim é que os registros históricos demonstram que o pequeno Nicolò começou seus estudos aos sete anos e aos doze já transitava pela literatura latina com o auxílio de um professor de latim padre e também membro da guilda dos advogados De Grazia 1993 p 13 1 Para uma história da vida de Maquiavel há boas fontes como Grazia 1993 Pinzani 2004 Chevallier 1989 Skinner 1988 27 Capítulo 2 Há vícios que são virtudes Maquiavel teórico do realismo político Ricardo Guanabara Convém perguntar quais eram os autores que se faziam presentes na casa dos Machiavelli Ao que se sabe as próprias preferências do pai Bernardo co meçavam por Aristóteles e passavam por Cícero Ptolomeu Boécio bem como o Código e o Digesto justinianos De Grazia 1993 p 14 Assim não é de es tranhar a sólida formação demonstrada tempos depois por Maquiavel em suas obras Os livros eram como parte da família e foram muito bem aproveitados primeiro pelo pai e principalmente pelo fi lho Na última fase de sua vida Ma quiavel voltaria a viver intensamente na companhia dos fi lósofos clássicos Du rante pelo menos quatro horas todas as noites o pensador se entregava à leitura de autores como Lívio Políbio Tucídides e Xenofonte dentre outros que se fariam presentes como resultado desse intenso contato na mais importante obra de Maquiavel O Príncipe Pinzani 2004 p 9 Eis portanto uma face pronta desse pensador renascentista a sólida leitu ra dos pensadores humanistas o mergulho na tradição fi losófi ca grega e romana da antiguidade bem ao estilo do movimento cultural que ora dominava a Eu ropa Para entender no entanto o sentido de sua obra a fonte de seus ensina mentos é necessário conhecer a outra face dessa formação a experiência como homem de Estado funcionário a serviço da chancelaria de Florença cargo que lhe valeria a observação arguta das relações políticas das ações dos homens e o uso do poder Maquiavel não chegou a cumprir o papel então reservado pela sua for mação educacional Não se transformou em advogado No entanto logo seria convidado para ingressar no governo em uma posição habitualmente ocupada por advogados É a sua capacidade e seus estudos que o farão ter êxito em ta refas como preparar atas escrever cartas e relatórios A mesma capacidade o levará rapidamente a postos mais altos alçado pela confi ança nele depositada por parte de seus superiores na Chancelaria Em breve deixaria as escrivaninhas das repartições para cumprir missões externas cada vez mais importantes De Grazia 1993 p 26 Em julho de 1500 Maquiavel partiria rumo à França para uma missão de contato com o rei Luís XII Essa missão inauguraria a série de importantes trabalhos diplomáticos empreendidos por Maquiavel que até seu afastamento da vida pública totalizariam 23 missões É importante ressaltar que não se esgota nas legações o trabalho desenvol vido por Maquiavel até 1512 ano de seu afastamento O pensador acabaria se transformando em grande estrategista militar tendo escrito em 1506 o Discurso sobre como preparar o Estado de Florença às armas Também é digno de nota que uma das poucas obras de Maquiavel publicada em vida é A arte da guerra em 1521 Aqui o autor desfi laria todo o seu conhecimento militar acumulado em 28 ELSEVIER Curso de Ciência Política experiências e leituras dos clássicos assim como faria com o O Príncipe em que experiência pessoal e história se cruzam No entanto antes de chegar até essa obra considerada a mais importante devemos retornar ao infortúnio que mar caria a última fase da vida de Maquiavel A habitual instabilidade política que marcava a Itália renascentista e em especial Florença recrudesceria nos primeiros anos do século XVI Não obs tante o esforço empreendido por Maquiavel para constituir uma milícia bem organizada que defendesse Florença esta viveria ameaçada por exércitos es trangeiros e de mercenários Finalmente em 1512 o papa Leão X consegue por meio de tropas espanholas conquistar a República e mudar todo o seu quadro político Restabelecerseia a era dos Médici personifi cada agora na fi gura de Lorenzo de Médici Instaurado um período ditatorial e Maquiavel identifi cado com a corrente política deposta é afastado de seus cargos e em 1513 chegaria a ser preso e torturado acusado de fazer parte de uma conspiração republicana Pinzani 2004 p 13 Finalmente em março do mesmo ano é solto e se retira para seu exílio nos arredores de Florença de onde nunca mais retornaria à vida pública apesar de seus esforços É sabido que Maquiavel manteria a esperança de retornar à vida pública chegando para isso a escrever sua mais importante obra e dedicála a Lorenzo de Médici com uma exortação tomar a Itália e libertála das mãos dos bárba ros Pinzani 2004 p 14 O Príncipe obra que se tornaria clássica pela sua característica de ensinar a conquistar e manter Estados não cumpriu seu objetivo inicial de reconduzir Maquiavel às coisas do Estado Mas inscreveu o pensador fl orentino na galeria dos pensadores políticos mais famosos e infl uentes de todos os tempos Outras obras seriam escritas por Maquiavel em seu isolamento tais como os Comentá rios sobre a primeira década de Tito Lívio a já citada A arte da guerra e a peça também famosa A mandrágora além de uma história de Florença apresentada em 1525 ao papa Clemente VII Em 1527 Maquiavel falece aos 58 anos em Florença Sua obra no entan to ganharia um vigor jamais imaginado até mesmo pelo próprio autor Quanto à sua pessoa Maquiavel experimentaria os mais variados sentimentos variando do ódio e execração pública até a mais profunda admiração conforme demons trou Napoleão Bonaparte ao redigir seus comentários ao Príncipe Um de seus maiores inimigos seria a própria Igreja Católica que iria colocar sua obra no rol das leituras proibidas e pecaminosas e associálo ao demônio conforme demonstra o trocadilho inglês the old nick associado à fi gura de Maquiavel Curiosamente uma boa parte da fi losofi a ocidental primou por redimir o pensa 29 Capítulo 2 Há vícios que são virtudes Maquiavel teórico do realismo político Ricardo Guanabara mento fl orentino ao considerar sua obra valorosa para a fi losofi a política Tal foi o caso de Jean Jacques Rousseau para quem Maquiavel fi ngiu ensinar a política aos fortes mas na verdade quis mostrar suas engrenagens ao povo O mesmo se aplicaria a Hegel fi lósofo alemão que considerou preciosas as teses levanta das por Maquiavel Voltaremos adiante às diferentes leituras da obra de Maquiavel Por ora nos voltamos para o sentido de O Príncipe o mais famoso texto de Maquiavel e um dos maiores da história do pensamento político 23 O Príncipe contexto histórico Não é possível entender completamente o sentido da obra de Maquiavel sem analisar o contexto em que ela surge Esse contexto é marcado pela nova visão de mundo proporcionada pelo surgimento do Renascimento movimento cultural que revolucionou a Europa pósmedieval em vários campos como os das artes plásticas da literatura da dramaturgia da fi losofi a e das ciências2 O Renascimento traz em seu bojo a redescoberta dos valores da Antigui dade sobretudo os grecoromanos E traz a valorização da autonomia do ho mem responsável novamente por uma atitude criadora diante do mundo Com efeito substituise o teocentrismo pelo antropocentrismo Tal fato terá um peso fundamental nos escritos de Maquiavel uma vez que o homem político descrito em O Príncipe não teme inovar agir livremente sem medo de castigos e puni ções divinas conforme veremos O homem renascentista pressupõe uma ruptu ra com o modelo do medieval submisso à ordem teológica para colocar em seu lugar uma atitude autoafi rmativa com foco no mundo terreno e nesta vida Voltam a ser valorizados aspectos como a honra e a glória e retorna à ordem do dia a legitimidade de conquistálas É importante frisar que nada disso seria possível sem as condições objeti vas sobre as quais se consolidaram o ideário e o movimento renascentista Havia em curso um conjunto de transformações econômicas sociais políticas e técni cas que de certa forma antecediam à eclosão do Renascimento e que se revela ram fundamentais para o êxito do movimento Não é possível ignorar a enorme difusão proporcionada pela imprensa inventada anteriormente por Gutemberg Com ela as obras dos autores renascentistas puderam ser amplamente divul gadas quebrando o monopólio do saber que se colocava sob o poder da Igreja Riche 2005 p 7 A possibilidade da leitura individual e refl exiva ao alcance de cada homem signifi cou uma mudança não desprezível na forma de aquisição do conhecimento principalmente pelo acesso a perspectivas e experiências varia 2 Para uma abordagem do Renascimento ver Johnson 2001 e ainda Burckhardt 1991 30 ELSEVIER Curso de Ciência Política das não mais presas aos dogmas religiosos Ademais a difusão do conhecimen to proporcionaria a ligação com outras culturas de diferentes lugares da Europa e de outros continentes fato também proporcionado pela expansão náutica que originou inclusive uma época de grandes descobrimentos idem p 8 Outro traço fundamental do Renascimento e que marcaria grandemente o pensamento de Maquiavel foi a redescoberta dos valores da Antiguidade clássica A valorização das obras e dos autores clássicos haveria de representar fundamen tal para os propósitos do movimento renascentista Voltam à cena autores como Virgílio Horácio Homero Cícero e suas lições de oratória moral e política É nos clássicos da Antiguidade que os autores renascentistas se apoiarão para forjar a nova identidade antropocêntrica idem p 16 Autores como Pico della Mirando la pregarão a possibilidade de qualquer homem transgredir as barreiras terrenas que lhe sejam impostas valorizando a ousadia e a busca da glória e da virtù con ceito que seria também explorado por Maquiavel idem p 17 24 Maquiavel e a originalidade do pensamento político Constitui tarefa de grande difi culdade analisar o pensamento maquiave liano sem passar pelo adjetivo da originalidade O primeiro motivo para isso está na sua preocupação com a construção de uma resposta à instabilidade polí tica que marcava a Itália de seu tempo Não por acaso O Príncipe é uma obra que busca ensinar não só a conquistar mas a manter Estados tornandoos estáveis A segunda diferença com relação às obras políticas tradicionais seria a aborda gem desvinculada da abstração fi losófi ca etérea e especulativa Maquiavel parte da realidade política para tentar buscar a efi cácia nas ações humanas em detri mento da moral da ética ou de qualquer critério clássico de justiça Não surpreende portanto que o autor acabaria execrado pela Igreja e marcado como sinônimo do ardil do sórdido e da esperteza Não há limites éticos nem morais na busca da conquista e manutenção dos Estados Não há pensar em termos como bondade e justiça em um mundo marcado pelas maldades traições e instabilidades Se o que busca é a estabilidade não se pode adotar a política das boas ações e da moralidade Ao estabelecer um novo mo delo de pensamento Maquiavel inaugura a era do realismo político desprovido dos mandamentos religiosos e voltado fortemente para os resultados das ações humanas Como observação vale lembrar que o caráter inovador de sua teoria política não signifi ca o desprezo pelos autores da Antiguidade clássica Maquia vel dialogará frequentemente com esses autores aproveitandose inclusive dos conceitos tradicionais de virtù e fortuna Estes dois elementos somados a uma concepção de história cíclica e exemplarista e a uma visão ruim acerca da natu 31 Capítulo 2 Há vícios que são virtudes Maquiavel teórico do realismo político Ricardo Guanabara reza humana formam os ingredientes fundamentais para o bom entendimento de O Príncipe 241 Virtù e Fortuna Não é difícil compreender o sentido da palavra virtù Essencialmente tratase das qualidades desejáveis ao homem de Estado Signifi ca o conjunto de adjetivos que todo príncipe deve ter se quiser conquistar e manter Estados Não há difi culdade para a compreensão dessa proposição No entanto há que se esclarecer que Maquiavel iria subverter as qualidades até então tidas como indispensáveis ao bom príncipe ou seja Maquiavel iria concordar que a virtù é fundamental a qualquer Príncipe sem ela não se governa Mas é preciso defi nir bem quais são as qualidades que realmente importam para a arte da política Aqui começa um dos diálogos de Maquiavel com a Antiguidade e aqui reside também um dos pontos de ruptura do autor com o pensamento corrente de sua época Conforme se ressaltou anteriormente a invenção da imprensa constituiu um fator decisivo para que as ideias e as obras renascentistas pudessem ser am plamente divulgadas e a aquisição do saber transformado É justamente a in venção da imprensa que causará um fenômeno particularmente interessante na Itália renascentista o surgimento dos manuais de como governar bem ou de conselhos aos governantes É Quentin Skinner um dos maiores estudiosos do pensamento de Maquiavel e do pensamento político clássico quem descreve o momento No fi nal do século XV constituírase já uma vasta literatura humanista de um novo gênero os livros de conselhos para os príncipes graças a um novo meio de comunicação a imprensa Autores ilustres como Bar tolomeo Sacch Giovani Pontano e Francesco Patrizi escreveram trata dos destinados a guiar a conduta de novos governantes baseandose todos eles num mesmo princípio fundamental que a posse da Virtù constitui a chave para o êxito de um príncipe Skinner 1988 p 58 Ressalta Skinner que todos os apologistas das formas corretas de gover nar usaram como fonte essencial de seus ensinamentos os autores da Antigui dade clássica como Cícero Segundo o autor os chamados moralistas romanos como Cícero haviam deixado para a posteridade um conceito de virtus em que fi guravam três séries de qualidades Em primeiro lugar era indispensável ao príncipe possuir as quatro virtudes cardeais sabedoria justiça coragem e tem perança idem p 60 Mais tarde outros quatro atributos seriam agregados a honradez a magnanimidade a liberalidade e a moralidade reforçando assim a 32 ELSEVIER Curso de Ciência Política ideia de que a melhor política é a da moralidade Em A obrigação moral Cícero observaria que a conveniência nunca pode entrar em confl ito com a retidão moral Skinner 1998 p 61 É com base nesses argumentos que os contemporâneos de Maquiavel vão escrever seus manuais Como reforço aos seus argumentos em prol da morali dade e das virtudes cardeais alegadas por Cícero esses autores agregaram argumentos cristãos aos seus conselhos insistindo que mesmo que o príncipe alcançasse a glória política com métodos contrários ao aconselhados have riam de ser castigados com a retribuição divina em outra vida Skinner 1998 p 61 Eis a dura tarefa a ser empreendida por Maquiavel contraporse a um só tempo aos ideais cristãos e aos da Antiguidade clássica ambos considera dos como argumentos unânimes Mas essa seria uma das grandes marcas do pensamento maquiaveliano o pensamento original na contramão da cultura dominante Sua resposta a essa cultura política seria dada no capítulo XV de O Príncipe Maquiavel chega a aludir às qualidades desejáveis que os príncipes deveriam ter mas argumenta bem ao tom de seu realismo político que prati car a virtù tradicional seria condenar o príncipe à ruína segundo suas próprias palavras Resta agora ver como deve se comportar um príncipe em relação a seus súditos ou seus amigos Como sei que muitos já escreveram sobre esse assunto temo que escrevendo eu também seja considerado presunço so sobretudo porque ao discutir essa matéria me afastarei das linhas traçadas pelos outros Porém sendo meu intento escrever algo útil para quem me ler pareceme mais conveniente procurar a verdade efetiva das coisas do que o que se imaginou sobre elas Muitos imaginaram repúblicas e principados que jamais foram vistos e que nem se soube se existiram de verdade porque há tamanha distância entre como se vive e como se deveria viver que aquele trocar o que se faz por aquilo que se deveria fazer aprende antes a arruinarse que a preservarse pois um homem que queira fazer em todas as coisas profi ssão de bondade deve arruinarse entre tantos que não são bons Daí ser necessário a um príncipe se quiser manterse aprender a poder não ser bom e a valerse ou não disto segundo a necessidade Maquiavel 2007a p 73 Maquiavel demonstra portanto com clareza sua grande divergência em relação ao pensamento político dominante em sua época A virtù embora jamais defi nida claramente por Maquiavel em qualquer parte de sua obra aparece cla ramente ao longo de suas lições Embora endossando a ideia clássica de que a ela 33 Capítulo 2 Há vícios que são virtudes Maquiavel teórico do realismo político Ricardo Guanabara é o nome dado ao conjunto de qualidades que permitem a um príncipe ter êxito em sua carreira vai divergir quanto ao sentido desses atributos principescos É novamente Skinner quem nos adverte de que a virtù está relacionada com a capacidade de agir segundo os ditames da necessidade independentemente de se praticar uma boa ou má ação A virtù signifi cará portanto a fl exibilidade mo ral indispensável a qualquer príncipe que deve ter a mente aberta pronta a se voltar em qualquer direção conforme exijam os desígnios da fortuna Skinner 1988 p 65 Eis portanto o melhor entendimento do signifi cado maquiaveliano de virtù Ele reside na fl exibilidade que permitirá ao príncipe a escolha de um le que de ações determinadas não necessariamente comprometida com ideais de bondade e moralidade ou justiça Tais atributos beiram a irracionalidade em um mundo dominado por homens sempre prontos a trair e ademais marcado pela instabilidade Tal conclusão signifi ca que o homem deve portanto compreender que por vezes será necessário praticar a maldade a dissimulação a simulação a mesquinhez dentre outras categorias menos nobres de comportamento tão contrárias ao mundo cristão Mas é assim que fi ca demonstrada a lógica própria da política diferente da moralidade e da religião Tratase de conquistar e man ter Estados e as práticas adequadas a esse intento não residem nos manuais da Antiguidade clássica ou nas doutrinas cristãs É preciso compreender a especi fi cidade da política se nela quiser sobreviver o príncipe Maquiavel desdobrará o tema em vários capítulos de O Príncipe chegando a exortar os governantes a praticar a maldade e a bondade segundo a meta do êxito político Outro conceito fundamental para a compreensão dos escritos de Maquia vel é o de fortuna A exemplo da virtù aqui também estará presente uma certa mutação no conceito em relação à Antiguidade clássica Para Maquiavel a for tuna representaria o imponderável o acaso algo que os homens não poderiam prever e que por isso mesmo poderia lhes ser fatal caso os pegasse despreve nidos O fenômeno seria essencial na política pois da mesma forma que pode trazer a glória sem esforço pode arruinar governantes incautos com a força de sua surpresa Novamente com o foco na Antiguidade clássica Maquiavel observa que a fortuna sempre tida como um grande fator a considerar na arte da política Seus poderes seriam imensos tanto para o bem quanto para o mal Afi nal dessa deusa caprichosa sempre se podem esperar benesses ou um grande revés A divergir dessa tese estavam os moralistas romanos que enxergavam a deusa fortuna como uma boa força e aliada potencial Skinner 1988 p 44 Dela se poderia esperar glória honra e poder Restava então a questão fundamental de 34 ELSEVIER Curso de Ciência Política como atrair a atenção da fortuna para merecer sua escolha Aqui aparecerá uma forte associação da ideia de fortuna com a imagem de uma mulher Cícero che garia a afi rmar que a fortuna é mulher Da natureza feminina da fortuna adviriam conclusões sobre as suas pre ferências Os moralistas vão afi rmar que se ela é mulher decerto preferirá as qualidades de um homem viril e corajoso atributos encontráveis segundo Cí cero apenas no homem que possui a virtù É para esse homem que ela irá sorrir Skinner 1998 p 47 A Idade Média mudaria novamente a forma como se via a fortuna De força ou mulher a ser conquistada a fortuna agora passa a ser indiferente aos homens não sendo possível portanto conquistála Não se deve buscar a gló ria pela conquista da fortuna pois seria um esforço inútil Como consequência deveriam os homens retornar seus olhares para o céu verdadeiro lugar da feli cidade humana A felicidade deveria ser buscada em outra dimensão que não a puramente terrena Assim a busca da honra e glória neste mundo deveria ser abandonada e essa conclusão seria uma mensagem divina de reorientação aos homens É o Renascimento quem resgatará a visão de que a fortuna poderia ser conquistada Antes que Maquiavel venha a tratar do tema vários autores resga tarão de alguma maneira os atributos originais da deusa fortuna Retorna à baila a ideia de que a fortuna favorece os bravos Skinner 1998 p 49 Maquiavel tratará do tema no capítulo XXV de O Príncipe O autor começa sua abordagem lembrando que muitos consideram que os homens são governa dos pelos desígnios da fortuna e de Deus e que tal ideia possuía bastante força No entanto acredita que o livrearbítrio dos homens não deve ser desconsidera do sendo plenamente possível atribuir à vontade dos homens cerca de metade de suas ações Julgo possível ser verdade que a fortuna seja árbitro de metade de nos sas ações mas que também deixe ao nosso governo a outra metade ou quase Comparo a sorte a um desses rios impetuosos que quando se irritam alagam as planícies arrasam as árvores e as casas arrastam as terras de um lado para levar a outro todos fogem deles mas cedem ao seu ímpeto sem poder detêlos em parte alguma Mesmo assim nada impede que voltando a calma os homens tomem providências cons truam barreiras e diques de modo que quando a cheia se repetir o rio fl ua por um canal ou sua força se torne menos livre e danosa O mesmo acontece com a fortuna que demonstra a sua força onde não encontra uma virtù ordenada pronta para resistirlhe e volta seu ímpeto para 35 Capítulo 2 Há vícios que são virtudes Maquiavel teórico do realismo político Ricardo Guanabara onde sabe que não foram erguidos diques e barreiras para contêla Maquiavel 2007a p 119 Maquiavel aliase de certa forma aos humanistas clássicos que defen diam a importância da virtù para a contenção dos caprichos da fortuna A virtù é o elemento essencial para escapar aos desígnios da deusa A tal ponto que no capítulo VII Dos principados novos que se conquistam com as armas e a fortuna de outrem Maquiavel analisa a situação dos que chegaram ao poder pelo acaso sem possuir a virtù e benefi ciandose da escolha que a fortuna fez a outrem A esses breves felizardos Maquiavel prevê a ruína pois não foram dotados da astúcia e sabedoria para governar ou se quisermos são desprovi dos da virtù e sucumbirão ante a primeira crise ou capricho da fortuna a mesma que lhes deu a ascensão política O fi nal do capítulo XXV que trata da fortuna seria nos tempos atuais bastante polêmico pelo tom comparativo em relação às mulheres De qualquer forma as palavras maquiavelianas não deixam dúvida quanto à visão que o autor possuía das semelhanças entre a deusa e as mulheres Concluo portanto que variando a fortuna e obstinando os homens em sua maneira de ser eles serão felizes enquanto ambas as coisas esti verem de acordo mas quando elas discordarem serão infelizes Es tou convencido do seguinte é melhor ser impetuoso do que prudente porque a fortuna é mulher e é necessário para dominála baterlhe e contrariála Vêse que ela se deixa vencer mais pelos que agem assim do que pelos que agem friamente e como mulher é sempre amiga dos jovens porque são menos prudentes mais ferozes e a dominam com maior audáciaMaquiavel 2007a p 122 Da análise de Maquiavel sobre a fortuna devemos reter alguns pontos es senciais Primeiro é preciso ter em conta o papel do acaso e do imponderável nos negócios humanos Eles são capazes de trazer a glória mas também a ruína A conjuntura política como a vida é essencialmente mutável Exatamente por isso é preciso estar atento à mudança dos ventos Maquiavel atribui essa quali dade ao homem de virtù que é capaz de construir diques para conter as inunda ções provenientes das mudanças É preciso portanto olhar adiante e precaver se ante a volatilidade dos tempos Para isso é necessário astúcia política De outro lado não se pode olvidar que Maquiavel também impõe ne cessariamente a qualidade da audácia da coragem e da virilidade para atrair e enfrentar a fortuna bem como dominála Pelo exposto a estabilidade política estará sempre mais perto do príncipe corajoso e impetuoso Seus atributos serão premiados pela escolha da fortuna e sua sabedoria evitará todo e qualquer de 36 ELSEVIER Curso de Ciência Política sastre Não se governa sem os elementos da virtù e da fortuna Eles se encontra rão em algum momento Mais um motivo para estar atento às lições proporcio nadas pela visão maquiaveliana da política ou se quisermos de seus conselhos Estes pressupõem ainda a apreensão de dois outros importantes elementos a natureza humana e a história 242 Natureza humana e História Dois outros conceitos fundamentais no pensamento de Maquiavel estão essencialmente ligados ou seja um é capaz de explicar o outro Mais do que isso entender a ideia de natureza humana em Maquiavel é condição sine qua non para a correta apreensão do que é a história para o pensador fl orentino A ideia de natureza humana possuirá ao longo da trajetória do pensamen to ocidental estreita ligação com a política Para vários dos fi lósofos políticos e a natureza humana que estabelece o formato do Estado que se deseja construir o mesmo acontecendo em relação à tarefa de explicar a origem do Estado O leitor terá a oportunidade de comprovar tais argumentos em inúmeras páginas deste livro quando se deparar com autores como Thomas Hobbes John Locke ou os Federalistas Por ora é Maquiavel quem está no centro das atenções e portanto sem hesitar devese assumir que a imagem do homem para esse pensador é a pior possível Quando se examinaram as relações da virtù tradicional construída e pregada pelos moralistas romanos com a virtù maquiaveliana foi possível vislumbrar a razão maior da recusa de Maquiavel à política da bondade ou da generosidade como vetor das ações dos governantes Porque há tamanha distância entre como se vive e como se deveria vi ver que aquele que trocar o que se faz por aquilo que se deveria fazer aprende antes a arruinarse que a preservarse pois um homem que queira fazer em todas coisas profi ssão de bondade deve arruinarse en tre tantos que não são bons Daí ser necessário a um príncipe se quiser manterse aprender a poder não ser bom e a valerse disso segundo a necessidade Maquiavel 2007a p 73 Eis portanto o diagnóstico maquiaveliano os homens não são bons e tal situação inviabiliza a bondade permanente como política de Estado O próprio autor aprofunda sua análise pessimista quanto à natureza humana ao afi rmar que podese fazer a seguinte generalização acerca dos homens são ingratos caprichosos mentirosos e embusteiros Fogem do perigo e são ainda ávidos de vantagens Maquiavel apud Skinner 2003 p 158 37 Capítulo 2 Há vícios que são virtudes Maquiavel teórico do realismo político Ricardo Guanabara O pessimismo acerca da natureza humana será tema constante em todos os escritos de Maquiavel Em Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio o autor retorna ao tema ao admitir a possibilidade de se conduzirem os homens sem o uso da força Como bem ressalta Quentin Skinner Maquiavel menciona a inveja inerente à natureza humana para depois concluir Ao se fazer a consti tuição e a legislação de uma república devese considerar como certo que todos os homens são perversos e darão vazão à maldade inculcada em suas mentes sempre que tiverem oportunidade para tanto idem p 206 Não há quanto a essa temática contradição nos diversos escritos de Ma quiavel Mesmo em suas obras não políticas como a comédia A mandrágora de 1518 que faria enorme sucesso em várias cidades italianas A peça narra a estória de Callimaco homem de 30 anos que se apaixona por Lucrezia jovem esposa de Messer Nicia advogado já idoso Para conquistar sua amada Callimaco engana Messer Nicia já que este era estéril dizendo ser a planta mandrágora a solução para a sua infertilidade No entanto para obter o resultado de maneira infalível Lucrezia precisaria deitarse com outro homem logo após tomar a poção deriva da da planta Esse é o enredo da peça na qual novamente se vislumbra uma série de vícios inerentes à natureza humana Maquiavel 2003 Mais uma vez Maquiavel se choca contra o modelo de virtude de sua épo ca deixando entrever um cenário de cinismo onde os homens agem sem freios em busca da satisfação de seus desejos agora não em formato de conselhos aos príncipes mas em forma de comédia Nas páginas dos textos de Maquiavel encontramse os seguintes adjeti vos para os homens ingratos volúveis dissimulados simuladores invejosos ambiciosos maldosos dentre outros É com essa natureza humana que os go vernantes terão de lidar não podendo esquecer jamais a incômoda situação em que estão inseridos rodeados de homens ávidos por trair Essa situação levará Maquiavel a defender claramente a ideia de que ao príncipe é melhor ser temido do que ser amado pois se o temor dos súditos é capaz de desestimular eventuais traições o mesmo não acontecerá com o amor a eles devotado Sua espada por tanto deve estar sempre pronta a ser usada em seu principado para protegêlo em um mundo em regra hostil O tema do confronto entre amor versus temor dos súditos e sua segurança para o príncipe aparecerá tanto em O Príncipe como nos Discursos Nesta Maquiavel examina os exemplos de Cipião e Aníbal O pri meiro líder foi marcado pela bondade e liberalidade tendo conquistado o amor de seus súditos O segundo foi temido pela sua crueldade A história parece ter punido Cipião pela sua imprudência 38 ELSEVIER Curso de Ciência Política O prejuízo sofrido por Cipião foi que seus soldados se rebelaram na Espanha com parte de seus aliados e outra causa não houve para tal senão o pouco temor que lhe devotavam porque os homens são tão inquietos que por menos que alguém lhes abra as portas à ambição logo se esquecem do amor que nutriam pelo príncipe em razão de sua humanidade foi o que fi zeram os soldados e aliados de que falamos e Cipião para remediar esse inconveniente foi obrigado a usar em parte a mesma crueldade de que fugira Quanto a Aníbal nenhum exemplo particular nos mostra que sua crueldade ou deslealdade o tenham pre judicado Maquiavel 2007b Outro grande estudioso de Maquiavel Isaiah Berlin acrescenta que é a natureza humana que inviabiliza a construção de uma sociedade baseada em preceitos cristãos Para que essa sociedade pudesse existir sobre a terra os ho mens teriam que ser muito diferentes do que sempre foram Berlin 2002 p 315 No entanto é digna de nota também a observação de Berlin de que o fato de Maquiavel ostentar um diagnóstico ruim acerca da natureza humana e a ne cessidade de o príncipe estar preparado para cometer crueldades não deve fazer de Maquiavel um sádico expressão que surgiria séculos depois do Renasci mento Em outras palavras não se deve precipitadamente construir um perfi l de Nicolau Maquiavel a partir de seus escritos políticos Maquiavel não é um sádico ele não sente prazer com a necessidade de empregar a crueldade ou a fraude para criar e manter o tipo de socieda de que admira e recomenda Seus exemplos e preceitos mais selvagens aplicamse apenas a situações em que a população é inteiramente cor rupta e precisa de medidas radicais para que sua saúde seja restaurada Maquiavel 2007b p 321 Berlin ressalta ainda a pouca receptividade de Maquiavel com os líderes que abusam da crueldade sem que haja necessidade para tanto São conhecidas suas críticas a Agátocles o tirano de Siracusa homem marcado pela desuma nidade abusiva O que queria dizer Maquiavel então A resposta parece estar clara no capítulo XV de O Príncipe Não há saída para o príncipe que deseja ser bom clemente e justo São adjetivos admiráveis mas incompatíveis com a realidade da política e das sociedades Não se trata portanto de uma escolha dos vícios simplesmente Tratase de pensar sobre os fatores que podem levar o príncipe e o Estado e à ruína bem como os antídotos contra tais ameaças Maquiavel cede 39 Capítulo 2 Há vícios que são virtudes Maquiavel teórico do realismo político Ricardo Guanabara não aos piores defeitos humanos mas ao realismo e à dinâmica da sobrevivência política Assim não se pode perder de vista em relação aos homens o seu caráter imutável Conservam suas piores características ao longo dos tempos Tal sen tença traz consigo uma consequência inevitável se os homens são os mesmos tendem a reagir da mesma maneira ceteris paribus isto é mantidas as mesmas condições Estão criadas portanto as condições para a repetição da história Esta se repete porque os homens costumam agir de uma mesma maneira e ostentam características indeléveis Diante da repetição muito provável da história convém estudar os fatos passados para melhor agir no presente e no futuro A história assim possui o inequívoco poder de fornecer exemplos e cursos de ação O príncipe de virtù deve portanto ser um estudioso da história pois de seus exemplos extrairá cursos de ação política efi cazes Quanto aos exercícios da mente deve o príncipe ler obras históricas e refl etir sobre as ações dos homens excelentes ver como se comporta ram nas guerras examinar as causas das vitórias e derrotas a fi m de poder escapar destas e imitar aquelas Mas sobretudo deve agir como antes agiram alguns homens excelentes que se espelharam no exemplo de outros que antes deles haviam sido louvados e glorifi cados e cujos gestos e ações procuraram ter sempre em mente É o caso de Alexandre Magno que imitava Aquiles de César que imitava Alexandre e de Cipião que imitava Ciro Quem ler a vida de Ciro escrita por Xenofon te reconhecerá depois na vida de Cipião o quanto este deveu de sua glória àquela imitação Um príncipe sábio deve observar compor tamentos tais e jamais permanecer ocioso nos tempos de paz mas com engenho fazer um cabedal para dele se valer na adversidade a fi m de que quando mudar a fortuna esteja sempre pronto a resistirlhe Ma quiavel 2007a p 7172 Maquiavel deixa transparecer nos diversos capítulos de O Príncipe e dos Discursos o quanto aprecia os exemplos históricos Estes são como aliados de suas observações empíricas acumuladas ao longo dos anos em que viveu na carreira política São como suporte a muitos de seus conselhos políticos Uma de suas grandes fontes é o Antigo Testamento o qual recomenda como um precio so manancial de fatos históricos De Grazia 1993 p 69 Em sua outra especialidade a arte da guerra sobre a qual também pro duziu um livro Maquiavel também faz uso reiterado dos exemplos históricos 40 ELSEVIER Curso de Ciência Política Ler tais fatos é quase tão importante quanto os exercícios do corpo ou mesmo o conhecimento e treinamento dos ataques Por fi m a apologia da leitura e apreensão dos conhecimentos históricos também encontra abrigo nos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio Nesta obra o tema da história exemplarista aparece no capítulo intitulado em povos diferentes muitas vezes se observam os mesmos acontecimentos Assim se ex pressa Maquiavel Quem considere as coisas presentes e as antigas verá facilmente que são sempre os mesmos os desejos e os humores em todas as cidades e em todos os povos e que eles sempre existiram De tal modo que quem examinar com diligência as coisas passadas facilmente preverá as futuras em qualquer república prescrevendo os remédios que foram usados pelos antigos ou se não encontrar remédios já usados pensará em novos devido à semelhança dos acontecimentos Mas como essas considerações são negligenciadas ou não são entendidas por quem lê ou se são entendidas não são entendidas por quem governa seguese que sempre se vêem os mesmos tumultos em todos os tempos Ma quiavel 2007b p 121 25 Conselhos aos governantes Até aqui se buscou desvendar os temas centrais ou conceitos que permitem melhor entendimento do pensamento maquiaveliano o que inevitavelmente le vou a uma pequena discussão fi losófi ca Não se deve esquecer no entanto que Maquiavel fi cou conhecido pelos seus conselhos aos governantes em especial os oferecidos em O Príncipe a Lorenzo de Médici governante de Florença à época do afastamento de Maquiavel O livro é dedicado a Médici o que levou muitos dos historiadores políticos a considerar o gesto de Maquiavel como interessei ro Uma tentativa frustrada de retornar á vida pública uma vez que o gesto não surtiu o efeito desejado Como já foi dito a obra de Maquiavel alcançaria grande dimensão apenas após a sua morte De qualquer forma o pensador fl orentino buscou no livro expor todo o seu conhecimento das coisas do Estado Na verdade ainda que se destaque o fato da oferta a Lorenzo de Médici não se deve negligenciar o enorme valor político da obra O Príncipe é um livro com pretensões e alcance bem maiores do que uma simples e vã oferenda Não fosse assim não alcançaria a notoriedade de séculos e a admiração de tantos ho mens Acima de tudo devese retornar à essência da obra ensinar a conquistar e a manter Estados Ensinamentos de quem como defi niu o próprio Maquiavel 41 Capítulo 2 Há vícios que são virtudes Maquiavel teórico do realismo político Ricardo Guanabara aprendeu com o estudo das coisas antigas e a experiência das coisas modernas isto é com a observação em meio a tantas missões diplomáticas e políticas Não se trata aqui de expor todos os capítulos de O Príncipe embora a leitu ra seja aconselhável a todos os leitores que se interessem minimamente por polí tica e fi losofi a Nesse sentido é insubstituível No entanto vale a pena apontar algumas das mais interessantes lições políticas procurando não incorrer no ris co da simplifi cação Considerese portanto como observações sobre temas que merecem ser destacados e aprofundados pelos leitores de Maquiavel 251 Da prática da maldade e da bondade Um dos mais célebres conselhos de Maquiavel aos governantes referese à maneira pela qual se devem praticar atos de bondade e de maldade Como já foi discutido nas páginas anteriores o príncipe de virtù deve estar preparado para empregar a maldade caso seja necessário uma vez que não se pode ser bom ou justo todo o tempo Assim Maquiavel sugere que existe uma maneira capaz de atenuar o malestar causado pela maldade assim como existe um meio de pro longar a boa sensação provocada por gestos bondosos do príncipe Daí ser preciso sublinhar que ao tomar um Estado o conquistador deve examinar todas as ofensas que precisa fazer para perpetuálas todas de uma vez e não ter que renoválas todos os dias Não as repe tindo pode incutir confi ança nos homens e ganhar seu apoio através de benefícios Quem age de outro modo por timidez ou mau conselho precisa estar sempre com a faca na mão não podendo jamais confi ar em seus súditos como tampouco podem eles confi ar em seu príncipe devido às suas contínuas e renovadas injúrias As injúrias devem ser feitas conjuntamente a fi m de que sendo menos saboreadas ofendam menos enquanto os benefícios devem ser feitos pouco a pouco para serem bem mais apreciados E acima de tudo deve um príncipe viver com seus súditos de forma que nenhum incidente mau ou bom faça variar seu comportamento porque vindo as vicissitudes em tempos adversos não terás tempo para o mal e o bem que fi zeres não te será creditado uma vez que o julgarão que o fi zeste forçado e não recebe rás então a gratidão de ninguém Maquiavel 2007a p 41 252 Da importância da arte da guerra para o Príncipe Outro conselho muito importante dado aos príncipes por Maquiavel refe rese à importância de manter sempre pronto e bem treinado um exército para que se possa defender o principado e a si próprio Maquiavel também marcou a 42 ELSEVIER Curso de Ciência Política sua biografi a com os escritos de estratégia militar Sua paixão pelo tema fez com que as armas se tornassem um ponto crucial de O Príncipe quanto às maneiras de se preservar um Estado Boas leis e boas armas são itens imprescindíveis da estabilidade política mesmo em tempos de paz Deve portanto um príncipe não ter outro objetivo nem pensamento nem tomar como arte sua coisa alguma que não seja a guerra sua ordem e disciplina porque esta é a única arte que convém a quem comanda É de tanta virtù que não só mantém aqueles que já nasceram príncipes como também muitas vezes permite que homens de condição priva da ascendam ao principado Inversamente vêse que os príncipes que pensam mais em refi namento do que nas armas perdem sua posição A primeira razão que te leva a perdêla é negligenciar essa arte e a razão que te faz conquistála é ser versado nela Portanto um príncipe não deve jamais afastar o pensamento do exercício da guerra e durante a paz deve exercitálo ainda mais do que durante a guerra Isso pode ser feito de duas maneiras com obras e com a mente Quanto às obras além de conservar bem organizados e treinados os seus exércitos deve se dedicar às caçadas acostumando o corpo ao desconforto e informan dose sobre à natureza dos lugares Quanto ao exercício das mente deve o príncipe ler obras históricas e refl etir sobre as ações dos homens excelentes ver como se comportaram nas guerras e examinar as razões das vitórias e derrotas a fi m de poder escapar destas e imitar aquelas Maquiavel 2007a p 71 253 De como um Príncipe deve ser parcimonioso em seus gastos No título desse trabalho usou se a expressão Há vícios que são virtu des Uma das formas de entendêla é analisar a abordagem de Maquiavel no que se refere aos gastos de um príncipe No capítulo XVI de seu livro o autor sustenta que para não correr o risco de um descontrole fi nanceiro derivado do excesso de gastos gerando a necessidade de tributar mais o povo o príncipe pode e deve ser parcimonioso em seus gastos sem temer a execração pública e a fama de miserável Portanto para não ter de roubar os súditos para poder defenderse para não fi car pobre e desprezível e para não ser obrigado a se tornar rapace um príncipe deve temer pouco incorrer na fama de miserável porque este é um dos vícios que lhe permitem governar Não há coisa alguma que mais se consuma a si mesma do que a liberalidade cujo uso te leva a perder a faculdade de usála tornandote pobre ou desprezível ou rapace e odioso se quiseres fugir à pobreza Dentre to 43 Capítulo 2 Há vícios que são virtudes Maquiavel teórico do realismo político Ricardo Guanabara das as coisas de que um príncipe deve guardarse a primeira é ser des prezível e odioso a liberalidade conduz a uma ou outra coisa Portanto é mais sábio fi car com a fama de miserável que gera uma infâmia sem ódio do que por desejar o renome de liberal precisar incorrer na fama de rapace que gera uma infâmia com ódio Maquiavel 2007a p 77 O tema desenvolvido acima se completará com a análise maquiaveliana sobre os meios de evitar o desprezo e o ódio por parte dos súditos Esta temá tica aparece no capítulo XIX do livro Maquiavel reforça a ideia já lançada de que se apropriar das coisas alheias torna o príncipe odioso Devese acrescentar no entanto que Maquiavel amplia sua abordagem para abranger também as mulheres dos súditos como algo que o príncipe não deve jamais cobiçar ou de que se apoderar É dessa forma que se evita o ódio Quanto ao desprezo para Maquiavel é fundamental que o príncipe não incorra na fama de inconstante leviano efeminado pusilânime e irresoluto Maquiavel 2007a p 87 254 Da importância de saber simular e dissimular Um dos capítulos mais polêmicos de O Príncipe e que certamente mais provocaram revolta contra Maquiavel é o de número XVIII De que modo de vem os príncipes manter a palavra dada Mais uma vez o autor recorre ao rea lismo político para justifi car um comportamento que pelo menos em tese seria contra a moral Segundo Maquiavel é justifi cável que um príncipe volte atrás na palavra dada ou em outras palavras não é um imperativo que se cumpra a palavra dada em certas ocasiões Mais uma vez o autor recorre à razão funda mental para essa ação a natureza humana Assim um príncipe prudente não pode nem deve guardar a palavra dada quando isso se torna prejudicial ou quando deixem de existir as razões que o haviam levado a prometer Se os homens fossem todos bons esse preceito não seria bom mas como são maus e não mantêm sua palavra para contigo não tens também que cumprir a tua Tam pouco faltam ao príncipe razões legítimas para desculpar sua falta de palavra Sobre isto poderíamos dar infi nitos exemplos modernos e mostrar quantos pactos e quantas promessas se tornaram inúteis e vãs por causa da infi delidade dos príncipes quem melhor se sai é quem melhor sabe valerse das qualidades da raposa Mas é necessário sa ber disfarçar bem essa natureza e ser grande simulador e dissimula dor pois os homens são tão simples e obedecem tanto às necessidades presentes que o enganador encontrará sempre quem se deixe enganar A um príncipe portanto não é necessário ter de fato todas as qua 44 ELSEVIER Curso de Ciência Política lidades supracitadas mas é indispensável parecer têlas Aliás ousarei dizer que se as tiver e utilizar sempre serão danosas enquanto se pa recer têlas serão úteis Assim deves parecer clemente fi el humano íntegro religioso e sêlo mas com a condição de estares com o ânimo disposto a quando necessário não o seres de modo que possas e saibas como tornarte o contrário Maquiavel 2007a p 8485 26 Conclusão Maquiavel deixou sua marca na história do pensamento político como um dos grandes inovadores da forma pensar as coisas do Estado Ao mesmo tempo que ostentou as grandes características do Renascimento como o antropocen trismo e a crença na capacidade criadora do homem divergiu de autores da Antiguidade romana embora os admirasse e do pensamento religioso Parado xalmente serviuse do que a Antiguidade clássica poderia oferecer para adaptá la pelo menos na arte da política às necessidades de seu tempo As posições políticas maquiavelianas tiveram um custo considerável para o pensador em especial para a sua imagem Muitos pensadores e autoridades eminentes o amaldiçoaram e reprovaram seus escritos Em terras inglesas rece beu um adjetivo malicioso derivado de seu nome nick ou old nick sinôni mos para a palavra demônio Ainda em tempos recentes grandes pensadores como Leo Strauss ainda defi niam Maquiavel como um mestre do mal Em 1559 durante o período da contrareforma a Igreja católica colocou O Príncipe no Index Librorium Prohibitorium uma relação de obras condenadas e proibidas pela Igreja A decisão foi confi rmada posteriormente pelo Concílio de Tentro Além de amaldiçoado Maquiavel passaria também a ser considerado um apologista do despotismo epíteto que só seria enfraquecido no século da Revolução Francesa quando autores como Jean Jacques Rousseau apresentam uma nova leitura da obra de Maquiavel Nessa nova visão o pensador fl orenti no é visto não como um autor maldito mas como um louvável e brilhante inte lectual que fi ngiu dar conselhos aos governantes quando em verdade ensinava ao povo as engrenagens invisíveis da política O que levou a obra de Maquiavel a manifestações de adesão e ódio foi o seu olhar sobre a política Um olhar como já dito inovador destemido em relação às autoridades religiosas e políticas do século XVII Tal independência foi fundamental para a solidez dos seus argumentos apesar de toda a polêmica que despertou Maquiavel procurou estudar a política da maneira mais realista sem in correr em juízos de valor derivados do moralismo antigo ou da religião Sua obra 45 Capítulo 2 Há vícios que são virtudes Maquiavel teórico do realismo político Ricardo Guanabara não comportou concessões aos idealismos prejudiciais à missão de um príncipe conquistar e manter Estados afastar o problema da instabilidade política tão comum na Itália do século XVII A estabilidade erigida como valor indispensável deve ser uma das me tas fundamentais dos governantes Ela é o coroamento da virtù principesca o conjunto das qualidades que levam o príncipe ao êxito político Tais qualidades divorciadas da moral alinhamse a um certo pragmatismo político capaz de fazer com que o príncipe aja de diferentes maneiras em momentos diversos não assumindo portanto compromissos com o agir bondoso ou justo A fl exi bilidade exigida pela virtù leva o príncipe a praticar em nome da estabilidade e manutenção do Estado atos de crueldade de dissimulação e simulação bem como de mesquinharia ou avareza Maquiavel acredita que seus argumentos convençam os homens da inu tilidade do comportamento moral ou virtuoso à moda tradicional É o mun do moderno habitado por homens ruins a razão que inviabiliza a política da bondade e do humanismo Leituras mais recentes de Maquiavel vêm procuran do de alguma forma separar os argumentos políticos de Maquiavel de suas crenças pessoais Buscase afastar do pensador fl orentino a imagem de prega dor cruel inimigo dos preceitos cristãos Como alternativa é possível pensar em um Maquiavel que reconhecia a importância dos ensinamentos cristãos e de suas lições mas não os considerava um guia seguro para as ações políticas De outra maneira tudo poderia ser diferente e melhor na política das sociedades se as máximas cristãs pudessem ser aplicadas na arena política No entanto caso insista nesse erro político o príncipe sofrerá graves prejuízos sobretudo por conta da natureza humana Merecem ainda destaque certos aspectos da política a serem observados pelo príncipe como por exemplo os caprichos da deusa fortuna A sombra do acaso do inesperado e do imponderável ronda os domínios humanos os palácios de governo Quem não se prepara para a chegada da fortuna alcança a ruína É preciso portanto aprender como lidar com a deusa e conquistar seus favores É preciso construir diques para evitar as inundações e ainda ser corajoso e viril São os antídotos contra as ações da fortuna vista por Maquiavel como uma fi gura feminina com as peculiaridades de uma mulher Ao príncipe é fundamental ainda o estudo da história e o aprendizado de seus exemplos A noção de história exemplarista é crucial para o argumento maquiaveliano uma vez que é fonte de ensinamentos e cursos de ação política Se os homens conservam traços imutáveis em sua natureza tanto na Antiguida 46 ELSEVIER Curso de Ciência Política de como no presente as situações políticas tendem a se repetir Conhecer o pas sado amplia o espectro de ações seguras a serem empreendidas pelo príncipe As páginas de O Príncipe estão repletas de exemplos históricos destinados a embasar e reforçar os argumentos de seu autor Maquiavel estuda a história da Antiguidade mas também o Velho Testamento De tais leituras conservará admiração por determinados líderes exaltandoos como autênticos homens de virtù Não se deve esquecer por derradeiro o valor intelectual de Maquiavel que além de conselheiro dos príncipes tarefa tão praticada na Florença renas centista por autores sem a originalidade vista em O Príncipe demonstrou outras faces Ressaltese a respeito a autoria de peças teatrais como A mandrágora e Clízia bem como o estrategista militar respeitado pela posteridade autor de A arte da guerra e ainda o historiador capaz de resgatar a história de Florença Fica aqui portanto um convite ao leitor para que mergulhe sem preconceitos no mundo maquiaveliano e refl ita sobre seus argumentos políticos O único risco possível é o de olhar a política contemporânea com outros olhos numa viagem sem volta Ainda assim vale a pena 27 Perguntas para reflexão 1 Explique o sentido da expressão há vícios que são virtudes analisan doa no contexto do pensamento maquiaveliano 2 Analise a relação de Maquiavel com os pensadores da Antiguidade res saltando continuidades e rupturas 3 Descreva a trajetória do conceito de fortuna da Antiguidade até o pen samento de Maquiavel 4 Explique o sentido de virtù no pensamento de Maquiavel 5 Analise a noção de realismo político tendo como parâmetro o pensamen to de Maquiavel 6 Analise as razões do choque entre o pensamento maquiaveliano e a dou trina da Igreja no cenário renascentista 7 Por que é possível dizer que Maquiavel foi um autor renascentista típico Explique 8 Analise o papel que a História ocupa no pensamento de Maquiavel 47 Capítulo 2 Há vícios que são virtudes Maquiavel teórico do realismo político Ricardo Guanabara 9 Desenvolva a noção de natureza humana ressaltando a sua importância para a política segundo Maquiavel 10 Por que na visão maquiaveliana é mais seguro para o príncipe ser temido do que ser amado Bibliografia BERLIN Isaiah Estudos sobre a Humanidade uma antologia de ensaios São Paulo Companhia das Letras 2002 BURKHARDT Jacob A cultura do Renascimento na Itália um ensaio São Pau lo Companhia das Letras 1991 CHEVALIER Jean Jacques As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias Rio de Janeiro Agir 1989 DE GRAZIA Sebastian Maquiavel no inferno São Paulo Companhia das Le tras 1993 JOHNSON Paul O Renascimento Rio de Janeiro Objetiva 2001 MAQUIAVEL Nicolau A mandrágora São Paulo Martin Claret 2003 O Príncipe São Paulo Martins Fontes 2007a Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio São Paulo Mar tins Fontes 2007b A arte da guerra São Paulo Martins Fontes 2007c PINZANI Alessandro Maquiavel e O Príncipe Rio de Janeiro Jorge Zahar Editores 2004 RICHE Flavio Elias A infl uência do paradigma científi conatural no pensamento político e social moderno Rio de Janeiro Lumen Júris 2005 SKINNER Quentin Maquiavel São Paulo Brasiliense 1988 As fundações do pensamento político moderno São Paulo Com panhia das Letras 2003 INFORMATION ABOUT THE POWER DROP AND PITCH OF THE ESTIMATED TOP BHP OF THE ENGINE MAKING THE POWER CHART IS USED TO SHOW THE RELATIONSHIP BETWEEN TORQUE AND ENGINE SPEED RPM FOR THE ENGINE SPECIFIED Capítulo 3 A teologia política de Hobbes Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco1 Os homens as mulheres um pássaro um crocodilo uma vaca um cão uma cobra uma cebola um alhoporó foram divinizados Thomas Hobbes 31 Introdução Thomas Hobbes é um dos autores mais notáveis da teoria política Pou cos autores despertaram tanto interesse de politólogos teólogos juristas poetas historiadores e do público em geral A pujança do Leviatã seu livro mais conhe cido quase ofuscou o restante de sua obra transformandoo ao mesmo tem po num autor clássico e num mito Autor clássico pois suas ideias e conceitos foram indicadores e fatores de mudanças sociais e políticas cujos efeitos ainda Doutor em Ciência Política pelo IUPERJ Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUCRio Professor de Teoria do Estado do Departamento de Direito Público da Universidade Federal Fluminense Professor de Sociologia Jurídica do Departamento de Direito da PUCRio Contato pvillasboascbgmailcom 50 ELSEVIER Curso de Ciência Política parecem ecoar devido aos confl itos religiosos e políticos que ameaçam a esta bilidade interna e externa dos Estados até os dias de hoje Além disso parece ter eternizado a vida do homem artifi cial Hobbes 1983 p 119 o Estado moderno que apesar de rumores advindos do processo de globalização1 não perdeu seu prazo de validade Ao contrário suas fronteiras sobretudo depois do 11 de Setembro de 2001 continuam sob vigilância ininterrupta Hobbes tornouse um mito entre outras razões em virtude da força do sím bolo míticoreligioso do Leviatã não extraído por acaso do Livro de Jó 41 24 do Velho Testamento e escolhido como título de seu livro que se apresenta como um enigma cujo teor continua a desafi ar seus estudiosos Além disso o conceito de homem isto é a antropologia política revelada no Leviatã é um entre tantos outros aspectos vulgarizados pela recepção das ideias do autor que não pode ser compreendido sem a sua concepção de religião As paixões humanas revela das por Hobbes converteramse em um mito em razão da tendência racionalista e moralizante dos estudos sobre o Leviatã associar as paixões e instintos do homem à maldade A equiparação entre maldade e irracionalidade conduz ao reducionis mo das ideias do autor cujo conteúdo concentrase mais em desvelar a falibilidade imanente à condição humana do que em acentuar sua crueldade A difi culdade em compreender as ideias de Hobbes ocorre em virtude dos sentidos subjacentes ao símbolo mítico do Leviatã ainda não se constituírem em objeto de estudo rigoroso A aura enigmática que os envolve se deve à reduzida atenção que lhes é conferida Na história das ideias políticas é lugarcomum priorizar a subsunção das ideias do fi lósofo inglês a correntes fi losófi cas a exemplo do racionalismo individua lismo mecanicismo empiricismo sensualismo e outros ismos A esse respeito observa Helmut Schelsky que tal tendência dos estudos sobre Hobbes orientase excessivamente por categorias rígidas e por isso cria um obstáculo à compreensão de suas ideias Schelsky 1938 p 176193 Acreditase que essa inclinação resida na negligência da hermenêutica que Hobbes faz do Velho e Novo Testamento A terceira e a quarta parte do Leviatã nas quais empreende rigorosa exegese das escrituras sagradas não são objeto da leitura de boa parte dos intérpretes Não há como compreender o seu conceito de homem e Estado sem a concepção que o autor tinha da religião Não esqueçamos que a antropologia política e o conceito de Estado de Hobbes nascem das sangrentas guerras confessionais de seu tempo 1 Jurgen Habermas observa que a globalização põe em risco a sobrevivência do Estadonação resultado da fusão do Estado moderno com a nação moderna no fi nal do século XVIII pois signifi ca a transgres são a remoção de fronteiras e portanto uma ameaça para aquele Estadonação que vigia quase neurotica mente suas fronteiras Habermas 1995 p 98 Curioso o autor profetizar o fi m do Estadonação e propor que regimes supranacionais o substituam quando o cenário internacional apresenta uma afi rmação da identidade nacional dos diferentes povos Além do mais os Estadonacionais e os remanescentes impérios depois do 11 de Setembro passaram a vigiar suas fronteiras de maneira sem precedentes na história 51 Capítulo 3 A teologia política de Hobbes Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco Este capítulo percorre o pensamento político de Hobbes mostrando so bretudo como o Leviatã deve ser compreendido como símbolo políticoreligioso que funda uma teoria moderna do Estado a partir de mitos e imagens sagradas Não só o conhecimento político jurídico mas também cabalístico mitológico teológico de Hobbes permitiulhe elaborar uma teologia política Uma teologia política que não funda o Estado através de poderes transcendentes mas por meio da religião que não reside em nenhum outro lugar a não ser no homem 32 Leviatã o homem o Estado o Estado cristão e reino das trevas O Leviatã de Hobbes dividese em quatro partes a primeira denominase Do homem a segunda Do Estado a terceira Do Estado cristão e a quarta Do reino das trevas Curioso perceber que a terceira e a quarta parte ou seja metade do livro sem correspondência em nenhum outro da obra do autor nem sequer no livro Do cidadão com o qual o Leviatã guarda muitos pontos em comum não são objeto de análise por parte da maioria dos intérpretes que revisitaram as ideias de Hobbes Cabe salientar que na terceira e na quarta parte do Leviatã o autor dedicase à exegese das Escrituras Sagradas a fi m de dar cabo às interpretações de representantes espirituais que legitimavam através de sofi sticadas constru ções a usurpação do âmbito jurídicopolítico dos poderes temporais Embora as interpretações apenas se dediquem aos escritos da primeira e da segunda parte do livro de Hobbes no Leviatã todas elas estão intimamen te ligadas revelando o traço sistemático do livro A primeira parte contém 16 capítulos contudo a maioria deles tende a ser eclipsada pelo XIII Da condição natural da humanidade relativa à sua felicidade ou miséria no qual o autor continua a desenvolver sua antropologia política retratando o funcionamento das forças cognitivas do homem e suas paixões A psicologia humana revelada na primeira parte do Leviatã ressalta a miséria cognitiva o hedonismo e a concupiscência provenientes respectivamente das sensações dos apetites e das aversões do homem No capítulo II da primeira parte ao tratar da imaginação Hobbes in cute em seu leitor a fragilidade de suas potências sensoriais fator determinante da ignorância quanto à distinção entre sonhos e outras ilusões como a visão a sensação a imaginação Essa limitação cognitiva seria a causa principal do surgimento de boa parte das religiões A incapacidade de distinguir quanto às forças intelectivas dos sentidos convertidos em representações que acometem o mundo mental do ser humano seria a fonte da adoração de sátiros faunos ninfas fadas fantasmas gnomos e feiticeiras Hobbes 1983 p 14 Enganados por seus sentidos como pelos prognósticos tirados de sonhos pelas falsas pro fecias e todos aqueles embusteiros que exploram sua credulidade o homem é continua mente atormentado pelo temor dos poderes espirituais ou invisíveis 52 ELSEVIER Curso de Ciência Política Ao pintar um retrato em que se revelam a miséria cognitiva e a pujança das paixões humanas Hobbes procura despir o mundo de qualquer signifi cado extrínseco ao homem de modo que a religião o poder a política e o Estado são forjados pelo homem e não mantêm nenhuma relação com poderes invisíveis de outro mundo Hobbes 1983 p 88 Sua concepção descortina um mundo niilis ta absolutamente aberto à contingência e à imprevisibilidade em que o poder o Estado a política o direito não podem ser desvendados em suas essências pois são fundados na arbitrariedade e nos caprichos da vontade humana isto é no poder fático de mando Na teoria política do autor não há espaço para verdades transcendentais emanadas da vontade divina da tradição do conhecimento dos antepassados ou da razão como potência reveladora de essências Desse modo na primeira parte do Leviatã Hobbes desconstrói as peças da machina machinarum para reconstruíla a partir de seus elementos mais simples como a sensação a imaginação a linguagem a razão a ciência as paixões e a re ligião O isolamento de cada elemento permite ao autor redefi nir seus respectivos conceitos desatando cada elemento das interpretações tradicionais que lhes dão signifi cado A partir daí desfere duros golpes na primeira parte e ao longo do li vro na fi losofi a de Platão e Aristóteles Hobbes 1983 p 392 e 399 na escolástica sobretudo nas Escolas criadas por representantes dos poderes espirituais que insu fl am o coração dos homens com especiosas distinções como a que separa a religião da política o que levaria à desobediência civil à sedição e à revolta Na segunda parte Hobbes não discorre apenas sobre os elementos cons titutivos do corpo político ou Estado mas também sobre sua fi nalidade as cau sas que o esmorecem e os meios de mantêlo Importante salientar que em seu livro A dialogue between a philosopher and a student of the common laws of England2 apresenta uma passagem que sintetiza as ideias expostas na construção política de seu homem artifi cial It is not Wisdom but authority that makes the Law Hobbes 1971 p 55 não é a sabedoria mas a autoridade que faz a lei em ou tras palavras Auctoritas non veritas facit legem3 É a autoridade e não a verdade 2 O referido livro foi traduzido sob o título Um diálogo entre um fi lósofo e um jurista A tradução me parece inadequada já que Hobbes o denominou Um diálogo entre um fi lósofo e um estudante do direito consuetudinário da Inglaterra 3 No capítulo XLVI da quarta parte do Leviatã Hobbes refuta o princípio apresentado na Política de Aristóteles desenvolvido posteriormente por Rousseau e elevado à categoria de vontade geral exposta no Contrato social 1762 com a afi rmativa de que quem governa são as leis e não os homens Percebese neste caso que Hobbes recusa o caráter transcendente de leis pois é autoridade dos homens equipados da força coercitiva que as determinam conforme a vontade São os homens e as armas não as palavras e promessas que fazem a força e o poder das leis E portanto este é um outro erro da política de Aristóte les a saber que num Estado bem ordenado não são os homens que governam mas sim as leis Qual é o 53 Capítulo 3 A teologia política de Hobbes Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco que faz as leis A referida passagem revela que o Estado introduzido pelo autor destitui as verdades provenientes do suposto mundo vindouro de consciências privadas dos costumes das leis naturais ou divinas de qualquer repercussão política pois o soberano de um Estado quer seja uma assembleia ou um ho mem não se encontra sujeito às leis4 1983 p 1625 Na construção de seu con ceito de soberania absoluta a autoridade competente representativa do Estado tem o monopólio da decisão política Decide o que é justo ou injusto crime ou pecado certo ou errado sobre o costume prolongado que deve elevarse ao status de lei Além de acumular as funções de juiz e legislador compete à vontade do Deus mortal determinar em conformidade com o princípio cujus regio eius religio6 a fé que deve ser publicamente professada nos limites de seu reino ou território o que deve ser considerado verdade ou mentira considerado homem dotado de seus sentidos naturais muito embora não saiba ler nem escrever que não se encontra governado por aqueles que teme e que acredita o podem matar ou ferir se ele não lhes obedecer Ou que acredite que a lei o pode ferir isto é palavras e papel sem as mãos e espadas dos homens 1983 p 394 Ver também p 41 e 42 do Leviatã 1983 4 O teor de tal passagem se repete inúmeras vezes sob várias formas ao longo do Leviatã por exemplo no capítulo XXXIX porém é importante compreendêla pois mesmo após a instituição ou aquisição do Estado o soberano permanece na condição natural relativa à felicidade ou à miséria do capítulo XIII ou no estado de natureza em que cada indivíduo governavase a si próprio pois não alienou a ninguém seu direito ou poderes de autopreservação ao contrário foramlhe delegados mediante pacto por par ticulares que agiam isoladamente como juízes em causa própria com poderes ilimitados para garantir a segurança de todos É por isso que no cenário internacional cuja gênese ocorre após a constituição e o estabelecimento da ordem interna dos corpos políticos cada representante do homem artifi cial é um lobo para o outro A relação entre corpos políticos caracterizase pela imprevisibilidade pela incerteza exatamente como no estado prépolítico ou de natureza em que predomina forte tensão revestida de desconfi ança e precariedade quanto à promessa das palavras dadas Portanto se no âmbito das relações intestinas do corpo político o soberano é um deus mortal para os contratantes no plano das relações ex teriores isto é na relação entre Estados não há hierarquia pois todos os soberanos são respectivamente lobos uns para os outros É em virtude disso que Hobbes afi rma no Cidadão que ambos ditos são certos que o homem é um deus para o homem e que o homem é lobo do homem O primeiro é verdade se comparamos os cidadãos o segundo se cotejamos as cidades 1998 p 3 5 Parece que o conceito de razão de Hobbes já era mal compreendido na época em que viveu Observa o autor no livro Do cidadão por reta razão no estado da natureza humana não entendo como querem muitos uma faculdade infalível porém o ato de raciocinar Hobbes 1998 p 368 6 A divisão da Igreja romana esmoreceu a quase inabalável autoridade papista o que abriu caminho para que alguns líderes seculares usurpassem a autoridade eclesiástica de determinar em seus domínios qual seria a religião ofi cial do reino exatamente de acordo com o princípio secularizante cujus regio eius religio a religião é de quem é a região porque quem não tem reino não pode fazer leis Hobbes 1983 p 309 Portanto quem não tem reino não pode ordenar a conduta humana nem tampouco deter o monopólio acerca da crença dos súditos 54 ELSEVIER Curso de Ciência Política milagre7 ou charlatanismo Como o autor em inúmeras passagens da primeira segunda terceira e quarta partes do Leviatã separa foro íntimo de foro externo isto é intenção de ação o interno do externo a razão privada da razão pública observase que o monopólio da decisão política do governante do Estado inclui o controle das manifestações externas das crenças religiosas dos governados Verifi case que para Hobbes a decisão política do soberano cuja vontade funda se na autoridade capaz de controlar os meios coercitivos é vestida com força de lei Portanto a lei não emana de nenhum milagre ou revelação nem tampouco de uma razão natural ou como diria Weber do mero costume de um hábito cego de um comportamento inveterado Weber 1982 p 128 Cabe ressaltar que na segunda parte do Leviatã como ao longo do livro in teiro o autor dispara críticas à divisibilidade da alma isto é à divisão do poder soberano do Estado cuja causa principal consiste na especiosa distinção entre po der temporal e poder espiritual forjada pelas autoridades espirituais Ora não é trivial o autor investir de forma tão incisiva contra a referida distinção no capítu lo XXIX em que trata das coisas que enfraquecem ou levam à dissolução de um Estado Fica claro a partir da introdução de seu conceito de soberania indivisível que não pode haver um poder temporal e outro espiritual pois ambos representam a existência de dois Estados e um homem não pode obedecer a dois senhores pois tal confusão leva à desordem e pode conduzir à destruição do Estado quer seja temporal ou espiritual Poder não se pode opor a poder portanto quando estes dois poderes se opõem um ao outro o Estado só pode estar em grande perigo de guerra civil e de dissolução Pois sendo a autoridade 7 No capítulo XXXVII ao tratar do milagre e seus usos Hobbes é peremptório pois quem decide a respeito do que é milagre verdade ou mentira não são as consciências privadas mas sim a razão pública do Estado pois quanto a esse problema nenhum de nós deve aceitar como juiz sua razão ou consciência privada mas a razão pública isto é a razão do supremo lugartenente de Deus E sem dúvida já o esco lhemos como juiz se já lhe demos um poder soberano para fazer tudo quanto seja necessário para nossa paz e defesa 1983 p 264 Ao sustentar que milagre é o que o comando da autoridade estatal obriga aos súditos acreditar Hobbes não está negando a liberdade de crença no foro íntimo ou liberdade de pensa mento pois um particular tem sempre liberdade de acreditar ou não acreditar em seu foro íntimo nos fatos que lhe forem apresentados como milagres conforme veja qual benefício sua crença pode acarretar para os que afi rmam ou negam e conjeturando a partir daí se eles são milagres ou mentiras Mas quando se trata da profi ssão pública dessa fé a razão privada deve se submeter à razão pública Aqui cabe desfa zer o equívoco de interpretação histórica Tem sido trivial assegurar que foi na última fase da Escola do Direito Natural que surgiu a primeira doutrina explícita e deliberada sobre os critérios distintivos entre o mundo jurídico e o mundo moral o que se deve atribuir aos méritos de Th omaisus 16551728 no tadamente em sua obra capital Fundamenta Juris Naturae et Gentium publicada em 1705 Reale 2000 p 653 Hobbes ao separar foro íntimo de foro externo o plano interno da consciência do plano externo da ação razão privada de razão pública já estava separando a política da moral como fi zera Maquiavel 55 Capítulo 3 A teologia política de Hobbes Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco civil mais visível e erguendose na luz mais clara da razão natural não pode fazer outra coisa senão atrair a ela em todas as épocas uma parte muito considerável do povo e a espiritual muito embora se levante na escuridão das distinções da Escola e das palavras difíceis contudo por que o receio da escuridão e dos espíritos é maior que os outros temores não pode deixar de congraçar um partido sufi ciente para a desordem e muitas vezes para destruição de um Estado 1983 p 196 A fi m de evitar a insignifi cante distinção entre o temporal e o espiritual que leva à dissolução do Estado Hobbes soluciona o problema da seguinte for ma ou o civil que é o poder do Estado tem de estar subordinado ao espiritual e então não há nenhuma soberania exceto a espiritual ou o espiritual tem de estar subordinado ao temporal e então não existe nenhuma supremacia senão a temporal Hobbes 1983 p 196 Na terceira e na quarta parte em que trata respectivamente do Estado cristão e do reino das trevas Hobbes não somente se utiliza das Escrituras Sa gradas para refutar teses que propugnam pela monarquia universal da Igreja num âmbito temporal O autor também recorre aos textos sagrados a fi m de emancipar um domínio secular da tutela da Igreja Para tanto extrai princípios sob os quais fundase a sua teoria dos direitos de quem governa e deveres de quem obedece Conforme informa Hobbes é destas Escrituras que vou extrair os princípios de meu discurso a respeito dos direitos dos que são na terra os supremos governantes dos Estados cristãos e dos deveres dos súditos cristãos para com seus soberanos E com esse fi m vou falar no capítulo seguinte dos li vros autores alcance e autoridade da Bíblia Hobbes 1983 p 264 A incursão do autor nas Escrituras Sagradas tem a fi nalidade de provar que o poder espi ritual tem jurisdição no mundo vindouro portanto enquanto não chegar o dia do juízo fi nal não se deve obediência a nenhum outro poder senão ao temporal Obstinado Hobbes repete inúmeras vezes através de várias passagens distin tas as palavras atribuídas a Jesus Cristo o meu reino não é deste mundo João 1836 Desse modo nosso Salvador veio a este mundo para ser rei e juiz num mundo vindouro Hobbes 1983 p 286 Denunciada a distinção entre poder espiritual e poder temporal entre po deres visíveis e invisíveis Hobbes não só acusava os representantes do clero ro mano pois não é só o clero romano que pretende que o Reino de Deus seja deste mundo e que ele portanto tem um poder distinto do Estado civil 1983 p 403 Os autores das trevas na religião são o clero romano e clero presbiteriano 1983 p 398 Observase que o esforço do autor é no sentido de negar qualquer usur pação do poder temporal por parte de papas monges frades bispos ou pastores 56 ELSEVIER Curso de Ciência Política e deslocar o temor dos poderes invisíveis espirituais para o temor dos poderes visíveis temporais deslocar a atenção dos homens das sedutoras promessas de salvação da alma num mundo vindouro para a salvação da vida neste mundo A estrada aberta pela Reforma determinante para a quebra do monopólio da Igreja romana da conduta humana precisamente de como o homem deveria agir neste mundo para obter a salvação eterna num mundo vindouro individualizou os homens pluralizou as crenças provenientes das consciências privadas trans formou com a tradução da Bíblia para língua vernácula cada homem num juiz de suas ações Hobbes 1990 p 22 A Reforma converteu o mundo num cenário contingente imprevisível no qual os homens ao evocarem sua consciência priva da e manifestarem suas convicções religiosas podem entrar em violento confl ito corporal Tal cenário que leva às guerras civis religiosas muito semelhante ao apresentado no capítulo XIII do Leviatã só poderia ser neutralizado com a submis são do poder espiritual ao poder temporal Portanto a fi m de elidir a distinção entre o poder espiritual e o poder tem poral Hobbes submete o primeiro ao segundo A emancipação de um domínio estritamente secular das rédeas do poder da Igreja implica subordinar a Igreja ao Estado convertendo a instituição espiritual num instrumento de controle da ordem interna do Estado A Igreja passa a ser mais um instrumento a serviço dos interesses políticos do Estado Em outras palavras o autor não separa o poder da Igreja do poder do Estado mas incorpora a Igreja ao Estado Assim o autor não separa poderes mas os unifi ca nas mãos do domínio secular a partir daí portanto fi cam inseparáveis o direito de regular quer a política quer a religião Hobbes 1983 p 282 A religião não é estranha à política pois não somente a integra como principalmente constituise num efi caz instrumento político de dominação A religião como arma política indispensável na arte mediante a qual se constitui e mantém um corpo político não era novidade na história das civilizações O ato de incutir na mente do povo a crença em preceitos da religião inventados por homens e divulgálos como ditames de algum deus consistia numa técnica de dominação utilizada pelos primeiros fundadores e legislado res de Estados entre os gentios cujo objetivo era manter o povo em obediência e paz e fazer com que suas leis fossem mais facilmente aceitas Hobbes 1983 p 70 Talvez esta seja uma das passagens mais importantes do Leviatã de Ho bbes Isto porque nela se percebe que o monopólio da crença é indispensável à arte de governar o povo e como o governante deve tirar partido da tendência do gênero humano à irracionalidade da crença nos poderes invisíveis Hobbes 1983 p 263 57 Capítulo 3 A teologia política de Hobbes Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco 33 Miséria cognitiva e crença 331 Breves observações sobre a Reforma protestante A Reforma protestante é um dos eventos históricos mais importantes para compreensão da formação do Estado moderno Em conformidade com Hobbes que viveu o terror da guerra civilreligiosa de seu tempo a principal causa das guerras confessionais teria como origem a destruição da unidade da Igreja romana ocorrida no século XVI A representação do estado de natureza do homem era proveniente dos confl itos resultantes da pluralização de crenças religiosas privadas que não pos suíam amparo externo Hobbes no Leviatã de maneira jamais vista em toda a sua obra fez de suas ideias uma verdadeira arma política contra qualquer tipo de auto ridade espiritual que se arrogasse o direito de intervir na esfera das decisões jurídi cas e políticas de domínios temporais Para o autor era indiferente se a autoridade fosse proveniente da Igreja romana ou presbiteriana ou qualquer outra Igreja pro testante Hobbes sabia como ninguém que líderes espirituais controlavam melhor do que líderes temporais as paixões dos homens cujo traço primordial residiria na natureza cognitiva falível calcada no medo e no amor pelo ininteligível A Reforma protestante também defi nida como renúncia de certas Igrejas ao poder universal do Papa Hobbes 1983 p 398 ao dar cabo ao monopólio da interpretação das Escrituras Sagradas e portanto estender sua interpretação a todos espraiou o veneno das doutrinas sediciosas que contribuem com as doenças de um Estado A livre interpretação da Bíblia8 transformou o mundo 8 Hobbes no livro Behemoth narra detalhadamente os fatos que desencadearam o caos da guerra civil religiosa ocorrida na Inglaterra de 1640 a 1660 Irreverente Hobbes desferia duras críticas às Igrejas Romana Presbiteriana Anglicana Puritana enfi m a todas as seitas e formas de crença que julgasse sediciosas isto é que pudessem exortar à desobediência e tumultuar a ordem interna de domínios tem porais Para ele uma das principais causas dos confl itos religiosos de seu tempo era justamente a livre interpretação da Bíblia promovida pela Reforma A tradução das Escrituras Sagradas para língua verná cula permitia a cada um falar com Deus e consequentemente transformava os homens em juízes para decidir acerca do bem e do mal Hobbes sustenta que após a tradução da Bíblia para o inglês até mesmo a obediência devida às autoridades das Igrejas protestantes fora perdida Conforme o autor porque depois de traduzir a Bíblia para o inglês todo homem mais ainda todo menino e menina que sabia ler em inglês pensava falar com Deus TodoPoderoso e entender o que Ele dizia isso se à medida de um certo número de capítulos das Escrituras por dia as lera uma ou duas vezes do começo ao fi m E desse modo foram renegadas a reverência e a obediência devidas à Igreja protestante daqui e aos seus bispos e pastores de então pois todo homem se tornou juiz da religião e intérprete das Escrituras para si próprio Hobbes 2001 p 55 No Behemoth Hobbes também proclama que a licença para interpretar livremente a Bíblia provocou a aparição de inúmeras seitas responsáveis pelo início dos distúrbios no interior do Estado inglês Denuncia reconheço que essa licença para interpretar as Escrituras foi a origem das inú meras seitas as quais tendose mantido ocultas até o início do reinado do falecido rei então se revelaram para provocar distúrbios na república Hobbes 2001 p 55 58 ELSEVIER Curso de Ciência Política fragmentou os homens e seu mundo real Agora todo indivíduo particular é juiz das boas e más ações 1983 p 193 O ato de o sujeito interpretar livremente9 os desígnios de Deus não somente o projeta dentro de si próprio individualizan doo como também o torna juiz das boas e más ações elevandoo acima de qualquer lei civil Ora a descrição de tal homem individualizado que toma como medida de suas ações seu mundo interior sua consciência sua crença agindo em relação aos outros sem um poder comum capaz de manter a todos em respeito10 é idêntica à forma pela qual Hobbes retrata o estado de natureza em que vive a humanidade 1983 p 75 O próprio autor ao se insurgir contra a doutrina que eleva o juízo privado acima das leis civis de um Estado declara que isto é verdade na condição de simples natureza quando não existem leis civis e também sob governo civil nos casos que não são determinados pela Lei Mas não sendo assim é evidente que a medida das boas e más ações é lei civil e o juiz o legislador que é sempre representativo do Estado Partindo desta falsa doutrina os homens adquirem a tendência para debater consigo próprios e discutir as ordens do Estado e mais tar de para desobedecêlas conforme acharem conveniente em seus juízos particulares Pelo que o Estado é perturbado enfraquecido 1983 p 193 Cumpre esclarecer que a Reforma protestante foi a principal causa das guerras confessionais que assolaram a Europa durante os séculos XVI e XVII A cisão do cristianismo ocidental solapou a ordem tradicional individualizou o homem pluralizou as concepções de mundo disseminou a desconfi ança pro moveu violentos combates entre as Igrejas e perseguições entre fi éis As disputas entre autoridades espirituais de distintas Igrejas e seitas criavam um oceano de incertezas nos domínios seculares Por outro lado a divisão da Igreja romana esmoreceu a quase inabalável autoridade papista o que possibilitou a alguns líderes seculares usurpar a autoridade eclesiástica de determinar em seus do mínios qual seria a religião ofi cial do reino exatamente de acordo com o princí pio secularizante cujus regio ejus religio a religião é de quem é região porque 9 No Behemoth cuja narrativa é estruturada por Hobbes em forma de diálogo entre um mestre e seu pupilo discutese a partir de uma abordagem histórica a licença concedida aos súditos para interpretar livremente a Bíblia Ao discutir a fi nalidade da licença o pupilo indaga ao seu mestre que outra fi na lidade poderia ter ao recomendarme a Bíblia se não pretendia que dela eu fi zesse a regra de minhas ações Hobbes 2001 p 22 10 Importante salientar que a despeito de elogios à tradução do Leviatã para o português realizada por João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza Silva Ed Abril 1983 observa Janine em nota referente a sua apresentação à obra Do cidadão Hobbes 1998 p 351 que Hobbes não menciona um poder comum capaz de manter a todos em respeito mas sim um poder comum capaz de manter a todos em reverente temor Janine 1999 p 34 59 Capítulo 3 A teologia política de Hobbes Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco quem não tem reino não pode fazer leis 1983 p 309 Portanto quem não tem reino não pode ordenar a conduta humana e tampouco deter o monopólio acer ca das crenças dos súditos 332 O homem e a religião Nesta parte do trabalho importa examinar o conceito de homem elaborado por Hobbes e relacionálo com a sua defi nição de religião Como se viu tal con cepção antropológica não pode ser dissociada da guerra civilreligiosa que aco metia a Europa do século XVI e XVII Todavia pretendese mostrar como para o autor inglês a faculdade intelectiva da espécie humana é marcada pela limitação cognitiva que desencadeia a irracionalidade das crenças religiosas É justamente a limitação dos sentidos da imaginação da memória das paixões que cria uma inexorável dependência da religião e portanto de uma autoridade representativa do Estado que possa controlar suas crenças externas A irracionalidade da crença exige um limite exterior imposto por uma autoridade soberana capaz de manter os homens em reverente temor A crença proveniente do foro íntimo deve ser destituída de repercussão política para reinar a proteção em troca de obediência A despeito de Hobbes acentuar a limitação cognitiva como marca inde lével de sua antropologia ressalta que se o homem é a mais excelente obra da natureza não seria de admirar que não só seja capaz de imitála como tam bém mediante a arte11 de criar a partir da natureza outro homem um homem artifi cial cuja estatura e força ultrapassem as de muitos homens naturais 1983 p 5 Mas qual seria a intenção desse homem Por que estaria querendo ampliar artifi cialmente sua estatura e força Intentaria se proteger De quem Para responder a tal indagação devese conhecer o homem natural E se por ventura se deseja conhecer o homem artifi cial também denominado animal arti fi cial máquina corpo político Civitas Estado ou Leviatã devese a fortiori voltar as atenções para seu elemento constitutivo isto é o seu artífi ce o homem natural Não obstante Hobbes qualifi que o homem como criatura racional e o con sidere como se disse a mais excelente obra da natureza o autor elabora uma verdadeira teoria sobre a falibilidade humana Ao elevar a percepção sensorial à categoria de ponto de partida indiscutível de sua investigação descreve o mun 11 Hobbes expõe sua defi nição de arte como tudo aquilo que não é dado por natureza ou posto por Deus Arte é produto da vontade humana e portanto diferenciase de milagres pois o que é forjado pelo engenho humano é passível de conhecimento Ao comparar arte e milagre comenta o autor que há muitas obras raras produzidas pela arte do homem mas quando sabemos que foram feitas não as consi deramos milagres pois não são forjadas imediatamente pelas mãos de Deus e sim através da mediação do engenho humano Hobbes 1983 p 260 60 ELSEVIER Curso de Ciência Política do mental humano como um complexo mecanismo de causa e efeito de forças resultantes da conjugação de matéria e movimento A partir daí revela o funcio namento da imaginação da memória do intelecto do raciocínio da vontade das paixões dos valores do bem e do mal enfi m lança mão de um rigoroso método introspectivo para conscientizar o homem de sua própria fragilidade de sua con dição natural de miséria cognitiva Sua fi nalidade não consiste em atemorizar o homem diante de sua própria natureza Ao contrário ao profetizar que a sabedo ria não se adquire pela leitura dos livros mas do homem e convidar cada homem a adotar o lema nosce te ipsum lête a ti mesmo tem o intuito de demonstrar que quem quer que olhe para dentro de si mesmo perceberá mediante esse caminho quais são os pensamentos e paixões de todos outros homens em situações idên ticas 1983 p 6 Através da demonstração do poder da introspecção e portanto do conhecimento da natureza humana isto é conhecimento da semelhança entre pensamentos e paixões de distintos homens será fácil reconhecer um denomina dor comum o medo e a necessidade de fundar um corpo político para reduzilo Aproximandose de uma tradição cética12 de pensamento Hobbes par tiu da dúvida para perscrutar o homem Conclui que o estudo dos princípios e causas dos pensamentos e aparências diversas manifestados na mente humana teria de começar com a sensação Este é seu ponto de partida não porque não há engano ou desonestidade na afi rmação dos sentidos mas o fato de sentir mos lhe parece a única coisa com a qual podemos estar inequivocamente certos Oakeshott 1946 p XXII O ser humano é antes de qualquer coisa uma criatura dotada de sentidos visão audição olfato paladar e tato Não há nenhum pensamento ou represen tação de algo que não se tenha originado nos órgãos dos sentidos em virtude de uma pressão exercida por um objeto ou resultante do acidente de um corpo exterior a nós 1983 p 9 Em outras palavras a pressão exercida no órgão dos sentidos por um corpo exterior produz no mundo mental humano pensamen tos representações ou aparências diversas Conforme Hobbes a origem de todas elas é aquilo que denominamos sensação pois não há concepção no espí rito do homem que primeiro não tenha sido originada total ou parcialmente nos órgãos dos sentidos 1983 p 9 12 Oakeshott ao perscrutar as raízes do racionalismo de Hobbes as situa no ceticismo proveniente da fase fi nal da tradição do pensamento escolástico Ao contrário de autores como Spinoza e Descartes Hobbes não pertenceria a uma tradição platônicocristã Segundo o autor ele não se refere nor malmente à razão à divina iluminação do intelecto que une o homem a Deus ele se refere ao raciocí nio Ele não está menos persuadido da falibilidade e limitação da razão do que o próprio Montaigne Oakeshott 1946 p XXVII Como se verá a razão para Hobbes não desvela essências pois consiste em mero cálculo isto é adequação de meios para fi ns 61 Capítulo 3 A teologia política de Hobbes Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco Hobbes vai mais longe Desvela no desconhecido mundo interior do cor po humano um mecanismo de reação isto é uma resposta dada pelos órgãos internos ao corpo externo que os pressionou O corpo externo que nada mais é do que matéria em movimento ao entrar em contato e consequentemente pressionar um órgão interior de uma criatura viva causa uma alteração no mo vimento desse órgão que por sua vez causa uma alteração no movimento dos nervos A movimentação dos nervos e outras cordas e membranas do corpo prolongada para dentro em direção ao cérebro e coração causa ali uma resis tência ou contrapressão ou esforço do coração para se transmitir cujo esforço porque para fora parece ser de algum modo exterior 1983 p 9 Observese que a resistência ou contrapressão do coração ou então a reação do coração à pressão causada por aquele corpo exterior em movimento também é defi nida como um esforço do coração para se transmitir Em virtude de tal esforço do órgão interior ser feito para fora em reação à força realizada para dentro temse a impressão ou ilusão de que alguma coisa está acontecendo do lado de fora ou que parece ser de algum modo exterior Ora é justamente esta ilusão ou impressão que se denomina sensação O jogo de ação e reação de pressão e con trapressão ocasionado pelos corpos em movimento dentro do organismo forne ce a impressão de que algo acontece do lado de fora do organismo Hobbes ao comentar os movimentos da matéria que pressionam nossos órgãos diz que sua aparência para nós é ilusão quer quando estamos acordados quer quan do estamos dormindo1983 p 9 É imprescindível levar em consideração que para Hobbes consciência é mera aparência O que se passa no interior do corpo é real o que chamamos de experiências mentais são simples aparências de movi mentos corpóreos Experiências mentais ou conscientes não são de modo algum reais O que é real é a matéria corpórea em movimento Raphael 1978 p 24 No que respeita a passagem acima citada é bom de antemão frisar que a despeito de Hobbes esforçarse para conectar a física à psicologia e procurar des nudar de um ponto de vista estritamente racional um mundo mecânico ininte ligível à faculdade sensorial o autor como se verá adiante sabe muito bem das limitações do conhecimento científi co independentemente do âmbito da vida em que seja aplicado Ainda em relação à citação acima cumpre dizer que atri buir a Hobbes o entendimento de que o real é o ininteligível13 isto é o real é a matéria em movimento é verdade na medida em que se sabe qual é a tarefa da fi losofi a para o autor Hobbes acredita que a tarefa da fi losofi a é representar 13 Observa Hobbes que embora os homens sem instrução não concebam que haja movimento quando a coisa movida é invisível ou quando o espaço onde ela é movida devido a sua pequenez é insensível não obstante esses movimentos existem 1983 p 32 62 ELSEVIER Curso de Ciência Política o mundo no espelho da razão A imagem do mundo projetada nesse espelho é a de um mundo de causa e efeito A função da razão consiste em determinar o alcance e limite da investigação fi losófi ca Oakeshott 1946 p X Porém a razão somente logrará êxito em seu papel se o mundo for concebido como causa e efeito matéria e movimento ação e reação pressão e contrapressão Ora então para Hobbes o mundo é uma máquina Se porventura se deseja explicar um efeito basta buscar sua causa imediata ou então para saber o resultado de uma causa procurase o efeito imediato Não Hobbes não era ingênuo 14 sabia da existência de distintas concepções de mundo repletas de coisas que por defi ni ção não poderiam ser submetidas a uma relação de causalidade Como poderia uma fi losofi a da causalidade explicar um ser ubíquo como Deus15 O mundo vindouro Um mundo de tênues corpos aéreos belzebu fantasmas ninfas ído los hereges Como se poderiam extrair consequências de coisas infi nitas coisas eternas causas últimas coisas vindouras enfi m como conhecer racionalmen te coisas que somente podem ser conhecidas mediante a divina graça ou re velação Atentese para o fato de Hobbes não negar a existência de tais coisas mas sua racionalidade Oakeshott 1946 p XX É inequívoco que o autor sabia da existência de milagres profecias deuses demônios religiões superstições porém tais coisas eram peculiares à natureza humana e só existiam devido às paixões dos homens Como iluminar o reino das trevas em que vivia a fanática turba insana de seu tempo e demonstrar a supremacia da autoridade temporal e em relação à autoridade espiritual Para responder à indagação insta fazer o homem conhecer a si próprio e a partir daí será mais fácil para Hobbes propor seu projeto político que não salva vidas no Céu mas prolonga a vida não só do 14 Observa Oakeshott que Hobbes não diz que o mundo natural é uma máquina ele diz que somente o mundo racional é análogo a uma máquina Oakeshott 1946 p XX Isto quer dizer que se o mundo é concebido de um ponto vista racional não há espaço para teologia ou qualquer outra área do saber que não se atenha à noção de causalidade A despeito de Hobbes ser infl uenciado pela escolástica o autor procura secularizar a fi losofi a separandoa dos interesses da teologia 15 A fi losofi a concebida por Hobbes como sinônimo de ciência consiste no conhecimento das consequ ências A razão compreendida como cálculo é a ferramenta mediante a qual se podem somar consequên cias Todavia tais instrumentos estão longe de nos ensinar alguma coisa não somente sobre a natureza de Deus mas sobre a nossa também Relata Hobbes que a discussão sobre a natureza de Deus é contrária à sua honra pois se supõe que neste reino natural de Deus não existe nenhuma outra maneira de conhecer qualquer coisa sobre a natureza exceto pela razão natural isto é pelos princípios da ciência natural a qual está tão longe de nos ensinar alguma coisa sobre a natureza de Deus como de nos ensinar nossa própria natureza ou natureza do mais ínfi mo ser vivo O agnosticismo do autor se revela mais intensamente ao ressaltar que nos atributos que damos a Deus não devemos considerar a verdade fi losófi ca mas a signifi cação da intenção piedosa de lhe prestarmos a maior honra de que somos capazes 1983 p 216 Hobbes parece dizer que os atributos que damos a Deus são produto das paixões humanas e portanto inescrutáveis 63 Capítulo 3 A teologia política de Hobbes Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco homem natural mas também do homem artifi cial na Terra16 Devese portanto voltar as atenções para a antropologia elaborada por Hobbes para em seguida compreender como deve ser a ordem jurídicopolítica de uma comunidade pro posta pelo autor Outra faculdade com a qual se pode contar é a imaginação que nada mais é portanto senão uma sensação diminuída e encontrase nos homens tal como em muitos seres vivos quer estejam adormecidos quer estejam desper tos 1983 p 11 A imaginação consiste portanto no poder ou capacidade de recordar ou representar na mente sensações de vestígios passados Exprimir o que é evanescente isto é transmitir uma sensação remota antiga chamase me mória Memória e imaginação são a mesma coisa Muita memória ou a memó ria de muitas coisas chamase experiência 1983 p 12 A despeito de sua dependência dos sentidos a imaginação consiste numa faculdade capaz de compor ao mesmo tempo sensações sentidas em momentos diversos portanto podese imaginar o que nunca antes fora visto como quando a partir da visão de um homem em determinado momento e de um cavalo em ou tro momento concebemos em nosso espírito um centauro Reparese que a ima ginação composta pode levar a uma verdadeira fi cção do espírito 1983 p 12 A imaginação de quem quer que esteja dormindo chamase sonho E aí pode ocorrer uma confusão pois é muito difícil estabelecer uma distinção entre sonho e sensação Hobbes por exemplo ao estar acordado sabe que não está dormindo mas quando está dormindo se julga acordado No que me diz respeito acor dado observo muitas vezes o absurdo dos sonhos mas nunca sonho com absurdo dos meus pensamentos despertos contentome com saber que estando desperto não sonho muito embora quando sonho me julgue acordado 1983 p 13 Observese que através do poder da introspecção Hobbes vai instilando no seu leitor uma inquietude uma incerteza quanto à sua capacidade cognitiva quanto às suas crenças O poder da imaginação leva à mente vestígios de sensa ções passadas vestidas sob a forma de experiência que nada mais é do que a memória de muitas coisas quando na verdade tornase difícil saber o que se experimentou ou vivenciou Pode ser um sonho uma ilusão uma visão fantás tica ou até mesmo uma cadeia de sensações diminuídas ou então recordação ou representação de fragmentos na mente de fatos que realmente ocorreram no passado Tal condição humana ou capacidade cognitiva pode traduzirse numa 16 Observa o autor que quanto à salvação geral como ela se deve dar no Reino dos Céus há uma grande difi culdade quanto ao lugar Por um lado enquanto se trata de um reino que é uma situação organizada pelos homens para sua perpétua segurança contra seus inimigos e as necessidades parece que essa salvação devese dar na terra 1983 p 272 64 ELSEVIER Curso de Ciência Política verdadeira ignorância e desta ignorância quanto à distinção entre os sonhos e outras ilusões fortes e a visão e a sensação surgiu no passado a maior parte da religião dos gentios os quais adoravam sátiros faunos ninfas e outros seres semelhantes e nos nossos dias a opinião que a gente grosseira tem das fadas fantasmas e gnomos e do poder das feitiçarias 1983 p 14 Aqui se torna fundamental observar que logo no início do Leviatã Hobbes começa a inculcar o que considera o maior problema da condição natural da hu manidade o medo que deriva da crença nos poderes invisíveis Vale observar que o autor elabora sua antropologia sobretudo com a fi nalidade de conscien tizar os homens de sua condição de miséria cognitiva Tal condição suscita nos homens a crença no ininteligível nos poderes invisíveis o que os conduz a um medo incomensurável Por isso o homem de Hobbes é uma presa fácil para qualquer tipo de charlatanismo sobretudo o praticado por autoridades eclesiás ticas que para o autor não passam de impostores Depois de tornar os homens cônscios de sua fragilidade cognitiva e de suas paixões hedonistas e concupis centes Hobbes poderá enfrentar a sede de poder político das autoridades espiri tuais e provar que para alcançar a paz devese conceder o monopólio da decisão política a uma autoridade temporal Embora Hobbes não mencione o termo secularização é inequívoco como na primeira parte do Leviatã na qual descreve o seu conceito de homem já se poder sentir a força secularizante de suas ideias Ao descrever a sensação a ima ginação e as paixões dos homens o autor entre outros propósitos tem em vista desmistifi car o conhecimento transmitido sobre o homem pelas escolas de fi losofi a das Universidades da Cristandade No fi nal do primeiro capítulo após expor sua teoria sobre as sensações como se viu o poder receptivo dos cinco sentidos através do qual se origina qualquer pensamento ou representação no mundo mental denuncia que as escolas de fi losofi a em todas as Universi dades da cristandade baseadas em certos textos de Aristóteles ensinam outra doutrina 1983 p 10 Acusa as universidades da cristandade de ensinar falsas doutrinas relativas à origem do conhecimento produzido no cérebro humano ou em outras palavras à causa do entendimento dos homens Ao invés de en sinarem que a causa do entendimento ou da faculdade de imaginar reside na pressão dos órgãos dos sentidos produzida por um corpo exterior professam que o corpo exterior possui em si um ser inteligível que nos possibilita enten der Conforme o autor no que se refere à causa do entendimento dizem que a coisa compreendida emite uma species inteligível isto é um ser inteligível o qual entrando no entendimento nos faz entender 1983 p 10 65 Capítulo 3 A teologia política de Hobbes Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco Hobbes sabia melhor que ninguém que a Igreja romana por meio da ins tituição das primeiras Universidades17 da Europa usou ideias como armas para ampliar seu poder de intervenção nas decisões políticas de governantes tempo rais Distinções palavras ambíguas palavras destituídas de signifi cado silogis mos e dilemas foram forjados através da cristianização de elementos da fi losofi a pagã para incentivar o medo nos homens através de inúmeras explicações falsas entre elas a que trata da formação do entendimento humano Para Hobbes en sinamentos deturpados falsos presságios retirados de sonhos conceitos ininte ligíveis entre outras coisas serviam para que as pessoas com sede de poder se aproveitassem da crença de pessoas simples e promovessem a desobediência civil O Leviatã transmite ao leitor a sensação de uma dura batalha que Hobbes trava do começo ao fi m do livro para desbaratar a autoridade de papas bispos pastores arcebispos frades monges enfi m qualquer espécie de embusteiro que incentiva o medo e a sedição porque se desaparecesse esse temor supersticio so dos espíritos e com ele os falsos prognósticos tirados dos sonhos as falsas profecias e muitas outras coisas dele decorrentes graças às quais pessoas am biciosas e astutas abusam da credulidade de gente simples os homens estariam muito mais bem preparados do que agora para obediência civil 1983 p 14 Obstinado Hobbes ao longo de todas as quatro partes do Leviatã procura mi nar o poder de autoridades tradicionais que se aproveitam da credulidade da grande maioria dos homens para lograr cada vez mais poder Hobbes preocu pado em redefi nir o papel das Universidades da cristandade no interior do tipo de Estado secular que propõe critica em inúmeras passagens do Leviatã o uso que se fazia das Universidades porém em tom retórico chega a afi rmar que não digo isto para criticar o uso das Universidades mas porque devendo mais adiante falar em seu papel no Estado tenho de mostrar em todas ocasiões que isso vier a propósito que devem nelas ser corrigidas entre as quais temos de incluir a frequência do discurso destituído de signifi cado 1983 p 10 E mais adiante discorre sobre a fi nalidade precípua do uso que se fazia da Universida de e revela precisamente a relação de sua antropologia com teólogos formados pelas Universidades Relata que a maior parte da humanidade é composta de homens hedonistas e concupiscentes aqueles cuja frivolidade ou preguiça leva 17 Ensina Hobbes que entre o tempo do Imperador Carlos o Grande e Eduardo Terceiro da Inglaterra 13271377 a Igreja romana quis transformar a religião numa arte e desse modo garantir a manutenção de todas as suas ordens através das disputas não somente a partir das Escrituras Sagradas mas também da fi losofi a de Aristóteles tanto a natural quanto a moral De acordo com o autor foi com esse fi m que o papa exortou o dito imperador a erguer escolas de todas as espécies de letras iniciando assim a instituição das Universidades porquanto não tardou que estas se estabelecessem em Paris e Oxford Hobbes 2001 p 49 66 ELSEVIER Curso de Ciência Política a procurar os prazeres sensuais Tais homens afastados da meditação profun da conditio sine qua non para o aprendizado da verdade e consequentemente do conhecimento das ciências e questões relativas à justiça natural são como presas para aves de rapina O resultado é que a maioria dos homens recebe as noções de seus deveres principalmente dos teólogos no púlpito E preocupado com instrução do povo denuncia Hobbes que os teólogos e outros que fazem ostentação de erudição tiram seu conhe cimento das Universidades e das Escolas de leis ou de livros que foram publicados por homens eminentes nessas Escolas e Universidades É portanto manifesto que a instrução do povo depende totalmente de um adequado ensino da juventude nas Universidades Mas podem al guns dizer não são as Universidades da Inglaterra já sufi cientemente eruditas para fazer isso Ou será que quer tentar ensinar as Universida des Perguntas difíceis 1983 p 204 Hobbes responde somente à primeira pergunta e ao fazêlo retrata uma das formas utilizadas pelo poder espiritual para enfrentar o poder secular Re lata o autor que até por volta dos últimos anos do reinado de Henrique VIII o poder do Papa se erguia sempre contra o poder do Estado principalmente atra vés da Universidade e que as doutrinas defendidas por tantos prega dores contra o soberano poder do rei e por tantos legistas e outros que ali tinham recebido sua educação constituem um argumento sufi ciente de que muito embora as Universidades não fossem as autoras daque las falsas doutrinas contudo não souberam semear a verdade Pois no meio de tantas opiniões contraditórias o mais certo é que não tenham sido sufi cientemente instruídas e não é de causar espanto se ainda con servam aquele sutil licor com que primeiro foram temperadas contra a autoridade civil 1983 p 204205 No que foi dito a respeito da Universidade devese esclarecer que embora Hobbes ressalte em sua antropologia a miséria cognitiva e as aversões e desejos sem limites o autor acredita ser possível educar os homens pois o espírito da gente vulgar a menos que esteja marcado por uma dependência em relação aos poderosos ou desvairado com as opiniões de seus doutores é como papel limpo pronto para receber o que quer que seja que a autoridade pública queira nele imprimir 1983 p 201 Portanto de acordo com Hobbes cumpre instruir o povo sobre os direitos essenciais da soberania do Estado o que diminui as chances de rebelião e contribui para a segurança do homem artifi cial e conse quentemente do homem natural 67 Capítulo 3 A teologia política de Hobbes Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco Por fi m importa dizer que através da introspecção Hobbes quer mostrar aos homens que em razão de sua miséria cognitiva tendência à credulidade nos poderes invisíveis e sua condição sujeita aos apetites e paixões irregulares deve se mediante a arte criar um homem artifi cial cuja força ultrapasse a de muitos ho mens naturais para garantir sua segurança não apenas contra o inimigo comum mas também contra suas próprias paixões hedonistas e concupiscentes O homem de Hobbes é acima de tudo um ser crente e fanático capaz de se destruir com suas próprias paixões A fi m de que o homem não se fi ra com seus próprios apetites e aversões insta que se constitua um Estado de poder absoluto para a proteção de cada um e de todos os homens Hume concordaria com Hobbes que em geral as paixões humanas são mais fortes do que a razão 1983 p 115 Daí a necessidade de fundar um Estado capaz de controlar as paixões e crenças desse homem cuja condição natural é dominada pelas fantasias de seu mundo mental imaginário 34 O Leviatã e o seu significado simbólico Por que teria o autor do homem artifi cial escolhido como título de sua obra uma citação ou ilustração carregada de força colossal e de sentido enig mático O que estaria por trás de uma imagem que até hoje suscita dúvidas e difi culdades para melhor compreensão das ideias do autor Carl Schmitt autor do livro The Leviathan in the State Theory of Thomas Ho bbes Meaning and Failure of a Political Symbol publicado em 1938 na Alemanha realiza minuciosa investigação acerca do signifi cado do símbolo procede a uma verdadeira abordagem mitológica na qual busca decifrar o signifi cado do sím bolo político selecionado por Hobbes como título e ilustração da primeira edição inglesa da capa de cobre de sua obra mais conhecida Seria oportuno examinar o signifi cado do símbolo político representado pelo Leviatã seguindo em alguns pontos a abordagem de Carl Schmitt no livro acima mencionado Percorro daqui em diante alguns pontos do trabalho de Schmitt18 pois é um dos raros estudos que não relega à dimensão mítica e re 18 Assim como Hobbes Carl Schmitt também pertence à categoria dos autores malditos Há quem diga que ele é o Th omas Hobbes do século XX que ingressou no Partido Nazista em 1933 com a ambi ção de tornarse o principal jurista e fi lósofo político do terceiro Reich Todavia em face do seu passado antinazista seus laços de amizade com judeus e marxistas e seu desprezo pelas teorias racistas Schmitt foi severamente atacado pelo SS em 1936 e advertido a não posar de pensador Nacional Socialista Schwab 1996 p introdução Da mesma forma que Hobbes o autor permaneceu por muito tempo no mais profundo ostracismo Todavia no que respeita à peculiaridade de seu livro sobre o Leviatã destaca se que a originalidade do empreendimento de Schmitt reside em ter querido descobrir através de uma investigação da simbologia cristã e judaica e de uma análise textual da obra de Hobbes o signifi cado que tem o símbolo do Leviatã na doutrina do Estado daquele que passou à história com o nome de profeta do Leviatã Bobbio 1991 p 193 68 ELSEVIER Curso de Ciência Política ligiosa do Leviatã sem a qual não se compreende o conceito de secularização de Hobbes ao plano do esquecimento Investigar a origem e a maneira como aparece o Leviatã associado à teoria política de Hobbes consiste na fi nalidade desta parte do capítulo 341 O Leviatã e o seu significado bíblico O uso de símbolos imagens metáforas insígnias brasões entre uma série de outras representações não é novidade nas ilustrações ou citações de teorias políticas 1983 p 5758 Na longa história das teorias políticas uma história excessivamente próspera em imagens e símbolos coloridos ícones e ídolos paradigmas e fantasmas emblemas e alegorias o Leviatã é a mais forte e poderosa imagem Ela fragmenta a estrutura de toda teoria concebível ou constructo Schmitt 1996 p 5 A ideia de um corpus ou da unidade de uma entidade política foi frequentemente representada à guisa de um grande ani mal ou de um grande homem Platão em A República livro IX ao discorrer através dos diálogos entre Sócrates e Glauco sobre as paixões brutais que aco metem os homens e a multidão impedindoos de se orientarem através de leis ou por meio da sabedoria e da razão formula uma imagem Imagem pouco mais ou menos semelhante à daqueles seres de que falam as antigas tradições tais como a Quimera Cila Cérbero afi nal toda essa multidão de monstros que a fábula fi gura compostos de muitas naturezas diferentes Platão 1959 p 402 Antes de se dar cabo à descrição acima citada é relevante frisar como no âmbito das ideias políticas é recorrente o tema das paixões19 que dominan do os homens enfraquecem a razão levandoos a disputar entre si o gozo destes prazeres voltam as armas uns contra os outros20 entrebatendose aos murros e coices com unhas e cascos e acabam matandose sem chegarem nunca a saciarse Platão 1959 p 398 19 Platão após narrar as três partes da alma a que correspondem três espécies de prazeres próprios de cada uma uma destas partes é a razão órgão dos conhecimentos humanos a segunda é o apetite iras cível a terceira chamola apetite concupiscente pela violência dos desejos que nos impelem a comer e a beber aos prazeres do amor e outros deleites sensuais e também dizemola avarenta porquanto é o dinheiro o meio mais efi caz de satisfazer a todas estas variedades de desejos defi ne o signifi cado de paixão um desejo imoderado de ganho Platão 1959 p 388 Afi rmando que a razão não está sufi cien temente presente para resistir às paixões Hobbes diz que quanto às paixões do ódio da concupiscência da ambição e da cobiça é tão óbvio os crimes que são capazes de produzir Hobbes 1983 p 179 20 Hobbes no capítulo XIII primeira parte do Leviatã ao discorrer sobre a condição natural do ho mem afi rma que se dois homens desejam a mesma coisa ao mesmo tempo que é impossível ela ser gozada por ambos eles tornamse inimigos E no caminho para seu fi m que é principalmente sua própria conservação e às vezes apenas seu deleite se esforçam por se destruir ou subjugar um ao outro Hobbes 1983 p 75 69 Capítulo 3 A teologia política de Hobbes Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco Prosseguindo na descrição da imagem de Platão21 observase que ela con siste num monstro com várias cabeças umas de animais domesticados outras de bestas feras Depois devese formar a imagem de um leão e de um homem cada qual à parte e com enorme desproporção entre o monstro e o leão entre o leão e o homem Essas três imagens devem estar unidas de maneira que se com ponham num só todo Por fi m deve se envolver esse composto com o exterior de um único ser de um homem por exemplo de sorte que o observador que não possa ver interiormente e tenha de julgar pelo envoltório o tome por uma só entidade por um homem enfi m Platão 1959 p 402 A elaboração da referida imagem tem como fi nalidade responder a Trasi maco sofi sta e interlocutor de Sócrates no livro I da República Nesse diálogo Trasimaco expõe a doutrina de que a justiça é simplesmente o interesse do mais forte 1959 p 28 A imagem trata de mostrar que a justiça como interesse do mais forte equivaleria a dizer que é vantajoso alimentar com cuidado a esse monstro de muitas cabe ças e ao leão fortalecêlos enfraquecendo ao mesmo tempo o homem a ponto de fazêlo morrer de fome de sorte que fi que à mercê de outros dois que o arrastarão por força aonde queiram Não equivaleria isto a afi rmar que em vez de acostumálos a viver juntos e em perfeito acor do é preferível deixar que estes animais se entrebatam se mordam se devorem uns aos outros Platão 1959 p 403 Percebese que através dos dizeres de Sócrates Platão rechaça a doutrina de Trasimaco pois entende que a justiça como interesse do mais forte é irra cional e portanto injusta Quem proclama a injustiça incorre num erro 1959 p 403 Não obstante diz que uma República justa só existe como modelo e se essa existir é certo que somente o sábio ou o fi lósofo consentirá em governála 1959 p 407 21 Embora Hobbes tenha infl igido duras críticas à vã e errônea fi losofi a dos gregos especialmente a de Aristóteles Hobbes 1983 p 354 na quarta parte do Leviatã intitulada Do Reino das Trevas o autor elogia a geometria e profere Platão que foi o melhor fi lósofo dos gregos proibiu a entrada de sua escola a todos aqueles que não fossem já de algum modo geômetras Hobbes 1983 p 386 Leo Strauss ao comparar as infl uências de Platão e Aristóteles na doutrina do autor inglês salienta que Hobbes no fi nal de seu período humanista não tinha nenhuma objeção contra a visão tradicional de seu tempo em que se designava Aristóteles como o fi lósofo par excelence Não obstante mais tarde Hobbes considera Platão o melhor fi lósofo da Antiguidade clássica Essa preferência por Platão se justifi caria pela razão da sua fi losofi a ter como ponto de partida ideias ao passo que a de Aristóteles partiria de palavras Platão libertase de soletrar palavras enquanto Aristóteles não consegue libertarse Platão estaria apto a elaborar uma fi losofi a política por evitar conclusões falaciosas acerca do que é do que foi do que deveria ser Srauss 1936 p 139141 70 ELSEVIER Curso de Ciência Política Carl Schmitt analisa sucintamente a imagem traçada por Platão e a re puta como o retrato de uma Commonwealth República representada por um grande homem que poderia ser caracterizada por exemplo por uma multi dão movida por emoções irracionais uma criatura de muitas cabeças e muitas cores Schmitt 1996 p 5 O autor alemão considera que como símbolo de entidade política o Le viatã não seria apenas um corpus ou algum tipo de animal mas também uma imagem da Bíblia hebreia vestida durante muitos séculos de um signifi cado místico teológico e cabalístico 1996 p 6 Para o autor o Leviatã teria um sen tido mítico de uma imagem secular da batalha 1996 p 5 No Velho Testamento a imagem do Leviatã é retratada pela primeira vez no Livro de Jó 3 8 A descrição do Leviatã na referida passagem é breve Uma nota explicativa revela uma primeira defi nição22 do Leviatã monstro que se re presenta sob a forma de crocodilo segundo a mitologia fenícia Bíblia Sagrada 1957 p 614 Não se deve perder de vista que nas diversas descrições do Leviatã no Velho Testamento ele é caracterizado sob diferentes formas uma vez que se funde com outros animais O Livro de Jó 40 41 aponta a imagem mais impressionante do Leviatã descrevendoo como o maior dos monstros aquáticos No diálogo entre Deus e Jó o primeiro procede a uma série de indagações que revelam as características do monstro tais como ninguém é bastante ousado para provocálo quem o resistiria face a face Quem pôde afrontálo e sair com vida debaixo de toda a extensão do céu Quem lhe abriu os dois batentes da goela em que seus den tes fazem reinar o terror Quando se levanta tremem as ondas do mar as vagas do mar se afastam Se uma espada o toca ela não resiste nem a lança nem a azagaia nem o dardo O ferro para ele é palha o bronze pau podre Ao lado do Leviatã Jó 4010 aparece o Beemot vigoroso e musculoso animal terrestre sua força reside nos rins e seu vigor no músculo do ventre Levanta sua cauda como um ramo de cedro os nervos de suas coxas são en trelaçados seus ossos são tubos de bronze sua estrutura é feita de barras de ferro 22 Segundo outra defi nição o Leviatã em hebreu liwjathan animal que se enrosca seria o monstro do caos na mitologia fenícia identifi cado na Bíblia como um animal aquático ou réptil Dicionário Auré lio1986 Há outro verbete que o descreve como monstro aquático comumente simbolizando o mal no Velho Testamento e na literatura cristã Websters Th ird New International Dictionary 1986 71 Capítulo 3 A teologia política de Hobbes Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco A origem históricomitológica de tais animais descritos na Bíblia é uma questão um tanto obscura Ambos animais têm sido associados a algumas sagas o Leviatã talvez esteja associado ao Tiamat uma divindade da saga da Babilô nia O que interessa no entanto é não se ater às diferentes opiniões a respeito desses animais que aparecem na Bíblia hebreia uma vez que os historiadores e teólogos da Bíblia não os relacionam ao mito político ao qual Hobbes se refere 1996 p 6 Não obstante as diferentes interpretações o Leviatã aparece na Bíblia sob a forma do maior dos animais aquáticos como um crocodilo ou então na forma de um enorme peixe uma baleia O Beemot como animal terrestre representa do sob a forma de um hipopótamo23 Interessa nesta parte do trabalho mostrar as interpretações de ordem teológicocristã e judaicocabalística que foram feitas ao longo da História para em seguida mostrar de que forma o mito do Leviatã assume a natureza de um símbolo político de batalha Uma das difi culdades com a qual se depara nas passagens da Bíblia he breia ocorre em virtude de a imagem do Leviatã se fundir com a de outros ani mais Sua aparição também se revela sob forma de dragão ou serpente Em Isaías 271 Deus mata o monstro do mar naquele dia o Senhor ferirá com sua espa da pesada grande e forte Leviatã o dragão fugaz Leviatã o dragão tortuoso e matará o monstro que está no mar Em todas as passagens investigadas no Velho Testamento o Leviatã aparece como monstro apocalíptico representan do as forças do mal Em Salmos 7314 proclamamse as façanhas do Senhor quebrastes as cabeças de dragões Quebrastes as cabeças do Leviatã E as destes como pasto aos monstros do mar Observese que nesta passagem o Leviatã crocodilo ou dragão apresentase como símbolo do Egito vencido por Deus Entendese também o triunfo de Deus sobre os monstros mitológicos Há outra passagem em que se torna patente o tom irascível com que Ezequiel 2936 profetiza as palavras do Senhor contra o Faraó rei do Egito é contra ti Faraó rei do Egito que venho crocodilo monstruoso refe rência ao Leviatã que estás deitado no meio dos teus Nilos E que tu dizes Meus Nilos são meus sou eu que os fi z Vou pôr freio em tuas mandíbulas em tuas escamas prenderei os peixes do teus Nilos e tirar teei dos teus Nilos com todos os peixes de teus Nilos agarrados a tuas escamas Ezequiel 294 23 Apesar de Schmitt dizer que o Beemot poderia ser um touro ou um elefante 1996 p 6 a Bíblia Sagrada o defi ne como hipopótamo 1957 p 654 72 ELSEVIER Curso de Ciência Política Não só o Leviatã mas também o Beemot eram poderosos símbolos do mundo pagão As antigas civilizações do Egito da Assíria da Babilônia entre outros povos pagãos prestavam culto a ambos animais Não obstante de acordo com as passagens citadas depreendese que as representações hebreias de tais animais revelam profunda hostilidade 1996 p 8 Representavam verdadeiras forças do mal forças do caos O conteúdo caótico apocalíptico e perverso que assumem tais animais segundo Schmitt demonstra a atitude dos judeus perante outros povos Para o autor é nas interpretações judaicocabalísticas caracterizadas pela imanente natureza esotérica que é possível confrontarse com o mito político que adqui rem esses animais 1996 p 8 Na interpretação referida o Leviatã representa os milhares de cabeças de gado espalhadas pelos morros milhares de animais nos meus montes Salmo 4910 que simbolizam os pagãos A história do mundo é apresentada como uma batalha entre pagãos O Leviatã simboli zando os poderes do mar enfrenta o Beemot representando poderes da terra O último tenta dilacerar o Leviatã com seu chifre enquanto o Leviatã cobre a boca e as narinas de Beemot com sua barbatana e o mata 1996 p 9 Essa imagem revela uma terra obstruída À distância judeus assistem aos povos do mundo matandose uns aos outros Considerando justo o ritual de carnifi cina e massacre judeus comem as carnes dos corpos massacrados e delas se alimen tam 1996 p 9 A passagem da Bíblia que poderia ter dado margem a essa interpretação judaicocabalística consiste naquela em que Deus faz referência aos milhares de animais espalhados pelos montes e diz que se tivesse fome não precisava dizerte porque minha é a terra e tudo que ela contém Porven tura preciso comer carne de touros ou beber sangue de cabrito Salmos 49 13 Lembrese que Beemot nos dizeres de Schmitt poderia ser retratado por um touro Em outra interpretação judaicocabalística mencionada pelo autor ale mão Deus para salvar o mundo da maldade e violência do Leviatã corta o Leviatã macho e salga a carne do Leviatã fêmea para proporcionar às pessoas de bem uma festa no paraíso O que importa é que ambos o Leviatã e o Beemot tornamse nessas interpretações judaicas mitos de batalha de grande estilo Da perspectiva dos judeus cada um é uma imagem da vitalidade e fertilidade pagã o grande Pan que os judeus odiavam e os seus sentimentos de superioridade transformaram em monstro 1996 p 9 Nas prósperas interpretações teológicas e históricas o Leviatã também representa uma força maligna Confundese com dragão serpente e pode até 73 Capítulo 3 A teologia política de Hobbes Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco simbolizar as várias formas de aparição do diabo24 incluindo o próprio Satã O Beemot e o Leviatã no bojo dessas interpretações aproximamse dos animais apocalípticos Nas sagas e lendas também surgem mitos de batalha contra os dragões os matadores de dragões tais como Siegfried São Miguel e São Jorge podem ter suas origens no Leviatã 1996 p 67 É no início da Idade Média que surgem duas categorias principais de in terpretação A primeira seria a da mitologia judaica feita pelos rabinos da ca bala Aliás algumas dessas interpretações disponíveis já foram anteriormente expostas A segunda categoria vem da simbologia cristã divulgada pelos padres da Igreja 1996 p 7 Conforme narra Carl Schmitt a interpretação do Leviatã durante a Ida de Média foi governada pela teologia até o período da escolástica25 Nessa interpretação o Leviatã se confunde com o diabo O Leviatã grande peixe dia bólico teria sido capturado por Deus Por causa da morte de Cristo na cruz o diabo perde a batalha para os homens Enganado pela fi gura servil de Deus es condida na carne o diabo tenta devorar o homemDeus mas é capturado pela cruz como se esta fosse uma vara de pescar Como doutrina teológica esta concepção remonta a Gregório o Grande Leo o Grande e Gregório de Nyssa Uma ilustração do século XII no livro medieval Hortus Deliciarum do Abade Herrar von Langsberg retrata Deus representado como pescador Cristo na cruz como isca de uma vara de pescar e o Leviatã como peixe enorme que morde a isca 1996 p 78 Embora as interpretações até aqui expostas transformem o Leviatã e o Beemot em monstros apocalípticos fi guras demoníacas representantes das for ças do mal serpentes ou dragões simbolizando o caos é possível apresentar uma interpretação completamente oposta para o Leviatã de Thomas Hobbes Outros povos viram na serpente ou no dragão um símbolo de proteção e benevolência Ensina Schmitt que o dragão chinês não é o único exemplo Os celtas cultuavam serpentes e dragões Vândalos Lombardos e outras tribos germânicas utilizavam dragões e serpentes como emblemas militares Bandeiras estampando imagens de 24 Hobbes ao comentar as interpretações teológicas de mitos pagãos observa que a doutrina dos dia bos não signifi ca as palavras de qualquer diabo e sim a doutrina dos pagãos a respeito dos demônios e aqueles fantasmas que eles adoravam como deuses 1983 p 249 25 Um dos alvos principais do Leviatã de Hobbes é justamente a escolástica defi nida como a conquista fi losófi ca mais notável da última fase da Idade Média esse sistema seria uma tentativa de harmoni zar a razão com a fé ou para fazer a fi losofi a servir aos interesses da teologia Burns 1948 p 379 Além disso os fi lósofos da escolástica propugnavam por uma suserania papal da Igreja Foi contra esse caráter universalista da Igreja que Hobbes se insurgiu 74 ELSEVIER Curso de Ciência Política dragões vibravam nos campos de batalha Desde tempos imemoriais o dragão serviu aos anglosaxões como símbolo da bandeira do exército real No ano de 1066 em Hastings o rei Haroldo após a vitória de Guilherme o Conquistador enviou uma bandeira retratando um dragão ao papa de Roma 1996 p 910 A história das disputas políticas entre povos europeus revela de fato um ar raigado sentimento mítico mas o que estaria por trás do Leviatã de Hobbes Schmitt considera que o autor inglês ao escolher o Leviatã como símbolo de sua obra ti nha uma posição defi nitiva Atesta que Leo Strauss num livro em que examina o Tratado PolíticoTeológico de Spinoza publicado em 1930 salienta que Hobbes considerava os judeus como os criadores da destruidora distinção revolucionária do Estado a distinção entre poder secular e poder espiritual 1996 p 10 O Leviatã de Hobbes teria então o sentido mítico da imagem secular de uma batalha contra a distinção entre o poder secular e o espiritual que Schmitt considera uma divisão tipicamente judaicocristã 1996 p 10 Tal distinção era desconhecida pelos pagãos26 a religião para eles era parte da política To davia se os judeus trouxeram a unidade do lado da religião a sede de poder da Igreja27 papal romana e das Igrejas presbiterianas reforçou a separação do poder espiritual e do poder temporal o que contribuiu amplamente para a destruição do Estado 1996 p 10 O argumento principal de Hobbes no livro Leviatã é o de que a especiosa distinção entre poder secular e poder espiritual leva às guerras civilreligiosas e consequentemente à destruição de um Estado Num Estado não pode haver mais de uma alma soberania aqueles que levantam a supremacia contra a so berania os cânones contra as leis e a autoridade espiritual contra a autoridade civil atuando sobre o espírito dos homens com palavras e distinções que em si nada signifi cam estabelecem dois Estados para os mesmos súditos o que é um reino dividido e não pode durar A insignifi cante distinção entre tem poral e espiritual 1983 p 196 leva os súditos a prestarem obediência a dois soberanos distintos todavia os homens não podem servir a dois senhores Os príncipes devem portanto aliviálos seja tomando completamente em suas mãos as rédeas do governo seja deixandoas nas mãos do Papa 1983 p 336 Em outras palavras ou o poder civil que é poder do Estado está submetido ao poder espiritual situação em que não há nenhuma soberania exceto a espiritual 26 Hobbes proclama que no mundo pagão a política e as leis civis fazem parte da religião não tendo portanto lugar a distinção entre a dominação espiritual e a temporal 1983 p 71 27 Hobbes infl ige duras críticas àqueles que operaram mudanças na religião atribui todas as mudanças de religião do mundo a uma e à mesma causa isto é sacerdotes desprezíveis e isto não apenas entre os católicos mas até naquela Igreja que mais presumiu de Reforma 1983 p 73 75 Capítulo 3 A teologia política de Hobbes Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco ou o poder espiritual está subordinado ao temporal assim não existe outra su premacia senão a temporal 1983 p 196 O signifi cado desse mito secular de batalha representado sob a fi gura do Leviatã28 seria o da restauração da unidade original dos povos pagãos Restaura ção em que o secular e o espiritual constituem a alma de um único poder sobera no no qual a religião não fosse estranha à política A luta contra a divisão de um poder indireto espiritual e um poder direto temporal visando a restauração da unidade pagã original seria o signifi cado da teoria política de Hobbes Con forme destaca Carl Schmitt superstição e uso inadequado de crenças alienígenas por parte de espí ritos dominados pelo medo e pela ilusão destruíram a unidade original e natural dos pagãos que unia a política e a religião A batalha para superar a divisão papal da Igreja romana entre um Reino das Luzes e o reino Reino das Trevas isto é a restauração da unidade política original é como viu corretamente Leo Strauss o signifi cado atual da teoria política de Hobbes 1996 p 11 Hobbes29 de fato insurgese contra o poder papal da Igreja romana e relata que a oposição dos poderes espiritual e secular destrói o Estado Quando portanto estes dois poderes se opõem um ao outro o Estado só pode estar em grande perigo de guerra civil e de dissolução Pois sendo a au toridade civil mais visível e erguendose na luz mais clara da razão natural não pode fazer outra coisa senão atrair a ela em todas épocas uma parte muito considerável do povo e a espiritual muito embora se levante na escuridão das distinções da Escola e das palavras difíceis contudo porque o receio da escuri dão e dos espíritos é maior que os outros temores não pode deixar congraçar um partido sufi ciente para a desordem e muitas vezes para destruição de um Estado 1983 p 1996 O Leviatã seria então um grande símbolo de batalha contra as pretensões de a Igreja intervir na esfera jurídicopolítica dos domínios de soberanos civis ou 28 Bobbio ao fazer referência à interpretação mítica de Carl Schmitt chamou o Leviatã de cavalo de batalha Bobbio 199 p 193 29 Renato Janine na apresentação ao livro Do cidadão escrito por Hobbes e publicado em 1642 ao comentar a terceira parte da obra Leviatã cujo título é Do estado cristão diz que Hobbes procede a uma rigorosa exegese do texto bíblico procurando compreender a defi nição de cada um de seus con ceitoschave Esse empreendimento tem um sentido estratégico o de limitar o poder eclesiástico que prevalece indevidamente sobre o poder político e sobre a vida dos cidadãos valendose da ignorância dos leigos Indagandose contra quem Hobbes constrói o seu poder absoluto assinala o autor que o poder absoluto se constitui em Hobbes antes de mais nada contra as pretensões do clero a infl uir no poder político Janine 1998 p XXXIII 76 ELSEVIER Curso de Ciência Política cristãos O Leviatã simbolizaria a indivisibilidade da soberania e a luta contra a separação do poder religioso do poder político O signifi cado do Leviatã seria a tentativa de restaurar a unidade pagã que não separava a política da religião E tal interpretação de Carl Schmitt procede uma vez que Hobbes ao se insurgir contra distinção entre o poder espiritual e o poder temporal o que equivale di zer contra a distinção entre religião e política propõe a restauração da unidade pagã Chega mesmo a proclamar que a religião dos gentios fazia parte de sua política Para eliminar a referida distinção que impede que haja um domínio estritamente secular devese restituir a unidade dos gentios em que a política e as leis civis fazem parte da religião não tendo portanto lugar a distinção entre a dominação temporal e a espiritual 1983 p 71 Figura 1 342 O Leviatã na obra de Thomas Hobbes Na primeira parte deste capítulo intitulada O Leviatã e seu signifi cado bíbli co tratouse das distintas formas pelas quais aparecem o Leviatã retratado nas passagens da Bíblia hebreia e apresentaramse algumas interpretações extraídas do já mencionado livro The Leviathan in the State Theory of Thomas Hobbes Mea ning and Failure of a Political Symbol da autoria de Carl Schmitt A decisão do cita 77 Capítulo 3 A teologia política de Hobbes Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco do autor de optar em primeiro lugar por uma análise dos diversos signifi cados que assume o mito do Leviatã na Bíblia e nas distintas representações ao longo da história tem uma razão bem defi nida Hobbes ao redigir o livro Leviatã divi deo em quatro partes A primeira trata do Homem a segunda do Estado a ter ceira do Estado Cristão e a quarta do Reino das Trevas Diferentemente do livro Do cidadão sob vários aspectos semelhante ao Leviatã neste último Hobbes procede a uma profunda exegese das Escrituras Sagradas sem correspondên cia no Cidadão Janine 1998 p XXXII Ora se o próprio Hobbes dedica metade de seu livro Leviatã a minuciosa análise das imagens conceitos e distinções re velados nas Sagradas Escrituras não seria de estranhar que um estudioso como Carl Schmitt para melhor compreensão das ideias do autor inglês procurasse trilhar caminho semelhante Aliás o signifi cado do Leviatã como mito secular de batalha contra a destruição do Estado perpetrada pela tradição judaicocristã através da distinção entre o temporal e o espiritual é pertinente e até constatável em uma série de passagens proferidas por Hobbes entre elas algumas a que já se fez alusão na primeira parte deste capítulo De que forma então aparece o Leviatã na obra de Hobbes Em 1651 a gravura na capa de cobre da primeira edição inglesa da obra intitulada Levia tã apresentao de forma completamente diferente das imagens retratadas nas Sagradas Escrituras Na mencionada capa o título Leviatã vem acompanhado dos dizeres do Livro de Jó 4024 non est potestas super terram quae comparatur ei não há nada na terra que se lhe possa comparar logo abaixo o observador deparase com a seguinte imagem um gigante composto de inúmeros anões segurando na mão direita uma espada e na esquerda um bastão pastoral toma conta de uma pacata cidade Sob cada braço o secular bem como o espiritual há uma coluna de cinco desenhos debaixo da espada um castelo uma coroa um canhão em seguida rifl es lanças e bandeiras e fi nalmente uma batalha a essas imagens corresponde abaixo do braço espiritual uma igreja uma mitra raios silogismos e dilemas e fi nalmente um Conselho A investigação ao longo do Leviatã revela que os raios do trovão simbo lizam o poder da excomunhão Na segunda parte da referida obra no capítulo XLII em que trata Do poder eclesiástico Hobbes investe duras críticas contra o poder da excomunhão utilizado pelo clero Considerava tal poder uma verda deira arma política forjada por pretensas autoridades espirituais cujo intuito consistia em usurpar o poder jurisdicional de soberanos temporais De acordo com o autor o nome fulmen excommunicationis isto é o raio da excomunhão teve ori gem numa fantasia do bispo de Roma que foi o primeiro a usála de que 78 ELSEVIER Curso de Ciência Política era rei dos reis tal como todos os pagãos faziam de Júpiter o rei dos deuses e lhe atribuíram em seus poemas e quadros um raio com o qual subjugou e castigou os gigantes que ousavam negar seu poder 1983 p 303 Não se deve perder de vista que o poder da excomunhão consistia na mais poderosa e sofi sticada arma política utilizada pela Igreja nas disputas com líde res temporais pelo governo da ação dos homens Segundo com Hobbes a exco munhão consistia num verdadeiro poder coercitivo por meio do qual a Igreja se desvirtuava de suas funções sagradas sua missão não consiste em governar pelo mando e pela coação mas em ensinar e orientar os homens na salvação no mundo vindouro 1983 p 302 Ao comentar a mencionada gravura da primeira edição do Leviatã de Ho bbes Carl Schmitt esclarece que a ilustração representa os meios característicos de usar a autoridade e o poder para empreender disputas de caráter seculares piritual Ela traz em si a fundamental compreensão de que ideias e distinções são armas políticas de fato armas específi cas empenhadas pelo poder indireto 1996 p 18 São de suma importância as observações feitas pelo autor alemão uma vez que as cinco fi guras retratadas abaixo de cada braço representando o poder secular e o poder espiritual constituem verdadeiro arsenal político de guerra Retratam respectivamente a tensão existente entre o poder das armas propriamente ditas e a autoridade da crença das ideias distinções enfi m a ten são existente entre potestas e auctoritas Hobbes via nessa tensão as primícias das guerras civis religiosas30 uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens pois a guerra não consiste apenas na batalha ou no ato de lutar naque le lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é sufi cientemente conhecida porquanto a natureza da guerra não consiste na luta real mas na conhecida disposição para tal durante todo o tempo em que não há garantia do contrário 1983 p 76 Na doutrina do Estado de Hobbes não há distinção entre o secular e o espiritual entre potestas e auctoritas daí o autor proclamar que governo temporal e espiritual são apenas duas palavras trazidas ao mundo para levar os homens a se confundirem enganandose quanto ao seu soberano legítimo É certo que os corpos dos fi éis depois da ressurreição não serão apenas espirituais mas eternos porém nesta vida o único governo que existe seja o do Estado seja o da religião é o governo temporal 1983 p 277 30 Hobbes escreveu o Leviatã movido pelo período de guerras civis religiosas que assolavam a Europa no fi nal da mencionada obra relata cheguei ao fi m de meu referido discurso sobre o governo civil e eclesiástico ocasionado pelas desordens do tempo presente 1983 p 410 79 Capítulo 3 A teologia política de Hobbes Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco Assim em tom agnóstico infere o autor inglês auctoritas non veritas Nada mais é uma questão de verdade tudo passa a ser um comando Um milagre é o que o comando da autoridade estatal obriga os súditos a acreditar como tal 1996 p 55 O fi lósofo político do Estado chega à referida conclusão por estar profundamente envolvido com as sensíveis questões acerca dos milagres e das crenças Seu agnosticismo o leva a sustentar que se o relato de um milagre é verdade ou mentira nenhum de nós deve aceitar como juiz sua razão ou cons ciência privada mas a razão pública do supremo lugar tenente de Deus E sem dúvida já o escolhemos como juiz se já lhe demos um poder soberano para fazer tudo quanto seja necessário para nossa paz e defesa 1983 p 264 Com efeito se algo deve ser considerado milagre é a razão pública do Estado que decide em detrimento às razões privadas O poder soberano atinge assim seu zênite É o maior representante de Deus na terra 1996 p 55 Retornando à imagem gravada na capa de cobre da primeira edição in glesa do Leviatã observase que o este não aparece como dragão serpente cro codilo ou baleia Ressalta Schmitt que ele não aparece no sentido retratado pelo Livro de Jó mas sob a forma da majestade de um grande homem No Leviatã ora usase magnus homus ora magnus Leviatã O monstro aquático da Bíblia hebreia e o grande homem de Platão são apresentados lado a lado Destaca o autor que em numerosas imagens míticas homem e animal fundemse um no outro e em virtude de apresentarse um grande homem e um grande animal antes de se tornarem um só a aparição mítica tornase plausível 1996 p 19 Seguindo ainda a análise textual de Carl Schmitt notase que o Leviatã é apenas mencionado três vezes Logo no início do livro na introdução Hobbes diz que o Estado ou Civitas é um grande homem de maior estatura e força do que o natural um grande Leviatã um autômato ou máquina 1983 p 5 O au tor alemão diz que o magnus ille Leviathan o grande e famoso Leviatã é introdu zido sem maiores explicações e de imediato caracterizado como grande homem e grande máquina Há portanto três imagens um grande homem um grande animal e uma grande máquina forjados pela arte pelo engenho humano 1996 p 19 A segunda vez em que Hobbes se refere ao Leviatã é na segunda parte do livro capítulo XVII intitulada Do Estado É justamente aí que o autor inglês constrói a sua teoria do Estado Antes porém de se proceder à análise textual da segunda aparição do Leviatã considerase necessária uma breve digressão No capítulo XIII do Leviatã Hobbes descreve a natureza humana e revela as três causas principais da discórdia a competição a desconfi ança e a glória Tais características da condição humana levam os homens a tirar um enorme desprazer da companhia uns dos outros quando não existe nenhum poder ca 80 ELSEVIER Curso de Ciência Política paz de mantêlos em respeito1983 p 75 Cabe ressaltar que neste capítulo ao descrever a natureza dos homens o autor examina as paixões de forma absolu tamente realista e portanto distinta do pensamento prémoderno Assim ela bora uma verdadeira antropologia política do homem sem exaltar a virtude a prudência ou a coragem O autor desvinculado do método silogísticodedutivo da geometria que tanto exalta e aplica na construção de sua teoria do Estado ao longo do livro determina sua premissa seu ponto de partida o medo o medo da morte pois tal paixão faz os homens tenderem para a paz A paixão com que se pode contar é o medo o qual pode ter dois objetos extremamente gerais um é o poder dos espíritos invisíveis e outro é poder dos homens que dessa maneira se pode ofender 1983 p 84 O medo seria então o que levaria ao pacto conditio sine qua non para um corpus uma unidade política De todas as paixões a que menos faz os homens a tender a violar as leis é o medo 1983 p 179 Voltando então à segunda parte do livro capítulo XVII no qual o Leviatã é mencionado pela segunda vez como se disse é nesta parte do livro que Hob bes constrói a sua teoria Estado Diante da necessidade de segurança um homem ou uma assembleia de homens é designada como representantes de suas pessoas considerandose e reconhecen dose cada um como autor de todos os atos que aquele que representa suas pessoas praticar ou levar a praticar em tudo que disser respeito à paz e segurança comuns todos submetendo assim à vontade do repre sentante e suas decisões à sua decisão Isto é mais do que um consen timento ou concórdia é uma verdadeira unidade de todos eles numa só e mesma pessoa realizada por um pacto de cada homem com todos os outros 1983 p 105 Percebese que a forma através da qual Hobbes forja seu conceito de sobera nia absoluta é inequívoca Para instituir um poder comum devese outorgar toda força a um homem de preferência a uma assembleia de homens de modo que di versas vontades sejam reduzidas a uma só vontade O indivíduo ou a corporação elevam a todos que participaram do pacto à categoria de uma pessoa unifi cada que se denomina Estado Ganha vida o ente estatal Nos dizeres de Hobbes é esta a geração daquele grande Leviatã ou antes para falar em termos mais reverentes daquele Deus Mortal ao qual devemos abaixo do Deus Imortal nossa paz e defesa Pois graças a esta autoridade que lhe é dada por cada indivíduo no Estado élhe conferido o uso de tamanho poder e força que o terror assim inspirado o torna capaz de conformar as vontades de todos eles no sentido da paz em seu próprio país e da ajuda mútua contra os inimigos estrangeiros 1983 p 106 81 Capítulo 3 A teologia política de Hobbes Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco Ao lado do grande homem do grande animal e da grande máquina surge a quarta imagem o Deus mortal Atingese uma totalidade mítica composta por Deus homem animal e máquina 1996 p 19 No capítulo XXVIII Hobbes men ciona o Leviatã pela terceira e última vez Desta vez no entanto o autor fornece a explicação tal como a da imagem da Bíblia Sagrada O capítulo acima referido trata das penas e das recompensas Não é por acaso que o Leviatã é mencionado nesse contexto uma vez que penas e recompensas são o que Hobbes considera necessário para infl uenciar os homens sobretudo para curvar a arrogância e outras paixões 1996 p 20 O soberano possuidor do poder absoluto e não o Estado como um todo ou como uma unidade política em razão de seu grande poder governante é comparado ao Leviatã Atesta Hobbes comparei o poder do governante com o Leviatã tirando essa compa ração dos dois últimos versículos do capítulo 41 de Jó onde Deus após ter estabelecido o grande poder do Leviatã lhe chamou Rei dos Sober bos Não há nada na Terra disse ele que se lhe possa comparar Ele é feito de maneira a nunca ter medo Ele vê todas as coisas abaixo dele e é o Rei de todos os fi lhos da Soberba 1983 p 191 Hobbes preocupado em alertar os homens para os perigos que poderiam advir dos milagres e das crenças perscrutou a crença nos fantasmas a ignorân cia das causas segundas a devoção pelo que se teme e a aceitação de coisas aci dentais como prognósticos enfi m investigou a semente natural da religião 1983 p 67 É provável que em razão de tal interesse duas das quatro partes que compõem o livro Leviatã consistam em minucioso estudo crítico das Sagra das Escrituras Hobbes tornouse o primeiro e mais ousado crítico com relação a todas as formas de crença em milagres fossem de natureza bíblicocristã ou de qualquer outra religião Para Schmitt sua crítica era completamente ilumina da e ao propôla ele aparece como o verdadeiro inaugurador do século XVIII 1996 p 54 O impacto do Leviatã devese às rupturas perpetradas por esse grande símbolo de batalha Embora infl uenciado por Tucídides Platão e Aristóteles entre outros Hobbes rompe com o pensamento prémoderno uma vez que re futa as concepções desses autores e de outros fi lósofos pagãos despreza os pen sadores romanos como Cícero ridiculariza os fi lósofos da escolástica enfrenta a sede de poder da Igreja papal romana e das Igrejas presbiterianas enfi m seu mito secular de batalha inaugura o pensamento moderno Ao se insurgir contra a distinção entre o poder secular e o poder espiritual Hobbes está na verdade secularizando o Estado uma vez que é a autoridade soberana estatal que detém o monopólio da razão pública ou seja o poder de determinar a fé ofi cial do rei 82 ELSEVIER Curso de Ciência Política no e portanto a crença dos súditos pelo menos no âmbito do foro externo pois reconhece a liberdade de crença no foro íntimo Hobbes ao submeter a autoridade do poder espiritual ao poder temporal do soberano chega à noção auctoritas non veritas facit legem Passa a não existir a verdade existindo pois o comando de um poder soberano estatal que tem o monopólio acerca das crenças de seus súditos e portanto da decisão políti ca Isto caracteriza uma verdadeira religião civil cujo representante é um Deus mortal O Leviatã não só inaugura uma antropologia política do homem o positi vismo jurídico mas também uma teologia política O fundamento do Estado de Hobbes é extraído da natureza humana cujo traço mais notável é sua tendência ao medo dos poderes invisíveis o que é defi nido pelo autor como religião Ao propor a restauração da original unidade pagã entre religião e política que serve tanto gentios quanto para cristãos Hobbes apresenta o báculo na mão es querda de seu Deus mortal pois sabe que somente com a espada na mão direita o Leviatã poderá rapidamente ser devorado pelo Beemot 35 Conclusão A resposta de Hobbes à guerra civil religiosa foi a secularização de um domínio estritamente político independente de juízos morais leis naturais ou interesses de representantes dos poderes espirituais Todavia não se deve per der de vista que esse domínio secular é extraído da interpretação das Escrituras Sagradas É justamente a hermenêutica do Novo e do Velho Testamento que permite estabelecer uma desconexão da moral teologizante que ocultava os con ceitos seculares e lhes conferir um sentido político permitindo a elaboração de uma teoria do Estado Não é por acaso que o autor chama o soberano intramun dano de Deus mortal ou diz que a soberania é a alma artifi cial do Estado São inúmeras as passagens do Leviatã em que se torna inequívoca a analogia que há entre a estrutura semântica de conceitos teológicos e conceitos políticos ou jurídicos como ocorre a título de exemplo entre as noções de crime e peca do foro externo e foro interno confi ssão e fé direito e moral código jurídico e Bíblia O conceito político de soberania absoluta de Hobbes é um conceito teo lógico secularizado revelando uma afi nidade estrutural entre os conceitos do reino espiritual e do temporal Demonstrando que o signifi cado do conceito de secularização no Leviatã pode ser pensado como a conversão de um Deus Todo poderoso na fi gura de um soberano intramundano onipotente cujas mãos detêm o bastão espiritual do controle da manifestação externa das crenças e o poder coercitivo da espada Hobbes não deixa de restaurar um princípio pagão no qual os gentios não separavam a religião da política pois a união dos poderes invisí 83 Capítulo 3 A teologia política de Hobbes Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco veis aos poderes visíveis garantia a estabilidade e previsibilidade dos governos de domínios temporais A construção de um Estado neutro acima de qualquer partido político ou seitas religiosas levou ao positivismo jurídico No seu conceito de lei formal não importa o conteúdo isto é o valor da lei Exige que a lei seja proveniente de autoridade competente dotada de poder coercitivo O direito assim como a religião não passa de um instrumento a serviço de quem tem o poder fático de mando A teoria política de Hobbes provavelmente é incômoda pois alerta para o caráter arbitrário do poder de mando que homens exercem sobre homens Aliás o traço arbitrário e realista do poder não guarda nenhuma relação com as leis naturais ou morais com conhecimento tirado das verdades de Deus dos ditames da razão e da sapiência de juízes Ao secularizar o Estado Hobbes des cortina o caráter arbitrário das relações de poder que os homens travam entre si sejam eles papas príncipes ou aiatolás Assim ao distinguir consciência interior de ação exterior moral de direito procura eliminar os confl itos violentos que ocorriam no interior de um Estado sem poder comum sufi cientemente forte para manter a paz Ao transformar o Leviatã em arma política voltada para a seculari zação do Estado Hobbes busca a salvação dos homens neste mundo no interior de um corpo político Assim o Estado passa a representar uma mútua relação de proteção e obediência Hobbes 1983 p 410 necessária à condição existen cial da natureza humana Se fora do Estado o homem é lobo do homem no seu interior adquire status de cidadão e o homem é um deus para o homem Hobbes 1998 p 3 36 Perguntas para reflexão 1 Qual seria segundo Thomas Hobbes a relação entre a limitação cogniti va dos homens e o surgimento das religiões 2 Aponte três características subjacentes à máxima Auctoritas non veritas fa cit legem é a autoridade e não a verdade quem faz as leis 3 Thomas Hobbes aduz duas soluções a fim de dar cabo à especiosa distinção entre o espiritual e o temporal que leva à ruína do Estado Indiqueas 4 Por que o monopólio da decisão política tira partido da religião isto é da tendência do gênero humano à irracionalidade das crenças nos poderes invisíveis 5 Explique o conceito antropológico introduzido por Hobbes sem deixar de aludir à miséria cognitiva dos homens 84 ELSEVIER Curso de Ciência Política 6 O que se entende pela restauração da unidade original dos povos pagãos e qual sua relação com o Leviatã de Hobbes 7 No Leviatã de Hobbes a palavra Leviatã aparece três vezes sob quatro formas compondo uma unidade mítica Deushomemanimalmáquina Mencione o sentido que Hobbes teria atribuído a cada um dos elementos da referida composição mítica 8 Por que seria possível interpretar o conceito político de soberania abso luta do Leviatã ou Matéria Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil título completo do Leviatã de Hobbes como um conceito teológico secularizado 9 Por que o Estado de Hobbes passa a representar uma mútua relação de proteção e obediência 10 Por que se poderia afirmar que Hobbes é o precursor do positivismo jurí dico Bibliografia BÍBLIA SAGRADA São Paulo Ed Claretiana 1957 BOBBIO Norberto Thomas Hobbes Rio de Janeiro Campus 1991 et al Dicionário de Política Brasília Ed Universidade de Brasí lia 1994 v 1 e 2 BURNS Edward McNall História da Civilização Ocidental Porto Alegre Glo bo 1948 COHN Gabriel Introdução In Max Weber Sociologia São Paulo Ática 1982 HOBBES Thomas Behemoth ou o longo parlamento Belo Horizonte Ed UFMG 2001 Diálogo entre um fi lósofo e um jurista São Paulo Ed Landy 2001 Do cidadão São Paulo Martins Fontes 1998 Leviatã ou matéria forma e poder de um Estado Eclesiástico e Civil São Paulo Abril Cultural 1983 Libertad y necesidad y otros escritos Barcelona Ediciones Penín sula 1991 Behemoth or the long Parliament Chicago The University of Chicago Press 1990 Leviathan Londres Penguin Group 1985 85 Capítulo 3 A teologia política de Hobbes Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco A dialogue between a philosofer and a student of the Commom Laws of England Chicago The University of Chicago Press 1971 Leviathan or The Matter Forme and Power of a Common Wealth Ecclesiastical and Civil Londres Mowbray Co Limited 1946 HABERMAS Jurgen O Estadonação europeu frente aos desafi os da globa lização o passado e o futuro da soberania e da cidadania Novos Estudos São Paulo novembro1995 HUME David Uma investigação sobre os princípios da moral Campinas Ed Unicamp sd JANINE Renato Ao leitor sem medo Hobbes escrevendo contra seu tempo Belo Horizonte Ed UFMG 1999 Apresentação In Do cidadão São Paulo Martins Fontes 1998 Hobbes o medo e a esperança In WEFFORT Francisco Org Os clássicos da política São Paulo Ática 1991 v I KOSELLECK Reinhart Crítica e crise uma contribuição à pantogênese do mundo burguês Rio de Janeiro Contraponto 1999 MACPHERSON C B A Teoria Política do Individualismo Possessivo de Hobbes a Locke Rio de Janeiro Paz e Terra 1979 Introduction In Leviathan Londres Penguin Books 1985 MAQUIAVEL Nicolau O Príncipe São Paulo Abril Cultural 1979 MARRAMAO Giacomo Céu e terra genealogia da secularização São Paulo Ed 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of arts Locke viveu em uma época muito conturbada da história política inglesa Tinha 10 anos quando eclodiu a guerra civil e seu pai que também se chama va John Locke aliouse ao partido do Parlamento e combateu como capitão de cavalaria o exército do rei Carlos I Cansado do confl ito Locke já com 28 anos saudou com alegria o retorno de Carlos II à Inglaterra e a Restauração Os textos Doutor e Mestre em Ciência Política pelo IUPERJ Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense UFF Professor adjunto de Ciência Política da Univer sidade Federal Rural do Rio de Janeiro UFRRJ Contato vljorgeuolcombr vljorge pucriobr 88 ELSEVIER Curso de Ciência Política escritos entre 1660 e 1664 refl etem seu anseio pelo fi m das hostilidades e o desejo de paz e segurança Por isso de acordo com Norberto Bobbio eles têm aspec tos hobbesianos pois neles Locke assume tons autoritários e colocase ao lado daqueles que querem a liberdade não ampla e garantida mas restrita e sujeita às prescrições do soberano Bobbio 1998 p 83 Sua posição política contudo mudará radicalmente alguns anos depois Em 1666 Locke conhece Lord Anthony Ashley Cooper 16211683 que alguns anos depois se tornará o primeiro conde de Shaftesbury 1672 Em 1667 é convidado para ser médico particular de Ashley Cooper mas acaba devido ao estreitamento da relação entre ambos tornandose também seu conselheiro econômico e político Essa união durou seis anos 1667 a 1672 e modifi cou a posição política de Locke A ascensão de Ashley Cooper na carreira política foi rápida e breve ini ciouse em 1667 quando se tornou ministro e começou a declinar em 1672 ten do terminado defi nitivamente em 1681 com a acusação de alta traição Shaftes bury opôsse ao governo de Carlos II e segundo Bobbio ele foi um predecessor da política Whig Bobbio 1998 p 851 Para Bobbio a infl uência que Shaftesbury exerceu sobre Locke são evidentes nos trabalhos escritos por este naquele pe ríodo e podem ser considerados programas teóricos de uma ação prática que nunca se realizará Bobbio 1998 p 85 Por causa de sua ligação com Shaftesbury Locke se vê obrigado a deixar a Inglaterra em 1674 e passa a viver na França Em 1679 após três anos afastado da política inglesa Locke retorna à Inglaterra Em 1681 contudo Shaftesbury é acusado de conspiração Embora tenha sido absolvido Shaftesbury é obrigado a exilarse na Holanda Temendo pela sua segurança Locke resolve também deixar a Inglaterra e refugiarse na Holanda de onde só retornará em 1688 junto com Guilherme de Orange 16501702 de quem entrementes havia se tornado conselheiro Em 1696 é nomeado comissário da Board of trade and plantations Já com as saúde bastante debilitada Locke pede exoneração dessa função em 1700 Fale ceu em 1704 com 72 anos completos Foi somente após seu retorno da Holanda que Locke publicou vários de seus trabalhos alguns anonimamente Dentre as obras que produziu merecem 1 O partido Whig reunia as forças políticas escocesas e inglesas que se oporiam ao partido Torie e luta ram a favor de um regime parlamentar e protestante De acordo com Bobbio o programa desse partido baseavase em três itens 1 a defesa dos direitos do Parlamento 2 a subordinação do Poder Executivo ao Legislativo 3 a maior defesa da liberdade religiosa ante o Estado e a Igreja ofi cial Bobbio 1998 p 167 89 Capítulo 4 John Locke lei e propriedade Vladimyr Lombardo Jorge destaque aqui Carta acerca da tolerância 1689 Primeiro tratado sobre o governo civil 1689 Segundo tratado sobre o governo civil 1690 e Ensaio sobre o entendimento hu mano 1690 Após a morte de Locke Peter King publicou obras póstumas 1706 com vários trabalhos inéditos de Locke De acordo com John W Yolton essa obra inclui Of the conduct of the Understanting An Examination of P Malebranches Opinion of Seeing All Things in God A Discours of Miracles Part of a Fourth Letter for Toleration New Method of a CommonPlaceBook e algumas Memórias do primeiro conde de Shaftesbury Yolton 1996 p 180 Baseado em Peter Laslett Bobbio sustenta que o Primeiro e o Segundo tra tado sobre o governo civil foram escritos na mesma época e muito antes de sua publicação entre 1679 e 1683 Bobbio 1998 p 165167 Ambos afi rma Bobbio inspirados no programa do partido Whig Neste capítulo optamos por comen tar o Segundo Tratado sobre o Governo Civil que é considerada por muitos a obra política mais importante de Locke 42 Locke Filmer e Hobbes Locke escreveu o Primeiro e o Segundo Tratado sobre o Governo Civil para re futar as teses absolutistas contidas na obra O Patriarca publicada postumamente em 1680 de Robert Filmer 15881653 Mas por que Filmer Por que não Thomas Hobbes Afi nal Hobbes havia publicado o Leviatã em 1651 e Locke o conhecia embora de acordo com Bobbio negasse têlo lido Bobbio 1998 p 164 Segundo Bobbio Filmer foi o alvo porque os realistas partidários da monarquia britâni ca o escolheram para defender o absolutismo Bobbio 1998 p 1642 Hobbes os incomodava por dois motivos Primeiro porque ele havia sustentado a teoria do poder absoluto mas não o identifi cara com o poder real Bobbio 1998 p 164 Segundo por ter defendido uma teoria absolutista do poder com argumentos racionalistas e pior ainda materialistas Bobbio 1998 p 164 Apesar de Locke ter escrito contra Filmer interessanos aqui o contraste entre as teorias jusnaturalista e contratualista de Hobbes e de Locke Pois como explica Bobbio Filmer é o adversário a combater Hobbes o adversário a dis cutir com o qual mesmo em plena controvérsia é preciso concordar de vez em quando Bobbio 1998 p 164 2 De acordo com Bobbio o livro de Filmer tinha sido utilizado naqueles anos pelo Partido Realista em defesa das teses mais reacionárias sobre o poder absoluto do monarca e de uma concepção paternalista das relações entre soberano e súditos Bobbio 1986 p 89 Por causa disso além de Locke os igualmente liberais James Tyrrell e Algernon Sydney também se empenharam em refutar as teses de Filmer 90 ELSEVIER Curso de Ciência Política No Primeiro Tratado sobre o Governo Civil Locke rejeita que a fonte do poder político seja a autoridade dada por Deus a Adão e transmitida por este aos seus descendentes No Segundo Tratado sobre o Governo Civil após distinguir o poder político de outras formas de poder o poder dos pais sobre os fi lhos do marido sobre a esposa do senhor sobre os fâmulos e do nobre sobre os escravos3 Locke defi ne o poder político como 3 o direito de fazer leis com pena de morte e consequentemente todas as penalidades menores para regular e preservar a propriedade e de empregar a força da comunidade na execução de tais leis e na defesa da comunidade de dano exterior e tudo isso tão só em prol do bem público Locke 1983 p 34 De acordo com Locke para compreender esse tipo de poder precisamos analisar sua origem o que requer uma investigação do estágio em que os seres humanos se encontram antes da formação da sociedade civil ou política Na próxima seção vamos discutir este estágio prépolítico4 43 Do estado de natureza Como Hobbes Locke rejeita a teoria aristotélica segundo a qual a família precede a sociedade política Da perspectiva individualista de ambos antes da criação da sociedade e da sociedade civil os homens viviam em um estado não político e antipolítico e eram plenamente livres e iguais Diz Locke 4 Para bem compreender o poder político e deriválo de sua origem devemos considerar em que estado todos os homens se acham natural mente sendo este um estado de perfeita liberdade para ordenarlhes as ações e regularlhes as posses e as pessoas conforme acharem conve niente dentro dos limites da lei de natureza sem pedir permissão ou depender da vontade de qualquer outro homem Estado também de igualdade no qual é recíproco qualquer poder e jurisdição ninguém tendo mais do que qualquer outro nada havendo de mais evidente que criaturas da mesma espécie e da mesma ordem nascidas promiscua mente a todas as mesmas vantagens da natureza e ao uso das mesmas 3 Esta uma forma clássica de distinguir o poder que como lembra Bobbio remonta em seus elementos essenciais ao primeiro livro da Política de Aristóteles Bobbio 2000 p 143 Essa tripartição ainda segundo Bobbio teve importância porque permitiu aos fi lósofos políticos fazerem a distinção entre o bom e o mau governo Bobbio 2000 p 217 4 Veremos mais adiante que Robert A Goldwin tem uma interpretação diferente acerca do estado de natureza de Locke 91 Capítulo 4 John Locke lei e propriedade Vladimyr Lombardo Jorge faculdades terão também de ser iguais umas às outras sem subordina ção ou sujeição Locke 1983 p 35 Bobbio chama a atenção para o fato de que Locke no parágrafo supra faz coincidir a liberdade como ausência de vínculos ordenarlhes as ações e regular lhes as posses e as pessoas conforme acharem conveniente com a liberdade como autodeterminação sem pedir permissão ou depender da vontade de qualquer outro homem Bobbio 2000 p 102 Tratase portanto da liberdade negativa ou seja da faculdade que o indivíduo tem de agir por não se encontrar impedido por normas vinculantes Bobbio 1998 p 180 Bobbio 2000 p 4885 A concepção de liberdade de Locke é idêntica à de Hobbes para quem a liberdade consistia na ausência de oposição entendo por oposição os impedimentos externos do movimento Hobbes 1983 p 129 Há porém uma diferença com a posição de Hobbes Segundo Locke o exercício da liberdade individual não requer desobediência às leis de natureza que sustentam os direitos naturais e limitam a liberdade dos indivíduos Segun do Yolton para Locke liberdade é sempre defi nida dentro de leis na sociedade précivil pela lei da natureza Yolton 1996 p 81 A lei existe para entre outras coisas preservar a liberdade A liberdade é concebida por Locke como sendo a ação permitida ou guiada pela lei seja ela a da natureza ou a civil po sitiva No estado de natureza os homens estão livres de qualquer poder na Terra ou seja não estão submetidos ao poder de outro homem É esta uma das características talvez a principal do estado de natureza Contudo estão sub metidos a Deus e portanto às restrições ou orientações impostas pelas leis da natureza que de acordo com Locke são leis de Deus Nas palavras de Ruth W Grant para Locke um homem livre deve ser impedido apenas pelas leis da razão Grant 1991 p 194 Observe o que diz Locke 6 Contudo embora seja este um estado de liberdade não o é de li cenciosidade O estado de natureza tem uma lei de natureza para governálo que a todos obriga e a razão que é essa lei ensina a todos os homens que tão só a consultem sendo todos iguais e independentes que nenhum deles deve prejudicar a outrem na vida na saúde na liber dade ou nas posses Locke 1983 p 36 No parágrafo 57 Locke reafi rma essa concepção de liberdade restrita Na teoria lockeana lei e liberdade estão intimamente relacionadas Ele admite a relação entre lei e liberdade quando diz 5 Um signifi cado diferente segundo Bobbio da concepção atual de liberdade visto que o conceito foi de lá para cá ampliado Sobre a ampliação do conceito de liberdade ver Bobbio 2000 p 489490 92 ELSEVIER Curso de Ciência Política 57 o objetivo da lei não consiste em abolir ou restringir mas em preservar e ampliar a liberdade Como em todos os estados de seres criados capazes de leis onde não há lei não existe liberdade A liberda de tem de ser livre de restrição e de violência de terceiros o que não se pode dar se não há lei mas a liberdade não é como nos dizem licença para qualquer um fazer o que bem lhe apraz mas liberdade de dis por e ordenar conforme lhe apraz a própria pessoa as ações as posses e toda a sua propriedade dentro das sanções das leis sob as quais vive sem fi car sujeito à vontade arbitrária de outrem mas seguindo livre mente a própria vontade Locke 1983 p 56 O fato de o estado de natureza ser governado pela lei de natureza é um ponto de diferença em relação à teoria hobbesiana Para Hobbes lei e direito se distinguem tanto como a obrigação e a liberdade as quais são incompatíveis quando se referem à mesma matéria Hobbes 1983 p 78 No estado de natu reza hobbesiano é o direito de natureza que deve prevalecer Na concepção de Hobbes o direito permite ao homem fazer tudo que julgar necessário para se preservar Para ele no estado de natureza não é racional os homens agirem de acordo com as leis de natureza pois não há nesse estado quem os obrigue a obedecerlhes Para Locke entretanto este seria um estado de licenciosidade Pois segundo ele a ausência de um poder comum não desobriga os homens de obedecer às leis de natureza tendo todos os homens a responsabilidade de zelar para que tais leis sejam observadas De acordo com Bobbio a igualdade lockeana no estado de natureza não é a de forças física ou material mas a jurídica Bobbio 1998 p 180181 Para Lo cke todos os homens têm no estado de natureza o direto de magistrado juiz Isso signifi ca que todos sem exceção têm o direito de castigar quem ouse violar a lei de natureza e de exigir que a parte prejudicada pela ofensa de outrem sofra reparação por perdas e danos Diz Locke 7 E para impedir a todos os homens que invadam os direitos dos ou tros e que mutuamente se molestem e para que se observe a lei de natureza põese naquele estado a execução da lei da natureza nas mãos de todos os homens mediante a qual qualquer um tem o direito de castigar os transgressores dessa lei em tal grau que lhe impeça a violação pois a lei da natureza seria vã como quaisquer outras leis que digam respeito ao homem neste mundo se não houvesse alguém nesse estado de natureza que não tivesse poder para pôr em execução aquela lei e por esse modo preservasse o inocente e restringisse os ofensores Locke 1983 p 36 93 Capítulo 4 John Locke lei e propriedade Vladimyr Lombardo Jorge Observe no trecho supra que tal como Hobbes Locke reconhece que é necessário alguém para obrigar os homens a obedecerem às leis de natureza Contudo como já foi dito no estado de natureza os homens estão livres de qualquer poder na Terra ou seja não estão submetidos ao poder de outro ho mem O artifício utilizado por Locke para contornar esse problema foi tornar o direito de juiz um direito natural Mas mesmo assim Locke admite que quem o exercer pode não ter condições de fato força para obrigar aquele que causou o dano a pagar pelo prejuízo causado Além disso outro inconveniente dessa condição é que os homens podem ser juízes em causa própria isto é parciais em seus julgamentos o que é apontado por Locke como uma das causas da trans formação do estado de natureza em estado de guerra Portanto quem viola as leis de natureza e procedendo assim ameaça a vida ou a propriedade de outrem põese em estado de guerra com este Para Lo cke não é injusto que sentindome ameaçado eu tente destruir aquilo que me ameaça já que a lei da natureza estipula que se busque a própria preservação Eis o que diz Locke no trecho abaixo 16 O estado de guerra é um estado de inimizade e destruição sendo razoável e justo possa eu ter o direito de destruir aquilo que me ameaça de destruição pois pela lei fundamental da natureza devendose pre servar o homem tanto quanto possível quando nem tudo se pode pre servar deverseá preferir a segurança do inocente e pode destruirse um homem que nos vem fazer guerra ou descobriu inimizade à nossa existência porque tais homens não estão subordinados à lei comum da razão não tendo outra regra que não a da força e da violência Locke 1983 p 40 Não havendo um poder comum para o qual possa apelar o agredido tem o direito de revidar uma vez que disso depende sua vida Goldwin afi rma que nessas circunstâncias o desejo da própria conservação determina o compor tamento do homem agredido posto que o homem não pode se comportar de outra maneira este comportamento nunca pode ser errôneo Goldwin 1996 p 459 Há portanto segundo Goldwin semelhança entre Locke e Hobbes com relação a essa questão Goldwin 1996 p 460 A semelhança contudo se en fraquece porque Locke exige que o revide seja proporcional ao dano causado Hobbes por sua vez não faz tal exigência Eis o que diz Locke 8 E assim no estado de natureza um homem consegue poder sobre outro contudo não é poder absoluto e arbitrário para haverse com um criminoso mas unicamente revidar de acordo com os ditames da razão calma e da consciência o que esteja em proporção com a trans 94 ELSEVIER Curso de Ciência Política gressão isto é tanto quanto possa servir de reparação e restrição eis que esses dois motivos são os únicos que autorizam legitimamente a um homem fazer mal a outro o que implica o que chamamos de casti go Locke 1983 p 36 Outra importante diferença em relação a Hobbes é que Locke distingue o estado de natureza do estado de guerra A distinção entre estado de natureza e de guerra e as consequências da violação das leis de natureza são explicitadas abaixo 19 E nisto temos clara diferença entre estado de natureza e o estado de guerra que muito embora certas pessoas tenham confundido estão tão distantes um do outro como um estado de paz boa vontade assis tência mútua e preservação está de um estado de inimizade malícia violência e destruição mútua Quando os homens vivem juntos confor me a razão sem um superior comum na Terra que possua autoridade para julgar entre eles verifi case propriamente o estado de natureza Todavia a força ou um desígnio declarado de força contra a pessoa de outrem quando não existe qualquer superior comum sobre a Terra para quem apelar constitui o estado de guerra e a falta de tal apelo que dá ao homem o direito de guerra mesmo contra um agressor embora esteja em sociedade e seja igualmente súdito A falta de juiz comum com autoridade coloca todos os homens em um estado de natureza a força sem o direito sobre a pessoa de um homem provoca um estado de guerra não só quando há como quando não há juiz comum Locke 1983 p 41 Segundo Pierre Manet Locke precisou distinguir o estado de natureza do estado de guerra para evitar as consequências despóticas ou absolutistas da doutrina hobbesiana para atribuir direitos a um indivíduo realmente solitário Manet 1990 p 75 Bobbio contudo lembra que a concepção lockeana de esta do de natureza é ambígua já que à medida que se afasta dos capítulos iniciais a noção de estado de natureza vai se identifi cando cada vez mais com a do estado de guerra Bobbio 1998 p 177 Bobbio chega a dizer que no parágra fo 123 reproduzido abaixo o estado de natureza de Locke é descrito em termos decididamente hobbesianos e o que para ele é ainda mais grave no parágrafo 225 o estado da natureza é defi nido como estado da pura anarquia Bobbio 1998 p 177 123 Se o homem no estado de natureza é tão livre se é senhor absoluto da sua própria pessoa e posses igual ao maior e a ninguém sujeito por que abrirá ele mão dessa liberdade por que abandonará o 95 Capítulo 4 John Locke lei e propriedade Vladimyr Lombardo Jorge seu império e sujeitarseá ao domínio e controle de qualquer outro poder Ao que é óbvio responder que embora no estado de natu reza tenha tal direito a fruição do mesmo é muito incerta e está constantemente exposta à invasão de terceiros porque sendo todos reis tanto quanto ele todo homem igual a ele e na maior parte pou co observadores da equidade e da justiça a fruição da propriedade que possui nesse estado é muito insegura muito arriscada Estas circunstâncias obrigamno a abandonar uma condição que embora livre está cheia de temores e perigos constantes e não é sem razão que procura de boa vontade juntarse em sociedade com outros que estão já unidos ou pretendem unirse para a mútua conservação da vida da liberdade e dos bens a que chamo propriedade Locke 1983 p 82 Como explicar esta ambiguidade Locke segundo Bobbio opõe o estado de natureza ideal presente nos capítulos iniciais ao real O que as torna diferen tes é a natureza humana como os homens tendem a se deixar levar pelas suas paixões o estado de natureza perfeito em teoria é menos perfeito na prática Bobbio 1998 p 179 Em outras palavras a concepção idealista inicial de Locke cede lugar a uma mais realista das relações humanas Locke reconhece que as leis de natureza não impedem o mau uso do direito natural Observese o trecho abaixo 13 Não duvido que se venha a objetar a esta estranha teoria isto é que no estado de natureza todo mundo tem o poder executivo da lei da natureza que não é razoável sejam os homens juízes nos seus próprios casos que o amor próprio tornará os homens parciais consigo mesmos e seus amigos e por outro lado a inclinação para o mal a paixão e a vingança os levarão longe demais na punição a outrem daí seguindo tão somente confusão e desordem Locke 1983 p 38 Portanto a paz natural ou seja aquela que não é alcançada mediante al gum artifício é sempre precária Os homens quando não têm quem os puna ou não crêem na punição tendem a violar as leis de natureza o que dá origem ao estado de guerra Logo como veremos a paz duradoura e desejável tal como para Hobbes só é obtida mediante dois artífi cios o contrato e a sociedade civil que ele institui que impedem ou desestimulem os homens a entrar em confl ito uns com os outros e o estado de guerra de se generalizar 96 ELSEVIER Curso de Ciência Política Há ainda um outro motivo que levou Locke a desdobrar o estado de natu reza em dois De acordo com Bobbio a própria lógica do modelo jusnaturalista obriga Locke e também JeanJacques Rousseau a duplicar o estado pré político num estado de natureza propriamente dito e num estado de natureza degenerado em estado de guerra do qual nasce a necessidade da passagem ao estado civil Bobbio 1991 p 4 Também para Manet esta foi solução que Locke encontrou para justifi car a entrada dos homens em um corpo político Manet 1990 p 75 Em outras palavras a teoria jusnaturalista exige que o autor admita a existência de problemas insuperáveis no estado de natureza e que incentivarão os indivíduos a abandonálo defi nitivamente6 Para Goldwin contudo é um erro confundir o estado de natureza com o estado de guerra por dois motivos Primeiro porque a defi nição de estado de guerra não inclui o termo essencial um poder comumchefe superior presente tanto na defi nição de estado de natureza quanto de sociedade civil Goldwin 1996 p 454 Segundo porque ao defi nir estado de guerra Locke introduz um elemento distinto o uso da força sem direito sem justiça e sem autoridade Goldwin 1996 p 454 Portanto o estado de natureza ou a socie dade civil se degeneram em estado de guerra quando há o emprego da força sem direito sem justiça e sem autoridade Uma das controvérsias que envolve os jusnaturalistas é quanto à histori cidade do estado de natureza e do contrato Bobbio 1991 p 3 Bobbio 1998 p 2287 Para Goldwin o estado de natureza de Locke não se limita à condição prépolítica original do homem Goldwin 1996 p 453 Goldwin argumenta que quando Locke indaga sobre a existência do estado de natureza no parágrafo 14 os exemplos que ele nos oferece são de homens políticos Goldwin 1996 p 453 De acordo com Goldwin o estado de natureza de Locke é uma certa for ma de relação humana sua existência quando existe não tem nada a ver com o grau de experiência dos homens que estão nele e pode existir em qualquer épo ca da história da humanidade inclusive no presente Goldwin 1996 p 454 Observese no trecho abaixo que tal como Hobbes Locke afi rma que a relação entre príncipes e governantes chefes de Estado logo seres políticos mantêm entre si é uma relação entre homens vivendo no estado de natureza pois não há acima deles um poder comum que os submeta E diz Goldwin na América um europeu como o suíço menciondo por Locke embora seja um homem político encontrase no estado de natureza 6 Na seção 45 voltaremos a esta questão 7 Comentarei a respeito da historicidade ou não do contrato de Locke na seção 44 97 Capítulo 4 John Locke lei e propriedade Vladimyr Lombardo Jorge 14 como todos os príncipes e governantes de Estados independen tes por toda a parte do mundo se encontram em um estado de natureza claro que o mundo nunca esteve nem nunca estará sem ter muitos ho mens nesse estado Referime a todos os governantes de comunidades independentes estejam ou não em liga com outros por que não é qual quer pacto que faz cessar o estado de natureza entre os homens mas apenas o de concordar mutualmente e em conjunto em formar uma comunidade fundando um corpo político outras promessas e pactos podem os homens fazer entre si conservando entretanto o estado de natureza As promessas e trocas para intercâmbio entre dois homens em uma ilha deserta ou entre um suíço e um índio nas fl orestas da América os vinculam embora estejam prefeitamente em estado de natureza entre si Locke 1983 p 39 Este comentário sobre o estado de natureza de Locke estará incompleto se não fi zermos referência a um outro direito natural o direito de propriedade 431 Direito de propriedade Segundo Yolton propriedade é um conceito central no estudo lockeano do governo civil Yolton 1996 p 207 pois em diversas passagens Locke afi r ma que a fi nalidade do estado civil é a preservação da propriedade8 O termo propriedade é empregado por Locke em dois sentidos Em sentido restrito para referirse apenas à posse de bens móveis e imóveis Em sentido amplo o conceito de propriedade compreende além dos bens ou pos sessões do indivíduo sua vida e sua liberdade Bobbio 1998 p 188189 Gol dwin 1996 p 471 Para Bobbio é surpreendente que Locke tenha elevado o direito de propriedade à posição de direito natural por excelência a ponto de nele resumir todos os demais direitos Bobbio 1998 p189 Manet lembra que ao tornar a propriedade um direito natural mas estritamente individual Locke rompeu com a tradição que a considerava um direito natural porém social Ma net esclarece que até então era um direito social no sentido de ser um direito regido e eventualmente limitado pela lei ou se preferirmos pelos deveres sociais e políticos do proprietário Manet 1990 p 68 A propriedade é o tema do capítulo V do Segundo tratado Nesse capítulo Locke afi rma que pretende demonstrar como os homens tornamse proprietá rios das coisas dadas por Deus a todos os homens isto é à humanidade No 8 Veja por exemplo o parágrafo 124 do Segundo tratado do govervo civil citado na página 105 deste capítulo 98 ELSEVIER Curso de Ciência Política parágrafo 25 ele diz esforçarmeei para mostrar como os homens podem chegar a ter uma propriedade em várias partes daquilo que Deus deu à Huma nidade em comum e tal sem qualquer pacto expresso entre todos os membros da comunidade Locke 1983 p 45 Tendo incluído o direito de propriedade entre os direitos naturais Lo cke rejeitou a solução hobbesiana Para Hobbes o direito de propriedade não é um direito natural mas um instituto de direito positivo Em outras palavras de acordo com a teoria hobbesiana é o Estado que institui o direito de posse reser vando para si o direito de propriedade Bobbio 1998 p 189190 Para Locke a propriedade é anterior à sociedade civil e o direito de propriedade pertence aos indivíduos Segundo Locke a propriedade é o resultado da relação que os homens mantêm através do seu trabalho com as coisas naturais Em vez de opor o tra balho à propriedade Locke deriva o direito de propriedade do trabalho Locke 1983 p XVI Em outras palavras para Locke a origem da propriedade privada é o trabalho É isso que ele explica neste trecho 27 Seja o que for que ele retire do estado que a natureza lhe ofere ceu e no qual o deixou fi calhe misturado o próprio trabalho justando selhe algo que lhe pertence e por isso mesmo tornandoo proprieda de dele Retirandoo do estado comum em que a natureza o colocou anexoulhe por esse trabalho algo que o exclui do direito comum de outros homens Locke 1983 p 45 O parágrafo acima portanto corrobora o que diz Manet o indivíduo tor nase proprietário daquilo que antes pertencia a toda humanidade quando colhe ameixas ou qualquer outra coisa para satisfazer suas necessidades Manet 1990 p 68 O ato de colher uma fruta já é portanto sufi ciente para acrescentarlhe algo que não possuía antes De acordo com Locke a propriedade privada produz benefícios para a humanidade pois ela proporciona o aumento da produtividade Segundo Ma net para Locke trabalhar a terra é fazêla produzir mais muito mais do que ela produziria espontaneamente Manet 1990 p 69 As vantagens desse instituto são declaradas por Locke neste parágrafo 37 aquele que toma posse da terra pelo trabalho não diminui mas aumenta as reservas comuns da Humanidade As provisões que servem para o sustento da vida humana produzidas em um acre de terra fecha 99 Capítulo 4 John Locke lei e propriedade Vladimyr Lombardo Jorge da e cultivada falando mui conservadoramente são dez vezes mais do que pode produzir um acre de terreno de igual fertilidade aberto e em comum Portanto aquele que cerca um pedaço de terra e tem maior volume de conveniências da vida retirado de dez acres do que poderia ter de cem abandonados à natureza pode dizerse verdadeiramente que dá noventa acres aos homens Locke 1998 p 49 Bobbio contudo diz que o instituto da propriedade tem três limites que O primeiro limite consiste no fato de que de qualquer modo quem adquire propriedade sobre a terra ou sobre qualquer outro bem mediante sua própria capacidade de trabalho deve deixar aos outros o sufi ciente para que possam também sobreviver O segundo limite depende do próprio fi m do instituto da proprie dade Tudo que não me serve para esse fi m e que portanto não sendo usado seria abandonado excede o meu direito Em outras pala vras tenho um direito de propriedade sobre as coisas de que posso efe tivamente gozar as que sou obrigado a abandonar porque não posso utilizar podem ser tomadas licitamente pelos outros O terceiro limite parece ser mais grave porque é inerente à mesma natureza da propriedade como fruto do trabalho Meu trabalho é naturalmente limitado Esta é a questão Se é só o meu trabalho o limite existe Entretanto se é também o trabalho dos outros o limite deixa de existir Bobbio 1998 p 198200 De acordo com Bobbio o primeiro limite não tem importância porque para Locke há terra em abundância para todos Bobbio 1998 p 198 Bobbio cita a passagem abaixo do Segundo Tratado que de acordo com ele corrobora esta interpretação 36 Mas seja lá como for ao que não quero dar importância ouso afi rmar corajosamente o seguinte a mesma regra de propriedade isto é que todo homem deve ter tanto quanto possa utilizar valeria ainda no mundo sem prejudicar a ninguém desde que existe terra bas tante para o dobro dos habitantes Locke 1983 p 4849 Quanto ao segundo limite Bobbio diz que tal como o primeiro este tam bém não tem valor absoluto pois ele vale somente até o surgimento da moeda Segundo Bobbio uma das funções da moeda como Locke reconhece é justa mente a de tornar inoperante o limite derivado da natureza perecível dos produ tos Para Locke a essência da moeda é ser um bem não perecível que portanto pode ser conservado indefi nitivamente Bobbio 1998 p 199 100 ELSEVIER Curso de Ciência Política Locke se refere ao aparecimento da moeda nos parágrafos 46 e 47 Ob serve que para ele a criação e o uso da moeda não dependem da existência da sociedade civil E com a moeda aparece o comércio a compra de propriedades bens móveis e imóveis e passa a haver a concentração de riquezas Ou seja a propriedade de bens móveis e imóveis tornase ilimitada pois agora é pos sível a troca de bens perecíveis por um não perecível a moeda Diz Locke no parágrafo 47 E assim originouse o uso do dinheiro algo de duradouro que os homens pudessem guardar sem estragarse e que por consentimento mútuo recebessem em troca de sustentáculos da vida verdadeiramente úteis mas pere cíveis Locke 1983 p 53 Por fi m de acordo com a interpretação de Bobbio o terceiro limite é su perado com o trabalho alheio Segundo ele para Locke todo indivíduo tem o direito de transferir ou alienar o seu trabalho para outrem porque é da essência do direito de propriedade a livre utilização da coisa possuída Bobbio 1998 p 201 Manet por sua vez aponta outra consequência importante Ele diz que com a criação da moeda e o trabalho assalariado Locke desvincula o trabalho da propriedade De acordo com Manet a partir do momento em que a moeda permite representar e conservar quantidades de trabalho o proprietário legíti mo já não é necessariamente o trabalhador basta que a troca seja livre para que a propriedade conserve seu valor e assim continue a representar a quantidade de trabalho que incorporou Manet 1990 p 70 Em outra passagem Manet afi rma que Locke deixou bem claro que o trabalho é apenas o começo da propriedade No fi nal o trabalho é desvinculado da propriedade Mais precisa mente o direito de propriedade desligase do direito do trabalhador aos frutos do seu trabalho Manet 1990 p 71 Além dos três limites supra Bobbio menciona ainda um quarto Este sur ge com a morte do indivíduo proprietáriotrabalhador De acordo com Bobbio Locke descarta a possibilidade de os bens retornarem à comunidade no estado de natureza ou ao Estado na sociedade civil Bobbio 1998 p 203 Para ele a solução lockeana é outra o reconhecimento do direito de todos os fi lhos e não somente o do primogênito sobre o patrimônio paterno e materno ou a indica ção pelo titular daquele que herdará seus bens Bobbio 1998 p 204 No fi nal da primeira seção foi dito que a fi nalidade do estado civil é a preservação da propriedade A origem desse estágio o estado civil contudo não é decorrente de causas naturais como na teoria de Aristóteles mas de uma convenção que consiste em um ato voluntário e deliberado Bobbio 1991 p 7 E é esse ato que vamos discutir na próxima seção 101 Capítulo 4 John Locke lei e propriedade Vladimyr Lombardo Jorge 44 Do pacto ou contrato original Tal como Hobbes Locke é um contratualista9 Segundo Yolton embora Locke empregue a palavra pacto compact com mais frequência do que o ter mo contrato contract ambos têm o mesmo signifi cado Yolton 1996 p 181 Para Locke os indivíduos podem fazer pactos no estado de natureza sem que isto signifi que necessariamente o fi m deste estágio Isto é posto em evidência no parágrafo 14 quando Locke explica que não é qualquer pacto que faz cessar o estado de natureza entre os homens mas apenas o de concordar mu tuamente ou em conjunto em formar uma comunidade fundando um corpo político outras promessas e pactos podem os homens fazer entre si conservan do entretanto o estado de natureza Locke 1983 p 39 Eis aí nesse trecho outra diferença importante entre Locke e Hobbes O fi m do estado de natureza e consequentemente a criação da sociedade civil ocorrem portanto conforme indica o trecho supra por meio de um pacto original que obriga a todos a re nunciarem aos poderes que tinham no estado de natureza transferindoo para a maioria da comunidade e a se submeterem à resolução dessa maioria A esse respeito Locke diz nos parágrafos 95 e 99 95 A maneira única em virtude da qual uma pessoa qualquer re nuncia à liberdade natural e se reveste dos laços da sociedade civil consiste em concordar com outras pessoas em juntarse e unirse em comunidade para viverem com segurança conforto e paz umas com as outras gozando garantidamente das propriedades que tiverem e des frutando de maior proteção contra quem quer que não faça parte dela 99 Assim sendo o que dá início e constitui realmente qualquer so ciedade política nada mais é senão o assentimento de qualquer número de homens livres e capazes de maioria para se unirem e se incorpora rem a tal sociedade E isto e somente isto deu ou podia dar origem a qualquer governo legítimo no mundo Locke 1983 p 712 Há entre os fi lósofos jusnaturalistas dos séculos XVII e XVIII quem afi r me que um contrato dos indivíduos entre si deve ser seguido por um outro entre o povo e o soberano O primeiro é denominado de pacto de associação pactum societatis e o segundo pacto de sujeição pactum subiectionis Bobbio 1991 p 3 Janine 1991 p 6263 Hobbes fundiu ambos em um único pacto Janine 1991 9 O contratualismo segundo Nicola Matteucci compreende todas aquelas teorias políticas que vêem a origem da sociedade e o fundamento do poder político num contrato isto é num acordo tácito ou expresso entre a maioria dos indivíduos acordo que assinalaria o fi m do estado natural e o início do estado social e político Matteucci 1988 p 272 102 ELSEVIER Curso de Ciência Política p 63 Já Locke não deixa claro se há um único pacto ou se são dois No verbete pacto ou contrato Yolton não menciona a existência de dois pactos David Held porém afi rma que para Locke os indivíduos não fazem um mas dois pactos De acordo com Held o primeiro é estabelecido para criar uma sociedade independente o segundo uma sociedade política ou governo Os trechos do Segundo Tratado apontados por Held como os que sustentariam tal interpretação são os parágrafos 95 a 97 Para ele essa distinção é importante porque deixa cla ro que são os indivíduos da sociedade que outorgam a autoridade ao governo com o intuito de perseguir os fi ns dos governados Se esses fi ns não forem repre sentados adequadamente diz Held o poder de magistrado ou seja o direito de fazer cumprir as leis de natureza retornará ao povo Held 1993 p 71 Embora Bobbio diga que em nenhum momento Locke mencione dois pac tos ele corrobora a interpretação de Held Bobbio argumenta que o silêncio sobre o segundo contrato não signifi ca que Locke não reconhecesse a distinção dos dois momentos o da formação do corpo social e o da formação do governo propriamente político Bobbio 1998 p 226 Para Bobbio contudo tal distin ção encontrase no parágrafo 211 no qual como se pode constatar no trecho abaixo Locke fala sobre a dissolução da sociedade e a dissolução do governo 211 Aquele que quiser falar com clareza sobre a dissolução do governo deve em primeiro lugar distinguir entre a dissolução da sociedade e a dissolução do governo O que faz a comunidade e tira os homens do estado vago de natureza para a sociedade política é o acordo que cada um tem com os demais para se incorporar e agir como um corpo e as sim constituir uma comunidade distinta Locke 1983 p 118 Segundo Locke o contrato se dá entre homens livres e não cria um direito novo Ele é apenas um pacto entre indivíduos livres que se reúnem com o intuito de empregar sua força coletiva na execução das leis de natureza renunciando assim ao seu direito de praticar por si só a justiça Locke 1983 p XVI O objetivo do pacto para Locke é a preservação da propriedade isto é da vida da liberdade e dos bens e possessões e de impedir que os direitos naturais sejam desrespeitados Locke 1983 p XVl10 Ao contrário de Hobbes para Lo cke a fundação da sociedade civil não exige que os homens renunciem à quase totalidade de seus direitos naturais Locke 1983 p XVI Bobbio 1998 p 223 Segundo Bobbio a renúncia aos direitos naturais é apenas parcial pois compre ende somente o direito de fazer justiça por si mesmo que consiste no direito de fazer uso da força de julgar e de punir os que ameaçam a sua propriedade ou 10 Sobre o objetivo do pacto e do poder político que ele cria ver o parágrafo 3 do Segundo Tratado re produzido no início deste texto 103 Capítulo 4 John Locke lei e propriedade Vladimyr Lombardo Jorge de outrem Bobbio 1998 p 223 Desse modo Locke aponta a principal e funda mental característica do Estado moderno segundo Max Weber o monopólio do uso legítimo da força11 Deve o Estado instituído pelo contrato governar com base em leis fi xas universais e por intermédio de homens que derivam sua autoridade da comuni dade para executar as leis julgar e punir Diz Locke 87 O homem nascendo com direito à perfeita liberdade e gozo incontrolado de todos os direitos e privilégios da lei da natureza tem por natureza o poder não só de preservar a sua propriedade isto é a vida a liberdade e os bens contra os danos e ataques de outros homens mas também de julgar e castigar as infrações dessa lei por ou tros conforme estiver persuadido da gravidade da ofensa mesmo com a própria morte nos crimes em que o horror do fato exija conforme a sua opinião Contudo haverá sociedade política somente quando cada um dos membros renunciar ao próprio poder natural passandoo às mãos da comunidade em todos os casos que não lhe impeçam de re correr à proteção da lei por ela estabelecida Os que estão unidos em um corpo tendo a lei comum estabelecida e judicatura para qual ape lar com autoridade para decidir controvérsias e punir os ofensores estão em sociedade civil uns com os outros mas os que não têm essa apelação em comum quero dizer sobre a Terra ainda se encontram no estado de natureza sendo cada um onde não há outro juiz para si e executor o que constitui o estado perfeito de natureza Locke 1983 p 67 De acordo com Bobbio Locke combatia aqueles que sustentavam a inexis tência de um contrato como ato fundador da sociedade política Bobbio 1998 p 228 Para Locke tratavase de uma realidade histórica Bobbio 2000 p 144 Observe nestes parágrafos que Locke nos oferece evidências históricas para ten tar nos convencer a respeito da historicidade do estado de natureza e do con trato 102 Revela estranha inclinação para negar a evidência dos fatos aquele que não concorda em que os começos de Roma e de Veneza tiveram origem na união de homens livres e independentes uns dos outros en tre os quais não existia superioridade natural ou sujeição E se se pode aceitar a palavra de José de Acosta ele nos diz que em muitas partes da América não existia qualquer governo que fosse 11 Ver Weber 1999 p 525 104 ELSEVIER Curso de Ciência Política 103 E espero que concordem em que os que saíram de Esparta com Pa lanto conforme Justino liv III cap 4 menciona eram homens livres independentes uns dos outros tendo organizado um governo para regêlos por livre assentimento Dei assim vários exemplos tirados da história de homens livres e no estado de natureza que tendose reuni do incorporavam e deram início a uma comunidade Locke 1983 p 73 Observese que além dos fatos retirados da história europeia Locke as sim como Hobbes cita o continente americano para provar a existência do es tado de natureza e do contrato Além dos exemplos da história Bobbio diz que outro argumento a favor da tese da historicidade do contrato é que o vín culo do pai com respeito a determinado Estado não se transmite ao fi lho que não nasce como súdito de nenhum país e de nenhum governo assim uma vez atingida a maioridade está livre para escolher a cidadania do pai ou de outra Bobbio 1998 p 228 Mas de acordo com Bobbio a explicação pode ser também mais concei tual No parágrafo 91 Locke diz 91 pois sempre que existam dois homens sem qualquer regra esta belecida ou juiz comum para o qual apelar na Terra para a resolução de controvérsias de direito entre eles estarão ainda no estado de natureza Locke 1983 p 68 Tendo em vista que já dissesmos que os homens criam conscientemente a sociedade civil por intermédio de um contrato ou pacto com a fi nalidade de proteger a propriedade na próxima seção vamos retornar a essa questão para aprofundála mais 45 O objetivo da sociedade política e do governo Para compreendermos quais são segundo Locke os objetivos da socieda de política e do governo temos de nos remeter às causas que levaram os homens a abandonar o estado de natureza Resumidamente a causa é a incerteza quanto ao gozo dos direitos naturais proporcionada pela violação destes o que transfor ma o estado de natureza em estado de guerra12 Portanto para Locke os indivíduos criam a sociedade civil para evitar que este estado de guerra se concretize e se generalize Nos parágrafos 21 124 125 e 126 Locke menciona as carências do estado de natureza que levam os ho mens a celebrar o contrato que criará a sociedade e a sociedade civil 12 Ver a esse respeito a discussão sobre o estado de natureza na primeira seção deste capítulo 105 Capítulo 4 John Locke lei e propriedade Vladimyr Lombardo Jorge 21 Evitar esse estado de guerra no qual não há apelo senão para o céu e no qual qualquer divergência por menor que seja é capaz de ir dar se não houver autoridade que decida entre os contendores é razão decisiva para que homens se reúnam em sociedade deixando o estado de natureza onde há autoridade poder na Terra no qual é pos sível conseguir amparo mediante apelo excluise a continuidade do estado de guerra decidindose a controvérsia por aquele poder Locke 1983 p 42 124 O objetivo grande e principal portanto da união dos homens em comunidade colocandose eles sob governo é a preservação da pro priedade Para este objetivo muitas condições faltam no estado de na tureza Primeiro falta uma lei estabelecida fi rmada conhecida recebida e acei ta mediante consentimento comum porque embora a lei da natureza seja evidente e inteligível para todas as criaturas racionais entretanto os homens sendo desviados pelo interesse bem como ignorantes dela porque não a estudam não são capazes de reconhecêla como lei que os obrigue nos seus casos particulares 125 Em segundo lugar falta um juiz conhecido e indiferente com autoridade para resolver quaisquer dissensões de acordo com a lei es tabelecida 126 Em terceiro lugar falta muitas vezes poder que apóie e sustente a sentença quando justa dandolhe a devida execução Locke 1983 p 82 No parágrafo 128 Locke diz que quando celebram o contrato os homens renunciam aos seus poderes naturais que consistem em 1 fazer o que julgar conveniente para a própria preservação e a de terceiros dentro do que permite a lei da natureza e 2 castigar os crimes cometidos contra essa lei de natureza Locke 1983 p 8313 E no parágrafo 131 afi rma que os homens renunciam vi sando a preservação de si próprio de sua liberdade e de sua propriedade bens Locke 1983 p 8314 De acordo com Locke o maior e o mais importante objetivo do Estado é a preservação da propriedade isto é da vida da liberdade e dos bens ou possessões do povo Portanto os indivíduos abandonam o estado de natureza e instituem a sociedade civil para viverem melhor ou seja com mais segurança Por isso ele diz 13 Locke já havia feito referência a tais poderes no parágrafo 87 14 Segundo Bobbio a tradição que de Locke a Kant afi rma que a principal tarefa do Estado é garantir a liberdade natural do indivíduo Bobbio 2000 p 290 106 ELSEVIER Curso de Ciência Política 131 o poder da sociedade ou o legislativo por ela constituído não se pode nunca supor se estenda mais além do que o bem comum mas fi ca na obrigação de assegurar a propriedade de cada um provendo contra os três inconvenientes acima assinalados que tornam o estado de natureza tão inseguro e arriscado E assim sendo quem tiver o po der legislativo ou o poder supremo de qualquer comunidade obrigase a governála mediante leis estabelecidas promulgadas e conhecidas do povo e não por meio de decretos extemporâneos por juízes indiferen tes e corretos que terão de resolver as controvérsias conforme essas leis e a empregar a força da comunidade no seu território somente na execução de tais leis e fora dele para prevenir ou remediar malefícios estrangeiros e garantir a sociedade contra incursões ou invasões E tudo isso tendo em vista nenhum outro objetivo senão a paz a segurança e o bem público do povo Locke 1983 p 8384 Diferente de Hobbes a obtenção da segurança requer a preservação da li berdade natural transformada por Locke em um direito natural Isso é possível porque como vimos para ele lei e direito não estão em contradição A instituição da sociedade civil segundo Bobbio não deve representar a des truição do estado de natureza mas corrigilo e pôlo de modo que os homens pos sam continuar vivendo com todas as suas vantagens no estado civil mediante um aparelho executivo que tenha condições de obrigar os homens a respeitar as leis naturais Bobbio 1998 p 185 Isso é possível porque Locke não concebe o esta do de natureza como necessariamente um estado de guerra Para Bobbio a socieda de civil de Locke aperfeiçoa o estado de natureza criando as condições necessárias para a observância das leis da natureza15 Se a interpretação de Bobbio estiver cor reta Locke e Hobbes concordam que a sociedade civil cria as condições necessárias para a observância das leis da natureza mas discordam quanto ao signifi cado do estágio político Pois para Hobbes a sociedade civil estado de paz representa pura e simplesmente a negação do estado de natureza estado de guerra Que forma de governo seria para Locke a mais adequada para atingir esse propósito Discutiremos esta questão na próxima seção 46 As formas de governo No capítulo X do Segundo Tratado Locke explica como identifi car e dis tinguir as formas de governo De acordo com ele a forma de governo deve ser 15 Essa interpretação é corroborada por esta afi rmação de Bobbio Para Locke somente na sociedade civil ou política existem as condições para a observância das leis naturais que são as leis da razão Bob bio 2000 p 121 107 Capítulo 4 John Locke lei e propriedade Vladimyr Lombardo Jorge defi nida pela posse do poder de fazer leis isto é do Poder Legislativo que é o poder supremo Observese o que ele diz neste trecho 132 Dependendo a forma de governo da situação do poder supre mo que é o legislativo sendo impossível conceberse que o poder inferior prescreva ao superior ou que outro qualquer que não o poder supremo faça as leis conforme se coloca o poder de fazer leis assim também é a forma da comunidade Locke 1983 p 85 É portanto o critério supra que Locke emprega para distinguir as três formas de governo democracia oligarquia e monarquia Ele defi ne a democra cia como a forma de governo em que todo o poder da comunidade natu ralmente em si pode empregálo para fazer leis destinadas à comunidade de tempos em tempos que se executam por meio de funcionários que ela própria nomeia Locke 1983 p 85 Por oligarquia Locke entende a forma de governo em que o poder de fazer leis está nas mãos de alguns homens escolhidos seus herdeiros e sucessores Locke 1983 p 85 A monarquia por sua vez é defi nida como aquela em que o poder de fazer leis encontrase nas mãos de um único homem Locke 1983 p 85 Mas lembra Goldwin em todos os casos somente o consentimento da maioria pode estabelecer o governo todas as for mas de governo se encontram igualmente fundadas no consentimento da maioria Goldwin 1996 p 475 A monarquia segundo Locke pode ser de dois tipos Se após a morte do monarca o poder legislativo for transferido para seu herdeiro era será hereditá ria Mas se ao invés disso ele for devolvido à comunidade para que esta escolha o novo monarca será eletiva Locke 1983 p 85 Seguindo a tradição iniciada por Aristóteles e Políbio Locke admite que além dessas três formas de governo em que apenas uma parte da sociedade tem o poder de fazer leis existe a possibilidade de a comunidade estabelecer formas mistas ou compostas Locke 1985 p 85 E para Locke a forma mais condizente com o governo civil é uma forma mista pois a proteção da propriedade requer de acordo com Held um estado no qual o poder público está legalmente cir cunscrito e divido Held explica que Locke acreditava na conveniência de uma monarquia constitucional com um poder executivo e uma assembleia parlamen tar com direito a legislar Held 1993 p 72 16 Ao contrário de Maquiavel e de Hobbes Locke não trabalha com a dico tomia ordem versus desordem mas com a dicotomia liberdade versus opressão Não é que ele não estivesse preocupado com a constituição da ordem Ele real mente estava mas não de qualquer ordem Sua preocupação maior era a consti 16 A divisão entre o Poder Legislativo e o Poder Executivo será discutida na próxima seção 108 ELSEVIER Curso de Ciência Política tuição de uma ordem que garantisse a propriedade isto é a vida a liberdade e os bens dos indivíduos Por esse motivo considera a monarquia absolutista de fendida por Hobbes incompatível com a sociedade civil chegando a comparála a um estado ainda mais deplorável do que o estado de natureza Observese este parágrafo 90 Do que fi cou dito é evidente que a monarquia absoluta que alguns consideram o único governo no mundo é de fato incompatível com a sociedade civil não podendo por isso ser uma forma qualquer de go verno civil porque o objetivo da sociedade civil consiste em evitar e remediar os inconvenientes do estado de natureza que resultam neces sariamente de poder cada homem ser juiz em seu próprio caso estabe lecendose uma autoridade reconhecida para a qual todos os membros dessa sociedade podem apelar por qualquer dano que lhe causem ou controvérsia que possa surgir e à qual todos os membros dessa so ciedade terão de obedecer Onde quer que existam pessoas que não tenham semelhante autoridade a que recorrerem para decisão de qual quer diferença entre elas estarão tais pessoas no estado de natureza e assim se encontra qualquer príncipe absoluto em relação aos que estão sob seu domínio Locke 1983 p 68 De acordo com Bobbio a monarquia absolutista é um Estado despótico e por isso não é um governo civil Há dois motivos que justifi cam essa conclusão Primeiro porque a fuga do estado de natureza principal objetivo do governo civil não é completa Permanece um estado de natureza entre os súdi tos de um lado e de outro o soberano que não se sujeita às mesmas leis Bobbio 1998 p 219 segundo porque nele não há garantia da propriedade Bobbio 1998 p 219 Desde Locke esta oposição ao absolutismo é uma característica típica do pensamento liberal nas suas mais variadas vertentes Segundo Manet Locke traçou no Segundo Tratado um projeto que viria a se converter no liberalismo um indivíduo portador de direitos e um governo cujo objetivo é proteger tais direitos e não atacálos Manet 1990 p 6517 Na próxima seção vamos abor dar o desenho institucional imaginado por Locke para limitar o poder dos governantes e dessa forma manter a salvo os direitos naturais 17 Sobre a relação de Locke com o liberalismo veja também Grant 1991 A associação do nome de Locke ao liberalismo contudo é polêmica No Segundo Tratado Minogue afi rma que identifi cálo com a doutrina muito posterior do liberalismo é praticar história ao estilo dos whigs no qual os personagens históricos são compreendidos como animados por ideias de liberdade que só emergiram em um período posterior Minogue 1996 p 422 109 Capítulo 4 John Locke lei e propriedade Vladimyr Lombardo Jorge 47 Estado liberal e divisão do poder Com o intuito de limitar o poder e assim evitar ou desencorajar seu uso abusivo os teóricos liberais propõem entre outras coisas a divisão do poder político Por isso a característica fundamental de um Estado liberal é a restrição de seu poder e de suas funções Como Estado limitado se contrapõe tanto ao Estado absolutista quanto ao de bemestar social Bobbio 1988 p 7 Vimos na seção anterior que a concepção liberal de Estado está presente no Segundo Tratado Bobbio contudo lembra que não foi Locke quem formulou a teoria sobre a separação dos três poderes Bobbio 1998 p 231 Esta compreen de a divisão do poder político em três ramos executivo legislativo e judiciário Mas para Locke este último não é um poder autônomo Bobbio 1998 p 232 Por isso podemos dizer apenas que ele formulou uma teoria sobre a divisão do poder político No Segundo Tratado ele distinguiu três poderes o legislativo o executivo e o federativo sendo que os dois primeiros legislativo e executivo devem estar necessariamente em mãos diferentes Com relação à função prerrogativa de cada poder cabe ao legislativo a responsabilidade de elaborar as leis ao exe cutivo de implementálas e ao federativo fazer guerra fi rmar a paz e manter relações com outros Estados De acordo com Locke a origem dos poderes executivo e legislativo está no pacto que exige que cada um renuncie ao seu direito natural de julgar Observe se o parágrafo abaixo 88 E por essa maneira a comunidade consegue por meio de um poder julgador estabelecer que castigo cabe às várias transgressões quando cometidas entre os membros dessa sociedade que é o poder de fazer leis bem como possui o poder de castigar qualquer dano praticado contra qualquer dos membros por alguém que não pertence a ela que é o poder de guerra e de paz e tudo isso para preservação da pro priedade de todos os membros dessa sociedade tanto quanto possível Todavia embora todo homem que tenha entrado para uma sociedade civil tenha por isso abandonado o poder de castigar ofensas con tra a lei de natureza no exercício do seu próprio julgamento particular foi dado direito à comunidade para o julgamento das ofensas que ele abandonou ao poder legislativo em todos os casos em que possa ape lar para o magistrado de empregar a força dele para a execução dos julgamentos da comunidade E aqui deparamos com a origem dos poderes legislativo e executivo da sociedade que deve julgar por meio de leis estabelecidas até que ponto se devem castigar as ofensas quando cometidas dentro dos limites da comunidade bem como determinar 110 ELSEVIER Curso de Ciência Política mediante julgamentos ocasionais até onde os danos do exterior de vem ser vingados e em um e outro caso utilizar toda a força de todos os membros quando houver necessidade Locke 1983 p 67 Dentre os poderes mencionados é do poder legislativo a prerrogativa ex clusiva de criar as leis Este contudo não deve ser um poder permanente 143 O poder legislativo é o que tem o direito de estabelecer como se deverá utilizar a força da comunidade no sentido da preservação dela própria e dos seus membros Como se tem de pôr constantemente em prática as leis que devem continuar sempre em vigor mas que se po dem elaborar em curto prazo não há necessidade de manterse tal po der permanentemente em exercício pois que nem sempre teria no que se ocupar E como pode ser tentação demasiado grande para a fraqueza humana capaz de tomar conta do poder para que as mesmas pessoas que têm por missão elaborar as leis também tenham nas mãos a facul dade de pôlas em prática fi cando dessa maneira isentas de obediência às leis que fazem e podendo amoldar a lei não só quando a elaboram como quando a põem em prática a favor delas mesmas e assim passa rem a ter interesse distinto do resto da comunidade contrário ao fi m da sociedade e do governo em comunidades bem ordenadas nas quais o bem de todos se leva em conta como é devido o poder legislativo vem às mãos de diversas pessoas que convenientemente reunidas têm em si ou juntamente com outras o poder de elaborar as leis depois de as sim fazerem novamente separadas fi cam sujeitas às leis que fi zeram o que representa obrigação nova e mais próxima para que as façam tendo em vista o bem geral Locke 1983 p 91 Notese no parágrafo supra que o poder legislativo não deve fi car per manentemente reunido Há dois motivos segundo Locke para isso Primeiro porque isso seria uma inutilidade segundo porque poderia ser perigoso É im portante ressaltar ainda que de acordo com o parágrafo supra os legisladores após terem feito a lei devem retornar à condição de súditos e portanto fi cam obrigados a obedecerlha Caso contrário como todos os demais súditos eles estarão sujeitos a sofrer sanções Mas a quem cabe convocar o Poder Legislati vo Essa prerrogativa diz Locke no parágrafo 167 é do Execuvivo que o fará conforme o exigirem as necessidades dos tempos e a variedade das ocasiões Locke 1983 p 100 O Executivo ao contrário precisa ser um poder permanente pois cabe a ele a função de fazer com que todos cumpram as leis promulgadas pelo Legis lativo Diz Locke 111 Capítulo 4 John Locke lei e propriedade Vladimyr Lombardo Jorge 144 Todavia como as leis elaboradas imediatamente e em prazo cur to têm força constante e duradoura precisando para isso de perpétua execução e assistência tornase necessária a existência de um poder permanente que acompanhe a execução das leis que se elaboram e fi cam em vigor E desse modo os poderes legislativo e executivo fi cam frequentemente separados Locke 1983 p 91 A divergência entre a teoria da divisão de poderes de Locke e a de Mon tesquieu também fi ca evidente quando o primeiro denomina o Poder Legislati vo de poder máximo18 Ao denominálo assim Locke estabelece uma hierarquia entre ambos o Poder Executivo cujas funções devem ser desempenhadas pelo Rei deve estar subordinado ao Legislativo O Executivo não participa do proces so legislativo pois ele não possui poder de veto isto é de rejeitar uma decisão tomada pelo Legislativo Portanto não encontramos na teoria lockeana nenhum mecanismo de limitação e controle do Poder Legislativo19 A teoria de Locke é de acordo com Bobbio uma teoria da supremacia do Poder Legislativo Bobbio 1998 p 236 Manet explica essa supremacia argumentando que uma distribuição mais ou menos igual do poder entre o legislativo e o executivo não podia ser concebida enquanto se considerasse que a so berania residisse no rei como acontecia à época que Locke escreveu o que já não era absolutamente o caso no momento em que ele publicou seus escritos O projeto liberal exigia portanto que se refutasse de imediato a ideia da soberania real Ora a uma soberania absoluta não se pode opor senão uma soberania absoluta à soberania do rei a do povo A soberania do povo na qualidadde de absoluta não era em princípio mais propícia à separação dos poderes do que a soberania do rei mas como o povo soberano não podia governar diretamente e como a assembleia de seus representantes tampouco era apropriada para governar um regime baseado na soberania do povo tinha prati camente necessidade de outro poder que não o soberano Manet 1990 p 8485 Goldwin lembra contudo que Locke admite a possibilidade de que em algumas circunstâncias o Executivo aja em nome do bem público sem a sanção da lei ou mesmo que a contrarie Tais possibilidades são admitidas por Locke 18 Observese que Locke não diz que o Legislativo é o poder soberano Ele talvez se tenha se recusado a usar o conceito de soberania porque uma das características da sobernia mencionada por diversos au tores é que o poder soberano é ilimitado O Legislativo de Locke contudo não é um poder ilimitado O poder Legislativo achase limitado pelas leis da natureza e pelos direitos naturais dos cidadãos 19 Sobre os mecanismos de controle de um poder sobre o outro indicados por Montesquieu ver o capítulo intitulado A Constituição inglesa de O espírito das leis 112 ELSEVIER Curso de Ciência Política neste trecho do parágrafo 160 Este poder de agir de acordo com a discrição a favor do bem público sem a prescrição da lei e muita vez mesmo contra ela é o que se chama de prerrogativa Locke 1983 p 477 Locke todavia reconhece nos parágrafos 166 e 168 que tal prerrogativa constitui um perigo quando um príncipe não a usa para promover o bem público mas em favor dos seus inte resses pessoais e com isso pondo em risco a propriedade e a segurança do povo Locke 1983 p 100 Tal como Hobbes Locke diz no parágrafo 145 que uma comunidade achase em estado de natureza em relação às outras Internamente para Locke cabe ao poder federativo a prerrogativa de declarar guerra ou paz a outras co munidades ou com elas constituir ligas e alianças20 146 Aí se contém portanto o poder de guerra e de paz de ligas e alian ças e todas as transações com todas as pessoas e comunidades estra nhas à sociedade podendose chamar federativa 148 Embora os poderes executivo e federativo de qualquer comu nidade sejam realmente distintos em si difi cilmente podem separarse e colocarse ao mesmo tempo em mãos de pessoas distintas Locke 1983 p 9192 Observese que para Locke o poder federativo e o executivo devem estar necessariamente nas mesmas mãos pois não se deve pôr a força do Estado em mãos diferentes Segundo Locke aquele que cuida da segurança interna deve também cuidar da externa E o poder judiciário Não era a ausência de um juiz imparcial que induziu os indivíduos a fazerem o contrato e por intermédio deste instituir a socieda de civil Bobbio se pergunta se por isso não deveria ser o judiciário e não o legislativo o poder fundamental do estado civil De acordo com ele no pensamento de Locke a função do juiz imparcial é exercida na sociedade civil eminentemente pelos que fazem as leis porque um juiz só pode ser imparcial se existirem leis genéricas formuladas de modo constante e uniforme para todos Bobbio 1998 p 232 Portanto se a interpretação de Bobbio estiver correta a imparcialidade é atingida no ato de formulação da lei e não de execução des ta Bobbio diz ainda que pensase de modo geral que Locke reduziu os três poderes tradicionais a apenas dois incluindo o Judiciário no Executivo Na verdade esta redução deriva do fato de que para Locke não há uma diferença 20 O termo federativo é aqui empregado provavelmente porque as federações ou confederações eram formadas com o intuito de aumentar o poder militar dos pequenos Estados Ver a este respeito Mon tesquieu 1979 p 127 113 Capítulo 4 John Locke lei e propriedade Vladimyr Lombardo Jorge essencial entre Legislativo e Judiciário que representam dois aspectos distintos do mesmo poder Bobbio 1998 p 233 Goldwin também concorda com a interpre tação de que para Locke a função judiciária é parte da legislativa não exigindo a separação formal entre ambas como medida para evitar a violação dos direitos naturais dos indivíduos Goldwin 1996 p 476 Essa interpretação é corrobora da por este trecho do Segundo Tratado 89 E por este modo os homens deixam o estado de natureza para entrarem no de comunidade estabelecendo um juiz na Terra com au toridade para resolver todas as controvérsias e reparar os danos que atinjam a qualquer membro da comunidade juiz esse que é o legislati vo ou os magistrados por ele nomeados Locke 1983 p 68 Antes de terminar esta seção vale a pena mencionar que para Bobbio e Goldwin no Segundo Tratado a separação de poderes signifi ca um ponto de divergência com o Leviatã de Hobbes Para este último o poder político o so berano instituído pelo pacto é indivisível A dicotomia aqui é entre separação de poderes versus concentração dos poderes Bobbio 1998 p 235 Goldwin por sua vez afi rma que a insistência de Locke no caráter limitado do poder polí tico revela ao mesmo tempo sua concordância e sua enorme discordância com Hobbes Goldwin 1986 p 472 Ambos concordavam que a sociedade civil era o remédio para curar os males do estado de natureza mas diferentemente de Hobbes Locke acreditava que uma sociedade civil com poderes ilimitados não solucionaria os problemas do estado de natureza Goldwin 1986 p 472 A supremacia do Poder Legislativo contudo não faz dele um poder ili mitado Na próxima seção trataremos dos limites que os indivíduos quando pactuaram impuseram a esse poder 48 Sobre os limites do poder político Além da teoria da origem da propriedade privada e da divisão do poder já comentadas outra evidência de que Locke é o inspirador do liberalismo está no capítulo XI onde ele expõe os limites do poder político Tais limites são qua tro O primeiro referese aos direitos do Legislativo Ele diz que os homens não transmitem para a sociedade civil o direito à vida à liberdade e aos bens pois 135 o poder do legislativo em seus limites extremos restringese ao bem público da sociedade É poder que não tem outro objetivo senão a preservação e portanto não poderá ter nunca o poder de destruir escravizar ou propositalmente empobrecer os súditos As obrigações 114 ELSEVIER Curso de Ciência Política da lei da natureza não cessam na sociedade mas somente em muitos casos se tornam mais rigorosas e por leis humanas se lhe anexam pe nalidades conhecidas destinadas a forçarlhes a observância Assim a lei da natureza fi ca de pé como lei eterna para todos os homens tanto legisladores como quaisquer outros As leis que elaboram para as ações de outros homens devem não só para as suas próprias ações como para as de terceiros estar de acordo com a lei da natureza isto é com a vontade de Deus a qual declaram e a lei fundamental da natureza sendo a preservação dos homens não há sanção humana que se mostre válida ou aceitável contra ela Locke 1983 p 87 No trecho supra Locke deixa claro também que as leis positivas são cria das para vir em socorro das leis da natureza que lhe são anteriores e não para contrariálas21 Locke diz que as leis positivas isto é aquelas regras promulga das pelo legislativo devem estar de acordo com as leis da natureza isto é com as leis de Deus O segundo limite diz respeito às leis positivas Segundo Locke os legisla dores não podem governar por intermédio de normas casuísticas conforme as pessoas evolvidas e as circunstâncias Locke afi rma que as normas devem ser genéricas e abstratas para garantir a igualdade de todos perante a lei 137 Todo o poder que o governo tem deve ser exercido mediante leis estabelecidas e promulgadas para que não só os homens possam saber qual o seu dever achandose garantidos e seguros dentro dos limi tes das leis como também para que os governantes mantidos dentro de limites não fi quem tentados pelo poder que têm nas mãos a entregálo para fi ns tais e mediante medidas tais de que os homens não tivessem conhecimento nem aprovassem de boa vontade Locke 1983 p 88 O terceiro limite referese à proteção da propriedade privada Locke afi r ma que o legislador não pode se apropriar dos bens dos súditos Diz Locke no parágrafo 138 Pois a propriedade de qualquer um não está de modo algum segura embora existam leis equitativas e boas que a delimitem entre eles e os outros homens se quem os governa tem o poder de tirar de qualquer pessoa particular a parte que quiser da propriedade desta usandoa e dela dispondo conforme lhe aprouver Locke 1983 p 89 No parágrafo 139 Locke também afi rma que o Estado nunca poderá ter o poder de tomar para si no todo ou em parte a propriedade do súdito Locke 1983 p 89 Com esta limitação diz Bobbio Locke está sancionando o princípio da liberdade econômica Bobbio 21 Esta é uma característica da escola jusnaturalista de um modo geral A esse respeito veja o verbete jusnaturalismo do Dicionário de Política organizado por Norberto Bobbio et alii 115 Capítulo 4 John Locke lei e propriedade Vladimyr Lombardo Jorge 1998 p 225 Por fi m no parágrafo 140 Locke afi rma com relação à criação de impostos que aquele que cria impostos sem que o povo lhe tenha dado tal prer rogativa está ferindo a lei que protege a propriedade e subvertendo os objetivos que levaram os homens a criar o governo Locke 1983 p 8990 Por fi m Locke restringe a atividade legislativa ao poder Legislativo ne gando a este o poder de transferir sua prerrogativa criar leis para outrem Lo cke 1983 p 90 Além de estabelecer os limites do poder político Locke discorreu também sobre os direitos do povo e as obrigações dos poderes Legislativo e Executivo Na próxima seção abordaremos estas questões 49 Da subordinação dos poderes da comunidade Outro aspecto importante distingue Locke de Hobbes o direito de dis solver o poder político Para Hobbes o soberano não pode ser destituído a não ser que ele concorde com isso Hobbes 1983 p 107 e 109 Locke ao contrário reconhece o direito da comunidade de dissolver o Poder Legislativo Observese o que diz Locke no trecho abaixo 149 sendo o legislativo somente um poder fi duciário destinado a entrar em ação para certos fi ns cabe ainda ao povo um poder supremo para afastar ou alterar o legislativo quando é levado a verifi car que age contrariamente ao encargo que lhe cofi aram E nessas condi ções a comunidade conserva perpetuamente o poder supremo de se salvaguardar dos propósitos e atentados de quem quer que seja mes mo dos legisladores sempre que forem tão levianos ou maldosos que formulem planos contra as liberdade e propriedades dos súditos E assim pode dizerse neste particular que a comunidade é sempre o poder supremo mas não considerada sob qualquer forma de governo porquanto este poder do povo não pode nunca ter lugar senão quando se dissolve o governo Locke 19834 p 93 No trecho supra Locke afi rma que o Poder Legislativo é um poder fi du ciário isso signifi ca que sua existência depende da confi ança que o povo depo sita nele O povo em última instância é o poder supremo Pois tendo o povo criado o Legislativo para determinados fi ns quando julgar que este poder não está agindo de modo a atingir esses fi ns tem o direito de depor os legisladores O povo poderia revoltarse legitimamente porque como afi rma Manet ele é a fonte última de toda legitimidade Manet 1990 p 8422 Está explícito que para 22 Segundo Manet mais tarde Montesquieu mostraria que o projeto liberal poderia prescindir da soberania absoluta e da revolta popular Manet 1990 p 84 116 ELSEVIER Curso de Ciência Política Locke há um contrato entre os súditos e o soberano podendo este último ser acusado de têlo violado Locke diz ainda que 150 Em todos os casos enquanto subsiste o governo o legislativo é o poder supremo o que deve dar leis a outrem deve necessariamente serlhe superior e desde que o legislativo não o é de outra qualquer maneira senão pelo direito que tem de fazer leis para todas as partes e para qualquer membro da sociedade prescrevendolhes regras às ações e concedendo poder de execução quando as transgridem o legis lativo necessariamente terá de ser supremo e todos os outros poderes em membros ou partes quaisquer da sociedade dele derivados ou a ele subordinados Locke 1983 p 93 Não tendo o Legislativo como já foi dito anteriormente vida contínua Locke afi rma que quando é confi ada ao Executivo a prerrogativa de convocar o Legislativo de tempos em tempos e aquele o Executivo não o faz esta recusa caracteriza um estado de guerra Diz Locke 154 Se o legislativo ou qualquer parte dele compõese de representan tes escolhidos pelo povo para esse período os quais voltam depois para o estado ordinário de súditos e só podendo tomar parte no legislativo mediante nova escolha este poder de escolher também deverá ser exer cido pelo povo ou em certas épocas ou então quando convocado para isso neste último caso colocase ordinariamente o poder de convocar o legislativo no executivo 155 Neste ponto pode perguntarse que acontecerá se o poder executi vo sendo senhor da força da comunidade a empregar para impedir a reunião e ação do legislativo conforme o exigirem a constituição origi nal ou necessidades do povo Digo empregar a força sobre o povo sem autoridade e contrariamente ao encargo cofi ado a quem assim proce de constitui estado de guerra com o povo que tem o direito de resta belecer o poder legislativo no exercício dos seu poderes Locke 1983 p 95 Questão intimamente ligada à que nós tratamos aqui é a da degeneração do governo ou poder político que será abordada na próxima seção 410 As causas da degeneração do governo Um tema clássico da fi losofi a política é o da corrupção dos governantes e consequentemente a degeneração do governo Para Locke esses fenômenos 117 Capítulo 4 John Locke lei e propriedade Vladimyr Lombardo Jorge podem ter causas diferentes o que o leva segundo Bobbio a distinguir quatro formas de degeneração a conquista a usurpação a tirania e a dissolução do governo Bobbio 1998 p 240 A causa da conquista é uma invasão externa cuja consequência é a disso lução da sociedade e em decorrência disto do governo civil23 Observese o que diz Locke neste trecho 211 A maneira usual e quase única de dissolver esta união consiste na invasão de força estranha que venha conquistar porque neste caso não sendo capaz de manterse e sustentarse como corpo inteiro e in dependente a união que lhe cabia e o formava tem necessariamente de cessar e assim cada um volta ao estado em que se encontrava antes com a liberdade de agir por conta própria e prover a própria liberda de conforme achar conveniente em qualquer outra sociedade Locke 1983 p 118 Para Locke a invasão externa jamais pode dar origem a um novo gover no Locke 1983 p 104 No parágrafo 176 ele diz que o conquistador não tem direito de reivindicar a submissão e a obediência do conquistado quando a con quista ocorrer por meio de uma guerra injusta da mesma forma que não se deve submeter ou obedecer a bandidos Locke 1983 p 104 No parágrafo 189 Locke referindose ao caso de uma guerra justa afi rma que nessas circunstâncias o povo encontrase livre para dar início a um novo governo não estando ninguém obrigado a se submeter a um governo imposto pelo conquistador Locke 1983 p 109 Esta é contudo apenas uma das limitações do direito do conquistador sobre o conquistador legítimo isto é aquele que vence em uma guerra justa Outra limitação é encontrada no parágrafo 178 Neste Locke diz que o conquistador obtém poder despótico somente sobre aqueles que realmente apoiaram eou participaram de fato de uma guerra injusta mas não sobre os demais já que o povo não concedeu aos governantes o poder de cometer tal ato guerra injusta Locke 1983 p 105 Outra limitação é estabelecida por Locke no parágrafo 179 quando ele diz que embora a conquista dê direito ao conquis tador de possuir poder absoluto sobre a vida do vencido ele não o tem sobre seus bens Locke 1983 p 105106 Isso contudo não o impede de reconhecer no parágrafo 182 que o conquistador tem direito sobre a propriedade do venci do nestas duas situações 1 para compensar os danos causados pela guerra e 2 para pagar as despesas realizadas com a mesma Locke 1983 p 106107 Mas em ambos os casos diz Locke no mesmo parágrafo o direito da mulher e dos fi lhos inocentes do conquistado devem ser preservados Locke 1983 p 107 23 Sobre esta questão ver Bobbio 1998 p 227 118 ELSEVIER Curso de Ciência Política Não havendo propriedade sufi ciente para satisfazer a todas as partes diz Locke no parágrafo 183 aquele que tiver de sobra deve renunciar a parte da satisfa ção inteira cedendo o direito premente e preferível dos que estão em perigo de perecer Locke 1983 p 107 Locke compara a usurpação à conquista injusta Segundo ele há muita semelhança entre ambas a não ser pela origem delas se a da primeira é interna a da segunda é externa De acordo com a defi nição de Locke a usurpação pri meira ocorre por exemplo quando o Poder Executivo toma para si a atividade legislativa Não havendo neste caso ou em qualquer outro fundamento jurídi co para isso 197 a usurpação é uma espécie de conquista interna com a diferen ça que um usurpador não pode ter nunca o direito a seu favor somente sendo usurpação quando o usurpador entra na posse daquilo a que um terceiro tem direito Isto na medida em que é usurpação consiste somente em mudança de pessoas mas não das formas e regras do go verno Locke 1983 p 112 A tirania por sua vez fi ca caracterizada quando o legislador faz leis não em prol da comunidade mas benefício próprio Eis o que diz Locke 199 Do mesmo modo que a usurpação consiste no exercício do poder a que outro tem direito a tirania é o exercício do poder além do direito o que não pode caber a pessoa alguma E esta consiste em fazer uso do poder que alguém tem nas mãos não para o bem daqueles que lhe es tão sujeitos mas a favor da vantagem própria privada e separada Locke 1983 p 115 Bobbio explica que o tirano é quem recebeu o poder legitimamente portanto não se trata do usurpador mas o exerce não para o bem comum do povo mas para a sua vantagem pessoal Bobbio 1998 p 242 E o tirano pode ser um homem ou uma assembleia pois qualquer forma de governo pode se degenerar e se tornar uma tirania Eis o que Locke diz a esse respeito 201 É um engano supor que esta imperfeição é própria somente das monarquias outras formas de governo estão a ela sujeitas tanto quan to aquela Porque sempre que o poder que se põe em quaisquer mãos para governo do povo e preservação da propriedade se aplicar para outros fi ns e dele se faça uso para empobrecer perseguir ou subjugar o povo às ordens arbitrárias e irregulares dos que o possuem tornase realmente tirania sejam um ou muitos os que assim a utilizem Locke 1983 p 114 119 Capítulo 4 John Locke lei e propriedade Vladimyr Lombardo Jorge Locke afi rma que o súdito tem o direito de resistir à ação não sanciona da pela lei independentemente de ela ser praticada por outro súdito ou pelos governantes Pois quem tem autoridade da sociedade para usar a força só pode fazêlo em benefício do bem comum e desde que autorizado diretamente ou indiretamente pela própria sociedade Contudo o uso do direito de resistência isto é da força é um último recurso ao qual só devemos apelar quando e somente quando não tivermos como apelar para a lei ou seja para a justiça Observemse estes dois trechos 202 Onde quer que a lei termine a tirania começa se se transgredir a lei para dano de outrem E quem quer que em autoridade exceda o poder que lhe foi dado pela lei e faça uso da força que tem sob as suas ordens para levar a cabo sobre o súdito o que a lei não permite deixa de ser magistrado e agindo sem autoridade pode sofrer oposição como qualquer pessoa que invada pela força o direito de outrem Locke 1983 p 114 207 porque se a parte prejudicada puder encontrar remédio e os seus danos reparados mediante apelação à lei não haverá qualquer necessidade de recorrer à força que somente se deverá usar quando alguém se vir impedido de recorrer à lei porque só se deve considerar força hostil a que não permite recorrerse ao remédio de semelhante apelação e é tão só essa força que põe em estado de guerra aquele que faz dela uso e torna legítimo resistirlhe Locke 1983 p 116 De acordo com Bobbio para Locke a dissolução do governo é uma forma especial de tirania que atinge não toda sociedade mas somente o po der constituído em outras palavras não libera os cidadãos do contrato social limitandose a anular a confi ança nos governantes Bobbio 1998 p 242243 Esta pode ocorrer por dois motivos por alteração do Legislativo ou por violação da confi ança No primeiro caso o Poder Executivo ameaça o princípio da subordi nação dos poderes Locke trata desse motivo entre os parágrafos 212 e 219 Esta si tuação materializase em qualquer uma destas cinco situações mencionadas nos parágrafos 214 215 216 217 e 219 respectivamente 1 o governante substitui as leis por sua vontade arbitrária 2 o governante impede os legisladores de reunirse em assembleia 3 o governante modifi ca as formas da eleição 4 quando a sociedade é subjugada por uma potência estrangeira 5 o governante deixa de aplicar as leis sancionadas pelo Legislativo Lo cke 1983 p 119120 120 ELSEVIER Curso de Ciência Política A dissolução do governo ocorre por violação da confi ança quando o Poder Legislativo extrapola os limites lhe foram impostos Em outras palavras quando viola os direitos naturais dos súditos Diz Locke 221 Há portanto em segundo lugar outra maneira de dissolverse o governo que consiste em agirem o legislativo ou o príncipe contraria mente ao encargo que receberam Primeiro o legislativo age contra o encargo que a ele se confi ou quan do tenta invadir a propriedade do súdito e tornarse a si mesmo ou a qualquer parte da comunidade senhor ou árbitro da vida liberdade ou fortuna do povo 222 Sempre que portanto o legislativo transgredir esta regra fun damental da sociedade e por ambição temor loucura ou corrupção procurar apoderarse ou entregar às mãos de terceiro o poder absoluto sobre a vida liberdade e propriedade do povo perde por esta infração ao encargo o poder que o povo lhe entregou para fi ns completamente diferentes fazendoo voltar ao povo que tem o direito de retomar a liberdade originária e pela instituição de novo legislativo conforme achar conveniente prover a própria segurança e garantia o que consti tui o objetivo da sociedade Locke 1983 p 121 Portanto em qualquer uma das situações em que o poder político tornase uma ameaça aos direitos naturais isto é à propriedade e consequentemente o governo se dissolve o poder supremo retorna ao povo Nesse caso diz Goldwin o povo exercerá de maneira direta e ativa o poder supremo com um único pro pósito formar um novo governo tão rápido quanto for possível mediante o es tabelecimento de uma constituição e a delegação do poder legislativo em outras mãos Godwin 1996 p 476 Conforme expôs no trecho abaixo o povo é o juiz que decidirá se o governante age ou não contrariamente ao encargo recebido 240 Quem julgará se príncipe ou legislativo agem contrariamente ao encargo recebido A isto respondo O povo será o juiz porque quem poderá julgar se o depositário ou o deputado age bem e de acor do com o encargo a ele confi ado senão aquele que o nomeia devendo por têlo nomeado ter ainda poder para afastálo quando não agir con forme o seu dever Locke 1983 p 130 Para fi nalizar esta seção cabe aqui um esclarecimento sobre o direito do povo de remover um ursupador ou tirano Segundo Goldwin o direito de resis tência de Locke não é sinônimo de revolução Goldwin 1996 p 478 e 480 Ele explica que este é um direito natural e não um um direito político Goldwin 1996 p 480 Goldwin afi rma que para Locke o emprego da força pelo povo 121 Capítulo 4 John Locke lei e propriedade Vladimyr Lombardo Jorge só é justifi cável quando for direcionado a um poder injusto e ilegal cujos atos ameacem seus direitos naturais e em consequência disso não for mais possível apelar para a lei Goldwin 1996 p 480 Outro motivo para distinguilos é a consequência de um e de outro Gol dwin diz que a revolução é uma ameaça à existêndcia da sociedade e qualquer coisa que signifi que o direito a resistência deve ser congruente com a conserva ção da sociedade Goldwin 1996 p 478 411 Conclusão Tal como seu antecessor Thomas Hobbes e seu predecessor JeanJacques Rousseau Locke é um fi lósofo da escola do direito natural ou jusnaturalista Esse trio atribui a origem da sociedade e do poder político à realização de um contrato ou seja de um acordo entre a maioria dos indivíduos que marca o fi m do estado de natureza e o início do estado político Embora pertençam à mesma escola fi losófi ca a comparação entre Hobbes e Locke nos permite observar em que aspectos há divergências e coincidência entre ambos quanto a noções dos três elementos que compõem o modelo jusna turalista estado de natureza contrato e sociedade civil Vimos que a distinção que Locke faz entre estado de natureza e estado de licenciosidade por exemplo põe em evidência uma divergência entre ambos com relação ao estado de na tureza Com essa distinção Locke afi rma que mesmo no estágio prépolítico os homens devem respeitar as leis de natureza Essa afi rmação deve ser compreen dia dentro de uma proposição mais abrangente de Locke a de que a liberdade individual só está protegida se e somente se esta for limitada pelas leis de na tureza eou civis Vimos também que a noção de propriedade é central no pensamento lo ckeano sendo esse outro aspecto que o distingue de Hobbes A propriedade para Locke é um direito natural que envolve não apenas os bens mas também a vida e a liberdade individual Ao fazer dela um direito natural ele tornou sua existência independe da criação da sociedade civil É propriedade privada do in divíduo tudo aquilo que ele obteve por intermédio do seu trabalho ou adquiriu mediante a troca por dinheiro oriundo do seu trabalho A noção de propriedade é central porque permite a Locke justifi car a realização do contrato e consequentemente a criação da sociedade civil Sob um poder comum conclui Locke a propriedade estará mais bem protegida E para que a sociedade civil atinja seu objetivo é necessário que o monarca ou poder executivo aja de acordo com as determinações do legislativo identifi cado por 122 ELSEVIER Curso de Ciência Política Locke como poder supremo Este por sua vez deve observar as leis de natureza para que não haja desrespeito aos direitos naturais dos homens E é a partir desta conclusão de que tanto o monarca quanto os legisladores devem garantir a proteção dos direitos naturais dos homens que Locke reconhe ce a existência de outro direito natural o de resistência Este consiste no direito de destituir os membros do legislativo ou o monarca caso qualquer um deles se constitua em uma ameaça aos direitos naturais dos homens Com relação aos aspectos da teoria lockeana expostos nos três parágrafos supra noção de sociedade civil divisão de poder e direito de resistência há divergências com Hobbes que concebe o poder político como um poder absolu to inalienável e indivisível Mas apesar de as várias e importantes diferenças que distinguem Locke de Hobbes Bobbio observa que a ruptura não é total pois há também conver gência entre ambos Cita por exemplo as passagens em que Locke descreve seu estado de natureza em termos hobbesianos Tendo Bobbio explicado que isso ocorre porque o estado de natureza ideal de Locke não é idêntico ao seu o estado de natureza real Voltando aos aspectos divergentes já mencionados convém lembrar que com eles Locke lançava os fundamentos do Estado liberal uma vez que por um lado atribuía direitos intrínsecos aos indivíduos e por outro concebia o poder político de modo a difi cultar que este se tornasse uma ameaça concreta a tais direitos Tais divergências apareceram na idade madura e após seu encon tro com o conde de Shaftesbury quando Locke se tornou o teórico do modelo mercantil que exigia uma segurança vantajosa para desenvolvimento da livre iniciativa no domínio da economia Bobbio 1998 p 81 412 Perguntas para reflexão 1 Por que o estado de natureza de Locke não é um estado de licenciosidade 2 Discorra sobre as diferenças e aproximações entre noção de estado de natureza de Locke e estado de guerra 3 Discorra sobre a relação que Locke estabelece entre lei e direito 4 Explique por que para Locke a propriedade é um direito natural 5 Tendo Locke considerado a propriedade um direito natural que implica ções isso tem para o exercício do poder político 6 Comente sobre a divisão de poder estabelecida por Locke 123 Capítulo 4 John Locke lei e propriedade Vladimyr Lombardo Jorge 7 Relacione as limitações estabelecidas por Locke ao poder político e as causas da degeneração do governo 8 Explique a relação que há entre o pensamento político de Locke e a dou trina liberal 9 Em que aspectos os contratos de Locke e de Hobbes são diferentes 10 Explique por que no estado de natureza as leis de natureza não são efetivas e contrastando com Hobbes explique como Locke resolve este problema Bibliografia BOBBIO Norberto Liberalismo e democracia São Paulo Brasiliense 1988 Thomas Hobbes Rio de Janeiro Campus 1991 Locke e o direito natural 2 ed Brasília Editora da UnB 1998 Teoria geral da política A fi losofi a política e as lições dos clássicos Rio de Janeiro Campus 2000 GOLDWIN Robert A John Locke In STRAUSS Leo CROPSEY Joseph org História de la fi losofía política México Fondo de Cultura Económica 1996 GRANT Ruth W Jonh Lockes liberalism Chicago University of Chicago Press 1991 HELD David Modelos de democracia Madri Alianza Universidad 1993 HOBBES Thomas Leviatã ou matéria forma e poder de um Estado eclesiástico e civil 3 ed São Paulo Abril 1983 JANINE Renato Hobbes o medo e a esperança In WEFFORT Francisco org Os clássicos da política 3 ed São Paulo Ática 1991 v 1 LOCKE John Segundo tratado sobre o governo São Paulo Abril 1983 MANENT Pierre História intelectual do liberalismo Dez lições Rio de Janeiro Imago 1990 MATTEUCCI Nicola Contratualismo In Dicionário de política 5 ed Bra sília Editora da UnB 1988 WEBER Max Economia e sociedade Brasília Editora da UnB 1999 v 2 MINOGUE Kenneth R Liberalismo In OUTHWAITE William BOTTO MORE Tom org Dicionário do pensamento social do século XX Rio de Janeiro Jorge Zahar 1996 MONTESQUIEU O espírito das leis São Paulo Abril 1973 YOLTON John W Dicionário Locke Rio de Janeiro Jorge Zahar 1996 Advanced data display Advanced data display Advanced data display Advanced data display Advanced data display Advanced data display Advanced data display Capítulo 5 Montesquieu a centralidade da moderação na política Silene de Moraes Freire1 Adolfo Wagner2 Douglas Ribeiro Barboza3 Doutora em Sociologia pela USP Mestre em Serviço Social pela UFRJ Professora e procientista da UERJ Pesquisadorabolsista de produtividade do CNPq e coordenadora do Programa de Estudos de América Latina e Caribe do Centro de Ciências Sociais da UERJ PROEALCCCSUERJ Contato silenefreireigcombr silenefreiregmailcom Doutorando do Programa de PósGraduação da Faculdade de Serviço Social do Centro de Ciências Sociais da UERJ Mestre em Ciência Política pela UFRJ Pesquisador do Programa de Estudos de Amé rica Latina e Caribe PROEALCCCSUERJ Professor Assistente da CEFET Química Unidade Maracanã Contato adolfowbighostcombr Doutorando e Mestre em Serviço Social pela UERJ Bolsista CAPES e Pesquisador associado do Programa de Estudos de América Latina e Caribe PROEALCCCSUERJ Contato douglasbar bozayahoocombr 126 ELSEVIER Curso de Ciência Política 51 Quem foi Montesquieu Durante os tempos do Iluminismo a teoria política adquiriu imenso vi gor O processo de esgotamento das monarquias absolutistas o anacronismo do regime dos príncipes serviram de estímulo aos pensadores da época das Luzes na promoção de uma intensa discussão sobre o aperfeiçoamento da sociedade e suas instituições No centro desse debate sobre as possibilidades de um novo or denamento político destacase o fi lósofo moralista historiador e teórico político francês Charles Montesquieu O aristocrata CharlesLouis de Secondat senhor de La Brède e Barão de Montesquieu nasceu no Palacete de la Brède perto de Bordéus na França em 18 de janeiro de 1689 e faleceu em 10 de fevereiro de 1755 em Paris Membro de uma família da aristocracia provincial neto e sobrinho de um presidente do Parlamento de Bordéus fi lho de Jacques de Secondat ofi cial da Guarda Real e de Marie Françoise de Pesnel Montesquieu fi cou órfão de mãe aos 11 anos de idade Realizou seu ensino básico junto aos Oratorianos do colégio de Juilly localidade situada a nordeste de Paris Foi em companhia de dois primos que frequentou o colégio onde lhe foi ministrada uma educação clássica Regressado a Bordéus em 1705 realizou os estudos jurídicos necessários à sua entrada no Parlamento de Bordéus para poder herdar o título e as im portantes funções do tio A admissão como conselheiro deuse em 1708 Após a conclusão dessas formalidades regressou a Paris onde concluiu os seus estudos jurídicos e onde frequentou assiduamente a Academia das Ciências e das Letras Regressou a Bordéus em 1713 devido à morte do pai Em 1715 casou com uma calvinista francesa o que lhe assegurou um valioso dote No ano seguinte o tio morreu e Montesquieu tornouse barão de Montesquieu e presidente no Parla mento de Bordéus Apesar de ter realizado sólidos estudos humanísticos e jurídicos ao mu darse para Paris frequentou os círculos da boêmia literária e levou uma vida de dissipações frequentando as festas dos salões da aristocracia e da nobreza parisienses O barão de Montesquieu foi fundamentalmente um aristocrata da provín cia da estirpe de seu conterrâneo Michel de Montaigne e como ele humanista e cético Juntou porém a essa herança espiritual o otimismo característico do século XVIII e acreditou fi rmemente na possibilidade de solução para os proble mas da vida pública Embora tenha tido formação iluminista com padres oratorianos cedo se mostrou um crítico severo e irônico da monarquia absolutista decadente bem como do clero Pensador autônomo em matéria religiosa e inegável apreciador 127 Capítulo 5 Montesquieu a centralidade da moderação na política Silene de Moraes Freire Adolfo Wagner e Douglas Ribeiro Barboza dos prazeres da vida Montesquieu apresentou essas características no seu pri meiro livro Lettres persanes 1721 Cartas persas cartas imaginárias de um per sa que teria visitado a França e estranhado os costumes e instituições vigentes conforme veremos adiante Em 1726 renunciou ao seu cargo no Parlamento de Bordéus vendeuo e foi viver em Paris preparandose para entrar na Academia Francesa Aceito em 1728 viajou logo a seguir pela Europa realizando assim o seu Grand Tour a tra dicional viagem educativa dos intelectuais europeus do século XVIII Regressou à França mas em seguida viajou para Inglaterra onde permanecerá durante dezoito meses Em 1731 após uma ausência de três anos regressou a Bordéus para a sua família e os seus negócios assim como para as vinhas e os campos agrícolas à volta do seu Palacete de Brède Retornará frequentemente a Paris onde tem con tatos ocasionais com os célebres salons da boêmia literária embora nunca tenha demonstrado vínculos com o grupo de intelectuais que os animava Seu grande objetivo passou a ser completar aquela que viria a ser a sua grande obra O espírito das leis Preenchendo uma etapa intermédia escreveu e publicou em 1734 a Causa da grandeza dos romanos e da sua decadência que não é mais do que um capítulo de apresentação do Espírito Esse intelectual representante da nobreza também sofreu infl uência de Vico Maquiavel Hobbes Locke e destacouse sobretudo por tentar levar em conta nas suas formulações outros elementos constituintes da organização polí tica tais como a dimensão e a extensão dos estados Conforme observou J A Guilhon de Albuquerque 2003 a obra de Mon tesquieu revela uma conjunção paradoxal entre o novo e o tradicional Múltipla e guiada por uma espécie de curiosidade universal parece estar em continuidade direta com os ensaístas que o precederam nos comentários sobre os usos e costumes dos diversos povos Com traços de enciclopedis mo várias disciplinas lhe atribuem o caráter de precursor ora aparecendo como pai da sociologia ora como inspirador do determinismo geográfi co e quase sempre como aquele que na ciência política desenvolveu a teoria dos três poderes que ainda hoje permanece como uma das condições de funcionamento do Estado de Direito Albuquerque 2003 p 113 Dada a abrangência da obra de Montesquieu a defi nição sobre a área de conhecimento em que sua obra se insere nunca foi algo de fácil resolução Dentro da corrente que considera Montesquieu sociólogo destacase Raymond Aron 2003 Segundo ele Montesquieu não é apenas um precursor mas um dos fundadores da sociologia Considerar Montesquieu como sociólogo é responder 128 ELSEVIER Curso de Ciência Política para Aron a uma pergunta formulada por todos os historiadores que se inquie tam com a necessidade de responder em que disciplina se insere Montesquieu ou mesmo a que escola pertence Apesar dos sólidos argumentos de Aron 2003 a incerteza na organiza ção universitária francesa persiste até hoje Montesquieu pode fi gurar simulta neamente no programa de graduação em literatura em fi losofi a em sociologia em direito e até mesmo em história Não por acaso os historiadores das ideias situam Montesquieu ora entre os homens de letras ora entre os teóricos da política às vezes como historiados do direito outras vezes entre os ideólogos que no século XVIII discutiram os fundamentos das instituições francesas e prepararam a crise revolucionária e até mesmo entre os economistas A verdade é que Montesquieu foi ao mesmo tempo um escritor um juris ta um fi lósofo da política e quase um romancista Aron 2003 p 21 O cerne do argumento liberal é a velha lição de Montesquieu não basta decidir sobre a base social do poder é igualmente importante determinar a for ma de governo e garantir que o poder mesmo legítimo em sua origem social não se torne ilegítimo pelo eventual arbítrio do seu uso Na raiz da posição liberal se encontra sempre uma dose inata de desconfi ança ante o poder e sua inerente propensão à violência Por isso o primeiro princípio liberal é o constituciona lismo isto é o reconhecimento da constante necessidade de limitar o fenômeno do poder O mundo liberal é uma ordem monocrática uma sociedade colocada sob o império da lei onde todo poder possa ser experimentado como autoridade e não como violência 52 Do mundo natural à natureza das leis a trajetória intelectual de Montesquieu Se um leitor interessado em conhecer mais sobre a obra e a vida de Mon tesquieu fi zer uma rápida pesquisa em uma enciclopédia ou mesmo na internet seja qual for o meio a informação sempre em destaque será a de que este é o autor da famosa obra Do espírito das leis O texto na verdade intitulado Do espírito das leis ou Das relações que as leis devem ter com a constituição de cada governo costumes clima religião comércio etc está dividido em trinta e um livros cujos temas são assim apresentados os dez primeiros livros depois de estabelecida a natureza das leis próprias dos ho mens tratará das formas de governo Do livro XI ao XIII a centralidade está no problema da liberdade política e a divisão dos poderes do livro XIV ao XVIII Montesquieu tratará da relação das leis com o clima e outras condições físicas de 129 Capítulo 5 Montesquieu a centralidade da moderação na política Silene de Moraes Freire Adolfo Wagner e Douglas Ribeiro Barboza um país no livro XIX das leis em suas relações com os costumes e as maneiras de um povo os de número XX a XXIII relacionamse aos efeitos da indústria comércio e demografi a os livros XXIV e XXV são monografi as que tratam da questão religiosa o livro XXVI trata dos domínios da legislação sobre história do direito romano e francês temos os livros XXVII e XXVIII o livro XXIX como diz o próprio título versa sobre a maneira de compor as leis Por fi m sobre a teoria das leis feudais entre os francos na sua relação com a monarquia temos os livros XXX e XXXI Pela sua magnitude e envergadura não é difícil supor ter sido essa de fato a obra da vida de seu autor justifi cando assim o resultado da pesquisa que mencionávamos acima A problemática que Montesquieu constrói ali na verdade é o resultado de um caminho que se inicia tempos antes nas leituras da juventude nas viagens na temporada em Paris nas impressões recolhidas a todos os instantes e que por sua vez são objetivadas nos textos publicados que devemos tomar como passos iniciais que se somaram na direção enfi m alcança da A refl exão de Montesquieu aplicase a todos os campos do saber Filóso fo racionalista e com grande infl uência do pensamento newtoniano ele tinha opinião sobre a física e a fi siologia historiador jurista esboçou uma estética enunciou princípios de economia estudou geografi a geologia e escreveu um capítulo importantíssimo da ciência política É justamente esta última que nos interessa e à qual aqui daremos tratamento 521 Da preocupação com o poder e a liberdade Se quisermos estabelecer uma linha que nos conduza através do pensa mento político de Montesquieu e de certa forma o resuma devemos buscála e sintetizála em termos de duas questões fundamentais o problema do poder e da liberdade No momento em que o jovem Montesquieu vai formar sua visão de mun do ele vê desmoronar o reinado de Luís XIV O advento da Monarquia absolu tista e a sua crise marcamno decisivamente Ele viu à nobreza a qual pertencia destituirse do valor supremo da honra que ao tornarse exclusividade do sobe rano a reduzia à condição de classe cortesã Tinha nas instituições francesas um modelo anacrônico que precisava ser revisto e superado De um lado criticava o absolutismo real e do outro a conduta da Igreja católica Passado o tempo a sua obra perseguirá os mesmos objetivos Ele desejava encontrar um caminho que negasse os extremos Digladiavase contra os perigos do despotismo e da intolerância Sua intenção manifesta era poder fazer com 130 ELSEVIER Curso de Ciência Política que os que comandam aumentassem seu conhecimento com o que devem pres crever e os que obedecem encontrassem um novo prazer em obedecer com que os homens se pudessem curar dos seus preconceitos entendendo por preconceito não o que faz com que ignoremos certas coisas mas o que faz com que ignoremos a nós próprios Montesquieu 1979 p 20 Ele se colocará para isso a tarefa do conhecimento com o objetivo de ins truir os homens Para ele esse corresponde ao primeiro passo para a liberdade Antes de mais nada é preciso libertarse daquilo que impede de conhecer supe rando os preconceitos e as certezas tradicionais Para isso é necessário arrancar as máscaras cobrir de ridículo os fanatismos e as superstições Este primeiro momento da liberdade surge em Montesquieu com a publicação das Cartas per sas1 1721 O livro aproveitando o gosto da época pelas coisas orientais apesar de espirituoso e irreverente tem um fundo extremamente sério pois relativiza os valores de uma civilização pela comparação com os de outra muito distintos Nessa obra da juventude ele apresenta ferrenha crítica aos costumes às insti tuições políticas e aos excessos praticados pela Igreja através do relato fi ctício sobre a visita de dois persas a Paris Ao discutir de maneira satírica as instituições usos e costumes da socie dade francesa e europeia criticando veementemente a religião católica Mon tesquieu através dessa obra realiza a primeira grande crítica à Igreja no século XVIII Cartas persas foi escrito utilizandose um recurso bastante em voga no sé culo XVIII o romance epistolar no qual alguém dizia ter encontrado um con junto de cartas que ali fazia publicar no todo ou em parte No caso conforme mencionamos anteriormente era publicada a correspondência de dois persas que em viagem a Paris emitiam suas opiniões e contavam sobre o que viam no Ocidente Montesquieu utilizase de um texto cheio de ironia e humor para denun ciar um mundo de máscaras e fi cção Nada escapa ao olhar atento dos viajantes o rei e a nobreza O rei da França é o mais poderoso príncipe da Europa Não possui mi nas de ouro como o rei de Espanha seu vizinho mas superao em ri 1 Foi esse livro verdadeiro manual do Iluminismo e uma das obras mais lidas no século XVIII que possibilitou um enorme sucesso para Montesquieu Muitas das afi rmações contidadas nessa obra serão legitimadas por Edward Gibbon autor inglês ao defender em Decline and Fall of the Roman Empire que a queda do império se deveu ao predomínio da Igreja cristã no Império Romano a partir de Constan tino 131 Capítulo 5 Montesquieu a centralidade da moderação na política Silene de Moraes Freire Adolfo Wagner e Douglas Ribeiro Barboza quezas porque as extrai da vaidade de seus súditos mais inesgotável do que as minas Sucedeu que declarasse ou travasse grandes guerras tendo por únicos recursos títulos de honra que vendia e por um prodí gio do orgulho humano suas tropas eram pagas suas praças reforça das e suas frotas equipadas Por sinal este rei é um grande mago exerce seu império sobre o espíri to mesmo de seus súditos ele os faz pensarem como quer Se dispõe de apenas um milhão de escudos no tesouro e precisa de dois necessita apenas convencêlos de que um escudo vale dois e eles assim acredi tam Chega até a fazêlos acreditar que os cura de todas as espécies de males por seu toque tão grande são a força e o poder que tem sobre os espíritos Montesquieu 1991 p 49 ou a Igreja e o Papa O que te conto deste príncipe não deve te espantar há outro mago mais forte do que ele que manda em seu espírito tanto quanto ele no dos demais Esse mago chamase Papa Ora ele faz acreditar que três são um ora que o pão que comem não é pão que o vinho que bebem não é vinho e mil coisas mais do gênero Montesquieu 1991 p 49 Neste momento se afi rma em Montesquieu uma liberdade negadora Aqui é apenas pela recusa do mundo tal como o vê imediatamente que se expressa seu pensamento positivo Um novo sentido para liberdade será apenas desenvolvi do e apresentado quando da publicação de Do Espírito das leis As Cartas Persas ganham os salões parisienses e o nome de seu autor é al çado à fama O texto é um romance e não se atém apenas à crítica dos costumes e tradições da sociedade francesa da época Sua ampla aceitação pode ser justi fi cada por dois fatores por um lado o texto não passa muito da superfície das coisas por outro o período da Regência após a morte de Luís XIV em 1715 até 1726 fi cou célebre pela libertinagem tanto pelo abrandamento do poder da censura como eroticamente falando Parece que uma parcela signifi cativa da aristocracia bon vivant tomou com graça a troça que se fi zera dela Não que o texto não tenha encontrado resistências tanto o teve que no primeiro momen to ao candidatarse à Academia Francesa em 1728 Montesquieu fora rejeitado pelo rei por indicação do cardeal Fleury mas seu sucesso abriulhe espaço no restrito círculo social da Corte Isso inclusive foi fator determinante para que a situação acima descrita pudesse ser contornada graças à dedicada intervenção de alguns admiradores de Montesquieu Em 1734 passados três anos de seu regresso da Inglaterra publica suas Considerações sobre a grandeza e decadência dos romanos 132 ELSEVIER Curso de Ciência Política Nesse livro ele antecipa algumas importantes noções e ideias que vão re aparecer em Do Espírito das leis Podemos começar falando de uma explicação histórica na qual se vêem aplicadas causas naturais gerais subordinando uma série de acontecimentos que se sucedem em um encadeamento necessário que nunca supõe uma intervenção divina exterior Roma se desenvolve do seu nascimento à sua morte tal qual um organismo que se transforma segundo leis que lhe são imanentes Um advento histórico provém exatamente de uma situação de conjunto segundo princípios contidos nas naturezas das coisas ou seja movidas por leis que lhes são imanentes Essa noção não retira do homem a sua capacidade de agir As causas ge rais dos acontecimentos históricos não fazem a história sem os homens haveria nelas algo de não humano o clima a natureza do terreno Há também todo o passado humano as tradições e os costumes A história seria o resultado de cau sas necessárias que se fariam através dos homens Nesse sentido Roma parece ter forjado seu destino por si mesma uma República que se degenera e tornase um Estado despótico e como este exceden do suas próprias forças acaba por perderse tal como outros casos semelhantes que ocorrem seguindo uma lei que se repete sempre Cartago sucumbiu porque quando se revelou necessário coibir abusos não quis se submeter ao próprio Aníbal Atenas caiu porque seus erros lhe pareceram tão doces que ela não se animou a corrigilos E entre nós as repúblicas da Itália que se gabam da perpetuidade de seus governos deveriam envaidecerse unicamente da continuidade de seus abusos Montesquieu 1995 p 62 Ao escrever o livro Montesquieu tinha em mente a França e o que pode ria acontecer Ao escrever a história de Roma ele já alertava que a ruína de um Estado começava pela corrupção de seus princípios Os elementos trabalhados até aqui ele irá aprofundar no Espírito das leis A partir deste ponto vamos nos concentrar sobre três questões a compreensão do seu método sua ideia de Lei e o que trata por Espírito o problema das formas de governo suas naturezas e princípios e a questão da divisão dos poderes e a liberdade política 522 Do espírito das leis Diferentemente do que aconteceu com as Cartas persas os ataques sofridos por Montesquieu logo após a publicação de Do espírito das leis foram mais duros e numerosos O livro chegou a constar do Index de obras proibidas aos católicos Seu projeto de certa forma a isso justifi cava tinha pretensão de analisar extensa 133 Capítulo 5 Montesquieu a centralidade da moderação na política Silene de Moraes Freire Adolfo Wagner e Douglas Ribeiro Barboza e profundamente a estrutura dos fatos humanos e formular um esquema inter pretativo do mundo histórico político e social Do método de Montesquieu dois aspectos devem ser ressaltados o pri meiro a exclusão de toda intencionalidade religiosa ou moral de suas análises o segundo a superação da perspectiva metafísica presente no pensamento car tesiano Quanto à primeira podemos dizer que ele está mais preocupado com aquilo que é do que com o que deve ser Elimina assim qualquer desvio fi na lista ou teológico da sua teoria Ele quer saber daquilo que está na natureza das coisas em si Para chegar a isso não poderia simplesmente deduzir a partir de dogmas preestabelecidos pela razão O que ele faz é diferente Ele toma suas observações pratica a análise comparativa dos fatos e tenta a partir daí extrair hipotéticas leis que os governam Algo esclarecedor foi dito por ele no Prefácio do livro Examinei de início os homens e julguei que nesta infi nita diversidade de leis e costumes não eram eles orientados unicamente por seus ca prichos Coloquei princípios e vi os casos particulares submeteremse a eles como por si mesmos as histórias de todas as nações serem apenas se quências e cada lei particular ligada a outra lei ou depender de outra mais geral Quando remontei à Antiguidade esforceime por captar seu espírito a fi m de não tomar como semelhantes casos realmente diferentes e não omitir as diferenças dos que se mostrassem semelhantes Não extraí meus princípios de meus preconceitos mas da natureza das coisas Montesquieu 1979 p 19 A distinção entre as ciências dos fatos sociais e da teologia são reforçadas por Montesquieu logo no início do primeiro capítulo do livro quando ele diz que as leis no seu sentido mais amplo são relações necessárias que derivam da natureza das coisas e nesse sentido todos os seres têm suas leis o mundo mate rial possui suas leis as inteligências superiores ao homem possuem suas leis os animais possuem suas leis o homem possui suas leis Montesquieu 1979 p 25 Os homens e suas leis serão portanto o objeto de suas preocupações Tendo cada domínio as suas estas só podem ser compreendidas a partir dos próprios fatos A preocupação com a instituição de governos moderados que permitam a convivência harmoniosa dos súditos na direção do que cumpriria a boa vida é como vimos o impulso da obra de Montesquieu 134 ELSEVIER Curso de Ciência Política Determinados pelas causas gerais os homens não podem encarar a his tória como obra de sua livre vontade Ao saírem de seu estado de natureza passando a viver em sociedade afi rma Montesquieu os homens tornamse propensos aos excessos aos confl itos e às guerras O que portanto devem fazer Como se garantiria o bom governo Estas questões são exatamente aquelas que veremos a seguir 53 As análises das formas de governo no pensamento de Montes quieu As categorias gerais que permitem ordenar sistematicamente as várias formas históricas de sociedade correspondem para Montesquieu aos diversos tipos de organização política A conhecida teoria dos três tipos de governo de senvolvida pelo autor nos treze primeiros livros de Do espírito das leis confi gura se num esforço tendente a reduzir a diversidade das formas de governo a alguns tipos a república a monarquia e o despotismo cada um destes defi nido ao mesmo tempo por referência a dois conceitos que o autor denomina natureza dos governos e o princípio que os orientam Entre a natureza do governo e o seu princípio há esta diferença a sua natureza é o que faz ser como é e o seu princípio o que o faz agir A primeira constitui sua estrutura particular e a segunda as paixões hu manas que o movimentam As leis não devem ser menos relativas ao princípio de cada governo do que à sua natureza Montesquieu 1979 p 41 Os critérios que defi nem a natureza de um governo derivam da sua es trutura isto é não apenas do número dos que detêm a força soberana quem governa como também da maneira como essa soberania é exercida como go verna Existem três espécies de governo o Republicano o Monárquico e o Despótico Suponho três defi nições ou antes três fatos um que o governo republicano é aquele em que o corpo do povo ou apenas uma parte do povo detém a força suprema o monárquico aquele em que um só governa mas por meio de leis fi xas e estáveis ao passo que no despotismo um só sem lei e sem regra tudo arrasta segundo a sua vontade e os seus caprichos Montesquieu 1979 p 32 De acordo com Aron 2003 a distinção entre o corpo do povo ou só uma parte do povo aplicada à república tem por fi m lembrar as duas espécies de governo republicano a democracia e a aristocracia Monarquia e despotismo são 135 Capítulo 5 Montesquieu a centralidade da moderação na política Silene de Moraes Freire Adolfo Wagner e Douglas Ribeiro Barboza ambos regimes que comportam um só detentor da soberania mas no caso do go verno monárquico o detentor único governa segundo leis fi xas e estabelecidas enquanto no despotismo governa sem leis e sem regras O princípio do governo é o sentimento que deve animar os homens no inte rior de um tipo de governo para que este funcione harmoniosamente é a paixão fundamental muitas vezes tratada pelo autor como mola que induz os súdi tos a agir de conformidade com as leis estabelecidas permitindo a durabilida de de todo ordenamento político e a possibilidade de um governo desenvolver adequadamente as suas tarefas Montesquieu destaca que há três sentimentos políticos fundamentais cada um deles assegurando a estabilidade de um tipo de governo A república depende da virtude a monarquia da honra e o despotismo do medo2 Dessa forma as leis devem ser relativas à natureza do governo porém não menos relativas ao seu princípio pois este princípio é a base fundamental e o motor que determina exercendo suprema infl uência sobre essas leis O prin cípio do governo é o fator determinante e dele depende a natureza do governo se a natureza do governo desaparece foi porque o seu princípio sofreu alterações A corrupção dos governos começa quase sempre pela dos princípios se os prin cípios são saudáveis as más leis têm o efeito das boas uma vez corrompidos os princípios do governo as melhores leis tornamse más voltandose contra o Estado pois a força do princípio tudo arrasta Assim considerando a interdependência entre a natureza e o princípio poderíamos sintetizar as três formas de governo da seguinte maneira República Sua estrutura particular sua natureza consiste no fato de que o povo é que detém o poder e seu princípio é a virtude Esta virtude não é somen te uma disposição individual uma virtude moral mas sim compreendida no seu sentido político que vincula o indivíduo a tudo do que participa É o amor da pátria o amor pela res publica3 Em sua forma democrática o corpo do povo 2 A virtude da república não é uma virtude moral mas uma virtude propriamente política É o respeito pelas leis e a dedicação do indivíduo à colectividade A honra é o respeito por cada um daquilo que deve à sua categoria Quanto ao medo é um sentimento elementar e por assim dizer infrapolítico que não precisa de defi nição Aos olhos de Montesquieu um regime assente no medo é por essência corrompido e quase no limiar do nada político Os súditos que só por medo obedecem já quase não são homens Aron 2003 3 Segundo Norberto Bobbio 1980 Ao precisar a noção de virtude como mola das repúblicas Montes quieu recorre também ao conceito de igualdade È um conceito que deve ser salientado porque serve para distinguir a república isto é a república democrática de outras formas de governo fundamenta das na desigualdade irredutível entre governantes e governados e na irredutível desigualdade entre os próprios governados É um conceito importante que condiciona o exercício da virtude enquanto amor 136 ELSEVIER Curso de Ciência Política detém a força suprema na forma aristocrática apenas uma parte do povo detém essa força Na república democrática o povo possui dois papéis distintos em um momento ele é súdito em outro ele é o monarca tendo o poder de escolher seu governante O povo necessariamente sabe escolher aquele a quem deve confi ar alguma parte da autoridade porém não é capaz de ele próprio administrar seus negócios tomar as suas decisões Como o governo é confi ado a cada cidadão é preciso que cada cidadão seja levado a amálo amando também a igualdade e a sobriedade que são da própria essência da democracia Na república aristocrá tica como o soberano poder se acha nas mãos não do povo em conjunto mas de certo número de pessoas quanto maior esse número mais se aproxima da de mocracia a instituição sendo assim mais perfeita A aristocracia para Montes quieu é uma espécie de democracia restrita condensada e purifi cada onde o poder estaria reservado aos cidadãos distintos pelo nascimento e preparados ao governo pela educação Nos governos aristocráticos a virtude apesar de neces sária não é tão absolutamente requerida como no governo popular Se o povo é coibido por suas próprias leis para coibir os nobres é necessário que a alma desses governos seja um certo espírito de moderação4 daqueles que o governam Um corpo semelhante apenas pode reprimirse de duas maneiras ou por uma grande virtude que faz com que os nobres se achem de algum modo iguais a seu povo coisa que pode formar uma grande república ou por uma virtude menor isto é certa moderação que tor na os nobres pelo menos iguais entre si o que faz a sua conservação Montesquieu 1979 p 43 Monarquia Sua natureza consiste no fato de somente uma pessoa o rei ser fonte de todo o poder e somente ela governar através de leis fi xas e estabe lecidas Essa natureza estabelece uma essencial ligação entre monarquia e no breza onde o modo de exercício do poder através das leis supõe a existência de poderes intermediários subordinados e dependentes Esses poderes interme diários são pela ordem a Nobreza necessidade básica para a monarquia pois sem monarca não há nobreza não se tem monarca mas um déspota o Clero perigoso em uma república como todo corpo independente mas conveniente numa monarquia e as Cidades com seus privilégios Segundo Montesquieu esse jogo complexo de oposições de resistências de pesos e contrapesos de con traforças é justamente o que mantém o Estado monárquico Por repousar numa da pátria Amase a pátria como algo que é de todos ela é percebida como pertencente a todos que se consideram iguais entre si ibidem p 123124 4 A moderação é portanto a alma desses governos Refi rome à que se baseia sobre a virtude e não à que decorre de uma covardia e preguiça da alma Ibidem p 43 137 Capítulo 5 Montesquieu a centralidade da moderação na política Silene de Moraes Freire Adolfo Wagner e Douglas Ribeiro Barboza nobreza hereditária em distinções marcadas e duradouras entre as pessoas e as condições sociais entre as paixões que dão movimento a tal governo já não fi gura a virtude Seu princípio é a honra ou o preconceito de cada pessoa e de cada condição A ambição é perniciosa numa república mas acarreta bons resultados na monarquia dá vida a esse governo com a vantagem de não ser pe rigosa porque pode aí ser incessantemente reprimida A honra mo vimenta todas as partes do corpo político ligaas por sua própria ação fazendo com que cada uma caminhe para o bem comum acreditando ir em direção de seus interesses particulares Montesquieu 1979 p 45 Despostismo O despotismo é um tipo de governo distinto que aparece como repulsor da verdadeira monarquia É o regime em que um só governa sem regras e sem leis sua natureza e em que por consequência reina o medo seu princípio Montesquieu adverte que caso a monarquia cedendo às pressões do povo se separe de uma nobreza que é a única a lhe permitir governar segundo as leis seu perigoso futuro será o despotismo Conforme nos destaca Aron 2003 os governos republicano e monárqui co se diferem essencialmente pelo fato de que um se fundamenta na igualdade e na virtude política dos cidadãos enquanto o outro se fundamenta na desigual dade e num sucedâneo de virtude a honra Contudo ambos possuem uma característica comum são moderados pois neles ninguém comanda de maneira arbitrária e à margem das leis o que os diferencia de um governo despótico O autor complementa que A república se baseia numa organização igualitária das relações entre os membros da coletividade A monarquia tem base essencialmente na diferenciação e na desigualdade Quanto ao despotismo ele marca o retorno a igualdade Porém se a igualdade republicana é uma igualda de na virtude e na participação de todos no poder soberano a igualda de despótica é a igualdade no medo na impotência e na não participa ção no poder soberano Ibidem p 17 Na fi losofi a política clássica se fazia uma teoria dos regimes sem levar em consideração a organização da sociedade sendo estes defi nidos por um único critério o número dos que detêm o poder soberano por exemplo estabelecen do assim uma validade suprahistórica dos tipos políticos Montesquieu estabe lece uma correspondência entre as dimensões territoriais do Estado e a forma de governo arriscandose a cair num determinismo em lugar de uma hierarquia de valores 138 ELSEVIER Curso de Ciência Política Com relação à república é de sua natureza ter apenas um pequeno territó rio sendolhe do contrário quase impossível subsistir pois numa pequena re pública o bem comum é mais bem compreendido e conhecido e está muito mais próximo dos cidadãos A forma monárquica ligase a uma dimensão média dos Estados cuja essência é a diferenciação das ordens sociais uma monarquia legal e moderada O despotismo relacionase ao Estado de grande extensão no qual apenas uma pessoa possui o poder absoluto e a religião possui grande poder capaz de limitar as arbitrariedades desse soberano O enfoque da crítica do Estadodéspota leva Montesquieu a fazer a dis tinção entre governo moderado e não moderado preconizando a adoção do primeiro onde a separação dos poderes tornase a garantia indispensável da liberdade política Mas em que consiste essa liberdade5 531 A questão da liberdade política e a separação dos poderes Para Montesquieu a palavra liberdade tem recebido as mais diferentes signifi cações porém não basta tratar a liberdade política em sua relação com a constituição mas também na relação que mantém com o cidadão cada um chamou liberdade ao governo que se adequava aos seus costumes ou às suas inclinações e como numa república nem sempre temos diante dos olhos e de forma tão presente os instrumentos dos males de que nos queixamos e mesmo como nesta forma de governo as leis parecem falar mais e os executores da lei menos ela é coloca da geralmente nas repúblicas e excluídas das monarquias Finalmente como nas democracias o povo parece quase fazer o que deseja ligouse a liberdade a essas formas de governo e confundiuse o poder do povo com sua liberdade Montesquieu 1979 p 147 A liberdade é o poder das leis não do povo Considerada em relação ao cidadão a liberdade política consiste em síntese na segurança pessoal que este experimenta ao abrigo das leis e de uma Constituição que aponte limites preci sos à ação do governo Para Montesquieu a liberdade política em um cidadão é a tranquilidade do espírito que provém da opinião que tem cada um da própria segurança e para isso é necessário que o governo seja tal que um cidadão não possa temer outro cidadão 5 A importância que Montesquieu atribuiu à separação dos poderes que caracteriza os governos mode rados confi rma a tese de que ao lado da tríplice classifi cação das formas de governo república monar quia e despotismo que corresponde ao uso descritivo e histórico da tipologia há uma outra tipologia mais simples relacionada com o uso prescritivo a qual distingue os governos em moderados e despóticos abrangendo esses últimos não só monarquia mais também república Bobbio 1980 p 127 139 Capítulo 5 Montesquieu a centralidade da moderação na política Silene de Moraes Freire Adolfo Wagner e Douglas Ribeiro Barboza Num Estado isto é numa sociedade em que há leis a liberdade não pode consistir senão em poder fazer o que se deve querer e em não ser constrangido a fazer o que não se deve desejar a liberdade é o di reito de fazer tudo o que as leis permitem se um cidadão pudesse fazer tudo o que elas proibissem não teria mais liberdade porque os outros também teriam tal poder Montesquieu 1979 p 147148 Assim em um regime livre com equilíbrio de poderes sociais e políticos a lei que compreende normas objetivas deveria ampliar a independência indi vidual dos cidadãos ao liberálos do medo e atuar como barreiras de contenção frente à violência Diferente de Hobbes em Montesquieu o desejo de dominação não se inscreve na natureza do homem mas sim quando uma vez estabelecidas as sociedades existem motivos para atacar ou para se defender De outra forma o poder nasceria somente a favor de uma posição social ou política que procura certo poder Não são os direitos naturais que freiam o poder para que seja impossível abusar do poder é preciso que pela disposição das coisas o poder freie o poder Montesquieu 1979 p 148 Assim a liberdade política podese encontrar apenas num governo onde o poder seja moderado moderação esta que depende de uma certa distribuição das forças que resulte da razão e não do acaso Tendo em mente a constituição da Inglaterra cujo governo na visão de Montesquieu tem por objeto a liberdade e no qual o povo é representado por assembleias o pensador francês tentou harmonizar a visão democrática de representação política com o ideal de limitação do poder do Estado afi rman do que esse resultado é conseguido primordialmente através da construção de diversas salvaguardas institucionais e constitucionais no sistema político ou seja a atribuição das três funções do Estado a órgãos diferentes equilibrando os poderes desse Estado pela tripartição em Poder Executivo Poder Legislativo e Poder Judiciário Quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura o poder legislativo está reunido ao poder executivo não existe liberdade pois podese temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado apenas esta beleçam leis tirânicas para executálas tiranicamente Não haverá tam bém liberdade se o poder de julgar não estiver separado do poder legis lativo e do executivo Se estivesse ligado ao poder legislativo o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário pois o juiz seria legislador Se estivesse ligado ao poder executivo o juiz poderia ter a força de um opressor Tudo estaria perdido se ao mesmo homem ou ao mesmo corpo dos principais ou dos nobres ou do povo exercesse esses três poderes o de fazer leis o de executar as resoluções públicas e 140 ELSEVIER Curso de Ciência Política o de julgar os crimes ou as divergências dos indivíduos Montesquieu 1979 p 149 Dessa forma Montesquieu analisa as três forças concretas cuja resultante constitui o governo inglês o povo a nobreza e o monarca O Poder Legislativo é confi ado tanto à nobreza como ao corpo escolhido para representar o povo cada qual com suas assembleias e deliberações à parte e objetivos e interesses separados a Câmara dos Lordes que representa a nobre za e a Câmara dos Comuns que representa o povo O povo não age por si mesmo mas por seus representantes eleitos para a função de criar derrogar ou modifi car as leis do Estado A grande vantagem dos representantes é que são capazes de discutir os negócios públicos O povo não é de modo algum capaz disso fato que constitui um dos graves inconve nientes da democracia Montesquieu 1979 p 150 Com o reconhecimento da Câmara dos Comuns mãe das assembleias eleitas reconheceramse as prin cipais regras do regime representativo moderno tais como se impuseram na Inglaterra assim como nos países civilizados A nobreza é hereditária e constitui uma corporação particular Câmara dos Lordes participante do Poder Legislativo em conjunto com os representan tes do povo nas palavras de Montesquieu Num Estado há sempre pessoas dignifi cadas pelo nascimento pelas riquezas ou pelas honrarias mas se se confundissem com o povo e só tivessem como os outros um voto a liberdade comum seria sua escra vidão e não teriam nenhum interesse em defendêla porque a maioria das resoluções seria contra elas A participação que toma na legislação deve ser portanto proporcional às outras vantagens que têm no esta do o que acontecerá se formar um corpo que tenha o direito de sustar as iniciativas do povo tal como o povo tem o direito de sustar as deles Montesquieu 1979 p 151 Ao monarca cabelhe o poder executivo porque essa parte do governo necessitando quase sempre de ação momentânea é melhor administrada por um do que por muitos O Poder Executivo das coisas que dependem do direito das gentes tem a função de promover a paz e fazer a guerra e todas as outras ações ligadas aos outros Estados O Poder Executivo das coisas que dependem do direito civil tem função julgadora Como observa Montesquieu se não houvesse monarca e se o poder executivo fosse confi ado a certo número de pessoas extraídas do corpo legislativo não haveria mais liberdade pois os dois poderes estariam unidos neles tomando parte algumas vezes ou sempre as mesmas pessoas Montesquieu 1979 p 151 141 Capítulo 5 Montesquieu a centralidade da moderação na política Silene de Moraes Freire Adolfo Wagner e Douglas Ribeiro Barboza Nas análises de Aron 2003 Montesquieu descreve a cooperação desses dois órgãos Executivo e Legislativo bem como analisa a sua separação Mos tra com efeito o que cada um desses poderes pode e deve fazer em relação ao outro O Poder Legislativo coopera com o Poder Executivo deve examinar em que medida as leis foram corretamente aplicadas por este último Quanto à força executora não poderá entrar no debate dos assuntos mas deve estar em relação de cooperação com o Poder Legislativo por aquilo a que Montesquieu chama a sua faculdade de impedir Por fi m o Poder Judiciário deveria estar nas mãos de membros do povo reunidos em tribunais provisórios destinados a resolver sobre disputas envol vendo indivíduos e questões criminais Conforme destaca Montesquieu O poder de julgar não deve ser outorgado a um senado permanente mas exercido por pessoas extraídas do corpo do povo num certo pe ríodo do ano de modo prescrito pela lei para formar um tribunal que dure apenas o tempo necessário tão terrível entre os homens não estando ligado nem a uma certa situação nem a uma certa profi ssão tornase por assim dizer invisível e nulo Não se têm constantemente juízes diante dos olhos e temese a magistratura mas não os magistra dos Montesquieu 1979 p 149 Apesar de que em geral o poder de julgar não deva estar ligado a nenhu ma parte do Legislativo Montesquieu insiste em que os nobres só devam ser julgados pelos seus pares pois Os poderosos estão sempre expostos à inveja e se fossem julgados pelo povo não fruiriam do privilégio que num Estado Livre o mais humil de cidadão possui de ser julgado pelos seu pares Cumpre portanto que os nobres sejam levados não diante dos tribunais ordinários da nação mas diante da parte do corpo legislativo composta de nobres Montesquieu 1979 p 152 Como forma de conter o absolutismo do governo à época num período histórico século XVIII caracterizado pela ascensão da burguesia ao poder que convergia suas forças na tentativa de enfraquecer o poder da nobreza para garantir maior liberdade individual a teoria da Separação dos Poderes consa grada por Montesquieu destacavase pela necessidade de que os poderes Exe cutivo Legislativo e Judiciário fossem exercidos por órgãos distintos harmôni cos e independentes entre si No período absolutista a arbitrariedade com que os governantes agiam tinha respaldo na concentração de poderes nas mãos de uma única pessoa ou um pequeno grupo o que ocasionava o completo desres peito às liberdades individuais 142 ELSEVIER Curso de Ciência Política Aron 2003 no que diz respeito às interpretações sobre a diferença ou cooperação entre o Poder Executivo e o Legislativo demonstra que apesar das aproximações entre Montesquieu e Locke há uma diferença fundamental de intenção entre eles O objetivo de Locke é limitar o pode real mostrar que se o monarca ultrapassar certos limites ou desrespeitar determinadas obrigações o povo fonte verdadeira da soberania tem o direito de reagir A ideia essencial de Montesquieu porém não é a separação de poderes no sen tido jurídico mas o que se poderia chamar o equilíbrio dos poderes sociais condição da liberdade política Aron 2003 p 23 É importante destacar também que a análise da constituição inglesa fei ta por Montesquieu visa redescobrir a diferenciação social a distinção entre as classes e as hierarquias sociais de acordo com a essência da monarquia tal como a defi niu e que é indispensável à moderação do poder Essa formalização cons titucional é a expressão de uma sociedade livre na qual nenhum poder pode alargarse sem limites uma vez que é travado por outros poderes A ideia de consenso social é a de um equilíbrio de forças ou da paz estabelecida pela ação e reação dos grupos sociais mas essa ideia de equilíbrio de poderes sociais condi ção de liberdade é baseada em Montesquieu no modelo de uma sociedade aris tocrática Os bons governos só podiam ser moderados quando o poder freava o poder ou quando nenhum cidadão tivesse medo dos demais e os nobres só se sentiam seguros se seus direitos fossem assegurados pela própria organização política Aron 2003 Dessa forma graças ao equilíbrio entre as classes sociais e ao equilíbrio en tre os poderes políticos a teoria da constituição inglesa em Montesquieu permi te encontrar no mecanismo constitucional de uma monarquia os fundamentos de um Estado moderado e livre no qual a condição para o respeito às leis e para a segurança dos cidadãos é a de que nenhum poder seja ilimitado constituindo se assim num ponto central na sociologia política desse pensador francês 54 O impacto do pensamento de Montesquieu Montesquieu com a sua obra pretendia estabelecer o caminho teórico que permitiria o retorno ao passado senhorial Era um saudosista das velhas monar quias germânicas É exatamente por isso que o impacto de seu pensamento deve ser compreendido em toda sua paradoxalidade A teoria da separação dos poderes alimentou a constituição republicana dos Estados Unidos da América e a Declaração Universal dos Direitos do Ho mem e do Cidadão Daí todos os processos políticos inspirados nesses docu 143 Capítulo 5 Montesquieu a centralidade da moderação na política Silene de Moraes Freire Adolfo Wagner e Douglas Ribeiro Barboza mentos incluíram essa ideia Ao mesmo tempo porém a Restauração Francesa incorporou de Montesquieu o regime bicameral O aspecto central do argumento liberal é a velha lição de Montesquieu não basta decidir sobre a base social do poder é igualmente importante deter minar a forma de governo e garantir que o poder mesmo legítimo em sua origem social não se torne ilegítimo pelo eventual arbítrio do seu uso No cerne da posição liberal se encontra sempre uma dose inata de desconfi ança ante o poder e sua inerente propensão à violência Por isso o primeiro princípio liberal é o constitucionalismo isto é o reconhecimento da constante necessidade de limitar o fenômeno do poder O mundo liberal sustentase na sociedade colocada sob o império da lei onde todo poder possa ser experimentado como autoridade e não como violência Fecunda e original a teoria de Montesquieu marcou decididamente a his tória do Pensamento Político Ela comprova de modo inconteste que as ideias sobrevivem ao seu tempo e que são recebidas por nós como parte de nossa atua lidade Isso não signifi ca que os clássicos se coloquem fora da história conforme observou Weffort 1991 Pelo contrário são com frequência os que pensaram de modo mais profundo os temas de sua própria época E foi precisamente por que pensaram de modo radical o seu tempo que sobreviveram a ele e chegaram até nós Os clássicos não são atemporais Eles são parte da nossa atualidade porque são parte de nossas raízes São por assim dizer a declaração da nossa historicidade Weffort 1991 p 7 Desse modo a leitura da obra de Montes quieu constitui momento necessário da base na qual se enfocarão as mais im portantes interpretações dos grandes problemas teóricos da política moderna 55 Perguntas para reflexão 1 Em essência sobre o que Montesquieu pretendia chamar a atenção quan do escreveu Cartas persas 2 De que forma a crítica ao absolutismo francês revelase no texto Consi derações sobre a grandeza e decadência dos romanos 3 Qual a relação que Montesquieu constrói entre os homens em seu estado de natureza a vida em sociedade e a necessidade das leis 4 Para Montesquieu ciência e religião relacionamse e determinamse mu tuamente 5 Quais seriam as principais características do conhecimento científico para o autor 144 ELSEVIER Curso de Ciência Política 6 O princípio é a base conceitual de análise dos governos para Montes quieu 7 Por que a preocupação com a instituição de governos moderados é con siderada um elemento central da obra de Montesquieu 8 Qual o contexto histórico em que Montesquieu escreve O espírito das leis 9 Analise a classificação dos regimes políticos proposta por Montesquieu 10 Analise os três tipos de governo a república a monarquia e o despotismo que Montesquieu distinguiu em Do espírito das leis Bibliografia ALTHUSSER Louis Montesquieu e a História Tradução Luiz Cary e Luísa Costa Lisboa Presença 1982 ANDERSON Perry Linhagens do Estado Absolutista Tradução de João Rober to Martins Filho et alii São Paulo Brasiliense 1985 ARON Raymond As etapas do pensamento sociológico Tradução de Sérgio Bath São Paulo Martins Fontes Brasília Ed UnB 1982 BOBBIO Norberto A Teoria das Formas de Governo Brasília UnB 1980 CHEVALIER JeanJaques As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias Rio de Janeiro Agir 1980 CORVISIER André História Moderna Tradução de Rolando Roque da Silva e Carmen Olívia de Castro Amaral São Paulo Rio de Janeiro Difel 1976 FINLEY M I O legado da Grécia Uma nova avaliação Tradução de Yvette Vieira P de Almeida Brasília UnB 1998 HUISMAN Denis Dir Dicionário dos fi lósofos Tradução de Cláudia Berli ner et alii São Paulo Martins Fontes 2001 LADURIE Emmanuel Le Roy O Estado Monárquico Tradução de Maria Lú cia Machado São Paulo Cia das Letras 1994 MONTESQUIEU Charles de Secondat Baron de Do espírito das leis Tradu ção de Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Martins Rodrigues São Paulo Abril Cultural 1979 Col Os Pensadores Cartas persas Tradução de Renato Janine Ribeiro São Paulo Editora Pauliceia 1991 Do espírito das leis São Paulo Martins Fontes1996 Considerações sobre as causas da grandeza e decadência dos romanos Tradução de Gilson César Cardoso de Souza São Paulo Paumape 2002 145 Capítulo 5 Montesquieu a centralidade da moderação na política Silene de Moraes Freire Adolfo Wagner e Douglas Ribeiro Barboza PESSANHA José Américo Motta LAMOUNIER Bolívar Montesquieu 16891755 Vida e Obra In Montesquieu Do espírito das leis 2 ed São Paulo Abril 1979 Col Os Pensadores STAROBINSKI Jean Montesquieu Tradução de Tomás Rosa Bueno São Paulo Companhia das Letras 1990 CHÂTELET François et al História das ideias políticas Rio de Janeiro Jorge Zahar 1985 QUIRINO Célia Galvão SOUZA Maria Teresa Sadek R de O pensamento político clássico Maquiavel Hobbes Locke Montesquieu Rousseau São Paulo T A Queiroz Editor 2007 ALBUQUERQUE J A Gilhon Montesquieu sociedade e poder In WEF FORT Francisco org Os clássicos da política São Paulo Ática 2003 p 111121 BORON Atílio A org Filosofi a Política contemporânea controvérsias sobre civilização império e cidadania Tradução de Maria Encarnación Moya Bue nos Aires Consejo Latinoamericano de Ciências Sociales São Paulo De partamento de Ciência Política Faculdade de Filosofi a Letras e Ciências Humanas Universidade de São Paulo 2006 TOUCHARD Jean org História das ideias políticas Tradução de Mário Bra ga Lisboa Publicações EuropaAmérica 1970 v 4 WEFFORT Francisco org Os clássicos da política São Paulo Ática 1991 v 2 Screw power screw Recommended power rating F H E C D B A J Capítulo 6 Jean Jacques Rousseau da inocência natural à Sociedade Política Christiane Itabaiana Martins Romêo1 61 Introdução Iniciase agora a leitura de um texto escrito sem maiores pretensões Afi nal tratase de um texto sobre JeanJacques Rousseau um dos mais complexos polêmicos e brilhantes pensadores da modernidade JeanJacques Rousseau nasceu e escreveu suas obras durante o século XVIII O chamado Século das Luzes foi assim denominado por ser o corolário das mudanças de mentalidade e de comportamento iniciadas com o Renasci mento século XV e enriquecidas com a produção intelectual do século XVII sobretudo com a formulação das ideias de liberdade e igualdade como direi tos naturais inatos à natureza humana No século XVIII a consolidação dessas Doutora e Mestre em Ciência Política pelo IUPERJ Graduada em Ciências Sociais pela UFF e Di reito pela PUCRio Professora Adjunta do IBMECRJ Contato christianeibmecrjbr 148 ELSEVIER Curso de Ciência Política ideias impulsionaram as grandes revoluções e impuseram o fi m do antigo regime na França As Luzes foram portanto o período de grande efervescência intelectual que deu origem ainda no século XVII ao Iluminismo movimento comprometi do com a crença na razão humana que supunha o homem como sujeito e dono de sua própria história que valorizava a razão em detrimento do teocentrismo da Idade Média chamado em oposição às Luzes período das Trevas Para os pensadores da época as questões humanas deveriam ser submeti das ao império da razão Aproveitandose de todas as conquistas renascentis tas os iluministas valorizavam preceitos políticos da Antiguidade clássica como a organização da polis grega sobretudo o elogio à racionalidade humana e sua aplicação na gestão da Cidade Chevallier 1983 A infl uência platônica é sensível em todos os ideólogos do movimento A tendência de valorizar o conhecimento e a razão na gestão de assuntos públicos em clara referência ao fi lósoforei de Platão é característica do Iluminismo e não se restringia somente a pensar a realidade política a aspiração do Iluminismo não era simplesmente a de que Reis e Monarcas se pusessem a es crever tratados de fi losofi a E sim que a praticassem Que a sabedoria e a razão governassem de fato Salinas 1987 p 77 Em relação à riqueza e à pluralidade de ideias do movimento iluminista Diderot um de seus mais importantes personagens esclarecia Cada século tem um espírito que o caracteriza o espírito do nosso parece ser o da liberdade apud Salinas 1987 p 16 A referência à liberdade não se resumiria na frase acima apenas ao con ceito valorizado pelos pensadores dos séculos XVII e XVIII mas também à mul tiplicidade de pontos de vistas e de discussões que caracterizaram sobretudo a Paris daquela época A convergência de suas obras consistia portanto apenas no elogio da razão e na crítica sistemática aos dogmas religiosos Além de Diderot os principais nomes do movimento são personagens que viveram e produziram entre 1680 e 1780 Voltaire DAlembert Montesquieu e JeanJacques Rousseau JeanJacques Rousseau fundou no século XVIII tradições inspirou revo luções mudou a forma de pensar o mundo os homens e as instituições Enfi m legou aos séculos que se seguiram novas maneiras de organização política Es tado povo e soberano passaram a ser tratados como sinônimos e dessa abor dagem então surgiram novas percepções sociais políticas e jurídicas a teoria constitucional assim como a elaboração das constituições passaram a ter como parâmetro a construção da sociedade política a vontade geral e a tarefa especial do 149 Capítulo 6 Jean Jacques Rousseau da inocência natural à Sociedade Política Christiane Itabaiana Martins Romêo legislador O governo até então nas mãos de um soberano corporifi cado na fi gu ra do rei passou a ser o empregado do povo este sim um corpo moral e político o verdadeiro soberano que constitui o Estado A fi losofi a política de JeanJacques Rousseau apesar de ter mais de du zentos anos de idade permanece atual viva e vibrante Tratase nas palavras de Ernest Cassirer 1980 p 379 de um movimento que continuamente se renova um movimento de tal força e paixão que parece quase impossível diante dele refugiarse na quietude da contemplação histórica objetiva Constantemente ele se impõe a nós e de modo constante nos arrasta consigo Cassirer tem razão O pensamento de Rousseau nos arrasta consigo Mas também seria possível dizer que a humanidade tem arrastado em sua história o pensamento rousseauniano ao perpetuar as desigualdades sociais econômicas e políticas Se Rousseau condenou o renascimento das ciências e das artes tal como aconteceu imagine o leitor o que diria hoje do progresso científi co que apesar de trazer alguns benefícios à vida humana fundamentalmente colabo ram para agravar as relações entre os homens o desenvolvimento econômico e social gera bemestar mas também a destruição do meio ambiente a inter net aproximou as distâncias mas facilitou a disseminação de preconceitos e de difamações anônimas O que dizer dos avanços no estudo da genética Caro leitor seriam necessárias inúmeras páginas para descrever os benefícios que o progresso trouxe à vida humana e mais tantas páginas para mostrar como cada um desses benefícios deu origem a malefícios Não se trata de falar mal do progresso ou condenar a ciência Rousseau apressouse a esclarecer esse ponto em resposta às críticas que recebera de seus pares Tratase de investigar por que o progresso em vez de ajudar o homem fez surgir a desigualdade A resposta vem com a redação do Discurso sobre a Ori gem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens Ali Rousseau mostra como o homem agindo em desacordo com sua natureza levado pelo acaso a consti tuir relações sociais e a viver em sociedade tornouse um ser egoísta escravo de suas vontades e por fi m constituiu um mundo desigual e infeliz Como resolver a questão Já que restaurar a inocência original é impossível já que o tempo não anda para trás é necessário reconstruir a natureza humana retirando dela tudo o que foi inapropriadamente incorporado Como fazer isso Reconstruindo o homem tornandoo um novo ser desprovido dos defeitos associados paula tinamente à sua natureza A esse novo homem Rousseau chamou de cidadão um ser humano desnaturado que só subsiste na sociedade política que compõe o povo soberano de si mesmo 150 ELSEVIER Curso de Ciência Política Rousseau surpreendeu o século em que viveu Na era da razão trouxe paixão ao pensamento enquanto todos falavam de progresso foi o primeiro a tentar descrever os estágios da história da sociedade humana Durkheim conce deulhe o título de precursor da sociologia LéviStrauss disse ser ele o fundador das ciências do homem Sem dúvida seus escritos são esboço de etnografi a e antropologia Dizem os seus críticos que sua obra se confunde com sua estória de vida que refl ete as difi culdades pelas quais passou Sem dúvida Rousseau recusava a imposição dos valores iluministas a prevalência da forma sobre a essência Nesse sentido sua vida e sua obra não se separam É contudo necessário dizer que a obra de Rousseau transcende as experiências de seu autor transcende o tempo em que foi escrita e se apresenta como ponto de partida para a refl exão sobre a vida em sociedade hoje e sempre 62 Vida e obra de JeanJacques Rousseau JeanJacques Rousseau nasceu em 1712 em Genebra Suíça Sua mãe Su zanne Bernard morreu logo após deixandoo recémnascido na companhia do pai e do irmão François 10 anos mais velho Seu pai Isaac Rousseau era relojoeiro e embora tivesse alguns bens de família não pertencia à aristocracia Rousseau foi educado junto aos livros e distante das recepções nos salões da alta sociedade A sensibilidade de Rousseau em relação às relações humanas bem como a fértil imaginação são reputadas ao intenso hábito de leitura Ainda menino Rousseau já havia esgotado a biblioteca de sua mãe e partia para a leitura de clássicos como Bossuet Ovídio e Fontenelle Rousseau 1978 Ainda jovem foi entregue ao seu tio materno e juntamente com seu pri mo foi enviado à cidade de Bossey onde prosseguiria sua educação na casa do pastor Lambercier Dent 1996 A infl uência do protestantismo calvinista em sua formação foi sensível e sua formação cristã independentemente da religião adotada chegou a se converter ao catolicismo e depois de novo ao protestan tismo foi um dos fatores que o levaram a discutir e se indispor com os outros pensadores iluministas Ao contrário de seus contemporâneos Rousseau não negava a existência de um Deus regente do universo Salinas 1987 Seu maior antagonista foi Voltaire Após ter sido apresentado a diversos ofícios tanto em Genebra como em Paris Rousseau descobriu sua paixão pela música Chegou a escrever um novo sistema de notação musical rejeitado pela Academia Aos poucos foi se des cobrindo como escritor e se notabilizando como um dos mais polêmicos pen 151 Capítulo 6 Jean Jacques Rousseau da inocência natural à Sociedade Política Christiane Itabaiana Martins Romêo sadores de sua época ora surpreendendo com obras de grande sucesso entre o público ora vendo seus escritos terminantemente proibidos e sua liberdade ameaçada Em 1742 depois de algumas decepções amorosas e profi ssionais seus escritos e suas composições atraíam grandes críticas em vez de grande pú blico conheceu Condillac e Diderot organizadores da Enciclopédia Os enciclopedistas chegaram a ser quase sinônimo de iluministas A Enci clopédia cujo título original era Enciclopédia ou Dicionário Raciocinado das Ciências das Artes e dos Ofícios por uma Sociedade de Homens de Letras Salinas 1987 foi publicada em Paris a partir de 1751 até 1780 incluindose os períodos em que fora proibida Sua concepção partira de um convite feito a Diderot para traduzir uma enciclopédia britânica para o francês Decepcionado com o conteúdo dos verbetes Diderot conseguiu convencer os editores a realizar um projeto mais amplo e mais crítico O projeto de Diderot foi logo abraçado pela intelectualida de da época e contou com o apoio entre outros de Voltaire A colaboração de Rousseau à Enciclopédia se restringiu aos verbetes sobre música e ao Discurso sobre Economia Política Foi entretanto em 1749 que Rous seau começou a conceber a primeira de suas grandes obras O Discurso sobre as Ciências e as Artes deu início à refl exão de Rousseau sobre a humanidade e inau gurou uma série de escritos coerentes entre si e que expuseram ao mundo as angústias de Rousseau sobre o relacionamento humano em sociedade e fi zeram dele um dos mais se não o mais complexo pensador de sua época Segundo o próprio autor ao tomar contato com o enunciado da questão proposta pela Academia de Dijon para o prêmio de Moral publicado em um jornal francês em 1749 sentiuse profundamente tocado Cassirer 1980 No Discurso sobre as Ciências e as Artes premiado pela Academia de Dijon publicado em 1750 Rousseau apresenta o germe de seu pensamento ao res ponder negativamente à questão proposta Se o restabelecimento das ciências e das artes contribuiu para purifi car os costumes e defender que o renasci mento das ciências e das artes em vez de ajudar a aprimorar os homens colabo rou para a corrupção dos costumes sociais e a decadência da humanidade Esse ponto de vista se polêmico nos dias atuais na época do Iluminismo soou como blasfêmia A partir daí a fi liação intelectual de Rousseau passou a ser um enigma Seria ele um iluminista ou não JeanJacques Rousseau foi sem dúvida um entusiasta das propostas ilu ministas entre elas a nova atitude do homem em relação ao mundo que passava a ser tido como vasto campo de exploração científi ca passível de ser descober to por meio da capacidade humana de conhecer e avaliar O próprio Rousseau explorou o mundo que o cercava mas ao mesmo tempo não poupou críticas à 152 ELSEVIER Curso de Ciência Política maneira como a percepção humana se apropriava do mundo Em relação aos en sinamentos do passado essenciais ao Príncipe com virtù de Maquiavel no século XVI e ao progresso que o conhecimento pode trazer Rousseau é enfático quanto mais acumulamos novos conhecimentos tanto mais afastamos os meios de adquirir o mais importante de todos é que num certo sentido à força de estu dar o homem tornamonos incapazes de conhecêlo Rousseau 1978a p 227 Conforme dito anteriormente Rousseau é um pensador que segue os mes mos padrões em suas obras E os valores passados em seus escritos nem sempre condizem com os ideais iluministas O trecho acima traz um desses padrões A abordagem que o homem faz de si mesmo e das instituições sociais estaria segundo o autor permeada de valores exógenos à natureza humana Essa seria fundamentalmente a razão pela qual o renascimento das ciências e das artes teria contribuído para a decadência humana A partir de então as ideias expostas no Discurso sobre as Ciências e as Artes se tornaram críticas complexas e contundentes aos costumes e à vida social Em 1753 a Academia de Dijon propôs uma nova questão para o concurso de 1754 O tema qual a origem da desigualdade entre os homens e será ela permitida pela lei natural tornouse em 1755 o Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens texto no qual Rousseau fortaleceu as críticas à ordem e aos valores vigentes em sua época Embora seja considera do um texto mais consistente que o primeiro Discurso desta vez Rousseau não recebeu o prêmio da Academia de Dijon O Discurso sobre a Desigualdade entre tanto despertou muito mais polêmica do que o primeiro A resposta de Rousseau à questão custoulhe as primeiras de uma série infi nita de críticas Afi nal das fi leiras do Iluminismo surgia um inimigo do progresso mais perigoso do que o inimigo comum até então a Igreja Rousseau sustentou que a desigualdade não é autorizada pela lei natural Ao contrário ela decorre da história e é a fonte absoluta dos males sociais Com uma certa ironia escreveu Considerando aquilo em que nos teríamos tornado se tivéssemos sido abandonados a nós mesmos devemos aprender a bendizer aquele cuja vida benfazeja corrigindo nossas instituições e dandolhes uma posi ção estável preveniu as desordens que deveriam resultar delas e fez com que de nossa felicidade nascessem os meios que pareciam dever acumular nossas misérias Rousseau 1978a p 232 Diagnosticar a origem e a legitimidade da desigualdade não seria para Rousseau tarefa isolada Mais do que simplesmente apontar a origem da desi gualdade caberia resolver uma outra questão como acabar com elas A resposta 153 Capítulo 6 Jean Jacques Rousseau da inocência natural à Sociedade Política Christiane Itabaiana Martins Romêo aparece sob a forma de duas grandes obras proibidas e queimadas nos grandes centros europeus na década de 1760 até em Paris a Cidade Luz e em Genebra cidade natal de Rousseau elogiada por ele como o locus da cidadania são elas o Emílio e O Contrato Social Tanto no Emílio quanto no Contrato Social ambos publicados em 1762 a motivação de Rousseau era a mesma qual seja com base no conhecimento de como foi estabelecida a vida social reformular os valores humanos e por fi m propor a reconstrução das relações sociais em acordo com a natureza humana A receita para reconstruir os laços entre os homens consistia para Rous seau em duas grandes reformas uma na política na consciência cívica do ho mem e outra na educação uma dependendo da outra Nesses dois livros o au tor tratou dos homens como seres livres e soberanos e indicou como poderiam ser mais autênticos e autônomos No Contrato Social ao descrever a sociedade movida pela vontade geral o autor ressaltou a importância da educação para a instauração e manutenção da soberania No Emílio discutiu as bases dessa edu cação apontando como cenário do processo educador o mundo público E as duas obras só fazem sentido se lidas a partir dos pressupostos apresentados no Discurso sobre a Desigualdade A relação entre as principais obras de Rousseau aparece claramente na Carta a Beaumont de 1763 na qual Rousseau se defende das acusações que foram feitas contra ele por Christophe de Beaumont arcebispo de Paris e que acabaram por condenar o Emílio e o Contrato Social O princípio fundamental de toda moral é de que o homem é um ser naturalmente bom amando a justiça e a ordem que não há perver sidade original no coração humano e que os primeiros movimentos da natureza são sempre retos Fiz ver que a única paixão que nasce com o homem o amor de si é uma paixão em si mesma indiferente ao bem e ao mal que não se torna boa ou má a não ser por acidente e se gundo as circunstâncias nas quais se desenvolve Mostrei que todos os vícios que se imputam ao coração humano não lhe são naturais fi z ver como pela alteração sucessiva de sua bondade natural os homens se tornam afi nal o que são o amor de si não é mais uma paixão simples mas tem dois princí pios a saber o ser inteligente e o ser sensitivo Este último amor o amor da ordem que se remete ao da alma desenvolvido e tornado ativo traz o nome de consciência mas a consciência não se desenvolve e não age a não ser com as luzes do homem É somente por essas luzes que ele chega a conhecer a ordem e é somente quando a conhece que a consciência o leva a amála A consciência é pois nula no homem que 154 ELSEVIER Curso de Ciência Política nada comparou e que não viu suas relações Nesse estado o homem só conhece a si mesmo ele não vê seu bemestar oposto nem conforme ao de ninguém não odeia nem ama nada limitado exclusivamente ao instinto físico é nulo é animal foi o que fi z ver em meu Discurso sobre a desigualdade Quando os homens começam a lançar os olhos sobre os seus semelhantes começam também a ver suas relações e as relações das coisas a adquirir ideias de conveniência de justiça e de ordem En tão eles têm virtude e se também têm vícios é porque seus interesses se cruzam e sua ambição desperta à medida que suas luzes se estendem Mas enquanto há menos oposição de interesses do que concurso de luzes os homens são essencialmente bons Quando o amor de si posto em fermentação se torna amor próprio tornando o universo inteiro necessário a cada homem tornaos todos inimigos natos uns dos outros e faz com que ninguém encontre seu bem a não ser no mal de outrem Eis como o homem sendo bom os indivíduos tornamse malvados É a buscar como seria preciso para impedilos de assim se tornar que consagrei meu livro Rousseau apud Salinas 1989 p 1214 É portanto da leitura atenta de pelo menos duas obras o Discurso sobre a Desigualdade e O Contrato Social que o leitor pode extrair o pensamento político de Rousseau os preceitos fi losófi cos que guiam todo o pensamento a opinião sobre a decadência da vida humana e também a prescrição e por que não dizer a expressão do desejo de um mundo constituído sobre bases mais solidárias e humanas Na primeira o autor analisa a condição do homem em sociedade na segunda prescreve com o mesmo cuidado de um médico a tratar de seu paciente enfermo as ações políticas que poderiam ser a saída para os males da humanidade Além dos textos já citados devese ressaltar que Rousseau escreveu di versas obras sobre notações musicais tais como Projeto para uma Nova Notação Musical 1742 peças teatrais e óperas como Narciso 1742 e O adivinho da aldeia 1752 sobre o tema da educação e também cartas e projetos políticos como as Cartas da montanha 1764 em resposta às Cartas do campo de Tronchin e as Con siderações sobre o governo da Polônia 1770 respectivamente No fi m de sua vida dedicouse a obras introspectivas nas quais analisou sua vida e suas obras Con fi ssões 1770 Rousseau juiz de JeanJacques 1776 e o inacabado Devaneios de um caminhante solitário 1776 demonstram a sensibilidade e a genialidade romântica de um autor que procurando as razões da infelicidade humana traz emoção para o mundo da política Morreu em 2 de julho de 1778 depois de ter vivido 155 Capítulo 6 Jean Jacques Rousseau da inocência natural à Sociedade Política Christiane Itabaiana Martins Romêo com Thérèse de Levasseur com quem se casou em 1768 desde 1745 e de ter abandonado os fi lhos tidos dessa união1 63 Ficção e hipótese reconstrução do surgimento da vida social Para que o leitor entenda a teoria política de Rousseau o que pensa dos homens e o que preconiza para superar a situação de desigualdade e demais infortúnios humanos é necessário conhecer conceitos centrais que por sêlos sempre inspiraram e constituíram a obra do autor JeanJacques faz parte da escola jusnaturalista moderna Assim como Tho mas Hobbes e John Locke Rousseau fez uso do método jusnaturalista com base no qual é possível reconstruir racional e fi cticiamente a história da humanida de pensando os homens em um momento histórico impreciso imaginariamen te originário no qual as relações sociais ainda não teriam sido instituídas Em outras palavras os jusnaturalistas modernos propunham a análise do homem natural sem a coação de laços sociais como base para o entendimento dos problemas da sociedade moderna na qual viviam Bobbio 1987 O método racional utilizado por Rousseau para analisar a trajetória huma na desde os primórdios na natureza até a situação degradada da sociedade ci vil consistia em reconstruir hipoteticamente o passado originário do homem e compreender por que ele abandonara suas características instintivas naturais e passara a se relacionar socialmente com outros de sua espécie criando vínculos que acabaram por escravizálo e afastálo de sua verdadeira natureza humana e fundamentalmente da felicidade natural Neste ponto perguntase como seria possível realizar a reconstrução da trajetória humana E a resposta está nas palavras fi cção e hipótese Imagine se uma estória e como tal que não se pretenda verdadeira mas fi ctícia e hipo tética Em suma pense o leitor em uma fi cção e suponha que hipoteticamente possa ter acontecido Para isso é necessário abandonar os referenciais históricos e temporais e deixar livre a imaginação Paul ArbousseBastide esclarece que Rousseau é infl uenciado pelos fi lósofos enciclopedistas e pelas ciências naturais e históricas2 dos quais mais do que as ideias aproveita o método recons truir racionalmente a história humana em lugar de se basear exclusivamente 1 Há muitos comentadores de Rousseau que resumem sua biografi a e a cronologia de suas obras Des taquemse Dent 1996 e a Coleção Os Pensadores Rousseau 1978 2 Segundo ArbousseBastide Os fi lósofos como Diderot e Condillac os juristas como Grócio e Pufendorf tinham destruído a ideia tradicional de uma criação do estado social por Deus e difundiram as ideias de uma evolução natural do homem e das sociedades de sua organização progressiva da barbárie para a civilização Rousseau 1978 p 203 156 ELSEVIER Curso de Ciência Política nos dados da geografi a da erudição e da teologia por aí podese fazer um jul gamento dessa história justifi candoa ou condenandoa ArbousseBastide in Rousseau 1978 p 203 Toda a obra de Rousseau além de oferecer ao leitor chance de usar a ima ginação convidao a raciocinar sobre a fi cção e a hipótese e confrontálas com as situações concretas que o ambiente social de sua época apresenta Co mecemos pois por afastar todos os fatos pois eles não se prendem à questão Não se devem considerar as pesquisas como verdades históricas mas so mente como raciocínios hipotéticos e condicionais mais apropriados a esclare cer a natureza das coisas do que a mostrar a verdadeira origem Rousseau 1978a p 236 Para Paul ArbousseBastide o método de Rousseau é claro para alcançar o homem natural com o qual se deve reconstruir a sociedade impõese isolar nele tudo o que existe de social Rousseau 1978a p 229 n 27 O pensador afi rma que para falar sobre a origem da desigualdade entre os homens é preciso conhecer o pró prio homem tarefa bastante difícil levandose em conta todas as mudanças produzidas na sua constituição original pela sucessão do tempo e das coisas e a necessidade de separar o que pertence à sua própria essência da quilo que as circunstâncias e seus progressos acrescentaram a seu estado primi tivo Rousseau 1978a p 227 sob pena de incorrer no erro de atribuir ao homem natural características próprias do homem social Rousseau busca portanto separar o que há de original na natureza hu mana do que há de artifi cial de modo a descobrir a lei natural e verifi car se a desigualdade entre os homens é por ela legitimada não se constitui empreendimento trivial separar o que há de origi nal e de artifi cial na natureza atual do homem e conhecer com exatidão um estado que não mais existe que talvez nunca tenha existido que provavelmente jamais existirá e sobre o qual se tem contudo a ne cessidade de alcançar noções exatas para bem julgar de nosso estado presente Rousseau 1978a p 228229 Há de se imaginar um mundo habitado por seres que somente se relacio nam dentro dos limites impostos pelas necessidades naturais o estado de na tureza Um esforço a mais imaginar a completa inexistência de vínculos entre esses seres a não ser aqueles necessários à sobrevivência alimentação e procria ção por exemplo Para o homem selvagem Sua imaginação nada lhe descreve o coração nada lhe pede Suas mó dicas necessidades encontramse com tanta facilidade ao alcance de mão e encontrase ele tão longe do grau de conhecimento necessário 157 Capítulo 6 Jean Jacques Rousseau da inocência natural à Sociedade Política Christiane Itabaiana Martins Romêo para desejar alcançar outras maiores que não pode ter nem previdência nem curiosidade Rousseau 1978a p 244 Devese ainda imaginar que a falta de vínculos não signifi que violência mas simplesmente o isolamento O homem assim originalmente concebido não precisa e não conhece a sociedade O homem se relaciona instintivamente com a natureza e dela retira a sobrevivência E outros homens fazem parte dessa natu reza e se comportam da mesma maneira Os vínculos sociais além de inexisten tes não são necessários E mesmo isolado o homem vive feliz naturalmente em paz totalmente de acordo com sua natureza No estado de natureza portanto o homem é bom porque não conhece o mau Parece a princípio que os homens nesse estado de natureza não ha vendo entre si qualquer espécie de relação moral ou deveres comuns não poderiam ser nem bons nem maus ou possuir vícios e virtudes de modo que se poderia dizer que os selvagens não são maus pre cisamente porque não sabem o que é ser bons pois não é nem o desen volvimento das luzes nem o freio da lei mas a tranquilidade das pai xões e a ignorância do vício que os impede de proceder mal Rousseau 1978a p 251 252 Aqui Rousseau dialoga com Hobbes e afi rma que a falta de bondade não signifi ca que haja maldade na natureza humana E se viesse a ferir a outrem o ato seria totalmente amoral e instintivo já que não haveria noção de virtudes e vícios eis o bom selvagem Sabese que a dicotomia naturalartifi cial é essencial na obra de Rousseau e é o que condiciona a natureza e o comportamento humanos A extrema desigualdade na maneira de viver o excesso de ociosida de de uns o excesso de trabalho de outros a facilidade de irritar e de satisfazer nossos apetites e nossa sensualidade os alimentos muito re buscados dos ricos a má alimentação dos pobres os excessos de toda sorte os transportes imoderados de todas as paixões as fadigas e o esgotamento do espírito as tristezas e os trabalhos semnúmero pelos quais as almas são perpetuamente corroídas são todos indícios funestos de que a maioria de nossos males é obra nossa e que teríamos evitado quase todos se tivéssemos conservado a maneira simples uni forme e solitária de viver prescrita pela natureza Se ela nos destinou a sermos sãos ouso assegurar que o estado de refl exão é um estado contrario à natureza e que o homem que medita é um ser depravado Rousseau 1978a p 240241 158 ELSEVIER Curso de Ciência Política Para Rousseau 1978a p 241 se faria a história das doenças humanas se guindo a das sociedades civis e devese atentar para não confundir o homem selvagem com os homens que temos diante dos olhos E se agora o leitor se perguntar como foi que o homem acabou por viver em sociedade a resposta mais uma vez é encontrada em uma palavra mu tabilidade A natureza humana é mutável e assim o sendo resta saber o que ocasionou a mudança Para isso é preciso que o leitor continue em seu esforço fi ccional e imagine como seria a vida dos seres humanos em estado de natureza antes de se constituir a sociedade A descrição do estado de natureza revela a fi cção por trás da obra de Rousseau 64 Bênção e maldição dois momentos do estado de natureza Para Rousseau diferentemente de Thomas Hobbes e John Locke o esta do de natureza3 dividese em dois momentos o primeiro dos quais seria o locus no qual a felicidade humana se constituiria plenamente O bom selvagem é o habitante do primeiro momento que assim foi descrito por Rousseau Concluamos que errando pelas fl orestas sem indústrias sem palavra sem domicílio sem guerra e sem ligação sem qualquer necessidade de seus semelhantes bem como qualquer desejo de prejudicálo talvez sem sequer reconhecer alguns deles individualmente o homem selva gem sujeito a poucas paixões e bastandose a si mesmo não possuía senão os sentimentos e as luzes próprias desse estado no qual só sentia suas verdadeiras necessidades só olhava aquilo que acreditava ter in teresse de ver não fazendo sua inteligência maiores progressos que a vaidade Se por acaso descobria qualquer coisa era tanto mais incapaz de comunicála quanto nem mesmo reconhecia os próprios fi lhos A arte perecia com o inventor Então não havia nem educação nem pro gresso as gerações se multiplicavam inutilmente e partindo cada uma do mesmo ponto desenrolavamse os séculos com toda a grosseria das primeiras épocas a espécie já era velha e o homem continuavam sem pre criança Rousseau 1978a p 256257 No primeiro momento do estado de natureza os homens teriam vivido isoladamente de acordo com seus instintos 3 A palavra estado não representa aqui nenhuma conotação de poder público O estado de natureza é a expressão usada para defi nir uma situação na qual os homens viveriam apenas de acordo com sua razão seus instintosdesejos e guiados por direitos naturais Para Th omas Hobbes a vida em estado de natureza é algo a ser superado e para John Locke a explosão demográfi ca e a acumulação de riquezas ajudaram a causar a escassez de recursos e o advento da sociedade civil Weff ort 1989 159 Capítulo 6 Jean Jacques Rousseau da inocência natural à Sociedade Política Christiane Itabaiana Martins Romêo Despojando esse ser de todas as faculdades superfi ciais que ele pôde adquirir por meio de progressos muito longos considerandoo numa palavra tal como deve ter saído das mãos da natureza vejo um animal menos forte do que uns menos ágil do que outros mas em con junto organizado de modo mais vantajoso do que os demais Vejoo fartandose sob um carvalho refrigerandose no primeiro riacho en contrando seu leito ao pé da mesma árvore que lhe forneceu o repasto e assim satisfazendo todas as suas necessidades Os homens dispersos em seu seio da terra observam imitam a sua indústria e assim elevamse até o instinto dos animais com a van tagem de que se cada espécie não possui senão o seu próprio instinto o homem não tendo talvez nenhum que lhe pertença exclusivamente apropriase de todos igualmente se nutre da maioria dos vários ali mentos que os outros animais dividem entre si e consequentemente encontra sua subsistência mais facilmente que qualquer deles poderá conseguir Rousseau 1978a p 238 A inexistência nesse momento de relações sociais religiosas éticas afe tivas familiares ou quaisquer outras impediam a coação e os homens não se obrigavam a nada nem deviam obediência a ninguém a não ser à própria razão E esta é uma das mais importantes características do homem rousseauniano a racionalidade4 A razão é contudo antecedida por dois princípios da moral natural que segundo Rousseau caracterizando a natureza humana infl uenciam diretamente a conformação do homem moral meditando sobre as primeiras e mais simples operações da alma humana creio nela perceber dois princípios anteriores à razão um dos quais interessa profundamente ao nosso bemestar e à nossa conserva ção e o outro nos inspira uma repugnância natural por ver perecer ou sofrer qualquer ser sensível e principalmente nossos semelhantes Do concurso e da combinação que nosso espírito seja capaz de fazer desses dois princípios sem que seja necessário nela imiscuir o da sociabili dade parecemme decorrer todas as regras do direito natural regras essas que a razão depois é forçada a restabelecer com outros funda mentos quando por seus desenvolvimentos sucessivos chega a ponto de sufocar a natureza Rousseau 1978a p 230231 Os princípios a que Rousseau se referia no trecho acima são os da conser vação e da piedade Do primeiro surgiria juntamente com o desenvolvimento 4 Aliás o homem racional é característico dos autores jusnaturalistas contratualistas Tanto Th omas Hobbes como John Locke partem também desse pressuposto importante para o desenvolvimento pos terior do individualismo liberal É uma característica da Era Moderna Bobbio 1987 160 ELSEVIER Curso de Ciência Política das relações sociais o egoísmo e do último o altruísmo O instinto de conserva ção seria natural ao homem que buscando conservarse a si mesmo não neces sariamente faria mal aos outros não se é mais obrigado a fazer do homem um fi lósofo em lugar de fazêlo um homem seus deveres para com outrem não lhe são unica mente ditados pelas lições tardias de sabedoria e enquanto resistir ao impulso anterior natural da comiseração jamais fará mal a um outro homem nem mesmo a um ser sensível exceto no caso legítimo em que encontrandose em jogo sua conservação é obrigado a dar preferência a si mesmo Parece com efeito que se estou obrigado a não praticar qualquer mal para com meu semelhante é menos por ser ele um ser razoável do que por ser um ser sensível qualidade que sendo comum ao animal e ao homem pelo menos deve dar a um o direito de não ser maltratado inutilmente pelo outro Rousseau 1978a p 231 A conservação está relacionada ao amor de si Dent 1992 sentimento que poderia colocar os seres em confl ito Há porém de se ressaltar que o ins tinto de conservação é balizado pelo de piedade e o confl ito nunca se estabelece como retaliação É breve e necessário à preservação na medida em que faz surgir alguma percepção de bemestar é que tendo sido possível ao homem em certas circunstâncias su avizar a ferocidade de seu amorpróprio ou o desejo de conservação antes do nascimento desse amor tempera com uma repugnância inata de ver sofrer seu semelhante o ardor que consagra ao seu bemestar Não creio ter a temer contradição se conferir ao homem a única virtu de natural que o detrator mais acirrado das virtudes humanas teria de reconhecer Falo da piedade virtude tanto mais universal quanto mais útil ao homem quando nele procede o uso de qualquer refl exão e tão natural que as próprias bestas às vezes são dela alguns sinais per ceptíveis Rousseau 1978a p 253 Da combinação portanto da conservação com a piedade decorrem as re gras do direito natural ressaltandose que a piedade equilibra e compensa o instinto de conservação de onde se conclui o amoralismo do mundo natural Certo pois a piedade representa um sentimento natural que mode rando em cada indivíduo a ação do amor de si mesmo concorre para a conservação mútua de toda a espécie Ela nos faz sem refl exão so correr aqueles que vemos sofrer ela no estado de natureza ocupa o lugar das leis dos costumes das virtudes com a vantagem de ninguém sentirse tentado a desobedecer à sua doce voz ela impedirá qualquer 161 Capítulo 6 Jean Jacques Rousseau da inocência natural à Sociedade Política Christiane Itabaiana Martins Romêo selvagem robusto de tirar a uma criança fraca ou a um velho enfermo a subsistência adquirida com difi culdade desde que ele mesmo possa encontrar a sua em outra parte ela em lugar dessa máxima da justiça raciocinada faze a outrem o que desejas que façam a ti inspira a todos os homens esta outra máxima de bondade natural bem menos perfeita mas talvez mais útil do que a precedente Alcança teu bem com o menor mal possível para outrem Rousseau 1978a p 254 Percebese pela leitura do trecho acima que o ser que habita o estado de natureza é também marcado pela liberdade e pela igualdade Por liberdade en tendase a natural se não há regras é porque não há subordinação de ninguém a nada não existem vínculos então todos são livres ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer5 O único limite possível porém não obrigatório é o uso da razão O mesmo se aplica à igualdade Não há como distinguir os homens se não há nada que os limite ou diferencie não há qualquer ente superior que os possa submeter Juntando os dois conceitos é possível dizer que o homem vi vendo em estado de natureza é livre como qualquer outro e todos os direitos naturais dos quais pode gozar são também igualmente aplicáveis a todos os seres humanos Em suma todos têm naturalmente direito a tudo Todos são seus próprios soberanos O reconhecimento da liberdade e da igualdade no estado de natureza fez com que Rousseau passasse a abordar o homem já não apenas fi sicamente mas considerandoo em seu aspecto metafísico e moral Em cada animal vejo somente uma máquina engenhosa a que a natu reza conferiu princípios Percebo as mesmas coisas na máquina hu mana com a diferença de tudo fazer sozinha a natureza nas operações do animal enquanto o homem executa as suas como agente livre Um escolhe ou rejeita por instinto e o outro por um ato de liberdade razão por que o animal não pode desviarse da regra que lhe é pres crita mesmo quando lhe fora vantajoso fazêlo e o homem em seu prejuízo frequentemente se afasta dela O homem considera se livre para concordar ou resistir e é sobretudo na consciência dessa liberdade que se mostra a espiritualidade de sua alma Rousseau 1978a p 242243 5 Esta é a primeira parte do princípio da legalidade contido na Constituição da República Federativa do Brasil promulgada em 1988 A primeira parte citada pode ser percebida como tradução da liberda de dos antigos a liberdade positiva O princípio quando lido por inteiro é entretanto refl exo claro da liberdade dos modernos a chamada liberdade negativa ou de acordo com a lei ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer senão em virtude de lei CF art 5º II 162 ELSEVIER Curso de Ciência Política O reconhecimento da espiritualidade da alma dos aspectos morais no ho mem permitiu a Rousseau trabalhar a mutabilidade da natureza humana É precisamente a mutabilidade que indica a transição do primeiro momento do estado de natureza para o segundo Neste último as mudanças se realizam de forma mais intensa posto que entre o primeiro momento e o segundo a mu dança na vida e nos sentimentos humanos daria início à história a vida natural atemporal cederia lugar ao progresso e às convenções da vida em sociedade6 Circunstâncias incondizentes com a natureza humana original proporcionaram ao homem a vivência de situações para as quais não estava naturalmente habili tado a viver Resta ao leitor questionar quem ou o que teria levado o homem a conhecer tais circunstâncias Em outras palavras caberia indagar sobre o que levou o homem naturalmente ignorante e isolado a constituir laços sociais e fundar a sociedade A base para a formulação da ideia de progresso a instituição da socieda de como estágio decadente do estado de natureza está nos conceitos de acaso liberdade e perfectibilidade sem os quais para N J H Dent 1996 Rousseau jamais poderia explicar a trajetória degenerativa humana Pela liberdade os homens dissolutos se entregam a excessos que lhes causam febre e morte por que o espírito deprava os sentidos e a vontade ainda fala quando a natureza se cala Rousseau 1978a p 243 Em relação à perfectibilidade Dent 1996 ressal ta que sem ela a vida humana não seria sustentável e o homem seria sempre um animal como qualquer outro É a capacidade de aprender com a experiência que faz o homem ser o que ele é haveria uma outra qualidade muito específi ca que os distinguiria e a respeito da qual não pode haver contestação é a faculdade de aperfeiçoarse faculdade que com o auxílio das circunstâncias desen volve sucessivamente todas as outras e se encontra entre nós tanto na espécie como no indivíduo o animal pelo contrário será no fi m de milhares de anos o que era no primeiro ano desses milhares Rousseau 1978A p 243 A capacidade de se aperfeiçoar e o livrearbítrio seriam pois as caracte rísticas que distinguiriam no mundo natural os homens dos outros animais o homem selvagem vivendo disperso entre os animais e vendose desde cedo na iminência de medir forças com eles logo fez a comparação Rousseau 1978a p 239 6 A sociedade almejada pelos pensadores que precederam Rousseau e que advém do Pacto é no Segun do Discurso apresentada como a manifestação da decadência do homem natural Nascimento 1989 163 Capítulo 6 Jean Jacques Rousseau da inocência natural à Sociedade Política Christiane Itabaiana Martins Romêo Para Dent 1996 tais capacidades signifi cariam bênção e maldição Por causa do livrearbítrio e da perfectibilidade pôde o homem experimentar e adaptarse a situações que jamais aconteceriam se o acaso não o tivesse colocado em relação com outros homens Explicase então a transição de um momento do estado de natureza pacífi co feliz no qual os homens não mantinham qual quer vínculo social para o outro no qual as relações se baseiam sobretudo nas diferenças Inicialmente perceber e sentir será seu primeiro estado do homem que terá em comum com todos os outros animais querer e não querer desejar e temer serão as primeiras e quase as únicas operações de sua alma até que novas circunstâncias nela determinem novos desenvolvimentos Rousse au 1978a p 244 Por novas circunstâncias pode o leitor entender o acaso e as paixões que alimentam a razão Em relação às paixões esclarece As paixões encontram sua origem em nossas necessidades e seus progressos em nossos conhecimentos pois só se pode desejar ou temer as coisas segundo as ideias que delas se possa fazer ou pelo simples impulso da natureza o homem selvagem privado de toda espécie de luzes só experimenta a paixão desta última espécie não ultrapassando pois seus desejos a suas necessidades físicas Rousse au 1978a p 244 O acaso seria a outra circunstância que apresentaria o homem ao progres so e consequentemente à infelicidade vêse pelo menos o pouco de cui dado que teve a natureza ao reunir os homens por meio de necessidades mútu as Rousseau 1978a p 250 Vários foram os acasos que segundo Rousseau permitiram ao homem aperfeiçoarse7 posto que a perfectibilidade as virtudes sociais e as outras faculdades que o homem natural recebera potencialmente jamais poderiam desenvol verse por si próprias pois para isso necessitam do concurso fortuito de inúmeras causas estranhas que nunca poderiam surgir e sem as quais ele teria permanecido eternamente em sua condição primitiva Rousseau 1978a p 258 A natureza por acaso acabou por facilitar aos homens o uso da palavra e a prepararlhes mal sua sociabilidade e pôs pouco de si mesma em tudo que fi zeram para estabelecer seus laços Rousseau 1978a p 250 As relações 7 Da capacidade de aperfeiçoarse Rousseau deriva o advento das ciências e das artes da linguagem e da propriedade enfi m a base para todas as revoluções a da agricultura e a do ferro por exemplo A ideia é inicialmente trabalhada no Discurso sobre as Ciências e as Artes Rousseau 1978C 164 ELSEVIER Curso de Ciência Política sociais aconteceram inevitavelmente e com elas a sociabilidade erroneamente baseada no amor próprio8 Atenção especial deve ser dada ao uso da palavra9 A linguagem na obra de Rousseau foi a grande responsável pela instituição do segundo momen to do estado de natureza Linguagem propriedade e sociedade aparecem no Discurso sobre a Desigualdade senão como sinônimos pelo menos como marcos do início da decadência humana Comparando o hipotético estado original do homem com o perfi l que as sume posteriormente Rousseau indagase como um homem teria podido uni camente por suas forças sem o auxílio da comunicação e sem a premência da ne cessidade vencer intervalo tão grande 1978a p 245 E ele mesmo responde A primeira língua do homem a língua mais universal a mais energéti ca e a única de que se necessitou antes de precisarse persuadir homens reunidos é o grito da natureza Quando as ideias dos homens começaram a estenderse e a multiplicar se e se estabeleceu entre eles uma comunicação mais íntima procura ram sinais mais numerosos e uma língua mais extensa multiplicaram as infl exões de voz e juntaramlhes gestos que por sua natureza são mais expressivos Rousseau 1978a p 248 A linguagem permitiu segundo Rousseau a aproximação entre os ho mens E da proximidade surgiu a necessidade de delimitar os espaços A noção de propriedade deriva portanto da linguagem e como a delimitação de espaços importa na obediência a fatores exógenos à natureza surgem também as con venções Neste momento diria Rousseau em que a linguagem foi usada pela primeira vez fundaramse a propriedade e a sociedade ambas baseadas na desigualdade10 O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que tendo cercado um terreno lembrouse de dizer isto é meu e encontrou pessoas 8 Dent 1996 explica que Rousseau concebe a ideia de amorpróprio em oposição à de amor de si No Emílio Rousseau trata da diferença entre os dois O amor de si indica às criaturas que devem se esforçar pela sua conservação sem desejar o mal O amorpróprio consiste na valorização das aparências e das diferenças constituídas artifi cialmente a partir da associação preparada ao acaso pela natureza 9 Rousseau desenvolve ideias sobre a linguagem no Ensaio sobre a origem das línguas Starobinski 1991 comenta o texto 10 O surgimento da linguagem é a ligação entre dois fatores que pela ausência e pela presença res pectivamente causaram a decadência humana a educação e a propriedade No exato momento em que fi cticiamente os homens se encontram e esboçam a comunicação a linguagem surge como meio de apropriação do mundo até então não pensado pelo homem Após a invenção da linguagem os homens passaram a defi nir o mundo e criar em relação a ele e aos outros homens laços e vínculos que acabaram por se traduzir em relações sociais políticas econômicas religiosas legais etc 165 Capítulo 6 Jean Jacques Rousseau da inocência natural à Sociedade Política Christiane Itabaiana Martins Romêo sufi cientemente simples para acreditálo Rousseau 1978a p 259 Analisando a sociedade de seu tempo e as origens hipotéticas de sua fundação Rousseau te ceu críticas aos jusnaturalistas que o precederam Se Hobbes e Locke concebiam a sociedade como fruto de um pacto restou a Rousseau concluir que este é falso posto que ao aparentemente fundar a sociedade manteve os homens no estado de natureza decaído segundo momento no qual as desigualdades imperam 65 O homem é bom a sociedade o corrompe da inocência natural à decadência social Há dois tipos de desigualdades na obra de Rousseau a física e a política ou moral Rousseau 1978a p 236 Como desigualdade natural supõemse as físicas tais como força saúde estatura Por certo o advento da sociedade se baseia no segundo tipo As desigualdades políticas ou morais são aquelas base adas no poder no status e no dinheiro Diferenças políticas sociais e econômicas são portanto ilegítimas e não autorizadas pela lei natural Ao contrário são autorizadas pelo consentimento dos homens e baseadas em convenções que em vez de ajudálos trazem a infelicidade e a vida na aparência O homem guiado pelo amorpróprio corrompese passa a ter o desejo de ser superior aos ou tros alienase11 O homem civilizado que vive em sociedade12 é infeliz O estado de na tureza é perpetuado em condições maléfi cas ao homem Ele vive em desconfor midade com a natureza humana e constrói o relacionamento social com base no amorpróprio que desaloja o amor de si mesmo substituindo o bem inato e sereno que caracteriza este último pelo bem enganoso e ilusório que consiste em obter odioso domínio pessoal sobre outrem Dent 1996 p 40 O progresso ao contrário do que se pode imaginar traz benefícios apenas aparentes à vida hu mana as ciências e as artes não colaboram para aprimorar o homem mas para acelerar sua decadência O aparecimento da linguagem estreitou os laços entre os homens que já haviam inventado o arco e a fl echa e que já sabiam ser seu o produto da caçada 11 Alienação na obra de Rousseau não tem o mesmo sentido empregado anos mais tarde por Karl Marx Há contudo quem defenda que o conceito de Marx tenha suas raízes na obra de Rousseau uma vez que por causa do acaso os homens se associaram em sociedade sem estarem preparados para isso Os homens foram corrompidos e se alienaram de si mesmos em relação à natureza Dent 1996 12 A Sociedade Civil à qual Rousseau se refere tão pejorativamente é o espelho da sociedade em que vive no século XVIII Certamente a sociedade que Rousseau pode observar em sua época não pode ser em sua opinião instrumento de garantia de liberdade igualdade e felicidade humanas Por isso qualifi caa como o momento de decadência a ser superado pelos homens 166 ELSEVIER Curso de Ciência Política Juntos os homens constituíram a família e com isso se tornaram mais fracos individualmente mas fortes em conjunto O espírito humano vai enfi m se do mesticando Cada um começou a olhar os outros e a desejar ser ele próprio olhado passando assim a estima pública a ter um preço dessas primeiras preferências nasceram de um lado a vaidade e o desprezo e de outro a vergonha e a inveja A fermentação determinada por esses novos ger mes produziu por fi m compostos funestos à felicidade e à inocência Assim que os homens começaram a apreciarse mutuamente e se lhes formou no espírito a ideia de consideração cada um pretendeu ter di reito a ela e a ninguém mais foi possível deixar de têla impunemente Rousseau 1978a p 263 O homem que habita o segundo momento do estado de natureza é bas tante diferente daquele que por uma eternidade andou pelas fl orestas A civili zação e consequentemente a sociedade demandavam um ser com qualidades diversas das do bom selvagem que quando colocado pela natureza a igual distância da estupidez dos brutos e das luzes funestas do homem civil e compe lido tanto pelo instinto quanto pela razão a defenderse do mal que o ameaça é impedido pela piedade de fazer mal a alguém Rousseau 1978a p 264 Ao contrário a era da metalurgia e da agricultura que produziu as re voluções do ferro e do trigo acabou por civilizar e fazer os homens se distan ciarem do gênero humano A produção fez surgir as primeiras regras de justiça que defi nissem a proteção à propriedade As desigualdades tanto físicas quanto morais somadas passaram a transformar a realidade dos homens Ser e pa recer tornaramse duas coisas totalmente diferentes Rousseau 1978a p 267 Dominação e servidão tomaram o lugar da independência e da autosufi ciência Os homens uma vez declarado que alguns nasceriam escravos deixaram de nascer homens Rousseau é enfático quando ao referirse ao distanciamento do homem em relação à natureza revela a pior das desigualdades a desigualdade política A instituição de um Estado ao qual os homens se submeteram para preservaremse na civilização resultou no fi m da soberania natural Os homens naturalmente livres encontraramse então aprisionados O mundo artifi cial instalouse em detrimento da natureza e condenou os homens a um estado de guerra chamado de sociedade13 13 A sociedade tal como estabelecida pelos homens é nefasta à existência dos mesmos O pacto feito para instituíla defendido por Hobbes e Locke não passa para Rousseau de um falso pacto reali zado a partir e para reforçar as desigualdades convencionais totalmente balizado pelo amorpróprio e portanto contrário à natureza Chevallier 1986 167 Capítulo 6 Jean Jacques Rousseau da inocência natural à Sociedade Política Christiane Itabaiana Martins Romêo É este o último grau de desigualdade então todos os particulares se tornam iguais porque nada são e os súditos não tendo outra lei além da vontade do senhor nem o senhor outra regra além de suas paixões as noções do bem e os princípios da justiça desfalecem novamente en tão tudo se governa pela lei do mais forte e consequentemente segun do um novo estado de natureza diverso daquele pelo qual começamos por ser este um estado de natureza em sua pureza e o outro fruto de um excesso de corrupção Rousseau 1978a p 280 À primeira vista poderia o leitor achar que uma vez tendo concebido a natureza humana como incapaz de retrogradar de voltar a ser o que era Rous seau estaria condenando a vida humana em sociedade e fazendo um elogio à vida primitiva Essa foi e ainda é uma das muitas críticas feitas ao pensador Voltaire por exemplo ao ler o Discurso sobre a Desigualdade referiuse a ele de forma irônica como um grande estímulo para que os homens voltassem a andar de quatro Dent 1996 Nas palavras de N J H Dent Rousseau pensava que a vida social era inevitável para os seres humanos e na verdade essencial ao de senvolvimento da humanidade plena não tinha dúvida de que se podia tornála criativa Sua crítica era antes àqueles perversos desenvolvimentos da vida social que produzem efeitos diametralmente opostos Dent 1996 p 66 A perfectibilidade característica da natureza humana é o que difere o ho mem dos demais animais e por isso desenvolver as habilidades humanas não seria para Rousseau um problema O ponto de refl exão de Rousseau consiste na maneira pela qual o desenvolvimento ocorreu a perfectibilidade deveria ter conduzido os homens a se dedicarem ao bem geral e não às paixões que culti vam as desigualdades sociais A linguagem a propriedade e a sociabilidade constituídas em desconfor midade com a natureza humana e a falta da educação para conviver uns com os outros seriam portanto os fundamentos da sociedade organizada sob o poder de um Estado que em vez de harmonizar os homens serviria para fun dar e aumentar a diferença entre eles Em sociedade as diferenças econômicas sociais e políticas seriam a fonte da infelicidade dos homens sobretudo a desi gualdade política que afasta o homem de si mesmo e o submete ao poder de outrem ilegitimamente Os homens nascidos livres seriam então servos do sistema social criado ao acaso pela convivência humana Assim estaria confi gurado o estado de natureza em seu segundo momen to O tempo não anda para trás e a natureza não retrograda É impossível diria Rousseau que os homens voltem a ser ou a viver como antes Eles já conheceram a linguagem já se apropriaram do mundo já se associaram A ignorância e a 168 ELSEVIER Curso de Ciência Política existência amoral já não são possíveis A vida em sociedade foi estabelecida e isso não é discutido por Rousseau O tempo não volta atrás e o homem não pode desaprender ou esquecer o que já viveu Se tudo ocorreu de forma não plane jada ou de maneira inesperadamente contrária à natureza nada pode ser feito Uma vez associado nunca mais o homem saberá viver como o Bom Selvagem original Restaria então aos homens viver como escravos de sua própria histó ria No Discurso sobre a Desigualdade Rousseau pretendeu ao reconstruir hipoteticamente o homem original tal como os físicos formulam todos os dias a respeito da formação do mundo fazer ver ao leitor a transformação do homem da natureza em homem do homem Chevallier 1983 p 147 Por homem do homem entenda o leitor o ser que supera o estado de natureza e funda uma outra organi zação social distante da natureza corrompida pela desigualdade porém baseada nos fundamentos originais da lei natural Importante lembrar mais uma vez que embora visse com bons olhos o momento original no qual o homem não se distinguia dos animais a não ser pela potencial capacidade de se aperfeiçoar e raciocinar Rousseau reconhecia o dife rencial humano e lamentava apenas que o desenvolvimento das capacidades tivesse acontecido por força do acaso sem que a espécie estivesse preparada para a sociabilidade Ressaltese portanto que o mundo social seria aquele no qual os homens poderiam desenvolver suas habilidades E a confi rmação disso pode ser encontrada no Discurso sobre a Desigualdade Esses primeiros progressos puseram por fi m o homem à altura de con seguir outros mais rápidos A essa época se prende uma primeira revolução que determinou o estabelecimento e a distinção das famílias Os primeiros progressos do coração resultaram de uma situação nova que reunia numa habitação comum os maridos e as mulheres os pais e os fi lhos O hábito de viver junto fez com que nascessem os mais doces sentimentos que são conhecidos do homem como o amor conjugal e o amor paterno Cada família tornouse uma pequena sociedade Rousseau 1978a p 263 A partir de então deuse o desenvolvimento da linguagem e da proprie dade o que exigia do homem qualidades diversas daquelas inerentes à sua cons tituição primitiva Rousseau antevia na situação estabelecida o agravamento da decadência humana mas não poderia deixar de ver também ali na transição entre a vida animal isolada e a vida decaída um momento de felicidade 169 Capítulo 6 Jean Jacques Rousseau da inocência natural à Sociedade Política Christiane Itabaiana Martins Romêo Assim embora os homens se tornassem menos tolerantes e a pieda de natural já sofresse certa alteração esse período de desenvolvimento das faculdades humanas ocupando uma posição média exata entre a indolência do estado primitivo e a atividade petulante do nosso amor próprio deve ter sido a época mais feliz e a mais duradoura Rous seau 1978a p 264 Se talvez os homens pudessem ter perpetuado o momento de felicidade do início da vida social no qual as diferenças morais ainda não teriam aviltado completamente a natureza humana ou ainda se pudesse o homem retroce der no tempo e desaprender os vícios que destruíram a virtude talvez a vida humana não se tivesse degradado ou talvez os homens pudessem reverter os males e restituir os hábitos originais Mas o estado de natureza havia se tornado impossível e a vida em sociedade deveria ser reformada para que os homens pudessem perpetuar sua existência no mundo 66 Da decadência à redenção o contrato social e a sociedade política Rousseau recorreu à perfectibilidade à capacidade de adaptação e aperfei çoamento do homem para resolver o problema aparentemente insolúvel da vida em sociedade Aproveitando que a natureza humana é mutável seria necessário transformála em algo diferente Com base na razão característica imanente à perfectibilidade os homens iriam criar juntando suas forças uma forma efi cien te de proteger e defender as pessoas O artifício viria em socorro à natureza14 Suponhamos os homens chegando àquele ponto em que os obstáculos prejudiciais à sua conservação no estabelecimento da natureza sobre pujam pela sua resistência as forças que cada indivíduo dispõe para manterse nesse estado Então esse estado primitivo já não pode sub sistir e o gênero humano se não mudasse de modo de vida pereceria Ora como os homens não podem engendrar novas forças mas somente unir e orientar as já existentes não têm eles outro meio de conservar se senão formando por agregação um conjunto de forças que possa sobrepujar a resistência impelindoas para um só móvel levandoas a operar em conserto Rousseau 1978b p 31 14 Émile Durkhéim um dos fundadores da Sociologia no século XIX ressalta com base na leitura des se trecho de O contrato que a sociedade imaginada por Rousseau seria o único meio onde o homem poderia viver Durkheim 1980 p 351 Depreendese desse comentário não só a necessidade de se colocar em prática a teoria de Rousseau como também percebese que Durkheim reconhece traços da Sociedade Política na organização social em que vive 170 ELSEVIER Curso de Ciência Política O Contrato Social se inicia com a constatação de que o homem encontrase em estado de servidão O homem nasce livre e por toda a parte encontrase a ferros O que se crê senhor dos demais não deixa de ser mais escravo do que eles Como adveio tal mudança Ignoroo O que poderá legitimála Creio poder resolver esta questão15 Rousseau 1978b p 22 O Contrato Social apresentase em uma dimensão completamente diferente daquela a que o leitor se acostumou no Discurso da Desigualdade A dimensão histórica cede lugar à atemporalidade observa Jean Starobinski De um só golpe sem passar por etapas intermediárias ele nos faz ter acesso à decisão que funda o reino da vontade geral e da lei racional Rousseau não situa sua hipótese jurídica em uma fase determinada da história concreta da humanidade não determina o gênero de ação que poderá tornar possível sua realização O pacto social não se cum pre na linha de evolução descrita pelo segundo Discurso mas em uma outra dimensão puramente normativa e situada fora do tempo históri co Starobinski 1991 p 42 Cabe esclarecer ao leitor a seguinte premissa o Contrato Social traz a pro posta política de Rousseau para a boa sociedade Nela os homens poderiam recomeçar sua história reconstruindoa racionalmente e pela alienação da von tade de todos em prol da comunidade Essa sociedade constituída com base nos princípios expostos no Contrato Social seria o modelo ideal de organização hu mana levandose em conta a natureza essencial ao homem e a consciência por ele adquirida ainda no estado de natureza O projeto político rousseauniano consistiu em propor reformas às institui ções existentes entre elas o homem sem contudo fazêlo renunciar à liberda de o que implicaria a renúncia à condição de homem Paradoxalmente16 em socorro da natureza Rousseau imaginou a ajuda da convenção do artifício A autoridade legítima só pode assentar legitimamente numa convenção inicial escreve Chevallier 1983 p 159160 pois visto que homem algum tem autori dade natural sobre seus semelhantes e que a força não produz qualquer direito 15 Rousseau não ignora a origem da situação como pretende fazer o leitor acreditar No Discurso sobre a desigualdade conjectura sobre o processo de decadência que dera origem à servidão civil Ao propor resolver a questão Rousseau pretende lançarse ao problema político no plano da moral racional ou seja estabelecer em que condições a mesma transição poderá fazerse legitimamente isto é em favor da liberdade Machado in Rousseau 1978B p 22 n 13 16 O paradoxo se encontra nas teses defendidas pelo autor no Discurso sobre as Ciências e as Artes Rous seau 1978C 171 Capítulo 6 Jean Jacques Rousseau da inocência natural à Sociedade Política Christiane Itabaiana Martins Romêo só restam as convenções como base de toda a autoridade legítima entre os ho mens Rousseau 1978b p 26 Rousseau não tinha dúvidas sobre a impossibilidade de o homem deixar de ser aquilo no que se transformou E se mostrou contundente crítico das ten tativas de construir a felicidade humana com base em modelos inexequíveis que supunham poder o homem voltar a ser o que era ou ser o homem aquilo que não é As reformas expostas em O Contrato permitiriam a consecução da premissa acima exposta além de serem necessárias para preparar o homem para a verda deira vida em sociedade a transformação da natureza é necessária é preciso que o homem mude totalmente para poder se manter nesse meio que ele cria com suas mãos Durkheim 1980 p 352 As reformas propiciam o pacto e concomitantemente são necessárias para a preservação da sociedade constituída A reforma política que visaria criar o ci dadão ou o homem desnaturado estaria ligada à outra reforma a da educação Com base nas duas o cidadão educado estaria apto a encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a força comum e pela qual cada um unindose a todos só obedece contudo a si mesmo permanecendo assim tão livre quanto antes Rousseau 1978b p 32 O verdadeiro pacto diferentemente dos demais propagados em teorias anteriores17 fundase no elemento essencial das convenções a vontade livre das partes Machado in Rousseau 1978b p 29 n 47 A liberdade é condição sine qua non para a realização do contrato e da boa sociedade Renunciar à liberdade é renunciar à qualidade de homem aos direitos da humanidade e até aos próprios deveres Não há recompensa possí vel para quem a tudo renuncia Tal renúncia não se compadece com a natureza do homem e destituirse voluntariamente de toda e qualquer liberdade equivale a excluir a moralidade de suas ações Enfi m é uma inútil e contraditória convenção a que de um lado estipula uma auto ridade absoluta e de outro uma obediência sem limites Rousseau 1978b p 27 Ressaltese que a liberdade praticada pelos cidadãos é diferente da liber dade natural original tratase da liberdade convencional instituída de acordo com as cláusulas do pacto social 17 Para Th omas Hobbes e John Locke o pacto seria o instrumento pelo qual os homens teriam aban donado o estado de natureza e fundado a sociedade organização completamente antitética à primeira Aos pactos de submissão e de consentimento apresentados por esses autores Rousseau dirige a crítica segundo a qual esses não teriam se fundamentado na vontade livre das partes uma vez que serviram para assegurar as desigualdades não autorizadas pela lei natural Chevallier 1983 172 ELSEVIER Curso de Ciência Política Essas cláusulas quando bem compreendidas reduzemse todas a uma só a alienação total de cada associado com todos os seus direitos à co munidade toda porque em primeiro lugar cada um dandose comple tamente a condição é igual para todos e sendo a condição igual para todos ninguém se interessa por tornála onerosa demais Rousseau 1978b p 32 A realização do contrato fundamental pressupõe como visto reformas nas instituições e nos seres humanos pois não há sociedade política sem cida dãos e estes não existem enquanto houver resquícios da natureza degradada no homem Lembrese de que a natureza humana não retrograda e portanto em vez de consertála Rousseau imagina ser necessário alterála por completo Forçado a combater a natureza ou as instituições sociais é preciso optar entre fazer um homem ou um cidadão pois não se podem fazer os dois ao mesmo tempo As boas instituições sociais são as que melhor sabem desnaturar o ho mem retirarlhe sua existência absoluta para darlhe uma relativa e transferir o eu para a unidade comum de sorte que cada particular já não se julgue como tal e sim como uma parte da unidade e só seja perceptível no todo Rousseau 2004 p 1112 Em O Emílio Rousseau dedicouse a tratar da educação mas a relação en tre este tema e a política é clara Sem educar o cidadão de nada valem as refor mas nas instituições Aquele que na ordem civil quer conservar o primado dos sentimentos da natureza não sabe o que quer Sempre em contradição consigo mes mo sempre passando das inclinações para os deveres jamais será nem homem nem cidadão não será bom para si mesmo nem para os outros Rousseau 2004 p 12 O pacto social fruto das reformas é o ato pelo qual os homens usando sua força e liberdade fundam a sociedade política e se tornam cidadãos O pacto social se reduz aos seguintes termos Cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a direção suprema da vontade geral e recebemos enquanto corpo cada membro como parte indivisível do todo Imediatamente esse ato de associação produz em lugar da pessoa par ticular de cada contratante um corpo moral e coletivo composto de tantos membros quantos são os votos da assembleia e que por esse mesmo ato ganha sua unidade seu eu comum sua vida e sua vonta de Rousseau 1978b p 33 173 Capítulo 6 Jean Jacques Rousseau da inocência natural à Sociedade Política Christiane Itabaiana Martins Romêo O corpo político moral e coletivo surgido do pacto toma a forma de uma pessoa pública artifi cial mas que tem as mesmas sensibilidades de uma pessoa comum Assim como a natureza forjou os homens esses formaram o Estado Rousseau qualifi ca o ser artifi cial que surge do contrato Essa pessoa pública que se forma desse modo pela união de todas as outras tomava antigamente o nome de cidade e hoje o de repúbli ca ou corpo político o qual é chamado por seus membros de Es tado quando passivo soberano quando ativo e potência quan do comparado a seus semelhantes Quanto aos associados recebem eles coletivamente o nome de povo e se chamam em particular cidadãos enquanto partícipes da autoridade soberana e súditos enquanto submetidos às leis do Estado Esses termos no entanto con fundemse frequentemente e são usados indistintamente basta saber distinguilos quando são empregados com inteira precisão Rousseau 1978b p 3334 O Soberano assim chamado o corpo politicamente ativo é descrito por Rousseau de maneira especial Sua natureza consiste na ação participação e ga rantia dos particulares que o conformam estejam eles atuando ativamente na soberania cidadãos ou estando eles submetidos à lei súditos Chevallier 1986 Vale a pena ressaltar apesar da clareza do trecho citado acima que Esta do Soberano povo cidadão e súdito compõem uma mesma coisa o corpo polí tico e se diferenciam somente em relação ao papel que cumprem na vida social O termo soberania signifi ca a noção de autoridade suprema tradicionalmente reservada ao Estado e peculiarmente conferida ao povo por Rousseau Súdito e cidadão se diferem em relação à forma de participação política enquanto o súdito é o resquício do homem natural privado o cidadão é o homem modifi cado pela convenção educação O primeiro encontrase subor dinado à lei e o segundo tendo sofrido a desnaturação é o ser que atua como membro do corpo soberano do qual surge a vontade geral Dent 1996 Caberia ao leitor perguntarse sobre a divisão entre súdito e soberano e argumentar que havendo distinção entre eles há também a desigualdade no Estado Civil uma vez que os súditos se submetem à vontade dos cidadãos Rousseau não hesitaria em responder que súdito e cidadão são a mesma pessoa e então os súditos uma vez submetidos à vontade dos cidadãos se sub metem à sua própria vontade E se ambos compõem o corpo político e este por sua vez é Estado e Soberano não se pode falar em submissão de uns a outros Por essa argumentação Rousseau demonstra que os homens vivendo sob as 174 ELSEVIER Curso de Ciência Política cláusulas do pacto social submetemse somente a si próprios e mantêmse po liticamente livres Antes de explorar as características do soberano e suas implicações na or dem política caberia uma referência ao processo de desnaturação do homem 67 Homem desnaturado e vontade geral soberania e cidadania A desnaturação é conceito essencial na obra de Rousseau pois é a partir dele que se constitui a teoria social do pensador Rousseau concebe a ordem social póspacto como aquela em que os papéis sociais são defi nidos em tor no de responsabilidades e compromissos com o bem comum Como os homens naturais foram corrompidos restou a Rousseau apostar na criação do cidadão homem natural reformado e desnaturado Os cidadãos são capazes de identifi car seu papel social e de perceber a liberdade e a igualdade de maneira positiva estas últimas também desnaturadas assim como o sentimento do amor em si Ao transformarse o amor de si o amor próprio dele derivado desapa receria restando apenas o amor de grupo Em relação à liberdade e à igualdade civis que fale Rousseau O que o homem perde pelo contrato social é a liberdade natural e um direito ilimitado a tudo quanto aventura e pode alcançar O que com ele ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo que possui A fi m de não fazer um julgamento errado dessas compensações impõese distinguir entre a liberdade natural que só conhece limites nas forças do indivíduo e a liberdade civil que se limita pela vontade geral o pacto fundamental em lugar de destruir a igualdade natural pelo contrário substitui por uma igualdade moral e legítima aquilo que a natureza poderia trazer de desigualdade física entre os homens que podendo ser desiguais na força ou no gênio todos se tornam iguais por convenção e direito Rousseau 1978b p 36 e 39 A desnaturação signifi caria portanto a reforma do homem natural priva do e mutável de maneira a bloquear nele a infl uência do amorpróprio Somente com a mudança da natureza humana poderia Rousseau assentar a ideia de for mação de um povo Dent 1996 O povo soberano se constitui portanto de homens conscientes do papel social que devem desempenhar e que ao pactuarem submetemse a si próprios em torno do bem comum O cidadão pressupõe a transformação de cada um numa parte de um todo maior e essa transformação é propriamente o pacto Vêse por essa fórmula que o ato de associação compreende um com promisso recíproco entre o público e os particulares e que cada indi 175 Capítulo 6 Jean Jacques Rousseau da inocência natural à Sociedade Política Christiane Itabaiana Martins Romêo víduo contratando por assim dizer consigo mesmo se compromete numa dupla relação como membro do soberano em relação aos parti culares e como membro do Estado em relação ao soberano Rousseau 1978b p 34 A fórmula para a preservação da liberdade está para Rousseau intima mente ligada à vontade geral Nota o leitor que ao se referir a povo e Estado como pólos respectivamente passivo e ativo do Soberano Rousseau supõe resolvida a pior das desigualdades a política18 Para que um povo fosse povo foi necessário um pacto que com base na força e liberdade de cada um tornou a todos um só corpo que ao emanar sua vontade própria a vontade geral ao mesmo tempo se submete a ela Cada um unido no todo se submete e respeita a própria von tade à vontade do corpo político A vontade geral seria a supressão da desigualdade política uma vez que garantiria não haver distinção entre quem manda e quem obedece já que ela emana do corpo político ao qual é aplicada sob a forma de lei Mas a vontade geral não é simplesmente a vontade de todos nem a soma ou maioria das von tades particulares Chevallier 1986 embora Rousseau reconheça a existência destas últimas Enquanto cada um dos membros sendo simultaneamente em conse quência do contrato homem individual e homem social pode ter duas espécies de vontade Como homem individual é tentado a perseguir de acordo com o instinto natural egoísta o seu interesse particular Mas o homem social que nele existe o cidadão procura e quer o in teresse geral tratase de uma busca toda moral feita no silêncio das paixões Chevallier 1986 p 164 Nas palavras de Rousseau Cada indivíduo com efeito pode como homem ter uma vontade par ticular contrária ou diversa da vontade geral que tem como cidadão Seu interesse particular pode ser muito diferente do interesse comum Sua existência absoluta e naturalmente independente pode leválo a considerar o que deve à causa comum como uma contribuição gratuita 18 Segundo o Discurso sobre a desigualdade Rousseau 1978a teria surgido inicialmente a desigual dade social a apropriação do afeto e das relações Em decorrência disso as diferenças econômicas se impuseram Mas a decadência do homem terseia se consumado quando pela força ou pela convenção equivocada os homens passaram a ser servos e senhores Em ambos os casos ao se submeterem ao po der não legitimado pela natureza os homens alienaramse de si próprios e se tornaram politicamente desiguais 176 ELSEVIER Curso de Ciência Política cuja perda prejudicará menos aos outros do que será oneroso o cumpri mento a si próprio Rousseau 1978b p 35 A moralidade comum nas ações do homem social é a base da vontade geral e é o que relativiza a vontade particular Só a lei expressão da vontade geral é capaz pela sua generalidade pela sua impessoalidade e infl exibilidade de suavizar a maioria dos males inerentes ao homem por depender dos homens Só ela permitiu subjugar os indivíduos para tornálos livres encadear lhes a vontade com a sua própria autorização fazer valer o seu consen timento contra a sua recusa Chevallier 1986 p 165 e 171 Se o soberano é cada um dos que o compõem e se ninguém tende a ser in justo consigo mesmo depreendese que cada um obedece a si próprio e que a lei nunca é injusta Assim sendo a vontade geral nunca erra e não cabe ao Soberano oferecer qualquer garantia em face dos particulares Ora o soberano sendo formado tão só pelos particulares que o com põem não visa nem pode visar a interesse contrário ao deles e conse quentemente o poder soberano não necessita de qualquer garantia em face de seus súditos por ser impossível ao corpo desejar prejudicar a todos os seus membros e não pode também prejudicar a nenhum deles em particular O soberano somente por sêlo é sempre aquilo que deve ser Rousseau 1978b p 35 O fato de não fazer mal a si próprio não signifi ca que o soberano possa deixar de impor a obediência à lei Se não o fi zer estará colocando o pacto em risco e com ele toda a sociedade política e o Estado civil Em suma cabe ao so berano forçar o homem a ser livre A fi m de que o pacto social não represente pois um formulário vão compreende ele tacitamente este compromisso o único que poderá dar força aos outros aquele que recusar obedecer à vontade geral a tanto será constrangido por todo o corpo o que não signifi ca senão que o forçarão a ser livre pois é essa a condição que entregando cada cidadão à pátria o garante contra qualquer dependência pessoal Essa condição constitui o artifício e o jogo de toda a máquina política e é a única a legitimar os compromissos civis os quais sem isso se tornariam absur dos tirânicos e sujeitos aos maiores abusos Rousseau 1978b p 36 O Estado instituído tem um objetivo o bem comum Para atingilo neces sário seria dirigir a força comum à luz da vontade geral A soberania consiste na aplicação dessa vontade geral a essa força comum Donde se vê que só pos sui existência abstrata e coletiva e que a ideia que se liga a essa palavra não pode 177 Capítulo 6 Jean Jacques Rousseau da inocência natural à Sociedade Política Christiane Itabaiana Martins Romêo estar unida à de um simples indivíduo Em suma a soberania nada mais é do que o exercício da vontade geral Chevallier 1983 p 16719 Há contudo de se indagar sobre como o soberano Estado e povo pode ria dirigir a força comum A resposta de Rousseau à questão está na distinção entre soberano e governo Toda ação livre tem duas causas que concorrem em sua produção uma moral que é a vontade que determina o ato e a outra física que é o poder que a executa Rousseau 1978b Ao distinguir soberano de governo Rousseau resguardou a legitimidade do poder Ao governo cabe a função de executar e portanto não pode preten derse soberano é apenas executor fi el da vontade do corpo político a vontade geral Dent 1996 A vontade geral como já sabe o leitor não é nem pode ser a vontade par ticular tampouco a soma dessas a vontade de todos A lei que dela emana não pode portanto se fi xar em um objeto particular A execução da lei entretanto necessariamente recai sobre atos individuais e por isso sua execução não pode caber ao soberano É o soberano entretanto o responsável pela aceitação da lei elaborada pelo legislador com base na vontade geral É dele a prerrogativa de sufragar o trabalho do legislador mas é ao governo que atribui a execução e aplicação das leis aos casos concretos e particulares O governo diferentemente do soberano não surge do contrato mas da obediência de todos ao corpo político O governo é o depositário da confi ança do povo não existe por si mesmo mas como corpo intermediário da vontade geral Que será pois o Governo É um corpo intermediário estabelecido en tre os súditos e o soberano para sua mútua correspondência encarre gado da execução das leis e da manutenção da liberdade tanto civil como política Chamo pois de Governo ou administração suprema o exercício legítimo do poder executivo e de príncipe ou magistrado o homem ou corpo encarregado dessa administração Rousseau 1978b p 7475 Rousseau analisou no Contrato Social as formas puras de governo a de mocracia a aristocracia e a monarquia Na democracia o povo todo seria o de positário da confi ança do soberano na aristocracia uma minoria receberia essa função e na monarquia um único magistrado seria o depositário da função exe cutiva Em relação à melhor forma de governo Rousseau mostrou que nenhuma delas é ideal 19 Trecho extraído por Chevallier 1983 dos Manuscritos de Genebra de Rousseau 178 ELSEVIER Curso de Ciência Política Quando pois se pergunta de modo absoluto qual é o melhor Gover no fazse uma pergunta tão insolúvel quanto indeterminada ou em outras palavras ela tem tantas boas soluções quantas combinações pos síveis há nas posições absolutas e relativas dos povos O Governo sob o qual os cidadãos mais povoam e mais se multiplicam é infali velmente o melhor Aquele sob o qual o povo diminui e perece é o pior Rousseau 1978b p 9899 O governo portanto pode realizarse de várias formas de acordo com a formulação clássica democracia aristocracia e monarquia No livro III do Con trato Social Rousseau desenvolve a teoria dos governos matematicamente ana lisando a proporção e a relação entre povo e soberano De suas divagações pode o leitor entender que embora a cada lugar possa servir um tipo de governo o ideal é que haja equilíbrio das relações do todo com o todo ou do soberano com o Estado Podese representar esta última relação por aquela entre os extremos de uma proporção contínua cuja média proporcional é o Governo O Governo recebe do soberano as ordens que dá ao povo e para que o Estado permaneça em bom equilíbrio é preciso que tudo compensado haja igualdade entre o produto ou o poder do Governo tomado em si mesmo e o produto ou a potência dos cidadãos que de um lado são soberanos e de outro súditos Enfi m como não há senão uma média proporcional para cada relação não há mais que um bom governo possível para cada Es tado Como porém inúmeros acontecimentos podem mudar as relações de um povo não só diversos governos podem ser bons para diferentes povos mas também para o mesmo povo em épocas diferentes Rous seau 1978b p 7576 E conclui indicando a diferença substancial entre o governo e a soberania esta última sempre republicana já que é povo e Estado já que é pública As várias formas que o governo pode tomar podem ser reduzidas a três principais Depois de comparar suas vantagens e desvantagens daría mos preferência àquela que é intermediária entre dois extremos e que leva o nome de aristocracia Devese lembrar aqui que a constituição do estado e aquela do governo são coisas inteiramente distintas e não devem ser confundidas O melhor tipo de governo é o aristocrático e o pior tipo de soberania é a aristocrática Rousseau apud Jouvenel 1980 p 424 A soberania tem características completamente diferentes das do governo Enquanto este último é um corpo intermediário de ligação do todo com o todo a 179 Capítulo 6 Jean Jacques Rousseau da inocência natural à Sociedade Política Christiane Itabaiana Martins Romêo soberania é o próprio todo O governo por sua natureza é divisível destituível e limitado pelos desígnios da vontade geral A soberania por sua vez é inalie nável indivisível irrevogável e absoluta O corpo político do qual emana a vontade geral é o soberano e como tal é dirigido pela força motriz constituída por ela A fi nalidade do soberano quanto constituído como Estado é a garantia do bem comum ou seja o bem comum é objetivo buscado no pacto e que alimenta a vontade geral Nesse sentido Rous seau explica e justifi ca as características a inalienabilidade a indivisibilidade a irrevogabilidade e o caráter absoluto e ilimitado respectivamente que atribui à soberania Afi rmo pois que a soberania não sendo senão o exercício da vonta de geral jamais pode alienarse e que o soberano que nada é senão um ser coletivo só pode ser representado por si mesmo O poder pode transmitirse não porém a vontade A soberania é indivisível pela mesma razão por que é inalienável pois a vontade ou é geral ou não o é ou é a do corpo do povo ou so mente de uma parte No primeiro caso essa vontade declarada é um ato de soberania e faz lei no segundo não passa de uma vontade par ticular ou de um ato de magistratura Concluise do precedente que a vontade geral é sempre certa e ten de sempre à utilidade pública Não sendo o Estado mais que uma pessoa moral cuja vida con siste na união de seus membros e se o mais importante de seus cuida dos é o de sua própria conservação tornaselhe necessária uma força individual e compulsiva para mover e dispor cada parte de maneira mais conveniente a todos Assim como a natureza dá a cada homem poder absoluto sobre todos os seus membros o pacto social dá ao corpo político um poder absoluto sobre todos os seus e é esse mesmo poder que dirigido pela vontade geral ganha o nome de soberania Rous seau 1978b p 43 a 48 Por fi m encerrando o Contrato Social Rousseau dedicase à religião civil E então consolida a relação entre a Educação e a Política A religião civil embora obrigatória para todos os cidadãos permite ao indivíduo liberdade em relação a assuntos estritamente pessoais E exatamente por isso impõe rigorosamen te os mandamentos dos quais ou sobre os quais não pode haver dúvida ou descumprimento Mesmo dando origem a contradições em relação ao pensa mento rousseauniano a premissa indiscutível da crença na existência de uma divindade onipotente e infi nitamente benéfi ca na providência na vida depois da morte e no juízo fi nal Cassirer 1980 p 393 deve levar o leitor a conceber 180 ELSEVIER Curso de Ciência Política uma ordem na qual pela elevação da vontade individual no sentido da busca do bem comum todos estariam guiados pela bondade natural aquela que na ig norância dos primeiros momentos do homem sob a Terra o impedia de atentar contra si próprio e seus semelhantes 68 Considerações finais Por tudo que acabou de ler pode o leitor concluir que JeanJacques Rous seau apesar de ter sido um contundente crítico da sociedade e da política de sua época mantinha inabalável crença no ser humano e com criatividade deu início à formulação de uma nova maneira de pensar as relações de poder entre os homens No século das Luzes quando o mundo exultava os progressos sociais e intelectuais do homem Rousseau encarregouse de questionar as formas e as certezas estabelecidas As ciências e as artes as grandes vedetes do século não escaparam ao diagnóstico pessimista mas não menos romântico de Jean Jacques Rousseau O Cidadão de Genebra como Rousseau gostava de ser chamado pre ocupouse com a felicidade e o bemestar bastante distorcidos segundo ele na sociedade de sua época E com paixão defendeu a alteração da natureza huma na Pela educação e pelas reformas políticas o homem cuja natureza fora irre mediavelmente afetada e viciada daria lugar a um novo ser o cidadão Dele do novo ser político comporseia o Estado o povo e o soberano O Contrato Social segundo o próprio Rousseau conferiu unidade à obra do pensador embora muitos de seus comentadores e críticos insistam ser este últi mo livro contraditório ao Discurso sobre a desigualdade Porém o Contrato Social assim como O Emílio seriam o bom fi nal para a história de degradação huma na narrada nos Discursos segundo o próprio autor escreve em JeanJacques Juiz de Rousseau Nos seus primeiros escritos era necessário destruir a ilusão que nos enche de uma absurda admiração pelos instrumentos de nossa infelicidade e corrigir esses falsos conjuntos de valores que acumulam honras sobre talentos perniciosos e desprezam virtudes benévolas apud Cassirer 1980 p 394 A correção dos valores só seria possível com as reformas das instituições criadas pelo homem reformas que pudessem libertar o homem de sua condição de servidão E isso só é possível porque o homem é bom Embora criticado Rousseau deixou sua marca na fi losofi a política inspirou a Revolução Francesa e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão JeanJacques Rousseau dizia que escrevia para o futuro E de fato foi com preendido melhor nos séculos seguintes Sua teoria infl uenciou o pensamento 181 Capítulo 6 Jean Jacques Rousseau da inocência natural à Sociedade Política Christiane Itabaiana Martins Romêo do século XIX principalmente em relação à constituição do Estado Não é pos sível saber como Rousseau analisaria a sociedade atual Ele poderia afi rmar que o contrato foi realizado uma vez que o Estado hoje é conduzido pela vontade geral a Constituição que emana da vontade soberana do povo traduzida pelo legislador Poderia também denunciar a sociedade em que vivemos como fruto de um falso pacto Mas como disse Durkhéim pouco importa que este contrato tenha sido realmente feito e dentro das formas ou não Talvez suas cláusulas jamais tenham sido enumeradas Mas elas são admitidas tacitamen te em todo lugar na medida em que a sociedade é normalmente constituída Durkhéim 1980 p 356 De fato Rousseau fundou uma nova maneira de pensar a política Os pressupostos da vontade geral o papel do legislador e a valorização do povo soberano se fi xaram no pensamento político Nas palavras de Goethe Salinas 1987 p 71 com Voltaire um mundo acaba Com Rousseau um mundo começa 69 Perguntas para reflexão 1 O Estado de Natureza descrito no Discurso sobre a Desigualdade dividese em dois momentos Quais são eles e como se caracterizam 2 O homem natural é dotado de duas paixões Quais são elas e que efeito geram sobre o comportamento do bom selvagem 3 Para Rousseau além da racionalidade a natureza humana tem uma ou tra característica Qual é ela e qual o seu impacto na teoria do autor 4 Qual é a importância da linguagem e da propriedade no pensamento de Rousseau 5 Como Rousseau conceitua a natureza humana 6 O que é desnaturação 7 Explique a relação cidadão povo Estado e Soberano na teoria de Rous seau 8 Para que o Contrato aconteça quais são as reformas necessárias Por quê 9 Governo e Soberano são sinônimos Por quê 10 Vontade geral é a mesma coisa que vontade de todos Por quê 182 ELSEVIER Curso de Ciência Política Bibliografia BLOOM Allan Gigantes e anões Ensaios 19601990 São Paulo Best Seller Nova Cultural 1990 BOBBIO Norberto BOVERO Michelangelo Sociedade e Estado na Filosofi a Política moderna São Paulo Brasiliense 1987 CASSIRER Ernest A Questão de JeanJacques Rousseau In QUIRINO Cé lia Galvão SOUZA Maria Teresa Sadek de O pensamento político clássico Maquiavel Hobbes Locke Montesquieu e Rousseau São Paulo T A Queiroz Editor 1980 CAVALCANTI Themístocles Estudos em homenagem a JJ Rousseau 200 anos do Contrato Social 17621962 Rio de Janeiro FGV Serviço de Publicações 1962 CHEVALLIER JeanJacques História do pensamento político Rio de Janeiro Zahar Editores 1983 As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias Rio de Janeiro Agir 1986 CURTIS Michael The Great Political Theories a comprehensive selection of the crucial ideas in political philosophy from Burke Rousseau and Kant to modern times Nova Yorque Avon Books 1981 v 2 DENT N J H Dicionário Rousseau Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1996 DURKHEIM Émile O Contrato Social e a Constituição do Corpo Político In QUIRINO Célia Galvão SOUZA Maria Teresa Sadek de O pensa mento político clássico Maquiavel Hobbes Locke Montesquieu e Rousseau São Paulo T A Queiroz Editor 1980 JOUVENEL Bertrand de A Teoria de Rousseau sobre as Formas de Gover no In QUIRINO Célia Galvão SOUZA Maria Teresa Sadek de O pen samento político clássico Maquiavel Hobbes Locke Montesquieu e Rousseau São Paulo T A Queiroz Editor 1980 LEVISTRAUSS Claude JeanJacques Rousseau fundador de las ciencias del hombre In LEVISTRAUSS Claude et al Presencia de Rousseau Bue nos Aires Ediciones Nueva Visión 1972 MANENT Pierre História intelectual do Liberalismo Dez lições Rio de Janei ro Imago 1990 MARQUES José Oscar de Almeida Verdades e mentiras 30 ensaios em torno de JeanJacques Rousseau Ijuí RG Editora Unijuí 2005 MATOS Olegário C F Rousseau uma arqueologia da desigualdade São Paulo MG Editores 1978 183 Capítulo 6 Jean Jacques Rousseau da inocência natural à Sociedade Política Christiane Itabaiana Martins Romêo NASCIMENTO Milton Meira do Rousseau da Servidão à Liberdade In WEFFORT Francisco org Os clássicos da política São Paulo Atlas 1989 ROUSSEAU JeanJacques Vida e Obra São Paulo Abril Cultural 1978 Col Os Pensadores 2 ed p V a XXIV Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens São Paulo Abril Cultural 1978a Col Os Pensadores 2 ed p 201 a 320 Do Contrato Social ou Princípios do Direito Político São Paulo Abril Cultural 1978b Col Os Pensadores 2 ed p 1 a 145 Discurso sobre as Ciências e as Artes São Paulo Abril Cultural 1978c Col Os Pensadores 2 ed p 321 a 352 Emílio ou Da educação São Paulo Martins Fontes 2004 SALINAS FORTES Luiz R Rousseau o mundo político como vontade e representação In Filosofi a política 2 Porto Alegre LPM Editores 1985 O Iluminismo e os reis fi lósofos São Paulo Brasiliense 1987 Col Tudo é História Rousseau o bom selvagem São Paulo FTD 1989 Paradoxo do espetáculo Política e poética em Rousseau São Paulo Dis curso Editorial 1997 STAROBINSKI Jean JeanJacques Rousseau a transparência e o obstáculo São Paulo Cia das Letras 1991 WEFFORT Francisco org Os clássicos da política São Paulo Atlas 1989 Activity of the Eleven 8 7 6 5 4 3 2 1 0 What activity do I need How active are you Very Active Active Moderately Active Mildly Active Not Very Active To Bedroom To Studio To Hall5 10 15 20 Max Heathampleness Capítulo 7 Edmund Burke a estética conservadora da arte política Fernando LattmanWeltman1 71 Introdução Faz parte das contradições naturais da vida intelectual que aquele que melhor percebe e compreende determinada forma de vida política e social pode não ser exatamente o nativo mas sim o estrangeiro que por vontade própria ou contingência forçada o que é sempre mais provável acaba por adotar e defender como sua a ordem e o ambiente de sua adoção É discutível ao menos em termos teóricos e conceituais se o irlandês Ed mund Burke deveria ser considerado propriamente um estrangeiro na Inglaterra de fi ns do século XVIII tratandose como era de eminente parlamentar eleito e reeleito por mais de uma circunscrição para a Câmara dos Comuns O que parece Doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro IUPERJ professor e pesquisador do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas CpdocFGV Contato fernandolattmanweltmanfgvbr 186 ELSEVIER Curso de Ciência Política fora de dúvida é que talvez nenhum outro seu contemporâneo tenha tido maior sucesso em caracterizar se não mesmo construir a especifi cidade histórica e cultural do ethos político predominante naquele ambiente social sui generis em que a pecha de conservador podia caber sem maiores complicações à defesa do que provavelmente havia na Europa de seu tempo de mais moderno em termos de institucionalidade política A Inglaterra de Edmund Burke como nos mostram historiadores como Pocock ainda se debatia nas últimas décadas do setecentos com polêmicas acerca da natureza da sociedade civil especialmente no que dizia respeito às ainda íntimas relações entre a religião ou melhor as várias confi ssões em dis puta e o Estado Do mesmo modo ainda convivia com difi culdades institucio nais relativas à delimitação e ao equilíbrio de poderes entre o Rei e as casas do Parlamento principalmente quando defrontadas com monarcas voluntariosos como tudo indicava era o caso infelizmente para Burke e os seus amigos do então soberano inglês Jorge III De modo que ainda poderiam seguir intensos mesmo que intermitentes os grandes debates legados pelas ferozes lutas de cem anos antes Por outro lado era visível a relativa estabilidade política de que goza vam os cidadãos da Ilha desde a chamada Revolução Gloriosa de 1688 assim como as não menos signifi cativas liberdades civis e políticas principalmente se comparadas à situação da grande maioria dos continentais mesmo que ainda restassem importantes confl itos privilégios e desigualdades com base em res quícios da ordem feudal ou o que seguia ainda muito mais preocupante por desavenças religiosas Nascido em 12 de janeiro de 1729 na cidade de Dublin no seio de uma fa mília irlandesa em que ao que tudo indica conviviam tanto o catolicismo como o protestantismo Edmund Burke concluiu seus estudos no Trinity College de sólida formação protestante Chegando à metrópole em 1750 viria a associarse à facção Whig liderada por Lord Rockingham elegendose pela primeira vez por Wendover em 1765 Seria reconduzido à Câmara ainda duas vezes em 1774 por Bristol e por Malton em 1780 Ao longo dessa década ainda atuaria como membro do Executivo deixando afi nal o Parlamento em 1794 Faleceu em sua residência em Beaconsfi eld em 9 de julho de 1797 após a dolorosa perda de seu fi lho três anos antes O início de sua carreira intelectual era comumente datada pela redação de um ensaio de fi losofi a intitulado A vindication of natural society em 1756 Mas seu primeiro trabalho a atrair maior atenção foi um tratado sobre estética A 187 Capítulo 7 Edmund Burke a estética conservadora da arte política Fernando LattmanWeltman philosophical inquiry into the origins of our ideas of the sublime and the beautiful pu blicado em seguida Foi porém como orador ou melhor retórico já que segundo Pocock seu sotaque irlandês não o favorecia muito na tribuna e homem de ação po lítica que Burke não apenas granjeou a admiração ou a inimizade seja de seus contemporâneos seja de seus pósteros mas também foi a partir dessa luta retórica que ele construiu sua refl exão política original Tão original que toda uma nova vertente de compreensão política pôde ser nomeada a partir dela não obstante tratarse justamente da visão de mundo que mais justiça procurava fazer ao passado e às heranças institucionais legadas por este 72 Representação partidos retórica e engajamento A produção intelectual de Edmund Burke como mencionamos precede sua entrada no cenário político inglês Mas não constitui contradição o fato de que muitas de suas melhores obras de teoria política especifi camente vieram a público sob a forma original de peças de oratória quer nos embates com o elei torado quer nas tribunas do Parlamento Foi assim por exemplo que ao se dirigir aos seus eleitores em Bristol em agradecimento ao mandato por eles confi ado em 1774 nosso autor proferiu uma das mais sintéticas e interessantes defesas da autonomia parlamentar no cumprimento de suas responsabilidades diante do povo O parlamento não é um congresso de embaixadores que defendem in teresses distintos e hostis interesses que cada um de seus membros deve sustentar como agente e advogado contra outros agentes e ad vogados mas uma assembleia deliberativa de uma nação com um in teresse o da totalidade onde o que deve valer não são os interesses e preconceitos locais mas o bem geral que resulta da razão geral do todo Elegeis um deputado mas quando o haveis escolhido ele não é o de putado por Bristol e sim um membro do Parlamento Se o eleitor local tiver um interesse ou formar uma opinião precipitada que claramente se oponham ao bemestar real do resto da comunidade o deputado no assunto em pauta deve se abster como os demais de qualquer gestão para leválo a cabo Discurso aos eleitores de Bristol 17741 No discurso e no trecho em questão reaparecem com toda a clareza não apenas o compromisso de Burke com toda uma longeva tradição republicana expressa na afi rmação da res publica como horizonte normativo próprio da ação 1 Aqui e em todas as citações de Burke e também na de Rousseau mais adiante utilizo as traduções publicadas em Weff ort 1990 188 ELSEVIER Curso de Ciência Política política mas também os igualmente previsíveis pressupostos aristocráticos que originaram e sustentaram a evolução das modernas instituições representa tivas liberais Como muitas vezes acontece com a produção discursiva de Burke porém se o conteúdo imediato da elocução se refere à legitimação do que pode haver de mais tradicional como no caso a superioridade do interesse público diante das particularidades e a defesa algo aristocrática da autonomia dos eleitos a forma retórica com que se processa a defesa e a conservação das instituições ancestrais acaba sempre por inovar e situar a legitimação do objeto privilegiado num contexto de novas razões e justifi cativas Seja em um novo tratamento po sitivo da questão como veremos adiante na explicitação de novos sentidos ou mesmo em função das utilidades atribuídas aos valores e às instituições defendi das seja de modo negativo como no trecho acima pela construção da especifi cidade do papel parlamentar em oposição à fi gura conspícua e rigorosamente atual para Burke do advogado Tal como se tornaria claro depois na crítica à Revolução Francesa a referência a este último poderia guardar sentidos ideoló gicos mais precisos o advogado não desempenharia apenas uma ocupação ou ofício politicamente neutro como qualquer outro a sua prática e o espírito com que a reproduziria seriam representativos também de uma mentalidade indivi dualista egoísta e imediatista incompatível com a preservação das altas funções atribuídas por Burke à maneira clássica à prática parlamentar É justamente essa nova capacidade de legitimação do tradicional o que confere ao discurso de Burke e a todo o conservadorismo que dele se origina ou nele se espelha o seu caráter indubitavelmente moderno Como nos ensi naram os sociólogos da cultura como Mannheim é somente em função das exigências e desafi os políticos e intelectuais do novo quer dizer da revolução iluminista e do avanço concomitante das formas de pensar e agir associados aos novos setores mais desenraizados da burguesia que o conservadorismo surge e se afi rma como concepção original do social e do lugar da política em seu enredo Mas que lugar é esse Há aqui também alguma inovação digna de nota Para responder satisfatoriamente a essas questões é preciso ter em mente que pertence à nova tradição do pensamento político moderno inaugurada por Maquiavel a afi rmação da autonomia e da capacidade de intervenção criativa da arte política sobre a realidade Não apenas porque a cada revolução espiritual processada no Ocidente nos últimos séculos o homem mais se afastou dos limi tes impostos à sua discrição pelas forças divinas ou seus supostos intérpretes mas também porque a essa crescente autonomia e responsabilidade somouse 189 Capítulo 7 Edmund Burke a estética conservadora da arte política Fernando LattmanWeltman uma percepção cada vez mais sistemática da especifi cidade do campo próprio de intervenção da política Em especial frente à ética que a dominara e lhe pres crevera seus meios e objetos por quase dois milênios É somente por força de tais desenvolvimentos e rupturas que se tornou possível como nos ensinou o mestre fl orentino a noção de que cabe ao Príncipe o poder demiúrgico de invenção da Ordem através de habilidades especifi ca mente políticas a sua virtù diante das imposições nada divinas da Fortuna A partir de Maquiavel portanto a arte da política passou a desenvolverse de modo autônomo enquanto disciplina intelectual e estabeleceu paulatinamente para si seus próprios critérios de juízo Ou seja do que constitui o bem ou o mal em termos rigorosamente políticos de acordo com as imposições específi cas da esfera daquilo que pode ser efetivamente realizado e não propriamente do que deve ser feito tal como antes era prescrito à política pela ética Burke é à sua maneira fi el a essa tradição e em seu famoso discurso sobre as Causas do descontentamento atual 1770 em que abordou a conjuntura política inglesa à época conturbada segundo o seu ponto de vista por articulações de certo modo reacionárias da Coroa ele desenvolve não somente o tema conhe cido da política como fi losofi a em ação mas também o faz em consonância com a legitimação da nova forma de realização desse ideal o partido político Se antes ao tempo de Maquiavel e sua imaginação ainda fortemente caudatária dos modelos clássicos revividos pelo Renascimento e pelas lições exemplares da Historia Magistra Vitae a História prémoderna sem um sentido teleológico explícito e repositório de exemplos atemporais conforme a conceituação de Ko selleck poderia caber inteiramente à fi gura do Príncipe o ônus e o privilégio de moldar a realidade política dos homens e suas instituições na Inglaterra do século XVIII de Burke não há meios de se obstar o caminho do mal e dotar as nações dos recursos políticos necessários à boa condução dos interesses públicos senão através da associação dos homens de bem em torno dos mesmos ideais e programas Através de partidos políticos Um partido é um grupo de homens unidos para fomentar através de ações conjuntas o interesse nacional na base de algum princípio deter minado sobre o qual todos estão de acordo De minha parte pareceme impossível conceber que alguém acredite em sua própria política ou acre dite que esta possa ter algum peso se se nega a adotar os meios de colocá la em prática A tarefa do fi lósofo especulativo consiste em descobrir os fi ns correspondentes ao governo A do político que é o fi lósofo em ação é a de encontrar meios adequados para alcançar tais fi ns e utilizálos com efi cácia Refl exões sobre as causas do descontentamento atual 1770 190 ELSEVIER Curso de Ciência Política Afi nal pergunta ele que outro meio conhece a humanidade para tornar efetivo todo o potencial criativo de cada indivíduo melhor do que o estímulo e a acolhida coletiva de uma associação fraterna e natural Se os homens não conhecem os princípios dos demais não experimen taram os talentos dos outros nem colocaram em prática seus mútuos talentos e disposições através de esforços comuns nos negócios não há entre eles confi ança pessoal nem amizade nem interesse comum e é evidente que não podem desempenhar nenhum papel público com uniformidade perseverança e efi cácia Em aliança com outros o ho mem mais insignifi cante agregado ao peso de todos tem seu valor e utilidade fora dele os maiores talentos são totalmente inúteis para ser vir ao povo Refl exões sobre as causas do descontentamento atual 1770 Mais uma vez o eco aristotélico do argumento reforça a impressão en ganosa de que podemos estar diante apenas de um retórico tradicionalista e redundante Hábil no manejo das palavras por certo Mas irrelevante em termos teóricos O engano seria porém mais prejudicial a nós do que à reputação do au tor Pois que a defesa do partido político não se restringe a legitimálo em termos tradicionais por evocação de sua naturalidade enquanto associação e dos seus recursos de socialização Ela se faz também e acima de tudo por uma profi ssão de fé na necessidade imperiosa do engajamento e da ação política con sequente Somente através da associação política pode o individuo amplifi car suas eventuais capacidades e articulálas de modo consequente à força de seus pares e correligionários tornandose assim efetivamente apto a infl uir no rumo dos acontecimentos em prol do bem comum A rigor não há para um cidadão consciente e acima de tudo para aqueles que se dedicam à política segundo Burke maior imperativo ético do que a pura e simples busca do poder Quando o homem público não chega a se colocar em condições de cum prir seu dever com efi cácia esta omissão frustra os propósitos de seu mandato quase da mesma forma que se os houvesse traído abertamen te Na verdade não é um resumo muito elogioso da vida de um homem dizer que sempre trabalhou bem mas que se conduziu de tal forma que seus atos não deram margem à produção de nenhuma consequência Refl exões sobre as causas do descontentamento atual 1770 Tratase tal concepção de Burke portanto de uma forma de valorização da política sua arte e sua missão mais condizente entretanto a um momento 191 Capítulo 7 Edmund Burke a estética conservadora da arte política Fernando LattmanWeltman histórico e institucional específi co em que talvez de forma inédita o campo da intervenção criativa se expande e incorpora de modo crescente novos atores e talentos entre eles por que não também os de origem plebeia e oriundos das margens da Commonwealth como o próprio Burke Compreendese assim porque ao contrário do que pode supor uma visão apressada ou anacrônica dos sentidos do seu conservadorismo as concepções de Burke a respeito do papel do cidadão e do homem público de seu tempo e das altas funções por ele atribuídas às novas e importantes instituições da or dem liberal em formação na Inglaterra os partidos e o cada vez mais poderoso Parlamento puderam servir a uma prática política comprometida com a defesa de agendas que vistas a posteriori difi cilmente poderiam ser classifi cadas como necessariamente continuístas ou muito menos retrógradas Datam dessa mesma época e se encontram esposadas nos mesmos dis cursos fundadores na verdade os estruturam causas como a defesa das li berdades políticas e civis asseguradas em seu país cerca de cem anos antes pela chamada Revolução Gloriosa de 1688 ou o reconhecimento da legitimidade dos pleitos dos insurgentes norteamericanos diante dos erros e abusos da política externa inglesa Ora como é possível então que esse campeão parlamentar de causas que poderíamos chamar com pequenos riscos de incorrer em anacronismos de li berais esse ardoroso defensor da evolução institucional inglesa por meio in clusive da revolução possa ter se metamorfoseado no crítico contemporâneo mais feroz do mais importante processo de transformação política e social da era moderna No corifeu de uma nova ideologia política justamente aquela que se ergueu em armas contra o Iluminismo até mesmo legitimando as instituições do Antigo Regime Na defesa da superioridade das tradições diante da iconoclastia inovadora da Revolução Francesa 73 Abstração ideal e concretude histórica É um equívoco portanto interpretar a crítica devastadora de Burke à Re volução Francesa em termos de uma simples reação de classe ou estamento às iniciativas do movimento em especial as de caráter socialmente nivelador como as que procuravam acabar com privilégios imemoriais e como diria Tocquevil le algumas décadas depois de Burke promover a equalização democrática dos franceses É certo que de maneira muito diferente do que ocorre conosco hoje ou pelo menos com a grande maioria entre nós para o nosso autor e também para os seus contemporâneos não há associado à palavra democra cia qualquer conteúdo semântico indiscutivelmente positivo ou muito menos 192 ELSEVIER Curso de Ciência Política autojustifi cativo Para Burke se não devidamente traduzida em instituições e práticas sociais concretas a palavra democracia não é nada além disso uma simples palavra Pior talvez apenas um slogan uma palavra de ordem vazia que pode mover os homens em torno e em direção a nada ou ao caos Com efeito diz Burke a seu nobre interlocutor nas suas Refl exões sobre a Re volução em França o rumo dado aos acontecimentos pelos revolucionários consti tuía verdadeiro crime contra o povo francês e dele nada se poderia esperar em curto prazo de benéfi co Iniciadas originalmente como uma simples carta em atendimento às de mandas de um jovem francês CharlesFrançois Depont que lhe pedia sua opi nião estas Refl exões acabaram por desencadear um desenvolvimento muito pró prio de ideias o que levou Burke a estendêlas por muito mais páginas do que o planejado originalmente tomandolhe vários meses e retardando de modo equivalente portanto a resposta solicitada Foram escritas porém em paralelo aos primeiros acontecimentos da Revolução e refl etem a inquietude de seu au tor diante dos mesmos além é claro de antecipar alguns dos desdobramentos futuros do processo revolucionário Três eventos dramáticos teriam mobilizado em especial o crítico do outro lado da Mancha segundo Pocock a abolição dos direitos feudais em agosto de 1789 a expropriação das terras da Igreja francesa e seu uso como garantia de um novo empréstimo feito pela Assembleia Nacional e a marcha dos parisienses a Versalhes com o retorno forçado da família real a Paris em 6 de outubro daque le mesmo ano Burke sentirase ultrajado pelo tratamento dado aos monarcas pelo povo o que de par com as duras medidas anteriores confi gurava para ele ao mesmo tempo um ataque aos pilares ancestrais da sociedade francesa e uma prova da força aparentemente incontrolável e irresponsável adquirida pelo povo insufl ado porém por setores sociais médios desvinculados de quaisquer compromissos com a ordem e a harmonia da sociedade Mais grave do que os terríveis erros dos revolucionários franceses segun do nosso autor entretanto era a admiração que tais feitos poderiam estar gran jeado do outro lado do Canal na própria Inglaterra A rigor a resposta de Burke aos acontecimentos em França talvez não tivesse nem a dimensão nem o tom que a tornou célebre e tão infl uente a posteriori no mundo das ideias políticas se pregadores como o reverendo Richard Price e sua Sociedade Revolucionária em Londres contivessem seu entusiasmo pela Revolução ao invés de fazer sua apologia Inclusive com sérios desdobramentos segundo Burke e os seus para a própria compreensão histórica e política dos sentidos da evolução institucional 193 Capítulo 7 Edmund Burke a estética conservadora da arte política Fernando LattmanWeltman inglesa por mais de cem anos desde a Guerra Civil o Protetorado a Restaura ção e a Revolução de 1688 Com efeito grande parte das Refl exões se destina a desconstruir não ape nas os argumentos de Price em favor da Revolução Francesa e ao espírito das rupturas por ela patrocinadas mas acima de tudo o modo como aquele associa ra e identifi cara esse movimento ao que ocorrera pouco mais de um século antes em seu país O discurso de Price reinterpretava a Revolução Gloriosa em termos de uma defesa lockeana do direito natural de os povos estabelecerem e é claro também deporem seus governos e elegerem seus soberanos Ou seja funda mentava desse modo o processo pelo qual fora investido no trono Guilherme de Orange Burke muito ao contrário apontava a questão religiosa a exigên cia revolucionária da manutenção de uma linhagem protestante e enfatizava as dimensões de continuidade no processo de substituição do rei já que além de protestante a Casa de Orange estava perfeitamente conectada às linhagens reais por laços de consanguinidade A solução revolucionária inglesa portan to segundo Burke não somente não contou com nada que se pareça com uma teoria de eleição popular ou de soberania do povo à la Locke como também primou pelo estrito respeito à continuidade das tradições do país ao garantir a investidura de um membro da família real Para além da questão histórica de ordem aparentemente apenas interpre tativa o que na verdade se situava no centro da polêmica era portanto uma série de delicadas questões relativas ao direito constitucional inglês em especial aquelas que se referiam às regras de sucessão e às relações ainda bastante com plicadas entre religião ou religiões e a Coroa Envolvendo as ligações entre Igreja e Estado e por último mas não menos importante sua possível separação defi nitiva O que talvez mais nos diga respeito hoje contudo alheios que estamos daquele contexto e mais interessados em questões gerais de teoria política é que o alvo da ira de Burke contra a Revolução Francesa para além dos riscos conjunturais que o movimento poderia representar para a Inglaterra e mais es pecifi camente para ele e seus aliados era pois não tanto os eventuais desejos democratizantes dos seus promotores mas acima de tudo o caráter abstrato ar bitrário artifi cial e indefi nido da ideologia que parecia colocar os revolucionários franceses em movimento tal como uma turba de fanáticos religiosos dispostos a tudo e prontos a destruir sem dó piedade ou refl exão tudo o que atravessas se seu caminho em seu afã de zerar a História e construir o novo a partir de um projeto ideal Sem dúvida que esse movimento iconoclasta voltavase contra grupos sociais e instituições do Antigo Regime a que Burke devotava grande 194 ELSEVIER Curso de Ciência Política valor e respeito Mas essa veneração não era devida como veremos por puro apego tradicionalista ao velho nem por uma identifi cação de classe irrefl etida A razão mais interessante talvez para a veneração que Burke demons trou diante das tradições e instituições de longa duração e a chave para a com preensão de sua sensibilidade política aguçada encontrase na verdade na sua peculiar concepção acerca da ontologia do social e na importância atribuída por ele ao hábito e ao costume na compatibilização entre instituições políticas e comportamento social harmônico O valor de uma instituição social para o Burke retórico e teórico das Re fl exões é medido por sua utilidade Mas esta por sua vez não pode ser sim plesmente aquilatada através de um cálculo racional abstrato ou individual A utilidade real das instituições segundo ele só pode ser comprovada através da sua duração no tempo por sua manutenção e credibilidade O mais importan te contudo é que o verdadeiro juiz dessa utilidade não é o simples indivíduo mas sim o grupo social que não somente pode garantir a perpetuação dessas construções que na verdade dele emanam mas é quem a rigor acolhe os próprios indivíduos quem os socializa como diríamos hoje e quem forma através das gerações a sua cultura traduzida não apenas em objetos aparente mente intangíveis como hábitos costumes e valores mas sim consubstanciada também numa série de patrimônios materiais como obras de arte e arquitetu ra monumentos símbolos ícones e produtos culturais de toda espécie Numa verdadeira herança capaz de dar a um povo sua identidade específi ca entre os demais povos conectandoo por meio de laços sensíveis e emotivos aos seus antepassados e descendentes Através da concepção de uma conformidade à natureza em nossas instituições artifi ciais e invocando a ajuda de seus instintos infalíveis e poderosos para fortalecer as maquinações falíveis e frágeis de nossa razão temos derivado várias outras e obtido consideráveis benefícios a partir da consideração de nossas liberdades à luz de uma herança Por este instrumento nossa liberdade se torna uma liberdade nobre Ela porta um aspecto imponente e majestoso Ela tem um pedigree e ancestrais ilustres Tem seus comportamentos e suas insígnias heráldi cas Tem uma galeria de retratos suas inscrições monumentais seus re gistros evidências e títulos Refl exões sobre a Revolução na França 1790 Por outro lado sendo tal patrimônio tal herança comum um produto não das vontades individuais explícitas e unívocas de quem quer que seja e sim o produto não previsto de inúmeras interações sociais complexas e provavelmen te contraditórias quer dizer um produto da História poderá ele comportar 195 Capítulo 7 Edmund Burke a estética conservadora da arte política Fernando LattmanWeltman uma gama limitada porém frequentemente heterogênea de elementos dando ao povo assim formado em sua relativa unidade uma diversidade política social e cultural interna bastante considerável Longe de se constituir necessariamente num impeditivo à coexistência pa cífi ca desses grupos no seio de uma mesma sociedade a existência dessas dife renças naturais porque histórica e concretamente produzidas pode conter grandes vantagens políticas e institucionais Tal como já fi cara sugerida na elabo ração da defi nição ideal dos partidos para Burke a associação de indivíduos em grupos e a existência de antagonismos entre estes se devidamente controladas em especial pelas instituições pelo costume e pelas tradições aceitas inclusive as hierárquicas podem gerar benefícios políticos como os do equilíbrio evo lução aperfeiçoamento moderação compromisso e responsabilidade Com efeito em outra passagem das Refl exões assim se dirige ele a seu jovem interlocutor francês Vossa Constituição foi suspensa antes de ser aperfeiçoada mas tivestes os elementos de uma Constituição tão próximos quanto se poderia de sejar Em vossos velhos Estados possuístes aquela variedade de partes correspondentes às várias descrições daquilo que vossa comunidade felizmente se compunha tivestes toda aquela associação e toda aquela oposição de interesses tivestes aquela ação e reação que no mundo natural e no mundo político através da luta recíproca das forças dis cordantes elaboram a harmonia do universo Esses interesses opostos e confl itantes que considerais como uma grande mácula tanto na vossa Constituição antiga quanto na nossa atual interpõem uma checagem salutar a todas as resoluções precipitadas elas tornam a deliberação não uma questão de escolha mas de necessidade fazem de toda trans formação uma questão de compromisso que naturalmente implica mo deração produzem temperamentos que evitam o dano grave de refor mas rudes cruéis e incompetentes e que tornam para sempre imprati cáveis todos os exercícios temerários do poder arbitrário por parte de uns poucos ou de muitos Refl exões sobre a Revolução na França 1790 De fato o controle do comportamento político exercido em termos práti cos e portanto não necessariamente autoconscientes através não de algum cálculo extemporâneo mas sim por meio de constrangimentos morais social mente reproduzidos atuando de modo externo aos indivíduos como censura ou internamente enquanto preceitos de alguma eticidade concreta confi gu ra segundo o autor não exatamente uma restrição arbitrária mas muito pelo contrário a sua liberdade verdadeira aquela que lhe foi outorgada por seus 196 ELSEVIER Curso de Ciência Política antepassados e institucionalizada no Estado sob a forma de deveres e direitos concretos historicamente determinados Possuímos uma Coroa transmissível uma nobreza transmissível e uma Câmara dos Comuns e um povo herdando privilégios franquias e li berdades a partir de uma longa linhagem de ancestrais Pareceme que esta política é o resultado da profunda refl exão ou antes o efeito feliz de se seguir a natureza que é sabedoria sem refl exão e acima dela Além disso o povo da Inglaterra bem sabe que a ideia de herança ofere ce um princípio seguro de conservação e um princípio seguro de trans missão sem jamais excluir um princípio de aperfeiçoamento Refl exões sobre a Revolução na França 1790 Desse modo numa apropriação bastante inovadora da teoria contratua lista particularmente a de Hobbes a concepção burkeana do Estado como produto de uma vinculação prática intergeracional ao longo do tempo de certo modo resolve muitas das aporias da teoria original principalmente em suas versões clássicas do século XVII Se as teorias dos contratualistas foram e por incrível que pareça ainda são criticadas por seu caráter supostamente abs trato em especial no que diz respeito ao momento fundador do contrato ou seja como se de fato não pudessem prescindir de um ato coletivo racional de vontade que fundaria concretamente a ordem legítima a teoria de Burke explicitada como não poderia deixar de ser na retórica engajada das Refl exões contorna esse suposto problema ao transferir à História concreta dos povos o que podemos chamar de fundamento racional do Estado A sociedade é de fato um contrato mas o Estado deve ser en carado com outra reverência porque não se trata de uma parceria em coisas subservientes apenas à existência animal bruta de uma natureza temporária e perecível É uma parceria em toda ciência uma parceria em toda arte uma parceria em cada virtude e em toda perfeição Como os fi ns de uma tal parceria não podem ser obtidos senão em muitas gerações ele se torna não apenas entre aqueles que estão vivendo mas entre aqueles que estão vivendo aqueles que estão mortos e aqueles que irão nascer Refl exões sobre a Revolução na França 1790 Antecipandose a importantes desdobramentos fi losófi cos da teoria do Estado que viriam a tomar forma ao longo do século XIX em especial na obra política de Hegel Burke por assim dizer elimina a aporia racionalista do con tratualismo ao defender a tese de que ao se produzir historicamente pelo in vestimento institucional criativo de geração após geração demonstrando assim de modo empírico sua utilidade e garantindo para os súditos a liberdade civil 197 Capítulo 7 Edmund Burke a estética conservadora da arte política Fernando LattmanWeltman única ainda possível de obtenção as instituições do Estado podem agora demandar para si uma nova legitimidade e consequentemente uma obediência de outro tipo Legitimidade e obediência derivadas não da adequação das insti tuições a algum plano racional abstrato ou apriorístico mas sim ao hábito e à própria identidade coletiva construída historicamente Por conformidade como diria Burke a sábios preconceitos adquiridos no processo de socialização e que nos conectam afetiva e moralmente a uma Ordem que desde o momen to em que nos reconhecemos naturalmente enquanto nós também se nos apresenta como naturalmente nossa Se houve no passado algum contrato digno desse nome portanto ele tanto pode ter se perdido na noite dos tempos como não passar de simples mito fundador A rigor para a teoria desenvolvida nas Refl exões não faz diferença O que importa é quão natural é o nosso sentimento de pertencimento ao coleti vo e o quanto nos reconhecemos nas instituições que defi nem nossas liberdades práticas nos limitam e demandam nossa obediência De modo que as falhas e defeitos dessas instituições podem e devem ser sanados até mesmo para ga rantir a continuidade de sua legitimidade Mas qualquer mudança terá de ser feita com cautela sem perda dos referenciais que garantem a naturalidade com que devemos nos relacionar com elas E aqui ressalta com maior nitidez a diferença política fundamental do pensamento burkeano e do conservadorismo que irá se afi rmar a partir dele diante da imaginação política iluminista responsável em última análise pelo caráter utópico e abstrato da Revolução Francesa segundo Burke Pois que en quanto o traço talvez mais característico desta última seja a crença otimista na capacidade humana e no dever ético incontornável de se promover a supe ração de todo o conhecimento precário e duvidoso mesmo que natural e apa rentemente evidente aquilo que ainda se encontra sob a forma préconceitual em prol de ciências seguras que de fato expulsem as trevas a que até então pareciam condenados os homens trazendo enfi m a luz para todos conforme a imagética clássica da Ilustração Burke atribui ao preconceito outro valor e fun ção social Para ele a crença racionalista que o Iluminismo sustentava no sentido da superação progressiva dos preconceitos cujo modelo individualista típico é o do fi lósofo especulativo livrepensador ou ainda melhor o cientista mo derno capaz de navegar contra a corrente do senso comum desmistifi candoo e substituindoo por outro saber trai uma arrogância epistemológica perigosa e consequentemente uma atitude política ainda mais perniciosa e fatal uma ten dência a desvalorizar toda e qualquer prática e instituição concreta que não se amolde ao crivo ideal da crítica racionalista o que de modo não surpreendente 198 ELSEVIER Curso de Ciência Política pode conduzir a iniciativas políticas radicais e temerárias Enquanto por sua vez os preconceitos sociais construídos pelo senso comum ao longo do tempo compartilhados lentamente modifi cados e transferidos de geração a geração não com o sentido explícito de alguma ocultação deliberada da verdade mas até mesmo com tal função são no entanto fundamentais à manutenção da ordem e das expectativas socialmente compartilhadas pelos grupos e indivíduos nas duras lidas do cotidiano Ou seja longe de desviar os seres humanos de alguma rota porventura mais correta em termos abstratos segundo Burke são os pre conceitos social e naturalmente adquiridos e como tal não questionados que os guiariam de modo seguro e sem margem a angústias maiores tal como mapas ou bússolas nas fl orestas oceanos ou desertos da vida É também por valorizar politicamente as diferenças e não a homogeneida de abstrata entre os homens como já mencionamos acima que Burke não consi dera as diversidades cognitivas entre estes como algo necessariamente negativo Muito pelo contrário para ele seria abominável ter de viver em uma sociedade onde a felicidade geral não pudesse ser obtida senão quando todos se puses sem de acordo através de longos e penosos esforços de investigação fi losófi ca e científi ca e de aprendizado universal dos complicados métodos e teorias à luz das quais tais verdades incontestes seriam testadas e a princípio confi rma das Dado que para Burke só poderia ser considerado indubitavelmente útil aquilo que pudesse ser demonstrado em termos rigorosamente práticos pela experiência e não de um homem apenas mas sim de um complexo coletivo historicamente construído no tempo e dado que justamente por ser coletivo tal conhecimento prático válido só pode ser de fato obtido pelo concurso pro vavelmente inconsciente de homens muito distintos com distintas habilidades e saberes em diferentes momentos não há realmente por que julgar necessaria mente maléfi ca a ignorância ou incongruente com a felicidade daqueles que porventura a cultivem Assim para nosso autor longe de se constituir num mal a se combater com as forças da Razão tal como pressupunham e afi rmavam confi antemente os iluministas o preconceito não apenas cumpriria importante função social e psicológica estruturante contribuindo assim para a necessária previsibilidade do mundo como por isso mesmo desempenharia também um papel políti co estratégico na manutenção da ordem e da harmonia sociais Como víramos antes é essa utilidade o que torna bons e veneráveis para Burke preconceitos como por exemplo os da religião os do respeito às classes e estamentos e aci ma de tudo os de reverência ao Estado 199 Capítulo 7 Edmund Burke a estética conservadora da arte política Fernando LattmanWeltman Ao contrário do que sugeriria portanto uma visão sociologicamente re ducionista que veria em Burke e em sua retórica apenas uma defesa reacioná ria do Antigo Regime é no conceito de utilidade social que se encontra a raiz de uma concepção conservadora que pode ter sua obra como ponto de partida De acordo com esta o que se herda deve ser conservado não simplesmente porque alguma tradição assim o determina arbitrariamente mas sim porque nas práticas e instituições de longa duração provavelmente se encontra a superio ridade da sabedoria cumulativa e prática coletivas Uma sabedoria muito mais ampla e consistente de fato melhor testada e confi rmada pelo tempo do que as vãs elucubrações da razão abstrata e individualista típica do Iluminismo triunfante E assim a arte da intervenção institucional e política para Burke é ao mesmo tempo a mais difícil e a mais necessária Pois que embora se trate sem pre de diagnóstico e invenção é preciso aliar à ação política o fi el seguimento daquilo que ele chama de o método da natureza a capacidade de aperfeiçoar e adaptar a novas necessidades aquilo que já demonstrou a sua utilidade e que desse modo não pode ser simplesmente descartado e refeito arbitrariamente sem o necessário respeito ao que nele já foi objeto de intervenções anteriores Todos os vossos sofi stas não podem produzir nada mais adequado para preservar uma liberdade racional e humana do que o método que temos perseguido e têm escolhido nossa natureza ao invés de nossas especulações nossos fôlegos em lugar de nossas invenções para os grandes silos e armazéns de nossos direitos e privilégios Refl exões so bre a Revolução na França 1790 Tratase de uma valorização inegável da continuidade frente à ruptura De modo que inclusive esta última só pode ser legítima em casos extremos justamente aqueles em que se pode claramente identifi car algum grave processo de desvio do rumo natural das coisas no sentido do desvirtuamento do espí rito do objeto da ruptura E nesse caso portanto tal ruptura assume um claro sentido restaurador O método da natureza quando aplicado aos produtos da intervenção política e institucional humana corresponde então à naturalização do artifício e à superação progressiva e paulatina dos eventuais elementos de arbitrariedade intrínsecos ao processo histórico E embora de um ponto de vista estritamente político o pensamento de Burke se colocasse numa posição francamente antagô nica à de Rousseau é curioso perceber como a concepção da ontologia social dos dois se aproxima por mais estranho que isso possa parecer 200 ELSEVIER Curso de Ciência Política No seu famoso Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade en tre os homens Rousseau teria por assim dizer aberto as portas da revolução ao postular o caráter necessariamente arbitrário se não mesmo fraudulento da origem de importantes instituições históricas É o caso famoso da propriedade privada O 1o que tendo tendo cercado um terreno lembrouse de dizer Isto é meu e encontrou pessoas bastante simples para crêlo foi o verdadeiro fundador da sociedade civil Quantos crimes guerras mortes quantas misérias e horrores não teria poupado ao gênero humano aquele que arrancando as estacas ou enchendo o fosso tivesse gritado aos seus semelhantes Guardaivos de escutar este impostor estais perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra é de ninguém Rousseau Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens Como se sabe a saída buscada por Rousseau para a produção da ordem legitima e a superação em defi nitivo das formas arbitrárias e injustas de orga nização social baseouse no racionalismo do Contrato social sem que o pensa dor suíço pudesse superar contudo as difi culdades já mencionadas do contra tualismo e claramente demonstradas nos desafi os que até hoje se manifestam na recepção de sua concepção de vontade geral que como diz Rousseau não se confunde jamais com a vontade majoritária Burke por sua vez reconhece nessa mesma arbitrariedade um elemento inexorável da produção da vida social mas estabelece um outro parâmetro para a legitimação de ordens falhas como esta a que parece estar condenado o gênero humano como vimos não a Razão abstrata de um pacto fundador fora do Tem po e do Espaço mas sim a naturalização utilitária do arbitrário ao longo da duração humana real através de ajustes e intervenções parciais agregadas e não necessariamente conscientes que quando se mostram talvez efetivamente ra cionais do ponto de vista do interesse coletivo transgeracional fazem tais cria ções humanas perdurar e obter respeito e adesão dos grupos sociais concretos À Razão de Rousseau e dos iluministas de seu tempo Burke irá contrapor a História E com esta abre ele as portas do século XIX 74 PósBurke conservadorismo e ciências sociais Se de um lado a História é o conceitochave da ontologia de Burke por outro é fácil também reconhecer em sua obra assim como na de outros con servadores como sugere Nisbet alguns dos elementos centrais do novo pen 201 Capítulo 7 Edmund Burke a estética conservadora da arte política Fernando LattmanWeltman samento sociológico que irá se formar e se tornar autoconsciente ao longo do século XIX Como vimos um dos pressupostos centrais da concepção política de Burke é o da superioridade do conhecimento empírico e prático acumulado nas instituições humanas de longa duração sobre as maquinações da razão abstrata e individual localizada Isto se dá não somente por força da gênese social des se patrimônio que como tal contou com o concurso com os conhecimentos parciais de uma infi nidade de indivíduos em interação e em aperfeiçoamentos sucessivos e por último mas não menos importante com o teste do tempo mas também porque tais produtos coletivos como todo fato social como diria Durkheim ao sistematizar o conhecimento sociológico muitas décadas depois de Burke se inserem de modo relacional num conjunto bem mais amplo de outras instituições o que lhes pode permitir uma série de adaptações mútuas necessárias ao seu funcionamento concomitante Com efeito um dos problemas mais sérios da intervenção institucional se situa justamente no fato de que da das a interação e a comunicação efetiva entre as práticas e instituições no tecido social resultados que se busca obter num determinado ponto podem produzir efeitos não previstos e eventualmente perversos em outros lugares ou esferas da sociedade E é bastante possível que o agente humano que intervém parcial e confi antemente não possua os conhecimentos necessários sobre todas as in terações efetivas ou possíveis entre a área de sua interferência e outras a ela conectadas e das quais ele pode até mesmo nem suspeitar A crença de Burke era a de que a prática coletiva se deixada livre em suas tradições e se devidamente respeitada em seu espírito certamente encontraria em algum prazo os meios mais efi cazes de adaptar mutuamente suas institui ções Assim de par com a superioridade da razão coletiva se afi rmava também a da prática diante da teoria ou melhor dizendo da especulação Sem dúvida que não se tratava de um empirismo ingênuo ou radical e que julgava pres cindir da análise e do trabalho de elaboração conceitual e teórica mas sim de uma atitude intelectual que se recusa a teorizar no vazio sem o controle de evi dências empíricas e do conhecimento acumulado e compartilhado socialmente mesmo que precário ou em grande medida instintivo Tratase portanto de um ceticismo moderado e relativamente humilde diante da realidade social que se observa e sobre a qual se pretende quando necessário intervir politicamente como vimos de modo prudente mas fi rme Desse modo a primazia dada à prática e à sua gênese social abre ca minho para uma das dimensões mais importantes e defi nidora da própria especifi cidade do pensamento sociológico subsequente a Burke e aos seus 202 ELSEVIER Curso de Ciência Política interlocutores no que passará a ser denominado campo ideológico do con servadorismo moderno a atenção às dimensões não necessariamente cons cientes da ação e do comportamento sociais É por isso que o estudo a in terpretação e politicamente falando o respeito aos hábitos e costumes não necessariamente conscientes ou deliberados dos indivíduos e grupos assume dimensão tão importante nesse tipo de pensamento É muito mais nas práticas do que nos discursos ou no caso destes nos seus elementos linguísticos mais estruturados e como diria a posterior teoria estruturalista mais independentes da fala que se detém o observador e intérprete so cial burkeano É justamente naqueles elementos que muito antes de revelar a suposta intenção consciente do agente ou falante nos dizem muito mais sobre o que na verdade o determina como indivíduo concreto situado no tempo e no espaço que se debruça a análise E são esses elementos muito mais amplos que segundo o cânone conservador devem fazer parte da ima ginação e do cálculo sim este nunca se ausenta na prática política conse quente do fi lósofo em ação demandado por Burke É por isso que as formas os rituais e acima de tudo os preconceitos são tão importantes Identifi car ao que concretamente os homens atribuem legiti mação e autoridade quais as fontes do status que distribuem entre si perceber o que conta para eles como sagrado diante do que é tido por profano em suma tudo aquilo que estrutura dá sentido e valor ao mundo para eles é decisivo para a compreensão de suas práticas políticas e do impacto possível ou provável de nossas ações sobre eles Sem dúvida é possível interpelálos racionalmente falando por exemplo a pura linguagem do interesse e do contrato Mas a ca racterística distintiva da abordagem informada pelo pensamento burkeano é a atenção constante ao fato de que tais razões interesses e cálculos jamais se dão no vazio Nem é lícito supor que o contrato ou qualquer outro mecanismo de concertação racional poderá ser facilmente interpretado e assim garantir ade sões equivalentes diante da heterogeneidade que felizmente pode reinar en tre os homens Heterogeneidade de ideias de visões de mundo de prioridades valores perspectivas expectativas etc Voltamos pois à antiga e venerável tradição intelectual que reconhece na prática política acima de tudo uma arte Uma arte de prudência imaginação engajamento e intervenção responsável Se estas poderosas ferramentas de intelecção privilegiadas por Burke ser viram ou têm servido mais ao longo dos anos que nos separam dele a correntes políticas ditas mais conservadoras ou mesmo reacionárias como sugere por 203 Capítulo 7 Edmund Burke a estética conservadora da arte política Fernando LattmanWeltman exemplo Hirschman creio que isso é menos demérito do autor do que dos eventuais antagonistas políticos e ideológicos daqueles liberais socialdemo cratas socialistas etc que não souberam ou não puderam se valer das ideias do grande orador irlandês no sentido de avançar suas próprias plataformas É claro que é perfeitamente possível se ater apenas ao que considero a superfície da argumentação burkeana e em desacordo com a interpretação que aqui privilegio torcer o sentido de sua defesa de tradições num rumo instru mental e passadista tomando as instituições antigas como boas em si mesmas ou de acordo com suas próprias justifi cativas ideológicas Por outro lado tam bém é bastante provável que as ideias e argumentos protohistoricistas e proto sociológicos de Burke se prestem muito melhor à defesa ideológica ou partidá ria de posições políticas conservadoras eou reacionárias do que por exemplo a um uso efi caz por parte de liberais no combate das ideias Dadas as diferenças fundamentais entre as práticas da análise política e social e as do engajamento político mesmo quando tais práticas são tão pró ximas simultâneas e quase que indistinguíveis não creio que o interesse nas ideias de Burke possa se restringir sem prejuízo para qualquer leitor aos inte resses táticos e estratégicos dos setores mais conservadores O próprio Burke como vimos não parece ter encontrado tanta difi culdade em conciliar sua ma neira de encarar os fatos políticos e sociais e a defesa de pontos de vista que se poderiam qualifi car então de tudo menos de conservadores ou muito menos reacionários De qualquer modo era esse espírito empirista adaptativo e prático que tanto advogava para a compreensão dos fatos da política o que a rigor Burke reconhecia ou queria reconhecer como vigente na Inglaterra responsável pelo que julgava ser a felicidade dos ingleses e pela superioridade histórica relativa das suas instituições em formação na época As novas instituições que denominamos liberais e em breve também democráticas que o conservador Burke queria a seu modo e de acordo com seus objetivos mais ou menos conjunturais preservar a todo custo 75 Perguntas para reflexão 1 Como Burke compreendia os papéis dos representantes e dos partidos políticos 2 Qual aspecto da Revolução Francesa mais desagradava a Burke 3 Como é possível segundo o autor avaliar o real valor de uma instituição política e social humana 204 ELSEVIER Curso de Ciência Política 4 Em que sentidos se pode dizer que Burke reinterpretou a tradição con tratualista ocidental 5 Quais os principais pontos de divergência entre as concepções políticas do Iluminismo e do Conservadorismo burkeano 6 Quais as funções do preconceito no pensamento do autor 7 Por que as diversidades de conhecimento entre os homens sua ignorân cia inclusive não constituem problema para a ordem política na concep ção de Burke 8 Qual o significado da expressão método da natureza na concepção da prática política em Burke 9 A que aspectos do comportamento social e político o pensamento burke ano dedica especial atenção em suas análises 10 Argumentos conservadores como os de Burke podem ser utilizados para a defesa política de pontos de vista não necessariamente conservadores Por quê Bibliografia ARMITAGE David Edmund Burke and the Reason of State Journal of the History of Ideas 614 Oct2000 BRYANT Donald C Edmund Burke A Generation of Scholarship and Dis covery The Journal of British Studies 21 nov1962 BURKE Edmund On taste On the sublime and beautiful Refl ections on the French Revolution A letter to a noble lord Nova Yorque Collier 1909 BURKE Edmund Refl ections on the Revolution in France Cambridge Hackett 1987 HIRSCHMAN Albert O A Retórica da intransigência perversidade futilidade ameaça São Paulo Cia das Letras 1992 KINZO Maria DAlva Gil Burke a continuidade contra a ruptura In WEFFORT F org Clássicos da Política São Paulo Ática 1990 v 2 LAPRADE WT Edmund Burke An Adventure in Reputation The Jour nal of Modern History 324 Dec1960 MANNHEIM Karl Essays on Sociology and Social Psychology Londres Routledge Kegan 1959 MORLEY John Edmund Burke A historical study New York Arno 1979 205 Capítulo 7 Edmund Burke a estética conservadora da arte política Fernando LattmanWeltman NISBET Robert Conservantismo In NISBET R BOTTOMORE T orgs História da Análise Sociológica Rio de Janeiro Zahar Editores 1980 NISBET Robert La formación del Pensamiento Sociológico Buenos Aires Amor rortu Editores 1999 v 1 POCOCK J G A Introduction In BURKE Edmund Refl ection on the Revo lution in France Cambridge Hackett 1987 Conservative Enlightenment and Democratic Revolutions The American and French Cases in British Perspective Government and Op position 24 Winter1989 RYAN Vanessa L The Physiological Sublime Burkes Critique of Reason Journal of the History of Ideas 622 April2001 WEFFORT Francisco org Clássicos da Política São Paulo Ática 1990 v 1 How to choose the right fabric for your curtains Consider the room use exposure to sunlight and required insulation For living rooms and bedrooms thicker fabrics like velvet or heavy cotton offer privacy and insulation Sheer fabrics work best in lounges or areas where diffused light is desirable Patterned and printed fabrics can add character while plain fabrics create a classic look Measure width and drop accurately Add extra widths for fullness usually 15 to 3 times the window width depending on the desired look and fabric type Curtains can be lined for extra insulation and longevity Capítulo 8 Kant e o paradoxo da liberdade como obrigação moral Rafael Rossotto Ioris 81 Introdução Apesar de ter sido um dos maiores teóricos do Liberalismo Immanuel Kant importantíssimo fi lósofo alemão do século XVIII não tem sido reconhe cido de maneira direta como um pensador da política De fato dada a enorme importância da refl exão kantiana no que se refere às questões centrais da metafí sica da teoria do conhecimento e da ética seus textos sobre o Direito a Política e as Relações Internacionais foram tradicionalmente subsumidos nas análises mais gerais de sua obra Ainda assim a importância de Kant para o pensamento político particularmente dentro da tradição da política internacional é evidente Como um dos maiores defensores da noção da autonomia individual Kant foi o grande proponente do estabelecimento de uma moralidade que ti Rafael Rossotto Ioris é Professor Assistente do Departamento de História da Universidade de Denver nos EUA É bacharel em Ciências Sociais Mestre em Relações Internacionais e Doutor em História 208 ELSEVIER Curso de Ciência Política vesse um sentido universal permitindo assim a plena realização da liberdade humana tanto dentro da realidade política circunscrita ao ambiente doméstico interno aos Estados quanto em uma escala mundial ou global Kant oferece pois uma rica e necessária obra para todos interessados em refl etir sobre as pos sibilidades e os limites da efetivação de uma ordem política justa e democrática 82 Kant e as Possibilidades do Conhecimento e a Noção da Morali dade Universal Immanuel Kant nasceu em Koenigsberg na Prussia Oriental atual Kali ningrad na Rússia em 1724 numa familia de rigorosa cultura religiosa de base pietista Ele lecionou na universidade local por muitos anos vindo a falecer na mesma cidade em 1804 Sua carreira acadêmica foi longa e ativa Escreveu inú meros livros sob diversos assuntos dentre os quais se destacam os seguintes Crítica da Razão Pura publicada em 1781 Prolegômenos à uma Metafísica Futura de 1783 Ideia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita 1784 Fundamentação da Metafísica dos Costumes 1785 Crítica da Razão Prática 1788 Crítica do Juízo 1790 A Paz Perpétua 1795 Em linhas gerais podemos afi rmar que as investigações fi losófi cas de Kant se ocuparam de quatro áreas principais a natureza do conhecimento e as possibilidades do saber a construção de uma moral de valor universal o sen timento estético a religião e a evolução do gênero humano Na primeira linha de refl exão é impossivel minimizar a importância do autor dado que fora o primeiro a questionar de modo sistemático as possibilidades e condições dentro das quais a obtenção do conhecimento ocorre Ao empreender uma profunda crítica à tradição fi losófi ca ocidental Kant busca superar os limites dentro dos quais havia se encaminhado a refl exão sobre a validade do conhecimento Essa refl exão havia até então se centrado no descobrimento dos procedimentos que poderiam por si só garantir a validade do conhecimento como resultado de um processo específi co de investigação Kant subverte essa consagrada lógica ao afi rmar em sua principal obra sobre a natureza do conhecimento humano Descobri que muitos dos princípios que consideramos objetivos são na realida de subjetivos isto é abrangem as condições sob as quais concebemos o objeto que buscamos conhecer Kant 1980 23 É nesse sentido que devemos entender como a publicação da Crítica da Razão Pura marcou defi nitivamente a história do pensamento fi losófi co De fato até a refl exão sobre a metafísica e a teoria do conhecimento propostas por Kant o pensamento fi losófi co havia seguido duas linhas principais de investigação no que se refere à questão da melhor sistemática de obtenção de um conhecimento 209 Capítulo 8 Kant e o paradoxo da liberdade como obrigação moral Rafael Rossotto Ioris válido A primeira dessas tradições conhecida como Racionalista afi rmava que a razão pode sem a ajuda da experiência empírica encontrar as verdades uni versais Em contraposição a linha de refl exão Empiricista defendia que somente a experiência sensível poderia servir como base sólida para nossos conhecimen tos sobre a realidade Com base nas críticas propostas pelo fi lósofo Iluminista escocês David Hume Kant viria a concordar com a postura Empiricista no que se refere à no ção de que todo conhecimento sobre o mundo deva se edifi car sobre as experi ências sensíveis em oposição à mera refl exão dedutivista Contudo postula o autor alemão a experiência percebida e portanto nosso conhecimento sobre o mundo não deveria ser entendida somente como um refl exo direto do mundo exterior apreendido pelos nossos sentidos Pelo conrário afi rma Kant toda ex periência deve ser tomada já como uma leitura efetivada sobre o mundo sensí vel por meio de processos e estruturas ou categorias cognitivas que elaboram e apresentam o mundo exterior de um modo passível de ser conhecido por nossas faculdades mentais de cognição Como exemplo dessas referidas estruturas ope racionais da mente humana por meio das quais o conhecimento seria constru ído Kant apresenta as faculdades ou formas da intuição do espaço e tempo Essas duas categorias são tomadas por ele como elementos constitutivos do processo mental de apreensão da realidade e que portanto não poderiam ser conside radas como atributos materiais inerentes aos objetos em si mesmos sobre os quais Kant postula estaríamos limitados como seres pensantes na emissão de juízos defi nitivos idem 43 Havendo traçado uma separação clara entre a experiência sensível e a ra zão e tendo atribuído à última e às suas categorias mentais ao invés do mundo material a possibilidade de formulação das condições universalmente válidas para a efetivação do conhecimento humano Kant aplica esse mesmo raciocínio ao campo da ética Nesse sentido esse grande fi lósofo Iluminista alemão viria a propor sua célebre tese de que nossos conceitos morais deveriam se basear não na experiência material concreta ou em nossos sentimentos individuais mas somente na razão humana universalmente presente e chave para nossa compre ensão e intervenção na realidade Nesse sentido dada sua enfática rejeição da postura epistemológica baseada no entendimento cognitivo realista ou seja a negação da possibilidade de que se conheça a coisa ou a essência das coisas em si a fi losofi a moral kantiana se funda na rejeição da possibilidade do estabele cimento de uma moral de base empírica ou seja inspirada por ou direcionada para um determinado conceito de bem que seria assim de caráter particular e historicamente determinado 210 ELSEVIER Curso de Ciência Política Para Kant somente a dignidade universal de todos seres humanos toma dos como igualmente capazes de exercerem sua liberdade poderia servir como fundamento para a construção de uma moral universalmente válida Em sua obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes o autor defende a necessidade da formulação de uma fi losofi a moral pura dado que a razão apresenta além de uma dimensão teórica também uma dimensão prática onde seu objeto não é mais o conhecer mas sim o agir no mundo o que ele viria a defi nir como a razão pura prática Assim de modo semelhante aos procedimentos seguidos para apre sentar uma teoria formal do conhecimento Kant investiga como seria possível o estabelecimento de uma moralidade pura de valor universal Ficaria demarcado assim o caráter formalista da moral kantiana uma vez que para ele dados empíricos não poderiam jamais servir de base para a for mulação de leis morais Essa postulação conforme as proposições kantianas se colocaria diametralmente em oposição à tradição moral clássica que é baseada na noção da formulação de uma ética da felicidade ou da boa vida ou moral e segundo a qual a ação moral deveria ser governada por considerações de in teresse determinadas em experiências concretas de indivíduos ou coletividades específi cas Para Kant a moralidade somente é possível na medida em que a razão que é a base da liberdade humana estabeleça autonomamente sem a ingerência de outras vontades os princípios para a ação livre Assim a mora lidade de uma ação residiria no fato dessa resultar do respeito à uma lei moral universalmente válida Ceder ao costume ou às regras de ação baseadas numa moralidade de cunho social específi co por mais sublime que seja não poderia ser considerado como uma lógica de ação moralmente válida para todos Por tanto a moral universal não poderia derivar da obediência a uma autoridade material como também não pode derivar dos sentimentos por mais altruístas que sejam Kant 1995 23 Temos pois que a moralidade kantiana é centrada nas noções de liber dade e racionalidade humanas Assim uma moralidade efetiva defi nida pela existência de indivíduos autônomos agindo de acordo com leis por eles mes mos defi nidas e em acordo com a autonomia de todos outros indivíduos será chamada pelo fi lósofo de reino dos fi ns e implicará numa realidade onde cada indivíduo agiria de acordo com princípios válidos para todos e que por assim agirem efetivam sua própria liberdade assim como a de todos outros seres hu manos A liberdade humana pertence pois não aos nossos sentimentos mas sim à razão humana uma vez que somente ao nos propormos deveres morais que se tornariam guias efetivos de nossa ações poderíamos exercer nossa liber dade plena de agir moralmente 211 Capítulo 8 Kant e o paradoxo da liberdade como obrigação moral Rafael Rossotto Ioris Não há portanto possibilidade da moralidade sem a existência da liber dade ou seja a capacidade dos seres humanos de se autodeterminarem Ao mesmo tempo a determinação da moralidade universalidade de uma ação es pecífi ca será defi nida entre outros critérios pela observância ao dever moral pois somente agindo moralmente e de acordo com nossa vontade autonoma mente poderemos ser realmente livres Da mesma forma uma ação poderá ser considerada como moralmente válida se resultar de uma motivação que cumpra o dever moral e não se essa mesma ação se coadunar com o dever somente no que se refere aos seus efeitos Para Kant o agir moral é aquele que independen te de todos objetos de vontade e inclinação individuais cumpre uma lei passível de ser universalizável ou seja pode ser válida como princípio para a ação de todos seres humanos Esse princípio de universalização seria o mecanismo central para defi nirmos se a motivação de nossas ações está de acordo com a lei moral universalmente válida Com base nesse princípio Kant formula o que seria a lógica formal do es tabelecimento de leis moralmente válidas Nesse raciocínio o fi lósofo formula a noção de imperativos comandos ou mandamentos para a ação que se dividem entre Hipotéticos aqueles orientados como meio para a consecução de fi ns específi cos e Categóricos que representam uma ação absolutamente necessária como boa em si tais como os verdadeiros princípios morais Nesse sentido os imperativos categóricos não poderiam apresentar nenhum conteúdo empírico ou estar vinculado a qualquer interesse particular podendo somente se confor mar com a pura forma da lei moral sendo pois de natureza formal tal como o próprio princípio de universalização O Imperativo Categórico seria pois a máxima que estabelece o vetor em cima do qual a moralidade universalmente válida possa vir a ser estabelecida Ou seja um regramento para a ação humana para ser tomado como categórico deve estabelecer um princípio moral válido universalmente para todos os seres humanos A norma moral tem assim uma base formal que Kant defi ne como sendo Aja sempre em conformidade a um princípio de ação que possa ser to mada como lei universal idem 59 Motivações e consequências específi cas de nossas ações ainda que possam ser condizentes com o Imperativo Categórico não poderão ser julgadas como morais moralmente válidas para todos a não ser que tenham como fundamento um princípio universal A moral kantiana é pois formal uma vez que busca defi nir os princípios que possam servir de base para o estabelecimento de uma lei moral universal mente válida Para ele somente é moral o que é universalmente válido ou seja poder servir como parâmetro para a escolha do curso de ação por todos os seres 212 ELSEVIER Curso de Ciência Política humanos Kant reinsere assim o tema da moral na esfera da política ainda que não se trate mais da moral tradicional ou aquela defi nida historicamente por cada sociedade específi ca como sua noção de bem moral Da mesma forma a liberdade de cada indivíduo estaria garantida quando a regra a ser seguida de rivar de uma criação autônoma dos sujeitos cumpridores dessa mesma regra e esses forem portanto autônomos ou livres Para o autor são as capacidades do entendimento humano que conferem ao ser humano a capacidade de ser livre autônomo Conhecer não seria a absorção da realidade objetiva em conformi dade à realidade em si mesma mas sim uma atividade prática do entendimento humano de onde ele afi rma que o ato de conhecer não seria uma atividade teó rica mas atividade prática um exercício da liberdade humana Assim no cerne do seu pensamento moral kantiano está a noção de liberdade defi nida como autonomia na determinação do curso e das regras para a ação que deveriam ser válidas para todos seres humanos Por fi m cabe dizer que a efetivação da liberdade individual depende da existência de instituições políticas domésticas e internacionais que possam ga rantir o exercício da autonomia de cada um Será nesse sentido que Kant buscará justifi car o estabelecimento do Estado de Direito tanto no contexto das intera ções interpessoais como no das interações entre Estados soberanos Esse projeto denominado pelo autor de Cosmopolita teria como objetivo fi nal a manutenção da liberdade individual de modo que essa possa ser refl etida em escala univer sal por meio da instituição de normas universais para a ação e interação entre indivíduos efetivamente livres conforme veremos a seguir 83 Kant e a Política da Autonomia Individual Kant foi um grande entusiasta e defensor das propostas políticas do Ilu minismo e um dos maiores proponentes dos ideais Liberais do século XVIII Ele chegou mesmo a escrever um breve artigo sobre essa experiência histórica onde afi rma a necessidade de que cada ser humano assuma seu próprio processo de emancipação pessoal por meio da refl exão crítica e a tomada de decisões de for ma autônoma Em suas próprias palavras O Iluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem Tal menoridade é por culpa própria se a causa reside não na falta de entendimento mas na falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo sem a orientação de outrem Tem a coragem de te servires do teu próprio entendimento Eis a palavra de ordem do Iluminismo Resposta à Pergunta Que é o Iluminismo In A Paz Perpétua e Outros Opúsculos 1995a 11 213 Capítulo 8 Kant e o paradoxo da liberdade como obrigação moral Rafael Rossotto Ioris Como vimos o projeto moral e político de Kant está por sua vez intima mente ligado à sua teoria do conhecimento humano dado que ambas análises se centram na busca dos fundamentos universais que possam permitir um saber e uma lei moral claras Toda sua refl exão deriva pois da noção que toma os se res humanos como seres racionais portanto capazes de proporem a si mesmos princípios morais de ação e interação comuns Devemos entender portanto que a teoria política de Kant é indissociável de sua fi losofi a moral que visa estabe lecer princípios universais para nossas ações no caso concreto de sua refl exão política para nossas ações em sociedade Assim a política kantiana está interes sada acima de tudo em estabelecer os princípios que nos permitam estabelecer uma ordem política universalmente válida e que assim garanta a todos os seres humanos o respeito ao valor intrínseco da natureza humana Da mesma forma para Kant os princípios da política são também os princípios do Direito uma vez que somente a Lei pode estabelecer a justiça o que somente seria possível se nossas estruturas políticas e instituições legais se conformassem com princí pios morais universais Kant deveria pois ser considerado como um dos fundadores da Ciência Jurídica moderna dada sua defesa da noção de que os seres humanos como se res racionais devem ser entendidos não somente como dotados de razão mas também como dotados da capacidade de se autopostularem princípios para regerem suas escolhas vontades e ações Tais princípios serviriam de base para o estabelecimento da vida em sociedade sob a regência do Estado de Direito Em contraposição à essa realidade de caráter legal e moral o chamado Estado de Natureza que não é assumido pelo autor como um fato histórico como havia anteriormente sido aludido como uma possibilidade pelo fi lósofo Contratualis ta e liberal inglês John Locke mas somente como uma hipótese lógica para o estabelecimento dos princípios da vida em sociedade por meio de um arranjo político moral é defi nido por Kant com uma realidade présocial e tomada de maneira similar nesse aspecto somente às noções propostas pelo também fi lósofo contratualista inglês Thomas Hobbes como uma situação de guerra ge neralizada dada a ameaça permanente de hostilidades de todos contra todos uma vez que somente num estado jurídico poderá haver efetiva segurança e paz Para Kant a paz tem que ser assegurada por estruturas jurídicas institu cionais e o Estado de Natureza deve ser superado em todos seus níveis não so mente nas relações entre indivíduos mas também entre os Estados assim como entre Estados e indivíduos por meio do estabelecimento de uma nova ordem jurídica defi nida como Cosmopolita como veremos mais adiante Para o autor a liberdade plena dos seres humanos somente pode se efetivar no convívio social 214 ELSEVIER Curso de Ciência Política através da obediência à lei moral Kant rejeita as noções de matriz individualis ta conforme propostas por Hobbes e por toda a tradição Contratualista que defi nem a condição de liberdade individual e de Direitos Naturais como já exis tindo no contexto présocial do Estado de Natureza De modo alternativo Kant recupera o pensamento préContratualista ao entender que a efetivação da liber dade dos seres humanos depende do convívio social sob regras políticas claras Ele defende portanto que a liberdade humana está condicionada à existência e à obediência de uma ordem legal que por ser fruto da deliberação autônoma de cada membro da comunidade política deve ser tomada também como ordem moral Taylor 1985 319 Da mesma forma Kant é bastante crítico às ideias políticas de vários de seus antecessores particulamente Maquiavel e Hobbes Com relação ao primei ro rejeita sua separação rígida entre a moral e política e com relação ao se gundo rejeita o teor autoritário de sua visão sobre o Estado soberano Ainda assim do mesmo modo que Hobbes Kant também centra sua análise política na transformação de uma realidade associal e de confl ito em uma realidade orde nada pela razão e pela paz Diferentemente de Hobbes contudo Kant entende que o soberano deve se submeter às leis que regem sua ação de governo No mesmo sentido para o autor alemão a liberdade humana estaria condicionada ao cumprimento de leis que teriam sido formuladas por indivíduos agindo au tonomamente como legisladores garantindo assim a liberdade e a igualdade de todos Kant 1995a 78 A infl uência Rousseauniana na obra de Kant também é bastante evidente sendo que o próprio Kant afi rma ter aprendido do pensador Francês o respeito e o interesse pelo homem comum Ao reconhecer o profundo impacto da obra desse pensador francês em seu pensamento político Kant buscou radicalizar o projeto democrático defendido por aquele autor ao ampliar a noção da necessi dade de estruturas políticas democráticas na esfera interna para a realidade das interações entre os Estados dentro do contexto internacional afi rmando assim a existência de uma relação de codependência entre esses dois níveis políticos Diferindo de Rousseau Kant entende que é somente em sociedade que poderemos encontrar os meios para o exercício de nosssa liberdade uma vez que é somente dentro desse convívio que poderemos formular autonomamente leis que nos servirão de guia para nossas ações A noção de Contrato Social em Kant é portanto também muito importante pois é esse mecanismo que legiti ma e funda a sociedade civil O Contrato é assumido contudo somente como um princípio heurístico com vistas a justifi car a ordem legal proposta assim sendo uma ideia prática da razão e fornecer às leis a conotação de funcionarem 215 Capítulo 8 Kant e o paradoxo da liberdade como obrigação moral Rafael Rossotto Ioris como se pudessem emanar da vontade coletiva de um povo inteiro e as sim se considere todo súdito como se ele tivesse assentido pelo sufrágio a seme lhante vontade Kant 1995a 83 Para Kant a vida em sociedade contudo não pode somente se funda mentar no princípio do contrato pois requer também a existência de uma cons tituição pois somente assim poderá existir a liberdade de todos uns em relação aos outros O autor reconhece ainda concordando nesse ponto com o que havia proposto Hobbes que o Chefe de Estado está acima da comunidade política e que portanto não está sujeito à suas punições Contudo analogamente ao racio cínio seguido por Hobbes com relação ao direito de autodefesa assumido por esse autor inglês como permanecendo sempre nas mãos de cada membro da comunidade política para caso o Estado atente contra à sua própria vida Kant defende que embora o Estado possa exigir obediência de todos seus súditos negando assim a noção de um direito de resistência como havia sido proposto por Locke esse mesmo Estado não pode afrontar conta o espírito de liberdade de pensamento livre expressão pois assim estaria negando sua razão de ser como garantidor de uma vida mais plenamente livre dado que todos indivídu os estariam regrados por uma lei moral válida para todos idem 92 Toda a lógica política kantiana deriva da noção da existência de um valor absoluto intrínseco a todos seres humanos que por natureza devem exercer suas racionalidades e assim efetivar sua liberdade ao se tornarem seres auto nômos ou seja capazes de se autodeterminarem ao se proporem livremente normas de comportamento válidas para todos Cabe notar que uma vez que tais normas sejam estabelecidas Kant prega a total obediência às mesmas como necessidade do exercício da liberdade Portanto para ele o cumprimento e obe diência à uma norma que tenha uma validade universal é assumido como a base para o exercício da liberdade humana Kant nega também a validade do argu mento que separa a moral da esfera da política como proposto por Maquiavel Hobbes Para o fi lósofo alemão a moral deve ser a chave para a construção de projetos políticos e a institucionalidade política defi nida pelo Estado de Di reito e um novo tipo de Direito Internacional deverá servir como base para o exercício da moral e da liberdade humanas Moral e política estariam assim novamente imbricadas mas sob um novo sentido que assume a necessidade de instituições políticas para o exercício da liberdade dentro das esferas doméstica e internacional A título de revisão a base do raciocínio político de Kant parte da noção do indivíduo como ser racional portanto moral para a partir disso estabelecer uma defesa da necessidade da ordem legal que garanta a liberdade e plena realização 216 ELSEVIER Curso de Ciência Política da autonomia e do potencial racional de todos indivíduos Para o fi lósofo a busca de uma política defi nida pela moralidade não poderia se dar com base em prin cípios legais históricos de nenhuma sociedade uma vez que esses seriam contin gentes à realidades históricas e culturais particulares Tal busca por um princípio defi nidor de uma ordem política de valor universal deveria pelo contrário se nortear pela realização da autonomia liberdade de todos os indivíduos Em Kant o republicanismo e a busca de uma paz duradoura se conver tem de fato em valor moral e não mais somente em uma técnica do bom go verno ou seja como tendo somente um valor instrumental ou utilitário Em sua obra da maturidade Ideia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita Kant discute a questão da existência de uma lógica evolutiva um propósito racional de matriz progressiva no curso da história da humanidade acabando por defender que a história caminha em direção à emancipação e reali zação do pleno potencial racional dos seres humanos isto é a efetivação de suas disposições naturais enquanto seres racionais capazes de exercer plenamente sua liberdade Ele afi rma ainda que essa lógica evolutiva não seria necessaria mente perceptível por cada indivíduo em suas experências concretas uma vez que ela se demonstraria efetivamente na coletividade gênero humano e não em cada caso individual onde inclusive poderia ocorrer exemplos de negação desse curso emancipatório Kant 1986 27 Ao apresentar nessa mesma obra o que seriam as proposições defi nido ras da lógica do devir histórico Kant afi rma que todas as disposições de cada criatura estão destinadas a se desenvolverem completamente conforme um fi m específi co Primeira Proposição defendendo também que a plenitude das disposições humanas somente pode se efetivar por meio da efetivação plena do exercício da razão Terceira Proposição Da mesma forma postula que o me canismo central do processo evolutivo seria o antagonismo que surge entre in teresses e motivações opostas entre indivíduos e entre esses e suas disposições naturais Quarta e que o maior desafi o da espécie humana cuja solução a natureza a obriga é alcançar uma sociedade civil que administre universalmen te o direito pois somente ela permite a liberdade plena Quinta Proposição Kant seria assim um dos primeiros a propor uma noção de uma história linear e progressiva suplantando assim a clássica noção circular de história que ainda estaria presente em autores considerados em alguns outros aspec tos como modernos tais como Maquiavel Para o fi lósofo alemão a história deveria ser tomada como tendo um plano racional de evolução rumo a maior emancipação dos seres humanos Contudo essa postulação não implica em que se assuma que a natureza seja um agente inteligente autônomo que segue uma 217 Capítulo 8 Kant e o paradoxo da liberdade como obrigação moral Rafael Rossotto Ioris lógica própria mas sim que devemos entender que a expansão da liberdade humana esteja se consagrando na evolução histórica ainda que de modo não linear Para a realização plena das potencialidades humanas Kant afi rma que por estarem acostumados a estarem submetidos a um Senhor os indivíduos somente serão efetivamente livres se houver o estabelecimento de uma or dem de convivência racional e pacífi ca entre os Estados como base para a exis tência de uma sociedade civil universal Sétima Proposição Esse raciocínio nos remete às formulações kantianas sobre as relações internacionais das quais nos ocuparemos a seguir 84 A Paz Perpétua o Direito Cosmopolita e as Relações Internacionais No que se refere a questões de política internacional Kant é claro em di zer que nenhuma república estará segura a menos que se evitem os confl itos entre os Estados o que por sua vez somente será possível se estes passem a se relacionar de modo pacífi co com base em uma noção Cosmopolita de direito internacional O autor defende que em termos ideais a constituição de um Esta do Mundial seria o modo mais fácil de resolver a questão da guerra Ele afi rma ainda contudo que tal projeto é pouco viável uma vez que nenhum Estado iria abrir mão de sua soberania em benefício de uma fonte de autoridade global De modo similar a legalidade interna por sua vez requer a presença de um ambiente de coexistência pacífi ca no plano internacional A própria moralida de e liberdade individuais requerem portanto a transformação da lógica das relações internacionais em direção a uma situação de paz e constitucionalidade não mais defi nida como o direito internacional que se centrava nas questões da legalidadeilegalidade da guerra mas no direito Cosmopolita ou aquele que visa assegurar o valor absoluto dos seres humanos Kant 1995a 135 Kant deposita suas esperanças no fato da humanidade ser capaz de se emancipar de seus preconceitos e no fato da mesma estar ao longo da história se dando conta de que a guerra é um gasto excessivo e limitador do progresso econômico O autor rejeita a noção de uma paz precária presente na tradição Realista e fundada na noção de Equilíbio de Poder uma vez que tal contexto de paz deveria ser entendido somente como um entreato entre confl itos vindouros Para a existência de uma paz efetiva perpétua seria necessária a existência de um número sufi cientemente grande de governos Republicanos democráticos e que por meio de suas populações abdicariam do recurso à guerra como ins trumento de interação no contexto internacional Da mesma forma uma reali dade de paz sociabilidade e moralidade seria instituída por meio de instituições políticas internacionais uma vez que a mera suspensão das hostilidades entre 218 ELSEVIER Curso de Ciência Política os Estados não é em si mesma garantia de paz Desse modo seria necessário um esforço consciente e racional por parte dos governantes e governados com vistas a controlar as causas dos confl itos bélicos e a limitar sua ocorrência Assim a paz universal na perspectiva kantiana é de difícil mas não im possível obtenção dependendo para tanto de um real aperfeiçoamento das ins tituições de governo local e internacional com vistas à emancipação de todos os seres humanos As sociedades humanas são tomadas pelo autor como que predestinadas a atingirem uma situação de paz perpétua ainda que no processo existam contradições e confl itos Assim ainda que de um modo de evolução não linear pois experiências históricas particulares podem parecer contraditórias a essa dinâmica para Kant existiria um rumo na evolução do gênero humano em direção à emancipação universal Nos dois principais textos onde trata do assunto da efetivação de um pro jeto de paz universal A Paz Perpétua e Para uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita Kant defende a criação de entidades políticas regidas por regras autônomas que ele chama de Repúblicas ou democracias no sentido atual no âmbito doméstico assim como a criação de uma nova lógica de base para o direito internacional Da mesma forma ainda que o autor aponte o pa pel pedagógico historicamente exercido pelas guerras no sentido de permitir a interação de povos isolados ele entende que o rumo da Paz é inevitável pois sociedades progressivamente autogeridas darseiam conta da imoralidade dos altos custos e do efeito nefasto sobre o comércio provocado pelos confl itos internacionais Há contudo uma ambiguidade no pensamento do autor no que se refere aos seus apontamentos com relação ao modelo institucional que em es cala universal deveria permitir uma paz efetivamente perpétua Enquanto que no livro A Paz Perpétua Kant defende a formação de uma confederação univer sal de repúblicas livres como forma de evitar os confl itos internacionais na obra Para uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita a defesa se volta para a elaboração de uma constituição de valor universal Kant nos oferece ainda a primeira grande crítica ao direito internacional clássico conhecido então como das gentes conforme defendido por autores como Grotius Pufendorf e Vattel Para Kant esses autores deveriam ser toma dos como consoladores e não como proponentes da paz por serem proponen tes de uma lógica tributária da noção não de uma Paz mas de uma Guerra Perpétua uma vez que suas formulações se preocupavam não em estabelecer os princípios norteadores da paz mas sim da legitimidade da guerra ou das obrigações legais dos Estados quanto envolvidos em situações de confl ito in ternacional Para Kant deveriam existir três eixos do direito Público Direito 219 Capítulo 8 Kant e o paradoxo da liberdade como obrigação moral Rafael Rossotto Ioris do Estado Direito Internacional e o Direito Cosmopolita que considera que cada indivíduo não é membro somente de seu Estado mas também é membro de uma sociedade cosmopolita universal composta por todo o gênero humano e reconhecida no último artigo do seu projeto de paz perpétua que afi rma que o direito Cosmopolita deverá ser regido pela Hospitalidade Universal Kant 1995a 137 No mesmo texto originalmente publicado em 1795 ano em que França e Prussia celebraram a Paz da Basileia permitindo que essa nação germânica abandonasse a coalização antirrevolucionária que ela tinha fi rmado com a Áus tria e a Inglaterra e que havia três anos se opunha aos revolucionários Fran ceses numa irônica argumentação em defesa do estabelecimento de uma paz universal de caráter perpétuo Kant propõe um novo projeto de paz perpétua por meio de uma paródia aos tradicionais tratados de paz de seu tempo que se dividiam em dois tipos preliminar contendo as condições para o término das hostilidades e as condições para a celebração de uma paz defi nitiva e o tratado de paz defi nitivo propriamente dito Kant acabaria por mesclar de uma maneira original os dois modelos de tratados internacionais em um único texto conten do artigos preliminares que especifi cam as condições negativas para a paz e artigos defi nitivos onde as condições positivas para uma paz perpétua são postuladas Assim na primeira parte de A Paz Perpétua Kant expõe o que denomina de artigos preliminares ou condições negativas que deveriam balisar o esta belecimento de uma paz universalmente válida e permanente entre todos os Estados 1 Nenhum acordo de paz será considerado válido se for feito com uma reserva secreta com vistas a uma guerra futura 2 Nenhum Estado independente seja ele grande ou pequeno pode ser adquiri do por outro Estado por herança troca compra ou doação 3 Exércitos permanentes serão gradualmente abolidos 4 Nenhum débito nacional será contratado em conexão com os assuntos exter nos do Estado 5 Nenhum Estado interferirá pela força na Constituição e no governo de outro Estado 6 Nenhum Estado em guerra permitirá atos de hostilidade que tornem impos sível a mútua confi ança em uma época de paz futura Na segunda parte do texto Kant estabelece os seguintes artigos de caráter defi nitivo para uma paz perpétua entre os Estados A Constituição Civil de todos os Estados deve ser Republicana 220 ELSEVIER Curso de Ciência Política Na apresentação da justifi cativa que segue esse primeiro artigo Kant esta belece também uma distinção fundamental entre as formas de Estado e formas de Governo Por formas de Estado deveríamos entender as diferentes maneiras pelas quais um Estado estabelece seu comando ou sua soberania sobre seus sú ditos ou cidadãos A forma de organização do Estado Governo por sua vez defi niria o modelo de constituição desse mesmo Estado onde para o autor existiriam três formas possíveis de organização do poder político no que tan ge ao número de pessoas que conduzam o processo político autocracia poder centrado nas mãos de uma pessoa aristocracia nas mãos de algumas pessoas e democracia nas mãos de todos Da mesma forma Kant propõe outra classifi cação dessa vez quanto à maneira pela qual se estabelece a Constiuição que irá dirigir os assuntos políticos de cada comunidade Para o autor as constituições podem ser republicanas ou despóticas O Republicanismo seria o princípio pelo qual há a separação do poder executivo o governo propriamente dito dos outros poderes enquanto que no Despotis mo o legislativo é também exercido pelo chefe do governo que tende assumir sua própria vontade como vontade da coletividade Kant afi rma ainda que nos casos da vigência de constituições republicanas é inevitável o consentimento dos cidadãos na deliberação sobre declarações de guerra e que esses teriam grande hesitação em embarcar em tal curso de ação dado os riscos de tal projeto para suas próprias vidas Para ele somente em casos de entidades políticas não republicanas entrar em guerra é uma decisão simples e corriqueira e onde há o cumprimento dos princípios republicanos democráticos tal curso de ação ten derá a ser de pouca frequência idem 127 Em seguida o autor apresenta o que chama de segundo artigo defi nitivo O Direito das Nações deverá ser fundado numa Federação de Estados Livres Conforme apontado anteriormente nesse texto Kant não entende como viável a criação de um governo universal mas somente o estabelecimento de uma liga Confederação de Estados Livres Nesse sentido na justifi cação desse último artigo Kant faz uma interessante observação que evidencia seu modera do otimismo quando afi rma que A reverência que cada Estado faz ao conceito de direito prova que o homem possui uma grande capacidade moral ainda que adormecida no presente ibidem 129 No terceiro e último artigo Kant afi rma que O direito Cosmopolita deve guiarse pelas condições da hospitalidade universal Nesse ponto Kant é claro na sua postulação do valor absoluto da vida humana assim como na sua postulação sobre a existência de uma comunida 221 Capítulo 8 Kant e o paradoxo da liberdade como obrigação moral Rafael Rossotto Ioris de política universal composta por todo o gênero humano uma vez que a violação do direito em qualquer lugar da terra se sente em todos os outros ibidem 140 Com suas propostas de reformulação das lógicas fundacionais do direito e da política internacional com vistas à implementação de uma paz de caráter perpétuo Kant apresenta uma crítica defi nitiva à noção de Balança de Poder como princípio ordenador das Relações Internacionais Para ele esse paradig ma seria insufi ciente para a construção e manutenção da paz tanto na esfera doméstica como em escala mundial Em substituição a esse mesmo paradigma entendido pelo autor como um princípio limitado Kant propõe uma nova ló gica de interação entre os Estados e entre os indivíduos que deveria ser fundada na noção de uma cidadania universal como teria sido primeiramente proposta pela Revolução Francesa movimento que estava se consagrando como refe rência para os novos projetos políticos de natureza democrática exatamente no momento em que Kant apresenta suas propostas de redesenho políticojurídico e institucional global Como grande entusiasta dessa revolução Kant visava re defi nir também a lógica do direito internacional que até então se centrava nas questões da interação entre os Estados Direito Público Internacional de modo especial sob os temas da guerra e da paz para inserir nessa refl exão a noção da cidadania universal e assim garantir que o direito das gentes ou dos povos se tornasse de fato um garantidor da liberdade e da segurança dos indivíduos Kant deve ser visto pois como o grande defensor de uma nova noção de direito chamada de Direito Cosmopolita e que se estruturaria em três linhas de refl exão a do direito dos e entre indivíduos na esfera doméstica a do direito entre os Estados tradicional área do Direito Internacional Público conhecido então como direito das gentes ou dos povos e a do direito dos indivíduos assumi dos como um valor universal em si mesmos e constantemente colocados em um contexto de interações recíprocas de caráter global ou seja acima e abaixo das tradicionais fronteiras estatais Boucher 1998 282 Apesar de ser um dos mais sofi sticados formuladores de um modelo po líticolegal visando o estabelecimento de uma situação de paz permanente por meio da atuação de instituições internacionais Kant apresenta um discurso con traditório com relação à guerra De fato apesar de considerála um grande mal à toda a humanidade o autor também entende que historicamente a guerra teria servido como meio de promoção do progresso material além do contato inter civilizacional humano por meio da articulação do que ele chama a insociável sociabilidade dos seres humanos Para o autor a guerra tem posto povos em contato com regiões até então inabitadas ou desconhecidas Também tem sido a 222 ELSEVIER Curso de Ciência Política guerra que tem estabelecido novos contatos e relacionamentos entre Estados e povos Kant 1986 47 A guerra entre os Estados é assumida pois como tendo desempenhado um papel na promoção de melhores padrões de interação entre os mesmos uma vez que a devastação das guerras despertaria nos indivíduos a noção da neces sidade de interações mais duráveis e pacífi cas Isto não quer dizer contudo que Kant aceite a noção jurídica vigente em sua época e que consagrava o direito de guerra desde que para fi ns defensivos e em respeito às leis internacionais De fato para Kant uma paz defi nitiva que somente pode derivar de novos arranjos institucionais SociedadeFederação de Nações entre Estados Livres Repúbli cas deve ser entendida com um dever moral por ser précondição para o esta belecimento do Reino dos Fins onde todos os seres humanos se tratarão como um fi m em si mesmo e não mais como instrumento para a realização da vontade de cada um Assim em seu otimismo moderado que vê na evolução histórica o desenlace progressivo de um mundo composto por indivíduos livres Kant entende de modo similar ao que já havia sido argumentado por Grotius que a proliferação de relações econômicas entre os Estados serviria como impulso adi cional em acréscimo à crescente percepção dos altos custos e da imoralidade da guerra para o estabelecimento de uma paz de caráter perpétuo 85 Kant na Tradição do Pensamento Político Internacional Toda a refl exão política proposta por Kant tem sua realização teórica má xima e culminação prática em sua proposta de convivência pacífi ca permanen te entre os Estados e entre os indivíduos Nesse sentido podemos afi rmar que em Kant a refl exão de Relações Internacionais seria a culminação fi nal e mais elaborada da sua refl exão política A doutrina da Paz Perpétua de Kant con tudo não é importante dada sua originalidade uma vez que autores como o Abée de SaintPierre e até mesmo Rousseau já haviam tratado do tema mas sim por sua base institucional nova e que vincula o ambiente político doméstico ao contexto internacional Desse modo os ensinamentos políticos kantianos devem sempre ser entendidos na interação entre governos Republicanos democráti cos e arranjos estruturas políticas internacionais Hassner 1987 Da mesma forma o republicanismo kantiano se insere nessa mesma linha de refl exão como meio de garantir que a manutenção da paz de modo efeti vo seja realizada por meio do equilíbrio entre o direito de autodeterminação de cada estado soberania e a noção de direitos cosmopolitas hoje conhecidos como direitos universais de cada indivíduo Toda a refl exão política de Kant é de base moral e sua visão sobre as relações internacionais se funda na noção de 223 Capítulo 8 Kant e o paradoxo da liberdade como obrigação moral Rafael Rossotto Ioris um indivíduo moral e no entendimento de direito internacional que tem como objetivo a efetivação de um padrão emancipatório democrátivo para as intera ções de todos os indivíduos em escala planetária Kant foi o primeiro a reconhecer o nexo existente entre a preservação da paz como resultado da deliberação política por parte dos indivíduos mais afe tados pela dinâmica da guerra Foi ele também quem claramente apontou não para a inexistência de políticas externas violentas por parte de países formal mente democráticos mas para o vínculo entre a efetiva deliberação por partes das populações atingidas pelas políticas externas e a desistência do recurso à violência nessas mesmas políticas Kant é pois o mais sofi sticado proponente da formulação que viria a ser conhecida mais tarde como a Teoria da Paz De mocrática ou a noção ainda em debate dentro da refl exão teórica em Relações Internacionais de que democracias não entram em guerra contra outras demo cracias Czempiel 1997 Da mesma forma para Kant não haverá paz a menos que exista uma efe tiva deliberação sob moldes democráticos das decisões de política externa A existência de uma democracia efetiva e não somente uma democracia do ponto de vista formal onde as conquistas eleitorais não implicam na real possibilidade de se exercer uma efetiva infl uência na formulação da política externa não seria garantia da paz uma vez que essa dependeria também do estabelecimento de arranjos políticos que em escala global minimizem a realidade de anarquia e autodefesa da realidade internacional sendo pois um projeto fundado em dois níveis ou realidades codependentes o doméstico e o internacional Assim a rica refl exão política proposta por Kant estabelece a noção de que somente por meio de ações políticas que possam ser consideradas como efetivamente morais ou seja que sirvam como fundamento para a ação de todos os seres humanos e que tanto no contexto doméstico quanto internacional garantam a autonomia de todos os membros seria possível a efetivação de uma realidade política glo balmente democrática livre e garantidora de uma paz verdadeiramente moral e perpétua 86 Perguntas para Reflexão 1 Como o pensamento de Kant se insere na tradição filosófica sobre as con dições de construção de um conhecimento efetivo sobre a realidade 2 Por que Kant critica a validade de padrões morais que dependem de ele mentos empíricos ou subjetivos 224 ELSEVIER Curso de Ciência Política 3 Qual a argumentação proposta por Kant em sua defesa em favor de um projeto de efetivação de uma moralidade de valor universal 4 Por que poderíamos afirmar que o pensamento político de Kant se estru tura com base em suas propostas morais 5 Você acredita que a junção entre moral e política proposta por Kant é algo válido Seria algo viável 6 Por que Kant pode ser considerado como um pensador político liberal 7 Qual a importância da noção de emancipação individual no pensamento político kantiano 8 Como Kant se insere dentro da tradição de pensamento político Contra tualista 9 O que Kant entende como sendo o papel da democracia para a constru ção de uma situação universal de paz permanente 10 Como você avalia o projeto kantiano de construção de uma Paz Perpé tua Seria algo realizável Justifique Bibliografia BOUCHER David Political Theories of International Relations Oxford Oxford University Press 1998 BRENDA Julien O Pensamento vivo de Kant São Paulo Martins Editora 1961 CZEMPIEL ErnstOtto O Teorema de Kant e a Discussão Atual sobre a Relação entre Democracia e Paz In Valério Rohden Org Kant e a Insti tuição da Paz Porto Alegre EdUFRGSGoethe Institut 1997 HASSNER J Immanuel Kant In L Strauss J CROPSEY History of Poli tical Philosophy Chicago University of Chicago Press 1987 KANT Immanuel Critica de la Razon Práctica Coleccíon Austral Madrid EspasaCalpe 1975 A Crítica da Razão Pura Coleção Os Pensadores São Paulo Ed Abril 1980 Ideia de uma Historia Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita São Paulo Brasiliense 1986 Fundamentação da Metafísica dos Costumes Textos Filosófi cos Lisboa Edições 70 1995 225 Capítulo 8 Kant e o paradoxo da liberdade como obrigação moral Rafael Rossotto Ioris A Paz Perpétua e Outros Opúsculos Textos Filosófi cos Lisboa Edições 701995a Resposta à pergunta Que é o Iluminismo In A Paz Perpétua e Ou tros Opúsculos Sobre a expressão corrente Isto é correcto na teoria mas nada vale na prática In A Paz Perpétua e Outros Opúsculos NOUR Soraya A Paz perpetua de Kant fi losofi a do direito internacional e das relações internacionais Sao Paulo Martins Fontes 2004 REISS Hans Org Kants Political Writings Cambridge Cambridge Univer sity Press 1991 TAYLOR Charles Kants Theory of Freedom In Charles TAYLOR Org Philosophy and the Human Sciences Cambridge Cambridge University Press 1985 Custom curtain orders may take longer to produce two to three weeks Make sure to get correct measurements before placing an order Keep in mind the style of curtain heading pencil pleat eyelet etc when measuring for width Always measure the width of the track or pole For length measure from curtain track or pole to the floor If curtains are pooling add extra length accordingly Not all curtains include lining Always consider lining for added light control and insulation Check for return windows and conditions on custom orders before purchasing Capítulo 9 Hamilton Madison e Jay os pressupostos teóricos do federalismo moderno Ricardo Ismael1 91 O debate sobre a distribuição territorial do poder político O federalismo contemporâneo pode ser caracterizado através de dois as pectos principais Representa uma distribuição constitucional de poder entre o governo central e as unidades governamentais constituintes de tal forma que todos podem compartilhar dos processos de produção e implementação de polí ticas públicas Por outro lado ele pode ser visto como uma aliança entre corpos políticos O termo federal é derivado do latim foedus o qual signifi ca aliança Doutor e Mestre em Ciência Política pelo IUPERJ Professor e pesquisador do Departamento de Sociologia e Política da PUCRio respondendo pela Coordenação de Graduação e integrando o corpo docente do Pro grama de PósGraduação em Ciências Sociais Autor do livro Nordeste A força da diferença Os impasses e desafi os da cooperação regional 2005 Nos últimos anos tem trabalhado com os seguintes temas Federa lismo e Desigualdades Regionais em Perspectiva Comparada Instituições Políticas e Avaliação de Políticas Públicas Estado Mercado e Desigualdade Social Contato ricismaelhotmailcom 228 ELSEVIER Curso de Ciência Política Dessa forma é possível dizer que o arranjo federativo é estabelecido e regulado por uma aliança cujas conexões internas refl etem um tipo particular de divisão que deve prevalecer entre os participantes isto é cada um reconhece a integri dade de cada associado e busca promover um tipo especial de unidade entre eles1 A distribuição territorial do poder político é o tema principal do debate em torno do federalismo Daí deriva também sua atualidade tendo em vista a emergência sistemática de confl itos políticos de natureza territorial no mundo contemporâneo a tendência de fortalecimento dos processos de descentraliza ção no âmbito dos Estados Nacionais e não menos importante a ampliação da competição econômica entre as unidades subnacionais estimuladas pela globa lização Além disso o Estado Federal continua sendo uma forma muito atraente de organização do Estado especialmente quando se trata de um país de grande dimensão territorial ou constituído por unidades territoriais associadas a dife rentes etnias Como sabemos o modelo federalista pretende garantir a unidade nacional e territorial preservando a diversidade existente entre os estadosmem bros O livro O federalista constituiuse no primeiro esforço teórico para com preender essa nova forma de organização do Estado Moderno Não por acaso tornouse um clássico para compreender as origens do federalismo norteame ricano contribuindo para esclarecer as raízes das diferentes federações espalha das pelo mundo e por conseguinte suas diferenças e aproximações em relação ao modelo implantado nos Estados Unidos Neste momento cumpre recuperar o debate em torno dos artigos escritos pelos federalistas norteamericanos Ha milton Madison e Jay tratando com especial atenção o período histórico que vai da independência da GrãBretanha passando pela aprovação dos Estatutos da Confederação e chegando à Convenção Federal de 1787 92 Antecedentes históricos do federalismo norteamericano A literatura especializada referente à evolução dos sistemas federais re gistra experiências federalistas na Grécia durante a Antiguidade bem como na Itália e na Alemanha no transcorrer da Idade Média Apesar disso é possível dizer que o federalismo moderno desenvolveuse a partir dos Estados Unidos da América tendo como marco inicial a Constituição Federal elaborada entre maio e setembro de 1787 na Filadélfi a Tratase assim de uma forma particu lar de organização do Estado oriunda do mundo extraeuropeu derivada dos 1 Esta é a perspectiva teórica do cientista político Daniel J Elazar uma referência obrigatória para entender o federalismo no mundo contemporâneo Elazar 1994 229 Capítulo 9 Hamilton Madison e Jayos pressupostos teóricos do federalismo moderno Ricardo Ismael acontecimentos políticos que marcaram a história norteamericana no fi nal do século XVIII Dois arranjos tipicamente federais com base territorial estiveram presen tes no período posterior à declaração de Independência dos Estados Unidos O primeiro deles aprovado no Congresso Continental de 1777 reunia treze estados norteamericanos em uma confederação A estrutura adotada conferia ampla autonomia às unidades estaduais e um limitado papel à confederação a qual tinha poucos meios para impor suas decisões aos estados e também não podia se dirigir diretamente aos cidadãos Foram necessários apenas alguns anos para que aumentasse a oposição ao modelo então em vigor principalmente nos lugares onde não predominavam as atividades rurais e o trabalho escravo ou seja a contestação vinha das economias estaduais mais modernas situadas ao norte do país A federação foi o segundo sistema federal adotado após a con quista da Independência tendo surgido durante a Convenção Federal de 1787 Naquela oportunidade foi elaborada a primeira Constituição Nacional com a participação de representantes dos estados de New Hampshire Massachusetts Connecticut Nova York Nova Jersey Pensilvânia Delaware Maryland Virgí nia Carolina do Norte Carolina do Sul e Geórgia Diferente da confederação o novo modelo reduzia a autonomia dos esta dos e ampliava as atribuições do poder central estabelecendo novas bases para as relações entre os membros do pacto territorial Entretanto o arranjo fede rativo também não se confundia com o unitarismo O processo de centraliza ção tinha limites bem defi nidos representando assim uma forma inovadora de convivência entre a União e as unidades estaduais e destas entre si em que o nível federal assumia responsabilidades sem esvaziar os poderes das unidades estaduais A nova estrutura proposta pela Convenção Federal de 1787 teve de ser ratifi cada por todos os estados norteamericanos sendo Rhode Island o últi mo a aprovála em 1790 93 A defesa pública da nova Constituição federal No processo de ratifi cação da primeira Constituição norteamericana des tacamse os ensaios publicados na imprensa de Nova York por Alexander Ha milton James Madison e John Jay entre outubro de 1787 e abril de 1788 sob o pseudônimo coletivo de Publius Alexander Hamilton 17571804 havia nascido nas Antilhas e chegou aos Estados Unidos ainda na adolescência Participou ativamente da guerra pela independência ocupando o posto de ajudantede campo de George Washington comandante das forças nacionais que enfrenta ram os ingleses Estava presente também na Convenção Federal de 1787 e foi o 230 ELSEVIER Curso de Ciência Política idealizador da iniciativa que redundou na publicação de artigos voltados para a defesa da nova Constituição norteamericana tendo inclusive convidado os outros dois autores Posteriormente ocupou o cargo de Secretário do Tesouro no governo George Washington primeiro presidente da República James Madison 17511836 nasceu no estado da Virgínia É considerado o pai da Constituição dos Estados Unidos por conta de sua atuação na reunião que elaborou o texto constitucional marcada pela formulação de ideias inovado ras e por uma grande habilidade política Criou com Thomas Jefferson o Partido Republicano tendo ocupado em dois mandatos a presidência Estados Unidos John Jay 17451829 nasceu no estado de Nova York Foi o negociador principal do tratado de paz fi rmado com a GrãBretanha em 1783 tendo atuado com destaque na elaboração Constituição de seu estado de origem onde tam bém terminou sendo conduzido ao cargo de governador2 Os três federalistas estavam empenhados em argumentar a favor da subs tituição da confederação pela federação estabelecendo uma nova orientação para a distribuição territorial do poder político Entretanto havia diferenças sig nifi cativas entre eles Hamilton preferia um arranjo político mais centralizado ou seja defendia por convicção um Estado Unitário como meio para o progresso econômico nacional Entretanto entre o modelo em vigor e o novo arranjo pro posto fi cava com este último de sorte que passou a defender o Estado Federal pois enxergava na federação o caminho para a paz e a segurança do país Por sua vez o sistema federal defendido por Madison afastavase das ideias descentrali zantes pregadas por Thomas Jefferson e do unitarismo defendido inicialmente por Hamilton O federalismo norteamericano surgia nesta perspectiva asso ciado ao movimento de centralização política assegurando o fortalecimento do poder no âmbito federal É certo porém que o federalismo emergente também deveria distanciarse de uma centralização excessiva para repetir os contornos do Estado Unitário no qual desapareceriam os valores relacionados ao autogo verno presentes na cultura política dos estadosmembros O modelo federalista proposto por Madison procurava portanto conciliar duas necessidades opos tas centralizar para consolidar a formação do Estado e limitar a ação deste para assegurar a descentralização territorial do poder político 94 A federação como resultado de um complexo processo político Os artigos de Hamilton Madison e Jay foram reunidos no livro O federalis ta no qual é apresentado o referencial clássico do federalismo norteamericano 2 A trajetória na vida pública dos autores de O Federalista expressa bem suas qualidades em particular a capacidade de conciliar a imaginação intelectual e a sensibilidade política Kramnick 1993 231 Capítulo 9 Hamilton Madison e Jayos pressupostos teóricos do federalismo moderno Ricardo Ismael O desenho institucional proposto na Constituição Nacional de 1787 segundo a descrição dos federalistas apresentava as seguintes características principais a tem como inspiração as contribuições teóricas sobre os meios para a correção dos males dos governos republicanos Entre elas destaque para a democracia representativa de Locke e a teoria da separação dos poderes de Montesquieu neste caso procurando garantir a estabilidade política através de um sistema de controles mútuos entre os Poderes Executivo Legislativo e Judiciário b estabe lece uma república federativa em substituição à antiga confederação na qual o governo central ganha poderes em relação aos estados embora ainda seja bas tante expressiva a autonomia dos mesmos c introduz a representação política nacional e mantém a representação política estadual de modo que os estados devem conviver com dois grupos distintos de representantes d defi ne que o Congresso Nacional deve ser bicameral constituído de uma Câmara dos Depu tados em que o número de membros de cada estado é proporcional à sua popu lação e de um Senado no qual cada unidade estadual possui o mesmo número de participantes e estabelece o presidencialismo como sistema de governo É importante chamar a atenção para alguns aspectos do processo político subjacente à formulação do modelo original do federalismo norteamericano Não se pode esquecer que a estrutura federativa representou sobretudo uma saída para o impasse em torno do pacto territorial A inovação alcançada no direito constitucional foi também resultado de uma dinâmica complexa na qual forças políticas defensoras do unitarismo e da completa descentralização saíram derrotadas As ideias de Locke estiveram presentes durante todo o processo polí tico norteamericano no fi nal do século XVIII infl uenciando a guerra contra a GrãBretanha a declaração de Independência e os ordenamentos jurídicos estaduais na confederação Entretanto a Constituição Nacional elaborada em 1787 terminou deixando de lado parte das refl exões de Locke sobre os direitos individuais na sociedade política Não foi enfrentada a questão do trabalho escravo na economia norteamericana o que signifi cava uma clara violação daqueles direitos É certo que essa decisão da Convenção Federal facilitou a adesão dos estados do Sul ao texto constitucional pois terminou deixando a critério dos estados a manutenção ou não da escravatura Como se sabe essa questão retornaria de forma dramática na segunda me tade do século XIX durante a Guerra de Secessão A derrota dos sete estados do sul do país denominados Estados Confederados da América abriu espaço para a provação da décima terceira emenda constitucional em 1865 abolindo a escra vidão em todo o território nacional Abraham Lincoln governante dos Estados 232 ELSEVIER Curso de Ciência Política Unidos nesse período conseguiu vencer um dos mais duros testes contra o ar ranjo federativo adotado no fi nal do século XVIII Talvez por isso mesmo seja considerado por muitos como o maior presidente da história norteamericana É difícil imaginar por outro lado a ratifi cação da Constituição nacional nos estados sem que houvesse a preservação de boa parte dos poderes que pos suíam na confederação É possível dizer dessa forma que a Convenção Federal de 1787 rejeitou a linha centralizadora como forma de viabilizar o referendum posterior nas unidades estaduais A relação entre a União e os estados no texto constitucional revela uma dupla soberania3 ou seja diferentemente do modelo unitário a federação pode ser vista como uma associação de unidades sobera nas em que a soberania da União convive com a dos outros participantes do pacto federativo A autoridade do governo federal por exemplo sobre os esta dos e seus cidadãos tem seus limites defi nidos pela Constituição Um último aspecto do processo político merece ser registrado Na Con venção Federal de 1787 os pequenos estados foram tomados pela preocupa ção de serem dominados pelos grandes caso a representação no Legislativo federal fosse baseada apenas em critérios populacionais A solução encontra da foi adotar um Congresso Nacional bicameral no qual a representação na Câmara dos Deputados seria proporcional à população e por ela escolhida enquanto no Senado cada estado teria igualmente dois representantes indi cados pelas Assembleias estaduais O Poder Legislativo portanto reuniria uma representação política do eleitorado como um todo e outra dos pró prios estados Em outras palavras o federalismo surge combinando no Con gresso Nacional representações de natureza distinta uma delas típica das democracias modernas a representação nacional e uma outra com base no pacto territorial a representação federal O Senado portanto pode ser visto como uma Câmara Territorial em que a tarefa principal é a manutenção da associação entre os estados que deu origem à federação A instituição deve procurar resguardar os direitos dos estados menos populosos igualandoos em número de representantes aos grandes para garantir um equilíbrio federativo e impedir a opressão das unidades estaduais mais populosas Essa característica do federalismo emergente no final do século XVIII entretanto pode trazer prejuízos para 3 A ideia de dupla soberania é mais usada na ciência política O direito constitucional por exemplo não costuma aceitála Não considera que os estadosmembros possuam soberania Entende que os mesmos gozam de autonomia ou seja são livres no campo deixado pela Constituição Nacional Os estados membros estão subordinados ao Estado Federal o qual representa a soberania do país Ferreira Filho 1992 p 4546 233 Capítulo 9 Hamilton Madison e Jayos pressupostos teóricos do federalismo moderno Ricardo Ismael a democracia representativa Os estados menores podem por exemplo im pedir no Senado a aprovação de qualquer iniciativa contra seus interesses iniciada na Câmara dos Deputados Nesse caso poderíamos ter a menor parte da população fazendo valer sua vontade sobre a maioria ou conse guindo vetar as propostas que viessem desta parte4 95 As contribuições dos federalistas norteamericanos para o avan ço da ciência política e do direito constitucional Os artigos do livro O federalista não buscavam apenas descrever o novo sistema federal A tarefa de convencer os estados a ratifi carem o texto consti tucional elaborado em 1787 exigiu um esforço teórico de seus autores parti cularmente no campo da ciência política e do direito constitucional Era pre ciso convencer a opinião pública das potencialidades da estrutura federativa perante a confederação destacando sobretudo sua capacidade de apoiar o governo republicano e de contribuir para um projeto nacional 951 As debilidades de um sistema federal excessivamente descentralizado O Artigo no 1 escrito por Hamilton procurou descrever o projeto em vista pelos três federalistas salientando os temas que seriam tratados na série de arti gos que ali tinha seu ponto de partida Proponhome a discutir em uma série de artigos os seguintes temas de grande interesse A utilidade da União para vossa prosperidade política A insufi ciência da atual Confederação para preservar essa União A necessidade de um governo pelo menos com vigor similar ao do proposto para atingir tal objetivo A conformidade da Constituição proposta com os verdadeiros princípios do governo republicano Sua analogia com a Constituição de vosso próprio estadomembro e fi nal mente a segurança adicional que sua adoção propiciará à preservação desta forma de governo à liberdade e à prosperidade O federalista Artigo no 1 p 36 Nos Artigos nos 21 e 22 ainda expostos por Hamilton foram enumeradas com clareza e objetividade as fragilidades da Confederação sistema federal em vigor desde a independência da GrãBretanha A crítica era inicialmente diri gida a inoperância de suas resoluções pois não passavam de recomendações 4 Alfred Stepan adverte que o Senado na versão de uma Câmara Territorial adotada pelos federalistas norteamericanos pode permitir eventualmente restrições ao exercício democrático sobretudo quando possui poderes maiores do que aqueles atribuídos à Câmara dos Deputados Stepan 1999 234 ELSEVIER Curso de Ciência Política diante da ausência de poderes para aplicar penalidades aos estadosmembros que não as seguissem O defeito mais evidente da subsistente Confederação é a total inexis tência de sanções em suas leis Os Estados Unidos constituídos da ma neira como o foram não têm poderes para exigir obediência ou punir qualquer reação às suas resoluções quer através da aplicação de mul tas pecuniárias pela suspensão ou anulação de privilégios quer por qualquer outro meio constitucional Não há uma delegação expressa de autoridade capaz de permitir o uso da força contra os membros deli quentes O federalista Artigo no 21 p 141 Outra limitação que a Confederação enfrentava era sua dependência dos recursos das unidades estaduais pois não tinha autorização para arrecadar im postos O princípio de regulamentar as contribuições dos estadosmembros para o Tesouro Nacional através de quotas é outro erro fundamental para a Confederação Não há um processo de se evitar tal incon veniente a não ser autorizando o governo nacional a arrecadar suas próprias rendas com seus próprios meios O federalista Artigo no 21 p 143144 Mais grave porém era a impotência da associação política vigente dian te da possibilidade de fi rmar acordos comerciais com outros países Como não podia representar os estadosmembros nas relações internacionais terminava inibindo as chances de uma participação maior da nação no comércio exterior Dos estados do Norte vinha uma grande insatisfação por conta de sua vocação comercial e de ambições na indústria nascente Hamilton conhecia bem esses interesses expressando assim seu inconformismo A inexistência de um poder para regular o comércio é reconhecida una nimemente como sendo um deles É na verdade evidente mesmo ante um exame superfi cial que não outro problema dizendo respeito aos interesses do comércio ou das fi nanças exija com mais vigor uma supervisão federal Sua ausência já representou um obstáculo à lavra tura de vantajosos tratados com potências estrangeiras e deu margem a insatisfações entre os estadosmembros Nenhuma nação familiariza da com natureza da nossa associação política seria bastante insensata para negociar acordos com os Estados Unidos envolvendo privilégios de alguma importância que ela devesse conceder enquanto estivesse ciente de que os compromissos de parte da União poderiam a qualquer 235 Capítulo 9 Hamilton Madison e Jayos pressupostos teóricos do federalismo moderno Ricardo Ismael momento ser violados por seus membros O federalista Artigo no 22 p 147 Os Estatutos da Confederação também não previram a presença de um exército nacional Dessa forma a defesa do território contra alguma agressão estrangeira estava na dependência da disponibilidade de tropas estaduais tor nando operosa e incerta a ação do poder central nessas circunstâncias A competência para mobilizar exércitos é segundo a mais óbvia inter pretação das cláusulas da Confederação apenas o poder de requisitar dos estadosmembros as respectivas contribuições em homens Tal prá tica no decurso da última guerra encontrou toda sorte de obstruções à montagem de um vigoroso e econômico sistema de defesa dando nascimento a uma competição entre os estadosmembros que criaram uma espécie de leilão de homens O federalista Artigo no 22 p 148 A preocupação com a preservação da unidade territorial e com a inte gração política dos estadosmembros apareceu na contribuição de John Jay em particular no Artigo no 2 O federalista procurou mostrar que sem a presença de um governo nacional é grande o risco de separatismos e de fragmentação ter ritorial pois existe a possibilidade de forças centrífugas serem estimuladas por interesses estrangeiros Todavia qualquer que seja nossa situação solidamente unidos sob um governo nacional ou repartidos em certo número de confederações o certo é que todos os países estrangeiros estarão bem a par do que está acontecendo e agirão de acordo com suas conveniências Se porém nos encontrarem privados de um governo atuante cada esta domembro agindo certo ou errado conforme seus dirigentes julgarem conveniente ou repartido em três ou quatro repúblicas ou confede rações independentes e provavelmente discordantes uma favorável à GrãBretanha outra à França uma terceira à Espanha e talvez jogadas umas contra as outras por esses três países que pobre e lamentável fi gura a América apresentará O federalista Artigo no 2 p 48 John Jay ainda no Artigo no 2 procurou vincular a prosperidade econô mica à manutenção da unidade nacional que para ele só estaria assegurada com a implantação da Constituição Federal Aproveitou a oportunidade portanto para atacar os defensores da Confederação na passagem a seguir Até recentemente tem sido opinião geral e não contraditada que a prosperidade do povo da América depende de ele continuar fi rme mente unido os desejos as preces e os esforços de nossos melhores e mais prudentes cidadãos têm sido constantemente orientados nesse 236 ELSEVIER Curso de Ciência Política sentido Todavia agora aparecem políticos que insistem em qualifi car esta posição como errônea e que em vez de buscar a seguran ça a felicidade na União devemos procurala em uma divisão dos estadosmembros em distintas confederações e soberanias Por mais extraordinária que esta doutrina possa parecer ela tem seus adeptos certas personalidades que até há pouco a combatiam estão agora en tre estes Quaisquer que possam ser os argumentos e convicções que revistam tal mudança certamente não seria aconselhável que o povo em geral adotasse novas doutrinas políticas sem estar plenamente convencido de que elas são baseadas na verdade e em sadia orienta ção O federalista Artigo no 2 p 37 952 A República Federativa como uma associação de repúblicas unitárias Os federalistas deveriam ser capazes de enfrentar o debate sobre a conve niência da instalação do governo republicano num país de grandes dimensões territoriais como era o caso dos Estados Unidos Signifi cava neste caso dialo gar com um conjunto de pensadores europeus com destaque para Montesquieu Hamilton no Artigo no 9 sugeriu que a República Federativa que se buscava im plantar se aproximava de uma associação de Repúblicas bem diferente da ideia de um único governo republicano administrando todo o território nacional Foi mais longe quando procurou mostrar que não se encontra no livro O espírito das leis de Montesquieu uma oposição à proposta de uma aliança política entre Repúblicas Unitárias Quando Montesquieu recomenda uma pequena extensão territorial para as repúblicas os exemplos que ele tinha em vista apresentavam áreas bem menores que a de qualquer de nossos estadosmembros com poucas exceções Virgínia Massachusetts Pensilvânia New York Ca rolina do Norte ou Geórgia nenhum deles pode ser comparado com os modelos sobre os quais ele raciocinava e que traduziam os dados em que se apoiava Tão distantes estavam as sugestões de Montes quieu de refl etirem uma oposição à União dos estadosmembros que ele explicitamente cita uma República Confederada como solução para ampliar a esfera do governo popular e reconciliar as vantagens da mo narquia com as do republicanismo O federalista Artigo no 9 p 7273 Alexis de Tocqueville também chamou atenção para os aspectos inova dores da República Federativa adotada nos Estados Unidos no fi nal do século XVIII Em sua maior obra A democracia na América o estudioso francês discutiu a Constituição Federal de 1787 entre outros temas abordados referentes à socieda 237 Capítulo 9 Hamilton Madison e Jayos pressupostos teóricos do federalismo moderno Ricardo Ismael de norteamericana É importante mencionar neste momento sua interpretação do papel do sistema federal e a respeito das condições reunidas pelos Estados Unidos o que permitiu a implantação do federalismo naquele país As paixões fatais às repúblicas crescem segundo Tocqueville com a ex tensão do território Não se deve dizer que seja impraticável como alguns afi r mam a existência de tal forma de governo em uma nação de grande dimensão territorial No entanto a República estará muito menos exposta na pequena do que na grande nação O bemestar e a liberdade dos homens é também maior nas nações de pequeno tamanho do que nas maiores Na verdade as vanta gens das grandes nações aparecem em outros aspectos da realidade como por exemplo nas contribuições para a cultura e para a civilização na distância que consegue do egoísmo das localidades e principalmente no confronto com ou tras grandes nações Os pequenos povos muitas vezes não resistem diante dos confl itos contra povos maiores o que signifi ca dizer que sua própria existência diferentemente das grandes nações está sempre ameaçada Tocqueville acreditava que o modelo federalista foi criado para unir as vantagens das pequenas e das grandes nações bem como para fazer o gover no republicano prosperar em um país de tamanho territorial como os Estados Unidos da América Suas observações mostravam que a União não iria se sobre carregar de tarefas preservando os aspectos da cultura política dominante que deixava a cargo das unidades estaduais o papel principal no processo decisório especialmente quando se tratava dos assuntos que estimulavam a cidadania O federalismo portanto tinha as seguintes características Foi para unir as diversas vantagens que resultam da grandeza e da pe quenez das nações que se criou o sistema federativo A União é uma grande república quanto à extensão mas de certa forma seria possível assimilála a uma pequena república por causa do pouco número de objetos de que seu governo se ocupa Seus atos são importantes mas raros Como a soberania da União é tolhida e in completa o uso dessa soberania não é perigoso para a liberdade A União é livre e feliz como uma pequena nação gloriosa e forte com uma grande Tocqueville 2005 p 182184 Por outro lado a mudança proposta é alvo de algumas críticas do pes quisador francês Em primeiro lugar ressalta que o modelo federalista repousa sobre uma teoria complicada O arranjo de dupla soberania impede que os go vernos se assentem sobre uma ideia fácil acessível ao povo e que possa ser tra balhada no legislativo sem maiores problemas Em segundo lugar destaca que o fracionamento da soberania debilita o governo da União A centralização gover 238 ELSEVIER Curso de Ciência Política namental é incompleta o que pode trazer sérios problemas em caso de agressão estrangeira É importante lembrar que para Tocqueville a centralização poderia ser governamental ligada às leis gerais e à relação com os estrangeiros e admi nistrativa associada aos negócios públicos A descentralização administrativa presente no federalismo era positiva pois estimulava a participação social e por conseguinte poderia garantir o melhor funcionamento da democracia re presentativa A frágil centralização governamental no sistema federal porém debilitava as ações da União particularmente nas circunstâncias de um confl ito externo Em terceiro lugar a soberania dos estados é real natural e nasceu junto com os indivíduos Apresentase no cotidiano sendo percebida sem maior es forço A soberania da União é abstrata artifi cial e não chega aos cidadãos É por assim dizer uma obra por fazer uma ausência a ser preenchida As críticas servem para que Tocqueville alerte sobre a necessidade de cer tas condições para a inserção do sistema federal em um determinado país É pre ciso por exemplo que haja certa homogeneidade de hábitos e costumes entre as unidades estaduais participantes Além disso o país não deve estar localizado em zonas de confl ito onde a centralização governamental é fundamental para derrotar seus inimigos e garantir a própria sobrevivência Estas duas condições estavam presentes segundo Tocqueville no contexto norteamericano posterior à Independência do país Nessas circunstâncias os Estados Unidos foram capa zes de dar início à primeira experiência federativa e diferentemente de outros povos poderiam assegurar as virtudes do modelo federalista 953 Novos mecanismos institucionais para um mundo movido por interesses A evolução dos mecanismos institucionais para garantir maior estabilida de política aos governos republicanos foi o tema abordado por Hamilton por ocasião do Artigo no 9 O arranjo federativo apareceu naquela oportunidade como instrumento adicional somandose a outros meios introduzidos pela ciên cia política para remediar os males dos governos republicanos O modelo fe deralista deveria funcionar como uma barreira contra as facções e insurreições internas assegurando maior estabilidade política aos governos populares A ciência da política entretanto como quase todas as demais ciências progrediu enormemente A efi cácia de vários princípios é agora bem conhecida compreendida em contraste com seu desconhecimento total ou interpretação errônea por parte de nossos antepassados A distribui ção correta do poder entre os diferentes departamentos a adoção do sistema de controles legislativos a instituição de tribunais integrados por juízes não sujeitos a demissões sem justa causa a representação do 239 Capítulo 9 Hamilton Madison e Jayos pressupostos teóricos do federalismo moderno Ricardo Ismael povo no Legislativo por deputados eleitos diretamente tudo constitui novidades resultantes dos acentuados progressos dos tempos moder nos em busca da perfeição Criaramse assim meios e meios poderosos permitindo assim que sejam assegurados os méritos do governo repu blicano e reduzidas ou evitadas suas imperfeições A este elenco de particularidades que tendem a melhorar os sistemas populares de go verno civil aventurome ainda que possa parecer prematuro a acres centar mais uma relativamente ao princípio que fundamentou uma objeção à nova Constituição refi rome à ampliação da órbita na qual tais sistemas têm de girar em atenção às dimensões de determinado Estado ou às da consolidação de vários estadosmembros pequenos em uma grande Confederação O federalista Artigo no 9 p 72 O Artigo no 10 escrito por Madison também tratou da questão da esta bilidade política Nesse momento o federalista natural do estado da Virgínia revelaria toda sua capacidade para compreender uma ordem social movida por interesses legítimos ou não os quais não poderiam ser suprimidos nem tam pouco podiam ser deixados à própria sorte O controle sobre os efeitos das facções foi um dos eixos principais da ar gumentação de Madison servindo também de justifi cativa para sublinhar as vantagens do arranjo federativo pois entre as vantagens prometidas por uma União bem constituída nenhuma merece ser mais detalhadamente acentuada do que sua tendência para conter e controlar a violência das facções O federa lista Artigo no 10 p 78 O conceito de facção é apresentado no início da sua comunicação sendo defi nido como um grupo de cidadãos representando quer a maioria quer a minoria do conjunto unido e agindo sob um impulso comum de sentimentos ou de interesses contrários aos direitos dos outros cidadãos ou aos interesses permanentes e coletivos da comunidade O federalista Artigo no 10 p 78 Apesar das consequências indesejáveis que as ações facciosas podem tra zer Madison advertiu que não é possível eliminálas pois isto signifi caria afas tarse dos princípios liberais que devem nortear a própria Constituição Federal A remoção das causas das facções restringiria a liberdade de organização e a liberdade de pensamento aspectos fundamentais da tradição liberal defendida por Locke A conclusão portanto é que as causas da facção não podem ser removidas restando procurar remédio nos meios de controlar seus efeitos O federalista Artigo no 10 p 80 A alternativa que se apresentava era por um lado fortalecer a democracia representativa menos vulnerável às facções do que a democracia direta Adi 240 ELSEVIER Curso de Ciência Política cionalmente seria útil a representação política nacional aspecto intrínseco ao modelo federalista em discussão A presença de um Congresso Nacional difi cul taria a ação das facções por conta de duas razões principais Em primeiro lugar porque permite ampliar o número de partidos políticos na discussão dos temas ou seja haveria mais diversidade partidária no âmbito nacional do que no es tadual tornando mais difícil a presença de ações facciosas no Legislativo Em segundo lugar porque afasta por assim dizer os deputados federais e os sena dores dos seus estados de origem reduzindo a pressão exercida pelos interesses locais onde a presença das facções se manifesta com frequência Nesse sentido os representantes federais são estimulados a pensar em um projeto nacional de longo prazo que harmonize os diversos interesses envolvidos contribuindo para consolidação da unidade política do país A infl uência de líderes facciosos pode provocar incêndios nos respec tivos estadosmembros mas não será capaz de alastrálos entre os de mais Uma seita religiosa pode degenerar em facção política em par te da Confederação mas a variedade de seitas dispersas por todo o seu território será de molde a preservar os conselhos nacionais contra quaisquer perigos oriundos dessa fonte Uma necessidade violenta de papelmoeda de abolir dívidas de divisão igual da propriedade ou qualquer outro projeto impróprio ou pernicioso terá menos probabili dade de ser aceito por todo o corpo da União do que por um de seus membros do mesmo modo que uma praga poderá infeccionar deter minados distritos ou regiões sem atacar o Estado O federalista Artigo no 10 p 83 A estabilidade política não seria alcançada suprimindo as facções ou qual quer grupo de interesse A perspectiva apresentada por Madison indica que o federalismo poderá operar num mundo constituído por interesses sendo capaz de neutralizar as facções e de resolver os confl itos sociais Entretanto a fonte mais comum e duradoura das facções tem sido a dis tribuição variada e desigual da propriedade Os que a possuem jamais constituíam com os não proprietários um grupo de interesses comuns na sociedade Os que são devedores sofrem discriminação semelhante aos credores Interesses decorrentes da posse das terras de atividades industriais e comerciais de disponibilidade de capital acompanhados de uma série de outros menores surgem das necessidades nos estados membros civilizados e dividemnos em classes diversas motivadas por sentimentos e pontos de vista distintos A coordenação destes diferen tes interesses em choque constitui a tarefa principal da legislação mo 241 Capítulo 9 Hamilton Madison e Jayos pressupostos teóricos do federalismo moderno Ricardo Ismael derna e envolve o espírito do partido e da facção nas atividades neces sárias e comuns do governo O federalista Artigo no 10 p 72 954 Os poderes da União e dos estadosmembros O processo de substituição da Confederação pela União apontava para uma centralização política mas nem de longe signifi caria o esvaziamento po lítico das instâncias subnacionais e o acúmulo excessivo de poderes no plano federal Essa sinalização foi feita por Madison em diferentes artigos publicados No Artigo no 14 por exemplo ele destaca que o governo federal não deve ser investido de todo o poder de elaborar e fazer executar as leis Sua jurisdição é limitada a determinados assuntos que digam respeito a todos os membros da república mas que não sejam atingidos pelas provisões de qualquer das partes O federalista Artigo no 14 p 103 Ainda neste momento chamava atenção para o pacto federativo observando que o objetivo imediato da Constituição Federal é assegurar a união dos 13 estadosmembros iniciais o que sabemos ser praticável e somar a eles outros estadosmembros que possam surgir do seio dos atuais ou de seus vizinhos o que não podemos negar que é igualmente pra ticável O federalista Artigo no 14 p103 Madison voltou a tratar dos poderes da União frente aos estadosmem bros do Artigo no 41 ao do Artigo no 45 enfatizando especifi camente o papel dos governos federal e estadual O federalista ressaltou logo no início que uma vez demonstrado que nenhum dos poderes transferidos para o governo federal é desnecessário ou inadequado o problema seguinte a ser considerado é se o conjunto deles não ameaça a porção de autoridade mantida nos diversos es tadosmembros O federalista Artigo no 45 p 289 Posteriormente procurou mencionar a subordinação do novo desenho institucional ao bemestar da po pulação destacando que o verdadeiro bemestar da grande massa do povo constitui o objetivo supremo a ser atingido e que nenhuma forma de governo terá qualquer outro mérito senão o de adequarse para esse fi m Se o projeto da conven ção ameaçasse o bemestar público meu voto seria no sentido de rejeitálo Se a própria União se revelasse inconsistente com a felicidade do povo eu votaria pela abolição da União O federalista Artigo no 45 p 289290 Em outro momento talvez mais revelador parece querer deixar claro que a vitalidade do federalismo nascente viria dos governos estaduais e não do go verno federal indicando que o processo decisório continuaria em boa medida sendo descentralizado 242 ELSEVIER Curso de Ciência Política Os poderes delegados ao governo federal pela Constituição proposta são poucos e defi nidos os que permanecem com os governos estaduais são numerosos e imprecisos Aqueles serão exercidos principalmente sobre tópicos externos tais como guerra paz negociações e comércio exterior com o qual o poder de tributação estará intimamente ligado Os poderes reservados aos estadosmembros estenderseão sobre todos os tópicos que no curso normal da vida do país dizem respeito às liberdades e bem do povo à ordem interna e aos aperfeiçoamentos e progresso do Estado A atuação do governo federal será mais abrangente e importante em tempo de guerra e de ameaças a dos governos estaduais em tempos de paz e tranquilidade Uma vez que aqueles períodos serão provavelmente bem menores que estes os governos estaduais desfrutarão de mais van tagem sobre o federal O federalista Artigo no 45 p 292 Não convinha silenciar ou adotar subterfúgios quando a discussão dizia res peito ao poder da União Todos os estadosmembros queriam saber o que perderiam para a União a partir da nova confi guração territorial do poder político Hamilton no Artigo no 32 também procurava tranquilizar os signatários do pacto federativo estou disposto a admitir integralmente a procedência do raciocínio segundo o qual os estadosmembros isoladamente deveriam desfrutar uma autoridade independente não sujeita a controles para arrecadar seus impostos a fi m de atender às próprias necessidades Todavia o projeto da convenção visa apenas a uma união ou con solidação parcial os governos estaduais conservariam sem dúvida to das as prerrogativas de soberania que possuíam antes e não expressa mente delegadas por aquele ato aos Estados Unidos Esta delegação expressa ou melhor esta alienação das soberanias estaduais somente aconteceria em três casos quando a Constituição em termos expressos atribuir uma exclusiva autoridade à União quando atribuindo uma autoridade à União em determinado caso em outro proíbe os estados de exercêla e quando atribuindo uma autoridade à União tornaria absoluta e totalmente contraditório e incompatível o exercício da mesma autoridade nos estados Utilizo estes termos para distinguir o último caso de outro que parece assemelharse a ele mas que é de fato essencialmente diferente refi rome ao exercício de uma jurisdição con corrente quando podem ocorrer interferências ocasionais na orienta ção de alguns setores da administração mas sem implicar qualquer contradição ou incompatibilidade relativamente à autoridade constitu cional O federalista Artigo no 32 p 202203 243 Capítulo 9 Hamilton Madison e Jayos pressupostos teóricos do federalismo moderno Ricardo Ismael 955 Um equilíbrio dinâmico entre os três poderes da República Hamilton e Madison eram em linhas gerais seguidores da teoria da sepa ração do poderes de Montesquieu Entretanto defenderam algumas inovações decisivas quando teorizavam sobre o modelo federalista norteamericano Ma dison no Artigo no 51 procurou mostrar a relevância da adoção de um sistema de controles mútuos entre os Poderes Executivo Legislativo e Judiciário Nesse momento revelava seu pessimismo com relação à natureza humana lembrando que devia ser seguido o princípio geral de não se conceder a nenhum homem ou grupo de homens poder ilimitado pois acreditava que ações humanas são movidas por paixões ou por interesses imediatos e egoístas O sistema de con troles mútuos permitia a aplicação dessa premissa tornando possível o equilí brio entre os três poderes do Estado Equilíbrio que não seria assegurado ape nas com a defi nição das competências dos poderes constituídos na Constituição Federal mas sobretudo com a ambição de cada um de defender suas prerro gativas constitucionais Nesse sentido podese falar que Madison pregava um equilíbrio dinâmico derivado mais da interação entre os poderes da República no jogo político federativo Todavia a grande segurança contra uma gradual concentração de vários poderes no mesmo ramo do governo consiste em dar aos que administram cada um deles os necessários meios constitucionais e motivações pessoais para que resistam às intromissões dos outros As medidas para a defesa devem neste como em todos os demais ser compatíveis com as ameaças de ataque A ambição será incentivada para enfrentar a ambição Os interesses pessoais serão associados aos direitos constitucionais Talvez seja um refl exo da natureza humana que tais expedientes tenham validade para o controle dos abusos do governo Mas afi nal o que é próprio governo senão o maior de todos os refl exos da natureza humana Se os homens fossem anjos não seria necessário haver governos Se os homens fossem governados por anjos dispensarseiam os controles internos e externos Ao constituirse um governo integrado por homens que terão autoridade sobre outros ho mens a grande difi culdade está em que se deve primeiro habilitar o governante a controlar o governado e depois obrigalo a controlarse a si mesmo O federalista Artigo no 51 p 322 Hamilton trouxe no Artigo no 51 uma preocupação com o fortalecimento institucional do Poder Judiciário o qual no seu entender seria o mais fraco dos poderes da República Dessa forma propunha a estabilidade dos cargos 244 ELSEVIER Curso de Ciência Política judiciais assegurando a exigência de eleições periódicas apenas para o preen chimento das cadeiras do Congresso Nacional e para a escolha do presidente da República Quem analisa atentamente os diferentes ramos de poder percebe logo que em um governo em que eles são separados uns dos outros o Ju diciário pela própria natureza de suas funções será sempre o menos perigoso para os direitos políticos previstos na Constituição pois será o de menor capacidade para ofendêlos ou violálos O Executivo dispõe não apenas das honrarias mas também da espada O Legislativo além de manter os cordões da bolsa prescreve as normas pelas quais cada cidadão deve regular seus direitos e deveres O Judiciário porém não tem a menor infl uência sobre a espada e a bolsa não participa da força nem da riqueza da sociedade e não toma as resoluções de qualquer natureza Na verdade podese dizer que não tem força nem poderio li mitandose simplesmente a julgar dependendo até do auxílio do ramo executivo para efi cácia de seus julgamentos em consequência de sua natural fraqueza o judiciário está continua mente ameaçado de ser dominado intimidado ou infl uenciado pelos outros ramos e que como nada pode contribuir mais para sua fi rmeza e independência do que a estabilidade nos cargos esta condição deve ser encarada como fator indispensável em sua constituição e em gran de parte como cidadela da justiça e da segurança pública O federalista Artigo no 78 p 470 A Câmara dos Deputados foi o tema escolhido na série que começa no Ar tigo no 54 e termina no Artigo no 58 É importante notar que o arranjo federativo estabelecia uma dupla representação política ou seja um eleitor seria em tese representado por um deputado federal e um deputado estadual Ao refutar uma crítica contra a composição da Câmara dos Deputados Hamilton ou Madison existe uma dúvida sobre a autoria do Artigo no 57 lembram que os eleitores dos deputados federais são os mesmos dos deputados estaduais A terceira objeção contra a Câmara dos Deputados é que seus membros serão recrutados naquela classe de cidadãos que gozam de menos sim patia na massa do povo e são os mais propensos a defender o sacrifício de muitos em proveito de uns poucos Quais serão os eleitores dos deputados federais Não os ricos mais do que os pobres os letrados mais do que os ignorantes não os orgu lhosos herdeiros de nomes famosos mais do que os fi lhos de obscuras e desafortunadas famílias O eleitorado será constituído pela grande massa do povo dos Estados Unidos o mesmo que exercerá o direito 245 Capítulo 9 Hamilton Madison e Jayos pressupostos teóricos do federalismo moderno Ricardo Ismael em cada Estado de eleger o órgão correspondente do Legislativo Esta dual O federalista Artigo no 57 p 353 O fundamental para os federalistas era a realização de eleições legisla tivas frequentes para que os deputados prestassem contas regularmente ao eleitorado Quem são os preferidos pelo voto popular Aqueles cidadãos cujos mé ritos os recomendem à estima e à confi ança de seu país Nenhuma con sideração à riqueza à família à crença religiosa ou à profi ssão poderá restringir o julgamento ou frustrar as tendências do povo Todas estas garantias porém seriam insufi cientes sem o freio de eleições frequentes a Câmara dos Deputados é constituída de for ma a manter em seus membros uma constante lembrança da depen dência deles em relação ao povo O federalista Artigo no 57 p 354 O Senado foi debatido na série que começa no Artigo no 62 e termina no Artigo no 66 Madison ou Hamilton existe dúvida também sobre a autoria do Artigo no 57 procurou mostrar que o Senado pode ser visto como uma Câmara Territorial em que cada um dos Estadosmembros possui o mesmo número de representantes Diferentemente da Câmara dos Deputados que possui como re ferência a democracia representativa esta casa legislativa deve zelar pela manu tenção da União corrigindo e aperfeiçoando o processo decisório no Congresso Nacional tendo em vista a coordenação dos interesses estaduais Os federalistas pareciam saber dos riscos com a igualdade da representação do Senado fortale cendo os estadosmembros menos populosos Entretanto estavam convencidos de que as tensões federativas poderiam ser mais graves caso as unidades maio res tivessem mais representantes no Senado da mesma forma que acontecia na Câmara dos Deputados A igualdade de representação no Senado é outro ponto que evidente mente traduzindo o resultado de concessões mútuas em pressões con fl itantes dos estadosmembros grandes e pequenos Nenhuma lei ou resolução pode agora ser aprovada sem a anuência primeiro de uma maioria dos eleitores depois de uma maioria dos estadosmembros Deve admitir que este complicado controle sobre a legislação pode em alguns casos ser nefasto ou benéfi co e que a defesa específi ca que ele implica em favor dos estadosmembros menores seria mais racional se quaisquer interesses comuns a estes e distintos de outros estados membros fi cassem expostos a determinado perigo Todavia como os estadosmembros maiores sempre estarão em condições pelo poder que exercem sobre os suprimentos de anular exageradas manifestações 246 ELSEVIER Curso de Ciência Política desta prerrogativa por parte dos estadosmembros menores e como a facilidade em elaborar leis e multiplicar o número delas parece ser do ença de que mais sofrem nossos governos não será impossível que esta parte da Constituição seja na prática mais conveniente do que muitos julgam O federalista Artigo no 62 p 382383 O Poder Executivo por sua vez foi abordado na série que começa no Ar tigo no 67 e termina no Artigo no 77 Hamilton no Artigo no 68 falou sobre como seria escolhido o presidente dos Estados Unidos Um Colégio Eleitoral cons tituído por delegados dos Estadosmembros os quais seriam escolhidos pelo eleitorado indicaria o principal nome do governo federal O federalista adverte que julgouse conveniente que a sensibilidade do povo interviesse na escolha da pessoa que irá desempenhar tão importantes funções Tal conveniência foi atendida cometendo o encargo de elegêlo não a um colégio préconstituído mas a delegados escolhidos pelo povo para este fi m específi co e na devida opor tunidade O federalista Artigo no 68 p 417 Sobre o número de representantes de cada unidade estadual na eleição indireta Hamilton esclarece que no projeto elaborado pela convenção isto é que o povo de cada Estado escolherá um número de cidadãos para o colégio eleitoral igual ao de senadores e deputa dos do mesmo Estado no governo nacional que tais representantes se reunirão nos respectivos estadosmembros e votarão em algum nome que julgado digno de ser presidente O federalista Artigo no 68 p 419 No Artigo no 85 o último daqueles que foram registrados no livro O fe deralista Hamilton defendeu a proposta de Constituição Nacional aprovada na Convenção Federal entre maio e setembro de 1787 em oposição aos que dese javam fazer mudanças no texto original Ressaltou que qualquer mudança na quele momento deveria ser aprovada por 13 estadosmembros enquanto uma emenda constitucional posterior precisaria do apoio de apenas dez estados ou seja três quartos do total de participantes do pacto federativo Finaliza porém conclamando o povo do estado de Nova York a ratifi car a nova Constituição dos Estados Unidos mesmo porque não há um único desses reclamantes que não reafi rme sua opinião de que o sistema embora possa ser imperfeito em al guns pontos é no conjunto não apenas bom mas o melhor que as ideias e as circunstâncias do momento permitiram produzir prometendo todos os tipos de segurança que um povo pode razoavelmente desejar O federalista Artigo no 85 p 527 247 Capítulo 9 Hamilton Madison e Jayos pressupostos teóricos do federalismo moderno Ricardo Ismael 96 Considerações finais A leitura atenta dos artigos escritos por Hamilton Madison e Jay permite apontar algumas indicações metodológicas para aqueles que desejam estudar os diferentes federalismos no mundo contemporâneo A análise do texto constitu cional é obrigatória para a compreensão das bases do pacto federativo especial mente quando se trata de conhecer a defi nição das competências dos entes fede rados a repartição do bolo tributário nacional as condições excepcionais para a intervenção da União nos Estadosmembros e os princípios gerais que orientam a cooperação e limitam a competição entre as unidades estaduais A Constituição Federal entretanto representa por assim dizer um aspec to estático do modelo federalista A investigação não deve fi car restrita a essa dimensão devendo ser complementada pela discussão do processo político um indicador recorrente da dinâmica federativa Neste caso urge observar a rela ção entre a União e os estadosmembros e destes entre si Aqui podese dizer ganham visibilidade demandas e interesses estaduais em torno de investimen tos públicos e decisões no âmbito federal elites políticas regionais e nacionais e alianças políticas entre a União e as unidades subnacionais dentro e fora do Congresso Nacional Finalmente os federalistas norteamericanos e em especial Tocqueville nos ensinam que uma investigação para esclarecer o tipo de federalismo prati cado num país não deve deixar de fora a cultura política em termos nacionais e estaduais O conjunto de valores e de atitudes que caracterizam cada sociedade infl uencia o federalismo reinante tornandoo por exemplo mais ou menos cen tralizado ou mais ou menos cooperativo Hamilton Madison e Jay sabiam que a aceitação da proposta aprovada na Convenção Federal de 1787 dependia da consistência teórica da estrutura constitucional formulada da superação de resistências de natureza política e da capacidade de conciliar os valores presentes por todo o território nacional É daí que prospera o modelo federalista em qualquer lugar 97 Perguntas para reflexão 1 É possível dizer que o arranjo federativo implantado nos Estados Unidos no final do século XVIII encontrase situado numa posição intermediária entre o Estado Unitário praticado no mundo europeu e a Confederação adotada logo após a independência do país Explique 248 ELSEVIER Curso de Ciência Política 2 Quais as limitações estabelecidas pelos Estatutos da Confederação de acordo com a exposição feita por Alexander Hamilton nos Artigos de número 21 e 22 3 Quais os princípios liberais defendidos por James Madison no Artigo de número 10 quando trata dos processos para remediar os malefícios das facções 4 Quais as vantagens do arranjo federativo para conter e controlar os efei tos das facções segundo Madison no Artigo de número 10 5 Que se pode dizer sobre o sistema de controles mútuos envolvendo os três Poderes da República na perspectiva apresentada por James Madi son no Artigo de número 51 6 Como foi o envolvimento das unidades territoriais na passagem da Con federação para o modelo federalista 7 Existe uma tensão entre o federalismo e a democracia representativa quando se analisam os papéis do Senado e da Câmara dos Deputados no modelo federalista 8 Como poderia ser descrita a relação entre a União e os Estadosmem bros no arranjo federativo norteamericano implantado no final do século XVIII 9 Quais os aspectos inovadores no campo da organização do estado Moder no defendidos pelos federalistas norteamericanos Explique 10 É possível dizer que os estudos sobre o federalismo se orientam espe cialmente pela análise da evolução do texto constitucional pelo debate sobre o processo político envolvendo a relação entre a União e os esta dosmembros e destes entre si e pela investigação da cultura política predominante em termos nacionais e estaduais Explique Bibliografia DRIVER Stephanie Schwartz A Declaração de Independência dos Estados Uni dos Rio de Janeiro Jorge Zahar 2006 ELAZAR Daniel J Federal systems of the world Nova York Stockton Press 1994 249 Capítulo 9 Hamilton Madison e Jayos pressupostos teóricos do federalismo moderno Ricardo Ismael The Role of Federalism in Political Integration In ELAZAR Da niel J org Federalism and Political Integration Tel Aviv Israel Turtledo ve Publishing 1979 FERREIRA FILHO Manoel Gonçalves Curso de Direito Constitucional 19 ed São Paulo Saraiva 1992 HAMILTON Alexander MADISON James JAY John O federalista Campi nas Rusell Editores 2003 JEFFERSON Thomas Escritos políticos 3 ed São Paulo Abril Cultural 1985 Col Os pensadores vXXIX KRAMNICK Isaac Apresentação HAMILTON Alexander MADISON James JAY John Os artigos federalistas 17871788 Rio de Janeiro Nova Fronteira 1993 MCCULLOUGH David G 1776 A história dos homens que lutaram pela inde pendência dos Estados Unidos Rio de Janeiro Jorge Zahar 2006 MONTESQUIEU Do espírito da leis São Paulo Difel 1962 v 1 SCHULTZE RainerOlaf Federalismo O federalismo na Alemanha São Paulo Fundação KonradAdenauerStiftung Série Traduções no 7 p 15 32 1995 SCHWARTZ Bernard O federalismo norteamericano Rio de Janeiro Forense 1984 SELLERS Charles MAY Henry MCMILLEN Neil R Uma reavaliação da his tória dos Estados Unidos Rio de Janeiro Jorge Zahar 1990 STEPAN Alfred Para uma Nova Análise Comparativa do Federalismo e da Democracia Federações que Restringem ou Ampliam o Poder do De mos Dados Revista de Ciências Sociais Rio de Janeiro v 42 n 2 p 197 251 1999 CONVENÇÃO FEDERAL Constituição dos Estados Unidos da América aprova da em 1787 Disponível na internet httpwwwembaixadaamericana orgbrindexphpactionmateriaid643submenu106itemmenu1 10 10 abril 2007 TOCQUEVILLE Alexis de A democracia na América leis e costumes 2 ed São Paulo Martins Fontes 2005 WRIGHT Benjamin Fletcher Introdução do Editor HAMILTON Alexan der MADISON James JAY John O federalista Brasília Editora Univer sidade de Brasília 1984 Butter Lamb Capítulo 10 Alexis de Tocqueville 18051859 o argumento liberal de defesa da liberdade Lier Pires Ferreira 1 Creio que em qualquer época eu teria amado a liberdade mas na época em que vivemos sintome propenso a idolatrála Alexis de Tocqueville Doutor em Direito Internacional UERJ Mestre em Relações Internacionais PUCRio Bacharel em Direito UFF Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais UFF Advogado Coordenador do Curso de Direito e Professor do PPGDUGF Coordenador Pedagógico e Professor do CPII Con sultor adhoc do INEPMEC Pesquisador do PROEALCUERJ Palestrante em eventos no Brasil e no exterior Autor dentre outras obras de Direito Internacional Ambiental e do Petróleo 2009 Curso de Teoria Geral do Estado 2009 Direitos Humanos Direito Internacional 2006 Curso de Direito Inter nacional Privado 2 ed 2008 Direito Internacional as Novas Disciplinarizações 2006 2a tiragem O Estrangeiro no Brasil 2005 Estado Globalização e Integração Regional 2003 Contato 021 9617 0836 Email lierrioigcombr 252 ELSEVIER Curso de Ciência Política 101 Introdução Quando Alexis de Tocqueville nasceu em 29 de julho de 1805 na cidade de Paris a Revolução Francesa já havia chegado ao fi m1 Mas nem por isso se pode dizer que ele viveu em uma França politicamente estável e na plena vigên cia das liberdades democráticas Ao contrário Tendo vindo ao mundo apenas um ano após a elevação de0 Napoleão à condição de Imperador cresceu sob os impactos desse governo Ao longo de sua existência de pouco mais de cinquen ta anos Tocqueville vivenciou como magistrado político e intelectual o período mais conturbado da história francesa no século XIX no qual se destacam even tos como a queda de Napoleão Bonaparte a restauração da Monarquia sob Luís XVIII bem como a deposição de Carlos X e o fi m do governo Luís Filipe após o que a França abriu o caminho que a conduziu mais uma vez a prostrarse perante de um Bonaparte Luís Napoleão2 Entre a deposição de Carlos X e o governo de Luís Filipe Tocqueville as sistiu aos grandes ciclos revolucionários que varreram a Europa e os EUA entre os anos de 1820 e 1848 Tais eventos são importantes para que se compreenda o pensamento do autor Nascido no seio de uma ilustre família normanda per tencente à petite nobresse o conde de Tocqueville era descendente de um irmão de Joana DArc3 bisneto de Chrétien de Malesherbes4 e neto do marquês de 1 A presente afi rmação tem como base a periodização tecida por Albert Sobuol A Revolução Francesa Rio de Janeiro Zahar 1964 Para o autor a Revolução Francesa termina no dia 09 de novembro de 1799 18 Brumário do ano VII da República Francesa quando os Conselhos dos Anciãos e dos Quinhentos então reunidos na localidade de SaintCloud foram dissolvidos pelas tropas comandadas por Napoleão Bonaparte 2 CharlesLouisNapoléon Bonaparte ou simplesmente Luís Napoleão nasceu em Paris no ano de 1808 fi lho de Luís Bonaparte Rei da Holanda Em 1832 com a morte precoce do único fi lho do antigo Imperador tornouse herdeiro do movimento bonapartista Sobre esse legado foi eleito deputado da Assembleia Consti tuinte de 1848 e presidente da França Em 1851 lastreado em sua imensa popularidade promoveu plebiscito que aprovou uma nova Constituição e em nova consulta popular instituiu o Império aclamandose Napoleão III Seu governo garantiu à França duas décadas de prosperidade Em 1870 após derrotas militares na Europa e no México foi deposto pela Assembleia Nacional que proclamou a Terceira República 3 Joana dArc é uma das fi guras mais emblemáticas da história francesa Nascida na vila de Domrémy na região do Barrois em janeiro de 1412 fi lha de camponeses desde pequena distinguiuse por sua índole piedosa e devota Aos 13 anos declarou que podia ouvir a voz de Deus que a exortava a ser boa e a cumprir os deveres cristãos ao mesmo tempo em que lhe ordenava a libertação da cidade de Orléans posta sob o jugo inglês Quando os confl itos com os ingleses se aproximaram de sua região natal Joana dArc iniciou sua vida pública tendo sido vital na retomada de Paris Em 1430 Joana foi aprisionada pelos borgonheses e condenada à fogueira por heresia Seu sacrifício em 1431 despertou o nacionalismo dos franceses que enfi m lograram expulsar os ingleses de Calais Joana dArc foi canonizada em 1920 pelo papa Bento V 4 Antigo conselheiro de Luís XV e XVI 253 Capítulo 10 Alexis de Tocqueville 18051859 o argumento liberal de defesa Lier Pires Ferreira Rosambo5 além de parente próximo de Chateaubriand6 Por tais laços que lhe impunham vínculos quase indissolúveis com o Ancien Régime foi obrigado em mais de uma ocasião a declinar de cargos e honrarias Em cada um destes mo mentos vencido o homem de Estado triunfou o intelectual Em 1831 quando da derrubada dos Bourbons Tocqueville empreendeu viagem aos EUA cujo fruto dileto Democracia na América o tornaria célebre Em 1950 após decair do ministério de OdilonBarrot onde ocupava o cargo de Se cretário Ministro de Assuntos Estrangeiros começou a escrever O Antigo Regi me e a Revolução publicado simultaneamente em Paris e Londres em 1856 Essas obras são o cerne do presente capítulo No entanto o mesmo não se limitará à análise destes clássicos do pensamento político Duas outras obras de rara men ção nos estudos sobre Tocqueville serão investigadas Da Colonização na Argélia em que procedeu a defesa da colonização francesa no norte da África e Lem branças de 1848 texto póstumo onde repassou os acontecimentos que marcaram a vaga revolucionária desse ano na França Para melhor ordenar a refl exão dos leitores após breve consideração metodológica os textos serão apresentados na ordem cronológica em que foram escritos 102 O método em Tocqueville Em uma obra clássica nas ciências sociais As Etapas do Pensamento Socioló gico Raymond Aron situa Tocqueville entre os precursores da Sociologia7 Anos mais tarde na introdução de uma das muitas edições em português de O An tigo Regime Zevedei Barbu ratifi ca essa proposição assinalando inobstante que sempre que o mencione Tocqueville juntamente com Max Weber Émile Durkheim e Karl Marx eu me veja cercado de olhares interrogativos8 Dian te dessa expressão de perplexidade importa perguntar que elemento permite situar Tocqueville entre os precursores da Sociologia conquanto seja evidente de que se trata sobretudo de um autor preocupado com questões políticas e fi losófi cas A resposta é sem dúvida o método Tal como Montesquieu Tocqueville baseia seu pensamento na defesa da ordem e das instituições políticas No entanto como próprio Montesquieu ele não recorre a uma abordagem estritamente historicista à moda de Maquiavel ou às múltiplas faces do jusnaturalismo tal como procedido por Hobbes Lo 5 Nobre francês cujo guilhotinamento foi um dos marcos mais expressivos da Revolução Francesa 6 F rançois René Chateaubriand político e literato francês nascido em 1768 e falecido em 1848 7 ARON R As Etapas do Pensamento Sociológico 3 ed Brasília UNB 1990 8 TOCQUEVILLE A O Antigo Regime e a Revolução 3 ed Brasília UNB São Paulo Hucitec 1989 254 ELSEVIER Curso de Ciência Política cke e Rousseau Em seus escritos Tocqueville estrutura quadros gerais onde o conhecimento brota de uma perspectiva relacional entre diferentes elementos tais como causas remotas e atuais elementos geográfi cos e culturais bem como normas e instituições sociais Estes quadros gerais derivam para a composição de tipos ideais antecipando quiçá de forma não completamente madura a me todologia de investigação que irá caracterizar as obras de Ferdinand Tônnies e principalmente Max Weber Nas palavras de Célia Galvão Quirino Procurando analisar o que ocorria em diversos países europeus e nos Estados Unidos Tocqueville trabalha com a especifi cidade dessas reali dades considerando tanto a história política e social de cada um quan to as várias contradições do presente tentando por vezes até realizar prognósticos para o futuro Como alguns de seus comentadores tenderíamos também a concordar com a tese de que estaria antecipan do a metodologia de Max Weber ao tentar construir um tipo ideal de democracia A maneira pela qual retira da realidade pesquisada fatos que lhe parecem signifi cativos para a compreensão do fenômeno de mocrático o cuidado com que os relaciona buscando aí encontrar a racionalidade que lhes é específi ca permite que se veja no seu estudo mais do que a democracia tal como ela ocorria no Estados Unidos ou que pudesse vir a ocorrer na França Como declara em carta a John Stuart Mill Partindo de noções que me forneciam as sociedades ame ricana e francesa eu quis pintar os traços gerais das sociedades demo cráticas das quais não existe ainda nenhum modelo completo9 No mesmo curso Raymond Aron consigna que Tocqueville é o sociólogo comparativista por excelência procura iden tifi car o que é importante confrontando espécies de sociedades perten centes a um mesmo gênero ou a um mesmo tipo De modo ge ral em La Démocracie en Amérique Tocqueville é sociólogo no estilo de Montesquieu e diríamos mesmo nos dois estilos que Montesquieu nos legou A síntese dos diferentes aspectos de uma sociedade é feita em LEspirit de Lois graças ao conceito de espírito de uma nação Segundo Montesquieu o primeiro objetivo da sociologia é apreender o conjunto de uma sociedade Não há dúvida de que Tocqueville quer aprender na América o espírito de uma nação para isso emprega as diferentes categorias que Montesquieu distinguiu Discrimina entre as causas históricas e as causas atuais o meio geográfi co e a tradição histórica a ação das leis e dos costumes O conjunto destes elementos se reagrupa 9 QUIRINO Célia Galvão Tocqueville sobre a liberdade e a igualdade WEFFORT FC org Os Clássicos da Política 6 ed vol 2 São Paulo Ática 1996 p 151153 255 Capítulo 10 Alexis de Tocqueville 18051859 o argumento liberal de defesa Lier Pires Ferreira para defi nir na sua singularidade uma sociedade única a sociedade americana Tocqueville porém visa um segundo objetivo da sociologia e pratica um outro método Coloca um problema mais abs trato num nível mais elevado de generalidade o problema da demo cracia das sociedades modernas Isto é fi xa o estudo de um tipo ideal comparável ao tipo de regime político de Montesquieu Partindo da noção abstrata de uma sociedade democrática Toqueville pergunta qual a forma política de que esta sociedade democrática pode se reves tir por que ela se reveste aqui de uma forma e em outro lugar de outra Em outras palavras começa por defi nir um tipo ideal o da sociedade democrática e tenta pelo método comparativo identifi car o efeito das várias causas das mais gerais às mais particulares10 Parece correto assinalar que do ponto de vista metodológico Tocqueville sedimenta duas perspectivas essenciais para a teoria social o método compa rativo e as construções tipológicas inscritas no campo do pensamento liberal Essas perspectivas serão juntamente com o positivismo de Augusto Comte o funcionalismo de Émile Durkheim e o materialismo histórico e dialético de Karl Marx as bases sobre as quais se erguerá a Sociologia e em largos aspectos o amplo conjunto das ciências humanas e sociais 103 A democracia na América Em 1827 com aproximadamente 22 anos Tocqueville ingressa na magis tratura francesa na qualidade de juizauditor atuando no Tribunal de Versalhes De família legitimista entretanto passa a ter problemas políticos após a Revolu ção de 1830 quando os orleanistas depõem os Bourbons Visando a distanciarse da França para evitar complicações indesejáveis requer uma autorização para estudar in loco o sistema penitenciário dos Estados Unidos no que é prontamen te atendido pelo Ministério do Interior As anotações e estudos dessa viagem são as bases sobre as quais constrói a Democracia na América publicada em duas partes em 1835 e 1840 respectivamente É inequívoco que ao desembarcar nos Estados Unidos em maio de 1831 na companhia de Gustave de Beaumont Tocqueville não busca apenas realizar um estudo sobre o sistema penitenciário Seu real interesse é apreender o fun cionamento da nascente democracia dos EUA Inobstante movido por genuína curiosidade intelectual Tocqueville faz muito mais Partindo da origem históri ca dos angloamericanos ou seja o povo dos Estados Unidos tece amplo estudo sobre a própria democracia Nesse estudo as antigas colônias inglesas na Amé 10 ARON R Op Cit p 208221 256 ELSEVIER Curso de Ciência Política rica do Norte e seus cidadãos são apenas o ponto de partida O que investigou de fato foi a democracia em abstrato independente de sua inserção histórica se presente ou futura independente de sua nacionalidade se estadunidense ou francesa Essa visão fi ca clara já na introdução que faz à obra onde afi rma que Dentre as coisas novas que me atraíram a atenção durante a perma nência nos Estados Unidos nada me surpreendeu com mais força do que a igualdade geral de condição entre o povo Prontamente percebi a infl uência prodigiosa que este fato fundamental exerce no curso inteiro da sociedade dá uma direção à opinião pública e um teor particular às leis leva a novas máximas as autoridades governantes e a hábitos peculiares os governados Logo senti que a infl uência deste fato se es tende muito além do caráter político e das leis do país e que seu poder é tão grande sobre a sociedade civil quanto sobre o governo cria opi niões dá azo a novos sentimentos funda costumes novos e modifi ca seja o que for que não produza Quanto mais avancei no estudo da sociedade americana mais percebi que esta igualdade de condição é o fato fundamental de que todos os outros perecem ser derivados e o ponto central onde todas as minhas observações constantemente termi navam Voltei então meu pensamento para nosso próprio hemisfério e pensei que lá discernia algo análogo ao espetáculo que o Novo Mundo me apresentava Observei que a igualdade de condição embora lá não tenha atingido o limite extremo que parece ter alcançado nos Estados Unidos constantemente dele se aproxima e que a democracia governa dora das comunidades americanas parece estar subindo rapidamente ao poder na Europa Por isso concebi a ideia do livro que agora está diante do leitor11 Em outra passagem cujo foco é o indivíduo assim pronunciase Tocque ville Os homens que vivem nos tempos democráticos em que estamos en trando têm naturalmente o gosto pela independência são por natureza impacientes diante de regras e sentem enfado pela permanência até mesmo da condição que eles próprios preferem Têm apego ao poder mas inclinamse a desprezar e mesmo odiar os que o exercitam e fa cilmente escapam ao seu alcance por sua própria mobilidade e insig nifi cância Estas propensões sempre se manifestarão porque têm ori gem no alicerce da sociedade que nenhuma mudança sofrerá durante muito tempo elas evitarão o estabelecimento de qualquer despotismo 11 TOCQUEVILLE A Democracia na América São Paulo Cia Editora Nacional 1969 p 33 257 Capítulo 10 Alexis de Tocqueville 18051859 o argumento liberal de defesa Lier Pires Ferreira e fornecerão armas novas a cada geração que chegue a qual lutará em prol da liberdade da espécie humana12 Democracia Essa palavra de tão larga utilização no pensamento de Toc queville carece no entanto de autêntica precisão conceitual Não há uma única passagem em Democracia na América onde o autor a defi na claramente embora seja certo que forneça ao leitor inúmeras passagens das quais resta evidente que democracia referese à igualização crescente das condições políticas e sociais en tre os homens É o que ocorre por exemplo no Capítulo III da Primeira Parte publicada em 1835 Nesse Capítulo Tocqueville afi rma que A característica notável da condição social dos angloamericanos é a sua essencial democracia A condição social dos americanos é emi nentemente democrática era esse o seu caráter na fundação das colô nias e está mais fortemente acentuado hoje em dia Na América o elemento aristocrático sempre foi fraco desde a nascença e se nos nossos dias não está realmente destruído está seja como for tão inca pacitado que mal lhe podemos atribuir qualquer grau de infl uência no curso dos negócios O princípio democrático pelo contrário ganhou tanta força com o tempo os eventos e a legislação que se tornou não só predominante mas todopoderoso Não há autoridade familiar ou corporativa e é raro ver até a infl uência de caráter individual gozar de qualquer durabilidade A América exibe portanto em seu estado social um fenômeno extraordinário Lá se vêm os homens com a maior igualdade em ponto de fortuna e intelecto ou por outras palavras mais iguais em sua força do que em qualquer outro país do mundo ou em qualquer idade da qual a história tenha preservado a lembrança13 Conquanto para Tocqueville a democracia tenha tido nos EUA as condi ções mais férteis para o seu desenvolvimento a forma pela qual a igualização das condições políticas e sociais se dá na América lhe é exclusiva e peculiar de modo que cada povo ou nação deverá ter em função das características que lhe são singulares seu próprio processo democrático Isso porque para Tocqueville a democracia é um fenômeno universal e irreversível para o qual esse legítimo herdeiro de Montesquieu atribui caráter Providencial divino Como consignado pelo próprio autor O desenvolvimento gradual do princípio da igualdade é portanto um fato da Providência Tem todas as características principais de tal fato é universal durável escapa constantemente à interferência humana e 12 Ibidem p 360361 13 Ibidem p 6066 258 ELSEVIER Curso de Ciência Política todos os eventos bem como todos os homens contribuem para o seu progresso Seria então sensato imaginar que um movimento social cujas causas são tão remotas poderia ser detido pelos esforços de uma geração Pode acreditarse que a democracia que derrubou o sistema feudal e baniu os reis retrocederá diante dos negociantes e capitalistas Parará agora que se tornou tão forte e seus adversários tão fracos Para onde então estamos tendendo Ninguém pode dizer porque nos falham já os termos de comparação As condições do homem são mais iguais presentemente nos países cristãos do que o foram em qualquer época passada ou em qualquer parte do mundo por isso a grande za do que já foi feito não nos deixa prever o que falta conseguir Na sua totalidade o livro que aqui se oferece ao público foi escrito sob a impressão de uma espécie de terror religioso produzido no espírito do autor pela visão dessa revolução irresistível que avançou durante séculos a despeito de todos os obstáculos e que continua avançando no meio das ruínas que causou Não é necessário que o próprio Deus fale para podermos descobrir os sinais indiscutíveis de sua vontade É sufi ciente constatar o curso habitual da natureza e a tendência cons tante dos eventos Se o homem de nossos dias se convencesse por observação atenta e refl exão sincera de que o desenvolvimento gradu al e progressivo da igualdade social é ao mesmo tempo o passado e o futuro de sua história esta descoberta por si só conferiria o caráter de decreto divino à mudança Tentar deter a democracia seria nesse caso resistir à vontade de Deus 14 Como decorrência desse caráter universal e divino Tocqueville admite que a França e todo o mundo cristão está vivendo seu próprio processo de mocrático motivo pelo qual é mais do que necessário conhecêlo Inevitável o movimento democrático não pode ser obstacularizado e nem tampouco reverti do No entanto os povos cristãos metáfora das modernas sociedades ocidentais europeias ainda possuem as rédeas de seu próprio destino por isso o primeiro dever que se impõe aos que dirigem nossos negócios é edu car a democracia renovar se possível sua convicção religiosa purifi car sua moral regular seus movimentos substituir gradativamente sua inexperiência pelo conhecimento dos negócios e seus instintos ce gos pela familiaridade com seus verdadeiros interesses e fazêla confor marse com as ocorrências e com o homem da época É necessária uma nova ciência política para um novo mundo15 14 Ibidem p 3637 15 Ibidem p 37 259 Capítulo 10 Alexis de Tocqueville 18051859 o argumento liberal de defesa Lier Pires Ferreira A apreensão do fenômeno democrático possui portanto um nítido cará ter instrumental Tocqueville tem claro que tal como os americanos mais cedo ou mais tarde a França chegará a uma condição democrática equânime Deve portanto prepararse para usufruir dessa condição da melhor forma possível Ratifi cando essa assertiva afi rma que Não foi portanto para satisfazer minha mera curiosidade que exami nei e estudei a América meu desejo foi encontrar ali instrução com a qual possamos lucrar Reconheci essa revolução como um fato já consumado ou em vésperas de consumação e selecionei a nação entre as que já a sofreram na qual seu desenvolvimento tem sido mais pacífi co e mais completo a fi m de discernir suas consequências natu rais e apurar se possível quais os meios de a tornar mais proveitosa à humanidade16 Embora a democracia seja um fenômeno universal e de certa forma um devenir necessário para todos os povos Tocqueville não lhe atribui um caráter va lorativo ético ou moral Magistrado recusase a julgar Como ele mesmo afi rma quem quer que imagine que pretendi escrever um panegírico estará estranhamente enganado e ao ler este livro perceberá que não foi esse o meu desígnio tampouco é meu objetivo advogar qualquer forma de governo em particular pois sou de opinião que a excelência absolu ta raras vezes se encontra em qualquer sistema de leis Nem mesmo pretendi julgar se a revolução social que acredito seja irreversível é vantajosa ou prejudicial à humanidade17 A igualização crescente das condições sociais e políticas entre os homens não tem portanto um conteúdo ou uma forma preestabelecida devendo ocor rer de maneira diferenciada em função das diversas características sociais bem como das ações políticas envidadas pelo povo Serão essas características e essas ações políticas cidadãs que irão determinar se a democracia será liberal como nos Estados Unidos ou tirânica como vista na segunda fase da Revolução Fran cesa18 Tendo por base sua história pessoal e a própria história da França a par tir de 1789 Tocqueville está verdadeiramente preocupado com o fato de que a democracia possa descambar para a tirania Essa preocupação essencial é o eixo de Democracia onde de modo nítido se coloca a seguinte questão como evitar 16 Ibidem p 4445 17 Idem 18 Para maiores explicações ver Sobuol A op cit 260 ELSEVIER Curso de Ciência Política que o avanço irreversível da igualdade entre os homens não sacrifi que a liberda de Entretanto antes de se ver como Tocqueville busca resolver a tensão entre liberdade e igualdade importa demarcar os grandes riscos que ao seu juízo o processo democrático encerra Tal como se depreende de Democracia na América esses riscos são a tirania da maioria e o despotismo de Estado As refl exões do autor sobre a tirania da maioria concentramse no Capí tulo XV da Primeira Parte Nele Tocqueville afi rma que a própria essência do governo democrático consiste na soberania absoluta da maioria pois nada há nos Estados democráticos que seja capaz de lhe resistir Tocqueville 1969 p 130 Sobre esse ponto vale uma ressalva importante É comum pensar que ao oporse à tirania das massas Tocqueville recai na ode ao individualismo Nada mais falso Tocqueville critica o individualismo caracterizandoo como um comportamento que dispõe cada membro da comunidade a se separar da mas sa de seus semelhantes e a isolarse com sua família e amigos e assim depois de ter formado seu pequeno círculo fechado gostosamente abandona a sociedade geral deixando que ela siga sua própria sorte Tocqueville 1969 p 223 Reco nhecendo sua raiz democrática afi rma que à medida que as condições sociais se tornam mais iguais aumenta o número de pessoas que não devem nada a homem algum e nada esperam de ninguém habituamse a pensar que estão sozinhas que de pendem de si próprias e imaginam que têm o destino em suas própria mãos Assim a democracia projetaas de volta para sempre a si próprias e fi nalmente ameaça confi nálas à solidão de seu próprio ser Tocqueville 1969 p 224225 Ao afastar o homem dos seus e monopolizálo em função de seus próprios interesses o individualismo fi lho dileto da democracia e da liberdade é um dos vãos pelos quais o indivíduo perde o interesse pela coisa pública e franqueia espaços para a atuação tirânica das massas Democrático em sua origem o indi vidualismo pode converterse num atalho para a tirania Não menos contundentes são as preocupações de Tocqueville quanto ao despotismo de Estado conquanto seja certo que esse termo não conste de sua obra19 No Capítulo VI do Livro IV da Segunda Parte aquela publicada em 1840 Tocqueville pondera sobre o tema nos seguintes termos 19 A razão mais plausível para que Tocqueville não tenha cunhado uma expressão própria para tamanho risco do processo democrático é de alguma forma fornecida pelo próprio autor na seguinte passagem Penso portanto que a espécie de opressão que ameaça as nações democráticas é diferente de tudo que jamais tenha existido no mundo nossos contemporâneos não encontrarão em suas memórias nenhum protótipo a que possam comparála Procuro em vão uma expressão capaz de traduzir com exatidão a 261 Capítulo 10 Alexis de Tocqueville 18051859 o argumento liberal de defesa Lier Pires Ferreira Acredito que seja mais fácil estabelecer um governo absoluto e despótico no seio de um povo cujas condições da sociedade sejam iguais do que em quaisquer outros e penso que se tal governo viesse alguma vez a ser estabelecido entre esse povo ele não só oprimiria os homens como even tualmente destituiria cada um de várias das mais altas qualidades do ser humano O despotismo portanto pareceme ser especialmente para se temer nos tempos democráticos Tocqueville 1969 p 352 Pontuados tais riscos devese retornar ao tema proposto como Tocque ville busca resolver a tensão entre igualdade e liberdade Sua resposta tem como início uma ponderação Diz o autor sustento ser máxima ímpia e detestável a que politicamente falando dê ao povo o direito de fazer seja o que for e no entanto asseverei que toda autoridade tem origem na vontade da maioria Estarei então en trando em contradição comigo mesmo Tocqueville 1969 p 133 Não é o que o se crê Para Tocqueville pelo princípio majoritário a maioria ganha o direito de governar a sociedade mas não de tiranizála À moda dos juristas que antecedem à vaga positivista que atingirá seu auge com o pensa mento de Hans Kelsen Tocqueville recusase a fundamentar o direito justo nas expressões ordinárias da legislação Para ele Uma lei geral que tem o nome de justiça foi feita e sancionada não apenas pela maioria deste ou daquele povo mas pela maioria da espé cie humana Os direitos de todos os povos estão portanto confi nados dentro dos limites do que é justo A nação pode ser considerada o júri dotado de poderes para representar a sociedade em geral e para apli car a justiça que é á sua lei Seria concebível pudesse tal júri que repre senta a sociedade ter mais poder que a própria sociedade Quando me recuso a obedecer a uma lei injusta não contesto o direito da maioria comandar mas simplesmente apelo da soberania do povo à soberania da espécie humana Sou portanto de opinião que o poder social superior a todos os outros deve ser sempre colocado em algum lugar mas julgo que a liberdade está em perigo quando esse poder não en contra obstáculos que possam retardar seu curso e lhe dar tempo para ideia em sua integridade que formei da mesma as velhas palavras despotismo e tirania não são apropria das a coisa é em si mesma nova e já que não posso lhe dar um nome vou tentar defi nila Procurarei traçar as novas feições sob as quais o despotismo pode aparecer no mundo A primeira coisa que impressiona a observação é a multidão inumerável de homens todos iguais e semelhantes esforçandose incessante mente por conquistar prazeres desprezíveis e insignifi cantes Acima dessa corrida de homens erguese um imenso poder tutelar que sozinho toma para si o encargo de garantir a satisfação de seus desejos e de prestar vigilância seu destino Esse poder é absoluto minucioso regular providente e brando Tocqueville 1969 p 348349 A esse poder se ousa denominar despotismo de Estado 262 ELSEVIER Curso de Ciência Política moderar sua própria veemência O poder ilimitado é em si próprio uma coisa má e perigosa Não existe na terra poder algum tão digno de honra em si próprio ou revestido de direitos tão sagrados que eu lhe pudesse reconhecer autoridade não controlada e todapoderosa20 É evidente que para Tocqueville o poder soberano da maioria que com total justiça governa a vida social e comanda o Estado não possui legitimidade para esmagar a liberdade quer dos indivíduos quer dos grupos minoritários ainda que o faça pelos canais convencionais do Direito e dos poderes públicos Por isso ao refl etir sobre como evitar que nos desníveis da igualdade se alije a liberdade Tocqueville vê claramente a solução a ação política e a força das instituições Para Tocqueville os Estados Unidos são o país que mais proveito retirou da ação política dos cidadãos ação essa que encontra nas associações políticas seu canal privilegiado conquanto não exclusivo de atuação Para o autor o ci dadão dos Estados Unidos aprende desde a infância a confi ar em seus próprios esforços a fi m de resistir aos males e difi culdades da vida olha para a autoridade social com um olhar de desconfi ança e ansiedade e só reclama a sua assistência quando não conseguir passar sem ela21 E continua relatando que se ocorrer um embaraço numa via pública e a circulação de veículos for sustada os vizinhos formamse imediatamente num corpo deliberativo e essa assembleia extempo rânea dá origem a um poder executivo que remedeia o inconveniente antes de alguém ter pensado em recorrer a uma autoridade preexistente superior à das pessoas imediatamente interessadas22 A passagem abaixo retrata com fi dedig nidade a visão de Tocqueville sobre a intensa ação política do povo americano Não é impossível conceberse a surpreendente liberdade de que os americanos gozam como também podese fazer uma ideia de sua ex trema igualdade mas a atividade política que permeia os Estados Uni dos precisa ser vista para ser compreendida Mal se põe o pé no solo americano já se fi ca abismado por uma espécie de tumulto ouvese por todos os lados um clamor confuso e mil vozes exigem simultaneamen te a satisfação de suas necessidades sociais Tudo está em movimento à nossa volta aqui a quarta parte da população de uma cidade está reunida para decidir a construção de uma igreja ali está em curso a eleição de um representante um pouco adiante os delegados de um distrito estão pregando cartazes consultando a população sobre certos 20 Ibidem p 133134 21 Ibidem p 112 22 Idem 263 Capítulo 10 Alexis de Tocqueville 18051859 o argumento liberal de defesa Lier Pires Ferreira melhoramentos locais noutro lugar os trabalhadores de uma aldeia abandonam seus arados para deliberar sobre o projeto de uma estrada ou de uma escola pública Fazemse reuniões com o propósito exclusi vo de se declarar a desaprovação pela conduta do governo enquanto noutras assembleias cidadãos saúdam as autoridades do dia como os pais de seu país Formamse sociedades que consideram a embriaguez a causa principal dos males do Estado e solenemente se comprometem a dar exemplos de temperança A grande agitação política dos corpos legislativos americanos a única que atrai atenção de estrangeiros é um mero episódio ou uma espécie de continuação do movimento univer sal que tem origem nas classes mais baixas do povo e se estende suces sivamente a todas as categorias da sociedade É impossível despender mais esforço na procura da felicidade Os cuidados da política ocupam um lugar preeminente nas ocupações dos cidadãos dos Estados Uni dos e quase que o único prazer que os americanos conhecem é o de tomar parte no governo e discutir suas medidas23 Essa ação política verdadeiro bastião de resistência contra a tirania e o despo tismo se alimenta dentre outros elementos de elevado espírito público e da hones ta veneração pelo ordenamento jurídico Sobre o espírito público tradução completa daquilo que Montesquieu deno minou virtude cívica Tocqueville afi rma que ele resulta do conhecimento é alimentado pelas leis cresce pelo exercício dos direitos civis e no fi nal confundese com os interesses pessoais dos cidadãos O homem compreende a infl uência que o bemestar de seu país tem no seu próprio tem consciência de que as leis lhe permitem contribuir para essa prosperidade e trabalha para promovêla primeiro porque ela o benefi cia e depois porque ela é em parte trabalho seu24 Esse sentimento que atinge o homem na sua dimensão individual tam bém o caracteriza enquanto parte de uma coletividade qualquer que seja sua inserção social Assim Tocqueville afi rma que não só os ricos e privilegiados contribuem para a elevação desse espírito público mas as próprias camadas inferiores da população dos Estados Unidos compreendem a infl uência exercida pela prosperidade geral em seu próprio progresso social Além disso estão habituadas a considerar essa prosperidade como fruto de seus próprios esforços O cidadão olha para a fortuna do bem público como sua própria fortuna e trabalha para o bem do Esta 23 Ibidem p 126127 24 Ibidem p 121 264 ELSEVIER Curso de Ciência Política do não meramente por um sentimento de orgulho ou dever mas por aquilo a que me atrevo chamar cupidez25 Quanto ao ordenamento jurídico há uma frase que parece resumir toda admiração e importância acerca do papel do direito na sociedade americana depois da ideia geral de virtude não conheço princípio mais elevado do que o do direito ou antes estas duas ideias unidas numa A ideia do direito é simples mente a da virtude introduzida no mundo político26 Para Tocqueville foi a ideia de direito que permitiu aos homens defi nirem a anarquia e a tirania e que os ensinou a ser independentes sem arrogância e a obedecer sem servilismo27 Durante os nove meses em que permaneceu nos Estados Unidos Tocque ville pôde identifi car alguns dos principais elementos que fazem da América uma terra onde a condição democrática não elimina a liberdade Conquanto seja ques tionável que sua observação lhe tenha facultado apreender em detalhes todos os múltiplos elementos sóciohistóricos geográfi cos políticos e econômicos que ar ticula e essa é uma crítica frequente que sua obra recebe de modo sintético se podem destacar os seguintes elementos como aqueles que formam a situação acidental e particular em que se encontra a sociedade americana uma terra vir gem sem países que lhe ameacem a integridade territorial e com fartos recursos naturais hábitos e costumes uniformes onde o papel da religião puritana anteci pa talvez de modo débil a relação estudada por Weber entre a ética protestante e o espírito do capitalismo e fi nalmente a força das instituições sociais da qual participa a noção de virtude cívica Uma parte expressiva do Livro I de Democracia na América investiga precisamente esse arquétipo sóciohistórico e institucional da sociedade americana Neste construto se destacam temas como a condição de mocrática do povo americano e a feição popular da soberania nacional o governo local e os efeitos da descentralização política o poder judicial e suas infl uências na sociedade as associações políticas civis ou públicas a liberdade de imprensa dentre outros Mas nenhum tema parece ter tanta relevância quanto a força das normas constitucionais que edifi cam todo o sistema jurídico dos Estados Unidos Com muita propriedade Tocqueville consigna que Ao examinar a divisão de poderes estabelecida pela Constituição Fe deral observando por um lado o quinhão de soberania reservado aos diversos Estados e por outro o quinhão de poder dado à União faz se evidente que os legisladores federais tinham noções muito claras e 25 Ibidem p 122 26 Ibidem p 123 27 Idem 265 Capítulo 10 Alexis de Tocqueville 18051859 o argumento liberal de defesa Lier Pires Ferreira exatas a respeito da centralização do governo O sistema federal foi criado com a intenção de combinar as diferentes vantagens que resul tam da magnitude e da pequenez das nações e um relance nos Estados Unidos revela as vantagens que a nação derivou de sua adoção Objetivos e ideias tangíveis circulam por toda a União tão livremente como num pais habitado por um só povo Nada detém o espírito de em preendimento O governo solicita a ajuda de todos que tenham talento ou conhecimento para o servir Dentro das fronteiras da União como dentro do coração de um grande império prevalece uma paz profunda no exterior situase entre as nações mais poderosas de terra duas mil milhas de costas estão abertas ao comércio do mundo e como tem a chave do Novo Mundo sua bandeira é respeitada nos mares mais re motos A União é feliz como um povo livre e pequeno e gloriosa e forte como uma grande nação28 A breve análise que se empreende sobre Democracia na América não pode ser concluída sem a menção a dois aspectos essenciais sua força preditiva e o reconhecimento de que Tocqueville tal como consignado por Aron não é ne nhum admirador ingênuo da sociedade americana Aron 1990 p 221 Sobre estes dois temas incidirão os esforços a seguir Democracia na América e a nova ciência política proposta por Tocqueville costumam ser frequentemente incensadas pelos seus êxitos preditivos Esta ad miração é absolutamente legítima todavia não se pode esquecer que seu poder preditivo tem caráter estritamente metodológico não premonitório Como se disse o método em Tocqueville conjuga duas práticas já enunciadas por Mon tesquieu o comparativismo e a construção tipológica Tendo como eixo o binô mio liberdade igualdade Tocqueville contrasta práticas usos e instituições sociais e políticas presentes privilegiadamente nos EUA e na França Conjugan do elementos históricos geográfi cos políticos econômicos e sociais tenta des vendar as contradições do presente e por vezes realizar prognósticos para o futuro Dois dos mais famosos prognósticos presentes em Democracia na América referemse ao avanço dos EUA sobre o território mexicano e ao papel que seria desempenhado pelos EUA e pela Rússia nas décadas vindouras A respeito do avanço dos anglosaxões sobre as antigas possessões espa nholas Tocqueville afi rma que O território ocupado ou possuído agora pelos Estados Unidos da Amé rica forma aproximadamente a vigésima parte da terra habitável Mas por muito extensos que sejam estes limites não se deve supor que a 28 Ibidem p 95101 266 ELSEVIER Curso de Ciência Política raça angloamericana fi cará sempre dentro dos limites dos mesmos na verdade já foi muito além deles As terras do Novo Mundo per tencem ao primeiro ocupante são a recompensa natural do pioneiro mais veloz Até os países já povoados terão certas difi culdades para se garantirem contra estas invasões Já aludi ao que está tendo lugar na província do Texas Os habitantes dos Estados Unidos estão perpe tuamente emigrando para o Texas onde compram terras e embora se conformem com as leis do país estão gradualmente fundando o impé rio de sua própria língua e de suas próprias maneiras A província do Texas faz ainda parte dos domínios mexicanos mas logo não conterá mexicanos Tocqueville 1969 p 160161 Já sobre o papel que os EUA e Rússia irão desempenhar no decurso da história não há dúvidas de que a força analítica de Tocqueville encontrou nos fatos uma base inquestionável de legitimação Diz o autor Em nossa época há duas grandes nações no mundo que começaram em pontos diferentes mas parecem tender para o mesmo fi m Faço alusão aos russos e americanos Ambas cresceram despercebidas e enquan to a atenção da espécie humana se dirigia para outras partes elas su bitamente se colocavam na primeira fi la entre as nações e o mundo descobriu sua existência e sua grandeza quase ao mesmo tempo To das as outras nações parecem ter quase atingido seus limites naturais e apenas têm de manter seu poder mas estas estão ainda no ato de crescimento Todas as outras pararam ou continuam avançando com extrema difi culdade só estas prosseguem com facilidade e celeridade ao longo de um caminho ao qual não se pode perceber nenhum limite Os americanos lutam contra os obstáculos que a natureza lhes opõe os adversários e dos russos são homens Os primeiros combatem a imen sidão e a vida selvagem os últimos a civilização com todas as suas armas As conquistas dos americanos são portanto feitas com o arado as dos russos com a espada O angloamericano confi a no interesse pessoal para conseguir seus fi ns e dá livre expansão à força e ao senso comum espontâneos do povo os russos centralizam toda a autoridade da sociedade num só braço O instrumento principal dos primeiros é a liberdade dos últimos a servidão Seus pontos de partida são diferen tes e seus cursos não são os mesmos no entanto cada um deles parece marcado pela vontade dos Céus para controlar os destinos da metade do globo Tocqueville 1969 p 164165 No que se refere à admiração de Tocqueville pela democracia e em espe cial pela democracia americana há ponderações importantes que não podem 267 Capítulo 10 Alexis de Tocqueville 18051859 o argumento liberal de defesa Lier Pires Ferreira ser negligenciadas Tocqueville considera que a democracia é um fato histórico universal e irreversível Dado posto seu primeiro propósito é investigála a fi m de conhecêla tão profundamente quanto possível Esse propósito essencial aos homens dedicados à vida intelectual encontrase expresso com clareza solar já na introdução que faz à obra Diz o autor confesso que na América vi mais do que a América ali busquei a imagem da própria democracia com suas inclina ções seu caráter seus preconceitos e suas paixões a fi m de saber o que deve mos recear ou esperar de seu progresso Tocqueville 1969 p 45 Ao estudar a América Tocqueville não busca a infância da Europa mas antes o seu futuro 104 Da colonização na Argélia Antes de adentrar especifi camente na análise do texto importa fi rmar que Da colonização na Argélia não é um livro mas antes uma coletânea que reúne três escritos produzidos entre 1837 e 184729 fase intermediária às grandes obras do autor Democracia na América já analisada e O Antigo Regime e a Revolução que será vista adiante Nessa coletânea se encontra aquele que talvez seja o ele mento mais controvertido de seu pensamento a defesa da colonização francesa na Argélia Mas a controvérsia não é o único e talvez não seja mesmo o elemento mais importante da obra ora em destaque Uma visão ainda que breve sobre os textos argelianos de Tocqueville parece importante na medida em que permite a confrontação entre os elementos gerais da sua teoria sobre a inevitabilidade da igualização das condições sociais em face da liberdade e a análise de um caso concreto que lhe sirva como teste Parece inequívoco que a despeito de sua origem aristocrática Tocqueville se identifi ca com os princípios fundamentais da Revolução Francesa liberdade igualdade e fraternidade Em O Antigo Regime e a Revolução ao reconhecer que a igualização das condições sociais e políticas entre os homens é um fenômeno irreversível de nítido caráter Providencial e admitir que a decomposição da velha ordem nobiliar não poderia resultar em outra realidade que não a Revo lução Tocqueville irá perfi larse ao lado daqueles que com maior ou menor en tusiasmo nutrem sincera admiração pelo grande feito dos franceses Inobstante há de se reconhecer que a conquista colonial na Argélia ou alhures é absolu tamente contrária a esses princípios sendo pois ao mesmo tempo antítese da Revolução e da liberdade Como então justifi car as possessões francesas no norte da África Que princípios ou valores podem legitimar a dominação colonial O amor pela liberdade propugnado por Tocqueville tombaria tão facilmente dian 29 As três obras citadas são Lettre sur lAlgérie 1837 Travail sur lAlgérie 1841 e Rapport sur lAlgérie 1847 268 ELSEVIER Curso de Ciência Política te das vantagens advindas da colonização Não seria portanto autêntica a ido latria do autor pela liberdade Antes de responder a essas interrogações há que se assinalar que Tocque ville rejeita frontalmente a escravidão sobre a qual a dominação colonial se ba seia Esta rejeição pode ser verifi cada em diferentes momentos dentre os quais a passagem em que afi rma que em todo Oriente esta odiosa instituição perdeu uma parte de seus rigores Mais por ter se tornado mais doce nem assim tornou se menos contrária a todos os direitos naturais da humanidade30 Embora argu mente em consonância com o período histórico no qual vive que a abolição da escravatura pressuponha a necessidade de indenizar os antigos proprietários de escravos nas colônias africanas é certo que Tocqueville rejeita a escravidão e a humilhante condição que impõe aos escravos Mas é certo que essa refl exão conquanto louvável para a biografi a do autor ainda não explica como Tocqueville justifi ca a colonização francesa na Argélia O primeiro auxílio nessa direção diz respeito à sua convicção de que a dominação colonial cumpre uma função civilizadora função esta que hoje é negativamente avaliada como etnocêntrica e discriminatória na medida em que nega ao outro a humanidade inscrita em você mesmo No entanto Tocqueville crê ou ao menos postula que o domínio colonial na Argélia pode concorrer para o aprimoramento político e sociocultural dos povos autóctones contribuindo por vias transversas para a afi rmação próxima futura de melhores condições de existência É um primeiro argumento Mas as razões mais substanciais que levam Tocqueville a apoiar o domínio colonial na Argélia obedecem a uma lógica de Estado sendo certo que o período no qual ele produz A Colonização coincide com aquele em que exerce suas mais elevadas funções públicas salvo o cargo ministro de Estado Talvez por isso seu apoio à colonização da Argélia possua caráter essencialmente político e social Tocqueville deixa claro que o primeiro motivo a justifi car seu apoio ao domínio da Argélia é a grandeza da França do seu povo e quiçá de sua Revolução Diz Tocqueville não creio que a França pudesse sequer sonhar em libertar a Argélia O abandono da região seria visto aos olhos do mundo como sinal de sua decadência31 E continua argumentan do que se a França recuar de uma empreitada ou tal empreitada não for levada à cabo em função das difi culdades naturais da região ou em face da oposição das 30 TOCQUEVILLE A De la Colonie em Algérie Bruxelas Editons Complexe 1988 p 179 Livre Tradução 31 TOCQUEVILLE A De la Colonie em Algérie Bruxelas Editons Complexe 1988 p 57 Livre Tradução 269 Capítulo 10 Alexis de Tocqueville 18051859 o argumento liberal de defesa Lier Pires Ferreira pequenas tribos bárbaras que a habitam ela parecerá aos olhos do mundo do brarse à própria impotência e sucumbir ao defeito de seu coração Todos crêem que um país que se retira passivamente de seus próprios antigos domínios pro clama que os bons tempos de sua história são passados E abrese visivelmente o período de seu declínio32 E adiante conclui ponderando que a libertação da região além de contrariar os mais altos interesses do Estado e da sociedade francesa seria absolutamente inútil para a própria Argélia Isso é incontestável Se essas possessões territoriais fugirem de nossas mãos elas passarão a ser de algum outro povo na Europa33 Central em sua argumentação essa lógica de Estado não é todavia ex clusiva A ela se juntam outros elementos dos quais o mais importante é o eco nômico Tocqueville faz esse destaque em duas partes Na primeira releva a centralidade do porto de MerselKébir para o comércio marítimo e na segunda a posição geoestratégica da própria Argélia tanto em nível comercial quanto em nível militar A conexão entre os planos políticosocial e econômico uma cons tante na perspectiva metodológica do autor permite identifi car um liame entre o texto em tela e o conjunto dos seus escritos No entanto mesmo com essas considerações é fato que a defesa da colonização da Argélia destoa do conjunto da obra de Tocqueville É bem verdade que premido por seu amor pela liberdade Tocqueville rejeita frontalmente a escravidão sobre a qual a dominação colonial se baseia Essa rejeição pode ser verifi cada em diferentes momentos de Da colonização na Argélia dentre os quais a passagem em que afi rma que em todo Oriente esta odiosa instituição perdeu uma parte de seus rigores Mas por ter se tornado mais doce nem assim tornouse menos contrária a todos os direitos naturais da humanidade Tocqueville 1988 p 179 livre tradução Mas mesmo sob tais escusas é fato que o eixo de Da colonização na Argélia afastase da postura social e política que Tocqueville protagonizou em Democracia na América e voltará a fazêlo em O Antigo Regime e a Revolução Igualmente alguns argumentos como a necessidade de indenizar os antigos proprietários no caso da abolição da es cravatura nas colônias africanas podem ser plenamente coerentes com a época do autor mas soam dissonantes com a herança que seu pensamento deixa para a posteridade De todo modo além da afi rmação metodológica e da percepção de que elementos como território e afi rmação econômica e militar são importan tes para a grandeza de uma nação itens claramente percebidos por Tocqueville em Democracia na América mormente quando trata da expansão americana para 32 Ibidem p 6061 Livre Tradução 33 Ibidem p 6061 Livre Tradução 270 ELSEVIER Curso de Ciência Política o Oeste há pelo menos uma outra grande identidade que se não importante para a compreensão do seu pensamento é pelo menos curiosa para aqueles que se aproximam pela primeira vez de sua obra seu alto poder preditivo Tal como procede em Democracia na América Tocqueville produz aqui pelo menos uma grande previsão cuja realização histórica reproduz fi elmente suas palavras A comissão está convencida de que de nossa maneira de tratar os in dígenas africanos depende o futuro de nossa dominação na África Ela crê que um bom governo pode concorrer para a pacifi cação do país e diminuir notavelmente nosso contingente militar Que em caso contrário a colonização há de se tornar uma questão de vida ou morte entre duas raças A Argélia deveria cedo ou tarde creiam tornarse um campo fechado uma arena murada ou os dois povos deverão com bater sem tréguas e onde um deles deverá morrer Deus afaste de nós senhores um tal destino Tocqueville 1988 p 178179 livre tradução Podese afi rmar em síntese que Da colonização na Argélia é uma obra onde o homem de Estado suplanta o intelectual Conquanto haja elementos de coerência com seus grandes escritos em especial Democracia na América a única já conclu sa até então parece claro que a defesa da liberdade e dos direitos individuais é incompatível com a razão de Estado que motiva sua defesa do domínio colonial sobre a Argélia que em muitos casos parece ser tomada como um ente abstrato e não como uma região concreta historicamente contextualizada e habitada por povos culturalmente relevantes para a própria trajetória civilizacional do Ociden te Por outro lado enquanto campo de testes para as linhas gerais de seu pensa mento Da colonização na Argélia talvez seja um empreendimento de êxito relativo quando não questionável na medida em que a relação democracia liberdade é negligenciada em favor de uma refl exão contextual onde os interesse do Estado francês são o eixo fundamental Assim Da colonização na Argélia é antes de tudo uma obra com propósitos políticos não uma obra sobre política Mas há um aspecto a destacar que talvez permita uma melhor compre ensão da obra em tela Em sua essência tal como Montesquieu Tocqueville é um pensador liberal E o liberalismo visa a garantir o livre desenvolvimento das capacidades individuais A visão colonialista de Tocqueville parece pois um prolongamento de seu liberalismo na medida em que busca legitimar a ação colonizadora da França Nesse sentido a única crítica que o autor receia em face da defesa que procede é a comprovação de que a colonização seria contrária aos interesses da França Podese ver portanto que se não é plenamente coerente com seu pensamento em Da colonização na Argélia Tocqueville é ao menos coe rente consigo mesmo 271 Capítulo 10 Alexis de Tocqueville 18051859 o argumento liberal de defesa Lier Pires Ferreira 105 O Antigo Regime e a Revolução A vaga revolucionária que varre a Europa entre os anos de 1830 e 1850 tem sua máxima expressão na França em 1848 por ocasião das Jornadas de Ju nho34 Dentre as muitas vítimas desse movimento radical encontrase Tocque ville demitido do ministério dos Assuntos Estrangeiros em outubro de 1849 apenas nove meses após assumir sua mais relevante e breve função pública Sua vida de homem de Estado chegada ao fi m não lhe custara mais do que duas décadas Mas o revés do homem público serve uma vez mais ao intelectual Liberto das atribulações da administração e da política Tocqueville submerge em um mar de livros e documentos Ao voltar à tona traz consigo o segundo grande trabalho de sua vida aquele que ao lado de Democracia na América é responsável por seu lugar cativo no pantheon dos grandes pensadores políticos O Antigo Regime e a Revolução Essa obra meticulosamente concebida ao longo de cinco anos surge para o mundo em 1856 exatos 20 anos após a publicação de Estado social e político da França antes e depois de 1789 onde pela primeira vez de modo sistemático Tocqueville refl ete sobre a Revolução Francesa Voltar ao tema da Grande Revolução em meados do século XIX pode pa recer que O Antigo Regime e a Revolução é uma obra de caráter histórico Pobre conclusão O próprio Tocqueville no prefácio à primeira edição deixa isso bem 34 As Jornadas de Junho representaram o ápice da vaga revolucionária que tendo varrido a Europa teve na França seu momento maior Após a vitória do grupo político ao qual Tocqueville pertencia ao qual em O 18 Brumário Marx denomina partido da ordem ou seja orleanistas e legitimistas apoiados por di versos segmentos de burguesia nacional e das eleições para a Assembleia Constituinte nascia ofi cialmente a II República francesa Essa República no entanto que nas palavras de Maurice Agulhon mostravase crescentemente hostil ao socialismo e mais tarde se tornaria abertamente conservadora e até reacionária 1848 o aprendizado da República Rio de janeiro Paz e Terra 1991 p 17 não fará cessar os vícios que originaram os levantes de fevereiro A partir de 15 de maio data da invasão da Constituinte liderada por Blanqui a opinião pública começa a trilhar outros caminhos alterando profundamente no início de junho o caráter conciliador que a caracterizara desde fevereiro A situação tornouse insustentável quando a Comissão Executiva que exercia o governo promulgou um decreto extinguindo as ofi cinas nacionais Já no dia seguinte teve início a grande agitação operária que culminou na madrugada do dia 23 numa grande concentração na praça da Bastilha Começara a revolta operária que entrou para a história com o nome de Jornadas de Junho Em seus três dias o derramamento de sangue foi intenso O triunfo do governo burguês capitaneado por Luís Filipe acarretou a morte de 800 civis nos combates de rua Para reafi rmar seu poder após a restauração da ordem 11 mil cidadãos foram condenados à morte por fuzilamento e dos 25 mil in surretos detidos 3500 foram desterrados As Jornadas de Junho não foram vistas como uma revolução de caráter socialista como será em 1871 a Comuna de Paris ou mera desobediência à ordem constituída Para a burguesia e para os partidários da ordem entre eles Tocqueville representou os riscos que o governo de mocrático trazia em seu interior Daí a palavra de ordem que ecoando nos salões e no Parlamento diziam Que se calem os pobres O sonho de um Estado democrático e libertário que acolhesse os interesses da classe trabalhadora chegara ao fi m naquele momento 272 ELSEVIER Curso de Ciência Política claro ao afi rmar que o livro que publico agora não é uma história da Revolu ção história que foi feita com demasiado brilho para que eu chegue a sonhar em refazêla tratase de um estudo sobre a revolução Tocqueville 1989 p 42 Qual seria pois o caráter desse estudo Seria um trabalho de cunho jurídico ou uma obra essencialmente fi losófi ca Não Tratase antes de tudo de um estudo sociológico de caráter e método análogos aos que foram desenvolvidos em De mocracia na América Tal como consignado por Tocqueville a fi nalidade da obra é fazer compreender por que esta grande revo lução que se preparava ao mesmo tempo em quase todo o continente explodiu em nosso país mais cedo que alhures por que saiu como de si própria da sociedade que ia destruir e como a monarquia pôde cair de uma maneira tão completa e tão repentina Tocqueville 1989 p 45 O que O Antigo Regime e a Revolução possui de história e é inequívoco que possui nada tem a ver com as predileções de Tocqueville pelo passado aristo crático e nobiliar da França e muito menos por um eventual apreço pela obra dos grandes historiadores da Revolução Francesa como Michelet35 Thiers36 ou mesmo Guizot37 O que Tocquevile busca em seu estudo sobre a Revolução de 1789 é apreender o sentido da França de seus dias Ocupase pois com o pre sente não com o passado Em nível estrutural O Antigo Regime e a Revolução é dividido em três partes A primeira delas o tomo I delimita o signifi cado histórico da Revolução Esse sig nifi cado se apresenta por inteiro nas palavras de Tocqueville quando afi rma que a Revolução Francesa é uma revolução política que operou à maneira de uma revolução religiosa e tomou alguns de seus aspectos Vejam quais os traços particulares e característicos que completam a semelhança não somente expandese para longe mas também lá penetra através da pre gação e da propaganda Uma revolução política inspirando o proselitis mo Uma revolução política que se prega com o mesmo ardor e a mesma paixão aos estrangeiros quanto em casa Tocqueville 1989 p 59 E continua afi rmando que a Revolução Francesa agiu em relação a este mundo exatamente como as revoluções religiosas operam em relação ao outro Tem considerado o cidadão de uma maneira abstrata fora de qualquer sociedade particular da mesma maneira como as religiões consideram o homem em geral independente do país e da época Não pesquisou tão somente qual era 35 Michelet Jules Historia da Revolução Francesa da queda da Bastilha à festa de Federação São Paulo Cia das Letras Circulo do Livro 1989 36 Th iers Adolphe Histoire de la Revolution francaise httpwwwdominiopublicogovbr 37 Guizot François Historia de la Civilización em Europa Madri Alianza Editorial 1990 273 Capítulo 10 Alexis de Tocqueville 18051859 o argumento liberal de defesa Lier Pires Ferreira o direito particular do cidadão francês mas também quais os deveres e direitos gerais do homem em matéria política Tocqueville 1989 p 60 A apreensão do signifi cado histórico da Revolução todavia não escla rece por que ela ocorre na França antes que em qualquer outra nação do Velho Mundo ou por que só na França apresenta características que em outros lugares só foram observadas em caráter parcial eou com menor intensidade Decifrar esse enigma é a tarefa que Tocqueville se propõe nas duas partes que se seguem Para tal no tomo II investiga as causas ancestrais da Revolução Já no tomo III o derradeiro analisa o que denomina causas recentes ou imediatas da Revolução A segunda parte de O Antigo Regime e a Revolução principia com um racio cínio surpreendente Tocqueville afi rma que a Revolução cujo objetivo real era abolir por toda parte as institui ções da Idade Média não explodiu nos países onde estas instituições mais bem conservadas faziam sentir ao povo com mais força seu rigor e sua opressão mas ao contrário naqueles onde menos se fazia sentir foi que seu jugo pareceu mais insuportável lá onde era na realidade o menos pesado Tocqueville 1989 p 71 Para corroborar tão surpreendente assertiva Tocqueville fornece dados que ainda hoje intrigam aqueles que se iniciam no estudo das condições sociais e políticas da França prérevolucionária Segundo o autor ao passo que nos Esta dos Germânicos a servidão encontravase com plena força e o povo continuava legalmente preso à terra como na Idade Média enquanto nesses Estados a cor veia senhorial representava até três dias semanais do trabalho rural enquanto o camponês tinha seu trabalho diretamente controlado pelo senhor não sendo capaz portanto de alienar ou hipotecar seu campo enquanto na maioria desses Estados nem mesmo o direito sucessório era garantido havia muito tempo que nada semelhante existia na França o camponês ia e vinha onde queria comprava vendia negociava como o queria Os últimos vestígios da servidão só se notavam numa ou duas províncias do Leste que eram províncias conquistadas Na França o cam ponês não tinha tão somente deixado de ser servo tornarase proprie tário rural Tocqueville 1989 p 71 Por isso dirá Tocqueville é precisamente nesse cenário em que a desigual dade das condições políticas e sociais era menor do que na maioria dos países europeus onde o camponês em larga medida proprietário escapara por comple to ao domínio político da nobreza é precisamente aí que os resquícios da velha ordem são mais insuportáveis E o eram na França de modo tanto ou quanto mais intenso quando se recorda que em sua maioria os direitos feudais restantes ti nham natureza essencialmente pecuniária Tal como consignado por Tocqueville 274 ELSEVIER Curso de Ciência Política Quando a nobreza possui não somente privilégios mas também pode res quando governa e administra seus direitos particulares podem ser ao mesmo tempo maiores e menos visíveis Nos tempos feudais consi deravase a nobreza mais ou menos como consideramos hoje o gover no aguentavam os encargos que impunha tendo em vista as garantias que dava Os nobres tinham privilégios constrangedores possuíam direitos onerosos mas garantiam a ordem pública faziam a justiça mandavam executar as leis socorriam o fraco dirigiam os negócios co muns À medida que a nobreza deixa de fazer essas coisas o peso de seus privilégios tornase maior e sua existência acaba incompreensível PeçoIhes imaginarem o camponês francês do século dezoito ou melhor aquele que conhecem pois sempre permanece o mesmo mu dou sua condição mas não seu estado de espírito Vejamno tal como os documentos que citei o descrevem tão apaixonado pela terra que gasta todas as suas economias para comprála e a com pra a qualquer preço Para adquirila precisa primeiro pagar um direito não ao governo mas a outros proprietários da vizinhança que lhe são tão estrangeiros quan to a administração dos negócios públicos e são quase tão impotentes quanto ele Finalmente a possui nela sepulta seu coração ao mesmo tempo que suas sementes Este pedacinho do solo que lhe pertence neste vasto universo encheo de orgulho e de independência Surgem entretanto os mesmos vizinhos que o arrancam ao seu campo obrigan doo a ir trabalhar alhures sem salário Se quiser defender suas semen tes contra a caça fi ca impedido de fazêlo pelos mesmos homens e os mesmos esperamno na travessia do rio para exigir um direito de pe dágio Encontraos novamente no mercado onde vendemlhe o direito de vender seus próprios gêneros alimentícios e quando de volta a casa quer empregar para seu uso a sobra de seu trigo este trigo que cresceu sob os seus olhos e pelas suas mãos só pode fazêlo após ter manda do moêlo no moinho e cozêlo no forno destes mesmos homens Uma parte da renda de sua pequena posse é destinada a dar rendas para eles e estas rendas são imprescindíveis e irresgatáveis Qualquer coisa que faça sempre encontra no seu caminho estes vizinhos in cômodos que perturbam sua alegria difi cultam seu trabalho comem seus produtos e quando termina com eles outros vestidos de preto apresentamse e tiramlhe a maior parte de sua colheita Imaginem a condição as ne cessidades o caráter as paixões deste homem e calculem se o conse guirem o amontoado de ódio e inveja que se juntou em seu coração O feudalismo continuou sendo a maior de todas as nossas instituições civis quando deixou de ser uma instituição política Assim reduzida provocava ainda muito mais ódio e esta verdade permitenos dizer que 275 Capítulo 10 Alexis de Tocqueville 18051859 o argumento liberal de defesa Lier Pires Ferreira ao destruir uma parte das instituições da Idade Média tornarase cem vezes mais odioso o que delas sobrava Tocqueville 1989 p 7576 Mas o enfraquecimento dos laços feudais ou ao menos seu esfacelamento social e político não é o único motivo pelo qual a França restava transforma da e que fi zera com que a Revolução tivesse sido não apenas inevitável mas fundamentalmente ardorosa e avassaladora Para além das transformações na estrutura fundiária Tocqueville põe ênfase na centralização burocrática e ad ministrativa ou seja num conjunto de transformações operadas em nível do Estado Diz o autor que outrora ouvi um orador falar na centralização administrativa esta bela conquista da Revolução que a Europa nos inveja Admito que a centralização é uma bela coisa consinto que a Europa nos inveja mas sustento que não é uma conquista da Revolução É ao contrário uma conquista do antigo regime aliás a única parte da constituição política do antigo regime que sobreviveu à Revolução porque era a única que podia encaixarse no novo estado social criado por esta revolução To cqueville 1989 p 77 Mais adiante Tocqueville sedimenta seu raciocínio Recapitulemos agora o que dissemos nos três capítulos anteriores um corpo único colocado no centro do reino que regulamenta a administra ção no país todo um mesmo ministro dirigindo a quase totalidade dos negócios interiores em cada província um só agente que cuida de toda a rotina nenhum corpo administrativo secundário ou corpos podendo agir sem autorização prévia tribunais de exceção julgando os negócios ao interesse da administração e dando cobertura a todos os seus agen tes O que signifi ca tudo isto a não ser a centralização que conhecemos Suas formas são menos nítidas que hoje suas diligências são menos reguladas sua existência é mais perturbada mas é o mesmo ser Não foi necessário acrescentarlhe ou tirarlhe nada essencial bastou derru bar tudo que a envolvia para que surgisse tal qual a vemos Como foi possível criar estas instituições tão novas na França no meio dos destroços da sociedade feudal Não foi tanto obra de força e de plenos poderes quanto uma obra de paciência habilidade e tempo Quando a Revolução surgiu ainda não tinham destruído quase nada do velho edifício administrativo da França tinham por assim dizer construído outro sobre seus alicerces Nada indica que para realizar este trabalho difícil o governo do antigo regime tenha seguido um plano profunda mente estudado de antemão contentouse em seguir o instinto que leva qualquer governo a querer dirigir sozinho seus negócios e que sempre 276 ELSEVIER Curso de Ciência Política permanece o mesmo qualquer que seja a diversidade de seus agentes Deixara aos antigos poderes aos nobres e aos aristocratas seus nomes antigos e as honrarias que os acompanhavam mas solapou pouco a pouco sua autoridade Não os expulsou mas tiroulhes lentamente suas atribuições Tirava proveito de seus vícios que jamais tentou corrigir pois só estava interessado em substituílos quase todos por um agente único o intendente cujo próprio nome era desconhecido quando nas ceram A centralização administrativa Os primeiros esforços da Revolução tinham destruído esta grande instituição da monarquia foi restaurada em 1800 Não foram como disseram tantas vezes os prin cípios administrativos de 1789 que triunfaram nessa época e depois mas ao contrário os princípios do antigo regime que voltaram todos a imperar e lá fi caram Se me perguntarem como esta porção do antigo regime assim pôde ser transferida inteiriça na nova sociedade e nela se incorporar responderei que a centralização não pereceu com a Revo lução porque era o próprio começo e o próprio sinal desta Revolução e acrescentarei que quando um povo destrói em seu seio a aristocracia corre em direção à centralização como atrás de si mesmo Então é mais fácil jogálo neste declive que freálo Em seu seio todos os poderes tendem naturalmente à unidade e é preciso muita arte para separálos A revolução democrática que destruiu tantas instituições do antigo re gime tinha portanto que consolidar esta unidade e a centralização en contrava com tanta naturalidade seu lugar na sociedade formada pela Revolução que é fácil entender por que a consideram obra sua Toc queville 1989 p 9394 O trecho acima torna evidente a explicação Tocquevilleana sobre a revo lução A sociedade francesa do século XVIII tornarase demasiadamente demo crática e igualitária para o que conservava de aristocrática e nobiliar ao mesmo tempo que permanecia excessivamente aristocrática e nobiliar para o que já se tornara democrática e igualitária Essa tensão essencialmente dialética eviden cia o quanto a Grande Revolução é fruto de uma dicotomia intensa que não per mite equação Não sendo possível desfazer o longo trajeto já percorrido restou à sociedade completar sua obra Esse raciocínio é importante para que se perceba a originalidade da interpretação Tocquevilleana sobre a Revolução Francesa Ao passo em que todas as grandes interpretações da época com exceção talvez de Guizot afi rmam que a Revolução mudou a França Tocqueville percebe que ela só foi possível porque a França já havia mudado Ou seja enquanto se buscava compreender as novas realidades pelos câmbios ocorridos pela vaga revolucio nária Tocqueville procurava identifi car as mudanças que ocorridas no passado 277 Capítulo 10 Alexis de Tocqueville 18051859 o argumento liberal de defesa Lier Pires Ferreira tornaram possível a Revolução É portanto para os elementos de continuidade e não para os de ruptura que Tocqueville se volta No entanto as condições pelas quais a Revolução era iminente presentes no tomo II não são sufi cientes para explicar que eventos a precipitaram ou de outra forma determinaram sua eclosão Essas respostas são precisamente o que se denominou anteriormente as causas recentes da Revolução A terceira parte de O Antigo Regime e a Revolução é onde essas causas são abordadas Toc queville divideas em três as causas intelectuais as religiosas e as econômicas Ao abordar as causas intelectuais Tocqueville afi rma que A França era de há muito entre todas as nações da Europa a mais li terária Contudo seus homens de letras nunca tinham demonstrado o espírito que revela ram em meados do século XVIII nem ocupado o lugar que então galgaram Todavia não permaneciam como a maioria de seus iguais na Alemanha completamente alheios à política e entrincheirados no domínio da fi losofi a pura e das belasletras Cuida vam sem cessar de assuntos relativos ao governo e esta era na verdade sua ocupação própria Eram ouvidos discorrendo todos os dias sobre a origem das sociedades e suas formas primitivas sobre os direitos pri mordiais dos cidadãos e das autoridades sobre as relações naturais e artifi ciais dos homens so bre os erros e a legitimidade dos costumes e sobre os próprios princípios das leis Penetrando deste modo até as bases da constituição de seu tempo examinavam com curiosidade sua estrutura e criticavam o plano geral Esta espé cie de política abs trata e literária espalhavase em doses desiguais em todas as obras da época sem exceção desde o tratado sisudo até a canção Quanto aos sistemas políticos destes escritores tanto variavam que não seria pos sível tentar conciliálos e transformálos numa teoria única de governo Tocqueville 1989 p 143 Esta ressalva é antes uma constatação do que uma crítica Visa a identifi car suas consequências e não julgar o seu caráter Nesse propósito Tocqueville afi rma que Não foi por acaso que os fi lósofos do século XVIII conceberam noções tão opostas àquelas que ainda serviam de base à sociedade de seu tem po essas ideias foramlhes naturalmente sugeridas pela própria con templação dessa sociedade que tinham sob os olhos O espetáculo de tantos privilégios abusivos e ridículos dos quais sentiam sempre mais o peso e percebiam sempre menos as causas em purrava ou melhor precipitava simultaneamente o espírito de cada um para a ideia da igualdade natural das condições A própria condição destes escrito 278 ELSEVIER Curso de Ciência Política res preparavaos para apreciar teorias gerais e abstratas em matéria de governo e nelas confi ar cegamente No afastamento quase infi nito da prática em que viviam nenhuma experiência moderava suas paixões instintivas nada lhes anunciava os obstáculos que só os fatos concre tos podiam er guer contra as reformas mais desejáveis Não tinham a menor ideia dos perigos que sempre acompanham as revoluções mais necessárias Nem chegavam a prever esses obstáculos pois a total au sência de liberdade política faz com que ignorassem o mundo dos ne gócios mais de que isto lhes era invisível Nele nada realizavam nem mesmo chegando a enxergar o que os outros realizavam Faltavalhes portan to este conhecimento superfi cial que a visão de uma sociedade livre e o eco de tudo que nela se comenta dão até àqueles que menos se preocupam com as coisas do governo Tor naramse mais ousados em suas novidades mais apaixonados por ideias gerais e sistemas mais contendores da sabedoria antiga e mais confi antes ainda em sua ra zão individual que os autores de livros sobre a política Tocqueville 1989 p 144 Adiante completando seu raciocínio Tocqueville afi rma que A própria língua da política tomou algo emprestado à língua dos auto res e encheuse de expressões gerais termos abstratos palavras ambi ciosas um jeitinho literário Ajudado pelas paixões políticas este estilo penetrou em todas as classes e desceu com uma singular facilidade até as camadas mais baixas da população Essas qualidades incorpo raramse tão bem no velho fundo do caráter francês que atribuíram muitas vezes à nossa natureza o que só provinha dessa educação sin gular Ouvi afi rmar que o gosto ou até a paixão que demonstramos há sessenta anos em matéria política para as ideias gerais os sistemas e as grandes palavras vinham de não sei que atributo peculiar à nossa raça que chamavam um pouco enfaticamente o espírito francês como se este pretenso atributo pudesse ter surgido repentinamente em fi ns do século passado após terse escondido durante todo o resto da nossa história Tocqueville 1989 p 148 A segunda das causas recentes destacadas por Tocqueville referese aos efeitos da irreligiosidade que a seu juízo tornarase uma paixão dominante na França antes da Revolução Desde a grande revolução do século XVI quando o espírito de pesqui sa resolveu separar as falsas e as verdadeiras tradições cristãs sempre surgiram espíritos mais curiosos ou mais atrevidos que contestaram ou rechaçaram todas elas de vez Podese dizer de uma maneira geral 279 Capítulo 10 Alexis de Tocqueville 18051859 o argumento liberal de defesa Lier Pires Ferreira que no século XVIII o cristianismo ti nha perdido em todo o continente da Europa uma grande parte de sua força To davia na maioria dos pa íses era antes abandonado que combatido com violência e até aqueles que o deixavam pareciam fazêlo a contragosto Tocqueville 1989 p 149 Mais à frente conclui Em nenhum lugar a irreligiosidade tornarase uma paixão geral into lerante ou opressiva a não ser na França Lá acontecia algo que ainda não se encontrara antes Na França atacam com uma espécie de furor a religião cristã sem mesmo tentar colocar outra em seu lugar Tra balharam com ardor e continuidade para tirar às almas a fé que as en chia e deixaramnas vazias Esse empreendimento ingrato in fl amou uma multidão de homens A absoluta incredulidade em matéria de reli gião que é tão contrária aos instintos naturais do homem e coloca sua alma numa situação tão dolorosa pareceu atraente à multidão O que só en gendrara até então uma espécie de langor doentio promovera desta vez o fanatismo e o espírito de propaganda Tocqueville 1989 p 149150 Não há dúvida de que para Tocqueville essa irreligiosidade está relacio nada à ascendência dos escritores e dos intelectuais sobre a sociedade mormen te pelo fato de que na França a Igreja não possuía nada de mais odioso do que era possível verifi car em outros países europeus Ao contrário Para Tocqueville a Igreja na França era mais tolerante e aberta do que o era alhures Inobstante o poder espiritual da Igreja baseavase nos costumes e nas tradições e a ideologia literária das luzes Voltaire adiante desprezava tudo e todos que fundamentas sem sua identidade seu prestígio e seu poder no passado um passado incom patível com as luzes da razão e com o individualismo burguês Outro aspecto da irreligiosidade investigado por Tocqueville referese ao fato de que a Igreja talvez fosse o lado mais vulnerável da ordem social sob ata que Segundo Tocqueville seu poder enfraqueceuse à medida em que o poder dos príncipes se fi rmou Tinha sido seu superior depois tornouse seu igual e acabou virando simplesmente seu cliente pois se estabeleceu entre eles uma espécie de intercâmbio os príncipes emprestavam à Igreja sua força material e a Igreja emprestava aos príncipes sua autoridade moral eles faziam cumprir os preceitos dela e ela fazia respeitar a vontades deles Tocqueville 1989 p 151 E conclui seu raciocínio da seguinte forma Na maioria das grandes revoluções políticas que apareceram até en tão no mundo aqueles que atacavam as leis estabelecidas tinham res 280 ELSEVIER Curso de Ciência Política peitado as crenças e nas revoluções religiosas aqueles que atacavam a religião não tinham empreendido ao mesmo tempo mudar a natureza e a ordem de todos os poderes e abolir de alto a baixo a antiga constitui ção do governo Portanto sempre houve nos maiores aba los das socie dades um ponto que permanecia sólido Mas na Revolução Francesa tendo leis religiosas sido abolidas ao mesmo tem po que derrubavam as leis civis o espírito humano perdeu completamente seu equilíbrio não soube mais onde agarrarse nem onde parar e surgiram revolucio nários de uma espécie desconhecida que levaram a audácia até a lou cura que ne nhuma novidade poderia surpreender e nenhum escrúpu lo moderar e que nunca hesitaram na hora de executar um intento E não se deve pensar que estes novos se res foram a criação isolada e efêmera de um momento destinada a sumir com ele formaram desde então uma raça que se perpetuou e se expandiu em todas as partes ci vilizadas da terra e que por toda parte preservou a mesma fi sionomia as mesmas paixões o mesmo caráter Encontramos esta raça no mundo quando nascemos e ainda está sob nossos olhos Tocqueville 1989 p 153 O terceiro eixo do tomo III referese à dimensão econômica Ao contrário do que afi rmado pela historiografi a dominante Tocqueville empreende esforços para mostrar que o reinado de Luís XVI foi a época mais próspera da velha mo narquia Entretanto essa prosperidade em vez de concorrer para a estabilidade do regime forneceu a munição que faltava para alimentar as cargas que contra ele se voltaram Para Tocqueville não há dúvida que o esgotamento do reino sob Luís XIV começou na época em que este príncipe ainda triunfava sobre toda a Europa Os primeiros índices apareceram nos anos mais gloriosos do reino A França estava arruinada muito an tes de parar de vencer Tocqueville 1989 p 163 Segundo o autor à medida que se desenvolve na França a prosperidade que acabo de descrever os espíritos parecem entretanto mais inseguros e inquietos o descontentamento público aumenta o ódio contra todas as antigas ins tituições cresce A nação mar cha visivelmente para uma revolução Há mais as partes da França de onde a Revolução ia partir são justamente aquelas onde o progresso era mais visível Tocqueville 1989 p 166 Tocqueville tem claro que a administração estatal à época de Luís XVI não era desprovida de abusos e desmandos Resta evidente no entanto que as práticas da realeza personifi cação do Estado e da sociedade produziam crescentemente nessa mesma sociedade arroubos de repugnância Se os vícios da administração e do Estado não eram novos a ojeriza que causavam era então infi nitamente su 281 Capítulo 10 Alexis de Tocqueville 18051859 o argumento liberal de defesa Lier Pires Ferreira perior à causada no passado Como afi rma Tocqueville nesta época em que a in dústria tinha desenvolvido num maior número de homens o amor à propriedade o gosto e a necessidade do bemestar quem entregara uma parte de sua fortuna ao Estado era quem mais sofria com a violação da lei Tocqueville 1989 p 167 Na visão de Tocqueville em meados do século XVIII produziuse na Fran ça uma aceleração e um adensamento dos fenômenos que há décadas cristali zavamse na sociedade À dinâmica de desagregação sociopolítica e à centrali zação administrativa somavamse os efeitos da fi losofi a das luzes da negação da religiosidade e da prosperidade econômica que enredando o Estado e os diversos segmentos da burguesia e do campesinato tornavam os vícios da ad ministração tanto mais intoleráveis quanto maiores eram os seus impactos sobre a vida particular quer em nível estritamente material quer em nível eminente mente simbólico Dessa forma se deu a passagem da política para a Revolução 106 Lembranças de 1848 Lembranças de 1848 é uma obra póstuma e inacabada escrita em julho de 1859 pouco antes da morte de Tocqueville Seu propósito é resgatar suas memó rias sobre esse anochave na história política da França no século XIX quando o povo ousou enfrentar a nova ordem estabelecida e propor de maneira ardente e furiosa uma revolução para além da Revolução Nestas Lembranças Tocqueville abarca um período não superior a dois anos entre a eclosão do processo em fevereiro de 1848 e sua saída do ministério no último quartel de 1849 Obra de caráter pessoal voltada para o próprio autor e para um pequeno círculo de ami gos Lembranças de 1948 parecem revelar de forma contraditória sua ratio essendi no encontro com o grande público Afi nal se o fi m de sua carreira pública abrira os espaços necessários para o advento de O Antigo Regime e a Revolução obra es sencial para que se possa compreender a Revolução de 1789 este último suspiro é decisivo para entender o derradeiro levante revolucionário francês na primeira metade do século XIX a Revolução de 1848 Lembranças de 1948 é uma obra sem par salvo por aquela que do ponto de vista político e social talvez lhe seja a mais distante O 18 Brumário de Karl Marx Nunca na história da Teoria Política dois autores haviam escrito relatos tão magnífi cos e ideologicamente tão díspares quanto os que aqui são citados Apesar disso vale reproduzir as palavras de Renato Janine Ribeiro na introdu ção da edição de Lembranças de 1948 utilizada para a confecção desse breve capí tulo em suas diferenças os dois autores convergem num ponto fundamental a denúncia da política como teatro Ribeiro 1991 282 ELSEVIER Curso de Ciência Política A face teatral da política cerne das Lembranças de 1848 que encerram esta análise sumária do pensamento de Tocqueville tem como uma de suas expres sões mais contundentes um trecho retirado do programamanifesto de 1847 que visando orientar a conduta do grupo parlamentar ao qual Tocqueville per tencia foi posteriormente abandonado por aqueles que o haviam encomendado Chegará o tempo em que o país se encontrará novamente dividido em dois grandes partidos A Revolução Francesa que aboliu todos os privi légios e destruiu todos os direitos exclusivos deixou con tudo subsistir um o da propriedade É necessário que os proprietários não se iludam sobre a força de sua situação e que não imaginem que o direito de pro priedade seja uma muralha intransponível pelo fato de que até agora em nenhum lugar tenha sido transposta pois nosso tempo não se asse melha a qualquer outro Quando o direito de pro priedade não era mais que a origem e o fundamento de muitos outros direitos era defendido sem esforço ou melhor não era atacado cons tituía então um muro de proteção da sociedade cujas defesas avança das eram todos os outros direitos os golpes a ele não chegavam nem sequer se procurava seria mente atingilo Hoje porém quando o di reito de propriedade tornase o último remanescente de um mundo aristocrático destruído o único a se manter de pé privilégio isolado em meio a uma sociedade nivelada sem a cobertura dos muitos outros di reitos mais contestados e mais odiados corre um perigo maior pois só a ele cabe sustentar a cada dia o choque direto e incessante das opiniões democráticas Logo a luta política travarseá entre os que possuem e os que não possuem o grande campo de batalha será a propriedade e as principais questões políticas girarão em torno das modifi cações mais ou menos profundas que serão introduzidas no direito dos proprietários Então voltaremos às grandes agitações públicas e aos grandes partidos Como é possível que os sinais precursores desse futuro não che guem a todos os olhares Vamos acreditar que seja por acaso por efei to de um capricho passa geiro do espírito humano que vemos aparecer de todos os lados essas doutrinas singulares que levam nomes diver sos mas que têm todas por principal característica a negação do direito de propriedade e que tendem pelo menos a limitar a reduzir a en fraquecer seu exercício Quem não reconhece aí o último sintoma des ta velha enfermidade de mocrática da época cuja crise talvez se aproxima Tocqueville 1991 p 4142 O tema da nova revolução que se avizinha não mais campesina ou bur guesa mas pré socialista e operária é retomado em um discurso proferido na 283 Capítulo 10 Alexis de Tocqueville 18051859 o argumento liberal de defesa Lier Pires Ferreira Câmara dos Deputados em janeiro de 1848 poucos meses antes da eclosão dos confl itos de fevereiro Falando aos seus pares Tocqueville consigna que Dizse que não há perigo porque não há agitação dizse que como não há desordem material na superfície da sociedade as revoluções estão longe de nós Senhores permitime dizervos que creio que vos enganais Sem dúvida a desordem não está nos fatos mas entrou bem profundamente nos espíritos Olhai o que se passa no seio dessas clas ses operárias que hoje eu o reconheço estão tranquilas É verdade que não são atormentadas pelas paixões políticas propriamente ditas no mesmo grau em que foram por elas atormentadas outrora mas não vedes que suas paixões de políticas tornamse sociais Não vedes que pouco a pouco propagamse em seu seio opiniões ideias que de modo nenhum irão somente derrubar tal lei tal ministério mesmo tal gover no mas a sociedade abalando as bases nas quais ela hoje repousa Não escutais o que se diz todos os dias em seu seio Não ouvis que entre elas as classes operárias repetese constantemente que tudo o que se acha acima é incapaz e indigno de governálas Que a divisão dos bens ocorrida no mundo até o presente é injusta Que a propriedade repou sa em bases que não são igualitárias E não credes que quando tais opi niões adquirem raízes quando se propagam de maneira quase geral quando penetram profundamente nas massas devem acarretar cedo ou tarde não sei quando não sei como as mais terríveis revoluções Tal é senhores minha convicção profunda no momento em que esta mos creio que dormimos sobre um vulcão disso estou profundamente convencido Diziavos ainda há pouco que esse mal deverá cedo ou tarde não sei como nem de onde eles virão mas levará cedo ou tarde a gra víssimas revoluções neste país podeis fi car disso convencidos To cqueville 1991 p 4243 A impressão de Tocqueville sobre o cenário que se avizinha é brutal E vem sendo sistematicamente evocada ao longo desse discurso Seu conteúdo dramático tem conotação crescente e busca legitimarse nos fatos do passado Nesta linha Tocqueville relata que Quando passo a procurar em diferentes tempos em diferentes épocas entre diferentes povos qual foi a causa efi caz que provocou a ruína das classes que governavam vejo claramente tal acontecimento tal homem tal causa acidental ou superfi cial acreditai porém que a causa real e efi caz que faz com que os homens percam o poder é que se tornaram indignos de o manter Pensai senhores na antiga Monarquia ela era mais forte que vós por sua origem apoiavase melhor que vós em an 284 ELSEVIER Curso de Ciência Política tigos costumes usos crenças era mais forte que vós e no entanto caiu no pó E por quê Acreditais que tenha sido por tal acidente particular Julgais que fora obra de tal homem do défi cit do Jeu de Paume de La Fayette de Mirabeau Não senhores há outra causa é que a classe que então governava tornarase por indiferença egoísmo vícios incapaz e indigna de governar Eis a verdadeira causa Tocqueville 1991 p 43 Em sua dimensão analítica do período que antecede a Revolução de 1848 Tocqueville não volta sua atenção para as modifi cações estruturais da economia como fará Marx em O Dezoito Brumário mas à moda de Montesquieu para os câmbios institucionais e para a imensa dimensão social patriótica e nacionalista que a ladeia É com foco nessa dimensão que Tocqueville faz seu apelo fi nal ao parlamento francês e por que não dizer à própria sociedade francesa Pois senhores se é justo ter essa preocupação patriótica em todos os tem pos até que ponto não é mais justo ainda têla em nosso Não ouvis então como direi um vento de revolução que paira no ar Não se sabe onde ele nasce de onde vem nem acreditai o que carrega e é em tempos como esse que fi cais calmos na presença da degradação dos costumes pú blicos porque a palavra não é sufi cientemente forte Falo aqui sem amar gura falovos creio eu até sem espírito de partido ataco homens contra os quais não tenho cólera mas enfi m sou obrigado a dizer a meu país qual é minha convicção profunda e meditada Pois bem minha convicção pro funda e meditada é que os costumes públicos estão se degradando é que a degradação dos costumes públicos vos levará em curto espaço de tempo brevemente talvez a novas revoluções Estaria por acaso a vida dos reis presa por fi os mais fi rmes e mais difíceis de partir do que a dos outros ho mens Tereis à hora em que nos encontramos a certeza de um amanhã Sabeis o que pode ocorrer na França daqui a um ano um mês um dia tal vez Vós o ignorais mas sabeis que a tempestade está no horizonte e que ela marcha sobre vós deixarvoseis antecipar por ela Senhores suplico vos que não o façais não vos peço suplicovos de bom grado cairia de joelhos diante de vós tão sério e real creio ser o perigo tanto creio que o assinalar não é recorrer a uma vã forma de retórica Sim o perigo é grande Conjuraio enquanto ainda é tempo corrigi o mal por meios efi cazes não atacando seus sintomas mas o próprio mal Conservai as leis se que reis conservai mesmo os homens se isso vos agrada não oponho a isso obstáculo algum mas por Deus mudai o espírito do governo pois repito vos esse espírito está conduzindovos ao abismo Ibidem p 4344 É desnecessário notar que essas predições sombrias não foram acolhidas com a devida atenção Ao contrário Tocqueville relata a ocorrência de risos in sultantes pelo lado da maioria enquanto a oposição mais por interesse parti 285 Capítulo 10 Alexis de Tocqueville 18051859 o argumento liberal de defesa Lier Pires Ferreira dário do que por convicção aplaudia vivamente Mas o fato é que a França e seus mandatários não eram capazes de enxergar os sinais nítidos da crise que se avizinhava Essa incredulidade não passa despercebida pelo autor A verdade é que ninguém acreditava ainda seriamente no perigo que eu anunciava embora estivéssemos tão perto da queda Há vários anos a maioria dizia todos os dias que a oposição punha a sociedade em perigo e a oposição repetia sem cessar que os ministros arruinavam a Monarquia Tantas vezes já o haviam dito sem muita convicção quer por um lado quer pelo outro que acabaram por não acreditar em absolu to no que diziam no momento em que os fatos viriam dar razão a ambos os lados Mesmo meus amigos particulares acreditavam que havia um pouco de retórica em minha exposição E agora quando me vejo diante de mim mesmo vasculhando curiosamente as lembranças para ver se de fato estava tão assustado quanto aparentava descubro que não percebo sem difi culdade que o acontecimento justifi cou minhas opiniões mais rápido e de forma mais completa do que eu previra Não eu não esperava por uma revolução tal qual iríamos ver e quem podia esperála Creio que eu percebia mais claramente do que qualquer outro as causas gerais que faziam a Monarquia de Julho pender à ruína Não via os acidentes que iriam precipitála No entanto os dias que ainda nos separavam da catástrofe escoavamse rapidamente Ibidem p 4445 A teatralidade que subjaz à análise Tocquevilleana dos eventos de 1848 poderia ser defi nitivamente assinalada pela caracterização dos principais per sonagens dessa trama medonha Sua montagem é emblemática e conquanto contestável como todas as caracterizações permite revelar mais de um século depois o perfi l contraditório e humano de cada um destes grandes senhores da França Em nível meramente exemplifi cativo destacarseá a feição de Luís Bo naparte aquele que num futuro tão próximo será o restaurador da ordem e da estabilização pela qual Tocqueville tanto almeja Embora esse príncipe descendesse da raça mais nobre da Europa e ocul tasse no fundo de sua alma todo o orgulho advindo dessa herança não se considerando indubitavelmente semelhante a qualquer outro homem possuía a maior parte das qualidades e dos defeitos que pertenciam mais particularmente às camadas subalternas da sociedade Tinha costumes regulares e gostava de vêlos transpostos a sua volta Era ordeiro na con duta simples nos hábitos comedido nos gostos naturalmente amigo da lei e inimigo de todos os excessos moderado em todas as atitudes mas não em seus desejos humano mas não sensível cúpido e doce não tinha paixões ardentes nem fraquezas ruinosas ou vícios extraordinários De rei 286 ELSEVIER Curso de Ciência Política só possuía uma virtude a coragem Tinha uma cortesia extrema que mais se assemelhava à de um comerciante do que à de um príncipe Não gos tava das letras ou das belas artes mas amava a indústria com paixão Sua memória era prodigiosa capaz de reter obstinadamente os menores deta lhes A conversação original prolixa difusa trivial anedótica repleta de pequenos fatos saborosa e sensata proporcionava toda a satisfação que se pode encontrar nos prazeres da inteligência quando delicadeza e ele vação estão ausentes Sua presença era notável mas restrita e afetada pela pouca amplitude de sua alma Esclarecido fi no fl exível e tenaz voltavase somente para o útil e era dominado por um desprezo tão profundo pela verdade bem como por uma incredulidade tão grande na virtude que suas luzes estavam obscurecidas e ele não apenas não via a beleza sempre presente na verdade e na honestidade mas também já não com preendia que elas frequentemente são úteis conhecia profundamente os homens mas apenas por seus vícios incrédulo em matéria de religião como o sécu lo XVIII e cético em política como o XIX sem credo não tinha fé alguma na crença alheia seu amor pelo poder e pelos cortesãos pouco honestos era tão natural que parecia terse originado no trono sua ambição era limitada somente pela prudência que nunca se fartava nem se enfurecia e sempre se mantinha perto da terra Muitos príncipes pareceramse com esse retra to mas o que havia de peculiar no caso de Luís Filipe era uma analogia ou seja uma espécie de parentesco e de consanguinidade presente entre seus defeitos e os de sua época o que o tornava para os contemporâneos e em particular para a classe que possuía o poder um príncipe atraente e sin gularmente perigoso e sedutor Se colocado à frente de uma aristocracia talvez tivesse exercido sobre ela uma feliz infl uência Chefe da burguesia solidifi cou o que não passava de uma propensão natural dessa classe seus vícios casaramse em família e essa união que a princípio constituía a for ça de uma das partes resultou na desmoralização da outra e acabou por arruinar as duas Ibidem p 3537 Todavia montado o cenário restam os atos E eles ocorreram com uma in tensidade que só a paixão que move a vida política francesa pode explicar Em uma composição que só o intelecto livre é capaz de realizar Tocqueville parece convergir com Marx na percepção do proletariado como um novo ator social ator este que após 1848 não poderá mais ser ignorado Mas é na noção de espírito público virtude cívica que remonta a Montesquieu que Tocqueville parece re velarse por completo quiçá fi nalmente unindo o intelectual o homem de Estado e o cidadão É ela que permite compreender o desprendimento do nobre que na defesa da verdade que sabe existir em seu chamamento ousa dizer que se ajo elharia perante seus pares na Assembleia fossem nobres burgueses ou mesmo 287 Capítulo 10 Alexis de Tocqueville 18051859 o argumento liberal de defesa Lier Pires Ferreira socialistas É no espírito público amparo das instituições políticas e sociais repu blicanas que Tocqueville visualiza a última fronteira das noções de honra e valor que emolduraram a velha ordem nobiliar e feudal É ela que permite ao autor retirarse de cena e bradar ao longe uma verdade que ninguém deseja escutar É ela que o permite manterse de pé mesmo quando seus propósitos estão vencidos 107 Considerações finais Compreender as relações entre democracia e liberdade é o norte pelo qual se pode apreender em sua completude o pensamento de Tocqueville Entretan to como é praxe entre os grandes mestres do pensamento social e político des de Maquiavel o conhecimento em Tocqueville não tem propósitos meramente epistemológicos Desde o advento da modernidade e particularmente desde Descartes a ciência tem um propósito prático instrumental Em outras pala vras o conhecimento é mais do que uma forma de conhecer o mundo mas um mecanismo para nele intervir Por isso em Democracia na América Tocqueville afi rma não ignorar Que muitos de meus contemporâneos pensaram que os povos não são jamais aqui na terra senhores deles próprios e obedecem necessaria mente não sei qual força insuperável e ininteligente que nasce dos acontecimentos anteriores da raça do solo ou do clima Tratase de doutrinas falsas e covardes que não produziriam jamais senão homens fracos e nações pusilânimes A Providência não criou o gênero humano nem inteiramente independente nem completamente escravo Ela tra ça é verdade em torno de cada homem um círculo fatal de onde não pode sair mas nos seus vastos limites o homem é poderoso e livre e assim os povos As nações de agora não podem evitar que as condições dos homens se tornem iguais mas depende delas que a igualdade os conduza à servidão ou à liberdade às luzes ou à barbárie à prosperi dade ou à miséria Tocqueville 1969 p 364 É a esse propósito fundamental que Tocqueville se dedica Conhecer o inevitável e a partir desse conhecimento buscar interferir para que o curso dos acontecimentos não seja forte o sufi ciente para solapar radical e violentamente valores fundamentais que se pretenda preservar Em palavras mais simples o conhecimento do fenômeno democrático pode contribuir para que o crescimen to inevitável da igualdade de condições entre os homens não suprima a liberda de Por isso em Democracia na América o foco do autor se volta para os Estados Unidos Tocqueville tem como certo que Mais cedo ou mais tarde chegaremos como os americanos a uma igualdade de condição quase completa Mas não concluo que por isso que alguma vez sejamos necessariamente levados a extrair as mesmas 288 ELSEVIER Curso de Ciência Política consequências políticas que os americanos obtiveram a partir de uma organização social semelhante Estou longe de supor que eles tenham escolhido a única forma de governo que a democracia possa adotar mas em virtude da causa geradora das leis e maneiras nos dois países ser a mesma é de imenso interesse para nós saber o que isso produziu em cada um deles Tocqueville 1969 p 44 Tocqueville portanto não considera que a organização social e política dos Estados Unidos seja superior à da França38 Mas identifi ca que pelas con dições peculiares de sua história de sua geografi a e do seu desenvolvimento social a trajetória democrática dos Estados Unidos possui lições que podem ser úteis para a França e para as outras sociedades do Velho Mundo São essas lições que em primeiro lugar Tocqueville deseja apreender Outra questão que não se pode olvidar é que Tocqueville é um nobre de estirpe Com a nobreza e com a antiga ordem aristocrática estão seu coração e seu espírito Isso é patente em todas as suas obras em particular O Antigo Regime e a Revolução e Lembranças de 1848 Entretanto sua condição aristocrática não é sufi ciente para obstacularizarlhe a visão das novas realidades que se afi rmam ao seu redor Tal como consignado por Aron para Tocqueville democracia se justifi ca pelo fato de que favorece o bemestar do maior número mas este bemestar não tem brilho ou grandeza e não deixa de apresentar perigos políticos e morais Com efeito toda democracia tende à centralização e em consequência tende a uma espécie de des potismo Aron 1990 p 221 Assim reconhecendo ser inútil lutar pela preservação das antigas distin ções e privilégios aristocráticos é precisamente o sacrifício da liberdade que To cqueville deseja evitar Em palavras fi nais há uma última questão a pontuar Em que pesem os êxitos preditivos do pensamento de Tocqueville que tanta admiração desperta naqueles que iniciam seus estudos sobre o autor não se pode avaliar uma obra política e fi losófi ca pelo êxito de suas previsões para o futuro mas sim pela pro priedade de sua leitura sobre o presente Por isso uma obra só se torna clássica quando seu conteúdo transborda sua contemporaneidade e avança sobre o futuro Esse é precisamente o caso de Tocqueville Sua análise de Democracia na América bem como a coerência e originalidade de sua interpretação sobre as causas e processos que provocaram a eclosão da Revolução Francesa expostos em O Antigo Regime a Revolução que de alguma maneira concorrem para formar 38 Na verdade o autor é ácido em diversos planos de sua análise particularmente quando se refere à situação dos indígenas e dos negros 289 Capítulo 10 Alexis de Tocqueville 18051859 o argumento liberal de defesa Lier Pires Ferreira uma teoria geral das revoluções não seriam tão apreciáveis e vitais se não mos trassem mais do que a mera análise dos fatos As reconstituições e os resgates de Tocqueville talvez não sejam perfeitos e podem ser mesmo criticáveis como de fato o são Seus elementos descritivos principalmente em Democracia na América parecem por vezes forçados e artifi ciais Por outro lado em Da Colonização na Argélia em que pesem passagens como o ataque que faz às políticas escravocra tas como quando afi rma que o homem não possui jamais o direito de possuir outro homem e o fato de que tal possessão seja praticada hoje em dia não a torna legítima Tocqueville 1962 p 54 muitas das posturas assumidas sugerem uma franca contradição com o espírito de liberdade que afl ora constantemente de seus escritos e que mais do que o método ou a busca pela ordem e pelo equi líbrio social são a marca registrada do autor Mas não existe vida ou obra intelectualmente válida e humanamente ho nesta sem contradições Quanto se fala que Tocqueville é um clássico e portanto uma referência obrigatória para todos aqueles que buscam na refl exão e no co nhecimento instrumentos ótimos para uma participação social profícua e conse quente é porque se reconhece que apesar dos equívocos e insufi ciências sua obra transcende ao tempo e ao seu país causando impacto signifi cativo no mundo con temporâneo Neste sentido mais do que aos franceses e aos europeus do século XIX Tocqueville tem muito a dizer hoje para todos os povos que buscam concre tizar pela democracia a liberdade e o bemestar É pois um autor indispensável para a França para a América Estados Unidos ou mesmo para o Brasil 108 Perguntas para reflexão 1 Situe o pensamento de Tocqueville no contexto histórico do autor 2 Do ponto de vista ideológico qual a causa subjacente que conduz e orien ta seu pensamento 3 Explique como Tocqueville constrói sua abordagem metodológica 4 Qual o sentido de democracia e o sentido de liberdade imanentes à sua obra 5 Quais as medidas necessárias para que a igualização crescente das con dições políticas e sociais entre os homens não seja um óbice a liberdade Em sua resposta articule as seguintes categorias a Tirania da Maioria b Despotismo de Estado e c Individualismo 290 ELSEVIER Curso de Ciência Política 6 Por que os Estados Unidos serviam como modelo eou paradigma de aná lise do fenômeno democrático 7 Como Tocqueville justifica a presença colonial francesa na Argélia Essa justificativa é efetivamente contraditória com o conjunto de sua obra Fundamente sua resposta 8 Em O Antigo Regime e a Revolução Tocqueville dá uma interpretação singular sobre a eclosão da Revolução Francesa Explique como o autor constrói essa interpretação destacando os elementos que a tornam original 9 O Tocqueville que se revela como homem público e intelectual nas Lem branças de 1848 é mais parecido com o autor de Da Colonização ou aproxi mase mais fortemente daquele que imerso em sua dimensão intelectual logrou escrever Democracia na América e O Antigo Regime e a Revolução Justi fique sua resposta 10 Em sua visão qual a herança intelectual de Tocqueville e como esse legado pode auxiliar uma reflexão crítica do Brasil contemporâneo Bibliografia AGULHON Maurice 1848 o aprendizado da República Rio de janeiro Paz e Terra 1991 ARON Raymond As etapas do pensamento sociológico 3 ed Brasília UNB 1990 BARBU Zevedei Introdução TOCQUEVILLE Alexis O Antigo Regime e a Revolução 3 ed Brasília UNB São Paulo Hucitec 1989 CHEVALIER JeanJacques As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias Rio de Janeiro Agir 1995 QUIRINO Célia Galvão Tocqueville sobre a liberdade e a igualdade WEFFORT F C org Os Clássicos da Política 6 ed São Paulo Ática 1996 v 2 RIBEIRO Renato Janine Introdução TOCQUEVILLE A Lembranças de 1848 São Paulo Cia das Letras 1991 TOCQUEVILLE Alexis Oeuvres complètes Paris Gallimard 1962 T III v 1 Democracia na América São Paulo Cia Editora Nacional 1969 De la Colonie en Algérie Bruxelas Editons Complexe 1988 O Antigo Regime e a Revolução 3 ed Brasília UNB São Paulo Hucitec 1989 Lembranças de 1848 São Paulo Cia das Letras 1991 Capítulo 11 John Stuart Mill a luta contra a opressão Aparecida Maria Abranches1 111 Introdução Nas duas obras de Stuart Mill que serão analisadas Da liberdade e Consi derações sobre o Governo Representativo chama atenção o fato de elas terem sido inspiradas por um profundo amor e crença na humanidade Este é um aspecto que me parece frequentemente ofuscado quando nos detemos exclusivamente em compreender o pensamento do autor pelo ângulo da antinomia liberalismo versus socialismo As simpatias e antipatias que uma ou outra dessas ideolo gias provoca logo se projetam mais sobre o autor do que propriamente sobre as obras de maneira que ao lêlas costumamos ter mais a preocupação em encon trar ora o liberal em pureza cristalina ora um inimigo belicoso do socialismo De fato encontramos neste autor algumas das premissas mais importantes do Mestre em sociologia pelo IUPERJ e Doutora em Ciência Política pelo IUPERJ Professora Adjunta de Ciência e Política da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro Contato pareabranches yahoocombr 292 ELSEVIER Curso de Ciência Política liberalismo econômico tal como a limitação à interferência do Estado na vida econômica e a defesa do mercado autoregulável Em Da liberdade ele diz que Restrições ao comércio e à produção são de fato limitações e qualquer limita ção é um mal Mill 1963 p 1078 Porém ele mesmo diz absterse de discutir as questões de liberdade próprias à doutrina do livrecomércio preocupandose mais com os fundamentos da liberdade individual os quais seriam distintos dos fundamentos daquela doutrina As duas obras que serão tratadas devem ser compreendidas no contexto da própria vida do autor e das transformações culturais sociais e políticas da Europa e especifi camente da Inglaterra a partir da década de 1830 período po liticamente conturbado quando se assiste à ascensão da classe média ao poder político com a reforma do Parlamento e a reivindicação do sufrágio universal pelo movimento cartista Mill nasceu em 8 de maio de 1806 vindo a falecer em maio de 1873 Filho de James Mill alto funcionário da Companhia das Índias Orientais e um dos criadores do utilitarismo Mill desde cedo foi submetido pelo pai a um regime austero de educação que segundo a vontade de James Mill visava depurar a mente do fi lho de todo sentimentalismo vulgar e preparála para uma conduta racional diante da vida Por isso aos cinco anos Mill já sabia grego e aos oito la tim e álgebra Uma de suas tarefas que fazia parte do método educativo do pai era ensinar latim a seus irmãos que também eram os seus únicos companheiros Em 1820 quando viaja à França de onde retorna um ano depois tem início uma crise existencial que iria culminar num questionamento dos ensinamentos do pai e da maneira como até então sua vida fora conduzida Fato importante na reviravolta em sua vida foi a leitura das memórias de Marmontel em que o au tor relata a morte do pai A cena provocou grande comoção em Mill levandoo às lágrimas o que o fez perceber que era capaz de ter sentimentos Além desse fato que lhe fez descobrir as emoções Mill aproximouse da poesia de Woo dsworth e Coleridge que o introduzem na até então desconhecida cultura dos sentimentos 1 Esses fatos foram importantes para o questionamento do rigoroso racio nalismo do pai e do utilitarismo Tendo como seu principal expoente Jeremy Benthan 17481832 o utilitarismo defendia um racionalismo radical contra toda sorte de dogmatismo e obscurantismo Defendia o método empírico refu tando asserções indemonstráveis como a teoria do direito natural e a teoria con tratualista De acordo com o utilitarismo a principal fi nalidade dos homens é a felicidade resultando esta de um cálculo dos prazeres e das dores Mill mantém 1 Ver Leppenies 1996 293 Capítulo 11 John Stuart Mill a luta contra a opressão Aparecida Maria Abranches o empirismo e a certeza quanto a ser a felicidade a fi nalidade da vida mas acre dita que ela possa ser alcançada também por outros meios que não o do cálculo racional visando exclusivamente a felicidade Os fatos mencionados supra lhe revelam a existência de uma vida subje tiva interior escapável a fórmulas rígidas de aferição das satisfações humanas Em Da liberdade ele dá um exemplo de como a sua descorberta dos aspectos subjetivos da experiência humana contribuiu para a sua defesa da liberdade de pensamento e de expressão Em uma época diz ele em que as pessoas se per diam em admiração pelo que chama de civilização Mill 1963 p 53 Rous seau trouxe à tona O valor superior da simplicidade da vida o efeito enervante e desmoralizador das peias e das hipocrisias da sociedade artifi cial Mill 1963 p 53 É somente com a mais ampla aceitação da diversidade e de garan tias que elas se pronunciem que o objetivo fi nal dos homens pode ser alcançado À medida que os homens tenham o direito de se pronunciar e defender suas ideias mais caras por meio de debates é que esses mesmos homens podem ter acesso seguro à verdade resultando disso o melhoramento e a felicidade da hu manidade Ao empirismo então ele acrescenta a diversidade e a liberdade de expressão como método efi caz contra o dogmatismo e o obscurantismo É pela via dos dilemas pessoais embora não exclusivamente que Mill chega a um dos principais fundamentos do seu liberalismo político a liberda de de expressão e a proteção dos indivíduos contra a interferência ilegítima do Estado e da Sociedade Além dessa via há de considerarse que Mill vive em uma época que colhe os frutos bons e maus da Revolução Industrial Bons no que diz respeito à afl uência material e à destruição das barreiras tradicionais e legais que aprisionavam os homens à posição social de nascimento e a porções determinadas do território maus porque os frutos materiais da Revolução In dustrial não eram colhidos por todos com o que se tem grande miséria e mais que isso a sua visibilidade Visibilidade que irá provocar tanto os temores das elites tradicionais e das novatas quanto irá atrair a atenção dos legisladores e do Estado com propósitos reformadores e intervencionistas Nesse contexto fi gura também a classe trabalhadora que por meio do movimento cartista irá exigir o sufrágio universal Neste cenário a democracia popular entra na ordem do dia dividindo opiniões Há aqueles que se posicionam terminantemente contrários a ela Outros a defendem Entre estes está Stuart Mill que vê na extensão da cidadania política não só um direito mas também um meio de aperfeiçoamento da humanidade Ao analisarmos Da liberdade e Considerações sobre o Governo Re presentativo tenhamos em mente a perspectiva de um reformador humanitário que vê na democracia um instrumento de melhoria do caráter humano 294 ELSEVIER Curso de Ciência Política 112 Da Liberdade Um libelo contra a interferência ilegítima da sociedade e do Estado na liberdade individual Assim pode ser defi nida a obra de Stuart Mill sobre a liberdade Publicada em 1859 cerca de 20 anos depois de A Democracia na América de Alexis de Tocqueville podese dizer que o autor contribui para dar uma maior nitidez àquela que seria uma das maiores ameaças dos séculos democráticos à liberdade individual a tirania da maioria Em termos similares aos do escritor francês que denuncia o controle mo ral que uma maioria despótica poderia ter a ponto de minar no indivíduo até o desejo de pensar escravizandolhe a alma escreve Mill alertando sobre um poder ainda mais devastador do que aquele exercido pela autoridade pública constituída A par de outras tiranias a da maioria encaravase com receio a prin cípio e ainda hoje vulgarmente se encara quando exercida através de atos das autoridades públicas Contudo as pessoas que refl etem per ceberam que quando a própria sociedade faz o papel de tirano a so ciedade coletivamente sobre os indivíduos separados que a compõem os meios de exercer a tirania não se limitam aos atos que pode levar a efeito pelas mãos dos funcionários políticos A sociedade pode exe cutar e executa seus próprios mandatos e se expede mandatos errados ou mandatos quaisquer em assuntos nos quais não se deve introme ter pratica tirania social mais temível do que muitos tipos de opressão política porquanto muito embora não venha apoiada por penalida des extremas não permite que se lhe escape facilmente penetrando muito mais profundamente nos detalhes da vida escravizando a pró pria alma Não é sufi ciente portanto a proteção contra a tirania do magistrado necessária também a proteção contra a tirania da opinião e do sentimento predominantes contra a tendência da sociedade para impor por meios outros que não penalidades civis as próprias ideias e práticas como regras de conduta para aqueles que discordem delas Mill 1963 p 7 Diferentemente da análise sociológica especifi camente a de Émile Durhkeim segundo a qual sob o impacto da divisão do trabalho o controle moral da sociedade sobre o indivíduo se abrandaria Stuart Mill identifi ca uma maior rigidez desse controle como associado ao progresso dos negócios huma nos Ao contrário de um sentimento de fraqueza diante de ameaças externas o que em outros tempos teria justifi cado a submissão dos súditos à autoridade de 295 Capítulo 11 John Stuart Mill a luta contra a opressão Aparecida Maria Abranches um governante agora a sociedade viase robustecida encarandose a si própria como fonte da autoridade política O fato de emanar dela a autorização dos atos dos magistrados sob o imperativo da vontade da maioria reforçarlheia a auto ridade moral sobre os indivíduos Dessa forma mais perigoso para Stuart Mill não seria tanto o controle moral da sociedade mas o fato de não haver garantias legais contra a sua interferência na liberdade dos indivíduos Invertida a relação de poder em que outrora procuravase limitar o po der do governante contra a liberdade dos súditos seja por reconhecimento de imunidades destes seja por controles constitucionais sobre o poder daquele agora a tarefa da fi losofi a política seria buscar um fundamento justo para a limitação do poder do povo sobre si mesmo Tal fundamento será o da auto proteção defi nido de forma positiva isto é não contraditório com o princípio da soberania popular Este ensaio tem por objetivo sustentar um princípio muito simples ca paz de governar em absoluto as relações da sociedade com o indivíduo no sentido da compulsão e controle seja que se lance mão da força física sob a forma de penalidades legais seja que se aplique a coerção moral da opinião pública Tal princípio é o de que a autoproteção é único objetivo pelo qual se pode garantir aos homens individual ou coletivamente interferir na liberdade de ação de qualquer deles Mill 1963 p 12 Com esse princípio Stuart Mill compatibiliza duas ordens de direito o co letivo ou social e o individual Por meio da ação coercitiva da própria sociedade nenhum indivíduo poderia causar dano a outro indivíduo A proposição acima se completa da seguinte forma O único objetivo a favor do qual se possa exercer legitimamente pres são sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada contra a vontade dele consiste em prevenir danos a terceiros Não basta que se leve em conta o próprio bem físico ou moral da pessoa Não se tem o direito de obrigálo a fazer ou deixar de fazer por ser melhor para ele ou porque lhe promova a felicidade ou ainda porque na opinião de terceiros fazêlo seria mais prudente ou mais acertado Mill 1963 p 12 Nesta relação indivíduo e sociedade a esta caberia o poder moral o que Stuart Mill não parece negarlhe enquanto ao primeiro fi calhe assegurada a independência relativamente a todos os atos em que não houver prejuízos a ter ceiros Quando um ato for nocivo a terceiro o causador do dano estará sujeito a castigo legal ou desaprovação social Excetos os atos maléfi cos a outros em 296 ELSEVIER Curso de Ciência Política todos os demais o indivíduo é livre para agir como bem lhe aprouver respon sabilizandose por suas consequências quando estas forem danosas tão somente a ele próprio Escreve Mill A parte única da conduta de cada um pela qual é responsável perante a sociedade é a que entende com terceiros Na parte que diz respeito tão só a ele próprio a independência é por direito absoluta Mill 1963 p 13 Haveria porém atos obrigatórios para com outros passíveis de constran gimento legal e social São atos positivos cuja omissão pode acarretar danos a terceiros Prestar testemunhos em tribunais de justiça interferência em favor de indefesos contra maustratos e salvar vidas constituem situações em que os indivíduos poderiam ser obrigados a agir independentemente da sua vontade Mas esses casos constituem exceção em relação à regra geral que responsabiliza os indivíduos por danos causados a terceiros Por isso situações como essas de veriam ser examinadas conforme as especifi cidades do caso O direito a não interferências externas restringirseia àqueles em condi ções de orientarem livremente suas vontades e condutas no sentido do melhora mento próprio Crianças menores e pessoas necessitadas de cuidados de tercei ros deveriam ser protegidas contra seus atos justifi candose a interferência Da mesma forma Stuart Mill considera legítima a tutela das vontades sobre povos que ainda não teriam alcançado o estágio civilizatório do qual a Inglaterra seria paradigmática de desfrute da liberdade e da igualdade Tais povos poderiam ser considerados em menoridade sobre os quais o despotismo seria legítimo conquanto que a meta fosse aperfeiçoálos A formulação do princípio da autoproteção cujo objetivo é a limitação da interferência legítima da sociedade ou do Estado na liberdade individual teria na Inglaterra função preventiva O despotismo da maioria seria um fato nos Estados Unidos assim como passara incólume pela Revolução Francesa Na Inglaterra em virtude de circunstâncias peculiares da sua história política o poder moral da maioria ainda não havia se dilatado ao ponto de orientar os atos dos governantes Como consequência benéfi ca os ingleses podiam gozar de uma considerável prevenção contra a interferência direta do poder legislativo ou executivo na conduta privada Mill 1963 p 11 Contudo a tendência histórica apontava para o fortalecimento da sociedade com a diminuição do poder do indivíduo Mill 1963 p 17 Essa tendência encontraria seu estí mulo natural na disposição dos homens para impor suas regras de conduta a outros daí a necessidade de buscar adesão moral ao princípio da autoproteção junto à própria sociedade 297 Capítulo 11 John Stuart Mill a luta contra a opressão Aparecida Maria Abranches A disposição dos homens seja como governantes seja como concida dãos no sentido de impor suas próprias opiniões e inclinações como regras de conduta para os demais encontra apoio tão enérgico por par te de alguns dos piores como dos melhores sentimentos inerentes à na tureza humana que difi cilmente é possível restringila senão pelo uso da força e como o poder não está em declínio mas sim aumentando a menos que possa erguer forte barreira de convicção moral contra esse mal teremos de esperar nas condições atuais do mundo vêlo crescer Mill 1963 p 17 o grifo é meu Embora as mais severas ameaças à liberdade individual nas democracias modernas advenham de uma maioria despótica Stuart Mill parece tomar cui dado ao formular o princípio da autoproteção para não colocar em risco as imunidades de que a sociedade em conjunto deveria gozar perante o Estado O caminho para obtenção de um bem como o aperfeiçoamento da relação entre so ciedade e indivíduo não poderia colocar em perigo um bem já conquistado Ou seja o resultado da luta histórica entre a liberdade e a autoridade que de acordo com o credo liberal estaria manifesto na antinomia sociedade versus Estado Daí a interpelação à própria sociedade no sentido de criação de uma forte barreira de convicção moral contra as interferências ilegítimas na liberdade individual Afora os atos que poderiam causar danos a outros no mais os indivíduos teriam direito a inteira independência Conforme observa David Held o princí pio da autoproteção gerou a defesa de muitas das liberdadeschave associadas como governo democrático liberal Held 1987 p 79 Essas liberdades estariam associadas àqueles atos em que a sociedade não teria interesse senão indireto Stuart Mill situa tais atos na região apropriada da liberdade humana o do mínio interior da consciência humana Tratase das liberdades de pensamento e de sentimento e a estas associadas a liberdade de expressão e publicação das opiniões em quaisquer assuntos Além dessas arrolamse as liberdades de asso ciação gostos ocupações e o direito do indivíduo de formular um plano de vida próprio em conformidade com seu caráter A defesa contra a interferência ilegítima da sociedade na conduta indivi dual não exclui os atos que se limitem a prevenir determinada pessoa de seguir um curso que lhe causará danos próprios Vícios privados como consumo des mesurado de bebidas alcoólicas falta de decoro na vida sexual ociosidade etc poderiam ocasionar prejuízo moral perda de credibilidade e isolamento social para o indivíduo consequências naturais da própria falta A fi m de prevenir que o indivíduo cause tais danos a si mesmo seria legítima a interferência es pecialmente por parte de pessoas mais próximas como os amigos Essa inter 298 ELSEVIER Curso de Ciência Política ferência no entanto deve se limitar à admoestação conselhos persuasão e até afastamento abstendose de atitude mais enérgica no sentido de punição contra o indivíduo A abstenção em relação ao faltoso consigo mesmo constitui além de exercício da própria liberdade por parte daquele que reprova determinada conduta instrumento de pedagogia moral que sem uso de penalidades adver tiria tanto ao faltoso como a outros dos danos que poderiam causar a si próprios 1121 Em defesa das minorias A defesa da liberdade individual está intimamente associada ao que se pode denominar uma verdadeira profi ssão de fé com relação aos direitos das minorias Mill introduz esse tema em Da liberdade ao abordar as razões pelas quais a sociedade deve absterse de interferir na ação de terceiros quando estas não lhe dizem respeito diretamente Em primeiro lugar a sociedade não deve interferir porque ela já possui instrumentos sufi cientes de educação e aprimora mento dos indivíduos Além de seus membros poderem absterse da companhia daqueles cujas atitudes reprovam ela também é senhora daquela época da vida em que as pessoas ainda não são consideradas adultas Nessa época escreve A sociedade teve absoluto poder sobre eles durante toda a primeira porção da existência teve todo o período da existência da menoridade em que lhe foi possível experimentar se lhe era facultado tornálos ca pazes de conduta racional na vida Mill 1963 p 93 Se em consequência dessa autoridade a sociedade deixar qualquer nú mero considerável de seus membros desenvolverse como simples crianças in capazes de reagirem à consideração racional de motivos distantes terá de cul parse a si mesma pelas consequências Mill 1963 p 94 Outro argumento empregado para justifi car por que a sociedade não deve interferir com terceiros é que quando interfere é mais provável que o faça er radamente e em lugar impróprio Mill 1963 p 95 Tanto o erro como o acerto da interferência advêm da mesma origem ou seja daquilo que a opinião pública considera acertado Porém a opinião pública nada mais é do que a opinião de uma maioria sobre o que considera certo ou errado imposto aos demais como lei Orientada pelo seu próprio padrão de julgamento a opinião pública que nos Estados Unidos era formada pelos brancos e na Inglaterra pela classe média impõe seus preceitos como dogmas religiosos tornando seus sentimentos pes soais de bem e de mal obrigatórios para os demais A Inglaterra no tempo de Mill oferecia inúmeros exemplos de imposição da opinião pública sobre as minorias Costumes remanescentes de antigas perse 299 Capítulo 11 John Stuart Mill a luta contra a opressão Aparecida Maria Abranches guições religiosas como a obrigação de confi ssão religiosa em tribunais denun ciariam a interferência na liberdade dos indivíduos de não professarem fé algu ma leis proibitivas de consumo e de venda de bebidas alcoólicas sob o pretexto de defesa dos direitos sociais eram elaboradas perseguições aos mórmons em virtude de sua doutrina admitir a poligamia eram exemplos de interferência na liberdade mesmo em uma nação ciosa do grau a que teria alcançado em termos de tolerância para com a diferença É na defesa dos direitos das mulheres que talvez Mill mais se destaque na memória dos estudiosos contemporâneos no que diz respeito às minorias Em Da liberdade há duas menções Uma no contexto em que o autor defende a liberdade mesmo quando esta conduz a escolhas que são contrárias às suas próprias opiniões Ao defender o direito dos seguidores da religião mórmon de exercitála livremente diz reprovar o fato de que nesta religião as mulheres constituíam a metade subjugada daquela comunidade enquanto a outra os ho mens era emancipada Essa situação seria um fl agrante de infração do princípio da liberdade Em outra referência critica o poder quase despótico dos maridos sobre as mulheres pedindo a remoção desse mal por meio da concessão às mulheres dos mesmos direitos que aos homens e proteção da lei Os argumentos em favor dos direitos das mulheres são mais detidamente desenvolvidos em The Subjection of Women2 Neste livro Stuart Mill argumenta que a subordinação das mulheres constituía um entrave à melhoria da humanidade Devido ao subde senvolvimento do caráter feminino das faculdades mentais e morais decorren tes da subordinação os homens se tornaram egoístas agressivos vaidosos e adoradores de sua própria vontade Held 1987 p 89 É nesta linha de argumentação a respeito das efeitos nocivos da subordi nação das mulheres para o caráter masculino que Mill defende a mais ampla li berdade de opinião associada a sua defesa dos direitos das minorias Quando a sociedade por meio da abstenção da coação moral naquilo em que os indivíduos não causem danos a outrem permite que as capacidades morais e intelectuais se desenvolvam ocorre que Na proporção do desenvolvimento da própria indivi dualidade cada pessoa se torna de maior valia para si mesma sendo portanto capaz de tornarse mais valiosa para outrem Mill 1963 p 72 Os progressos que a humanidade lograra até então haviam sido frutos da originalidade e da força de caráter daqueles que souberam combinar desejos e impulsos com as crenças e restrições que enfi m pelo exercício das faculdades de percepção jul gamento sentimento discriminatório e atividade mental puderam elevarse aci ma dos comuns Para que tais faculdades se desenvolvessem seria preciso que os 2 Sobre este livro ver Held 1987 300 ELSEVIER Curso de Ciência Política homens pudessem exercer a capacidade de escolha E para o exercício da escolha duas condições se fariam necessárias liberdade e variedade de situações Essas duas condições que segundo Mill poucos ingleses estariam aptos a compreender e aceitar foram postuladas por Wilhelm Humboldt que defendera que a meta para a qual todo homem deveria se voltar com vistas à infl uência benéfi ca sobre os seus semelhantes era a da individualidade do poder e do desenvolvimento Essa defesa da individualidade se faz em meio ao que o autor considera o império do costume e da uniformidade enrijecidos sob o infl uxo da massa da opinião pública representada na fi gura dos reformadores sociais puritanos e so cialistas Berlin 1981 Neste contexto em que o costume e a tradição estariam prevalecendo sobre o caráter Mill adverte sobre a perigosa indiferença quanto à liberdade individual Ao sustentar esse princípio o de que em questões que não se relacio nem com terceiros a individualidade deve afi rmarse a maior difi cul dade com que se depara não consiste na apreciação dos meios para cer tos fi ns reconhecidos mas a indiferença das pessoas em geral para com o próprio fi m Se todos sentissem constituir o livre desenvolvimento da individualidade um dos elementos essenciais do bemestar que não é só elemento coordenado com tudo quanto se designa pelos termos civi lização instrução educação cultura mas forma por si parte e condição necessária de tudo quanto há não haveria perigo que se subestimasse a liberdade e deixaria de apresentar difi culdade o ajustamento entre ela e o controle social Mill 1963 p 64 A desatenção para com a liberdade poderia acarretar prejuízos tanto para o autodesenvolvimento quanto para a humanidade Eliminadas as condições que permitem aos indivíduos desenvolver suas faculdades natas resultariam seres amesquinhados incapazes de traçar um plano de existência próprio Para ele As faculdades humanas de percepção julgamento sentimento discrimina tório atividade mental e até preferência moral exercitamse somente quando se procede a uma escolha Quem faz qualquer coisa por ser costume não está esco lhendo Mill 1963 p 66 Aleijados das qualidades que lhes tornam humanos homens e mulheres de nada serviriam para o progresso moral e intelectual da humanidade Outro argumento em defesa das minorias relacionase com a sua discus são a respeito da disputa em torno da questão da verdade No segundo capítulo Mill introduz o tema hasteando a bandeira em favor da liberdade de opinião e de expressão O princípio que norteia toda a sua refl exão e defesa é o da discus são livre Colocando em perspectiva o bemestar da humanidade observa 301 Capítulo 11 John Stuart Mill a luta contra a opressão Aparecida Maria Abranches Mas o mal peculiar inerente ao silenciamento da expressão de uma opi nião consiste em que está roubando a raça humana tanto a posteridade quanto a geração existente os que discordam da opinião ainda mais do que quantos a sustentam Se a opinião for acertada fi cam privados da oportunidade de substituir a verdade ao erro se for errada perdem o que importa em benefício quase tão grande a percepção mais clara e a impressão mais viva da verdade produzida pela colisão com o erro Mill 1963 p 20 Desta proposição o autor deriva duas hipóteses que são consideradas se paradamente uma em que a opinião seja considerada falsa outra em que ela seja considerada verdadeira para fi ns de permitilhe o confronto com a opinião acei ta Na primeira hipótese o erro fundamental é a presunção de infalibilidade Recusar ouvir uma opinião porque estão certos de que ela é falsa im porta em supor que a certeza deles é o mesmo que certeza absoluta Todo silenciamento de discussão implica em hipótese de infalibilida de Pode concederse baseiese a condenação neste argumento comum nem por isso é pior por ser comum Mill 1963 p 21 O problema não é que os homens se considerem infalíveis pois não se consideram mas que não tomem precauções contra a falibilidade admitindo que a opinião que professam possa estar errada A certeza pode vir da concor dância coletiva baseada no que seria a infalibilidade do mundo em geral Nesse caso o que não se percebe é que geralmente o mundo para cada indivíduo signifi ca a parte do mundo com a qual entra em contato o partido a seita a Igreja a classe da sociedade a que pertence Mill 1963 p 22 Tal indivíduo confi ante na autoridade coletiva observa Mill não se abala nem quando percebe que outras épocas países seitas igrejas classes e partidos pensaram e pensam mesmo agora exatamente o contrário Mill 1963 p 22 Essa presunção de certeza não considera que as épocas não são mais infalíveis do que os indivíduos e fundada no seu próprio mundo ignora os os mundos discordantes das outras pessoas A melhor maneira de se precaver contra falibilidade é a mais completa liberdade de opinião e de expressão Para que a verdade de uma opinião pos sa ser atestada é preciso considerar que Existe a maior diferença entre supor verdadeira uma opinião porque com todas as oportunidades para contestála não foi refutada e supôla verdadeira para o fi m de não permitir que a refutem Mill 1963 p 23 Desse modo pontifi ca A completa liberdade de contradição e desaprovação da nossa opinião é a condição única que nos justifi ca supôla verdadeira para fi ns de ação e em nenhuma outra condição pode um ser com fa 302 ELSEVIER Curso de Ciência Política culdades humanas ter qualquer segurança racional de estar com a razão Mill 1963 p 23 Em outro trecho ele escreve O hábito fi rme de corrigir e completar a própria opinião cotejandoa com a de outras pessoas longe de causar dúvida e hesitação ao pôla em prática é o único fundamento estável para que se tenha confi an ça nela eis que tomando conhecimento de tudo quanto pelo menos obviamente podese dizer contra ele tendo assumido posição contra todos os contraditores sabendo ter ido em busca de objeções e difi culdades ao invés de evitálas certo de não ter posto de lado qualquer esclarecimento de qualquer origem que fosse tem o direito de pensar que seu julgamento é melhor o do que o de outra pessoa ou de qual quer multidão que não tenha passado por semelhante processo Mill 1963 p 25 Na segunda hipótese Mill analisa as vantagens que resultam para uma opinião estabelecida do confronto com outra que se lhe apresente como rival sendo necessário para isso supôla verdadeira De acordo com essa hipótese mesmo que se tenha certeza de que uma opinião seja falsa abafála ainda seria um mal Eis como ele apresenta a proposição Passemos agora para a segunda divisão do argumento e afastando a hipótese de que possa ser falsa qualquer das opiniões recebidas vamos supôlas verdadeiras examinando o valor da maneira pela qual é pro vável venha a considerarse quando não se encara livre e abertamente a verdade que encerram Seja qual for a relutância com a qual alguém que possui forte opinião admita a possibilidade de ser ela falsa deve sentirse abalado ao considerar que por mais verdadeira que seja se não for discutida inteira frequente e destemerosamente poderseá reputála como dogma morto e não verdade viva Mill 1963 p 40 Quando uma opinião estabelecida não é submetida ao debate seja por se presumila verdadeira seja por ausência de ambiente que permita a livre ex pressão das ideias resultam as seguintes consequências maléfi cas Primeiro um prejuízo para a cultura do entendimento à medida que o necessário conheci mento dos fundamentos de uma doutrina passa a ser desprezado Nesse caso quando não há o constante exercício de discussão de tais fundamentos à sua defesa quando for necessária faltará a necessária convicção para que ela não ceda terreno ante o mais leve simulacro de argumentação Segundo além de ignorantes dos fundamentos os homens também deixam de sentir a signifi cação das ideias que esposam 303 Capítulo 11 John Stuart Mill a luta contra a opressão Aparecida Maria Abranches Contudo a verdade é que não só se esquecem os fundamentos da opi nião na falta de discussão como frequentemente até a signifi cação da própria opinião As palavras que formulam deixam de sugerir ideias ou sugerem tão só pequena porção daquelas para as quais originaria mente se empregavam Em lugar de concepção vigorosa e crença viva restam apenas pequenas frases retidas de cor ou se alguma parte so mente se retém o invólucro externo perdendose o âmago mais precio so Mill 1963 p 45 Esse seria o caso da maioria dos crentes em relação às doutrinas cristãs Máximas como dever amar o próximo como a si mesmo vender tudo o que tem e dar aos pobres entre outras embora possam ser apregoadas com sinceridade a maioria não pensa realmente praticálas Eis o resultado do fato de as pesso as receberem uma doutrina não por convicção mas como credo hereditário não ativamente mas passivamente Quando os indivíduos não podem defender as opiniões que professam baseados em fundamentos e quando não lhes sente a signifi cação a doutrina perde a vitalidade Ela até pode continuar existindo mas deixa de progredir As condições e procedimentos segundo os quais se pode evitar a morte de uma opinião prevalecente consistem em propiciar um ambiente para a livre discussão o que remete à cultura e às instituições políticas de uma nação em que os defensores de determinadas ideias que julguem verdadeiras devem estar dispostos a ouvir o lado oposto pois aquele que só conhece seu próprio lado da questão pouco sabe dela Mill 1963 p 42 É mister agir como Cícero que sempre estudava o caso do adversário estudandoo com maior empenho até do que aquele que defendia O procedimento exige ainda que se escute a defesa de uma ideia diretamente daqueles que a professam realmente que a defendem com vigor Só assim a questão pode ser apreciada da forma mais plausível e persuasiva e com isso depararse com as difi culdades reais na defesa do próprio argumento Pondo em prática esse método dialógico na aferição da verdade de uma ideia Mill como em várias outras passagens de Da liberdade colocase no lu gar daqueles que poderiam objetarlhe estar postulando a falta de unanimidade como condição indispensável do verdadeiro conhecimento Ao que ele res ponde que com o aperfeiçoamento dos homens o número de doutrinas não mais disputadas ou duvidosas irá aumentando constantemente Mill 1963 p 50 sendo essa situação até mesmo um fator de bemestar dos homens Porém a despeito do bem que tal redução das ideias discordantes possam propiciar nem por isso podemos estar certos de que todas as suas consequências sejam 304 ELSEVIER Curso de Ciência Política benéfi cas A perda oriunda daquela situação é evidente ou seja a perda de tão importante auxílio à apreensão inteligente e vívida da verdade Mill 1963 p 50 Mesmo que os homens alcancem um grau tão elevado de concordância ainda seria possível e mesmo necessário manter o procedimento dialógico o método de discussão negativa Ele lembra as dialéticas socráticas e as dis cussões escoláticas da Idade Média que obrigavam os argumentadores a reve rem sempre os fundamentos de suas ideias e com isso fomentar o progresso da cultura do entendimento Mill analisa ainda uma terceira hipótese além das duas precedentes De acordo com estas pode ser falsa a opinião aceita e em consequência alguma outra verdadeira ou sendo verdadeira a opinião aceita ser essencial um confl ito com o erro oposto Mill 1963 p 52 Eis como é apresentada a terceira hi pótese Existe porém caso mais comum do que qualquer um destes quando as doutrinas em confl ito em lugar de serem uma verdadeira e outra falsa dividem entre si a verdade da qual a doutrina aceita inclui tão só parte Mill 1963 p 52 Uma opinião aparentemente falsa poderá conter fragmento da verdade que falta a uma outra Sendo as opiniões geralmente tão só meiasverdades por serem os homens falíveis é de desejarse que opostos se reconciliem e com binem por meio de ardorosos combates Em tais combates é provável que o fragmento de verdade que falta esteja exatamente do lado daqueles que estão em minoria como exceção à opinião comum Ele dá como exemplo as ideias de JeanJacques Rosseau numa época em que eram certos os progressos da hu manidade em que os homens perdiamse em admiração pelo que se chama civilização Mill 1963 p 53 Nesse contexto escreve com que choque explodiram os paradoxos de Rosseau como se fossem bombas nesse meio des locando a massa compacta da opinião lateral e forçandolhes os elementos a se recombinarem sob melhor forma e com ingredientes adicionais Mill 1963 p 53 Para o bem a humanidade é bom que os homens desconfi em de opiniões dominantes e dêem ouvidos à parcela em minoria pois é sempre provável que os dissidentes tenham algo a dizer digno de ouvirse e que a verdade per deria algo se não se manifestassem Mill 1963 p 55 113 O Governo Representativo Em Da liberdade há duas preocupações fundamentais a limitação da in terferência legítima da sociedade na liberdade individual e a livre expansão das capacidades individuais ou melhoramento dos indivíduos Fundamental para a realização de ambas seriam o respeito para com as minorias e o direito de estas 305 Capítulo 11 John Stuart Mill a luta contra a opressão Aparecida Maria Abranches se expressarem livremente Essas preocupações norteiam outra obra Considera ções sobre o Governo Representativo publicada em 1861 Nesse trabalho Mill defende a democracia como a melhor forma de gover no conciliandoa com o Estado liberal Mill fi gura entre os pensadores liberais entre os quais nos lembramos de Madison que procuram equacionar a questão sobre a combinação possível ou não entre a liberdade e a igualdade De acordo com John Rawls a controvérsia sobre a melhor forma de expressar os valores da liberdade e da igualdade situase na tradição do pensamento democráti co associada a Locke de um lado que dá maior peso ao que Constant chamava as liberdade dos modernos as liberdades de pensamento e consciência certos direitos básicos da pessoa e de propriedade e o império da lei e a de Rous seau de outro que dá mais peso ao que Constant chamava de as liberdades dos antigos as liberdades políticas iguais e os valores da vida pública Rawls 1993 p 467 Stuart Mill situase nesse debate ao que tudo indica procurando conciliar e recombinar opiniões contraditórias que nesse caso tratase da con vergência entre os princípios do Estado liberal e os da democracia Seguindo o propósito de encontrar e promover uma convergência salutar entre os dois princípios ele descarta a possibilidade de que a democracia seja praticada de forma direta defendendo como a forma idealmente melhor a democracia representativa As razões por que a democracia direta é objeto de sua recusa fi cam evidentes em Da liberdade Primeiro pelo que constata ser a tirania da maioria e em segundo pelo mal que essa tirania poderia causar ao livre desenvolvimento individual e consequentemente ao desenvolvimento da humanidade como um todo Em um contexto em que a soberania popular se erigia como fonte da legitimidade política a conciliação entre dois poderes por si sós enérgicos o do Estado e o do povo exigia limitações constitucionais para que não exorbitassem em relação aos indivíduos ou melhor em relação àque les cujas opiniões se encontrassem em minoria Desse modo conforme observa Held 1987 Mill percebeu a tirania da maioria e o fl orescimento do poder go vernamental como duas ameaças interrelacionadas Devido a essas ameaças que seriam os dois perigos fundamentais da época moderna Mill concentra sua atenção à relação entre burocracia e democracia examinandolhes as vantagens e desvantagens com vistas a encontrar o melhor equilíbrio entre elas Antes de prosseguir na análise da relação entre burocracia e democracia convém obser var como ao contrastar essas duas formas Mill introduz um elemento novo à clássica tipologia das formas de governo as quais segundo Aristóteles podem ser defi nidas como governo de um monarquia de poucos aristocracia e de mui tos democracia 306 ELSEVIER Curso de Ciência Política Embora defensor irrelutante da democracia Mill não descarta as outras como formas não virtuosas de governo as quais teriam sido necessárias ou ain da o seriam em contextos sociais e culturais que não apresentassem as con dições favoráveis ao Governo Representativo Para esta forma de governo o representativo três condições seriam indispensáveis 1 que o povo esteja dis posto a recebêlo 2 que esteja disposto e seja capaz de fazer o que for necessário para preserválo 3 que esteja disposto e seja capaz de cumprir com os deveres e desempenhar as funções que lhe impõe Mill 1964 p 50 A terceira é funda mental para as outras duas É devido à ausência da terceira condição que a monarquia absoluta não apenas se justifi cara ou se justifi ca como também proporcionara as circuns tâncias para que monarcas de vigor e talento surgissem na História tais como Elizabeth Henrique IV e Gustavo Adolfo Em tais contextos o povo ainda não havia aprendido a primeira lição de civilização a da obediência Nas suas palavras Raça que tivesse recebido treino em energia e coragem pelas lutas con tra a natureza e contra vizinhos mas que ainda não se houvesse fi xa do em obediência permanente a qualquer superior comum mui pouco provavelmente adquiriria semelhante hábito sob o governo coletivo do seu próprsio corpo A assembleia legislativa que se formasse com os seus próprios elementos refl etiria simplesmente a própria insubordina ção turbulenta Recusaria aprovação a todos os procedimentos que im pusessem à selvagem independência de que gozam qualquer restrição visando ao aperfeiçoamento Mill 1964 p 53 Se no caso acima o povo caracterizase por ser ativo demais justifi cando a monarquia há outros em que ocorre exatamente o oposto também justifi can do a mesma essa forma de governo Tratase da situação em que o povo se carac teriza pela passividade extrema e pronta submissão à tirania Nesse caso se um povo assim prostrado pelo caráter e pelas circunstâncias obtives se instituições representativas escolheria inevitavelmente os tiranos como representantes e o jugo se tornaria mais pesado pelo dispositivo que prima facie seria de esperarse tornálo mais leve Mill 1964 p 53 Foi com o auxílio de uma autoridade central que povos assim puderam de senvolver as capacidades de autogoverno Homens como Hugo Capeto Riche leu e Luís IV são citados como exemplares de atitudes que reprimem déspotas locais chamando a si a fé e a esperança de todos os reprimidos localmente Outro obstáculo ao governo representativo também superado por monarquias ilimitadas é o espírito regional inveterado Podemos dizer tratarse de situa 307 Capítulo 11 John Stuart Mill a luta contra a opressão Aparecida Maria Abranches ções em que as rivalidades locais e regionais impedem a solidariedade nacional condição para o que ele diz ser a primeira lição de civilização a obediência Além das causas acima enumeradas que tornam o governo representa tivo inaplicável e justifi ca a monarquia absoluta há ainda outras que se não corroboram uma defesa da aristocracia assinalam a justifi cação de um elemento aristocrático na forma de arranjo que deverá ter o governo representativo tal como Stuart Mill o idealiza Verifi quemos quais são essas causas e suas conse quências na seguinte passagem Podese assinalar em um povo uma centena de outras enfermidades ou defi ciências que por tanto o tornam incapaz de tirar o melhor pro veito do governo representativo quanto a estas contudo não é igual mente evidente que o governo de um ou de poucos revele qualquer tendência a curar ou remediar o mal Fortes preconceitos de qualquer espécie adesão obstinada a velhos hábitos defeitos positivos do ca ráter nacional ou simples ignorância e defi ciência de cultura mental se prevalecerem em um povo refl etirseão fi elmente nas assembleias legislativas e se acaso a administração executiva a gerência direta dos negócios públicos estiver nas mãos de pessoas comparativamente li vres de tais defeitos frequentemente maior bem resultará para eles se não se virem tolhidos pela necessidade de se submeterem ao assenti mento voluntário de tais corpos Mill 1964 p 56 Dentre essas enfermidades a defi ciência de cultura mental que pode re fl etirse na assembleia representativa constitui preocupação de Mill quanto à extensão do sufrágio o que vai leválo à proposição do voto plural como vere mos mais adiante O que importa nesse momento é assinalar que relativamente à baixa cultura mental que o governo popular ou democracia possa exibir Mill extrai da defi nição clássica do governo aristocrático a ideia aristotélica de que este seria o governo dos melhores Mill utliza esse elemento aristocrático para qualifi car o papel da burocracia nas democracias modernas No entanto embora ele impute elementos qualifi cadores como treinamento experiência e preparo intelectual e profi ssional à burocracia para as atividades do governo indica tam bém os males que o insulamento e agigantamento burocráticos podem produ zir nos governos democráticos A passagem a seguir ilustra as conveniência e inconveniência do governo de poucos em contexto de baixa cultura intelectual O caso que exige mais acurada consideração com referência às insti tuições é o que muita vez se depara de porção pequena mas dirigen te da população de raça diferente de origem mais civilizada ou de outras particularidades de circunstâncias marcadamente superior em 308 ELSEVIER Curso de Ciência Política civilização e caráter geral a todo o resto Em tais condições o governo pelos representantes da massa teria a oportunidade de privar o povo de grande parte do benefício que lhe adviria da maior civilização das fi leiras superiores enquanto o governo pelos representantes destas pro valvemente fi rmaria a degradação da multidão e nenhuma esperança lhes deixaria de tratamento decente senão libertandose dos elementos mais valiosos de adiantamento futuro Mill 1964 p 57 Então se por um lado o governo dos melhores pode resultar em bene fícios para a nação por outro pode resultar em degradação da massa dos ci dadãos à medida que esta seria privada de tomar parte no governo Em outra passagem o tipo de benefício resultante da restrição do governo a poucos fi ca mais claro Referindose à aristocracia como burocracia cuja defi nição é gover nantes por profi ssão Mill escreve que a estima de que gozavam as aristocracias por profi ssão em governos em que elas fl oresceram como os de Veneza e de Roma estava diretamente relacionada ao sucesso externo e engrandecimento do Estado A felicidade e melhoramento do povo não eram as metas desse tipo de governo Tais metas são as que devem perseguir um governo popular sendo necessário que as instituições políticas sejam de tal forma que permitam o maior número possível de cidadãos tomarem parte nas funções públicas Promovese o autodesenvolvimento dos indivíduos permitindolhes que exerçam suas ca pacidades morais e intelectuais por um lado excluindo o menor número possível do sufrágio por outro facultando a todas as classes de cidadãos a mais ampla participação nos detalhes das questões judiciárias e administrativas como pelo julga mento por juri admissão a cargos municipais e acima de tudo pela maior publicidade possível e liberdade de discussão Mill 1964 p 75 Ao difundir esses mecanismos de inclusão política o governo democráti co representativo não apenas promove o autodesenvolvimento como também passa a dispor de efi ciente remédio contra um mal característico da burocracia Embora a burocracia seja vantajosa porque acumula experiência ela tende à rotina o que a faz perder em vitalidade A rotina é uma enfermidade que ataca os governos burocráticos e da qual vem a morrer A burocracia tende sempre a tornarse pedantocracia O governo popular propicia um ambiente dinâmico ao introduzir um elemento externo de liberdade evitando a prostração bu rocrática Esse elemento externo caracterizarse pela crítica vigilante de capa cidade igual exterior ao corpo Mill 1963 p 127 Assim como em Da liberdade ele defende que a liberdade de expressão é necessária ao desenvolvimento das faculdades humanas o mesmo ele defende em relação à burocracia no sentido do seu próprio melhoramento 309 Capítulo 11 John Stuart Mill a luta contra a opressão Aparecida Maria Abranches 1131 Os perigos do Estado agigantado3 e da tirania da maioria Mill identifi ca a origem da burocracia nas aristocracias profi ssionais ou aristocracias de funcionários públicos as quais se distinguem das aristocracias defi nidas pela posição social como a da Inglaterra As aristocracias por profi s são adquirem treinamento específi co para a administração dos negócios públi cos enquanto as do outro tipo adquirem esse treinamento por dever hereditário de exercer tais funções A importância de se salientar essa origem profi ssional é poder associála à expansão do poder do Estado como um dos perigos junto com a tirania da maioria às liberdades individuais e aos benefícios que essas liberdades poderiam proporcionar ao autodesenvolvimento pessoal Em Da li berdade Mill adverte que quanto mais científi ca e efi ciente for a burocracia não só os governados mas também os seus membros e os governantes tornamse escravos Os governantes são escravos da própria organização e disciplina tan to quanto os governados em relação aos governantes Mill 1963 p 127 O enrijecimento burocrático quando concentra em si todas as atividades gover namentais impede que as capacidades mentais gerais do povo se desenvolvam Então escreve ele embora os indivíduos talvez não realizem tão bem o que se tem vis ta como os funcionários do governo seria de desejar o fi zessem aque les de preferência a estes como elemento da própria educação mental maneira de aumentarlhes as faculdades ativas fazendoos exercitar o julgamento e proporcionandolhes conhecimento familiar dos assuntos que de tal modo lhes passa à esfera de ação Mill 1963 p 123 Além de não proporcionar meios para a educação mental e desenvolvi mento do interesse pelas questões públicas haveria risco para a própria gover nabilidade Quando os indivíduos em tudo passam a depender do Estado e dos seus funcionários se o Estado não consegue corresponder às expectativas há risco de revolução Em países de civilização mais adiantada e de espírito mais insubordi nado o público acostumado a esperar tudo faça o Estado por ele ou pelo menos nada faça por si mesmo não só sem pedir licença ao Estado para fazer mas até mesmo como deve ser feito consideram natural mente o Estado responsável por todo mal que lhes acontece e se o mal ultrapassa a paciência de que dispõem levantamse contra o governo fazendo o que chama de revolução Mill 1963 p 126 3 Faço uso da expressão usada por Held 1987 310 ELSEVIER Curso de Ciência Política Stuart Mill ilustra o que seria tal Estado agigantado com o que seria o bom désposta Leiamos um trecho dessa alegoria que lhe abre caminho para escrever sobre as virtudes do governo representativo A suposição consiste em que o poder absoluto em mãos de indivíduo eminente asseguraria execução virtuosa e inteligente de todos os deve res do governo Estabelecerseiam boas leis que passariam a vigorar reformarseiam leis más colocarseiam os melhores homens em to das as posições de confi ança a justiça seria tão bem administrada os ônus públicos tão leves e tão judiciosamente impostos todos os ramos da administração conduzidos tão pura e inteligentemente quanto as cir cunstâncias do país e o seu grau de cultura intelectual e moral o permi tissem Inclinome de boa vontade a conceder tudo isso no interesse da argumentação devo porém assinalar quão ampla é a concessão de quanto mais se precisa conseguir até mesmo certa aproximação de tais resultados do que se exprime pelas simples palavras bom déspota Obtêlos importaria de fato em terse não simplesmente bom monarca mas um que tudo visse Teria de ser informado em todas as ocasiões corretamente com detalhe considerável da conduta e do funcionamento de cada ramo da administração em todos os distritos do país e teria de ser capaz nas vinte e quatro horas por dia que são tudo quanto se concede tanto a um rei quanto ao mais modesto dos trabalhadores para que dispense parte efetiva de atenção e supervisão a todos os elemen tos desse vasto campo ou pelo menos terá de ser capaz de distinguir e escolher dentre a massa dos súditos não somente grande abundância de homens honestos e capazes em condições de conduzirem todos os ramos da administração pública sob supervisão e controle mas também o menor número de homens de virtudes e talentos eminentes merecedo res de confi ança não só para agirem independentemente de supervisão mas para exercêla sobre terceiros Tão extraordinárias são as faculdades e energias exigidas para a execução dessa incumbência de qualquer ma neira suportável que o bom déspota que estamos supondo difi cilmente se poderia imaginar como consentindo em encarregarse dela a menos que fosse para evitar males intoleráveis e como preparo intermediário para algo por vir Mas o argumento vale mesmo sem esta imensa relação no cômputo Suponhase desaparecida a difi culdade Que teríamos en tão Um homem de atividade mental superhumana gerindo os negócios de um povo mentalmente passivo A própria ideia de poder absoluto importa em semelhante passividade A nação como um todo e todos os indivíduos que a compõem fi cam privados de qualquer voz potencial no próprio destino Não exercem qualquer vontade com respeito a seus interesses coletivos Uma vontade que não a deles tudo decide sendo 311 Capítulo 11 John Stuart Mill a luta contra a opressão Aparecida Maria Abranches legalmente crime desobedecerlhe Que espécie de seres humanos se for mariam sob semelhante regime Que desenvolvimento atingiriam o pen samento ou as faculdades ativas desse povo Mill 1964 p 3435 Ainda que tal déspota por ser bom não exercesse poder repressivo so bre os súditos não conseguiria proporcionarlhes o bem que só pode resultar de governo livre o caráter ativo e independente Tal caráter é o que Mill entende por melhoramento do povo e que se obtém por meio de instituições políticas que promovam a liberdade Por isso escreve Não há difi culdade alguma em mostrarse que a forma de governo ideal mente melhor é aquela em que a soberania ou poder controlador supre mo em última instância se encontra investido no agregado inteiro da co munidade tendo cada cidadão não só voz nessa soberania extrema mas sendo chamado pelo menos acidentalmente a tomar parte realmente no governo pelo desempenho de alguma função pública local ou geral Mill 1964 p 39 A superioridade do governo popular reside em dois princípios a autopro teção e autodependência O primeiro tem como substrato o fato de que cada um é único guardião seguro dos próprios direitos e interesses Mill 1964 p 40 o segundo que os indivíduos realizam melhor os seus interesses desenvolvendo capacidades convenientes se não fi cam na dependência de terceiros A admissão desses princípios não signifi ca afi rmação de que os homens sejam universalmen te egoístas O contrário desse egoísmo se verifi caria mesmo nas elites políticas e empresárias da época que fazem de boa vontade sacrifícios consideráveis especialmente de seus interesses pecuniários em benefício das classes trabalha doras Mill 1964 p 41 No entanto seria exatamente o excesso de zelo e de consideração pelo próximo que estaria produzindo maior mal aos trabalhadores e erram antes por benefi ciálas prodigamente e sem discriminação Mill 1964 p 40 Em contexto de exclusão política da classe trabalhadora o parlamento fi ca privado de saber o ponto de vista dessa classe a qual se tivesse representação estaria em melhores condições de defender seus interesses Sobre isso escreve É condição inerente aos negócios humanos que nenhuma intenção por mais sincera que seja de proteger os interesses de outrem a torne segu ra ou salutar se começarmos por atarlhes as mãos E ainda é mais evi dentemente verdadeiro que somente pelas próprias mãos se conseguirá qualquer melhoramento positivo e duradouro das suas circunstâncias na vida Por meio da infl uência conjunta desses dois princípios todas as comunidades livres aboliram a injustiça social e o crime e alcança ram prosperidade mais brilhante Mill 1964 p 42 312 ELSEVIER Curso de Ciência Política A democracia apresentase ainda vantajosa pelo efeito moral que exerce sobre os indivíduos no que diz respeito à sua relação com o outro Mill examina essa questão classifi cando os homens em tipos passivos e tipos ativos O pri meiro tipo é favorecido se não estimulado pela monarquia e pela aristocracia enquanto o segundo pela democracia O problema moral do tipo passivo é que lhe apraz a inatividade do outro pois lhe aumenta o sentimento de segurança e de consideração própria O passivo é uma pessoa satisfeita com o que tem e não deseja que outro tenha aquilo que ele próprio não é capaz de alcançar A passivi dade produz pessoas invejosas e incapazes de se empenharem em qualquer ati vidade que represente melhoramentos coletivos Ela produz seres fracos ames quinhados O ativo ao contrário é empreendedor que ao fazer o melhor para si o faz por todos direta ou indiretamente O governo democrático favorece esse tipo humano franqueandolhe a igualdade de condições Ele diz ainda que relativamente a governo parcialmente popular em que mesmo os que não partilham dos privilégios completos da cidadania usufruem liberdade Constitui contudo grande estímulo adicional à iniciativa e confi ança em si próprio de qualquer um quando sente estar em igualdade de con dições sem se preocupar que o êxito depende da impressão que venha a causar aos sentimentos e disposições de um corpo a que não pertence Mill 1964 p 47 Além da extensão dos direitos políticos o governo popular estimula o ser ativo à medida que lhe dá algo para fazer a favor do público Esse dispositivo constitui remédio contra o confi namento na vida privada e o desinteresse pelo público Dessa forma Obrigamno a sentir parte do público e tudo quanto for para o benefício deste sêloá também para ele Mill 1964 p 49 Nesse sentido o governo democrático constitui verdadeira escola de espírito público e por estas razões Mill defende o governo democrático representativo e não direto tal como na concepção de Rousseau Eis como ele se expressa Por todas essas considerações é evidente que o único governo capaz de satisfazer inteiramente todas as exigências do estado social é aquele em que o povo todo participe que é útil qualquer participação mesmo nas funções públicas mais modestas que a participação deverá ser por toda a parte tão grande quanto o grau geral de melhoramento da comunida de o permita e que é de desejarse como situação extrema nada menos do que a admissão de todos a uma parte do poder soberano Todavia desde que é impossível a todos em uma comunidade que exceda a uma única cidade pequena participarem pessoalmente tão só de algu 313 Capítulo 11 John Stuart Mill a luta contra a opressão Aparecida Maria Abranches ma porções muito pequenas dos negócios públicos seguese que o tipo ideal de governo perfeito tem de ser o representativo Mill 1964 p 49 Até esse ponto foram apresentadas as virtudes da democracia relativa mente a outras formas de governo e ao predomínio que o Estado possa vir a ter em sociedade de massa Resta agora discorrer sobre as enfermidades de que pa decem a democracia Enfermidades essas que explicam o porquê da preferência de Mill pelo governo representativo mas arranjado de uma determinada forma como veremos Na citação anterior a justifi cação do governo representativo fun dase na ideia de que nas condições de democracia de massa não seria possível a participação direta tal como na Grécia clássica e como proposto por Rousseau Doravante são apresentadas razões que dizem respeito à natureza humana e às limitações de inteligência e preparo dos homens Essa parte da discussão é a que mais diretamente diz respeito ao problema da tirania da maioria e como encon trar soluções institucionais que lhe mitiguem a infl uência Se a democracia é superior às outras formas de governo porque promove maiores esclarecimento e independência do público por outro lado ela não se distingue das demais igualandose em defi ciência por duas razões a existência de interesses sinistros isto é egoístas tanto nos homens em geral como nos governantes e a orientação por interesses imediatos em oposição aos reais Esse segundo tipo de interesse deriva da falta de inteligência da capacidade de se perceberem os benefícios de longo prazo que possam resultar de uma ação no presente Mill argumenta que quanto a estes últimos mesmo reis neles in correram promovendo benefícios para uma geração inteira sem perceber que na verdade o que faziam era pavimentar o caminho para a escravidão Se até por governantes supostamente esclarecidos tais equívocos foram cometidos por que não duvidar que o governo de maioria numérica não possa neles incorrer também Pergunta o autor Além dessas duas causas derivadas da natureza hu mana e estimuladas pelas circunstâncias devese considerar o efeito que o po der exerce sobre os homens No momento em que um homem ou uma classe de homens se acha com o poder nas mãos os interesses individuais do homem ou os in teresses distinto da classe adquiremlhe aos olhos grau inteiramente novo de importância Vendose adorado por outros tornase adorador de si mesmo e julgase que tem o direito de ter o próprio valor contado cem vezes mais do que o de outras pessoas enquanto a facilidade que adquire de fazer o que quer sem pesar consequências enfraquece in sensivelmente os hábitos que fazem os homens fi car na expectativa das consequências capazes de afetálos Mill 1964 p 85 314 ELSEVIER Curso de Ciência Política Pela combinação dos interesses egoístas e imediatos e a ascensão ao poder explicase a corrupção a que estão sujeitas todas as formas de governo Por isso Temse de instituir governos para os seres humanos como são ou como sejam capazes de se tornar rapidamente Mill 1964 p 85 Na democracia portanto o sistema representativo se faz necessário não apenas pela impossibilidade de participação direta mas também para prevenir tais riscos de corrupção Por isso o sistema representativo deve ser arranjado de maneira tal que previna tanto o prevalecimento dos interesses sinistros da maioria sobre as minorias como a ofuscação dos mais capazes nos negócios públicos A solução proposta por Mill é a adoção do modelo de representação proporcional de Thomas Hare e a adoção do voto plural O primeiro corrigiria principalmente o problema do risco de prevalecimento dos interesses egoístas da maioria assegurando a re presentação da minoria o segundo principalmente contornaria o problema da defi ciência de inteligência no governo popular Embora Mill defenda a democracia e a maior inclusão possível de pessoas no sufrágio ele é na verdade bastante cético quanto à participação popular Sem dúvida alguma suas precauções dizem respeito à afl uência da classe trabalhado ra ao universo da cidadania política pela extensão do sufrágio universal Essa era a principal reivindicação do movimento cartista de meados da década de 1830 até a década de 1840 quando é derrotado Além de seus próprios temores Mill expressa a apreensão das elites da época incluindo aí a classe média que havia conquistado direitos políticos em 1832 e às quais o conceito de demo cracia popular era estranho segundo Karl Polany4 quanto ao que lhe parecia ser a inevitabilidade do sufrágio universal Na sua defesa do voto plural exorta seus compatriotas mas como chegará certamente a ocasião em que a única escolha possível será entre este o voto plural e o sufrágio universal quem não desejar o último não pode deixar de começar desde já a reconciliarse com o primeiro Mill 1964 p 119 Sem dúvida Mill reconhece que há pessoas qualifi cadas e de visão mais ampla na classe trabalhadora como os mais especializados e os membros dos sindicatos Em uma discussão a respeito da equalização dos salários na época os trabalhadores mais experientes e qualifi cados se opunham a medida prevendo como ela poderia afetar negativamente a atividade industrial Esses constitui riam a elite da classe trabalhadora porém padeceria do mesmo mal que todas as outras minorias a de não serem ouvidos Então o sistema representativo de veria ser de tal forma organizado que permitisse o equilíbrio entre as diversas minorias de classe sexo território etc e a maioria Na ausência de um arranjo 4 Ver Karl Polanyi 2000 315 Capítulo 11 John Stuart Mill a luta contra a opressão Aparecida Maria Abranches que permita a representação das minorias a democracia seria tão somente fal sa democracia A democracia pura é o governo de todo o povo pelo povo todo igualmente representadoMill 1964 p 88 No entanto o que se praticava era o governo de todo o povo por simples maioria do povo exclusivamente representada Mill 1964 p 88 A primeira afi rma o princípio da igualdade enquanto a última o privilégio sendo portanto falsa democracia 1132 O sistema de representação proporcional e o voto plural Dois dispositivos poderiam garantir que a democracia pura se efetivasse a representação proporcional e o voto plural De acordo com Jairo Nicolau A representação proporcional tem duas preocupações fundamentais a assegurar que a diversidade de opiniões de uma sociedade esteja refl etida no Parlamento e b garantir a equidade matemática entre os votos dos eleitores e a representa ção parlamentar Nicolau 2002 p 31 Estas são duas das vantagens que Stuart Mill viu na proposta de sistematização da representação proporcional feita por Thomas Hare em Tratado sobre eleição de representantes parlamentar e municipal publicado em 1851 Resumidamente Hare propunha que o número de cadeiras do parlamento fosse divido pelo número de eleitores obtendose com essa conta a quota a ser alcançada para fi ns de eleição do representante Este sistema ga rantiria a representação nacional pois o eleitor poderia votar em candidatos de qualquer parte do país e com isso expressar interesses outros que não apenas os locais O eleitor poderia votar em mais de um candidato ordenando a cédula eleitoral conforme a sua preferência Se o candidato preferido não conseguisse se eleger o eleitor teria a chance de verse representado pelo segundo e assim por diante Haveria ainda o dispositivo da transferência de votos Uma vez atin gida a quota necessária os demais votos seriam transferidos para os seguintes até que se conseguisse preencher todas as cadeiras Além da representação na cional e da representação das minorias esse sistema teria ainda a vantagem de garantir uma identifi cação pessoal entre o eleito e o eleitor evitando que esse corresse o risco de se ver representado por alguém em que não votou Esse sis tema seria ainda benéfi co à medida que elevariam pessoas mais capacitadas ao parlamento as quais infl uenciariam positivamente os representantes das maio rias e com isso elevaria o padrão intelectual da Casa dos Comuns No entanto apesar do sistema de representação de Hare minorar em grande parte os defeitos da democracia ainda assim o poder fi caria em mãos da maioria numérica sendo necessário agregar ainda outros expedientes a fi m de se aproximar o governo popular da forma idealmente melhor Sobre isso escreve Mill 316 ELSEVIER Curso de Ciência Política Mas mesmo nessa democracia o poder absoluto se o preferisse exercer fi caria com a maioria numérica e essa se formaria exclusivamente de uma única classe semelhante em inclinações preconceitos maneiras gerais de pensar e para não dizer mais que não seria a mais altamente culta A constituição portanto ainda estaria sujeita aos males caracte rísticos do governo de classe com toda certeza em grau muito menor do que a do governo exclusivo de uma classe que ora usurpa o nome de democracia mas ainda sem nenhuma restrição efi caz exceto a que se encontrasse no bom senso moderação e indulgência da própria classe Mill 1964 p 109 No Capítulo VII Mill já havia chamado a atenção para a necessidade de se limitar o caráter da representação mediante sufrágio mais ou menos restrito Mill 1964 p 88 No capítulo VIII em que retoma o tema pondera a respeito do quanto e de que tipo de pessoa poderia ser impedida de votar tendo em vista a exclusão do menor número possível Ele volta a alegar a importância da parti cipação política mais ampla para a educação geral Prova do caráter pedagógico da democracia se encontraria na grande obra do Sr De Tocqueville e de outros viajantes sobre os americanos Na América cada americano é em certo sentido patriota e pessoa de inteligência culta Mill 1964 p 110 Porém se os Estados Unidos forneciam provas de tão grande benefício da democracia por outro lado sua experiência também indicava as defi ciências desse governo De fato a vida política na América é a escola mais valiosa mas é a es cola da qual se excluem os professores mais hábeis sendo os primeiros espíritos do país afastados tão efi cazmente da representação nacional e das funções públicas em geral como se fossem considerados formal mente incapazes O demos sendo também na América a única fonte do poder toda a ambição do país para ele gravita como acontece em países despóticos em relação ao monarca perseguem o povo como o déspota com adulação e bajulação e os efeitos corruptores do poder acompanham bem de perto as infl uências de melhoramento e enobreci mento que se possa ter Mill 1964 p 111 Por causa da exclusão dos melhores e do cortejo que se faz das maiorias restrições seriam necessárias Porém ao considerarmos as restrições que Mill propõe conforme veremos é preciso ter em vista que o autor tem em perspecti va a extensão gradativa do sufrágio universal não a sua negação Limitações ao voto existiam na Inglaterra como o critério censitário isto é o voto condiciona do pelo pagamento de impostos diretos Com vistas a maior ampliação possível do sufrágio Mill propõe que o pagamento de impostos diretos seja estendido 317 Capítulo 11 John Stuart Mill a luta contra a opressão Aparecida Maria Abranches aos mais pobres por menor que fosse a taxa cobrada Além da extensão do su frágio esse expediente aumentaria a responsabilidade por parte dos eleitores com relação às despesas públicas ao elegerem seus representantes Quanto aos que dependem de auxílio Mill concorda que estes sejam excluídos do voto pois segundo ele Quem não pode pelo próprio trabalho bastarse a si mesmo não tem direito a reivindicar o privilégio de servirse do dinheiro de terceiros Mill 1964 p 114 Mas ele acredita que com o tempo a classe dos dependentes iria diminuir de maneira que os que fi cassem fora do sufrágio seriam em número diminuto confi gurandose sufrágio universal Sem dúvida Mill ao defender algum condicionamento pecuniário para o exercício do voto e da representação o faz por temer uma ingerência dema siada dos cidadãos pouco ou não produtivos sobre os mais ricos Além disso esses cidadãos poderiam exercer uma infl uência negativa no caráter dos repre sentantes que poderiam se tornar irresponsáveis no que diz respeito aos gas tos públicos visto serem estes os que votam os impostos Porém a maior preo cupação de Mill não é com o voto dos mais pobres Lembremos que sua defesa da democracia consiste no argumento de que pela inclusão do maior número ela proporciona a melhoria de caráter e da educação de todos quantos venham dela participar Sua preocupação maior é com o voto dos ignorantes apesar de haver mais chances de que estes se encontrem em maior número entre os pobres conforme ele mesmo diz Por ser esta sua maior preocupação é que ele defende a exclusão dos analfabetos Eis como ele se pronuncia a respeito Considero totalmente inadmissível que qualquer pessoa participe de eleições sem ser capaz de ler escrever e ainda juntarei executar as operações comuns da aritmética Mill 1964 p 112 No entanto o problema do analfabetismo poderia deixar de ser um entrave à participação com o tempo Mill defende o ensino universal como uma obrigação da sociedade pois segundo ele A justiça pede mesmo quando o sufrágio não depende disso da alfa betização que os meios de adquirir essas noções elementares estejam ao alcance de todos ou gratuitamente ou com uma despesa que o mais pobre que ganhe o próprio pão possa satisfazer Mill 1964 p 1123 Em Da liberdade ele defende a obrigatoriedade do ensino pelo Estado seja diretamente seja obrigando os pais a provêla aos fi lhos Devido à preocupação de Mill ser maior com relação à ignorância do que com a pobreza é que ele irá defender a introdução do voto plural nas eleições parlamentares junto com o sistema de Hare O voto plural signifi ca o direito de um eleitor ter mais de um voto Esse direito seria facultado àque 318 ELSEVIER Curso de Ciência Política les que demonstrassem ter mais capacidade intelectual independentemente da condição fi nanceira Eis como ele esclarece esse ponto Deixeme juntar que considero absolutamente necessário como parte do plano de pluralidade seja facultado ao indivíduo mais pobre da co munidade reivindicarlhe os privilégios se lhe for possível provar que a despeito de todas as difi culdades e obstáculos a eles tem direito no que respeita à inteligência Mill 1964 p 118119 Em outra passagem ele declara considerar inadmissível que se confi ra a superioridade de infl uência à importância da propriedade Mill 1964 p 117 Embora a propriedade possa ser uma espécie de prova não há garantias con tra o que possa haver de incidental na sua posse Somente a superioridade mental individual pode ser critério para a obtenção do direito ao voto plural Profi ssionais liberais com prática comprovada pessoas formadas em universi dades de qualidade reconhecida formariam preferencialmente o público desti natário do direito ao voto plural Com os dispositivos do voto plural e da representação proporcional a de mocracia estaria precavida dos riscos principais o do padrão demasiadamente baixo da inteligência política e o da legislação de classe Mill 1964 p 115 Desse modo estaria mais próxima da forma idealmente melhor Mas para aperfeiçoála mais ainda rumo ao sufrágio universal seria necessário incluir as mulheres na participação política No estado social em que Mill se encontrava na sua época escreve ele Não há ninguém hoje em dia que sustente que as mu lheres devem conservase em servidão pessoal sem pensamento sem desejos ou ocupações reduzidas à posição de escravas domésticas dos maridos dos pais ou dos irmãos Mill 1964 p 122 Então uma vez que a liberação civil e política das mulheres já não encon trava obstáculos rígidos nos costumes eis o que ele diz e com o que fi nalizo a minha exposição Esperemos que perseguindo a obra de derrubar um após outro os res tos da estrutura decrépita do monopólio da tirania não seja este o últi mo a desaparecer que as opiniões de Benthan do Sr Samuel Bailey do Sr Hare e de muitos outros dentre os pensadores políticos mais vigo rosos desta época e deste país para não falar dos outros sejam aceitas por todos os espíritos que não se tornaram obstinados pelo egoísmo ou preconceito inveterado e que antes de passar outra geração o acidente de sexo não mais do que o acidente de pele não se julgue razão bastan te para privar o possuidor de proteção igual e dos justos privilégios de cidadãos Mill 1964 p 125 319 Capítulo 11 John Stuart Mill a luta contra a opressão Aparecida Maria Abranches 114 Conclusão As duas obras aqui analisadas devem ser compreendidas em um contexto em que a democracia volta ao vocabulário político desde que seu signifi cado puro como governo do demos fora perdido com a decadência da democracia gre ga por volta do século III aC A Revolução Francesa e a Americana foram sem dúvida eventos que contribuíram para esse novo alvorecer Da época desses acontecimentos até aquela em que Stuart Mill escreve impérios e restaurações monárquicas se sucederam na Europa Junto com esses fatos atitudes relutantes e temerosas retardaram a participação da classe trabalhadora no universo da ci dadania política Dos fi ns do século XIX até a Segunda Guerra a literatura políti ca vai dar ensejo as formulações da chamada teoria das elites com Gaetano Mos ca Vilfredo Pareto e Robert Michels Desiludidos em suas próprias esperanças democráticas esses autores se mostram céticos e críticos do governo popular Em 1942 com a publicação de Capitalismo socialismo e democracia de Joseph Schumpeter ventos benfazejos voltam a soprar em favor da democracia Porém a nova teoria democrática propõese realista e o realismo signifi ca descartar da meta democrática o bem comum e sobretudo a premissa segundo a qual o cidadão comum é capaz de observar e interpretar corretamente os fatos Schumpeter 1961 p 309 e proceder a escolhas corretas Sem tais atributos res tariam pessoas com senso de responsabilidade reduzido ausência de vontade efetiva tudo isto explicando a ignorância do cidadão comum e a falta de bom senso em assuntos da política interna e externa Schumpeter 1961 p 318 Quão diferente era o julgamento de Stuart Mill quanto à capacidade de homens e mulheres comuns Capacidade potencial é verdade mas o bastante para que em meio a tantas descrenças em relação à democracia ele pudesse defendêla não apenas como um procedimento para a escolha dos governantes mas principalmente como um instrumento moral ético e sobretudo do discer nimento político 115 Perguntas para reflexão 1 De acordo com Stuart Mill quais seriam as duas principais ameaças à liberdade individual na sociedade moderna 2 O que o autor entende por tirania da maioria 3 O que é o princípio da autoproteção 320 ELSEVIER Curso de Ciência Política 4 O que significa a interferência ilegítima da sociedade na liberdade indivi dual 5 Apresente os argumentos do autor em defesa das minorias 6 Por que a mais ampla liberdade de pensamento e de expressão deve ser garantida 7 Quais os argumentos do autor em favor do governo democrático e espe cificamente do governo representativo 8 Por que o governo do bom déspota não é desejável nem aplicável 9 Quais são as deficiências do governo democrático do que elas decorrem e o que pode corrigilas 10 De que modo Stuart Mill fundamenta a sua defesa do voto plural consi derandose a sua compreensão dos critérios riqueza e educação na quali ficação do eleitor Bibliografia BERLIN Isaiah John Stuart Mill e as fi nalidades da vida In Quatro ensaios sobre a liberdade Brasília Editora da Universidade de Brasília 1981 HELD D Modelos de democracia Belo Horizonte Paideia 1987 LEPPENIES W As Três Culturas São Paulo EdUsp 1996 MILL Stuart Da liberdade São Paulo Ibrasam 1963 Considerações sobre o governo representativo São Paulo Ibrasa 1964 NICOLAU Jairo Sistemas eleitorais 4 ed Rio de Janeiro FGV 2002 POLANYI Karl A grande transformação 8 ed Rio de Janeiro Campus 2000 RAWLS John O liberalismo político São Paulo Ática 2000 SCHUMPETER Joseph A Capitalismo socialismo e democracia Rio de Janeiro Fundo de Cultura 1961 Capítulo 12 Leituras de Marx Paulo M dAvila Filho 121 Introdução Ser radical é tomar as coisas pela raiz Ora a raiz para o homem é o próprio homem Marx Contribuição à Crítica da Filosofi a do Direito de Hegel1 Meu método analítico não parte do Ho mem mas do período social economica mente dado Marx O capital2 Doutor e Mestre em Ciência Política pelo IUPERJ Bacharel em História com especialização em História da Filosofi a pelo IFCSUFRJ Coordenador da Área de Ciência Política do Departamento de Sociologia e Política da PUCRio onde é professor e pesquisador do Programa de Graduação e de Pósgraduação em Ciências Sociais Contato pdavilafrdcpucriobr 1 O trecho é citado por George Lukács em História e consciência de classe 1989 p 97 Esta é uma das passagens prediletas de Lukács Ele a utiliza com frequência em seus textos 2 O trecho é citado por Luís Althusser em Pour Marx A favor de Marx 1979 p 194 Althusser tem grande predileção por esta passagem de Marx e a utiliza como introdução ao artigo Marxismo e Humanismo contido em seu livro 322 ELSEVIER Curso de Ciência Política As passagens acima sugerem certa diversidade de perspectivas contidas na obra do intelectual alemão Karl Marx Uma diversidade muito pouco ex plorada nos bancos escolares frequentemente preocupados em formar alunos a partir de um enquadramento já cristalizado do pensamento de autor alemão Afi nal qual o ponto central da teoria de Marx O sujeito revelado na primeira passagem ou a estrutura sugerida na segunda Este texto sustenta que ambas as perspectivas convivem como tensão na obra marxiana Falar de Marx e do marxismo contudo não é tarefa fácil como se não bas tassem as difi culdades próprias do objeto complexo e diverso nos deparamos ainda com outro problema apesar de ser um autor pouco lido o que se lê dele são alguns trechos alguns artigos no máximo uns poucos livros Marx é muito conhecido chegando a ser mesmo familiar para um bom número de pessoas Em geral quase todo o mundo já ouviu falar do marxismo ou tem uma opinião formada a respeito do que seja o verdadeiro marxismo Mesmo entre os estudiosos existe uma tendência a atribuir à diversidade complexa da tradição marxista uma única formulação determinada uma espé cie de marxismo genuíno O mais curioso é que esse é um comportamento co mum tanto entre seus defensores como entre seus críticos A operação consiste em eleger alguns elementos desse pensamento e lhes conferir o status de expres são clarividente do conjunto da obra Uma tentação dogmática3 que difi culta o debate entre ambos Isso talvez se deva ao fato de que o marxismo está liga do a discussões políticas muito apaixonadas Uma das confusões mais comuns de ambas as partes é abordar sem estabelecer as devidas diferenças a obra de Marx e o marxismo em geral como se fossem um só objeto indiferenciado Tal procedimento reduz as diferentes interpretações da obra de Marx e os novos conteúdos e métodos introduzidos pelos seus seguidores a uma única leitura de Marx Falar de Marx é também falar de seu fi el companheiro de trabalho par ceiro político e intelectual Friedrich Engels Fernandes 1984 Engels é o fi lho primogênito de um industrial bemsucedido em Manchester um jovem comu nista que em agosto de 1844 em sua viagem de volta à Alemanha depois de viver longo tempo na Inglaterra visita Marx em Paris Durante alguns dias a troca intelectual intensa e a grande identidade teórica fi zeram surgir uma par ceria incomum que resultou em uma amizade que durou toda a vida de Marx Engels teria dito que a partir desse encontro estabeleceuse nossa completa concordância em todos os domínios teóricos e daí data nosso trabalho comum 3 A palavra dogmática pode ser atribuída a uma pessoa que afi rma uma opinião de modo categórico sem admitir contestação ou que possui uma pretensão de conhecimento absoluto sobre as coisas 323 Capítulo 12 Leituras de Marx Paulo M dAvila Filho Apud Fedosseiev et alii 1983 p 79 O primeiro grande trabalho comum seria o importante texto A Ideologia Alemã de 1845 considerado um marco na obra de Marx Apesar de Marx considerar sua empreitada teórica um grande esforço de síntese e superação das teorias com as quais dialogava Konder 1988 as tensões e a diversidade contida em sua obra podem ser creditadas em parte ao seu percurso intelectual e a suas por assim dizer infl uências Esse percurso foi bem captado primeiro por Lênin em um trabalho intitulado As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo 1913 produzido a partir da própria narra tiva de Marx e Engels Tratase de um texto sintético em que o revolucionário russo identifi ca na economia política inglesa Adam Smith e David Ricardo na teoria política do socialismo francês Babeuf Saint Simon e Charles Fourier e na fi losofi a alemã Hegel e Feuerbach as três generosas fontes do pensamento dos fundadores do marxismo as quais considera o que de melhor criou a humanida de no século XIX Lênin 1977 O texto não possui grande envergadura analítica tarefa que muitos anos mais tarde coube ao historiador da escola inglesa Eric Hobsbawm no primeiro volume de História do marxismo 19794 Com isto em absoluto quereremos dizer que seja impossível ou incor reto se elaborar sínteses sobre Marx e o marxismo Desejo simplesmente cha mar atenção para a necessidade de abordálos sempre levando em conta o seu conteúdo multifacetário sua pluralidade e riqueza De modo coerente com esta perspectiva acredito que a análise subsequente é apenas uma das diversas pos sibilidades interpretativas neste campo O que talvez a diferencie de outras é o fato de que não procura afi rmar uma única leitura possível de Marx ao contrá rio defende a existência de várias e as considera válidas5 Para ilustrar a ideia central deste texto seguiremos o percurso de um con ceito caro a Marx e Engels o conceito de ideologia6 A perspectiva de encontrar nas obras de Marx e Engels uma única defi nição da noção de ideologia me pa rece tarefa impossível Dos Manuscritos econômicos e fi losófi cos de 1844 passando 4 Tratase de um dos mais notáveis intelectuais de nosso tempo o historiador de origem inglesa Eric J Hobsbawn Procuraremos seguir neste trabalho as orientações de cunho metodológico apontadas pelo autor em sua introdução à obra intitulada História do marxismo em que este apresenta alguns pressupos tos básicos para trabalhar com uma História do marxismo 5 Não sou indiferente à tese que advoga ser a teoria marxista uma totalidade A obra marxista é sem dúvida uma totalidade Rocha 1989 só que não homogênea mas composta de tensões internas e infl e xões diversas ao longo de toda a sua trajetória como qualquer outra o é Toda a teoria passa por revisões e sofre modifi cações pelo seu próprio autor que é um indivíduo no mundo e em constante mutação 6 Sobre o conceito de ideologia em Marx Engels e no pensamento marxista no século XX ver também Mcdonouhg 1977 Willians 1979 DAvila 1991 324 ELSEVIER Curso de Ciência Política por diversos trechos de A Ideologia Alemã 18457 até o seu famoso trabalho O capital publicado em 1867 podemos encontrar infl exões distintas no sentido de conformar uma noção do que venha a ser ideologia Essas infl exões vão sus tentar duas vertentes opostas dentro do marxismo os chamados estruturalistas e os humanistas DAvila 1991 122 Aviso aos navegantes Marx e o marxismo Antes de seguirmos o percurso traçado no entanto é preciso esclarecer uma questão que embora seja aparentemente óbvia tem gerado muitas confu sões Tratase de distinguir a obra marxiana e o marxismo Apesar de possuírem estreita relação não devem ser confundidos enquanto objetos do ponto de vista da análise A primeira diz respeito ao conjunto de textos produzidos por Marx O segundo a todo um movimento teórico cultural e político que tem início a partir do surgimento dos primeiros intelectuais que se disseram signatários de Marx e que vem em constante transformação e desenvolvimento até os dias de hoje Não pretendo com essa diferenciação sugerir um verdadeiro ou genuíno pensamento de Marx depurado de supostas interpretações falaciosas mas tão somente me referir à produção literária de Marx escrita ao longo de sua vida 18181883 Como sugere Hobsbawn não se quer pressupor que o objeto seja um único marxismo específi co para não falar mesmo de um verdadeiro marxismo con traposto a outros falsos e desviantes Não existe um único mar xismos mas sim muitos marxismo frequentemente empenhados em ásperas polêmicas internas a ponto de negarem uns aos outros o direi to de se declarem marxistas Hobsbawn 1979 p 13 Os trabalhos produzidos por Marx vão desde sua monografi a de fi m de curso em 1835 com o título sugestivo de Refl exão de um jovem perante a esco lha de uma profi ssão e sua defesa da tese de doutorado em fi losofi a em 1841 versando sobre a Diferença da fi losofi a da natureza em Demócrito e Epícuro passando por seus textos produzidos nos anos de trabalho como jornalista na Gazeta Renana entre 18421843 pelo laborioso esforço de revisão crítica das obras de Hegel e dos jovens hegelianos entre 1843 e 1845 que envolve textos como Crítica à Filosofi a do Direito de Hegel 1843 A questão judaica 1843 Manuscritos econômicos e fi losófi cos de 1844 e o conhecido Onze teses so bre Feurbach 1845 pelo mergulho decisivo na economia política período em 7 Os trabalhos de Marx e Engels quando mencionados aparecerão com uma data entre parênteses que corresponde ao ano de sua primeira publicação Quando citados trechos dessas obras a data de referên cia é a da publicação consultada 325 Capítulo 12 Leituras de Marx Paulo M dAvila Filho que produziu títulos famosos como o Manifesto Comunista 18471848 e O capital 1867 além dos textos políticos e os textos históricos e de conjuntura sobre a França entre 1847 e 1875 Luta de classes na França 1850 O Dezoito de Brumário de Louis Bonaparte 18511852 e Guerra Civil em França 1871 Nesse longo trajeto Marx jamais deixou de aliar sua refl exão teórica ao envolvimento com a política de seu tempo As possibilidades do pensamento de Marx contudo estarão em boa me dida estabelecidos em função das interpretações que se faz dele Isso no entan to já faz parte da história do marxismo um campo em aberto que abriga amplo leque de possibilidades tanto no tocante às interpretações da obra de seu fun dador como às formas e contornos diferenciados que assume enquanto teoria explicativa e movimento político que se pretende transformador da realidade do mundo e da vida humana Trabalhar com o pensamento marxista implica ter consciência de se tratar de um tema não só vasto de uma riqueza interior assaz complexa mas tam bém em constante construção O conjunto de questões abordado por esta escola teórica vai desde a estrutura econômica de uma sociedade até escritos sobre estética Neste exato instante existem marxistas ocupandose de tais problemas e sua atividade também faz parte da história desse pensamento a história do marxismo não pode ser considerada como algo acaba do já que o marxismo é uma estrutura de pensamento ainda vital e sua continuidade foi substancialmente ininterrupta desde o tempo de Marx e Engels Hobsbawn 1979 p 13 Este texto não se propõe a tarefa de decidir a validade das diversas cor rentes de interpretação da obra marxiana A validade das linhas interpretativas e das concepções abordadas se remete a sua capacidade crítica e explicativa enquanto instrumento teórico de análise dos fenômenos sociais e não em pautas abstratas como hermenêutica ou exegese8 Não implica uma posição agnós tica9 diante do que é ou do que não é marxista e menos ainda diante do que o próprio Marx queria verdadeiramente dizer Hobsbawm 1979 p 28 Não 8 Hermenêutica é um termo originalmente teológico designando a metodologia própria da interpre tação ou exegese interpretação gramatical e histórica da Bíblia O termo passou depois a designar todo o esforço de interpretação científi ca de um texto difícil que exige uma explicação Ver Japiassu e Marcondes 1991 9 O termo agnosticismo criado na segunda metade do século XIX designa a incapacidade de conhe cimento de tudo que vá além dos nossos sentidos que extrapole a experiência sensível O agnóstico não nega a existência de Deus como um ateísta apenas considera impossível afi rmála ou negála Aqui o termo é aplicado no sentido de descrente 326 ELSEVIER Curso de Ciência Política pretendo tampouco pesar em uma balança da justiça e da autenticidade em nome de uma verdade qualquer as interpretações mais ou menos corretas do pensamento de Marx pelos marxistas posteriores O propósito muito pelo contrário é sugerir que a diversidade encontrada possui respaldo nas obras de seus fundadores A primeira geração de marxistas ainda teve a possibilidade de consul tar Marx e Engels mas como é evidente depois de 1895 isso não foi mais possível Portanto tornase inevitável que a obra dos fundadores seja analisada de modo diverso por seus diferentes sucessores Hobs bawn 1979 p 1410 Considero que os grupos ou organizações que reivindicam o marxismo como fundamento teóricoprático fazem parte da história deste pensamento mesmo porque as interpretações e desdobramentos concretos cuja incorreção fosse demonstrável pertencem também a esta história Não há nenhuma pre tensão de penetrar neste labiríntico universo no âmbito deste ensaio11 Parto aqui da compreensão de que a obra marxiana é uma obra aberta e limitarmeei a apresentar ao menos duas possibilidades de interpretála 123 A diversidade em Marx e Engels Feitas as ressalvas anteriores e estabelecidos os parâmetros da análise po demos retornar ao problema da diversidade ou das tensões no pensamento de Marx e ilustrálas com o desenvolvimento do conceito de ideologia Duas vertentes do pensamento fi losófi co crítico infl uenciam diretamente o conceito de ideologia de Marx e Engels de um lado a crítica da epistemo logia tradicional e a revalorização da atividade do sujeito realizada pela fi loso fi a alemã particularmente por Georg Wilhelm Friederich Hegel e de outro o 10 Um bom exemplo do que o historiador inglês acaba de mostrar é o debate em torno do jovem Marx e do Marx maduro Em que momento ao romper com Hegel e Feuerbach Marx se teria tornado verdadeiramente marxista Haveria uma ruptura nesse momento Certamente para o próprio autor isso não deveria constituir uma questão crucial como passou a ser para os marxistas após 1932 ano de pu blicação de seus escritos de juventude No máximo podia sentir necessidade de esclarecer sua posição em relação a algumas questões referentes à infl uência de Hegel como o fez no posfácio à segunda edição in glesa de O capital Segundo Hobsbawn com cuja tese compartilhamos o marxismo possui uma unidade que deriva tanto do coerente corpo teórico elaborado por Marx e dos problemas práticos específi cos que ele esperava resolver por seu intermédio quanto da continuidade histórica dos principais grupos orga nizados de marxistas todos os quais passíveis de serem colocados numa árvore genealógica Tratase porém segue o autor de uma unidade na diversidade baseada em objetivos comuns e sobretudo na comum adesão ao corpo doutrinário derivado dos escritos de Marx e Engels 11 A este respeito ver Perry Anderson 1980 327 Capítulo 12 Leituras de Marx Paulo M dAvila Filho materialismo de Ludwig Feuerbach Garaudy 1983 Essas duas tendências se encontram como tensão constante na formulação dos fundadores do marxismo em particular no tocante ao tema da ideologia Por vezes encontramos em seus escritos uma determinação da materialidade em relação aos homens e por ou tras uma valorização do homem em relação às suas possibilidades históricas De algum modo estas duas infl exões vão permanecer e sustentar duas tradições no pensamento marxista O estruturalismo e o humanismo respectivamente12 Essa polarização já seria sufi ciente para demonstrar a complexidade da questão da ideologia em Marx e Engels As difi culdades no entanto são ainda maiores Podem ser identifi cadas ao menos três fases distintas onde a questão aparece com contornos diferenciados sem que se recorra à ideia de rupturas epistemológicas13 entre elas A primeira fase compreende os seus primeiros escritos e vão culminar nos Manuscritos Econômicos e Filosófi cos de 1844 A característica desse período é o debate fi losófi co A crítica às concepções de Estado de Hegel e a crítica da religião Estas são defi nidas como inversões que obscurecem o verda deiro caráter das coisas A expressão ideologia ainda não aparece de forma textual mas os elementos do futuro conceito estão presentes em suas críti cas A segunda fase começa com o rompimento em relação às formulações de Feuerbach e a esquerda hegeliana ou seja os discípulos críticos do idealismo de Hegel em 1845 e cujo texto fundamental é a ideologia alemã É o período da construção por Marx e Engels do materialismo histórico Nesse contexto o conceito de ideologia é introduzido pela primeira vez A ideia de uma in versão é conservada porém os verdadeiros problemas da humanidade não são as ideias errôneas mas as contradições sociais reais e aquelas são con sequências destas A terceira fase começa com a redação dos Manuscritos de 18571858 os Gundrisse e culmina em O capital 1866 A palavra ideologia quase desaparece dos textos de Marx porém mantémse a ideia desta como negatividade e inversão A análise específi ca das relações sociais capitalistas 12 A relação que estou propondo não se estabelece de maneira mecânica sendo uma consequência lógica da outra Quero apenas chamar a atenção para a existência de afi nidades eletivas nexos entre as infl uências fi losófi cas de Marx e as formas redecodifi cadas que assumiram em sua obra como tensões que por sua vez contribuirão para originar duas vertentes distintas do pensamento marxista 13 Epistemologia é um termo que possui várias acepções aqui ele é tomado como campo de investiga ção ou disciplina que versa sobre a ciência ou teoria do conhecimento na perspectiva consagrada pelo pensamento anglo saxão Ver Japiassu e Marcondes 1991 A ruptura epistemológica sugere no texto uma hipotética ruptura com padrões de produção de conhecimento até então desenvolvidos por Marx A alusão é a expressão do fi lósofo Gaston Bachelard utilizada por Althusser em A favor de Marx e traduzida como corte epistemológico usado para designar estas rupturas 328 ELSEVIER Curso de Ciência Política levao à conclusão de que a conexão entre consciência invertida a ideologia e realidade invertida contradições sociais não se faz de forma abstrata mas sim através de mecanismos concretos fenomenais postos em ação pelo de senvolvimento do modo de produção capitalista Por exemplo na economia capitalista as leis de mercado são uma inversão do primado da produção e submete esta àquelas assim como os homens às coisas Podemos perceber que uma tentativa de encontrar em Marx e Engels uma única defi nição de ideologia esbarra em pelo menos dois problemas Um diz respeito às infl exões teóricas distintas que convivem no interior da obra desses pensadores referentes às infl uências fi losófi cas diversas que constituem a base para o desenvolvimento de suas formulações Outro remete às formas diferen ciadas de tratamento da questão em fases distintas de sua produção O único traço marcante que se pode identifi car é a caracterização do conceito em ques tão como algo iminentemente negativo Seja como sinônimo de erro ou como elemento que oculta a realidade mesmo que isso aconteça em uma sociedade concreta também invertida em seus valores e mecanismos como a formação social capitalista Se for verdade que ao longo de sua obra existe um forte traço de continui dade a ideia de ideologia com uma conotação negativa por outro lado embora não diga de maneira explícita Marx nos Manuscritos Econômicos e Filosófi cos de 1844 e mais tarde em algumas passagens de O capital ao abordar a teologia em butida no processo de trabalho nos possibilita pensar a capacidade do homem de produzir formas de agir e pensar recriar a objetividade abrindo assim cam po para uma interpretação extremamente diversa de ideologia como elemento positivo da criação humana o que veremos mais adiante 124 O primado da estrutura Procurarei a partir de agora apontar certas infl exões distintas do pen samento dos fundadores do marxismo e suas possíveis interpretações Como dito as obras de Marx e Engels expressam noções distintas do conceito de ideologia Segundo muitos intérpretes da obra de Marx é com A Ideologia Alemã que Marx irá superar as limitações de caráter antropológico utópico ou ideológico reveladas em suas obras de juventude inclusive nos Manus critos Econômicos e Filosófi cos de 1844 A ideologia alemã escrita em 1845 em colaboração com Friedrich Engels constitui uma etapa decisiva nesse processo de transformação do socialismo em ciência Vaz quez 1986 p 164 329 Capítulo 12 Leituras de Marx Paulo M dAvila Filho Nesta perspectiva a valorização do sujeito e da subjetividade pode signi fi car alguma forma de idealismo o que a tornaria a teoria supostamente contrá ria portanto à proposta do materialismo histórico 14 Comecemos pois pela Ideologia Alemã As ideias dominantes são apenas a expressão ideal das relações materiais dominantes são as relações materiais dominantes compreendidas como ideias Marx 1982a p 13 Podemos obser var preliminarmente nesta passagem que daí decorrem pelo menos duas possi bilidades interpretativas em primeiro lugar a identifi cação da existência de uma ideologia dominante o que pode parecer pressupor uma ideologia dominada Ou então outra possibilidade que se relaciona com um segundo aspecto contido nesse trecho a ideologia é o refl exo com respeito às relações materiais que os homens mantêm Nesse sentido em uma determinada formação social com re lações de produções dadas só pode existir uma ideologia a que domina e que é fruto dessas relações de produção Vamos prosseguir no texto em questão Não partimos daquilo que os homens dizem imaginam ou concebem nem dos homens como descritos pensados imaginados concebidos a fi m de chegar aos homens em carne e osso Partimos dos homens reais ativos e à base de seus processos de vida real demonstraremos o desen volvimento dos refl exos e ecos ideológicos desse processo de vida Os fantasmas formados no cérebro humano são também necessariamente sublimações de seu processo de vida material que é empiricamente ve rifi cável e limitado por premissas materiais Moral religião metafísica todo o resto da ideologia e de suas formas correspondentes de cons ciência não retêm mais aparência de independência Marx 1982a p 14 É possível perceber aqui que a ideologia é fruto ou refl exo das condi ções materiais que a engendram nos homens A ideologia não é independente da estrutura15 Dessa maneira a interpretação indicada anteriormente é per 14 Materialismo histórico e materialismo dialético são termos usados por Marx e Engels para desig nar a teoria científi ca que estavam produzindo Teoria que levaria em conta a matéria o real concreto e seu caráter histórico e dialético e não a especulação abstrata idealista descolada das bases materiais do mundo Ver Penna 1986 15 Utilizo aqui a categoria de estrutura que Louis Althusser resgata para o marxismo e que designa o conjunto das relações de uma determinada formação social Aplicamos essa noção no sentido em que expressa o conjunto das relações materiais de produção da vida humana O autor de Pour Marx e Para Ler O Capital teria segundo seus estudiosos cunhado essa expressão do fi lósofo alemão do século XVI Spinosa Os campos de estrutura dAvila 1991 estabelecendo uma analogia Portanto o estruturalis mo clássico de Levi Straus não é a única fonte do pensador marxista 330 ELSEVIER Curso de Ciência Política feitamente aceitável Não pode haver uma ideologia que seja independente das relações sociais de produção da vida A ideologia é fruto dessas relações As consciências são dominadas pela ideologia dominante não havendo espaço para uma ideologia dominada Seguiremos com essa linha de interpretação dei xando a outra possibilidade de interpretação do conceito de ideologia para ser retomada mais adiante Se em toda ideologia os homens e suas circunstâncias aparecem de ca beça para baixo como uma câmara obscura esse fenômeno surge tanto do seu processo de vida histórico como a inversão dos objetos na retina surge de seu processo de vida físico Marx 1982a p 14 Se antes pudemos observar que a ideologia é produzida pela estrutura de produção da vida humana à qual os homens estão sujeitados sendo por tanto apenas suportes dessa ideologia e não sujeitos agora é possível notar que a sua forma de dominação é através da distorção produzindo uma falsa consciência16 Onde termina a especulação na vida real aí começa a ciência real positiva a representação real da atividade prática do processo prático de desenvolvimento dos homens Marx 1982a p 15 A citação acima é fundamental para a compreensão da linha interpreta tiva da ideologia em Marx O marxismo é um pensamento que postula em sua origem transformações dos limites históricoestruturais da vida humana nos marcos do capitalismo Logo se a falsa consciência por não conhecer o real como ele é não pode transformálo algo precisa substituíla Esse algo dentro da lógica com a qual se está trabalhando será a ciência positiva que por defi ni ção é livre das deformações da ideologia No período em que escreveram A Ideologia Alemã Marx e Engels esta vam como estiveram ao longo de suas vidas polemizando com teorias con sideradas rivais de seus projetos fi losófi cos e políticos Na época realizavam uma espécie de acerto de contas com a fi losofi a clássica alemã com a econo 16 A expressão falsa consciência é muito controvertida entre os marxistas principalmente quando relacionada com a questão da ideologia Tom Bottomore organizador do Dicionário do Pensamento Marxista 1983 p 185 afi rma a ideologia portanto conserva sempre em Marx e Engels sua co notação crítica e negativa mas o conceito só se aplica às distorções relacionadas com o ocultamento de uma realidade contraditória e invertida Nesse sentido a defi nição tão frequente de ideologia como falsa consciência não é adequada na medida em que não especifi ca o tipo de distorção criticada abrindo dessa forma caminho a uma confusão de ideologia com todos os tipos de erro Ora Marx e Engels em A Ideologia Alemã fazem justamente isso usam a expressão ideológico para designar qualquer tipo de erro ou qualquer pensamento científi co como corretamente observou o pai do estruturalismo marxista Louis Althusser Usamos portanto a expressão em toda a primeira parte deste capítulo pois estamos seguindo a interpretação estruturalista da obra marxiana 331 Capítulo 12 Leituras de Marx Paulo M dAvila Filho mia política inglesa e com os socialistas franceses chamados por eles de utó picos A noção de ideologia é central para qualifi car os desvios teóricos de seus conterrâneos para denunciar o efeito de obscurecer a realidade negativa das relações capitalistas contido no pensamento da economia política inglesa e por fi m superar o socialismo utópico dos franceses substituindoo pelo auto intitulado socialismo científi co que ambos propugnavam A ideia de ide ologia como falsa consciência ou consciência enganosa permitia diferenciar o seu pensamento científi co que desvenda o real das ideologias que ocultam a realidade Todo o pensamento com quem polemizavam era desqualifi cado como ideológico A compreensão de Marx e Engels sobre ideologia no entanto não possui um caráter apenas circunstancial ou conjuntural Em outros dois textos posterio res Engels vai aprofundar a concepção que estamos seguindo Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofi a Clássica Alemã 18871988 e Cartas a F Mehring 1893 Toda a ideologia uma vez surgida se desenvolve em conexão com o material concreto dado e desenvolve esse material ainda mais se assim não fosse deixaria de ser ideologia isto é ocupação com pensamentos como entidades independentes e sujeitos apenas as suas próprias leis O fato de que as condições materiais de vida das pessoas em cujas men tes esse processo de pensamento ocorre em última análise determine o curso desse processo continua sendo necessariamente desconhecido de tais pessoas pois de outro modo não haveria um fi m a toda a ideologia Engels 1985a p 417 Nesse trecho Engels atribui à ideologia uma autonomia relativa às con dições materiais Aspecto fundamental que é incorporado pela linha interpre tativa que acompanhamos até então ao menos pelos não economicistas17 A noção da ideologia como terreno de ilusão no entanto permanece A consciên cia que não se reconhece como tal é alienada Neste ponto encontramos a relação por alguns postulados entre alienação e falsa consciência18 17 A ideia da existência de uma autonomia mesmo que relativa do conjunto da superestrutura em par ticular da ideologia só é admitida por correntes marxistas não alinhadas ao chamado marxismo vulgar ou economicista muito em voga na época da chamada II Internacional e nas correntes seguidoras de Stalin Estes embebidos das obras de Engels referentes à dialética da natureza conceberiam a dialética da vida humana em todas as suas dimensões sociais como decorrência de leis naturais A infl uência do pensamento evolucionista do século XIX parece bem clara Nos meios acadêmicos tais noções passaram a ser denominadas economicistas ou mecanicistas 18 Tratase aqui dos intelectuais marxistas que buscam encontrar uma relação nas obras de Marx entre alienação e falsa consciência Louis Althusser por um lado e Antonio Gramsci por outro refutam essa tese Ver Itsván Mesáros 1981 332 ELSEVIER Curso de Ciência Política A Ideologia é um processo realizado pelo chamado pensador concien temente é claro mas com uma falsa consciência Os verdadeiros moti vos que o impelem continuam sendo desconhecidos dele pois se assim fosse não seriam um processo ideológico Daí ele imaginar motivos fal sos ou aparentes Engels 1985b p 557 A identidade entre falsa consciência e ideologia está nesse caso tex tual É uma carta datada de 1893 redigida portanto cerca de cinquenta anos após a edição de A Ideologia Alemã Outro elemento no entanto nos chama a atenção neste pequeno trecho e se articula com o trecho anterior Nele Engels identifi ca um sujeito que realiza um processo ideológico uma falsa cons ciência apesar de este estar em última análise determinado pelas condi ções materiais Além de a ideologia possuir uma autonomia relativa possui também um sujeito No entanto esses elementos não são novos e estão como possibilidades de infl exões distintas de acordo com a linha interpretativa que se programe na Ideologia Alemã A divisão do trabalho só se realiza realmente a partir do momento em que surge uma divisão do trabalho material e mental A partir des se momento a consciência pode realmente orgulharse de ser alguma coisa mais do que a consciência da prática existente de que ela real mente representa alguma coisa sem representar alguma coisa real a partir de então a consciência está em posição de emanciparse do mun do e proceder a formação de uma teoria ideologia fi losofi a ética etc purasMarx e Engels 1982a p 23 A divisão no trabalho manifestase também na classe dominante como divisão do trabalho mental e material de modo que dentro desse uma parte aparece como sendo os pensadores da classe seus ideólo gos enquanto a atitude de outros é mais passiva e mais receptiva Marx e Engels 1982a p 39 No primeiro trecho é possível notar que a ideia de autonomia relativa de consciência já está presente embora Marx e Engels estivessem falando não da consciência real positiva mas da falsa consciência produzida a partir da divi são do trabalho ou seja a consciência alienada19 No segundo notase a identi fi cação do sujeito que realiza o processo ideológico Deparamonos com a noção 19 A expressão consciência alienada é a preferida pelos pensadores marxistas que estudam as disfun ções causadas pela divisão social do trabalho Ver Itsván Mesáros 1981 333 Capítulo 12 Leituras de Marx Paulo M dAvila Filho dos intelectuais burgueses como ideólogos20 portanto portadores da falsa consciência Os elementos constituídos pela noção de um sujeito e de autonomia re lativa também são incorporados pela linha interpretativa em foco Apesar da autonomia existe uma determinação em última instância das forças materiais e o sujeito não é um produtor da ideologia mas apenas o seu realizador Quem produz a ação participa dela não é um sujeito da História é um sujeito na História21 ele é atravessado pela ideologia e se torna seu suporte não pode produzila apenas realizála Essas determinações materiais dizem respeito às estruturas sociais O estruturalismo marxista está inteiramente assentado nesta ideia Recapitulemos este viés da compreensão de Marx sobre a ideologia condizente com a matriz do marxismo estruturalista existe apenas uma ideologia que é dominante pois reflete as relações sociais dominantes Essa ideologia é uma falsa consciência em oposição à consciência verda deira representada pela ciência A ideologia possui uma autonomia relativa das estruturas materiais e não possui um sujeito que a produz mas que a realiza À luz dos textos de Marx e de Engels apresentados até agora as inter pretações que se seguiram acima tornamse absolutamente sustentáveis22 mas possuem algumas nuanças Uma delas diz respeito à proposição lógica de que se existe uma ideologia dominante deve haver uma dominada que brotaria a partir das diferentes relações dos indivíduos com a produção material da vida Posição que no restante é concordante com o que vimos acima É uma variante que encontra respaldo no pensamento originário do marxismo particularmente 20 Para os fundadores do marxismo todo o pensador burguês era um ideólogo portador da falsa cons ciência ao menos nos escritos de 1945 Neste momento Marx e Engels defi nem os ideólogos como aqueles que não estão vinculados diretamente ao processo produtivo Antonio Gramsci classifi ca esse tipo de intelectual de tradicional porém indo mais além na análise do papel dos intelectuais e em sua conceituação Grasmsci 1982 o autor identifi ca a existência do intelectual orgânico da burguesia volta do para a organização e controle da produção Para o pensador todos os homens são intelectuais não se pode separar o homofaber do homosapiens mas nem todos exercem a função de intelectuais 21 Para fi ns explicativos tomamos emprestada a formulação de Louis Althusser sujeito da História Althusser 1979 aquele que dela participa que a realiza como suporte de estruturas em movimento estruturas que fazem de fato o processo histórico 22 Consideramos interpretações válidas aquelas que se sustentam em uma apreensão lógica e dentro dos parâmetros comuns da linguística da gramática No entanto sabemos que em meio a inúmeras traduções de uma língua para outra esta afi rmação possui suas limitações 334 ELSEVIER Curso de Ciência Política em passagens da Ideologia Alemã sobre a divisão social do trabalho e o surgimen to dos ideólogos de uma classe23 É importante marcar que nesta linha de interpretação ciência e ideologia são termos antitéticos Enquanto a ideologia oculta o real e obscurece a verdade a ciência positiva desvenda o real revela a verdade ilumina a realidade Nesta chave de entendimento é a ciência particularmente a ciência crítica do marxis mo quem será capaz de despertar as falsas consciências para que adquiram uma verdadeira consciência e possam transformar o mundo Em uma das mais citadas passagens de Marx a décima primeira tese sobre Feuerbach ele afi rma até hoje os fi lósofos se limitaram a interpretar o mundo de diversas maneiras cabe no entanto transformálo O materialismo histórico e dialético será essa nova ciência 125 A valorização do sujeito A segunda vertente de pensadores marxistas contemporâneos contudo não estabelece uma distinção inconciliável entre ciência e ideologia Ambas se interpenetrariam Seriam representantes dessa vertente os chamados marxistas humanistas As ciências naturais abandonarão então sua orientação mate rialista ou antes idealistas e se tornarão a base de uma ciência humana uma base para a vida e outro para a ciência é a priori uma falsidade Marx 1987a p 180 Podemos notar nesse trecho dos Manuscritos Econômicos e Filosófi cos de 1844 uma tensão infl exionando para o sentido da relação entre ciência e ideo logia bem distinta de A Ideologia Alemã Essa distinção marca a diferença entre vertentes bastante distintas que seguiram caminhos muitos diferentes como o marxismo humanista estruturalista e historicista Vimos que a produção teórica dos fundadores do marxismo foi generosa em termos de possibilidades inter pretativas absolutamente discrepantes A tradição humanista do marxismo procura identifi car não apenas mais de uma ideologia portanto ideologias como também identifi ca sujeitos ativos capazes de produzilas por intermédio da práxis24 Através de um estudo não 23 A ideia de que existem ideólogos de uma classe nos inspira a possibilidade de existirem ideólogos também de outras classes dentro das variações possíveis das interpretações aqui desenvolvidas 24 Expressão cunhada por Marx para designar a relação indissolúvel dialéticoontológica entre sujeito e objeto A práxis é uma categoria que busca apreender o Homem e sua atividade como sujeito dentro de seus parâmetros concretoôntico O ser social engloba não só as determinações da esfera material mas ainda o conjunto das relações humanas inclusive a espiritualidade objetivada enquanto valores ontológicossociais Reconhecida a anterioridade da matéria é preciso reconhecer a superioridade do 335 Capítulo 12 Leituras de Marx Paulo M dAvila Filho lógicoformal mas concretoôntico25 admite a possibilidade de constituição de várias ideologias Pressupomos o trabalho numa forma que o marca como exclusivamente humana o que distingue o pior arquiteto da melhor das abelhas é o fato de que o arquiteto levanta sua estrutura na imaginação antes de construíla na rea lidade No fi m do processo de trabalho temos um resultado que já existia na imaginação do trabalhador em seu começo Marx 1977a p 202 Vimos nesse pequeno trecho de O capital que a perspectiva que enuncia mos acima também encontra seu respaldo nas obras de Marx O autor nos Ma nuscritos Econômicos e Filosófi cos de 1844 ao abordar a interação do homem com a natureza no processo de trabalho atribuilhe uma roupagem interpretativa na qual é enfatizado o homem e sua capacidade criadora e não as estruturas Assim como os meios para realizar um trabalho no exemplo de Marx não basta que o pensamento tenda à matéria é preciso que a matéria também tenda ao pensa mento Marx 1987a p 183 pensamento enquanto práxis ativa sobre ela Práxis é uma categoria central no pensamento de Gramsci 1986 que articula objetividade e subjetividade na conformação do sujeito 25 Estes termos lógico formal e concreto ôntico são muito utilizados por Georg Lukács Segundo o pensador húngaro a obra de Marx é toda ela um estudo ontológico No primeiro capítulo de sua obra Ontologia do Ser social afi rma qualquer leitor sereno de Marx não pode deixar de notar que todos os seus enunciados concretos se interpretados corretamente revelamse em última análise como enunciados diretos acerca de algum tipo de ser ou seja são afi rmações ontológicas Luklács 1985a p87 O mesmo autor em A Falsa e a Verdadeira Ontologia de Hegel 1979 p 4647 demonstra que o equívoco fundamental de Hegel foi submeter as contradições e dialéticas à categorias lógicas formais e não instaurar categorias ontologicamente concebidas Segundo Lukács Engels teria cometido o mesmo erro no Anti Durhing ao tentar demonstrar a Durhing os mecanismos da sua dialética Dessa forma as primeiras gerações de marxistas teriam sido infl uenciadas por tal equívoco O pensador húngaro cita Engels para elucidar melhor sua proposição Tomemos um grão de cevada diz Engels milhares desses grãos são triturados fervidos e usados para fabricar a cerveja que é depois consumida Mas se o tal grão de cevada encontra as condições normais para ele se cai em um terreno favorável sofre uma altera ção específi ca isto é germina O grão enquanto tal morre é negado e em seu lugar desponta a planta que ele gerou a negação do grão Lukács 1979 p 53 Na realidade diz Lukács em inúmeros casos o grão de cevada é destruído essa seria a expressão ontologicamente legítima e não o temo negar logica mente determinado mas insensato no plano ontológico Só em determinado caso concreto prossegue o autor é que já está contido no começo o ser do ser com diria Hegel Muitos equívocos referentes ao determinismo histórico de alguns marxistas foram cometidos em nome dessa formulação lógico formal Ainda segundo Lukács Marx em O capital ao analisar as formas concretas de dominação as contradi ções e mecanismos concretos de funcionamento de um sistema o capitalismo está realizando um estudo concretoôntico Lukács 1985b 336 ELSEVIER Curso de Ciência Política A partir da teleologia26 originária no processo de trabalho a consciência humana ganha uma subjetividade que não é mais o refl exo invertido das con dições objetivas A consciência é a exterioridade interiorizada ou a objetivida de subjetivada através da práxis e que retorna como subjetividade objetivada no fruto do trabalho Se o fruto desse trabalho é puramente exterior ao sujeito lhe é estranho a subjetividade humana não se reconhece nele e se produz uma cons ciência alienada de si e não uma falsa consciência27 consciência não ver dadeira A consciência portanto já não é colocada em termos de verdadeira ou não mas sim como consciência possível e ganha ao mesmo tempo um estatuto de autonomia relativa28 que lhe possibilita recriar de maneira consciente a ob jetividade Desse modo a distinção em termos hermenêuticos entre ideologia e ciência desaparece embora permaneça em termos gnoseológicos29 É possível concluir que a partir do momento em que a consciência deixa de ser refl exo e passa a ser também agente transformador a ideologia deixa de ser unicamente produto das relações de produção da existência ou uma falsa consciência ou seja pura negatividade A ideologia passa a ser fruto da práxis humana em sua relação subjetiva com a matéria e capaz de transformála Sendo assim não há uma única ideologia refl exo das condições materiais dominantes mas ideologias fruto da práxis criadora e da capacidade teleológica30 do pensa mento humano O homem passa a ser de fato sujeito produtor através da práxis de ideologias Essa ideologia não é fruto da abstração de ideólogos mas da ação 26 O termo designa o estudo dos fenômenos a partir de suas fi nalidades como constituidores de seu sentido ao contrário das considerações sobre suas causas ou origens Ver Japiassu e Marcondes 27 A consciência alienada desde Hegel até Marx ao menos nos primeiros escritos deste não signifi ca necessariamente uma falsa consciência mas a consciência espontânea possível de uma determinada formação social 28 A expressão autonomia relativa tem aqui sentido diferente da utilizada pela linha explicativa an terior pois não se trata de maior ou menor grau de autonomia da sua condição de refl exo do processo material de produção da vida mas de um conjunto de possibilidades limitadas é claro da práxis huma na 29 Queremos dizer nessa passagem que o problema da distinção entre ciência e ideologia não se estabe lece nesse caso pelo critério da busca do discurso verdadeiro mas sim pela distinção dos métodos ins trumentos e operações mentais bem como as formas de expressão que as distingue Ciência e ideologia não são a mesma coisa embora se misturem nos processos mentais que as constituem Uma não é mais encarada como verdade e outra como falsidade e viceversa 30 A teleologia supõe um sujeito mas não necessariamente um sujeito metafísico pois este se funda na práxis já defi nida anteriormente e implica a consciência de uma possibilidade posta no interior de uma determinada formação social bem com a busca racional de meios adequados a fi ns humanos produzidos através da práxis histórica Ver Karel Kosik 1986 337 Capítulo 12 Leituras de Marx Paulo M dAvila Filho criadora do movimento das massas e sua produção de cultura aspirações cos tumes crenças etc Se a ideologia é fruto da ação humana também é formadora dessas ações A teoria fi losófi ca ou científi ca como qualquer atividade do homem está permea da pela ideologia não há como separálas Essas teorias no entanto só se trans formam em ideologia quando ganharem legitimidade junto à prática dos atores sociais quando apropriadas pela vida das massas quando se transformam em substrato cultural compartilhado Só dessa maneira essas teorias ganham a força material que possuem as ideologias Aqui a ideologia é concebida a partir de uma relação dialética o conjunto das formas do pensar humano é permeado pela ideologia que lhe é anterior mas ao mesmo tempo é valorizada a capacida de humana de produzir novas ideologias Estas só se tornarão ideologias de fato enquanto uma consciência coletiva Nesse sentido a ideologia é fundadora de e ao mesmo tempo fundada pela ação dos homens Nesta chave que estamos chamando de humanista a preocupação é res gatar uma dialética materialista centrada no homem em sua relação com a obje tividade com as estruturas e condições sociais que ele mesmo criou ou seja as objetivações Uma dialética que leve em consideração não apenas uma lógica ra cional abstrata mas as condições ontologicamente concretas nas quais se operam as opções dos sujeitos humanos Uma ontologia que vê na práxis uma media ção categórica necessária entre a subjetividade dos sujeitos e a objetividade que eles transformam Uma práxis como essência humana da História Uma História como produto dessa práxis e não algo que lhe é estranho superior anterior ou mesmo seu determinante único imutável A perspectiva procura justamente desagregar essa anterioridade única defi nida a priori Noção que está presente por exemplo em Lênin A História é sempre mais variada mais rica mais complexa e mais astuta do que imaginam as vanguardas mais conscientes dos melhores partidos e das classes mais avançadas Lênin 1982 p 57 Enfi m uma teoria centrada no Homem em sua ação e refl exão Konder 1980 Um humanismo fi losófi co muitas vezes esquecido pelos marxistas e seus crí ticos apesar de estar presente na obra de Marx em diversos escritos entre os quais destacamos os Manuscritos Econômicos e Filosófi cos de 1844 a Crítica da Filosofi a do Direito de Hegel 1843 as Onze Teses sobre Feuerbach 1843 e passagens de O capital 1867 e em algumas cartas enfi m ao longo de boa parte da sua obra fi losófi ca 126 A diversidade marxista Depois da morte de Marx o conceito de ideologia começou a adquirir novos signifi cados de acordo com as leituras que os marxistas contemporâneos 338 ELSEVIER Curso de Ciência Política faziam de sua obra e da inclusão de suas próprias formulações Assim como a obra de Marx o marxismo não tem uma teoria única da ideologia A diversidade apontada é reproduzida pelos autores marxistas contemporâneos As interpre tações eou formulações desses autores são muitas vezes diferentes chegando mesmo em alguns casos a ser discrepantes Várias são as linhas de pensamento que se abrigam sob o imenso guardachuva do marxismo Cabe ressaltar que está subjacente a toda essa polêmica um debate acerca do grau de autonomia que possuem as representações a ideologia em relação às condições de produção de uma determinada formação social Está também em disputa a centralidade da produção das ideologias se no sujeito na práxis ou nas estruturas de produção nas relações sociais de produção No segundo caso o sujeito o Homem passa a ser apenas um suporte e não um produtor E fi nalmente encontrase em confl ito a ideias do caráter puramente negativo da ideologia como ilusão e dominação e à posição que advoga ter a ideologia em conteúdo positivo enquanto produção humana e agente de transformação Resumindo o argumento aqui explorado apresentamos duas formas de conceber o signifi cado da ideologia no pensamento de Marx e Engels que cor respondem a duas formas distintas e instigantes de interpretar o conceito Uma delas valoriza a estrutura e suas determinações na análise social outra valoriza o sujeito como elemento criador O estruturalismo e o humanismo respectiva mente foram as duas grandes vertentes enfatizadas nesta empreitada Entre os primeiros podemos incluir Louis Althusser o argelino naturali zado francês que estabelece uma oposição entre a ciência a verdade e a ideolo gia o enganoso Desse modo o conceito ganha um caráter negativo como ilusão falsidade e como instrumento de dominação Esta corrente se subdivide entre aqueles que reconhecem a existência de várias ideologias em confl ito e os que acreditam só haver uma que é a dominante Entre os segundos podemos citar o revolucionário russo Lênin o marxista italiano Antonio Gramsci e o húngaro George Lukács que desfazem a oposição acima referida mas dividemse quan to à possibilidade de existirem ideologias relacionadas à luta de classe e outros confl itos sociais ou se há apenas uma um campo que representa a globalidade da produção de sentidos pelos homens31 Na análise precedente procuramos sustentar a impossibilidade de se ex trair uma única defi nição a respeito dos sentidos atribuídos ao termo ideologia pelos fundadores do marxismo O objetivo desse percurso no entanto foi dar 31 A perspectiva encontra ainda outros rumos em marxistas como Habermas Adorno e Horkhaimer na tradição da Escola de Frankfurt e na Escola de Budapeste com Karl Korch Agnes Heller István Mészáros e Karel Kosik entre outros Ver DAvila 1991 339 Capítulo 12 Leituras de Marx Paulo M dAvila Filho visibilidade à tensão existente na obra de Marx entre as determinações da es trutura e a valorização do sujeito criador Esta tensão estará presente na análise marxista de diversos objetos Na teoria da história no grau de autonomia do ator social frente às estruturas sociais portanto em uma teoria da ação e no grau de autonomia e padrões de interação nas relações entre as esferas por exemplo econômica social política e cultural da humanidade Mesmo se consideramos isoladamente uma dessas esferas para fi ns de aná lise a tensão permanece Tomando como objeto certamente por vício de forma ção a política os dois vieses voltam a se confrontar De certa forma estarão em relevo os enquadramentos distintos do lugar da política na vida humana Se ela a política é um ato de criação do sujeito ainda que constrangido pelas circunstân cias sociais ou se é uma derivação de estruturas que lhe sobre determinam 127 Marx o sujeito e a política A relação de Marx com a política poderia parecer óbvia afi nal de contas o fi lósofo economista ou cientista social foi antes de tudo um intelectual que pensou a política com a fi nalidade de intervir para transformar o mundo em que vivia Ele foi um dos fundadores da I Internacional32 e no fi m do século XIX havia se tornado a principal referência teórica do movimento socialista europeu Nenhum outro autor ganhou tanta projeção social fora dos muros da acade mia como Marx Revoluções foram feitas em seu nome O alemão contudo não construiu uma teoria sistematizada da política Apesar de todo o ativismo políti co Marx será acusado pelo discurso acadêmico de não valorizar a política como objeto A crítica é procedente de fato não encontramos sequer uma obra que sistematize uma teoria do Estado ou uma análise do governo enquanto sistema de poder como em Weber ou Durkheim por exemplo Isso não signifi ca dizer que Marx não tenha pensado sobre o signifi cado da política em seu modelo analítico O problema da percepção acerca do lugar ocupado pela política no constructo marxiano também pode ser enquadrado a partir das lentes apresentadas até aqui A dimensão da tensão contida em sua obra sobre a questão da política pode ser percebida na análise de alguns de seus trabalhos Em texto escrito em 1859 Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política a estrutura econômica aparece como a base real sobre a qual se elevam as estruturas jurídica e política da sociedade A formulação está em acordo com 32 Internacional neste contexto signifi ca a Associação Internacional dos Trabalhadores 18641876 A Primeira Internacional foi uma federação internacional de organizações da classe trabalhadora de vários países da Europa central e ocidental 340 ELSEVIER Curso de Ciência Política a clássica distinção entre a infraestrutura econômica que determina em última instância a superestrutura jurídicopolítica contida mais uma vez em A Ideolo gia Alemã de 1845 Nestes textos a política aparece como um epifenômeno um fenômeno subordinado à estrutura econômica Por esta razão o poder político e o Estado em uma estrutura capitalista só pode estar a serviço dos interesses da classe que domina o mundo do trabalho e da produção o capitalista A política assim é confi nada ao mesmo lugar da ideologia garantir a manutenção das rela ções de produção e exploração capitalista do trabalho Em um trecho famoso do Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política Marx resume de forma magistral o argumento O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral de vida social político e espiritual Não é a consciência do homem que de termina o seu ser mas ao contrário é o seu ser social que determina sua consciência Em uma certa etapa de seu desenvolvimento as forças pro dutivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes Sobrevém então uma época de revolução social Com a transformação da base econômica toda a enorme superes trutura se transforma com maior ou menor rapidez Marx 1987b p 30 Nesta chave a política não possui capacidade criadora ela é o resultado de um processo nunca a ação que conduz É possível interpretar que o papel do ator que deseja a revolução social é saber aguardar o momento em que as con tradições chegarão ao seu limite e só então agir de acordo Em outros textos contudo como as cartas a Ludwig Kulgeman redigi das em 1862 Marx apresentava outras perspectivas analíticas Os instrumentos teóricos para a análise do econômico das relações sociais de produção não ga rantem a avaliação da diversidade de formas de Estado das diversas formas do exercício do poder político Mais de uma década depois em Crítica ao Programa de Gotha escrito em 1875 Marx afi rma A sociedade hodierna é a sociedade capitalista que existe em todos os países civilizados mais ou menos modifi cadas pelo desenvolvi mento histórico particular de cada país mais ou menos desenvolvida O Estado hodierno pelo contrário muda com as fronteiras do país No Império prussoalemão é diferente de na Suíça na Inglaterra é di ferente de nos Esta dos Unidos O Estado hodierno é portanto uma fi cção Marx 1985 p 24 Seguindo essa linha nos Gundrisse 1858 notas reunidas em um ensaio realizado visando a redação de O Capital em seu segundo volume publicado postumamente 19391941 encontrase uma interessante análise das distinções 341 Capítulo 12 Leituras de Marx Paulo M dAvila Filho na formação dos Estados americano e russo Neste viés a forma dos Estados é determinada por diferenças sociopolíticas e não apenas nas relações sociais ca pitalistas de produção da vida econômica A perspectiva acima se coaduna com uma outra abordagem contida nos chamados textos históricos ou políticos Em Luta de Classe na França 1850 e no Dezoito de Brumário de Luís Bonaparte 1851 anteriores à década de 1870 portan to a diversidade marxiana encontra o ator O ator social o agente da ação e suas escolhas ainda que constrangidas pelas condições sociais nas quais a disputa política se realiza Mais uma vez fi camos diante da valorização do sujeito peran te a trama dos acontecimentos A alegoria da política enquanto teatro encontra aqui um palco privilegia do Logo no segundo parágrafo do Dezoito de Brumário em uma passagem co nhecida mas nem sempre interpretada com cuidado Marx já deixa claro quem ou o que é o protagonista de sua narrativa Os homens fazem a sua própria história mas não a fazem segundo sua livre vontade em circunstâncias escolhi das por eles próprios Marx 1982d p 417 Este trecho poderia sugerir que o que impede os homens de fazerem a história são as estruturas ou as determi nações econômicas mas não é disto que se trata Na sequência fi ca claro que Marx se refere a uma espécie de autonomia relativa das representações simbó licas e da cultura política como ambiente que orienta e constrange os persona gens da trama social Os homens fazem a história mas não a fazem segundo a sua livre von tade em circunstâncias escolhidas por eles próprios mas nas circuns tâncias imediatamente encontradas dadas transmitidas A tradição de todas as gerações mortas pesa sobre o cérebro dos vivos como um pe sadelo E mesmo quando estes parecem ocupados em revolucionarse a si e às coisas mesmo a criar algo que ainda não existe é precisamente nestas épocas de crise revolucionária que esconjuram temerosamente em seu exílio os espíritos do passado para com esta linguagem em prestada representar a nova cena da história universal Marx 1982d p 417 Neste trecho porém Marx estava criticando as tentativas de colar a ima gem dos movimentos políticos entre 1848 e 1851 na França com a revolução 342 ELSEVIER Curso de Ciência Política francesa de 178933 e o posterior império napoleônico Luís Bonaparte o sobrinho do o revolucionário Napoleão Bonaparte como uma paródia do período épico francês A sua verdadeira revolução seria capaz de romper com toda a tradição romper com os grilhões da fantasia das máscaras e do discurso vazio Marx quer diferenciar a sua revolução proletária do engodo representado pelas revo luções inspiradas nas revoluções burguesas A revolução social do século XIX não pode tirar a sua poesia do pas sado mas apenas do futuro Não pode começar consigo mesma antes de se limpar de toda a superstição perante o passado As revoluções anteriores necessitavam de reminiscências da história universal para dissimularem o seu próprio conteúdo A revolução do século XIX tem que enterrar os seus mortos para chegar ao seu próprio conteúdo Ali a frase ultrapassava o conteúdo aqui o conteúdo ultrapassa a frase Marx 1982d p 419 Se na passagem anterior o sujeito já aparece como agente embora traves tido do passado nesta é concebida a possibilidade da ruptura com as estruturas sociais econômicas e culturais É a emancipação por excelência da vontade polí tica sobre as coisas Não só o conteúdo ultrapassa a frase mas a ação deliberada supera as coisas transcende A teleologia antes embutida no processo de traba lho na qual imaginamos o produto da ação e agimos de acordo agora é alçada ao fazer político Não há transformação sem sujeito A crença na capacidade criativa da política chega ao paroxismo É não somente possível como desejável o rompimento com todos os grilhões sociais Se as determinações das estruturas podem trazer problemas à análise po lítica obscurecendo o papel do agente a perspectiva da ruptura também enseja difi culdades ao entendimento da conexão entre a ideia de mudança tradição e cultura A análise da política contudo fi ca mais rica dessa forma Sua valoriza ção depende do protagonismo do ator político e da ideia de agência Por essa razão a matriz do marxismo humanista é mais generosa com a possibilidade da interpretação da política como ato de criação ou como categoria de mediação necessária entre as aspirações ideações valores e fi ns humanos e a vida social 33 A referência aqui são a dois momentos distintos da história francesa O primeiro é o da Revolução Francesa de 1789 ao qual se seguiu o período mais agudo da Convenção 17921795 liderado pelos jacobinos e marcado pelo Terror e um outro momento o do Diretório 17951799 capitaneado pelos Girondinos um período mais brando das aspirações revolucionárias e que será suplantado pelo golpe de estado de Napoleão Bonaparte 1799 abrindo as portas para o período da história francesa chamado de Império Napoleônico 18041814 Quase meio século mais tarde em 1848 eclode na França uma revolução que após passar por um período mais radical e outro mais brando culmina com o golpe de estado de Luís Bonaparte sobrinho de Napoleão em 1851 343 Capítulo 12 Leituras de Marx Paulo M dAvila Filho os constrangimentos estruturais as formas de exercício do poder e as circuns tâncias nas quais os processos sempre diversos do confl ito social se realizam Marx como um homem de ação atento aos movimentos políticos de seu tempo não fi cou alheio a esta possibilidade de encarar a autonomia relativa da política É possível identifi car contudo uma outra tensão similar à anteriormente referi da agora entre agência ou agenciamento do ator e estrutura Segundo Raymond Aron 1990 reconhecido comentador das obras dos clás sicos da sociologia ao comparar as narrativas de Karl Marx e Alexis de Tocqueville sobre a crise política francesa de 1848 apresenta ponto de vista diferente Tocqueville mantém o caráter específi co ou a autonomia pelo menos relativa da ordem política Marx ao contrário procura em todas as ocasi ões encontrar uma correspondência termoatermo entre os acontecimen tos no plano político e na infraestrutura social Aron 1990 p 266 Aqui a infraestrutura diz respeito aos interesses de classe Interesses que pontuam toda a narrativa Esses interesses são provenientes da posição ocupada pelas classes ou fra ções de classe dentro da estrutura produtiva das relações de produção Este é o tributo que Marx paga ao seu modelo de análise alicerçado na contradição entre o capital e o trabalho Contradição esta que descreve a dialética política do mun do moderno e constitui a base do seu materialismo histórico Esta perspectiva nunca sai do horizonte do autor Uma coisa porém é ancorar interesses que movem a agência política às estruturas sociais de produção outra bem diferente é sugerir que essas estruturas determinam o resultado da ação Marx não está negando a autonomia relativa da política mas combatendo toda e qualquer in terpretação voluntarista da política Conduz sua fabulação em uma linha tênue entre a valorização do sujeito da ação política e suas conexões com a estrutura social produtiva Tratase de mais uma tensão entre as determinações das relações sociais de produção e da estrutura de classes e o agenciamento político operado pelos atores sociais grupos de interesse ou frações de classe em ação na trama polí tica O desfecho não seria apenas o refl exo das forças materiais mas depende também da composição do conjunto de ações dos atores sociais movidos por seus interesses constrangidos pelas estruturas e pela cultura política 128 Marx e a História Talvez o texto que melhor expresse a tensão que estamos explorando seja o seu mais conhecido trabalho Possivelmente o panfl eto mais famoso da his 344 ELSEVIER Curso de Ciência Política tória O Manifesto Comunista 18471848 Não é o texto de maior envergadura teórica ou analítica É um texto de exortação à militância escrito no contexto das disputas políticas em torno das revoluções e levantes de 1848 Nesse perío do o sentimento é de que a Europa é tomada por uma onda revolucionária e Marx não fi ca alheio a esse sentimento produzindo um trabalho que revela sua aposta política na revolução onde quer que ela possa eclodir Nas palavras de Hobsbawn Nunca na história da Europa e poucas vezes em qualquer outro lugar o revolucionarismo foi tão endêmico tão geral tão capaz de se espalhar por propaganda deliberada como por contágio espontâneo Karl Marx assim como Aléxis de Tocqueville em Lembranças de 1848 1991 talvez tenha sido um dos intelectuais que mais profundamente captou o espírito dos movimentos revolucionários que culminam em 1848 Marx no Manifesto Comunista 1982c tem a fortuna de apresentar sua versão da gênese do mundo moderno consubstanciada na intangível luta de classes entre o proletariado e a burguesia Encontrava assim os atores principais do grande teatro da política moderna os personagens capazes de corporifi car a sua fi losofi a da história de matriz hegeliana compondo os elementos da contradição dialética que pode riam levar a superação do mundo burguês a burguesia não forjou apenas as armas que lhe trazem a morte tam bém gerou os homens que vão usar estas armas os operários modernos os proletários na mesma medida que a burguesia se desenvolve desenvolvese também o proletariado Marx e Engels 1982c p 112 O manifesto é um texto de referência para o movimento operário e comu nista no mundo todo É o texto mais lido e comentado de Marx muito já se escre veu sobre essa obra sobre os mais diferentes ângulos e abordagens34 No prefácio à edição alemã de 1872 Marx 1982c nos conta que A Liga dos Comunistas uma associação operária internacional que nas circunstâncias em que então exis tia não podia obviamente deixar de ser secreta encarregou os abaixoassinados no congresso realizado em Londres em novembro de 1847 da redação para pu blicação de um programa teórico e prático pormenorizado do Partido Assim nas ceu o Manifesto Comunista cujo manuscrito seguiu viagem para Londres para ser impresso poucas semanas antes da revolução de fevereiro de 1848 na França Publicado pela primeira vez em alemão depois em inglês teve inúmeras edições e foi publicado em diversas línguas e países nos anos setenta oitenta e noventa do século XIX Décadas mais tarde parece ter feito mais sucesso do que assim que foi lançado Segundo Engels no prefácio a edição alemã de 1890 poucas foram 34 Ver Laski e Schumpeter 1982 e Coutinho 1998 345 Capítulo 12 Leituras de Marx Paulo M dAvila Filho as vozes que responderam quando gritávamos ao mundo proletários de todos os países univosMarx e Engels 1982c p 101 No Manifesto está contida tanto a estrutura em movimento como a ação dos sujeitos encarnados no ator coletivo classe social É possível compreender a ação desses atores como cumprindo um destino já traçado na concepção da fi losofi a da história mas ao mesmo tempo a conjuntura clamava pela urgência da intervenção dos homens organizados a partir de interesses a revolucionar os mais diversos contextos do mundo europeu O Manifesto parece sintetizar o dilema weberiano35 entre o homem da ciência com seus instrumentos suas determinações e análise macroestruturais e a liderança política enlevada pela ética da convicção plena de motivação militante Os aspectos conjunturais da obra não são relegados pelos autores nos pre fácios subsequentes como no da edição alemã de 1872 Embora as condições muito se tenham alterado nos últimos vinte e cinco anos os princípios gerais desenvolvidos neste Manifesto conservam ain da hoje sua plena correção A aplicação prática destes princípios como o próprio Manifesto torna claro dependerá sempre e em toda a parte das circunstâncias históricas existentes e por isso não se atribui de modo algum nenhuma importância especial às medidas revolucionárias propostas no fi m do capítulo II Marx e Engels 1982c p 95 Os princípios gerais que estruturavam em 1848 a teoria marxiana da His tória no entanto são a tônica da valorização do Manifesto Comunista em suas edições posteriores Valor enquanto síntese teórica de um trabalho científi co ini ciado em 1845 com a Ideologia Alemã Engels após lamentam ter de escrever o prefácio à edição alemã de 1883 sem a parceria de Marx tratase da primeira edição após sua morte realiza uma síntese preciosa dos princípios contidos na obra O pensamento basilar que percorre todo o Manifesto a saber que a produção econômica e a estrutura social dela necessariamente decor rente de qualquer época histórica política e intelectual dessa época que consequentemente toda a história desde a dissolução da posse comunitária primordial da terra tem sido uma história da luta de clas ses lutas entre classes exploradas e exploradoras dominadas e domi nantes em diferentes etapas do desenvolvimento social que esta luta porém atingiu agora uma etapa em que a classe explorada e oprimida o proletariado já não se pode libertar da classe exploradora e opres sora a burguesia sem ao mesmo tempo libertar para sempre toda a 35 Ver Weber 1982 346 ELSEVIER Curso de Ciência Política sociedade de exploração da opressão e das lutas de classes Marx e Engels 1982c p 98 Em uma nota à edição alemã de 1890 complementa Já alguns anos antes de 1845 estávamos Marx e eu ambos a aproximarnos desta ideia ideia que em minha opinião está destinada a fundamentar na ciência da história o mesmo progresso que a teoria de Darwin fundamentou na ciência natural Marx e Engels 1982c p 99 grifo meu O problema da concepção de História em Marx é controverso mesmo en tre os próprios marxistas Defrontamonos com pelo menos dois grandes veios que correspondem à tensão que vem sendo explorada Um opera com determi nações históricas exteriores ao sujeito enquanto outro privilegia a vontade dos sujeitos nos processos de mudança calcados na categoria de práxis valorizando assim a ação transformadora Fora da identidade marxista muitos comentado res da obra de Marx se digladiaram em torno da espinhosa questão Hannah Arendt 1979 por exemplo reconhece essa tensão ao procurar demonstrar que Marx combina a crença iluminista no progresso e no poder da ação humana com os desígnios superiores das fi losofi as teológicas tornadose a História um objeto resultante de um processo de fabricação Segundo Arendt ao imaginar ser possível fazer História Marx conceberia a existência de um fi m para a própria História identifi cado com o encerramento da manufatura humana da História com a abolição da luta de classes A partir desse momento uma nova História seria encenada cujos elementos propulsores seriam ainda desconheci dos Nessa perspectiva a necessidade histórica e o caráter teleológico da ação humana em Marx se confundem originando um edifício teórico no qual a História se confi gura em um processo cujos limites são cognoscíveis O conteúdo teleológi co do conceito de trabalho em Marx fundamento ontológico da ideia de homem nos escritos de juventude seria aplicado ao fazer histórico da humanidade Para François Furet 1986 por outro lado tratase menos de uma tensão do que de uma ambiguidade Observa que na análise das revoluções Marx ora inclui ora exclui a noção de necessidade histórica A revolução na França seria interpretada como resultado inevitável do advento da sociedade burguesa em forma de percurso e desfecho ao passo que a ausência de revolução na Alema nha de 1848 ou seu fracasso é explicada centralmente pela incapacidade dos atores a pusilanimidade da burguesia alemã Furet 1986 p 4445 O fracasso da revolução não invalida no entanto a existência prévia de uma sociedade burguesa ameaçada pela classe operária e que encontra para além das revolu ções outras formas de se exprimir ressalta Furet que é taxativo acerca do caráter contraditório da análise marxiana 347 Capítulo 12 Leituras de Marx Paulo M dAvila Filho No primeiro caso Marx reduz a revolução à manifestação de seu conteú do social enquanto no segundo consideraa unicamente como uma das vias possíveis mas não inevitáveis de afi rmação da sociedade burguesa No primeiro caso subordina o político no segundo emancipao prova de uma contradição inerente à sua teoria da História notadamente na análise das revoluções francesas do século XIX Furet 1986 p 6465 Nos trabalhos sobre as revoluções no século XIX na França a tensão men cionada permanece é verdade Não cremos porém tratarse de uma contra dição inerente O olhar lançado sobre o mundo moderno indica para Marx a existência de atores sociais movidos pela necessidade e pelo interesse compo nentes indissociáveis dos processos históricos no mundo burguês Ainda que admitida uma inevitável afi rmação do mundo burguês sobre os escombros da velha ordem isso não signifi ca que se percam de vista as condições particulares de cada passagem O fato de Marx enxergar uma fraqueza na burguesia alemã e isso representar uma perspectiva de ascensão do proletariado ainda que não confi rmada aponta menos uma contradição do que o reconhecimento de possi bilidades de vias distintas para os processos de ruptura Essas duas tendências de fato se encontram como tensão constante nas formulações de Marx como venho repetidamente salientando ora encontramos um determinismo da materialidade prática do mundo social sobre os indiví duos ora uma valorização da ação humana racional em relação às suas possi bilidades históricas Há em Marx um movimento geral da história em direção ao capitalismo e com este à formação inerente do germe de sua ruína o proleta riado Conhecidos os princípios ordenadores do movimento histórico a relação entre forças produtivas e as relações de produção podemos identifi car os limites de cada formação social Deriva daí o conceito de necessidade histórica en contrado em alguns textos como no Prefácio à Crítica da Econômia Política como indicado anteriormente É preciso lembrar contudo que com o capitalismo uma nova dinâmica histórica se apresenta A superação da formação social virá com a ação dos no vos atores sociais principalmente o proletariado Em que pese a ideia de ima nência muitas vezes atribuída a essa assertiva tratase de notar que o movimen to histórico passa a considerar a ação dos atores sociais Marx revela estes atores de modo notável no Manifesto Comunista de 1848 129 Palavras finais Não há nada mais ousado no universo do que o homem pois o conteúdo mais íntimo de sua historicidade é precisamente a ousadia engendrada pela te 348 ELSEVIER Curso de Ciência Política leologia do trabalho Ao produzir socialmente os homens passam a se produzir como seres que reconhecem alternativas e se apaixonam por elas Como assi nalou Marx em cada novo projeto o arquiteto imagina um edifício melhor Nesse sentido o fenômeno humano de fato foi gesto irresponsável da nature za consigo mesma uma inconsequência que cabe exclusivamente à consciência resgatar e atribuir um sentido Para realizar esta missão a consciência não deve somente começar perquirindo a si mesma pois não está apenas nela a chave para compreender as tendências do movimento do mundo da práxis humana As opções sejam dos indivíduos ou das classes sempre se encontram constran gidas pelas condições históricas e sociais nas quais se plasmam O fenômeno humano no entanto caracterizase de certa forma como rebeldia permanente da criatura em relação a seu criador a natureza Por isso como nos mostra Marx em boa parte da sua obra o homem é um ser que conhece e se reconhece à me dida mesmo que se constrói A matéria tomado o conceito em sua amplitude fi losófi ca é anterior ao pensamento a realidade entretanto é um pressuposto e um resultado como concreto pensado enquanto produto da práxis humana conforme apontou Marx ao apresentar o seu método em Para a Crítica da Eco nomia Política 1859 Neste momento a realidade o concreto tornase objeto para o homem Sua tentação idealista é atribuirlhe um em si que possui uma anterioridade que ele Homem não possui como se existisse já no universo adormecido anterior ao homem Um anterior que pode ser Deus a economia as estruturas sociais o espírito etc O marxismo é uma fi losofi a profana e como tal deve ser encarada aos mol des dos hereges sem respeitar dogmas ou verdades imutáveis Por essa razão não se deve debruçar sobre este objeto com os medos de quem se vê diante de uma Bíblia Por outro lado não menos nocivo pode ser o comportamento característico dos anos 90 do século passado século XX que procurou des constituir a validade e a importância de Marx e do marxismo transformando a riqueza de suas contribuições em meras vulgaridades Ambas as perspectivas possuem pouco rendimento e credibilidade 1210 Perguntas para reflexão 1 Quais seriam algumas das dificuldades de se falar de Marx e do marxis mo 2 Quais seriam as três principais fontes de inspiração da obra de Marx e Engels 349 Capítulo 12 Leituras de Marx Paulo M dAvila Filho 3 Defina os sentidos de obra marxiana e de marxismo apresentados no texto Por que é importante estabelecermos uma distinção entre a obra marxiana e o marxismo 4 Por que é possível dizer que o tratamento dado ao conceito de ideologia pode nos ajudar a enxergar a diversidade contida na obra de Marx 5 No que consiste o primado da estrutura na obra de Marx e que textos expressariam melhor a ideia de determinação das estruturas sobre a vida humana 6 Explique o sentido da valorização do sujeito contida na obra de Marx e indique os textos que expressariam melhor esta ideia 7 O estruturalismo marxista e o humanismo marxista são vertentes de pensamento que extraem suas perspectivas da obra marxiana Explique o que as distingue e cite ao menos um autor que represente cada verten te 8 Em que medida a valorização do sujeito contida na obra de Marx con tribuiria mais para o reconhecimento do papel da ação política na vida humana do que a perspectiva do primado da estrutura Em quais tex tos de Marx podemos encontrar a perspectiva que valoriza certa autono mia da política em relação às estruturas econômicas 9 Explique a teoria da história contida no Manifesto Comunista 10 Depois de conhecer o texto proposto explique com suas palavras por que podemos falar em leituras de Marx Bibliografia ALTHUSER Luis Aparelhos ideológicos de Estado 2 ed Rio de Janeiro Graal 1985 Para ler o capital Rio de Janeiro Zahar Editores 1979a v I A favor de Marx 2 ed Rio de Janeiro Zahar Editores 1979b Materialismo histórico e materialismo dialético São Paulo Global Editora 1979c ANDERSON Perry Considerações sobre o marxismo ocidental 2 ed São Paulo Brasiliense 1980 ARENDT Hannah Entre o passado e o futuro São Paulo Perspectiva 1979 350 ELSEVIER Curso de Ciência Política ARON Raymond As etapas do método sociológico São Paulo UNBMartins Fontes 1990 BOTTOMORE Tom Dicionário do Pensamento Marxista 2 ed Rio de Janeiro Zahar Editores 1988 COUTINHO Carlos Nelson O Manifesto Comunista 150 anos Depois Karl Mark Friedrich Engels São Paulo Fundação Perseu Abramo Contrapon to 1998 DAVILA Paulo Filho As Ideologias de Marx Um Mergulho na Diversida de Marxista Monografi a mimeo Rio de Janeiro IFCS UFRJ 1991 ENGELS Friederich Ludwig Feuerbach e o fi m da Filosofi a Clássica Alemã In Obras escolhidas Vol III Lisboa Edições Avante 1985a Cartas a F Mehring Lisboa Edições Avante 1985b Col Obras Escolhidas v III Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científi co Lisboa Edições avan te 1985c Col Obras Escolhidas v III FEDOSSEIEV P N et al Karl Marx Biografi a Lisboa Edições Avante 1983 FERNANDES Florestan Marx e Engels 2 ed São Paulo Ática 1984 Coleção Grandes Cientistas Sociais FURET François Marx e a Revolução Francesa Rio de Janeiro J Zahar 1989 GARAUDY Roger Para Conhecer o Pensamento de Hegel Porto Alegre LPM 1983 GRAMSCI Antonio Concepção Dialética da História 6 ed Rio de Janeiro Ci vilização Brasileira 1986 Os intelectuais e a Organização da Cultura 2 ed Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1982 Maquiavel A Política e o Estado Moderno Rio de Janeiro Civiliza ção Brasileira 1968 HEGEL Friederich A fenomenologia do espírito São Paulo Nova Cultural 1988 HOBSBAWN Eric História do Marxismo Rio de Janeiro Paz e Terra 1979 JAPIASSU Hilton MARCONDES Danilo Dicionário Básico de Filosofi a Rio de Janeiro Zahar 1991 KONDER Leandro A Derrota da Dialética a Recepção das Ideias de Marx no Brasil Rio de Janeiro Campus 1988 Lukács In Fontes do Pensamento Político Porto alegre LPM 1980 KOSIK Karel Dialética do Concreto 4a ed Rio de Janeiro Paz e Terra 1986 351 Capítulo 12 Leituras de Marx Paulo M dAvila Filho LASKI Harold Joseph SCHUMPETER Joseph Alois O Manifesto Comunista de Marx e Engels 3 ed Rio de Janeiro Zahar 1982 LENINE V I Materialismo e empiriocriticismo Lisboa Edições Avante 1982 O que Fazer In Lisboa Edições Avante 1977 Col Obras Esco lhidas v I As três partes e as três fontes constitutivas do marxismo Lisboa Edi ções Avante 1978 Col Obras escolhidas v II LUKÁCS Georg História e consciência de classe Estudos da dialética Marxista 2 ed Rio de Janeiro Elfos 1989 A ontologia do Ser Social In NETTO José Paulo org Lukács Coleções Grandes Cientistas Sociais São Paulo Ática 1985a A ontologia de Marx Questões metodológicas preliminares In NETTO José Paulo org Lukács Coleções Grandes Cientistas Sociais São Paulo Ática 1985b A falsa e a verdadeira ontologia de Hegel São Paulo Livraria Ciên cias Humanas 1979 MARX Karl ENGELS F A Ideologia Alemã Lisboa Edições Avante 1982a Col Obras escolhidas MARX Karl Manuscritos Econômicos e Filosófi cos de 1844 São Paulo Nova Cultural 1987a Col Os Pensadores Prefácio à Crítica da Economia Política São Paulo Nova Cultural 1987b v I Col Os Pensadores Para a crítica da economia política São Paulo Nova Cultural 1987c v I Col Os Pensadores Onze Teses sobre Feuerbach São Paulo Nova Cultural 1987d v I Col Os Pensadores Crítica ao Programa de Gotha Lisboa Edições Avante v III 1985 Col Obras Escolhidas Cartas a Kugelmann Lisboa Edições Avante v II 1983a Col Obras Escolhidas Os Grundrisse Manuscritos Econômicos e Filosófi cos de 185758 Lis boa Edições Avante v II 1983b Col Obras escolhidas Luta de Classes na França Lisboa Edições Avante v II 1983c Col Obras Escolhidas A Guerra Civil em França Lisboa Edições Avante v II 1983d Col Obras Escolhidas Manifesto do Partido Comunista Lisboa Edições Avante v I 1982c Col Obras Escolhidas 352 ELSEVIER Curso de Ciência Política O 18 de Brumário de Louis Bonaparte Lisboa Edições Avante v I 1982d Col Obras Escolhidas O capital Livro I O Processo de Produção do Capital São Paulo Difel 1977a v I Crítica da Filosofi a do Direito de Hegel In Temas de Ciências Humanas São Paulo Civilização Brasileira 1977b v II MCDONOUGH Roisin Da ideologia Centre for Contemporary Cultural Stu dies da Universidade de Birmingham 2 ed Rio de Janeiro Zahar Edito res 1977 MEZÁRÓS Itsván Marx A Teoria da Alienação Rio de Janeiro Zahar Edito res 1981 PENNA Lincon A Marx e o Materialismo Histórico In Cadernos de Ciên cias Sociais Rio de Janeiro IFCS UFRJ 1986 n 2 PORTELLI Hugues Gramsci e o Bloco Histórico 4 ed Rio de Janeiro Paz e Terra 1987 ROCHA Ronald Teses Tardias Capitalismo e Revolução Social no Brasil Moder no São Paulo Interferência 1989 TOCQUEVILLE Alexis de Lembranças de 1848 as Jornadas Revolucionárias em Paris São Paulo Companhia das Letras 1991 WEBER Max A Ciência como Vocação In C Wright Mills org Ensaios de sociologia Rio de Janeiro Guanabara 1982 WEBER Max A Política como Vocação In CWright Mills org Ensaios de Sociologia Ed Guanabara 1982 WILLIANS Raymond Marxismo e Literatura Rio de Janeiro Zahar Editores 1979 VAZQUEZ Adolfo Sanchez Filosofi a da Práxis 3 ed Rio de Janeiro Paz e Terra 1977 Capítulo 13 O pensamento político de Max Weber e as concepções weberianas da sociedade brasileira Eduardo de Vasconcelos Raposo1 131 Introdução A vasta eclética e vigorosa obra de Max Weber 18641920 foi responsá vel por uma contribuição fundamental para a estruturação das ciências sociais no século XIX em um novo patamar Suas abordagens seus métodos suas teo rias e suas análises nos permitiram avançar signifi cativamente em um momento em que a divisão do trabalho acadêmico ainda não havia separado de maneira tão nítida a sociologia da ciência política e da antropologia cultural Trabalhan do interdisciplinarmente com essas e outras disciplinas Weber nos legou um Doutor em Ciências Políticas tendo estudado no IUPERJ e no Instituto de Estudos Políticos de Paris IEP para onde retornou nos meses de dezembro de 1998 e janeiro de 1999 na condição de pro fessor convidado Trabalhou por nove anos no CPDOCFGV Desde 1990 é professor e pesquisador do Departamento de Sociologia e Política da PUCRio onde foi diretor coordenando atualmente seu programa de PósGraduação em Ciências Sociais Contato raposopucriobr 354 ELSEVIER Curso de Ciência Política importante acervo de conhecimentos que nos possibilitou melhor conhecer as civilizações do mundo moderno o signifi cado social de suas crenças religiosas a racionalidade de suas práticas econômicas suas organizações sociais e suas formas de dominação política Hoje em dia com o acelerado processo de globali zação as ciências sociais em um movimento paradoxal se especializam ao mes mo tempo que quebram suas rígidas fronteiras criadas sobretudo no século XX quando as instituições eram mais sólidas e mais nítidas Tal movimento talvez nos permita de novo contar com uma interdisciplinaridade mais compatível com o mundo atual mais interdependente e mais desconhecido Entre os autores clássicos considerados fundadores da ciências sociais modernas como Karl Marx e Emilie Durkeim Weber foi o pensador que mais nos deixou uma refl exão sistemática e específi ca sobre o exercício do poder Nes te campo situamse seus trabalhos sobre Estado autoridade dominação políti ca legitimidade e organização que se tornaram referências indispensáveis para a compreensão das instituições políticas das sociedades modernas O presente trabalho pretende ser uma introdução ao pensamento político de Max Weber que estimule e convide à leitura de seus originais Para melhor compreensão dos argumentos e textos que serão aqui expostos dividimos esta apresentação nos quatro seguintes pontos 1 Uma breve notícia biográfi ca de Max Weber 2 A sociologia política de Max Weber 3 A contribuição dos conceitos weberianos para o entendimento da for mação social e política brasileira 4 A atualidade de Max Weber 132 Uma breve notícia biográfica Max Weber nasceu em Erfurt capital da Turíngia Estado localizado na região central da Alemanha no dia 21 de abril de 1864 Sua mãe Helene Fallens tein Weber tinha uma compreensão protestante e liberal do mundo Seu pai também Max Weber pertencia a uma família abastada de fabricantes e comer ciantes de produtos têxteis tendo exercido a advocacia e sido parlamentar de orientação nacionalliberal na dieta municipal de Berlim quando a família para lá se mudou em 1869 Em sua formação Weber teve oportunidade de conviver em reuniões pro movidas na casa de seus pais onde morou até os 29 anos de idade com escrito res políticos e professores o que presumivelmente estimulou e favoreceu sua vocação precoce para a leitura e a vida intelectual 355 Capítulo 13 O pensamento político de Max Weber e as concepções weberianas Eduardo de Vasconcelos Raposo Após terminar o colegial em 1882 Weber vai estudar Direito em Heidel berg participando também de aulas em outros campos do saber como história fi losofi a e economia Um ano e meio depois de sua ida para Heidelberg com 19 anos de idade vai prestar serviço militar por um ano na fronteira da Alemanha com a França na cidade de Estrasburgo Findo esse período matriculase nas Universidades de Berlim e Göttingen onde dois anos mais tarde em 1886 pres tou exame de Direito Em 1889 apresenta sua tese de doutoramento que teve como título A Contribution to the History of Madieval Business Organizations Em 1890 pres ta um segundo exame em Direito que o credencia para ensinar na Universidade de Berlim apresentando o trabalho Roman Agrarian History and its Signifi cance for Public and Private Law Em 1893 casase com Marianne Schnitger sobrinha neta de seu pai assumindo um ano mais tarde a cátedra de Economia da Universidade de Friburgo Em 1919 transferese para a Universidade de Mu nique falecendo um ano depois com 56 anos de idade Weber foi um intelectual erudito fruto da tradição humanista e racional e do ambiente político e cultural da Alemanha do fi nal do século XIX Precoce mente dedicouse ao estudo sistemático de disciplinas como história economia fi losofi a teologia sociologia política e direito tendo aprendido várias línguas como as indogermânicas o russo e o hebraico A partir de sua formação familiar onde conviveu com as convicções nacio nalistas liberais e protestantes de seus pais Weber presenciou e viveu o proces so de unifi cação da Alemanha liderado por Bismarck que veio a se incorporar ao conjunto dos EstadosNação da Europa Ocidental que se modernizava Essa circunstância colaborou sem dúvida para a atenção que deu aos temas políticos e institucionais e a importância que obteve sua sociologia política onde analisou a natureza do poder da política e da dominação no contexto da construção dos EstadosNação Weber que em sua vida adulta alternou fases de depressão e fases de profícuo trabalho intelectual deixou extensa e inigualável obra que se tornou referência obrigatória para os estudiosos das Ciências Sociais 133 A sociologia política de Max Weber Trataremos aqui dos conceitos de Política Estado Poder Patri monialismo Estamento Burocrático e Tipos de Dominação que serviram de base para relevantes interpretações da formação social e institucional do Bra sil algumas das quais serão comentadas na próxima sessão 356 ELSEVIER Curso de Ciência Política Quando se fala de sociologia política weberiana o primeiro aspecto a ser ressaltado é que os fenômenos políticos são ali tratados como fatos particulares portadores de uma lógica própria não sendo necessariamente epifenômenos que apenas refl etem outras dimensões da sociedade Como fi ca bastante claro em textos como Classe Estamento e Partido de seus Ensaios de Sociologia nessas diferentes instâncias sociais ocorrem disputas por poder privilégios e recursos sendo que as mesmas podemse infl uenciar reciprocamente sem que haja uma hierarquia predeterminada O poder condicionado economicamente não é decerto idêntico ao poder como tal Pelo contrário o aparecimento do poder econômico pode ser a consequência do poder existente por outros motivos O ho mem não luta pelo poder apenas para enriquecer economicamente O poder inclusive o poder econômico pode ser desejado por si mesmo Muito frequentemente a luta pelo poder também é condicionada pelas honras sociais que ele acarreta Nem todo poder porém traz honras sociais o chefe político americano típico bem como o grande especu lador típico abrem mão deliberadamente dessa honraria Geralmente o poder meramente econômico em especial o poder fi nanceiro puro e simples não é de forma alguma reconhecido como base de honras sociais Nem é o poder a única base de tal honra Na verdade ela ou o prestígio podem ser mesmo a base do poder político ou econômico e isso ocorreu muito frequentemente O poder bem como as honras podem ser assegurados pela ordem jurídica mas pelo menos normal mente não é a sua fonte primordial A ordem jurídica constitui antes um fator adicional que aumenta a possibilidade de poder ou honras mas nem sempre pode assegurálos Weber 1982 p 126 A esse respeito Weber em seu texto A Objetividade do Conhecimento nas Ciências e na Política Sociais encontrado no livro Sobre a Teoria das Ciências Sociais é bem claro ao ressaltar que Se existe luta não tem apenas como objeto os interesses de classe como tanto nos agrada pensar hoje em dia mas também as concepções do mundo Como é natural isto não cerceia a verdade do fato de que a concepção do mundo pelo qual alguém toma partido é em larga medi da determinada por um grau de afi nidade eletiva que o une ao inte resse de classe para utilizar aqui este último termo já aparentemente unívoco Weber 1991 p 9 Considerados esses pontos iniciais alguns conceitos básicos no âmbito de sua sociologia política podem ser encontrados em seu clássico texto A Política 357 Capítulo 13 O pensamento político de Max Weber e as concepções weberianas Eduardo de Vasconcelos Raposo como Vocação de seus ensaios de sociologia Nesse trabalho originalmente uma conferência Weber pergunta para logo em seguida responder O que entendemos por política O conceito é extremamente amplo e compreende qualquer tipo de liderança independente em ação Falase da política fi nanceira dos bancos da política de descontos do Reichsbank da política grevista de um sindicato podese falar da política educacional de uma municipalidade da política do presiden te de uma associação voluntária e fi nalmente até mesmo da política de uma esposa prudente que busca orientar o marido Hoje nossas refl exões não se baseiam decerto num conceito tão amplo Queremos compreender como política apenas a liderança ou a infl uência sobre a liderança de uma associação política e daí hoje de um Estado Weber 2002 p 55 Sua refl exão sobre política nos leva necessariamente ao conceito de Es tado O que é um Estado Sociologicamente o Estado não pode ser defi nido em termos de seus fi ns Difi cilmente haverá qualquer tarefa que uma associação política não tenha tomado em suas mãos e não há tarefa que não se possa dizer que tenha sido sempre exclusivamente e pecu liarmente das associações designadas como políticas hoje o Estado ou historicamente as associações que foram predecessoras do Estado moderno Em última análise só podemos defi nir o Estado moderno so ciologicamente em termos dos meios específi cos peculiares a ele como peculiares a toda associação política ou seja o uso da força física We ber 2002 p 55 Desemboca tal refl exão em sua consagrada defi nição segundo a qual O Estado é uma comunidade humana que pretende com êxito o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determinado território Weber 2002 p 56 Avançando em suas refl exões sobre mando e obediência Weber nos fala das formas legítimas de dominação que são entendidas como probabilidades de se encontrar obediência dentro de um grupo determinado para mandatos espe cífi cos Chama a atenção para as justifi cativas íntimas e para os meios exteriores sobre os quais repousam os diferentes tipos de domínio Para Weber três justi fi cativas interiores legitimam o domínio e cada tipo de dominação repousa so bre um quadro administrativo sendo que é a natureza da ligação desse quadro administrativo com seu senhor que determina o tipo de dominação Para Weber há três justifi cativas interiores e portanto legítimas de domínio A Dominação 358 ELSEVIER Curso de Ciência Política Tradicional a Dominação Carismática e a Dominação Legal Tais tipos de do minação são tipos ideais e puros raramente sendo encontrados em tal condição na realidade 1331 A Dominação Tradicional A Dominação Tradicional está ligada à autoridade do ontem eterno isto é dos mores santifi cados pelo conhecimento inimaginavelmente antigo e da orientação habitual para o conformismo É o domínio exercido pelo patriarca e pelo príncipe patrimonial de outrora Weber 2002 p 56 Como também pode ser lido em seu trabalho Economia y Sociedad Weber 1977 uma dominação é tradicional quando sua legitimidade descansa na san tidade de ordenações e poderes de mando herdado de tempos imemoriais Sua legitimidade baseiase na força da tradição é assim porque sempre foi assim Desse modo suas ordens são legítimas por estarem de acordo com o costume Os senhores que exercem o domínio baseados na tradição possuem a prerrogativa da livre decisão pessoal e seus comandados obedecem por leal dade pessoal A administração é composta por funcionários da casa parentes A autoridade é exercida como se o grupo fosse a família É uma dominação tão rotineira como a dominação racional Formas específi cas de dominação tradicional podem ocorrer em razão do tipo de relação mantida entre o senhor e seu quadro administrativo A forma pu ramente patriarcal ocorre originalmente quando existe carência de um quadro administrativo pessoal do senhor Com a aparição de um quadro administrativo e militar ligado ao senhor a dominação tradicional tende a se transformar em dominação patrimonial que tendo se originado na tradição é exercida em virtude de um direito próprio Nessa modalidade de dominação o quadro administrativo dependia totalmente do senhor não tendo nenhuma garantia contra sua arbitrariedade No patrimonialismo puro há uma separação absoluta entre os adminis tradores e os meios administrativos No patrimonialismo estamental por sua vez ocorre exatamente o contrário o administrador tem a propriedade total ou pelo menos de parte importante dos meios de administração Na forma de dominação estamental o quadro administrativo é independente tem reconhe cimento social e se apropria de determinados poderes e de suas chances de ganho econômico O Patrimonialismo e o Feudalismo constituemse em subtipos da domina ção tradicional sendo que no Feudalismo o governo substitui o relacionamento 359 Capítulo 13 O pensamento político de Max Weber e as concepções weberianas Eduardo de Vasconcelos Raposo paternal por uma vassalagem determinada contratualmente O Feudalismo se caracteriza por um certo tipo de controle dos meios de dominação pela pro priedade difusa das funções que seriam mais tarde centralizadas nas mãos do Estado 1332 A dominação carismática A Dominação Carismática ocorre quando há o reconhecimento e a con fi ança por parte dos súditos na liderança e nas qualidades sobrenaturais e ex cepcionais do senhor que se prontifi ca a usálas para cumprir uma missão que frequentemente revoluciona a ordem tradicional estabelecida Estariam nesse caso o profeta o senhor de guerra eleito o governante ple biscitário o grande demagogo e o líder de partido político A Dominação Caris mática ocorre em meio a uma situação extraordinária e não será protagonizada por um funcionário mas por um líder radical que demonstre o seu carisma em virtude de poderes mágicos revelações heroísmo ou outros dons e que exercerá o poder de maneira extremamente pessoal Os funcionários são selecionados em razão de sua devoção pessoal ao lí der e não devido a sua qualifi cação profi ssional e difi cilmente se constituirão em uma organização Tudo depende do julgamento do líder É um tipo de do minação instável que não tem fundamento legal nem se baseia na tradição e só dura enquanto os fatos que a geraram permanecer e enquanto for mantido o carisma do líder Na dominação carismática não há fonte regular de renda e sim doações Não há também regulamentos e tudo se inspira em missões atribuídas carisma ticamente pelo líder Para Weber na História se alterna o carisma do grande homem e a rotini zação da burocracia O declínio do carisma é uma tendência histórica importan te dando lugar à dominação tradicional ou racional indicando geralmente a diminuição da importância da ação individual 1333 A Dominação Legal Finalmente há o domínio em virtude da legalidade em virtude da fé na validade do estatuto legal e da competência funcional baseada em regras racionalmente criadas Nesse caso esperase obediência no cumprimento das obrigações estatutárias É o domínio exercido pelo moderno servidor do Estado e por todos os portadores do poder que sob esse aspecto a ele se assemelham Weber 2002 p 56 360 ELSEVIER Curso de Ciência Política Existe Dominação Legal quando um sistema de regras que é aplicado judicial e administrativamente de acordo com princípios verifi cáveis é válido para todos os membros do grupo associado O tipo puro de Dominação Legal é aquele que se exerce por meio de um quadro administrativo burocrático É importante ressaltar que quem domina o aparato burocrático não é um burocrata e sim um líder político que também é submetido às leis A Dominação Legal realizase com as modernas estruturas dos Estados com a divisão entre as esferas públicas e privadas com moeda e colheita de tributos exér citos permanentes funcionários treinados e especializados leis e normas administra tivas interpretadas racional e impessoalmente com as sociedades de massas merito cráticas e de caráter permanente Nos Estados modernos a separação entre o quadro administrativo os fun cionários administrativos e os trabalhadores em relação aos meios materiais de organização administrativa é completa 134 A contribuição dos conceitos weberianos para o entendimento da formação social e política brasileira Os trabalhos e conceitos elaborados por Weber infl uenciaram inúmeras e signifi cativas interpretações da realidade social brasileira No que se refere à for mação de nosso Estado Nacional talvez o campo mais fértil para suas infl uên cias os trabalhos mais originais e que alcançaram maior prestígio acadêmico foram Os donos do poder de Raymundo Faoro e As bases do autoritarismo brasileiro de Simon Schwartzman Esses textos utilizaram os conceitos de patrimonialismo e patrimonialis moburocrático características herdadas de nossas origens históricas portu guesas para lançar luz sobre o caráter da nossa formação social e institucional analisando o Estado brasileiro a partir de uma dinâmica própria e não como um epifenômeno ou metáfora da ordem econômica ou da estrutura de classes da sociedade No prefácio à segunda edição em Os donos do poder Formação do patronato político brasileiro publicado pela primeira vez em 1958 Faoro adverte os leitores sobre sua orientação teórica afi rmando que seu livro não segue apesar de seu próximo parentesco a linha de pensamento de Max Weber Não raro as sugestões weberianas seguem outro rumo com novo conteúdo e diverso colorido De outro lado o ensaio se afasta do marxismo ortodoxo sobretudo ao sustentar a autonomia de uma ca 361 Capítulo 13 O pensamento político de Max Weber e as concepções weberianas Eduardo de Vasconcelos Raposo mada de poder não diluída numa infraestrutura esquemática que da ria conteúdo econômico a fatores de outra índole Faoro 1984 p XI Sobre a autonomia de uma camada de poder na experiência brasileira perspectiva teórica que dá continuidade a seu diálogo com Weber Faoro logo no início de seu texto chama atenção para nossa descendência ao comentar a natureza centralizada do poder na formação da nação portuguesa Ao príncipe afi rmao prematuramente um documento de 1098 incumbe reinar regnare ao tempo que os senhores sem a auréola feudal apenas exercem o dominare asse nhoreando a terra sem governála Faoro 1984 p 341 Em continuidade ao diagnóstico sobre a natureza das relações de poder estabelecidas pela Coroa Portuguesa advertenos que Entre o rei e os súditos não há intermediários um comanda e to dos obedecem A recalcitrância contra a palavra suprema se chama rá traição rebeldia à vontade que toma deliberações superiores O chefe da heterogênea hoste combatente não admite aliados e sócios acima dele só a Santa Sé o papa e não o clero abaixo dele só há delegados sob suas ordens súditos e subordinados Faoro 1984 p 52 Assim como na política também na área econômica Tudo dependia comércio e indústria das concessões régias das delegações graciosas arrenda mentos onerosos que a qualquer momento se poderiam substituir por empre sas monárquicas Faoro 1984 p 9 Faoro acreditava que características patrimoniais do mundo português como a ausência de relações contratuais entre o rei e seus súditos e o consequen te centralismo de tal sistema transmitiramse para nossas terras Patrimonial e não feudal o mundo português cujos ecos soam no mundo brasileiro atual as relações entre o homem e o poder são de outra feição bem como de outra índole a natureza da ordem econômi ca ainda hoje persistente obstinadamente persistente Na sua falta o soberano e o súdito não se sentem vinculados à noção de relações contratuais que ditam limites ao príncipe e no outro lado asseguram 1 Faoro citando Vitorino Magalhães Godinho Ensaios Lisboa Sá da Costa 1968 p 27 v 2 2 Raimundo Faoro se faz valer de J Lucio de Azevedo Épocas de Portugal econômico 2 ed Lisboa Clássica 1947 p13 e Ângelo Ribeiro O Rei e a integridade Patrimônio da coroa In História de Por tugal Porto Portucalense 1929 tomo II p168 e segs para construir sua compreensão do caráter da formação do Estado português 362 ELSEVIER Curso de Ciência Política o direito de resistência se ultrapassadas as fronteiras de comando Faoro 1984 p 17183 Na ausência de uma burguesia forte que pudesse limitar as forças centrí petas e tentaculares da Coroa Portuguesa nada parecia ameaçar seu poder O Estado tornase uma empresa do príncipe que intervém em tudo empresário audacioso exposto a muitos riscos por amor à riqueza e à glória empresa de paz e empresa de guerra Estão lançadas as bases do capitalismo de Estado politicamente condicionado que fl orescia ideo logicamente no mercantilismo doutrina em Portugal só reconhecida por empréstimo sufocada a burguesia na sua armadura mental pela supremacia da coroa Faoro 1984 p 21 Para Faoro tais características atravessaram os mais diferentes períodos de nossa história demonstrando uma permanência singular e que se constitui em fator explicativo para nossa tendência política e institucional centralizadora De D João I a Getúlio Vargas numa viagem de seis séculos uma estrutura po líticosocial resistiu a todas as transformações fundamentais aos desafi os mais profundos à travessia do oceano largo Faoro 1984 p 733 Como em camadas de uma arqueologia histórica particular o capitalismo e o patrimonialismo se ajustaram nas terras brasileiras para dar corpo e forma às nossas instituições Nas palavras de Faoro A realidade histórica brasileira demonstrou a persistência secular da estrutura patrimonial resistindo galhardamente inviolavelmente à repetição em fase progressiva da experiência capitalista Adotou do capitalismo a técnica as máquinas as empresas sem aceitarlhe a alma ansiosa de transmigrar Faoro 1984 p 736 Para Faoro o Estado brasileiro era controlado e explorado em causa pró pria por um grupo social o chamado estamento burocrático categoria que para Weber originavase do patrimonialismo que era por sua vez uma forma de dominação tradicional comum aos sistemas centralizados Característico principal o de maior relevância econômica e cultural será o do predomínio junto ao foco superior de poder do quadro ad ministrativo o estamento que de aristocrático se burocratiza progres sivamente em mudança de acomodação e não estrutural Faoro 1984 p 733 3 Bloch Marc Feudalism In Encyclopaedia of the social sciences New York Macmillan 1954 p 210 v 6 363 Capítulo 13 O pensamento político de Max Weber e as concepções weberianas Eduardo de Vasconcelos Raposo Assim Sobre a sociedade acima das classes o aparelhamento político uma camada social comunitária embora nem sempre articulada amorfa muitas vezes impera rege e governa em nome próprio num círculo impermeável de comando Essa camada muda e se renova mas não re presenta a nação senão que forçada pela lei do tempo substitui moços por velhos aptos por inaptos num processo que cunha e nobilita os recémvindos imprimindolhes os seus valores Faoro 1984 p 737 Faoro chama atenção também para uma das principais características do domínio patrimonial a fragilidade das fronteiras existentes entre os mundos público e privado Num estágio inicial o domínio patrimonial desta forma constituído pelo estamento apropria as oportunidades econômicas de desfrute dos bens das concessões dos cargos numa confusão entre o setor público e o privado que com o aperfeiçoamento da estrutura se extrema em competências fi xas com divisão de poderes separandose o setor fi scal do setor pessoal Faoro 1984 p 7364 A respeito da importante diferenciação entre os conceitos de patrimo nialismo e feudalismo que expressam signifi cativas consequências para o de senvolvimento social e institucional dos países descobertos e colonizados ou pelos países da Europa Continental ou da Europa Ibérica Cláudio Véliz nos ofe rece uma visão bastante clara Para Véliz os países ibéricos entraram na Idade Moderna como frutos administrativos legais e políticos de uma monarquia pós feudal já fortemente centralizada O feudalismo nos diz Vêliz acaba quando as monarquias centrais atingem sufi ciente poder para se imporem Assim sendo el feudalismo nunca formó parte de la tradición cultural y política latinoame ricana No podía haber sido transplantado desde Espãna ni de Portugal puesto que en la época de los grandes descubrimientos y conquistas el feudalismo incluso en su variante especifi camente ibérica había dejado de ser um rasgo signifi cativo de la organización política de las naciones metropolitanas E mais Esta experiencia feudal ha sido um fator cardinal en el desarrollo de la tra dición política occidental y se encuentra sin duda alguna en la raiz misma del parlamentarismo europeo dal liberalismo y de todas lãs variantes social democráticas que se originaran de elles Las instituciones representativas 4 Weber Max Wirtschaft und Gessellschaft Köln Berlin Wiepenheur C Witsch 1974 p 170 171 175 761 769 apud Faoro 1998 págs 749 364 ELSEVIER Curso de Ciência Política y los parlamentos son inequivocamente produto de la Edad Media y resultado directo del desarrollo del feudalismo Vêliz 1984 p 15165 Também para Faoro o Brasil não teve um passado feudal onde o campo se impunha à cidade Ao contrário o poder central é que se impunha à elite agrá ria que dependia de seus recursos e favores Cabe ressaltar que no Brasil o primeiro autor a se manifestar contra a tese que afi rmava ter sido o feudalismo o regime político e econômico aqui implan tado por Portugal foi Roberto Simonsen em 1937 para quem à época da descoberta Portugal Já não vivia em regime feudal o rei é um autêntico capitalista seus vassalos chegam ao Novo Mundo com o desejo de enriquecer Os poderes que lhes são delegados têm apenas o objetivo de assegurarlhes lucros Apenas a forma jurídica dessa con cessão assemelhase às instituições feudais Seu conteúdo em compen sação é exclusivamente capitalista Topalov 1978 p 14 Para Raimundo Faoro nunca houve nem proprietários nem caciques lo cais fortes o bastante para ameaçarem efetivamente o poder central Afi rma que no Brasil o poder central nunca esteve em perigo em parte porque nunca teria sido efetivamente questionado Outra importante interpretação do Brasil de inspiração weberiana inti tulada As bases do autoritarismo brasileiro foi realizada por Simon Schwartzman Buscando outros caminhos Simon inicia seu trabalho afi rmando que o entendi mento da vida política brasileira passa necessariamente pela análise das contra dições entre o centro econômico e mais organizado da sociedade civil no país localizado em São Paulo e o núcleo do poder central muito mais fi xado no eixo Rio de JaneiroBrasília Schwartzman 1998 p 9 Para desenvolver tal perspectiva acredita dever explorar o contraste entre o Estado patrimonial irracional centralizador autoritário e os setores da socieda de que se pretendem autônomos descentralizadores e representantes do raciona lismo privado dos grupos sociais mais organizados Schwartzman 1998 p 10 Para tanto acredita que a análise política contemporânea deve recuperar o conceito de patri monialismo que embora utilizado por Max Weber sobretudo para 5 Véliz defende a tese de que a ausência de quatro fatores foram responsáveis pelo caráter centralista das disposições sociais e políticas latino americanas 1 Ausência de experiência feudal na tradição latino americana 2 ausência do fenômeno de dissidência religiosa e o resultante centralismo latitudinário da religião dominante 3 ausência de qualquer acontecimento ou circunstância ao largo desses anos comparável com a Revolução Industrial europeia 4 ausência de aspectos da evolução social e política associados com a Revolução Francesa 365 Capítulo 13 O pensamento político de Max Weber e as concepções weberianas Eduardo de Vasconcelos Raposo se referir a sociedades tradicionais de determinado tipo parecenos de grande atualidade e importância A expressão neopatrimonialis mo talvez seja adequada para aplicarse ao sentido atual do conceito Schwartzman 1998 p 39 Simon chama atenção para o fato de não serem os elementos tradicio nais os mais centrais do conceito de patrimionialismo e que o contraste real mente importante a ser considerado é como feudalismo Se no Estado patrimonial o príncipe organiza seu poder político sobre áreas extrapatrimoniais exatamente como exerce seu poder patriarcal ajudado por pessoas ligadas a ele por laços de dependência no Estado feudal o senhor governa com a ajuda de uma aristocracia que tem reconhecimento social pró prio Nas palavras de Weber citado por Simon Quando existe uma associação de estamentos nos sistemas feudais o senhor governa com a ajuda de uma aristocracia autônoma e conse quentemente comparte sua administração com ela o senhor que admi nistra de forma pessoal no sistema patrimonial é ajudado seja por pes soas de sua unidade familiar seja por plebeus Eles formam um estrato social sem propriedades e que não tem honra social por mérito próprio materialmente são totalmente dependentes do senhor e não tem nenhu ma forma própria de poder competitivo Todas as formas de dominação patriarcal e patrimonial de sultanismo despótico e os estados burocráti cos pertencem a esse último tipo O estado burocrático é particularmente importante em seu desenvolvimento mais racional ele é característico precisamente do estado moderno Schwartzman 1998 p 45 Assim sendo os Estados modernos formados sem a presença de revolu ções burguesas podem ser considerados patrimoniais Este patrimonialismo moderno ou neopatrimonialismo não é sim plesmente uma forma de sobrevivência de estruturas tradicionais em sociedades contemporâneas mas uma forma bastante atual de domi nação política por um estrato social sem propriedades e que não tem honra social por mérito próprio ou seja pela burocracia e a chamada classe política Schwartzman 1998 p 4546 Ainda sobre a relação conceitual existente entre esses dois tipos de domi nação a linha de continuidade que Weber estabelece entre dominação patri monial tradicional e dominação burocrática que o leva a falar muitas vezes em patrimonialismo burocrático deve ser vista em contraste com a continuidade que parece existir entre feudalismo e dominação 366 ELSEVIER Curso de Ciência Política racionallegal que surge historicamente associada à emergência do ca pitalismo Schwartzman 1998 p 46 Simon se pergunta se realmente se trata de dois tipos tão distintos Afi nal para Weber a burocracia era uma característica essencial das formas moder nas de dominação política Schwartzman 1998 p 4647 O patrimonialismo e o feudalismo são então sistemas tradicionais de poder enquanto o patrimonialismo burocrático neopatrimonialismo e a dominação racionallegal constituemse em sistemas modernos do exercício do poder sen do fundamental para tal distinção a existência ou não de um contrato presente nos sistemas ocidentais modernos Schwartzman 1998 p 47 Dando sequência a seu argumento o autor pergunta para em seguida res ponder Mas que ocorreria nos países onde não existiu uma burguesia ascen dente com a mesma força e importância que a burguesia da Europa Ocidental Continuariam tradicionais Ou teriam desenvolvido uma forma própria de dominação moderna e racional mas sem o componente contratual Schwart zman 1998 p 48 Acredita que tal questão deve ser entendida no contexto da diferença que Weber estabelece entre racionalidade formal legal e racionalidade subs tantiva Racionalidade legal entendida como uma série de normas explícitas de comportamento o que limita o poder arbitrário do governante e racionalidade substantiva que valoriza determinados objetivos independentemente de regras e regulamentos formais Para Simon Weber considerava então a possibilidade de existência de sociedades modernas sem a existência de contrato social formado por leis de atribuição de direitos É possível então conclui Simon a existência de socie dades portadoras de burocracias racionais sem serem necessariamente legais o que caracterizaria os sistemas políticos neopatrimoniais e que permitiria resu me o autor uma nova visão da formação política do Brasil 135 A atualidade da sociologia política de Max Weber Para fi nalizar algumas palavras devem ser ditas sobre a atualidade do pen samento de Max Weber confrontado a um mundo signifi cativamente diferente daquele do século XIX no qual o sociólogo alemão produziu seus trabalhos De fato podemos supor que o processo de racionalização e construção do mundo moderno tão caro à perspectiva analítica que moveu as refl exões de Weber encontrase em franca decomposição comprometendo a capacidade interpretativa não só de sua teoria como das outras grandes narrativas do século XIX que foram concebidas em outro momento da vida das nossas sociedades e instituições 367 Capítulo 13 O pensamento político de Max Weber e as concepções weberianas Eduardo de Vasconcelos Raposo A esse respeito como ressalta o sociólogo Ulrick Beck da Universidade de Munique e autor de textos sobre o atual estágio das sociedades ocidentais por ele chamado de modernização refl exiva vivemos em outra época comandada por outros imperativos sociais Para Beck a diferença está no fato de que atual mente as pessoas não estão sendo libertadas das certezas feudais e religiosas transcendentais para o mundo da sociedade industrial mas sim da sociedade industrial para a turbulência da sociedade do risco global Beck 1985 p 18 Também para Scott Lash outro teórico da modernização refl exiva Não está mais em questão aqui a justaposição direta e dicotômica da tradição e da moder nidade cara aos papas da teoria sociológica clássica Weber Durkheim Simel e Tönnies Lash 1995 p 139 Para Lash o que estaria ocorrendo atualmente em nossas sociedades seria a passagem da modernidade simples para a moder nidade refl exiva Na visão de Anthony Giddens também teórico das sociedades do mundo contemporâneo como esclareceu Max Weber a autoridade burocrática costumava ser uma condição para efi ciência organizacional Em uma sociedade orde nada de maneira mais refl exiva atuando no contexto da incerteza artifi cial isso não mais acontece Os velhos sistemas burocráticos começam a desaparecer dinossauros da era póstradicional Giddens 1994 p 15 Giddens porém relativiza o esgotamento dos princípios que regeram o mundo moderno Para ele a sociologia weberiana estabeleceu uma ligação en tre efi ciência das organizações hierarquia burocrática e racionalidade social e acreditava que Não é totalmente óbvio que essa forma de organização esteja desa parecendo completamente hoje ou que vá ocorrer uma transição em grande escala em direção a sistemas de autoridade descentralizada e mais fl exíveis como afi rmaram muitas pessoas Toda mudança social tende a ser dialética um movimento unidirecional geralmente produz também tendências opostas Portanto é provável que isso aconteça com as organizações Na esfera econômica por exemplo a autoridade fl exível para alguns provavelmente signifi ca restrições crescentes para outros em diferentes áreas ou contextos As grandes corporações que são ameaçadas podem muito bem encontrar meios de se defenderem os processos de descentralização em um setor poderiam criar uma cen tralização renovada em outro Giddens 1994 p 140 Para fi nalizar algumas poucas considerações são necessárias Primeiro não cremos que as mudanças que estamos presenciando no mundo atual suca 368 ELSEVIER Curso de Ciência Política teiem abruptamente todo o aparato institucional da modernidade como nos fa zem crer algumas teorias que apaixonadas pelas suas próprias descobertas só a elas conseguem enxergar Estamos em transição e ainda somos relativamente modernos submetidos a Estados nacionais mesmo que enfraquecidos em suas soberanias que funcionam a partir de uma racionalidade legal apesar de todas as rachaduras nessa construção Como dito na introdução a desconstrução das fronteiras do mundo mo derno que segmentam os diversos setores das sociedades também pode pro piciar a recuperação de um olhar interdisciplinar que pode levar os cientistas sociais contemporâneos a cultivar de novo o gosto pela interdisciplinaridade como foi o caso de Weber Por último Weber se tornou um clássico no sentido de suas refl exões terem transcendido sua época Seus conceitos continuarão a ser básicos para refl exões sobre política poder dominação organização e legitimidade da mes ma maneira que os estudos dos grandes intérpretes dos séculos passados ainda lançam luz sobre as sociedades do mundo contemporâneo 136 Perguntas para reflexão 1 Que circunstâncias culturais e políticas vividas por Weber colaboraram para a importância que os temas políticos e institucionais adquiriram na sua obra 2 Segundo o texto lido o que se pode entender por fenômenos políticos que são tratados como fatos particulares não sendo necessariamente reflexos de outras dimensões da sociedade 3 O que vem a ser política para Weber 4 O que vem a ser Estado para Weber 5 Explique os três tipos puros de dominação e as justificativas interiores que os legitimam 6 Qual a natureza dos quadros administrativos dos três tipos puros de do minação 7 O que você entendeu pelos conceitos de patrimonialismo estamento e feudalismo 369 Capítulo 13 O pensamento político de Max Weber e as concepções weberianas Eduardo de Vasconcelos Raposo 8 Segundo Faoro que relações podem ser estabelecidas no contexto da formação nacional brasileira entre o Estado brasileiro o patrimonialismo e o estamento burocrático 9 Segundo os termos de Schwartzman como o conceito de neopatrimonia lismo pode nos ajudar a compreender o Brasil 10 A partir do texto lido que argumentos atribuem atualidade à sociologia de Max Weber Bibliografia BECK Ulrick A Reinvenção da Política Rumo a uma Teoria da Moder nização Refl exiva In GIDDENS Anthony BECK Ulrich LASH Scott orgs Modernização refl exiva São Paulo Editora Unesp 1995 FAORO Raymundo Os donos do poder Formação do patronato político brasilei ro 6 ed São Paulo Globo 1984 GIDDENS Anthony A Vida em uma Sociedade PósTradicional In GID DENS Anthony BECK Ulrich LASH Scott orgs Modernização refl exiva São Paulo Editora Unesp 1995 Para além da esquerda e da direita São Paulo Editora Unesp 1994 SCHWARTZMAN Simon Bases do autoritarismo brasileiro Rio de Janeiro Campus 1998 TOPALOV Christian Estruturas agrárias brasileiras Rio de Janeiro Livraria Francisco Alves Editora 1978 VÉLIZ Cláudio La tradición centralista de América Latina Barcelona Editora Ariel 1984 WEBER Max Ensaios de sociologia 5 ed Rio de Janeiro Guanabara Koogan 2002 Sobre a Teoria das Ciências Sociais São Paulo Editora Moraes 1991 Economia y sociedad Buenos Aires Fondo de Cultura Economica de Argentina 1977 Butter Lamb Capítulo 14 O Constitucionalismo antiliberal de Carl Schmitt democracia substantiva e exceção versus liberalismo kelseniano Gisele Silva Araújo1 Rogerio Dultra dos Santos2 Mestre e Doutora em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro IUPERJ Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ e Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro UERJ Atualmente é Professora Adjunta de Sociologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro UNIRIO Professora de Filosofi a do Direito e Teoria Política da Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro UERJ e Pesquisadora bolsista do Setor de História da Fundação Casa de Rui Barbosa FCRB Suas atividades têm como temas prio ritários Teoria Sociológica Teoria Política Teoria do Direito Teoria Constitucional Pensamento Social e Político Brasileiro e Sociologia do Direito Endereço para contato gssaraujoyahoocombr Doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro IUPERJ mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina UFSC e graduado em Direito pela Universidade Católica do Salvador UCSal Professor Adjunto do Departamento de Direito Público da Universidade Federal Fluminense UFF Professor Permanente do Programa de PósGraduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense UFF Professor Colaborador do Programa de PósGraduação em Sociologia Política da Universidade Estadual do Norte Fluminense UENF e 372 ELSEVIER Curso de Ciência Política 141 Introdução A dinâmica política e a confi guração das constituições contemporâneas não podem ser compreendidas sem que se tenha em conta a teorização do jurista e politólogo alemão Carl Schmitt 18881985 O século XX a era dos extremos no dizer de Eric Hobsbawn exacerbou a distinção entre amigo e inimigo núcleo fundamental do conceito do político daquele pensador Além de ter sido um autor fundamental na confi guração constitucional da Alemanha préSegunda Grande Guerra através do seu conceito de estado de exceção suas ideias políticas e jurídi cas se tornaram centrais na construção dos Estados ditatoriais do mundo ociden tal em particular da Alemanha nazista No entanto essa identifi cação de Schmitt como o grande jurista do III Reich encobre a pertinência de sua vigorosa crítica ao falseamento da democracia operado pelas instituições representativas liberais Nesse sentido quer seja pela sua importância histórica quer pela atualidade de seu pensamento Carl Schmitt é um autor essencial para a teoria política para a teoria constitucional e para o estudo das relações entre EstadosNação Se por um lado as ideias de um autor podem ser estudadas em si mesmas por outro a recuperação do contexto no qual são produzidas lhes confere maior densidade e signifi cado históricos Pela sua contextualização se percebe o quanto determinados conceitos embora universalizáveis foram produzidos para lidar com problemas particulares daquele específi co momento histórico1 O momento histórico no qual Schmitt produz seus mais relevantes trabalhos é a Alemanha da República de Weimar período no qual tem lugar o clássico debate protagonizado por ele e pelo jurista austríaco Hans Kelsen 18811973 Schmitt e Kelsen desen volvem argumentações opostas quanto à natureza da política quanto ao conceito de democracia e quanto às instituições jurídicas viáveis para os tempos moder nos A teoria de Carl Schmitt condensa particularmente o debate entre liberdade e igualdade autoridade e democracia presente na tradição do pensamento euro peu moderno aí incluídos por exemplo Hobbes Kant e Rousseau Para uma exposição propedêutica de autor e temática tão complexos este capítulo foi organizado em três partes principais A primeira dedicase a uma breve biobibliografi a de Carl Schmitt incluindo também referências ao momen avaliador ad hoc na área do Direito do Ministério da Educação Coordenou a edição do livro Direito e Política Porto Alegre Síntese 2004 Endereço para contato rogeriodultrayahoocombr 1 Com efeito o modelo de Estado que surge na obra de Carl Schmitt não pode ser visto somente como um conjunto de conceitos abstratos mas como a necessidade de se resolver uma determinada crise de ordem jurídica e política no momento em que ela se tornou crucial para defi nir o futuro da Ale manha Nesse sentido os conceitos políticojurídicos presentes na obra de autores como Carl Schmitt são de natureza estrutural isto é serviram de condição de existência para eventos históricos específi cos Entretanto por serem conceitos estruturais têm a capacidade de servirem como instrumentos de cons trução de ordens políticas diversas daquelas nas quais se originaram Santos 2006 373 Capítulo 14 O Constitucionalismo antiliberal de Carl Schmitt Gisele Silva Araújo Rogerio Dultra dos Santos to histórico da República de Weimar e do nacionalsocialismo A parte central deste capítulo dedicase aos argumentos políticoconstitucionais centrais de Carl Schmitt destacandose o conceito do político como distinção existencial entre amigo e inimigo a concepção de democracia substantiva fundamentada na igualdade e a institucionalidade constitucional fundada na decisão política da comunidade homogênea Finalmente desenvolvese na última parte a con traposição entre Schmitt e Kelsen Este último autor não será recuperado pelo positivismo jurídico exposto na Teoria Pura do Direito mas pelas suas obras po líticas nas quais sustenta uma concepção de democracia parlamentar Das suas concepções derivamse estruturas constitucionais liberais que foram o alvo da ácida crítica de Carl Schmitt num debate que defi niu os rumos das democracias ocidentais durante todo o século XX 142 Biobibliografia de Carl Schmitt O constitucionalista católico alemão Carl Schmitt representa a conden sação do pensamento jurídico antiliberal do século XX Schmitt nasceu em 11 de julho de 1888 em Plettenberg na Vestfália cidade de maioria protestante Frequentou durante toda sua vida escolas católicas Entrou na Universidade de Berlim para cursar Direito depois de terminados os estudos secundários em 1907 Migrou para a Universidade de Estrasburgo quando em 1910 termina sua graduação com tese fi nal em direito criminal Trabalha como assistente de juiz até 1915 quando se alista na infantaria do exército alemão Incapacitado para as atividades do front por danos físicos sofridos em treinamento foi transferi do para o ComandoMaior de Guerra em Munique na seção responsável pela administração e produção de decretos sobre todas as autoridades civis na Alta Bavária Durante seu serviço em Munique passa a se interessar pela distinção entre estado de guerra estado de sítio e ditadura Schwab 1989 Terminada a guerra Schmitt tornase professor da Escola de Administra ção de Negócios em Munique onde permanece de 1919 a 1922 Durante a dis cussão sobre o parlamentarismo que culminará na Constituição de Weimar de 11 de agosto de 1919 Schmitt publica Romantismo político 1919 Não obstante a complexidade da obra de Schmitt talvez seja possível distinguir seu argumento de fundo como sendo o fracasso do racionalismo moderno expresso no libera lismo Como sugere Carlo Galli 1996 p VIII e s é através deste postulado enunciado em Romantismo político que Schmitt analisa a crise política e institu cional da Alemanha entre 1918 e 1933 Para Schmitt o liberalismo é a expressão do romantismo na esfera política O indivíduo liberal vê a política como uma oportunidade para manifestar o seu juízo subjetivo em debates intermináveis 374 ELSEVIER Curso de Ciência Política sem assumir a responsabilidade pela resolução efi ciente de confl itos reais Insti tucionalmente essa forma política se manifesta na lógica de funcionamento do parlamento contemporâneo local de discussão mas não de decisão política Apesar dessa crítica ao liberalismo Schmitt adere inicialmente à Repú blica liberal de Weimar com infl uência do suporte que o Partido do Centro Católico dá à construção da República A Constituição de Weimar no entanto contém o famoso art 48 dispositivo que autorizava o Presidente num momento de crise e com o consentimento do Parlamento a suspender direitos individuais e a depender da interpretação constitucional a afastar toda a Constituição2 A inspiração para a inclusão desse artigo numa Constituição de corte liberal vinha dos modelos legislativos de estado de guerra de beligerância de emergência ou de comoção intestina como o art 68 da Constituição Imperial prussiana3 Em oposição aos inúmeros limites atribuídos pela clássica legislação liberal do esta do de sítio essa redação confi gurava uma autorização ilimitada para o exercício do poder político Na história republicana alemã de pouco mais de 13 anos os poderes emergenciais do art 48 foram demandados mais de 250 vezes A as sembleia constituinte justifi cou a existência desse artigo apesar da experiência nefasta do estado de guerra Kriegszustand do Império germânico na neces 2 Art 48 Se um estado não cumprir as obrigações colocadas pela Constituição do Reich ou pelas leis do Reich o Presidente do Reich pode obrigar através do uso de força armadaNo caso da segu rança pública ser seriamente ameaçada ou perturbada o Presidente do Reich pode fazer exame das medidas de necessidade para restabelecer a lei e a ordem se necessário usandose força armada Na perseguição deste fi m pode suspender os direitos civis descritos nos artigos 114 115 117 118 123 124 e 154 parcial ou inteiramenteO Presidente do Reich deve informar o Reichstag imediata mente sobre todas as medidas empreendidas que são baseadas nos parágrafos 1 e 2 deste artigo As medidas devem ser suspensas imediatamente se o Reichstag assim exigirSe o perigo for iminente o Governo do Estado pode para seu território específi co implementar as etapas como descrito no parágrafo 2 Estas etapas devem ser suspensas se assim exigido pelo Presidente do Reich ou pelo Reichstag Detalhes adicionais serão fornecidos pela lei do Reich Deutschland Die Verfassung des Deutschen Reichs vom 11 August 1919 Disponível em httpwwwdhmdelemohtmldokumente verfassungindexhtml Acesso em 20 nov 2005 Os artigos referenciados no texto do Art 48 dizem respeito aos direitos fundamentais estabelecidos pela Constituição como os de liberdade Art 114 de inviolabilidade de domicílio Art 115 de privacidade de correspondência Art 117 de liberdade de opinião e ausência de censura Art 118 de reunião Art 123 de associação inclusive religiosa Art 124 e de herança Art 154 3 Art 68 O Kaiser pode se a segurança pública no território federal estiver ameaçada declarar o estado de guerra em qualquer parte dele Até a promulgação de um estatuto imperial regulando as condições a forma de proclamação e os efeitos de tal declaração as provisões que se aplicam são aquelas do estatuto prussiano de 4 de Junho de 1851 Nenhum estatuto imperial foi promulgado e a lei de 1851 fi cou valendo até o fi m do Império Rossiter 1963 p 36 375 Capítulo 14 O Constitucionalismo antiliberal de Carl Schmitt Gisele Silva Araújo Rogerio Dultra dos Santos sidade do tempo O paradigma da atuação constitucional por mecanismos de emergência consolidouse com o Reichspräsident Friedrich Ebert que durante os anos iniciais da República de Weimar seria auxiliado por Carl Schmitt Segundo Franz Neumann em A decadência da democracia alemã 1933 o sis tema constitucional de Weimar conturbado pelos mecanismos de emergência apresentava um equilíbrio tênue entre o liberalismo e o socialismo A Repúbli ca havia constitucionalizado direitos trabalhistas no intuito de abafar as reivin dicações socialistas e comunistas Ao mesmo tempo não se criara um Estado corporativo já que o poder político pertencia exclusivamente ao Parlamento não sendo dividido com sindicatos que também não se subordinavam legalmen te ao Estado A incorporação de direitos sociais na Constituição combinavase portanto com uma estrutura fundamentalmente liberal De acordo com Neu mann essa composição se explica por ter o Reich o objetivo primordial de evi tar o bolchevismo realizando uma aparente trégua na luta de classes Diante de uma situação de estabilidade econômica o capitalismo poderia sustentar o conjunto de direitos sociais reconhecidos na Constituição de 1919 Quando os lucros começaram a escassear o movimento contra a organização social do tra balho intensifi couse O alvo passou a ser o sistema liberalparlamentar que em funcionamento representava a plataforma da emancipação trabalhista Neu mann 1933 p 2943 Para Neumann a equação entre direitos sociais que necessitavam de cons tante regulamentação e um legislativo desenhado nos moldes do liberalismo teve por consequência a autolimitação do Parlamento Este passou a debruçarse ex clusivamente sobre princípios gerais abstendose de suas competências regula mentares quanto aos direitos sociais deixando a sua aplicação para os minis tros Blankettgesetze Neumann 1933 p 354 Um enorme poder foi transferido portanto para instâncias burocráticas vinculadas ao Poder Executivo o que no entender de Neumann fragilizou o controle parlamentar da produção legislativa eliminou a dissidência política dentro do parlamento e deu um status de governo de fato à burocracia Os poderes emergenciais contidos no art 48 da Constituição de Weimar e essa administrativização da política indicam que o desejo por um executivo forte e a demanda por poderes de emergência adequados eram então dois elementos para o mesmo problema Rossiter 1963 p 35 Nesse contexto turbulento de 1922 a 1928 Schmitt tornase professor de Direito na Universidade de Bonn passando em seguida à Universidade de Ber 4 O termo Blankettgesetze signifi ca norma em branco ou seja uma norma que necessita ser preenchida com o conteúdo de outra para adquirir sentido e ter aplicação No caso o Executivo passou a se encarre gar administrativamente do problema alterando o princípio canônico de divisão dos poderes 376 ELSEVIER Curso de Ciência Política lim onde ocupa a cadeira Hugo Preuss o autor da redação fi nal da Constitui ção de Weimar Após a crise da bolsa de valores de 1929 Schmitt passa a traba lhar com Johanes Popitz secretário do ministro das Finanças do Reich Trabalha em casos relativos à declaração de estado de emergência com base no art 48 da Constituição de 1919 Em 1932 sua atuação na remoção do Gabinete Prussiano pelo Presidente do Reich com base naquele artigo o leva ao ofi cialato do Con selho Prussiano de Estado Schwab 1989 p 1316 Como consultor jurídico do Reich Schmitt colaborou praticamente com todos os presidentes desde Ebert até Hitler Em 1933 já inscrito no Partido NacionalSocialista elabora o docu mento jurídico que dá suporte ao golpe de Estado perpetrado por Hitler Desde então Schmitt encabeça o grupo de professores universitários que constituem a Associação de Juristas NacionalSocialistas A republicanização do instituto imperial do estado de comoção intes tina não alcançou a estabilidade econômica demandada pela situação crítica da Alemanha derrotada após a Primeira Guerra Mundial Entretanto com o trans correr dos anos o art 48 da Constituição de Weimar passou a ter como função dar ao Poder Executivo competência legislativa Esse processo de centralização política conseguiu paulatinamente limitar a autonomia dos sindicatos que foram perdendo suas funções originais As lideranças sindicais passaram a representar os trabalhadores em um semnúmero de organismos estatais tornandose poli ticamente fracas e dependentes do Estado Segundo Neumann 1933 p 379 a alternativa impossível era a guerra civil O Decreto de emergência suspendendo indefi nidamente os direitos civis no começo de 1933 foi o fi at constitucional para a instauração de uma ditadura que durou até 1945 Em 1936 por suas ligações antigas com colegas judeus Carl Schmitt sofre perseguição pública da polícia política do regime nazista a Gestapo o que o faz abdicar de suas atividades públicas Passa então a lecionar na Universi dade de Berlim até ser preso pelos russos em 1945 permanecendo por mais de um ano num campo de internação norteamericano nesta mesma cidade Em 1947 é convocado como testemunha no Julgamento de Nuremberg sem sofrer acusações diretas Não retorna mais a Berlim passando a viver nos arredores de Plettenberg a partir de maio de 1947 aí permanecendo recluso até a morte Dentre as mais de 250 obras publicadas por Carl Schmitt destacamse além de Romantismo político de 1919 A ditadura 1921 Teologia política 19221933 A situação históricoespiritual do parlamentarismo contemporâneo 1923 Catolicismo romano e forma política 1924 Teoria da Constituição 1928 O defensor da Constitui ção 1931 Legalidade e legitimidade 1932 O conceito do político 1932 e O nomos da terra 1953 377 Capítulo 14 O Constitucionalismo antiliberal de Carl Schmitt Gisele Silva Araújo Rogerio Dultra dos Santos 143 Liberalismo neutralização e antagonismo político 1431 A modernidade a ordem romântica liberal e a técnica No texto já citado de 1919 Romantismo político Carl Schmitt associa o libe ralismo ao romantismo vendo a ordem política moderna como resultado de um processo de despolitização O sujeito romântico tem a mesma atitude espiritual do sujeito burguês ambos mantém uma relação individualista com o mundo transformandoo em mera ocasião de gozo estético No romantismo o mundo é visto como uma espécie de objeto pessoal e o signifi cado da realidade deriva de uma opção estética individual Transposta para a política esta visão romântica estetiza os confl itos reais e a religião a moral a ciência e a política são tratadas como temas da crítica de arte ou para a produção artística pura e isolada do indivíduo todas as diferenças e contrastes factuais como bem e mal amigo e inimigo Cristo e antiCristo podem se tornar contrastes estéticos e objetos de in triga numa novela e podem ser esteticamente inseridos no efeito de uma obra de arte Schmitt 1998 p 17 Para Schmitt portanto o ocasionalismo5 se transfor ma na atitude fi losófi ca estruturante do liberalismo burguês com consequências práticas na esfera do político Os antagonismos sociais são deslocados de sua realidade concreta e transportados para o mundo imaginário construído pelo sujeito romântico Em razão disso os confl itos políticos representarão apenas uma oportunidade de argumentação entre homens isolados para deleite dos sentidos sem que se pretenda uma decisão efetiva que concretize uma resolução prática O romantismo tende à poetização dos confl itos políticos eliminando qualquer decisão palpável Lessa 2003 p 32 No texto A era das neutralizações e despolitizações 1929 Schmitt expõe as transformações espirituais pelas quais passou a Europa e os fundamentos da civilização construída no século XIX que culminaram com a estetização da po lítica operada pelo liberalismo Para o autor quatro grandes passos seculares caracterizaram a história europeia moderna no século XVI predominou a esfera 5 Para Schmitt a metafísica do movimento romântico caracterizase por sua atitude em relação ao mun do especifi cada pelo conceito desintegrativo de occasio manifesto nas ideias de ocasião oportunidade e chance em contraposição polêmica ao conceito ordenador e normativo de causa que signifi ca a força da causalidade calculável e normativa do mundo Assim seguindo a tradição da fi losofi a de Malebranche para quem o mundo surge como mera ocasião para a manifestação da autoridade divina esta atitude carac teristicamente ocasional pode persistir ao mesmo tempo em que alguma outra coisa tome o lugar de Deus como fator decisivo e autoridade última como por exemplo o Estado o povo ou mesmo o sujeito indivi dual Schmitt 1998 p 18 No caso do romantismo indivíduos isolados tomam o mundo como occasio para a sua manifestação estética Na formulação de Schmitt o romantismo é o ocasionalismo subjetifi cado uma forma secularizada da atitude metafísica do ocasionalismo deísta originário 378 ELSEVIER Curso de Ciência Política teológica o século XVII foi o estágio da metafísica no século XVIII viveuse a época do humanitáriomoral o novecento é fi nalmente o século do estágio econômico6 Os tempos heróicos do racionalismo ocidental estão no século XVII quando as experiências científi conaturalistas se integravam num sistema metafísico O século seguinte é a vulgarização do anterior acometido do mo ralismo kantiano e de um romantismo humanista Este romantismo representa a etapa intermediária do estético entre o moralismo e o economicismo é o caminho mais seguro e mais cômodo para a economização universal da vida es piritual e para uma constituição espiritual que encontra suas categorias centrais da existência humana na produção e no consumo que viria a caracterizar o século XIX Schmitt 1992 p 107109 Desde a passagem do estágio teológico para o metafísico anunciase o telos ou seja o horizonte de sentido do processo de transformação espiritual europeu o destino implícito é a neutralidade No entanto essas etapas em sequência correspondem ao pensamento da elite e outros estratos sociais na mesma sociedade podem estar ligados a diferentes centros espirituais Assim na passagem do século XIX para o século XX as massas saltaram por cima de todas as etapas intermediárias e a crença nos milagres e no além se trans forma logo para elas sem nenhum termo médio numa religião do milagre da técnica das realizações humanas e da dominação da natureza Schmitt 1992 p 110 Na sociedade de massas do século XX a técnica pretende ser o novo centro espiritual e a crença na técnica derivada da crença nos milagres corresponde à ilusão de ter encontrado um solo defi nitivamente neutro A neutralidade teria vencido as eternas lutas em torno de questões teológicas metafísicas morais e mesmo econômicas já que a técnica se apresenta como algo agradavelmente objetivo Schmitt 1992 p 115 sobre o qual e a partir do qual não há desacordo possível Portanto o processo de contínua neutralização do centro espiritual re sulta na crença de que a técnica poderá substituirse como meio de resolução dos desacordos do passado Entretanto a técnica tem limitações intrínsecas sendo incapaz de resolver confl itos em matéria teológica metafísica moral ou econô mica e de decidilos em favor de uma posição qualquer incluindo aí a posição de neutralidade a neutralidade da técnica é algo de diferente da neutralidade de to das as outras esferas até agora A técnica é sempre somente um instru 6 A semelhança com a lei dos três estados de Comte é explicitamente mencionada por Schmitt que entretanto rejeita o seu caráter de lei evolutiva da humanidade ou de fi losofi a da história Schmitt 1992 p 107 379 Capítulo 14 O Constitucionalismo antiliberal de Carl Schmitt Gisele Silva Araújo Rogerio Dultra dos Santos mento e arma e justamente porque ela serve a qualquer um ela não é neutra Da imanência da técnica não brota nenhuma decisão humana e espiritual e menos ainda uma em favor da neutralidade Toda espé cie de cultura cada povo e cada religião cada guerra e cada paz pode se servir da técnica como arma A decisão sobre liberdade e servi dão não está na técnica enquanto técnica Ela pode ser revolucionária e reacionária servir à liberdade e à opressão à centralização e à des centralização De seus princípios e pontos de vista apenas técnicos não resulta nem um questionamento político e nem uma resposta política Schmitt 1992 p 1167 A proposição nuclear do pensamento schmittiano no que respeita à formação da modernidade política é a existência de um processo de secula rização Säkularisierung de conceitos como Deus progresso liberdade Es tado esfera pública Sua concepção de história não é iluminista já que o de senrolar da modernidade configura um processo de redução paulatina da compreensão do mundo Põese ao contrário como um autor decadentista para quem o progresso técnico não fornece à humanidade instrumentos de libertação do mundo mas meios através dos quais o homem perde a ca pacidade de conduzir sua vida de forma autônoma O processo de neutra lização procura conceitos normativos que pretendem ser inquestionáveis porque supostamente dotados de universalidade e necessidade7 O ápice desse processo pretende colocar a técnica como centro espiritual da socie dade moderna e tem como expressão política o romantismo político ou seja o liberalismo O liberalismo é no século XX a expressão política desta infactível pretensão de neutralidade Baseado na crença na neutralidade da técnica o Estado liberal oculta artificialmente as disputas entre interesses e visões de mundo pretendendo que a ação política resulte da pura apli cação da técnica retirando dos homens a visão real de seus conflitos e sua capacidade de decisão 7 Segundo Marramao 1983 o conceito schmittiano de secularização remete à noção de uma trans posição de crenças e modelos de comportamento da esfera religiosa para a secular Schmitt não fala propriamente de transposição Uberschreitzung mas de reocupação Umbesetzung de uma posição funcional embora o termo correto para a construção de sua sociologia dos conceitos presente no seu Teologia política 1922 seja efetivamente o primeiro segundo a interpretação de Galli 1986 p 348 349 e 428429 Assim o conceito não se refere à dessacralização Entzauberung do mundo Weber nem como declínio da religião ruptura da sociedade com a religião ou como mundanização o que re meteria a um processo de racionalização das esferas da cultura já que estariam as mesmas numa relação de emancipação com a esfera religiosa como de resto sugere o termo Säkularisierung Marramao 1983 p 6061 380 ELSEVIER Curso de Ciência Política 1432 O pluralismo de valores e o conceito do político Defi nir que o século XX pretende ter como centro espiritual a técnica signi fi ca noutros termos considerar que a sociedade moderna se estrutura de maneira instrumental desprovida em seu centro de algo capaz de defi nir as respostas polí ticas para confl itos reais Sem uma estrutura central capaz de decidir sobre pra quê servirse da técnica nada e portanto nenhum sistema político Schmitt 1992 p 116 pode ser deduzido da área central da vida espiritual A pretensão do acordo universal com base na técnica não se cumpre e os desacordos teológicos metafísicos morais e econômicos permanecem indecidíveis Diante desse conti nuado pluralismo de valores e sentidos Schmitt 1992 p 119 e da técnica como arma que pode servir a quaisquer valores a afi rmação do século XX como sendo o estágio da técnica é provisória A defi nição do sentido próprio e defi nitivo do século XX continua em aberto e é tarefa especifi camente política O processo da constante neutralização das diversas áreas da vida cul tural chegou ao seu fi m porque ele chegou à técnica A técnica não é mais terreno neutro no sentido daquele processo de neutralização e toda política forte há de se servir dela Só pode ser portanto algo de provisório o concebermos o século atual num sentido espiritual como o século técnico O sentido defi nitivo só se produzirá quando se mos trar qual espécie de política é sufi cientemente forte para se apoderar da nova técnica e quais serão os verdadeiros agrupamentos de amigos e inimigos que crescerão neste novo terreno Schmitt 1992 p 119 A exposição anterior remete diretamente a um dos mais conhecidos textos de Schmitt O conceito do político 1932 Ainda que provisoriamente a técnica colocou se no centro espiritual da sociedade moderna Sendo ela incapaz de fornecer bases racionais para a solução de confl itos persiste um pluralismo de valores gerando an tagonismos de várias naturezas religiosos morais jurídicos e econômicos O sentido selecionado pela sociedade para ocupar o centro de sua vida espiritual será aquele capaz de por sua própria força recriar a unidade por sobre esse pluralismo O po lítico é exatamente essa dotação de unidade existencial a um agrupamento humano amigo estabelecendo a possibilidade limite de um antagonismo real contra um ini migo público O antagonismo especifi camente político então pode estar baseado em quaisquer daqueles confl itos Toda contraposição religiosa moral econômica étni ca ou outra transformase numa contraposição política se tiver força sufi ciente para agrupar objetivamente os homens em amigos e inimigos Schmitt 1992 p 63 Portanto dependendo do grau de intensidade que alcança qualquer con fl ito pode tornarse político e o que lhe dá singularidade é a distinção amigo 381 Capítulo 14 O Constitucionalismo antiliberal de Carl Schmitt Gisele Silva Araújo Rogerio Dultra dos Santos inimigo cuja especifi cidade se defi ne pela relação que mantém com a possibi lidade real de aniquilamento físico Schmitt 1992 p 59 Em outras palavras o agrupamento amigoinimigo é aquele que contém a possibilidade da guerra esta eventualidade excepcional que revela a intensidade do confl ito propria mente político8 Somente esta unidade política formada a partir do mais intenso dos confl itos pode ser a sede da soberania real O político pode extrair sua força dos mais variados setores da vida hu mana de contraposições religiosas econômicas morais e outras Ele não designa um âmbito próprio mas apenas o grau de intensidade de uma associação ou dissociação entre os homens cujos motivos podem ser de cunho religioso nacional no sentido étnico ou cultural econô mico ou outro e que em diferentes épocas provocam diferentes ligações e separações Político em todo caso sempre é o agrupamento que se orienta na perspectiva da eventualidade séria Por isso ele é sempre o agrupamento humano determinante e a unidade política portanto se estiver presente será sempre a unidade normativa e soberana no sentido de que a ela caberá sempre por defi nição resolver o caso deci sivo mesmo que seja um caso excepcional Schmitt 1992 p 64 Na condição de pluralismo de valores a soberania reside na unidade po lítica estabelecida com base no antagonismo amigoinimigo e que forma o agru pamento que decide o confl ito extremo Na sociedade moderna vários agrupa mentos sociais podem existir classes sociais comunidades religiosas sindica tos associações econômicas e profi ssionais grupos nacionais clubes esportivos tornando plurais as fi delidades e obrigações dos indivíduos No entanto o 8 O agrupamento político amigoinimigo se revela na eventualidade da guerra O caráter determinante desta eventualidade não é abolido pelo fato de ser ela algo excepcional porém justamente se fundamenta nisto Podemos dizer que aqui como outrora justamente a eventualidade excepcional tem um sig nifi cado especialmente decisivo e revelador do núcleo da coisa Pois somente no combate real apresenta se a consequência extrema do agrupamento político de amigo e inimigo A partir desta possibilidade extrema é que a vida das pessoas adquire uma tensão especifi camente política Um mundo no qual estivesse completamente afastada e desaparecida a possibilidade de tal confronto um globo terrestre fi nalmente pacifi cado seria um mundo sem distinção entre amigo e inimigo e consequentemente um mundo sem política Poderiam nele existir muitos contrastes talvez muito interessantes concorrências e intrigas de toda sorte mas logicamente não haveria qualquer oposição com base na qual se pudesse pedir das pessoas o sacrifício de suas vidas e se permitisse às pessoas o derramamento de sangue e a morte de outras Também aqui não interessa à determinação conceitual do político se ansiamos ou não por tal mundo sem política como situação ideal O fenômeno do político apenas pode ser compreendido mediante a referência à real possibilidade do agrupamento amigoinimigo independente do que daí decorre para a apreciação religiosa moral estética econômica do político Schmitt 1992 p 61 382 ELSEVIER Curso de Ciência Política agrupamento determinante que decide o caso extremo de confl ito é o Estado9 e qualquer agrupamento que enfrente o Estado tornase não apenas seu con corrente ou opositor mas seu inimigo O Estado não é um agrupamento dentre os outros tantos possíveis na sociedade pluralizada Se ao lado das associações religiosas culturais econômicas e outras os homens ainda formam uma asso ciação estatal isto se dá por causa de seu singular caráter político Na sociedade moderna é ao Estado que cabe conjuntamente a determinação de seus próprios inimigos internos e externos o jus belli o direito da declaração de hostis inimi zade pública e o direito de dispor da vida física dos homens Schmitt 1992 p 74 A unidade política última do Estado se traduz na conexão entre proteção e obediência Referindose a Hobbes Schmitt declara o protego ergo obligo é o cogito ergo sum do Estado Schmitt 1992 p 7810 144 Soberania constituição como decisão e estado de exceção A unidade política confi gurada no Estado a partir do agrupamento ami goinimigo que possui caráter político é portanto a sede da soberania A Teoria do Estado desenvolvida no século XIX defi niu o conceito de soberania como poder supremo não derivado Para Schmitt esta é uma fórmula vazia de sen tido posto que não indica a forma concreta do poder soberano defi nição que decorre de uma lacuna no pensamento jurídico ocidental de origem liberal Para ele a unidade política soberana tem por função concreta a tomada de decisão sobre a reconstituição da ordem soberania que se revela nos casos em que esta mesma ordem é perturbada por uma situação excepcional Portanto toda ordem seja jurídica política seja a segurança e a ordem públicas tem como fun damento uma decisão Entscheidung emanada da unidade política e não uma norma fundamental Dessa forma a única defi nição passível do resgate concreto 9 Em todo caso não se pode imaginar nenhuma instância que tivesse podido ou querido oporse a uma decisão referente ao caso de guerra do governo alemão daquela época sem com isso se tornar ela mesma inimiga política e ser atingida por todas as consequências desse conceito e ao contrário nem a Igreja nem um sindicato se predispunham à guerra civil Isto basta para fundamentar um conceito razoável de soberania e de unidade A unidade política é justamente por essência a unidade determinante indepen dentemente de que forças ela extrai seus últimos motivos psicológicos Ela existe ou não existe Quando ela existe é a unidade suprema isto é aquela que determina o caso decisivo Schmitt 1992 p 689 10 Hobbes designou como a meta propriamente de seu Leviathan expor novamente aos olhos dos ho mens a mutual relation between Protection and Obedience cuja observação inviolável é requerida tanto pela natureza humana quanto pelo direito divino Hobbes experimentou esta verdade nos tempos ruins da guerra civil porque então deixam de existir todas as ilusões legitimistas e normativas com as quais os homens costumam enganar a si mesmos sobre realidades políticas em épocas de segurança imperturbada Schmitt 1992 p 789 383 Capítulo 14 O Constitucionalismo antiliberal de Carl Schmitt Gisele Silva Araújo Rogerio Dultra dos Santos da historicidade do conceito de soberania é É soberano quem decide sobre o estado de exceção Ausnamezustand Os dois termos centrais nessa defi nição de soberania são decisão e exceção Decisão remete ao caráter pessoal da manifestação concreta do poder político confi gurando o que será chamado por Schmitt de fundamento do pensamento jurídicopolítico decisionista Exceção se refere a um estado ou situação Zus tand excepcional e confl itivo não previsto pela ordem jurídica e que se defi ne como um caso de extrema necessidade de perigo para a existência do Es tado ou algo como tal mas que não pode ser circunscrito numa tipifi cação tatbestandsmäβig Schmitt 2001 p 23 e s 30 e s A apreciação do conceito de decisão leva como se verá às defi nições centrais de Schmitt na sua Teoria da Constituição Defi nida a Constituição como Decisão tratarseá de conceituar a situação de exceção na qual se manifesta o Soberano e sua constitucionalização como estado de exceção 1441 Soberania como decisão A própria existência da ordem social e portanto da ordem jurídica pressupõe um ato de decisão constitutiva emanado da unidade política A deci são é para Schmitt a origem e fundamento de toda a fenomenologia do direito Hofmann 1999 p 78 as manifestações concretas do direito só são possíveis o direito só se realiza por emanarem de um ato decisório de caráter pessoal Referindose a Hobbes no livro Sobre os três modos de pensar a ciência jurídica 1934 Schmitt compreende todo direito como um ato do soberano todo direito todas as normas e leis todas as interpretações de leis todas as ordens são para ele essencialmente decisões do soberano e o soberano não é um monarca legítimo ou uma instância competente mas o soberano é exatamente aquele que decide soberanamente Direi to é lei e lei é o comando que decide uma disputa jurídica Auctoritas non veritas facit legem Schmitt 1996b p 29 A decisão representa o surgimento de uma vontade soberana que elimina a desordem existente no estado de natureza através da fundação da ordem es tatal a decisão soberana é o princípio absoluto numa referência a Hobbes uma ditadura estatal criadora estabelecida sobre a insegurança anárquica pré e infraestatal Schmitt 1996b p 31 A decisão é o momento em que o soberano atua efetivamente como um juiz que decide de acordo com a contingência o contexto concreto que informa o caso excepcional A necessidade que tem Ho bbes de compreender os desígnios concretos da realidade social levao como jurista a identifi car a decisão como a forma fundamental da unidade do Estado 384 ELSEVIER Curso de Ciência Política A caracterização da soberania em Schmitt que procura romper com os termos do Estado liberal clássico e portanto escapar do romantismo político aponta igualmente para uma formação específi ca do Estado baseado na decisão da uni dade política soberana Para Carl Schmitt portanto se o direito é necessário como forma do Es tado por excelência a legitimação da ordem política não se dá pela via jurídica a não ser que ela esteja fundada na autoridade existencial da decisão soberana Cumprindo seu papel histórico de neutralização do centro espiritual da socie dade moderna as instituições jurídicas liberais encobrem a realidade última da decisão soberana que funda a ordem política e social Assim estas instituições não têm a capacidade de operar a partir da legitimidade substancial da decisão soberana pretendendo que a soberania seja exercida exclusivamente dentro da ordem jurídica perdendo sua função concreta e essencial de reconstituir esta mesma ordem Informado pela metafísica romântica o liberalismo é a forma po lítica que refuta o espaço soberano da decisão fundamento da ação concreta do homem no mundo É por conta disso que a Teoria do Estado de origem liberal esquece segundo Schmitt de formular um conceito substancial de soberania 1442 Constituição como decisão Em Carl Schmitt não há lugar para ilusões legitimistas no sentido de um fundamento moral ou racional da ordem normativa A ordem social políti ca e jurídica emana de uma decisão e será legítima se provier do agrupamento amigoinimigo que constitui a unidade política Nesta reside o Poder Consti tuinte e a ela cabe a decisão soberana de constituir a ordem Em sua monumen tal obra a Teoria da Constituição 1928 Carl Schmitt distingue três acepções do termo Constituição que guardam total consonância com os postulados expostos até aqui o conceito absoluto o conceito relativo e o conceito positivo Em sentido absoluto Constituição designa a unidade concreta de um agrupamento humano e é resultado das forças ativas e reais da sociedade11 Em sentido rela tivo o que se tem não é propriamente a Constituição mas um conjunto de Leis 11 Há três signifi cações oferecidas por Carl Schmitt para Constituição em sentido absoluto 1 a con creta maneira de ser resultante de qualquer unidade política existente 2 uma maneira especial de ordenação política e social Constituição signifi ca aqui o modo concreto da supra e subordinação Constituição é a forma especial de domínio que afeta a cada Estado e neste caso o Estado é a Cons tituição como o Estado é Monarquia é Aristocracia ou é Democracia e 3 é o princípio do devenir dinâmico da unidade política Dos distintos interesses contrapostos opiniões e tendências deve formarse diariamente a unidade política integrarse segundo a expressão de Rudolf Smend Sch mitt 1932 p 46 385 Capítulo 14 O Constitucionalismo antiliberal de Carl Schmitt Gisele Silva Araújo Rogerio Dultra dos Santos Constitucionais particulares que não apresenta unidade a partir de si mesmo Mesmo a constitucionalidade de tal ou qual lei só pode ser determinada a partir de uma unidade exógena e anterior12 Entre a constituição real da sociedade sentido absoluto e o conjunto de leis constitucionais sentido relativo situase a Consti tuição em sentido positivo A Constituição em sentido positivo surge mediante um ato do poder constituinte Este ato constitui a forma e modo da unidade políti ca cuja existência é anterior Não é pois que a unidade política surja porque se haja dado uma Constituição A Constituição em sentido positivo contém somente a determinação consciente da concreta forma de conjunto pela qual se pronuncia ou decide a unidade política Sch mitt 1932 p 24 A Constituição positiva é portanto uma decisão consciente tomada pela unidade política preexistente titular do Poder Constituinte que defi ne a sua forma e seu modo de união A Constituição não retira a unidade de si mesma e não é válida em virtude de sua justiça normativa ou de sua ordenação siste mática A essência da Constituição não está contida numa lei ou numa norma No fundo de toda normatização reside uma decisão política do titular do poder constituinte quer dizer do Povo na Democracia e do Monarca na Monarquia autêntica Schmitt 1932 p 27 Para Carl Schmitt há duas classes de legitimi dade a dinástica e a democrática correspondendo respectivamente à unidade política do Príncipe e do Povo13 A legitimidade dinástica está baseada na au toridade de uma família e se constitui através da continuidade da dinastia e da sucessão hereditária A legitimidade democrática se baseia na concepção de que o Estado é a unidade política do Povo Num e noutro caso a Constituição em sentido absoluto isto é a unidade política precede a Constituição positiva e as leis constitucionais Numa democracia o povo tem que existir e ser suposto 12 A relativização do conceito de Constituição consiste em que em lugar de fi xarse o conceito unitá rio de Constituição como um todo se fi xa somente o de lei constitucional concreta mas o conceito de lei constitucional se fi xa segundo características externas e acessórias chamadas formais Schmitt 1932 p 13 Sejam leis esparsas seja uma Constituição escrita não se fala aqui de Constituição unitária ou em sentido absoluto Schmitt também rejeita o conceito de Jellinek de que são constitucionais as leis que têm um procedimento de reforma difi cultado porque pelo procedimento de reforma não pode defi nir se a essência do objeto reformado Uma reforma constitucional feita constitucionalmente depende do ponto de vista lógico e cronológico da Constituição Schmitt 1932 p 23 Daí que as leis constitucio nais devem retirar sua unidade da Constituição em sentido absoluto ou da Constituição positiva 13 Somente se pode falar de legitimidade de uma Constituição por razões históricas e sempre sob o ponto de vista da distinção entre legitimidade dinástica e democrática Schmitt 1932 p 101 386 ELSEVIER Curso de Ciência Política como unidade política se há de ser sujeito de um Poder Constituinte Schmitt 1932 p 70 A Constituição positiva ou seja a Constituição como decisão não é uma soma de prescrições particulares reformáveis como as leis constitucionais ou os diversos artigos que compõem as Constituições escritas Enquanto as Leis Cons titucionais podem ser suspensas durante o estado de exceção a Constituição positiva é intangível somente podendo ser revogada pela via revolucionária transformandose a própria unidade política concreta do agrupamento humano O fundamento de legitimidade da Constituição é portanto a unidade política concreta que a precede Uma Constituição é legítima isto é reconhecida não somente como situação de fato mas também como ordenação jurídica quando a força e autoridade do Poder constituinte em que descansa sua decisão é reconhecida A decisão política adotada sobre o modo e forma da exis tência estatal que integra a substância da Constituição é válida por que a unidade política de cuja Constituição se trata existe e o sujeito do Poder constituinte pode fi xar o modo e forma dessa existência Não necessita justifi carse numa norma ética ou jurídica tem seu sentido na existência política Uma norma não seria adequada a fundar nada aqui O especial modo da existência política não necessita e nem pode ser legitimado Schmitt 1932 p 101 1443 Soberania e estado de exceção Defi nida a soberania como a decisão que reconstitui a ordem e a Cons tituição positiva como a decisão de autoconstituição que emana da unidade po lítica preexistente resta esmiuçar o segundo termo do conceito de soberania o estado de exceção Na parte 1432 deste capítulo observouse que o caráter distin tivo do agrupamento político amigoinimigo reside na eventualidade da guerra que permanece possível ainda que como uma situação excepcional Além disso é neste momento da eventualidade excepcional que se revela a intensidade do confl i to propriamente político e tornase evidente a unidade política soberana Tanto o reconhecimento da existência da situação excepcional concreta como a ação levada a cabo para reconstituir a normalidade jurídica e social são atributos es pecífi cos do Soberano Para Giorgio Agamben no livro Estado de exceção 2003 a soberania schmittiana tem como escopo regular ou reinstalar a ordem jurídica numa situação de desordem somente mensurada de forma objetiva pelo próprio soberano Agamben 2003 p 9 387 Capítulo 14 O Constitucionalismo antiliberal de Carl Schmitt Gisele Silva Araújo Rogerio Dultra dos Santos Soberania é portanto decisão numa situação de exceção Ora nesse sentido regular juridicamente a soberania equivale a juridicizar a situação de exceção No entanto tal situação não é passível de circunscrição jurídica isto é não permite a defi nição de casos típicos de exceção que possam ser previstos em lei Segundo Schmitt a abordagem jurídica tradicional é limitada diferente do conceito de estado de sítio ou de estado de emergência previsto pela ordem jurídica liberal o estado de exceção é um caso histórico e somente pode ser identifi cado na prática O problema é como dotar de defi nição objetiva uma situação concreta que só pode ser mensurada subjetivamente É no conceito de estado de necessidade que Schmitt reconhece a substância do estado de exceção O estado de necessidade defi ne uma situação especial onde a lei perde o seu caráter obrigatório Tal situação se torna ela própria o fundamento último e a fonte mesma da lei pois tem o poder geral de justifi car uma ação inicial mente ilícita transformandoa em algo permitido pelo direito A teoria medieval do Estado sustentava que a necessidade age aqui como uma justifi cação de uma transgressão em um único e específi co caso através de uma exceção Mas é somente nos autores do fi nal do século XIX e início do século XX que a ideia de necessidade vai receber o signifi cado de um estado da lei onde deixa de sig nifi car uma situação isolada e singular de não obrigatoriedade da lei e se reveste efetivamente de fundamento da ordem jurídica O motivo dessa transformação segundo Agamben é que os juristas de Jellinek a Duguit vêem na necessidade o fundamento de validade dos decretos com força de lei emanados pelo execu tivo no estado de exceção Agamben 2003 p 357 O estado de exceção deve portanto permitir a suspensão de toda a ordem jurídica vigente identifi cando concretamente a própria existência do Estado a fi m de preserválo Para Schmitt dada a sua excepcionalidade e sua impossibi lidade de tipifi cação só se pode indicar juridicamente a quem é permitido agir em tal circunstância Se esta ação não está submetida a nenhum controle se não se distribui como na prática da Constituição fundada no Estado de Direito entre diversas instâncias que se limitam e se equilibram mutuamente então é evidentemente claro quem é o soberano Ele decide tanto so bre o caso de exceção extrema como sobre o que deve ser feito para remediálo Ele se situa fora da ordem jurídica vigente e contudo per tence a ela pois é responsável pela decisão de se a Constituição pode suspenderse in toto Todas as tendências do desenvolvimento do mo derno Estado de Direito apontam o eliminar do soberano neste sentido Schmitt 2001 p 24 388 ELSEVIER Curso de Ciência Política A determinação das circunstâncias em que o estado de necessidade e o de exceção está confi rmado depende portanto de uma decisão de caráter pessoal que cabe ao Soberano A decisão que reconhece e declara o estado de exceção entretanto não é somente política mas se recobre de um sentido jurídico já que funciona como elemento criador de condições concretas de normalidade essenciais para que qualquer ordenamento jurídico possa ter validade O esta belecimento desta situação de ordem das condições de vida demonstra quem é o soberano O caso de exceção revela a essência da autoridade estatal da maneira mais clara Nele a decisão se separa da norma jurídica e em uma formulação paradoxal a autoridade demonstra que não necessita ter direito para criar direi to Schmitt 2001 p 28 Daí que a unidade política soberana se revele nestas si tuações de exceção o normal não demonstra nada a exceção demonstra tudo Schmitt 2001 p 29 É através do estado de exceção que se exerce a soberania suspendese toda a ordem jurídica com a fi nalidade de reconstituíla As teorias do Estado liberais repudiam esta ideia porque ela expõe a decisão inevitável que sustenta toda a normalidade constitucional O Estado de Direito ao dividir as compe tências e instaurar o mútuo controle procura adiar hinauszuschieben a questão da soberania o máximo possível Schmitt 2001 p 2627 O processo de secula rização cuja forma política é o liberalismo se apoia na pretensão de neutralida de da técnica e pretende afastar a soberania como decisão No entanto se a téc nica não institui nem o consenso valorativo nem a neutralidade e o Moderno é inaugurado por uma catástrofe de paradigmas a soberania decisionística não a mediação é o modo politicamente adequado de arbitrálo Galli 1996 p 353 145 Democracia substantiva e cesarismo a crítica à representação parlamentar Os vários conceitos de Carl Schmitt analisados até aqui confi guram um ar cabouço teórico vigoroso para sua crítica ao liberalismo em particular à pretensão de legitimidade democrática que reside no instituto da representação parlamentar Viuse que a unidade política concreta é o Soberano ou seja quem decide sobre o estado de exceção A legitimidade da ordem normativa consiste então na corres pondência entre a ordem e a unidade política préexistente titular da soberania Nas sociedades em que o Príncipe é a unidade política a ordem normativa que dele emana possui legitimidade dinástica Nas sociedades modernas em que o Estado pre tende ter legitimidade democrática o povo tem que existir e ser suposto como uni dade política se há de ser sujeito de um Poder Constituinte Schmitt 1932 p 70 Numa democracia portanto se o povo deve ser o Soberano ele deve constituir uma 389 Capítulo 14 O Constitucionalismo antiliberal de Carl Schmitt Gisele Silva Araújo Rogerio Dultra dos Santos unidade política preexistente deve ser o titular do Poder Constituinte e deve decidir sobre o estado de exceção Assim o Estado somente será democrático se suas decisões representarem efetivamente a vontade do povo No livro A situação históricoespiritual do parlamentarismo contemporâneo 1923 Schmitt argumenta que com o surgimento das democracias de massa em meados do século XIX o sistema representativo instituído através do Parlamento tornouse incapaz de produzir a legitimidade democrática a partir da relação entre eleitores e parlamentares Schmitt 1996a O direito de voto proporcional inaugura o princípio segundo o qual os parlamentares representam todo o povo decidindo conforme suas próprias consciências sem se submeterem à vontade dos eleitores Para Schmitt isto suprime a legitimidade de um sistema que foi intelectualmente construído para estabelecer o vínculo direto agora impossível nas sociedades de massa entre eleitor e parlamentar Este vínculo que tem por objetivo realizar a identidade entre o Estado e o povo esbarra na organização do sistema eleitoral inadequado para fazer valer uma vontade popular concreta não manipulável nem parcial ou elitista Sch mitt 1996a A discussão e a publicidade que seriam os princípios legitimadores dos parlamentos europeus perderam a credibilidade Os parlamentos do mundo atual vinculados a uma democracia repre sentativa de massas caracterizarseiam pelo deslocamento inclusive físico do centro de decisão dos plenários para os gabinetes do espaço público e da discussão racional para o espaço das negociações secretas e oportunistas de interesses econômicos À crítica ao sistema parlamentar como um todo Schmitt acrescenta a cota de responsabilidade dos partidos que hoje já não se enfrentam como opiniões em discussão diskutierende Mei nungen mas sim como poderosos grupos de poder social ou econômi co calculando os múltiplos interesses e suas possibilidades de alcançar o poder e realizando a partir desta base fática compromissos e coali zões As massas são conquistadas através de um aparato de propagan da cujos melhores resultados estão baseados em um apelo às paixões e aos interesses imediatos Schmitt 1996a p 9 A Realpolitik resultante não assume seus pressupostos e a realização da democracia liberal que deveria signifi car consenso e aceitação transformase em um instrumento prático e técnico completamente distanciado de um funda mento democrático a crença no parlamentarismo num government by discus sion pertence ao mundo intelectual do liberalismo Não pertence à democracia Assim se o parlamentarismo não é naturalmente um instrumento da democra cia mas sim do liberalismo o princípio representativo tornase inviável e sem sentido Tentar encontrar um novo princípio para a legitimação do parlamento 390 ELSEVIER Curso de Ciência Política como locus específi co de elites políticas especialmente selecionadas para o de sempenho público é não perceber a nova e desprezível verachteten confi guração de uma classe dirigente voltada exclusivamente para suas desprezíveis negociatas Schmitt 1996a p 11 Para se chegar à identifi cação de uma verdadeira demo cracia liberalismo e democracia devem ser separados para que se reconheça a estrutura heterogênea que constitui a moderna democracia de massas Schmitt 1996a p 12 Para Carl Schmitt se as decisões do Estado democrático devem ser as de cisões da unidade política do povo a democracia depende de um princípio de identidade entre Povo e Estado que se expressa de modo mais puro no modelo da democracia direta de Rousseau Assim o exercício da democracia deve pro curar sua origem moderna naquilo que há de mais profundo na proposta rous seauniana ou seja na essência do conceito da volonté générale segundo a qual é a homogeneidade que conduz à unanimidade da vontade gerando identidade entre governantes e governados Portanto dentre os princípios da liberdade e da igualdade somente este último pode valer como princípio democrático Sch mitt 1932 p 261 A liberdade não é um princípio políticoformal mas princípio liberal que designa uma esfera de não interferência do Estado Também não é qualquer igualdade geral adequada como princípio democrático14 A igualda de democrática se dirige ao interior do Estado onde todos são iguais no per tencimento a um determinado povo e distintos dos estrangeiros A igualdade perante a lei igualdade de sufrágio igualdade de acesso a cargos etc são casos de aplicação da essência da igualdade democrática A igualdade democrática é pois uma igualdade substancial Todos os cidadãos podem ser tratados como iguais ter igualdade frente ao sufrágio etc porque participam dessa substân cia Schmitt 1932 p 265 Democracia portanto não corresponde a um método para a seleção de governantes como na democracia procedimental do liberalismo mas à democracia substancial que se traduz na reiteração contínua da unidade política do povo O núcleo da democracia tendose afastado o liberalismo que confundia seus pressupostos é a homogeneidade política substancial deri vada da igualdade como manifestação institucional de uma organização social determinada 14 Do fato de que todos os homens são homens não pode deduzir nada específi co nem a religião nem a moral nem a política nem a economia A distinção econômica entre produtor e consumidor por exemplo ou a distinção jurídica entre credor e devedor não podem aclararse naturalmente pelo fato de que tanto o produtor como o consumidor tanto o credor como o devedor sejam homens A ideia de igualdade humana não contém um critério nem jurídico nem político nem econômico Sua signifi cação para a Teoria Constitucional estriba em que corresponde ao individualismo liberal e está a serviço do princípio dos direitos fundamentais Schmitt 1932 p 263 391 Capítulo 14 O Constitucionalismo antiliberal de Carl Schmitt Gisele Silva Araújo Rogerio Dultra dos Santos Igualdade é portanto homogeneidade do povo e a substância que constitui a igualdade democrática pode ter várias manifestações históricas como a religião a virtude cívica e a partir do século XIX a nacionalidade com a consequente cons tituição do Estado nacional Schmitt 1996a p 16 Diante da heterogeneidade da sociedade moderna o Estado democrático defi nese pela permanente fi nalidade da homogeneização garantindo a igualdade substancial concreta da sociedade que é condição para a continuidade da unidade política do povo e portanto para a legitimidade democrática Para Schmitt inclusive a força política de uma de mocracia se evidencia em saber remover ou afastar o estranho e o diferente o que ameaça a homogeneidade Tal tarefa pode ser conduzida pela paulatina assimi lação pacífi ca como a proteção de minorias nacionais dentro da Nação15 ou pela eliminação da população heterogênea através de opressão ou expulsão Em Sch mitt portanto democracia baseiase na ideia de um povo situado concretamente no tempo e no espaço comunidade nacional capaz de manifestar politica mente a sua vontade concepção que entra em choque com a fórmula universalista e racional do liberalismo Galli 1996 p 538 No entanto mesmo na defi nição rousseauniana de democracia baseada na igualdade substancial do povo não há negação absoluta da representação já que o corpo de cidadãos não abarca todo o povo presente e futuro mas so mente os membros adultos do povo num determinado momento Para fi xar seu conceito de democracia Schmitt valese de dois princípios políticoformais que estruturam os modos de participação do povo numa democracia identidade e representação o povo pode alcançar e manter de dois modos distintos a situação da unidade política Pode ser capaz de atuação política já em sua realida de imediata por virtude de uma homogeneidade forte e consciente em consequência de fi rmes fronteiras naturais ou por quaisquer outras razões e então é uma unidade política como magnitude real atual em sua identidade imediata consigo mesma O princípio contraposto parte da ideia de que a unidade política do povo como tal nunca pode 15 A proteção internacional das minorias hoje existente trata de garantir um caminho pacífi co para a homogeneização Com ela não se protege como Nação à minoria nacional como Nação não pode ter direitos políticos frente à Nação dominante porque então se suprimiria com o princípio da nacionalida de o princípio democrático mesmo A atual regulação internacional da proteção das minorias nacionais se encontra melhor enfocada como proteção dos direitos individuais dos homens em particular a quem se garante como indivíduos igualdade liberdade propriedade e o emprego de sua língua materna Isto responde ao pensamento de introduzir por caminhos pacífi cos a homogeneidade nacional e com ela o suposto da Democracia Schmitt 1932 p 269 392 ELSEVIER Curso de Ciência Política acharse presente em identidade real e por isso tem que estar sempre representada pessoalmente por homens Schmitt 1932 p 23716 Assim não há Estado sem representação Schmitt 1932 p 239 e o grau de identidade e representação numa democracia será determinado pelo grau de ho mogeneidade e heterogeneidade da unidade política A democracia é uma forma política que corresponde ao princípio da identidade querse dizer identidade do povo em sua existência concreta consigo mesmo como unidade política O povo é o portador do Poder constituinte e se dá a si mesmo uma Constituição Schmitt 1932 p 259 Aplicado o princípio da identidade graças a um máximo de homoge neidade natural ou historicamente dada temse a tendência a um mínimo de gover no onde o povo dotado da aptidão para distinguir entre amigo e inimigo pratica imediatamente a resolução dos assuntos políticos sem discussão Ao contrário uma sociedade bastante heterogênea que reúne em unidade política grupos humanos distintos em termos nacionais confessionais ou de classe exige um máximo de re presentação e um máximo de governo O extremo desta situação entretanto acarreta o perigo de ser ignorado o sujeito da unidade política uma res populi sin populus Schmitt 1932 p 249 Defi nida como tal a democracia tem como paradoxo a exigência de que o povo decida sobre questões fundamentais de sua organização sem ser um corpo or ganizado e na sociedade moderna apresentando grande heterogeneidade interna Assim mesmo mantendo a homogeneidade substancial da unidade política que confere legitimidade democrática ao Estado há de se ter algum grau de represen tação A condição para que a representação não institua uma res populi sin populus é a efetiva manifestação da vontade do povo A vontade popular concreta que não se realiza pela representação parlamentar pode ser identifi cada através da manifes tação simples e imediata da massa através da aclamação popular Zuruf acclamatio ou por um indivíduo que encarne esta vontade Schmitt 1996a Assim embora o procedimento eleitoral seja o método mais difundido para fi xar a representação para Schmitt a forma natural da manifestação imediata da vontade do povo é a voz de assentimento ou repulsa da multidão reunida a aclamação Schmitt 1932 p 96 Por isso é um erro antidemocrático ter por norma absoluta e defi nitiva da Demo cracia estes métodos do século XIX Schmitt 1932 p 96 16 A representação em Carl Schmitt é um fenômeno exclusivamente público e consiste em fazer per ceptível e atualizar um ser imperceptível mediante um ser de presença pública Schmitt 1932 p 242 Portanto não tem caráter normativo e nem procedimental mas sim existencial A unidade política é representada como um todo e o representante é independente posto que não é funcionário nem agente nem comissário mas é a expressão pública do que estava imperceptível 393 Capítulo 14 O Constitucionalismo antiliberal de Carl Schmitt Gisele Silva Araújo Rogerio Dultra dos Santos A democracia plebiscitária aparece então como a forma adequada de ma nifestação e expressão vitais da volonté générale realização daquele princípio da identidade como já dito identidade do povo em sua existência concreta consigo mesmo como unidade política A volonté générale uma vez realizada na aclamação representa o poder constituinte exercitandose publicamente em contraposição di reta com a forma vazia e artifi cial do voto individual secreto privado e escrutinado que mantém a irresponsabilidade anônima de uma computação aritmética da repre sentação indireta Schmitt 1996a p 22 Fiel a este princípio de identidaderepre sentação pela aclamação a guarda da Constituição tornase atributo daquele que é o povo em ação o chefe do executivo que encarna o Soberano Schmitt se vincula assim ao cesarismo como forma política por excelência um Estado ditatorial centra do na fi gura mítica do Líder que necessita legitimarse pela mobilização emocional das massas e resolve por cima as tensões sociais em movimento No entanto na sua armação teórica é essa confi guração de Estado ditatorial que consegue concreti zar o princípio de legitimidade verdadeiramente democrático A partir desta análise da representação e da democracia é possível pon tuar as conclusões lógicas dos conceitos de Carl Schmitt a a democracia não se confunde com o liberalismo por consistir não em igualdade formal mas em igualdade substancial homogeneidade b na modernidade a democracia de massas pode realizarse sem utilizar o sistema de representação parlamentar vinculandose a um princípio de identidade entre representantes e represen tados e especialmente c um Estado antiliberal organizado como uma di tadura não é necessariamente antidemocrático porque funciona através da identifi cação da vontade do povo e da homogeneidade política Nesse sentido é possível sustentar diz Schmitt a legitimidade democrática da ditadura Sch mitt 1996a p 22 146 Considerações finais Schmitt e Kelsen Notase a partir do panorama aqui exposto que o processo de seculariza ção do qual resulta a sociedade moderna é uma das teses fundamentais de Carl Schmitt Quando o século XX faz da técnica o seu centro espiritual e diante da sua infactível pretensão de neutralidade o sentido próprio desse século torna se franqueado às múltiplas possibilidades de confi guração do agrupamento amigoinimigo A ideia de que a sociedade moderna é oriunda de um processo de racionalização que culmina num pluralismo de valores é compartilhada por Schmitt com um de seus maiores interlocutores senão o maior o jurista austríaco Hans Kelsen A semelhança não é por acaso ambos são oriundos da mesma matriz do pensamento germânico e recebem infl uência da teoria da mo 394 ELSEVIER Curso de Ciência Política dernização e da teoria do Estado do sociólogo alemão Max Weber 18641920 Para os três autores a ciência e a técnica não são capazes de produzir verdades no que se refere às decisões axiológicas isto é relativas a valores que guiam em última instância a ação humana Apesar desta percepção comum Schmitt e Kel sen derivarão daí proposições diametralmente opostas Kelsen fi cou conhecido principalmente pelo positivismo jurídico exposto na sua Teoria Pura do Direito publicada pela primeira vez em 1934 e em segunda e defi nitiva edição em 1960 No entanto sua defesa do liberalismo da represen tação parlamentar e da democracia procedimental está exposta principalmente nos textos sobre democracia que vão de 1923 a 1955 publicados esparsamente e reunidos nos volumes Escritos sobre la democracia y el socialismo 1988 e A demo cracia 1993 Partindo também da afi rmação de que a sociedade moderna encer ra um pluralismo de valores e de que juízos éticos não são passíveis de determi nação técnica ou científi ca Kelsen distingue as autocracias das democracias em função da possibilidade de afi rmação última de um valor Nas sociedades em que prevalece um valor absoluto seja de base metafísica ou religiosa a autori dade que o personifi ca profere juízos de valor que têm pretensão de universa lidade A autoridade tem então legitimidade para impor o valor absoluto como norma deontológica17 confi gurando uma autocracia Kelsen 1988 p 228 Ao contrário nas sociedades em que há pluralismo de valores os vários e distintos juízos de valor são equivalentes entre si nenhum podendo se impor aos demais A democracia que em Carl Schmitt remete à igualdade substancial em Kelsen se refere à liberdade de julgamento fundada na equivalência e relatividade dos juízos de valor Kelsen como Schmitt recorre à teoria de Rousseau No entanto enquan to Schmitt recupera do autor genebrino a noção de democracia como igualda de substantiva Kelsen busca o conceito de liberdade civil para fundamentar seu conceito de democracia Numa sociedade em que se apresenta o pluralismo de valores a liberdade civil consiste na formação de um ordenamento normativo onde os destinatários são igualmente os próprios autores das normas baseado na igual possibilidade de todos manifestarem sua opinião18 Para Kelsen a au 17 As normas jurídicas sendo atos de vontade que estabelecem um dever ser são expressões de valores preferidos Uma norma quer dizer a expressão da ideia de que algo deve ser constitui um valor Kel sen 1988 p 231 18 Se a sociedade em geral e o Estado em particular devem ser possíveis deve ser válido um ordena mento normativo que regule o comportamento mútuo dos homens e em consequência deve aceitarse o domínio do homem sobre o homem por meio de tal ordenamento Não obstante se o domínio é inevitável se não podemos deixar de estar dominados queremos ser dominados por nós mesmos A li 395 Capítulo 14 O Constitucionalismo antiliberal de Carl Schmitt Gisele Silva Araújo Rogerio Dultra dos Santos tocracia se baseia numa desigualdade fundamental que confere a uma pessoa família ou grupo a autoridade legítima para decidir sobre o ordenamento nor mativo A democracia por sua vez corresponderia ao pluralismo de valores e à igualdade formal equivalência de juízos de valor pois consistiria essencial mente num método para a decisão coletiva acerca de quais normas e portanto valores devem ser impostos à coletividade A liberdade garantida pela demo cracia é portanto a liberdade civil de Rousseau ou seja a autonomia pública e não as liberdades negativas dos modernos caracterizadas por direitos individuais invioláveis pelo Estado Nesse sentido a democracia é essencialmente procedi mento de autodeterminação19 deve considerarse a participação no governo quer dizer na criação e na aplicação das normas gerais e individuais do ordenamento social que constituem a comunidade como a característica essencial da de mocracia O fato desta participação ser direta ou indireta quer dizer que a democracia seja direta ou representativa não afeta a que a demo cracia seja em todo caso uma questão de procedimento de um método específi co de criação e aplicação do ordenamento social que constitui a comunidade este é o critério distintivo desse sistema político ao qual se chama propriamente democracia A democracia não é um conteúdo específi co do ordenamento social salvo na medida em que o proce dimento em questão é ele mesmo um conteúdo desse ordenamento quer dizer um conteúdo regulado por este ordenamento Kelsen 1988 p 210 Como se vê à diferença de Carl Schmitt Kelsen afastou a concepção rousseauniana de vontade geral como igualdade substancial compartilhada pela unidade política A liberdade civil como fundamento da democracia implica a afi rmação do princípio da maioria para o estabelecimento de uma ordem nor mativa ou seja da vontade de todos Para que a vontade de todos não represente o absolutismo da maioria Kelsen recupera o princípio liberal da defesa das liberda des negativas como corolário inafastável da democracia Para Kelsen a demo cracia moderna não pode separarse do liberalismo político já que a liberdade de pôr em discussão os valores plurais da sociedade democracia exige que certas esferas de interesses do indivíduo sejam protegidas por lei como di berdade natural se transforma em liberdade social ou política Ser livre social ou politicamente signifi ca certamente estar sujeito a um ordenamento normativo signifi ca liberdade subordinada à lei social Mas signifi ca estar sujeitos não a uma vontade alheia senão à própria a um ordenamento normativo e a uma lei em cujo estabelecimento o sujeito participa Kelsen 1988 p 231 19 Notese a semelhança desta defi nição de democracia como autonomia e como procedimento com a que será defi nida e defendida algumas décadas depois por Jurgen Habermas 396 ELSEVIER Curso de Ciência Política reitos ou liberdades humanas fundamentais liberalismo para salvaguardar as minorias contra o domínio arbitrário das maiorias Kelsen 1988 p 243 Dessa forma a democracia se distingue fundamentalmente da autocracia já que apesar de impor uma ordem normativa baseada na decisão da maioria tolera a oposição preserva a liberdade de opinião e forma a ordem normativa mediante discussão e compromisso20 Democracia como liberdade positiva e liberalismo como liberdade nega tiva se harmonizam nos conceitos constitucionais de Kelsen Se Constituição lei regulamento ato administrativo e sentença ato de execução são simples mente os estados típicos da formação da vontade coletiva no Estado moderno Kelsen 1988 p 110 eles são simultaneamente atos de limitação dessa mesma vontade A Constituição democrática reúne a soberania popular e os direitos indivi duais a autonomia pública e a autonomia privada Como expressão da soberania popular a Constituição é obra dos representantes do povo acolhidos no poder legislativo Como limitação da soberania popular a Constituição vin cula os atos legislativos e executivos inferiores aos limites por ela postos que guardam os direitos das minorias Daí que a Constituição se for democrática não seja somente um conjunto de regras sobre os órgãos e os procedimentos da legislação mas também um catálogo de direitos fundamentais dos indiví duos ou liberdades individuais Kelsen 1988 p 115 Dessa forma a garantia da constitucionalidade não pode estar confi ada ao legislativo ou ao executivo exigindo a independência da jurisdição constitucional Ao assegurar a elaboração constitucional das leis e em particular sua constitucionalidade material a justiça constitucional é um meio efi caz de proteção da minoria contra os abusos da maioria A dominação des ta última somente é suportável se é exercida de forma regular Se se considera que a essência da democracia se acha não na onipotência da maioria mas no compromisso constante entre os grupos representados no Parlamento pela maioria e pela minoria e como consequência disso na paz social a justiça constitucional aparece como um meio particular mente idôneo para fazer efetiva esta ideia Kelsen 1988 p 152 Kelsen e Schmitt portanto não são opostos quanto à concepção da socie dade a eles contemporânea Para ambos o processo de racionalização que con 20 Dado que os princípios de liberdade e igualdade tendem a uma minimização do poder a democracia não pode constituir um poder absoluto e nem sequer um poder absoluto da maioria O poder da maioria do povo se distingue de qualquer outro não somente porque por defi nição implica uma oposição quer dizer uma minoria mas também porque politicamente reconhece a existência da mesma e protege seus direitos Kelsen 1988 p 242 397 Capítulo 14 O Constitucionalismo antiliberal de Carl Schmitt Gisele Silva Araújo Rogerio Dultra dos Santos fi gura a sociedade moderna não substitui a teologia e a metafísica na defi nição unitária dos valores sociais Os valores a partir dos quais se defi ne a ordem normativa da sociedade tornaramse matéria de apreciação subjetiva e foram portanto pluralizados em juízos de valor incomensuráveis entre si A conse quência para ambos os autores é que o relativismo moral e o confl ito de valores são inevitáveis Relativismo moral e decisão política sobre os valores que devem predominar são elementos comuns em suas teorias Entretanto a partir desta concepção sociológica comum as teorias de Kelsen e Schmitt assumem direções opostas Para o autor austríaco dado o fato da pluralidade de valores na sociedade moderna a construção de uma ordem normativa só pode ser feita de maneira legítima através da democracia como procedimento método adequado para se lecionar os valores que assumirão caráter deontológico Kelsen reúne liberdade positiva e igualdade formal respectivamente como princípios da democracia e do liberalismo e afi rma sua indissociabilidade O resultado é uma democracia procedimental com proteção aos direitos individuais A democracia procedimen tal em Kelsen é a mediação adequada entre valores plurais e normas unitárias Carl Schmitt ao contrário associa o princípio da igualdade substancial como homogeneidade à democracia Neste sentido embora conceda que as Consti tuições modernas que organizam o Estado Democrático de Direito combinam os princípios da democracia e do liberalismo eles não são indissociáveis Se o Estado moderno há de ser democrático a vontade do povo deve manifestar qual o valor que lhe constitui como unidade política e através dessa afi rmação deve poder realizar sua decisão soberana Dessa forma Schmitt rejeita a pretensão de neutralidade normativa dos ordenamentos liberais que acomoda identidades plurais e destitui o Estado moderno da legitimidade baseada na unidade política do povo em torno de um valor democraticamente identifi cado Os problemas do Estado burguês de direito levantados por Schmitt e de batidos duramente com Kelsen defi niram a forma e a dinâmica das organizações políticas nacionais contemporâneas Se em Kelsen o Ocidente pretendeu encon trar a resposta para a ordem democrática procedimental em Schmitt cristaliza se uma crítica ainda hoje pertinente à representação parlamentar de natureza liberal A complexifi cação das sociedades de massa tornou o parlamento pouco representativo se não nada representativo da vontade do povo falsean do portanto os ideais democráticos Ademais se a efetividade da representação parlamentar depende da discussão pública baseada na igualdade e na liberdade de opinião é preciso que se demonstre ainda hoje quais são os mecanismos que impedem a prevalência dos interesses dos mais fortes notadamente os in 398 ELSEVIER Curso de Ciência Política teresses econômicos dominantes Decerto a justifi cação ditatorial e cesarista de Schmitt não atende às pretensões de uma democracia que simultaneamente concretize a vontade do povo sem o propósito da homogeneização Entretanto em que pese o revigoramento das teses kelsenianas num dos expoentes da teoria política contemporânea como Jurgen Habermas por exemplo a crítica de Carl Schmitt às defi ciências democráticas da representação parlamentar perma necem mais do que nunca sem resposta 147 Perguntas para reflexão 1 O que caracteriza a sociedade moderna para Carl Schmitt e por qual processo passou a Europa Ocidental para constituir tal sociedade 2 Por que o liberalismo é o romantismo político 3 Diante dos vários agrupamentos possíveis nas sociedades o que distingue a unidade propriamente política Quais são os seus atributos distintivos fundamentais 4 Por que para Carl Schmitt o Soberano é quem decide sobre o estado de exceção 5 Quais as acepções do conceito de Constituição em Carl Schmitt e como elas se relacionam com o conceito de soberania 6 Quais são as especificidades do conceito jurídico de estado de exceção 7 Qual é a crítica fundamental que Carl Schmitt estabelece ao liberalismo em particular à representação parlamentar na sua pretensão de garantir a democracia 8 Como o conceito de democracia substantiva se relaciona com a vontade geral de Rousseau e com a ideia de homogeneidade nas sociedades moder nas pluralizadas 9 Como se garante na teoria de Carl Schmitt que o Estado democrático decida de fato segundo a vontade do povo 10 Quais são as distinções fundamentais entre o modelo de Estado de Carl Schmitt e o modelo de Estado de Hans Kelsen 399 Capítulo 14 O Constitucionalismo antiliberal de Carl Schmitt Gisele Silva Araújo Rogerio Dultra dos Santos Bibliografia AGAMBEN Giorgio Stato di eccezione Homo sacer II I Torino Bollati Bo ringhieri 2003 ARAÚJO Gisele Silva Democracia substancial e procedimental como fundamen tos da legitimidade constitucional A utilização de argumentos sociológicos da clássica Teoria Constitucional nas Teorias Políticas Contemporâneas Monografi a Graduação em Direito Faculdade de Direito da Universi dade Estadual do Rio de Janeiro Rio de Janeiro UERJ 2005 GALLI Carlo Genealogia della politica Carl Schmitt e la crisi del pensiero politico moderno Bolonha Il Mulino 1996 HOFMANN Hasso Legitimità contro legalità la fi losofi a política di Carl Schmitt Nápoles Edizioni Scientifi che Italiane 1999 KELSEN Hans Teoria Pura do Direito Tradução de João Baptista Machado 2 ed São Paulo Martins Fontes 1987 Escritos sobre la democracia y el socialismo Tradução de Javier Mira Benavent Manuel Atienza Juan Ruiz Manero e Alfredo J Weiss Madri Debate 1988 Teoria Geral do Direito e do Estado Tradução de Luis Carlos Borges São Paulo Martins Fontes 1998 Fundamentos da democracia Tradução de Jefferson Luis Camar go e Marcelo B Cipolla In KELSEN Hans A democracia Tradução de Vera Barkow et al São Paulo Martins Fontes 1993 LESSA Renato de Andrade A Política como ela é Carl Schmitt e o rea lismo político como agonia e aposta In LESSA Renato Agonia aposta e ceticismo ensaios de fi losofi a política Belo Horizonte Editora UFMG 2003 p 1561 MARRAMAO Giacomo Poder e secularização as categorias do tempo Tradu ção de Guilherme Alberto Gomes de Andrade São Paulo UNESP 1995 1983 NEUMANN Franz The decay of german democracy 1933 In SCHEUER MAN William E Editor The Rule of Law under siege selected essays of Franz L Neumann and Otto Kirchheimer BerkleyLos AngelesLondres University of California Press 1996 pp 2943 ROSSITER Clinton Constitutional dictatorship crisis government in the modern democracies Reprint of 1948 fi rst edition Nova YorkBurlingame Har court Brace World Inc 1963 SANTOS Rogerio Dultra dos O Constitucionalismo antiliberal no Brasil Cor porativismo Positivismo e Cesarismo na formação do Estado Novo Tese 400 ELSEVIER Curso de Ciência Política Doutorado em Ciência Política Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro Rio de Janeiro IUPERJ 2006 SCHMITT Carl O conceito do político Tradução de Álvaro Valls Petrópolis Vozes 1992 Politische Romantik Zweite Aufl age Berlin Duncker Humblot 1998 1925 Sobre el parlamentarismo Tradução de Thies Nelson y Rosa Grueso 2 ed Madri Tecnos 1996a Sobre los tres modos de pensar la ciencia jurídica Estúdio preliminar traducción y notas de Montserrat Herrero Madrid Tecnos 1996b Teología política I cuatro capítulos sobre la teoría de la sobera nía In AGUILAR Héctor Orestes org Carl Schmitt teólogo de la políti ca México Fondo de Cultura Económica 2001 p 1962 Teoría de la Constitución Tradução de Alfredo Gallego Anabitarte Madrid Revista de Derecho Privado 1932 SCHWAB George The challenge of exception an introduction to the political ideas of Carl Schmitt between 1921 1936 2 ed Com nova introdução Connecticut Greenwood Press 1989 1970 Capítulo 15 Hayek e os benefícios da liberdade individual Yuri Kasahara1 151 Introdução Nascido na cidade de Viena Áustria em 8 de maio de 1899 Friedrich August von Hayek adquiriu notoriedade com suas contribuições no campo da economia principalmente em trabalhos sobre teoria monetária e ciclos econômi cos escritos ao longo das décadas de 1930 e 1940 A essa altura Hayek tornarase um respeitado professor da London School of Economics na Inglaterra quando teve a oportunidade de travar calorosos debates com o ilustre John M Keynes sobre a pertinência do esforço governamental em infl uenciar a intensidade dos ciclos econômicos Apesar de sua identidade profi ssional como economista consagrada com um Prêmio Nobel em 1974 Hayek dedicou parte considerável de sua vida a estudos nas mais diversas áreas como psicologia epistemologia e teoria po Doutor em Ciência Política pelo IUPERJ e pesquisador associado do Centre for Development and the Environment University of Oslo Email para contato yurikasaharasumuiono 402 ELSEVIER Curso de Ciência Política lítica Esse percurso por diferentes domínios do conhecimento traduziuse em inúmeros livros e artigos escritos ao longo de seus 93 anos de vida No caso em particular de seus trabalhos sobre teoria política Hayek se mostrou um resoluto defensor da liberdade humana como importante mecanis mo promotor do desenvolvimento econômico e social Ao morrer em 1992 seus escritos políticos e sua argumentação favorável aos efeitos benéfi cos da combi nação de um Estado de Direito garantidor de liberdades individuais com me canismos de livremercado o alçaram à condição de um dos principais teóricos do neoliberalismo político e econômico em ascensão no mundo ocidental desde o fi nal dos anos 1970 Apesar de sua inegável fi liação às tradições do pensamento liberal clás sico caracterizada por uma defesa intransigente de certos direitos individuais como a encontrada nos textos de John Locke ou Thomas Paine ou mais recen temente no trabalho de Robert Nozick o objetivo deste capítulo é explorar as peculiaridades do liberalismo defendido por Hayek A natureza de suas críticas a uma excessiva intervenção do Estado na vida social o colocaria ao lado de um liberalismo inspirado em premissas céticas fazendo com que suas principais re ferências sejam autores como Adam Smith Bernard de Mandeville David Hume e Edmund Burke Além desse ceticismo procuraremos mostrar que a visão de Hayek apresenta uma argumentação utilitarista para a defesa da liberdade indi vidual na medida em que ela não deveria ser vista como um fi m em si mesmo mas como uma forma mais efi ciente para enfrentar as incertezas inerentes à vida social No seu entender uma sociedade composta por seres humanos livres seria mais rica material e culturalmente pois as possibilidades de experimentação e de inovação de seus membros seriam ampliadas 152 Ordem espontânea x organização racional Um requisito indispensável para entender a centralidade da liberdade individual no pensamento hayekiano é compreender sua teoria social Para Hayek de modo geral as sociedades deveriam ser concebidas como sistemas de regras e valores criados gradativamente por meio das interações entre diferen tes indivíduos e aprimorados por mecanismos de tentativa e erro ao longo das gerações Teríamos portanto na tradição de uma sociedade um conhecimento acumulado resultado de experiências coletivas no enfrentamento das vicissitu des da vida social A principal característica dessa tradição seria seu aspecto co letivo sendo compartilhada por todos os membros de uma sociedade por meio de princípios morais e valores enraizados nas práticas sociais A estabilidade dessas regras morais seria o substrato necessário para que indivíduos pudessem 403 Capítulo 15 Hayek e os benefícios da liberdade individual Yuri Kasahara interagir com certo grau de previsibilidade e produzir uma ordem social onde a regularidade da conduta dos elementos determinará o caráter geral da ordem resultante mas não todos os detalhes de sua manifestação específi ca Hayek 1985a p 42 Em outras palavras a partir de certas regras consensuais básicas sobre o que será considerado uma conduta justa os indivíduos encontrariam o suporte necessário para o estabelecimento de inúmeras experiências que não po deriam ser previstas inicialmente Um ponto a ser destacado nessa concepção é o caráter não estático do padrão moral de uma sociedade uma vez que a impre visibilidade das condutas humanas gera incentivos para um constante processo de reformulação das regras sociais Essa teoria social em grande parte inspirada em autores do Iluminismo escocês do século XVIII irá sustentar a ideia de que a própria concepção de li berdade individual surge como um desdobramento desse caráter dinâmico da tradição Tomando como exemplo a trajetória da common law inglesa Hayek irá sustentar que a valorização da liberdade individual emergiu no Ocidente como o resultado de um processo adaptativo das instituições inglesas em resistir às infl uências das teorias absolutistas em voga na Europa Continental ao longo dos séculos XVII e XVIII No caso inglês um sistema de direito consuetudinário construído por meio de cumulativas decisões judiciais descentralizadas e ampa radas nos usos e costumes dessa sociedade teria fomentado uma percepção de que o exercício da autoridade real deveria estar submetido ao respeito de certos princípios gerais de justiça Assim as restrições impostas ao exercício do poder real em prol da defesa de certos princípios gerais como a liberdade religiosa e da autoridade do Parlamento teriam garantido um ambiente propício ao desen volvimento espontâneo de uma sociedade livre na qual cada um pode usar seu conhecimento com vistas a seus propósitos Hayek 1985a p 62 Em tal sociedade uma vez que a autoridade política teria seu poder coercitivo circuns crito pela obrigação em respeitar certas regras gerais de conduta os indivíduos se veriam livres para conduzir suas vidas segundo seus objetivos particulares fossem eles egoístas ou altruístas e promover desse modo a constituição de uma ordem social de inédita complexidade A metáfora da mão invisível utilizada por Adam Smith em Uma investiga ção sobre a natureza e a causa da riqueza das nações para descrever o funcionamento do mercado representaria perfeitamente segundo Hayek todas as característi cas dessa ordem espontânea livre indivíduos que a partir do respeito a certas regras abstratas como direitos de propriedade poderiam estabelecer interações de troca que visariam a satisfação de seus desejos e projetos particulares e con tribuiriam para maior produção de riquezas coletivas 404 ELSEVIER Curso de Ciência Política Essa concepção evolutiva de uma sociedade livre defendida por Hayek procura se contrapor a uma concepção racionalista que interpretaria todas as instituições sociais como o resultado da vontade e do desígnio humanos Segun do essa corrente inspirada nos trabalhos dos fi lósofos René Descartes e Thomas Hobbes as únicas instituições sociais legítimas seriam aquelas concebidas logi camente pela Razão Nesse sentido qualquer regra moral ou instituição oriunda da tradição deveria ser vista no mínimo com desconfi ança na medida em que ainda não teria recebido o aval da racionalidade para legitimála Para Hayek a principal e mais nefasta consequência dessa concepção é a criação de uma argumentação favorável à expansão do âmbito de atuação do governo princi palmente no que diz respeito ao uso de suas capacidades coercitivas Segundo Hayek a pretensão racionalista em prever e controlar todos os desdobramentos possíveis da vida social poderia fazer com que um governo considerasse legí timo buscar a melhor organização da sociedade para que esta pudesse alcan çar determinados objetivos Esse projeto por sua vez levaria necessariamente à imposição de determinadas condutas vistas como necessárias aos indivíduos restringindo sua liberdade e o uso criativo dos recursos existentes na sociedade Dessa forma a ideia de uma reconstrução racional da vida social se mostraria antagônica a uma ordem fundada no princípio da liberdade individual O temor de Hayek de que a disseminação dessa concepção racionalista acabasse por suplantar os benefícios de uma ordem livre é apresentada em seu livro mais popular O caminho da servidão Publicado em 1944 nele Hayek apre senta a tese de que a característica mais marcante dos regimes nazifascistas e socialistas seria a crescente intervenção do Estado na atividade econômica Para Hayek a ideia de uma economia planifi cada ou administrada de modo centra lizado pelo Estado como presente nos experimentos soviético e nazifascista teria criado as brechas para uma inédita concentração de poderes nas mãos do governo visto agora como o artífi ce de um projeto coletivo Consequentemente teríamos a criação de um governo com uma capacidade inédita de interferência na vida privada dos indivíduos e a substituição de uma ordem espontânea livre por uma sociedade enrijecida e opressora O principal objetivo do argumento apresentado por Hayek não era o de mera crítica ao socialismo por meio de sua associação ao fenômeno nazifascista mas alertar às democracias liberais sobre a possibilidade de que destino seme lhante se abatesse sobre elas No entender de Hayek o sucesso do esforço de guerra a ascensão das teorias keynesianas e as pressões das classes trabalhado ras criavam fortes argumentos favoráveis a uma maior intervenção do Estado e sua atuação como planejador das atividades econômicas na busca por maior 405 Capítulo 15 Hayek e os benefícios da liberdade individual Yuri Kasahara bemestar social Argumentos esses que após o fi nal da Segunda Guerra Mun dial seriam os fundamentos para a criação de um vasto sistema de proteção social e amplas políticas de redistribuição de renda em quase todas as demo cracias capitalistas do Ocidente Enquanto para muitos essas iniciativas eram vistas como a única forma de salvar o capitalismo e o próprio liberalismo para Hayek no entanto representavam a possibilidade de um futuro incerto para as sociedades livres do Ocidente 153 A fragmentação do conhecimento e os limites da ação estatal A denúncia de Hayek aos limites do planejamento estatal seria justifi cada por um argumento aparentemente simples mas pertinente nenhum governo por mais capacitado que fosse poderia reunir todo o conhecimento existente em uma sociedade e utilizálo de modo mais efi ciente e criativo do que o uso livre feito por seus cidadãos Essa impossibilidade residiria no fato de o conhecimen to social por princípio encontrarse fragmentado entre os milhares de membros de uma mesma sociedade uma vez que é o resultado agregado do uso particular que cada indivíduo faz das regras e instituições sociais existentes bem como das circunstâncias de suas condições de vida Como esse conhecimento não é algo objetivo capaz de ser apreendido materialmente mas o resultado de inúmeras interações praticadas cotidianamente pelos indivíduos na busca de seus inte resses pessoais a ação estatal sempre representaria uma dentre muitas possibi lidades previsíveis ou não de utilização do conhecimento coletivo Em outras palavras o planejamento estatal promoveria uma limitação na capacidade indi vidual em utilizar o conhecimento social disponível de forma criativa Assim antes de tudo a liberdade individual deveria ser vista como um mecanismo efi caz de promoção do progresso social Se houvesse homens oniscientes se pudéssemos conhecer não só tudo aquilo que afeta a satisfação de nossos desejos atuais mas também to dos os nossos futuros desejos e necessidades haveria pouco a dizer em favor da liberdade A liberdade é essencial para dar chance ao imprevisível e ao imponderável nós a queremos pois aprendemos a esperar dela a oportunidade para realizar muitos de nossos objetivos Justamente porque cada indivíduo conhece tão pouco e em particular porque raramente sabemos qual de nós sabe o que é melhor confi a mos nos esforços independentes e concorrentes de vários para propi ciar o surgimento daquilo que nós gostaríamos de ter quando virmos Hayek 1993 p 29 406 ELSEVIER Curso de Ciência Política A partir desta linha de argumentação Hayek irá empreender inúmeras críticas às concepções socialdemocrata e socialista hegemônicas nas décadas do pósguerra e defensoras da promoção de uma maior justiça social por meio de políticas redistributivas que seriam vistas como a principal função de um go verno O erro fundamental dessas políticas contudo seria a errônea utilização de critérios morais para o julgamento dos resultados agregados produzidos pela atuação das forças de mercado Para Hayek a classifi cação da distribuição de riquezas resultante da apli cação das regras de um mercado competitivo em termos como justa ou injusta não seria válida se considerarmos que ela não é o resultado de uma ação cons ciente de um indivíduo ou de um grupo Segundo essa perspectiva critérios de justiça ou princípios de moralidade só poderiam ser aplicados para ações intencionais praticadas por um indivíduo ou uma organização que afetassem outros indivíduos Seria legítimo portanto censurar e punir as ações de um indivíduo que prejudicasse terceiros ou louvar e recompensar ações benevolen tes e altruístas O mesmo no entanto não poderia ser aplicado ao resultado de inúmeras relações privadas estabelecidas livremente pelos indivíduos e em res peito às regras existentes de conduta justa A distribuição de riquezas resultante dessas inúmeras interações visto que é um resultado involuntário e impessoal de milhares de interações de indivíduos perseguindo seus objetivos pessoais não poderia ser portanto considerada boa ou ruim Desse modo o conceito de justiça social é necessariamente vazio e sem sig nifi cado porque em uma ordem livre nenhuma vontade é capaz de determinar as rendas relativas das diferentes pessoas ou impedir que elas dependam em parte do acaso Só é possível dar sentido à expres são justiça social numa economia dirigida ou comandada tal como um exército em que os indivíduos recebem ordens quanto ao que fa zer De fato nenhum sistema de normas de conduta individual jus ta e portanto nenhuma ação livre dos indivíduos poderiam produzir resultados que correspondessem a qualquer princípio de justiça distri butiva Hayek 1985b p 88 Importante desdobramento lógico dessa moralização dos resultados pro duzidos por uma ordem de mercado como ressalta a passagem acima seria a arbitrariedade resultante dos critérios utilizados para nortear a intervenção es tatal na atividade econômica e a redistribuição dos recursos coletivos Dado que algo similar a uma vontade geral rousseauniana deveria ser considerado irrea lista em uma sociedade complexa uma decisão sobre qual critério redistributivo mérito pobreza etnia grupo profi ssional seria considerado legítimo não po 407 Capítulo 15 Hayek e os benefícios da liberdade individual Yuri Kasahara deria ser consensual em uma sociedade livre Enquanto em pequenos grupos ou organizações poderíamos mais facilmente estabelecer metas e objetivos comuns em uma sociedade complexa habitada por indivíduos com diferentes concep ções sobre felicidade e diferentes projetos de vida qualquer critério escolhido representaria um uso ilegítimo da capacidade coercitiva do Estado Critérios de justiça que não se limitassem ao estabelecimento de normas gerais de conduta justa mas que perseguissem objetivos específi cos como a melhoria de condições de vida de um determinado grupo social provavelmente levariam a interven ções estatais indesejáveis na forma como os indivíduos exercem sua liberdade em suas relações privadas mesmo que essas fossem justifi cadas por aparentes argumentos de maior justiça social ou felicidade coletiva Consequentemente qualquer critério adotado seria visto como injusto por aqueles que não comun gassem dos mesmos princípios distributivos adotados pelo Estado Assim O que nos é prometido como um caminho para a liberdade na verdade é uma estrada para a servidão Pois não é difícil ver quais são as conse quências quando uma democracia embarca no rumo do planejamento estatal O objetivo do planejamento sempre será descrito por algum termo vago como o bemestar geral Não haverá acordo real sobre quais fi ns deverão ser alcançados e o efeito das pessoas concordarem sobre a necessidade de um planejamento central sem um acordo prévio sobre seus fi ns poderia ser comparado a um grupo de pessoas que se comprometesse em viajar sem saber para onde desejam ir como re sultado pode ser feita uma viagem na qual muitos não gostariam de participar Hayek 1944 p 143 Do ponto de vista econômico essa crescente intervenção estatal gradati vamente minaria os fundamentos que garantiriam a uma ordem livre sua maior capacidade de inovação e de uso criativo e efi ciente dos recursos de uma so ciedade As restrições à liberdade individual na condução das atividades eco nômicas acabariam reduzindo os incentivos para que os indivíduos usassem seus conhecimentos particulares para a geração de maiores ganhos pessoais seja por meio do enfraquecimento dos mecanismos de competição como a utilização de subsídios a criação de extensas proteções trabalhistas e monopólios estatais bem como tarifas e legislações protecionistas a determinados setores ou pela adoção de pesados mecanismos redistributivos por meio de excessivas cargas tributárias Como resultado no longo prazo as medidas que visariam redistri buir as riquezas produzidas pela dinâmica de mercado competitivo consagra das no modelo de um Estado de BemEstar acabariam por destruir os mecanis mos responsáveis por gerar essas mesmas riquezas 408 ELSEVIER Curso de Ciência Política Assim se o governo não quiser meramente facilitar a obtenção de certos pa drões de vida pelos indivíduos mas tornar certo que todos alcancem esses padrões ele só poderá fazêlo despojando os indivíduos de qual quer possibilidade de escolha sobre o que desejam Portanto o Estado de BemEstar tornase um Estado Domiciliar no qual um poder pater nalístico controla a maior parte da renda da comunidade e a distribui para os indivíduos na forma e nas quantidades que considera serem necessárias ou merecidas Hayek 1993 p 260 Essa premissa de desconfi ança radical na capacidade do governo em coor denar de maneira mais efi caz e justa as relações econômicas estabelecidas entre os indivíduos não nos deve levar à conclusão de que Hayek seja contrário a qualquer intervenção do Estado na economia De acordo com as premissas da tradição liberal Hayek não nega em nenhum momento a necessidade de uma instância responsável pela aplicação de uma justiça pública materializada no Es tado para a resolução de impasses ou efeitos negativos gerados pelas interações entre indivíduos Também não deixa de reconhecer que inúmeros indivíduos possam mostrarse extremamente desfavorecidos pelos resultados agregados produzidos por uma ordem de mercado ou apresentar trajetórias de vida que não proporcionem condições favoráveis para que sejam capazes de aproveitar minimamente as oportunidades geradas pelo progresso de uma sociedade Essa posição faz com que Hayek não seja contrário a uma atuação reguladora do Estado na ordem do mercado nem à existência de políticas que procurem garan tir condições mínimas de inserção dos indivíduos na dinâmica de um mercado competitivo ou que assegurem um nível de bemestar mínimo a seus cidadãos Dessa forma legislações trabalhistas e ambientais um sistema público de edu cação saúde e previdência bem como políticas de renda mínima não seriam incompatíveis com as refl exões de Hayek em uma sociedade livre sem interferirmos no mercado podemos ob viamente estabelecer um mínimo abaixo do qual ninguém precisa cair por meio da provisão para todos de alguma garantia contra infortú nios Há na verdade muito que podemos fazer para melhorar a es trutura em que os mercados podem operar de forma benéfi ca Hayek 1990 p 115 A questão levantada por Hayek é saber como essa atuação estatal pode ser julgada legítima sem ferir os princípios de um governo liberal diante da cres cente complexidade da vida social moderna Em sua opinião essas intervenções estatais seriam completamente legítimas desde que 409 Capítulo 15 Hayek e os benefícios da liberdade individual Yuri Kasahara 1 o governo não monopolize determinados serviços e novos métodos de prestação desses serviços pelo mercado não sejam proibidos 2 os recursos para a prestação dos serviços sejam obtidos por meio de uma taxação baseada em princípios uniformes e que esses impos tos não sejam utilizados como um instrumento de redistribuição da renda e 3 as necessidades satisfeitas sejam coletivas de toda a comunidade e não meramente necessidades coletivas de grupos particulares Hayek 1990 p 111 A aplicação efetiva desses critérios no entanto esbarraria na dinâmica particular das democracias modernas Como exploraremos a seguir o princí pio representativo e a regra da maioria características típicas das democracias contemporâneas exerceriam fortes pressões para que governos eleitos não se fi assem a esses critérios na formulação e implementação de suas políticas 154 Liberdade e democracia Fiel à tradição liberal clássica a posição de Hayek frente ao sistema demo crático é de cautela A democracia entendida como um governo representativo cujas decisões são regidas pelo princípio da maioria seria historicamente um aliado contingente dos princípios liberais visto que buscam objetivos diferentes Assim o liberalismo dedicase às tarefas do Estado e sobretudo à limitação do seu poder enquanto o movimento democrático lidaria com a questão de quem deve dirigir o Estado Hayek1994 p 55 Essa tensão é mais bem compreendida quando analisamos como a ideia de igualdade é interpretada nas duas tradições Para Hayek a igualdade em uma ordem liberal poderia ser resumida à ideia de isonomia ou igualdade for mal na qual todos os indivíduos deveriam ser julgados perante a lei segun do suas condutas sem qualquer distinção de credo etnia gênero ou riqueza No arcabouço liberal essa seria a única igualdade considerada indispensável visto que os desdobramentos do exercício da liberdade inexoravelmente pro duziriam distribuições desiguais dos recursos materiais e do reconhecimento de uma sociedade Mesmo a ideia de uma busca de igualdade de condições e oportunidades extremamente comum nas refl exões liberais deveria ser vista com reticência na medida em que geraria um debate nebuloso sobre aquilo que seria necessário para sua satisfação substantiva e a possibilidade de que a deter minados grupos fossem concedidos privilégios ferindo o princípio da isonomia Na verdade como ressalta Hayek o objetivo histórico da teoria liberal ao buscar a igualdade jurídica foi estabelecer limites à ação do Estado para que este não 410 ELSEVIER Curso de Ciência Política utilizasse sua capacidade coercitiva para o favorecimento ou perseguição de de terminados indivíduos e grupos A tradição democrática por sua vez apesar de comungar com a tradição liberal a defesa do princípio da isonomia estabelece a igualdade política como prérequisito indispensável para a legitimação de uma ordem social O proble ma segundo Hayek é que a busca pela igualdade política acaba colocando como principal objeto de preocupação da tradição democrática a defi nição de critérios legítimos para a tomada de decisões coletivas Uma vez respeitados esses cri térios qualquer decisão passaria automaticamente a ser vista como legítima a despeito de seu teor O princípio majoritário regularmente adotado pelas demo cracias modernas por exemplo possibilitaria a uma maioria impor sua vontade a uma minoria fazendo com que a existência de determinados procedimentos democráticos concedesse legitimidade a políticas redistributivas ou a restrições a liberdades individuais Nas palavras de Hayek essa diferença poderia ser re sumida da seguinte forma A diferença entre os dois princípios tornase mais evidente quando procuramos o contrário de cada um na democracia tratase de um governo autoritário no liberalismo porém é o totalitarismo Nenhum dos dois sistemas exclui o contrário do outro uma democracia poderia exercer poder totalitário e é no mínimo imaginável que um governo autoritário siga princípios liberais Hayek 1994 p 55 Diante da ameaça de uma democracia ilimitada a tradição liberal clássica foi inventiva na busca por soluções conciliatórias Para Hayek o constitucio nalismo o princípio da divisão de poderes e a descentralização administrativa são alguns exemplos de criações institucionais da luta contra o absolutismo que acabaram sendo úteis para conter a ameaça de maiorias tirânicas em tempos de mocráticos Os desdobramentos históricos experimentados pelas democracias modernas no entanto estariam mostrando as limitações desses artifícios em impedir um crescente uso abusivo do poder governamental Esses desdobra mentos por sua vez poderiam ser considerados mais graves do que os ideais de uma economia planejada ou socialista Na perspectiva de Hayek a origem dessa ameaça estaria em certas ca racterísticas institucionais das democracias contemporâneas principalmente de seus órgãos legislativos A principal delas seria a fusão em um mesmo corpo legislativo da prerrogativa de estabelecer normas gerais de conduta justa com a responsabilidade em aprovar as regras de atuação do governo Originalmen te os parlamentos e corpos legislativos teriam por função controlar e regular o governo não a de elaborar normas de conduta justa Como vimos anterior 411 Capítulo 15 Hayek e os benefícios da liberdade individual Yuri Kasahara mente Hayek imagina que as normas de conduta justa não são necessariamente positivadas em códigos ou legislações criadas por órgãos parlamentares mas o resultado acumulado de experiências que vão se cristalizando por exemplo na jurisprudência do direito consuetudinário common law São esses princípios que por sua vez deveriam nortear não só a fi scalização do governo pelo le gislativo mas também a própria atuação do legislativo como materializado na tradição constitucionalista Atualmente no entanto a concepção democrática conferiria aos corpos legislativos a legitimidade para emendar os conteúdos das regras de conduta justa existentes por meio da possibilidade de reformas cons titucionais Além disso qualquer decisão do corpo legislativo mesmo de caráter administrativo seria equiparável a uma norma geral de conduta justa mesmo que essa decisão não atendesse aos requisitos de generalidade e impessoalidade necessárias ao reconhecimento de uma lei em seu sentido estrito1 Essa concentração de poderes produziria efeitos deletérios devido à pró pria dinâmica política das democracias representativas modernas Como os go vernos necessitam formar maiorias para a aprovação de suas políticas eles aca bam se vendo obrigados a fazer concessões aos diferentes grupos organizados da sociedade Grupos que por sua vez estariam representados nos membros do legislativo que ajudam a eleger O resultado desse processo de negociação é a aprovação de medidas que na maioria dos casos benefi ciariam grupos parti culares ou concepções de vida específi cas em detrimento do respeito a regras de conduta justa universais Dessa forma o próprio legislativo tornase um espaço para que diferentes grupos de interesse possam infl uenciar o governo no intuito de que este satisfaça seus projetos e necessidades particulares A consequência óbvia dessa dinâmica é a disseminação de um confl ito distributivo no qual os diferentes segmentos da sociedade procuram estabele cer como serão partilhados os custos da expansão dos serviços governamentais e dos benefícios ofertados a grupos específi cos Setores industriais passam a bus car isenções fi scais e subsídios públicos enquanto sindicatos lutam por benesses do Estado a seus associados transferindo os custos dessas medidas a toda a coletividade Abrese a porta assim para que regras arbitrárias sejam adotadas pelo governo apresentando o resultado de uma barganha majoritária formada por múltiplos interesses particularistas como socialmente justa 1 Para Hayek uma norma de conduta só pode ser considerada justa se for aplicável a um número desconhecido de casos futuros e a todas as pessoas igualmente nas circunstâncias objetivas descritas pela norma a despeito dos efeitos que a observância dessa regra irá produzir em situações particulares 1990 p 77 Como exemplo dessas normas de conduta justa poderíamos citar as leis contratuais tri butárias e penais 412 ELSEVIER Curso de Ciência Política Uma legislatura ilimitada que não seja impedida por convenção ou provisões constitucionais de decretar medidas coercitivas discrimina tórias e específi cas como tarifas taxas ou subsídios não pode ser im pedida de agir de forma desmesurada Apesar da inevitáveis tentativas em disfarçar essa compra de apoio como um auxílio benéfi co aos ne cessitados essa pretensão moral difi cilmente pode ser levada a sério A concordância de uma maioria em como distribuir os espólios extor quidos de uma minoria dissidente difi cilmente pode clamar qualquer legitimidade moral para sua atuação mesmo quando invoca a ilusória justiça social para defendêla Hayek 1994 p 157 A única solução viável segundo Hayek seria uma reestruturação institu cional da democracia representativa dividindo as funções atualmente acumu ladas por seus órgãos legislativos Uma esfera deveria continuar sendo respon sável pelo controle da atuação governamental nos moldes atuais enquanto uma nova esfera legislativa deveria monopolizar a prerrogativa de elaboração das normas de conduta justa ou em termos mais específi cos o texto constitucional O objetivo primordial desta última seria o de preservar o conjunto de normas de conduta justa de uma coletividade ao mesmo tempo que promoveria reformas necessárias para adaptálas às novas circunstâncias trazidas pela evolução da vida social Esse órgão legislativo por exemplo deveria estabelecer o conjunto de liberdades individuais a ser respeitado pelas decisões governamentais re gras contratuais e penais bem como tributárias estipulando a quantidade de recursos fi nanceiros disponíveis ao governo para a condução de suas ações Obviamente essa proposta não soluciona o dilema de saber quem seria responsável por controlar o funcionamento dessa segunda instância evitando efetivamente que interesses particularistas possam infl uenciar suas decisões Uma maneira de contornar esse dilema seria a promoção de alterações nos pro cedimentos de seleção dos ocupantes desse órgão Esses cargos poderiam ser eletivos mas seus ocupantes deveriam ser pessoas de notório conhecimento e reputação em sua área de atuação profi ssional ou reconhecidas publicamente por seus serviços prestados à comunidade teriam mandatos longos de 10 a 15 anos mas sem a possibilidade de reeleição Além disso as decisões desse corpo deveriam respeitar critérios de generalidade bem como ser passíveis de julga mento em uma corte encarregada de averiguar a constitucionalidade de suas proposições Com esse novo arranjo institucional Hayek acredita que seria pos sível que o processo de formulação das regras de conduta justa de uma socie dade não fosse dominado por uma dinâmica que transforma o Estado em um instrumento para a satisfação de interesses particulares 413 Capítulo 15 Hayek e os benefícios da liberdade individual Yuri Kasahara 155 Conclusão o fim da política Essa breve apresentação dos principais argumentos contidos nos escritos políticos de Hayek nos permite indagar sobre o papel da ação política em seu sentido clássico Em outras palavras qual a legitimidade de que indivíduos pos sam buscar a realização de um projeto coletivo por meio de um processo delibe rativo conjunto Uma primeira impressão nos levaria a acreditar que na obra de Hayek haveria pouco espaço para se pensar a legitimidade de uma ação política visto que essa refl etiria pretensões indesejáveis de controle da vida social ou ainda representaria o esforço de grupos de interesse em conquistar benefícios parti culares as expensas do bemestar coletivo Em tal interpretação qualquer ação política deveria ser vista de modo reticente uma vez que seria uma ameaça po tencial à liberdade individual Porém a imagem de um mundo habitado por indivíduos megalômanos ou autointeressados tampouco abriria espaço para o fl orescimento da liberdade individual como um ideal coletivo Uma segunda interpretação possível seria ver na ação política um impor tante mecanismo de inovação social pelo qual os membros de uma sociedade ex perimentam novas formas de organização coletiva Nesse cenário os indivíduos veriam na ação política uma forma de tornar públicos certos princípios de justiça que lentamente são engendrados a partir das múltiplas relações travadas no seio de uma sociedade A ação política vista pelo seu lado criativo possibilitaria que a própria ideia de liberdade individual despontasse como uma interessante e profícua proposta de organização da vida social Apesar da primeira interpretação não se mostrar implausível a segunda interpretação parece mais coerente com a posição de Hayek acerca do valor da liberdade individual Respeitando as premissas de sua teoria social Hayek não confere à liberdade individual ou a qualquer direito individual um caráter abso luto inerente à condição humana ou transcendente a qualquer experiência cole tiva Num mundo habitado por indivíduos de conhecimento escasso e objetivos diversos a liberdade individual só pode surgir a partir de um longo processo de interações sociais que a elevem ao patamar de uma regra de conduta justa Desse modo somente por meio de ações políticas confl itos tentativas e ajustes a liberdade individual poderia ser reconhecida como um princípio estruturante das leis e instituições de uma sociedade Essa posição estaria corroborada na reticência apresentada por Hayek em afi rmar a existência de um conjunto específi co de leis e instituições que mate rializaria de forma defi nitiva uma ordem liberal Em sua opinião eleger deter minado arranjo institucional e jurídico como legítimo seria negar o fato de que 414 ELSEVIER Curso de Ciência Política o progresso social é por defi nição um processo em aberto Do mesmo modo Hayek em nenhum momento afi rma que a liberdade individual seria o único princípio legítimo de organização de uma sociedade A liberdade individual se ria apenas um dentre muitos princípios que podem estruturar o conjunto de regras de conduta justa de uma coletividade e mesmo sua adoção não se mostra algo inevitável no longo prazo Essa concepção estaria refl etida no esforço em preendido pelos escritos de Hayek em defender a liberdade individual e uma ordem de mercado por meio de argumentos que mostrem sua utilidade e su perioridade para a organização de uma sociedade complexa em contraste com uma sociedade guiada por ideais centralizadores e coletivistas O liberalismo e suas instituições desse modo estariam muito distantes de representar um fi m da história ou a impossibilidade de o ser humano infl uenciar de modo conscien te e racional as condições de sua existência Antes de tudo o liberalismo e as ins tituições nele inspiradas deveriam ser vistos como um mecanismo mais efi ciente para a administração das mudanças inerentes ao desenvolvimento social Nenhuma dessas conclusões são argumentos contrários ao uso da ra zão mas são somente argumentos contra os usos que requerem poderes exclusivos e coercitivos por parte do governo não são argumentos con tra a experimentação mas argumentos contra todo poder monopolista e exclusivo de experimentar em determinada área e contra a con sequente exclusão de soluções melhores do que aquelas com as quais aqueles no poder mostramse comprometidos Hayek 1993 p 70 A partir dessa concepção o liberalismo defendido por Hayek não poderia deixar de reconhecer a importância da ação política no constante aprimoramen to da vida social Em sociedades modernas principalmente naquelas pouco afeitas às premissas liberais poderíamos dizer que é justamente na disputa de visões de mundo presentes na dinâmica política que a liberdade deve ser capaz de convencer a opinião pública sobre seu valor e benefícios Sem indivíduos que acreditem de fato nos benefícios trazidos por uma ordem liberal e guiem efeti vamente suas ações por meio dessa crença uma sociedade livre jamais poderia existir Em seu conjunto poderíamos considerar a obra de Hayek como um mo numental esforço de convencimento de seus leitores das inúmeras vantagens produzidas por uma ordem liberal objetivando a produção de um debate pú blico capaz de estimular o consenso necessário para sua legitimação Com isso os escritos de Hayek são um convite à refl exão sobre quais deveriam ser os ob jetivos de nossa ação política em um mundo marcado pela diversidade humana 415 Capítulo 15 Hayek e os benefícios da liberdade individual Yuri Kasahara e movido por incertezas e acasos A seu ver o comprometimento radical com o princípio da liberdade individual seria a única alternativa sob todos os aspec tos satisfatória 156 Perguntas para reflexão 1 Explique como estão relacionadas as ideias de progresso coletivo e liber dade individual no pensamento de Hayek 2 A partir da teoria social de Hayek explique como a liberdade individual pode surgir como um valor coletivo 3 Segundo Hayek por que o direito consuetudinário é tido como mais justo do que um sistema de regras mais rígido previamente codificado 4 Qual a posição de Hayek diante do princípio democrático 5 Qual a posição de Hayek diante da ideia de justiça social e das políticas redistributivas que inspira Apresente os argumentos que sustentam essa posição 6 Quais seriam os critérios a serem adotados pelo governo para tornar sua intervenção legítima 7 Hayek mostrase descrente em relação ao funcionamento das democra cias representativas modernas Apresente os argumentos que justificam essa postura e as possíveis reformas sugeridas pelo autor para o melhor funcionamento das instituições democráticas 8 Qual a posição de Hayek sobre a ação política Debata a questão a partir das ideias de Hayek sobre a liberdade individual 9 Qual a posição de Hayek diante das desigualdades produzidas pelo social e econômico 10 Você concorda com as ideias de Hayek Como você acha que uma ordem liberal poderia ser implementada em um país como o Brasil Bibliografia BIRNER J VAN ZIJP R orgs Hayek Coordination and Evolution Londres Routledge 1994 416 ELSEVIER Curso de Ciência Política CRESPIGNY A de F A Hayek Liberdade para o Progresso In CRES PIGNY A de MINOGUE K R orgs Filosofi a política contemporânea Brasília Editora da UNB 1982 HAYEK F A The Road to Serfdom London Routledge Kegan Paul 1944 Direito legislação e liberdade Normas e ordem São Paulo Visão 1985a v I Direito legislação e liberdade A miragem da justiça social São Paulo Vi são 1985b v II New Studies in Philosophy Politics Economics and the History of Ideas Lon don Routledge 1990 The Constitution of Liberty London Routledge 1993 Liberalismo Palestras e Trabalhos Cadernos Liberais n 5 São Paulo CESPInstituto Friedrich Naumann 1994 KRESGE S WENAR L Hayek on Hayek an Autobiographical Dialogue Lon don Routledge 1994 Capítulo 16 A justiça em John Rawls da relação entre os homens às relações internacionais Leonardo Carvalho Braga1 161 Introdução John Bordley Rawls nasceu em 21 de fevereiro de 1921 em Baltimore Ma ryland sendo o segundo de cinco fi lhos de William Lee advogado e especialis ta em Direito Constitucional e Anna Bell Rawls de origem alemã e presidente da liga local do eleitorado das mulheres Aos 18 anos 1939 Rawls ingressou na Universidade de Princeton onde estudou fi losofi a Após ter concluído seus estudos participou da Segunda Grande Guerra no Pacífi co Ao fi nal da guerra Doutorando e Mestre em Relações Internacionais pelo IRIPUCRio Graduado em Relações Inter nacionais pela UNESA Desenvolveu sua dissertação de mestrado sobre a justiça em John Rawls e as relações internacionais com o título de A justiça internacional e o dever de assistência no Direito dos Povos de John Rawls Professor na graduação e na especialização em Relações Internacionais da La SalleRJ Institutos Superiores Professor na graduação em Relações Internacionais da Universidade Estácio de Sá Contato leonardobragahotmailcom 418 ELSEVIER Curso de Ciência Política Rawls volta a Princeton 1946 e prepara sua tese de doutorado iniciando logo em seguida 1949 seu aprofundamento no estudo da teoria política Faz pós doutorado entre 19521953 em Oxford Em 1962 tornase professor titular de fi losofi a em Harvard e em 1991 professor emérito A sua primeira grande obra foi lançada em 1971 entitulada Uma Teoria da Justiça O trabalho de Rawls alcançou um reconhecimento mundial extraordiná rio Seu texto foi traduzido em mais de 25 países e provocou inúmeras outras contribuições no mundo todo Rawls trata aqui numa visão contratualista da distribuição de bens sociais entre as pessoas a partir do critério de justiça como equidade que possibilitaria uma distribuição equitativa e assim justa desses bens Nos anos 1980 e 1990 Rawls se dedica ao ensino em Harvard e a responder às críticas que vários comentadores desenvolveram desde a publicação de Uma Teoria da Justiça Além disso escreve o O liberalismo político 1993 Agora Rawls desenvolve a questão do pluralismo razoável a existência de várias visões de mundo diferentes e sua relação com o consenso de sobreposição que possibi lita que tais visões diferentes e mesmo eventualmente antagônicas possam co existir na sociedade e corroborar um entendimento político de justiça aceito por todos Em O direito dos povos 1999 Rawls projeta para as relações internacionais os princípios de justiça que seriam então escolhidos entre os povos tendo como referência o exercício do liberalismo político e do consenso de sobreposição O caminho traçado por Rawls em sua trilogia tem como norte o combate à desigualdade social e econômica entre as pessoas e entre os povos Rawls no intuito de tentar resolver tais desigualdades procura trabalhar com padrões de compensação na sociedade nacional e internacional São aqui o princípio da diferença e o dever de assistência para cada caso respectivamente as soluções propostas para tanto Rawls falece em 24 de novembro de 2002 em Lexington Massachusetts aos 81 anos Ao tratarmos do conjunto da obra de Rawls devemos atentar para alguns pontos O contratualismo rawlsiano para chegar ao direito cuida da compreen são do conceito de justiça o que implica um estudo e uma análise não sobre o ordenamento jurídicolegal leis a priori mas acerca da concepção fi losófi ca de justiça Há algo anterior às leis Há o princípio moral há a doutrina São esses princípios e essa doutrina que transformam a justiça como conceito em justiça como direitos palpáveis concretos legais e supostamente legítimos Sejam eles quais forem Rawls está particularmente atento à justiça como conceito ex presso em princípios para então transformaremse em direitos 419 Capítulo 16 A justiça em John Rawls da relação entre os homens às Leonardo Carvalho Braga O contratualismo em Rawls possui uma base construtivista e normativa Isso signifi ca dizer que os princípios de justiça por ele apresentados são resulta do de um diálogo social em que os indivíduos ponderam sobre seus interesses uns com os outros e sobre a possibilidade de que esses interesses se encaixem num funcionamento coletivo que leve à satisfação de todos ou à possibilidade da mesma Uma vez elaborados os princípios de justiça passam a ser o referencial maior para a realização dos interesses dos indivíduos e se os princípios foram escolhidos por todos igualmente todos podem dele se benefi ciar para alcançar sua satisfação pessoal A normatividade está assim na aposta de que o respeito e a garantia desses princípios e consequentemente direitos possibilitarão a reali zação razoável dos planos de vida dos indivíduos e devem então ser buscados como um meio mas também como um fi m Assim é para a sociedade fechada nacional como é também para a socie dade dos povos É preciso garantir que os indivíduos e os povos possam gozar de um sistema de liberdades que lhes possibilite realizar seus planos de vida Na difi culdade de garantir essa possibilidade o Estado e a sociedade dos povos cada qual em seu nível de atuação deve contribuir para que os obstáculos a essa efetivação sejam superados Rawls domesticamente assume uma postura key nesiana e no plano internacional uma postura liberal intervencionista em que as defi ciências econômicas sociais e políticas devem ser corrigidas para garantir o pleno exercício de liberdades e direitos que satisfaçam a existência humana como realização plena do ser 162 Uma teoria da justiça Se a inclinação dos homens ao interesse próprio torna necessária a vigilân cia de uns sobre os outros seu sentido público de justiça torna possível a sua associação segura Entre indivíduos com objetivos e propósitos díspares uma concepção partilhada de justiça estabelece os vínculos da convivência cívica o desejo geral de justiça limita a persecução de outros fi ns Rawls 2000 p 5 A justiça rawlsiana procura resolver o confl ito pela distribuição de bens sociais entre as pessoas O primeiro ponto de superação desse confl ito como pensado por Rawls é considerar a sociedade como um sistema equitativo de co operação Para a solução do confl ito gerado pela distribuição dos benefícios da cooperação social Rawls desenvolve princípios de justiça aplicados à estrutura básica da sociedade que sejam aceitos por todos de maneira equitativa A esco lha dos princípios de justiça é feita de modo que as pessoas não sejam capazes de propor supostos princípios de justiça que favoreçam mais a umas que a outras 420 ELSEVIER Curso de Ciência Política A sociedade é então regulada por uma concepção política de justiça a fi m de promover os justos termos de cooperação entre seus membros Tal concepção política de justiça é chamada por Rawls de justiça como equidade Assim a justiça na concepção de Rawls deve através das instituições sociais garantir que não ocorram distinções arbitrárias entre as pessoas na atri buição de direitos e deveres básicos na sociedade e garantir também regras que proporcionem um equilíbrio estável entre reivindicações de interesses concor rentes das vantagens da vida social e na distribuição de renda e riqueza É então a partir da concepção política de justiça gestada numa condição de equidade entre as pessoas que se desenha o cenário de justiça social rawlsiano 1621 A concepção pública de justiça e a sociedade rawlsiana Em Uma Teoria da Justiça Rawls defi ne a sociedade como uma associação humana mais ou menos autosufi ciente de pessoas que em suas relações mútuas reconhecem certas regras de conduta como obrigatórias e que na maioria das vezes agem de acordo com elasRawls 2000 p 5 Para Rawls essas regras refl etem um sistema de cooperação entre as pessoas caracterizando a sociedade como um empreendimento cooperativo que visa vantagens mútuas Assim a sociedade é cooperativa Os habitantes de um determinado espaço físico comum reconhecem re gras sociais que norteiam a sua conduta social e possuem uma inclinação à coo peração entre si a partir de uma identidade de interesses A sociedade enquanto esse empreendimento cooperativo no entanto afi rma Rawls não está isenta de confl itos As pessoas concordam que é melhor para elas individualmente fazer parte de um meio cooperativo mas não necessariamente concordam quanto à distribuição de benefícios produzidos pela cooperação social Rawls acredita que cada um preferirá obter para si uma parcela maior a uma menor dos bens produzidos pela cooperação social destacando como um dado característico da sociedade e como motivo de geração de confl itos que há uma escassez modera da implícita dos recursos naturais Segundo Rawls é preciso que a sociedade estabeleça regras sociais que norteiem o convívio humano a fi m de que a cooperação e não o confl ito pre valeça no meio social Essas regras são os próprios princípios de justiça social De acordo com Rawls os princípios de justiça fornecem um modo de atribuir direitos e deveres nas instituições básicas da sociedade e defi nem a distribuição apropriada dos benefícios e encargos da cooperação social Rawls 2000 p 5 A discussão sobre a justiça em John Rawls nasce portanto da necessidade de se 421 Capítulo 16 A justiça em John Rawls da relação entre os homens às Leonardo Carvalho Braga estabelecer um parâmetro distributivo dos benefícios obtidos através da coope ração social com o qual as pessoas concordem Questão importante a ser destacada concerne à publicidade das regras ou princípios acordados Rawls quer deixar claro que tais regras são de conheci mento de todos do corpo social como se fossem resultado de um grande contrato social entre todos os homens que fazem parte da sociedade A implicação desse fato é muito importante porque signifi ca que a publicidade das regras garante que os homens saibam quais os limites de suas ações e das ações dos outros o que promove uma base comum para a determinação de expectativas mútuas Outra importante questão acerca do contratualismo rawlsiano faz refe rência ao papel das instituições sociais Estas defi nem os direitos e os deveres das pessoas e infl uenciam decisivamente suas expectativas em relação ao que almejam para as suas vidas uma vez que nascem em posições sociais diversas Esse fato faz com que as pessoas tenham expectativas de vida também diversas não só em ambição mas também em condição de as realizar É sobre essas desi gualdades que os princípios de justiça são aplicados 1622 O contrato social rawlsiano e os princípios de justiça Para resolver o confl ito sobre a distribuição dos benefícios produzidos pela cooperação social Rawls cria a sua alegoria do contrato social com o objeti vo de formular os princípios de justiça que regularão a vida em sociedade e que servirão como parâmetro distributivo dos benefícios sociais Na alegoria do contrato social rawlsiano os homens encontramse na cha mada posição original Rawls 2000 p 19 que corresponde ao estado de natureza das teorias contratualistas tradicionais De acordo com a posição original que é meramente hipotética os homens não sabem entre outras coisas que lugar ocupam na sociedade se são ricos ou pobres qual a sua classe e seu status social Além disso não têm informação alguma a respeito de seus dotes e habilidades naturais nem sobre suas capacidades físicas e mentais tais como força ou defi ciência física inteligência ou ausência desta Essa posição original é assim carac terizada pelo que Rawls denomina de véu de ignorância Rawls 2000 p 146 ou seja pela falta de informação que os homens possuem a respeito de si mesmos e dos outros É sob o véu de ignorância que os homens escolhem os princípios de justiça e é ele que garante que ninguém será favorecido ou desfavorecido quando da escolha dos princípios de justiça em função da sorte natural ou da sorte social de cada um Rawls não considera justo ou injusto que exista esta ou aquela posição mais ou menos favorecida ou que uma pessoa nasça com dotes e habilidades 422 ELSEVIER Curso de Ciência Política naturais mais desenvolvidas e desfrute de uma posição social mais relevante Rawls no entanto entende que justa ou injusta pode ser a maneira pela qual as instituições sociais tratam tais desigualdades Os menos aptos e capazes física e mentalmente e que não dispõem de uma posição social relevante podem não ter as mesmas chances de realizar as perspectivas que planejarem para as suas vidas se dependerem somente de suas habilidades e dotes por natureza defi cientes e se além disso as instituições sociais não procurarem de alguma forma diminuir os efeitos dessas defi ciências Pensar a posição original com o recurso do véu de ignorância signifi ca anular as arbitrariedades sociais e naturais da condição de existência humana Assim a concepção de justiça social deve ser tal que permita dispor as pessoas ainda que possuam características diferentes tanto sociais como congênitas numa posição inicial de igualdade Dessa forma a alegoria rawlsiana da justiça cria um ambiente em que todas as pessoas estão por assim dizer na mesma posição hipoteticamente Ne nhuma delas desfruta de privilégios sociais ou naturais congênitos que lhes permitam se benefi ciarem mais da cooperação social do que outras Essa situa ção inicial então garante que as inclinações e aspirações particulares além das concepções individuais do bem não infl uenciem a escolha dos princípios de justiça Dessa maneira é possível afi rmar que na concepção de justiça como equida de as pessoas encontramse numa posição que lhes permite chegar ao consenso de quais regras os princípios de justiça serão por elas adotadas Rawls 2000 p 13 É importante apresentar também a elaboração do conceito de equilíbrio refl exivo elaborado por Rawls A ideia desenvolvida por ele sobre o equilíbrio refl exivo é observar se os princípios escolhidos pelas pessoas combinam com as suas ponderações sobre a justiça De acordo com Rawls a posição original delimita um momento em que as pessoas avaliam uma interpretação da situação inicial quando estão reunidas para a realização do contrato social pela capa cidade dos princípios escolhidos em atender às suas convicções mais profundas Rawls acredita que somente um consenso acerca das diversas concepções de justiça e pretensões de posições sociais pode possibilitar a existência de uma sociedade estável Segundo Rawls é preciso que os planos dos indivíduos se encaixem uns nos outros para que se evite assim que as expectativas legítimas de cada um sejam simplesmente desconsideradas e frustradas Por meio desses avanços e recuos às vezes alterando as condições das circunstâncias em que se deve obter o acordo original outras vezes modifi cando nossos juízos e conformandoos com os nossos princípios 423 Capítulo 16 A justiça em John Rawls da relação entre os homens às Leonardo Carvalho Braga suponho que acabaremos encontrando a confi guração da situação ini cial que ao mesmo tempo expresse pressuposições razoáveis e produza princípios que combinem com nossas convicções devidamente apura das e ajustadas A esse estado de coisas eu me refi ro como equilíbrio re fl exivo Tratase de um equilíbrio porque fi nalmente nossos princípios e opiniões coincidem e é refl exivo porque sabemos com quais princí pios nossos julgamentos se conformam e conhecemos as premissas das quais derivam Rawls 2000 p 23 A posição original na teoria ralwsiana de justiça é assim elemento fun damental para a compreensão do procedimento de escolha dos princípios de justiça e para a própria concepção de justiça como equidade Isso porque ao se considerar que a posição original tem por base a isenção das pessoas a respeito de informações particulares sobre suas habilidades talentos e posições sociais fi ca assegurado um processo equitativo de escolha dos princípios de justiça sem o favorecimento de umas em detrimento de outras Restanos então identifi car os princípios de justiça O primeiro princípio garante um sistema de liberdades básicas para to dos igualdade equitativa de oportunidades e uma divisão igual da renda e da riqueza O segundo princípio é decorrente do primeiro Considerando que al gumas pessoas que não se sabe quem são são menos favorecidas que outras pela sorte natural ou social é compreensível que no momento de elaboração do contrato seja escolhido um princípio que as proteja dessas contingências natu rais e sociais Assim as pessoas se dão conta de que quando caírem os véus de ignorância que as cobrem algumas delas encontrarseão em posição de desvan tagem em relação às outrasAs pessoas concordam então em admitir que tais desigualdades serão aceitas se e somente se forem vantajosas especialmente para os menos favorecidos da sociedade Desse modo não é afi rmado que a dis tribuição de bens sociais deva ser igual mas que em sendo desigual benefi cie de forma especial os menos favorecidos Os dois princípios de justiça são então apresentados por Rawls desta ma neira a Cada pessoa tem um direito igual a um esquema plenamente ade quado de iguais liberdades básicas que seja compatível com um esque ma idêntico de liberdades para todos b As desigualdades sociais e económicas devem satisfazer duas condi ções por um lado têm de estar associadas a cargos e posições abertos a todos segundo as circunstâncias da igualdade equitativa de oportuni 424 ELSEVIER Curso de Ciência Política dades por outro têm de operar no sentido do maior benefício possível dos membros menos favorecidos da sociedade Rawls 2001a p 277 O sistema de Rawls confi gura uma sociedade liberal em que ele considera injusto que as pessoas menos aptas social e naturalmente não desfrutem dos mesmos bens sociais e não tenham as mesmas oportunidades de perseguir seus interesses próprios Assim Rawls admite que a desigualdade social e econô mica exista mas que em existindo benefi cie especialmente as pessoas menos favorecidas pela sorte natural e social Esse é o sentido do segundo princípio de justiça Para Rawls não é sufi ciente manter o princípio de igualdade equitativa de oportunidades pelo qual se busca garantir acesso às posições sociais seme lhantes àquelas pessoas que dispõem de dotes e habilidades semelhantes Desse modo são satisfeitas as maiores expectativas daquelas pessoas que estão em me lhor situação Mas antes afi rma Rawls é preciso garantir que os menos aptos sejam em algum grau favorecidos A justiça rawlsiana consiste nessa premissa de compensação em função mesmo da defesa do liberalismo As compensações têm o papel de manter plenamente ativas as liberdades das pessoas menos favo recidas porque as preservam as pessoas numa condição de igualdade política e social enquanto agentes plenamente capazes de buscar realizar os seus planos de vida dentro das possibilidades de que a vida dispõe com as liberdades as oportunidades e o sentimento de autorespeito 163 O liberalismo político o liberalismo político entende o facto do pluralismo razoável como um pluralismo de doutrinas abrangentes que inclui as doutrinas religiosas e não religiosas Este pluralismo não é visto como um desastre mas antes como o resultado natural das actividades da razão humana no contexto de instituições livres duradouras Rawls 2001a p 22 O liberalismo político em Rawls trata na sua própria raiz liberal de con ceber a sociedade como uma coletividade composta por visões de mundo di ferentes Estas são por sua vez relacionadas a possibilidades de realização do humano a partir de critérios religiosos fi losófi cos e morais diferentes e even tualmente divergentes O que é preciso para garantir a escolha de princípios de justiça que garantam a existência e o convívio pacífi co entre essas diferenças é exatamente a imagem do véu de ignorância Está no espírito do liberalismo aceitar as diferença e tornar o meio social uma possibilidade de coexistência partilhada entre os diferentes entre si Esse pluralismo razoável que possibilita 425 Capítulo 16 A justiça em John Rawls da relação entre os homens às Leonardo Carvalho Braga o convívio de diversas doutrinas abrangentes defendidas por seus cidadãos so mente é possível a partir da validade de uma concepção política de justiça pela qual os princípios de justiça escolhidos têm cunho político e podem ser aceitos por todos os cidadãos independentemente de suas crenças pessoais religiosas morais ou fi losófi cas 1631 A concepção e as faculdades das pessoas Compreender a concepção e as faculdades das pessoas é um passo neces sário à própria compreensão e maior esclarecimento do contrato social rawlsia no Segundo Rawls as pessoas possuem duas faculdades morais a capacidade para uma concepção de bem e a capacidade para um sentido de justiça e as faculdades da razão de juízo de pensamento e inferência A primeira das faculdades morais a capacidade para uma concepção de bem é segundo Rawls a capacidade de formar rever e racionalmente prosseguir uma concepção da vantagem ou bem racional de cada um Rawls 2001a p 46 E a ideia de concepção de bem em si é expressa por Rawls como um esquema de fi nalidades mais ou menos determinado Rawls 2001a p 46 como um conjunto de fi ns e objetivos que cada pessoa deseja atingir para a sua vida A concepção de bem envolve a visão que cada pessoa tem do mundo a partir de considerações diversas religiosas fi losófi cas ou morais que susten tam a concepção de bem que cada pessoa elabora para si mesma Esse esquema de fi nalidades incorpora relacionamentos com outras pessoas além de ligações com grupos e associações A segunda faculdade moral da pessoa como pensada por Rawls é a capa cidade para um sentido de justiça Defi nido por Rawls um sentido de justiça é a capacidade de compreender aplicar e agir de acordo com a con cepção pública da justiça que caracteriza os justos termos da coopera ção social e expressa também um desejo de agir em relação aos outros segundo termos que os outros próprios possam também subs crever publicamente Rawls 2001a p 46 Na teoria da justiça em Rawls as pessoas desenvolvem a capacidade para um sentido de justiça quando da própria elaboração dos princípios de justiça e da percepção de que todos agirão de acordo com eles É a fé pública de que os princípios serão respeitados que faz com que as pessoas desejem respeitálos Rawls considera as pessoas como seres racionais que possuem interesses próprios e razoáveis dispõemse à realização do contrato pelo sentido de jus tiça que possuem Assim elas não agem somente motivadas pelo racional nem somente pelo razoável mas de acordo com o que a racionalidade e a razoabili 426 ELSEVIER Curso de Ciência Política dade permitem Rawls considera de início as pessoas como autointeressadas que no momento da realização do contrato social procurarão elaborar princípios de justiça que favoreçam as suas posições particulares O véu de ignorância vem exatamente impedir que isso ocorra De qualquer modo as pessoas são conside radas como agentes racionais que possuem interesses próprios apesar de não possuírem interesses nos interesses das outras pessoas Para além de considerar as pessoas exclusivamente racionais Rawls as considera também razoáveis Isso signifi ca dizer que as pessoas quando perce bem a si mesmas como iguais dispõemse a propor princípios de conduta social que estabeleçam justos termos de cooperação e também se dispõem a agir de acordo com eles contanto que as outras pessoas também o façam É o razoável que permite o exercício da negociação dos termos de cooperação e que possibi lita a confi guração do equilíbrio refl exivo tratado anteriormente As pessoas ra zoáveis mais que racionais promovem o entendimento acerca dos princípios escolhidos porque se dispõem efetivamente à prática do debate e à realização do consenso Nesse sentido nas palavras de Rawls sabermos que as pessoas são razoáveis quando outras pessoas estão envolvidas implica sabermos que estão dispostas a orientar sua conduta por um princípio a partir do qual elas e os ou tros podem raciocinar em comum Rawls 2001a p 71 n1 A concepção da pessoa em Rawls se caracteriza então pela complementaridade entre o racional e o razoável tendo por base a afi rmação da reciprocidade A sociedade rawlsiana não é expressão nem da busca exclusiva do auto interesse do extremo egoísmo racional nem da não busca ou altruísmo estrito Assim segundo Rawls a sociedade é expressa pela reciprocidade a partir da observação de que todas as pessoas possuem seus objetivos próprios que dese jam realizar e todas estão dispostas a propor justos termos de cooperação que acreditam que as outras pessoas razoavelmente possam aceitar fazendo com que todas as pessoas se benefi ciem da cooperação social 1632 A relação entre doutrinas abrangentes e consenso de sobreposição Além de caracterizar a concepção de justiça como pública Rawls a ca racteriza também como concepção política A concepção de justiça rawlsiana considera o entendimento das pessoas acerca dos elementos constitucionais es senciais e das questões básicas de justiça cujos princípios e valores todos os cidadãos possam subscrever Rawls 2001a p 39 A fi m de compreender melhor a justiça rawlsiana como uma concepção política é fundamental atentarmos a um ponto A concepção política de justiça deve ser compreendida como uma perspectiva independente Isso signifi ca que 427 Capítulo 16 A justiça em John Rawls da relação entre os homens às Leonardo Carvalho Braga ela não deve ter infl uência referência ou justifi cação fundada em qualquer dou trina abrangente de base mais ampla seja fi losófi ca religiosa ou moral mas que no entanto possa ser sustentada por elas Isso é importante porque as pessoas mesmo que afi rmem doutrinas abrangentes diferentes entre si são capazes a partir de então de sustentar coletivamente uma concepção de justiça que não privilegie esta ou aquela crença abrangente Alguns críticos de Rawls argumentam que desconsiderar as concepções de bem das pessoas que são elaboradas com base nas doutrinas abrangentes fi losófi cas religiosas ou morais implica correr o risco de permitir a existência ou a defesa de uma concepção de bem que não seja a melhor para a sociedade como um todo De acordo com Mulhall e Swift1 se por um lado é importante desconsiderar as contingências naturais e sociais que marcam as pessoas e aca bam por favorecer ou prejudicar a realização de seus planos de vida pela escolha de princípios de justiça viciados por outro lado colocar sob o véu de ignorân cia também as concepções de bem que essas pessoas trazem consigo pode dar margem a que eventuais concepções de bem irrazoáveis ou inferiores ganhem representatividade no meio social Presumindose que haja concepções de bem melhores que outras seria mais sensato que cada pessoas apresentasse sua con cepção de bem e que as piores não fossem admitidas Rawls pensa de maneira diferente O que ele imagina quando coloca sob o véu de ignorância a concepção de bem das pessoas não é simplesmente permitir que esta ou aquela concepção melhor ou pior seja defendida enquanto tal mas que seja permitido preservar a capacidade de se escolher uma concepção de bem seja ela qual for A ideia de Rawls é preservar a capacidade de elaborar rever e perseguir uma concepção de bem e não a concepção em si Isso é de fundamental importância para o exercício da tolerância e da democracia traços característicos bastante relevantes na teoria rawlsiana porque é através desse exercício que se preserva a liberdade das pessoas dos cidadãos A liberdade é o valor que Rawls pretende preservar e por isso é importante permitir que cada pessoa possa escolher de forma autônoma graças a sua capacidade para uma concepção de bem a aquela que melhor congrega suas crenças seus interesses e sua visão de mundo e não que esteja presa a ela desde sua origem A compreensão da justiça rawlsiana como uma concepção política está necessariamente relacionada ao entendimento do que Rawls designou de doutri nas abrangentes e consenso de sobreposição Para desenhar um cenário de consenso acerca dos princípios de justiça Rawls atribui às pessoas a capacidade para um 1 Cf Mulhall S Swift A El individuo frente la comunidad El debate entre liberales y comunitaristas p 43 428 ELSEVIER Curso de Ciência Política sentido de justiça É essa capacidade que permite entre as pessoas defensoras de doutrinas abrangentes diversas e concorrentes o exercício democrático de convívio de diferentes concepções de vida pois é através dele que as pessoas dispõem da capacidade de compreender aplicar e agir de acordo com a con cepção pública de justiça que caracteriza os justos termos da cooperação social Rawls 2001a p 46 É a partir desse cenário em que as pessoas vêem a si mesmas como livres e iguais racionais e razoáveis e possuidoras das capacidades para uma con cepção de bem e para um sentido de justiça que a teoria rawlsiana de justiça se efetiva Pois é nesse momento que se confi gura o consenso de sobreposição Rawls concebe o consenso de sobreposição como um consenso de doutrinas abran gentes razoáveis a favor da concepção política de justiça Somente pelo esta belecimento de uma base comum é que as pessoas podem debater acerca dos princípios de justiça que desejam para a sociedade Essa base comum é a políti ca É nesse sentido que a concepção política da pessoa e mais especifi camente a capacidade para um sentido de justiça ganha maior peso na teoria rawlsiana de justiça porque é através dele que as pessoas decidem aceitar e agir de acordo com princípios que todas elas consensualmente subscrevem Assim segundo Rawls a sociedade bemordenada é aquela que tem por base uma concepção política da justiça Isto é uma concepção pela qual os cidadãos que afi rmam doutrinas abrangentes opostas promovam um consenso de sobreposição subs crevendo essa concepção política da justiça como aquela que aproxima o conteú do dos seus juízos políticos o que pensam e o que esperam sobre as instituições básicas da sociedade 164 O direito dos povos Se não for possível uma Sociedade dos Povos razoavelmente justa cujos mem bros subordinam o seu poder a objetivos razoáveis e se os seres humanos fo rem em boa parte amorais quando não incuravelmente descrentes e egoístas poderemos perguntar com Kant se vale a pena os seres humanos viverem na terra Rawls 2001b p 169 Rawls percebe a Sociedade dos Povos a partir da seleção de seus princí pios de justiça como um ambiente defi nido pela igualdade de todos os povos enquanto povos no qual todos eles estão prontos para estabelecer entre si or ganizações cooperativas Esse ambiente tem por base uma condição equitativa dos povos em relação ao comércio por eles realizado e uma disposição para 429 Capítulo 16 A justiça em John Rawls da relação entre os homens às Leonardo Carvalho Braga cumprirem dispositivos de assistência mútua dos povos bemordenados para com os povos onerados 1641 Motivação e esperança Se o objetivo na sociedade fechada era o de propor princípios de justiça que constituíssem um parâmetro para a distribuição dos bens produzidos pela cooperação social na caracterização de uma sociedade liberal agora em O direito dos povos Rawls está preocupado em conceber um cenário no qual seja possível sociedades democráticas constitucionais razoavelmente justas existirem como membros da Sociedade dos Povos Rawls 2001b p 169 considerando natu ralmente a diversidade cultural entre os povos Agora para a Sociedade dos Povos Rawls elabora a sua utopia realista e defende o argumento da paz democrática kantiana ao propor princípios de justiça que sejam validados entre os povos Seu intuito é combater a injustiça política causadora dos grandes males da história humana elencados por ele como a guerra injusta e a opressão a perseguição religiosa e a negação da liberdade de consciência a fome e a pobreza para não mencionar o genocídio e o assassinato em massa Rawls 2001b p 78 Assim a ideia de desenvolver uma utopia realista tem seu entendimento quando Rawls a partir da verifi cação da realidade social vigente tenta construir um mundo em que esses males terão desaparecido Para Rawls é de fundamen tal importância pensar que esse mundo ainda não existente pode ser um dia alcançado Começo e termino com a ideia de uma utopia realista A fi losofi a política é realisticamente utópica quando expande aquilo que geralmente se pensa como os limites da possibilidade política prática Nossa esperança para o futuro da sociedade baseiase na crença de que a natureza do mundo so cial permite a sociedades democráticas constitucionais razoavelmente jus tas existirem como membros da Sociedade dos Povos Rawls 2001b p 6 Segundo Rawls tão logo políticas sociais justas sejam implementadas es ses males hão de desaparecer porque resultarão numa distribuição de sucesso entre os povos Ele assume uma postura fi rme em defesa de sua utopia realista Não devemos permitir que esses grandes males do passado e do pre sente solapem a nossa esperança no futuro da nossa sociedade per tencente a uma Sociedade dos Povos liberais e decentes ao redor do mundo Do contrário a conduta errônea má e demoníaca dos outros também nos destrói e sela a sua vitória Antes devemos sustentar e fortalecer nossa esperança desenvolvendo uma concepção razoável e 430 ELSEVIER Curso de Ciência Política funcional de direito político e justiça que se aplique às relações entre os povos Rawls 2001b p 29 Rawls afi rma que mesmo que não nos seja possível vivenciar no presen te a Sociedade dos Povos como ele a elabora é importante acreditarmos que ela pode concretizarse no futuro A utopia realista pensada por ele tem seu signifi cado na percepção de que a partir da realidade é possível desenhar um arranjo social capaz de ser realizado Rawls acredita que os limites do possível não são dados pela realidade em que vivemos pois o que venha a existir pode ser resultado de mudanças que os homens fazem nas e das instituições políti cas e sociais Enquanto acreditarmos por boas razões que é possível uma ordem política e social razoavelmente justa e capaz de sustentar a si mes ma dentro do país e no exterior poderemos ter esperança razoável de que nós ou outros algum dia em algum lugar a conquistaremos podemos então fazer algo por essa conquista Apenas isso deixando de lado o sucesso ou o fracasso é sufi ciente para eliminar os perigos da resignação e da incredulidade Ao demonstrar como o mundo social pode concretizar as características de uma utopia realista a fi losofi a política provê um objetivo de esforço político de longo prazo e ao trabalhar rumo a ele dá signifi cado ao que podemos fazer hoje Rawls 2001b p 168 Para Rawls o exercício a que se propõe a fi losofi a política estabelece uma meta a ser alcançada a realização própria da paz democrática da Sociedade dos Povos É preciso acreditar que essa paz democrática ainda que presentemente embrionária encontrase num processo pulsante de gestação em cada Povo e fe cunda na própria capacidade de se entender ser e sentirse Povo razoavelmente justo dessa utopia realista O Direito dos Povos rawlsiano possui então um elemento fortemente normativo Para Rawls o direito internacional e as relações entre os povos são compreendidos a partir da sua realidade inegável mas levando em con ta a questão do dever ser Está presente em Rawls assim como caracterís tica da teoria normativa um exercício teleológico de justiça que o direito internacional tentará efetivar como expressão maior do bem dos povos O fim último é a própria como dito realização da paz democrática entre os povos 431 Capítulo 16 A justiça em John Rawls da relação entre os homens às Leonardo Carvalho Braga 1642 A Sociedade dos Povos um exercício de tolerância Rawls apresenta cinco tipos de povos para se pensar a possibilidade da construção de sua Sociedade dos Povos povos liberais razoáveis povos de centes Estados fora da lei sociedades sob o ônus de condições desfavoráveis e absolutismos benevolentes Rawls acredita que a Sociedade dos Povos possa ser composta por povos bemordenados que são os povos liberais razoáveis democracias constitucionais liberais e povos decentes Os povos liberais são identifi cados por Rawls a partir de três caracterís ticas A primeira delas trata da representação de um governo constitucional razoa velmente justo que de acordo com Rawls é aquele governo cujo povo de tém de modo efi caz o seu controle político e eleitoral tem os seus interesses fundamentais defendidos e está amparado por uma constituição escrita ou não escrita A segunda característica dos povos liberais trata do que Mill chamou e Rawls aqui utiliza de afi nidades comuns a que estão ligados os seus cidadãos Tais afi nidades comuns vêm a confi gurar a própria nacionalidade do povo quando expressa a partilha entre seus cidadãos por exemplo da língua da religião dos limites geo gráfi cos da história nacional e da identidade de raças A terceira ca racterística atribuída por Rawls aos povos liberais trata do seu caráter moral Aqui a conduta racional dos povos através das eleições de suas leis e de seu governo está cerceada pela razoabilidade Assim a política externa dos povos li berais pode ser entendida como expressão da racionalidade de seus respectivos governos sujeitos à sua razoabilidade É o ser racional e o ser razoável ao mes mo tempo que permitem que os povos ofereçam termos justos de cooperação a outros povos Rawls caracteriza também os povos decentes O povo decente é defi nido como aquele que possui uma hierarquia de consulta decente e é chamado por Rawls de povos hierárquicos decentes Rawls atribui aos povos decentes dois cri térios que devem ser observados para que eles façam parte da Sociedade dos Povos O primeiro critério estabelece que os povos decentes não têm objetivos agressivos e reconhecem que para alcançar os seus interesses legítimos frente aos outros povos devem valerse da diplomacia do comércio e de outros meios pacífi cos Os povos decentes acreditam no comércio como meio de satisfação de necessidades e de cooperação e aceitam a situação simétrica que desfrutam quando se confi gura a posição original entre os povos O segundo critério de acordo com Rawls é dividido em três partes A primeira delas afi rma que os povos decentes a partir da ideia de justiça que possuem voltada para o bem comum garantem aos seus cidadãos a manutenção e preservação dos direitos humanos uma vez que esta é condição essencial para 432 ELSEVIER Curso de Ciência Política aqueles povos que estabelecem entre si um sistema de cooperação política e so cial Rawls ainda afi rma que os direitos humanos não são exclusivos dos povos liberais mas que os povos decentes também são capazes em maior ou menor grau de assegurálos aos seus cidadãos Rawls explicita alguns desses direitos humanos como o direito à vida aos meios de subsistência e segurança à liberdade à liberação de escravidão servidão e ocupação forçada e a uma medida de liberdade de consciência sufi ciente para assegurar a liberdade de reli gião e pensamento à propriedade propriedade pessoal e à igualdade formal como expressa pelas regras da justiça natural isto é que casos similares devem ser tratados de maneira similar Rawls 2001b p 85 A segunda parte do segundo critério afi rma que o sistema de Direito dos povos decentes deve estabelecer deveres e obrigações morais aos seus cidadãos para o bom funcionamento da sociedade que compõem As pessoas nos povos decentes são consideradas como seres responsáveis e cooperativos dos seus res pectivos grupos devendo assim mostrar um comprometimento forte com as obrigações e deveres frente às outras pessoas da sociedade que partilham Por fi m a terceira parte do segundo critério trata de haver uma crença sincera e razoável por parte dos juízes e do sistema jurídico como um todo de que as leis efetivamente são um refl exo da ideia de justiça do bem comum no sentido de que não foram elaboradas sem a aprovação de seus cidadãos mas que traduzem sim o entendimento destes e de seus representantes acerca dos princípios de justiça como instrumentos para a realização do bem comum É importante destacar ainda um ponto mais na discussão entre os povos liberais e os povos decentes Rawls considera que esses dois povos utilizam dis tintas ideias de justiça Os povos liberais desenvolvem a ideia de justiça baseada nos mais amplos direitos individuais Os povos decentes por outro lado tratam a justiça de acordo com a ideia do bem comum que refl ete por sua vez uma ideia mínima de direitos Para Rawls um quadro de manutenção de direitos mínimos é sufi ciente para qualifi car um povo decente a fazer parte da Sociedade dos Po vos em função mesmo da tolerância de que se dispõem as sociedades liberais para com as não liberais Rawls afi rma que contanto que as instituições básicas de uma sociedade não liberal cum pram certas condições específi cas de direito política e justiça e levem seu povo a honrar um Direito razoável e justo para a Sociedade dos Povos um povo liberal deve tolerar e aceitar essa sociedade Rawls 2001b p 78 Ao tratar do papel dos povos decentes na teoria rawlsiana Cabrera afi rma que de fato estes não devem ser entendidos como regimes ditatoriais ou des 433 Capítulo 16 A justiça em John Rawls da relação entre os homens às Leonardo Carvalho Braga potismos em que os seus cidadãos não possuem voz alguma Mas ao contrário os povos decentes são expressão da escolha livre de seus cidadãos por um de terminado modo de vida que não o liberal A existência dos povos decentes na Sociedade dos Povos é explicada então pela natureza ainda que não liberal mas aceitável de modo de vida Assim nas palavras de Cabrera The inclusion of the consultation hierarchy allows Rawls to claim that a decent nonliberal people is not merely a despotism or dictatorship but is a people with a unique way of life worthy of respect and noninterference from other peoples so we must respect the modes of life freely chosen by those citizens of de cent nonliberals states even if some in the nonliberal people have provisionally surrendered some of the rights we think are their due Cabrera 2001 p 92 Ainda na caracterização dos povos como as partes que realizam o contrato social no plano internacional Rawls trata da questão da soberania Rawls enten de que os povos não dispõem da soberania tradicional como considerada para os Estados Diferentemente destes aos povos à luz dos princípios de justiça elaborados no Direito dos Povos são negados os direitos tradicionais à guerra e à autonomia interna irrestrita Afi nal a Sociedade dos Povos é composta como pensa Rawls por povos liberais e povos decentes que mantêm entre si relações de paz de acordo com o pluralismo razoável no entendimento do liberalismo político Em relação à autonomia interna dos Povos o Direito dos Povos exige fortemente o respeito aos direitos humanos dentro dos limites de cada povo e entre eles e mantém permanente vigilância sobre a sua preservação Assim rompese com a concepção tradicional de soberania pela qual o Estado detém o poder excludente coercitivo legítimo sobre seus habitantes num determinado espaço geográfi co Para Rawls mais perigoso ou imperfeito que considerar a possibilidade da existência de povos decentes na Sociedade dos povos é pensar a existência humana sujeita toda ela a um tipo único de pensar o ordenamento da vida Qual quer que seja seu fundamento mesmo ariano religioso ou liberal constituise numa expressão de totalitarismo doentio A exposição da humanidade a um único padrão de comportamento que não permita o afl oramento do pluralismo 2 Cabrera Luis Toleration and tyranny in Rawlss Law of Peoples p 9 A inclusão da hierarquia con sultiva permite a Rawls defender que um povo não liberal decente não é meramente um despotismo ou uma ditadura mas é um povo com um tipo de vida único merecedor de respeito e de não interferência de outros povos então nós devemos respeitar os modos de vida livremente escolhidos pelos cidadãos de Estados não liberais decentes mesmo que alguns povos não liberais tenham provisionalmente recua do em alguns dos direitos que nós pensamos ser dever deles garantir Tradução do A 434 ELSEVIER Curso de Ciência Política razoável confi gura um despotismo desprezível ao qual a vida humana não se pode submeter A Sociedade dos Povos ao possibilitar a convivência entre povos decentes e povos liberais ainda que na forma de uma utopia realista contribui a partir da especulação e da conjectura para a construção no futuro de um cenário rico em manifestações religiosas morais e fi losófi cas envoltas num sistema cooperativo que tem como fi m maior a concretização plena e o aperfeiçoamento contínuo da justiça política entre os povos É essencial à teoria rawlsiana de justiça entre os povos como também o é para a sociedade fechada a concepção de tolerância Rawls entende que a tole rância dos povos liberais para com os povos não liberais mas decentes é expres sa não somente pelo exercício de sanções políticas por vias militares econômicas ou diplomáticas com o objetivo de fazer com que tal povo não liberal mude o seu comportamento Porém mais do que isso Rawls acredita que a tolerância tem seu signifi cado em dois fatores O primeiro trata da própria questão do li beralismo político concebido por Rawls como dito acima O segundo fator cuida do reconhecimento dessas sociedades não liberais como membros de boa repu tação sujeitos de direitos e deveres e plenamente cooperativos com os povos liberais para a formação de esquemas maiores de cooperação entre as partes na Sociedade dos Povos Aqui Beitz nos auxilia a compreender a postura rawlsiana quanto à questão da tolerância Rawls believes that some degree of cultural diversity is inevitable and that this will be refl ected in a diversity of political forms some of which may be in compatible with liberal principles but still satisfy conditions that justify their re cognition as cooperating members of international society Beitz 2000 p 43 Assim a fonte dessa tolerância vem exatamente do liberalismo político que as sociedades democráticas liberais consideram como fundamental para o próprio exercício da liberdade individual Está presente nas bases do pensa mento liberal Não podemos esquecer que Rawls relaciona a razão de ser da Sociedade dos Povos com o fi m dos grandes males da humanidade a guerra injusta e a perseguição religiosa a opressão e a negação da liberdade de cons ciência a fome e a pobreza e o genocídio e o assassinato em massa Todos eles estão relacionados à liberdade à existência do ser como um ser livre cheia de possibilidades e realizações no que há de melhor no espírito liberal a escolha de 3 Beitz Charles Rawlss Law of Peoples p 4 Rawls acredita que algum grau de diversidade cultural é inevitável e que isso será refl etido na diversidade de formas políticas algumas das quais podem ser incompatíveis com princípios liberais mas ainda satisfazer condições que justifi cam em reconhecimento como membros cooperativos da sociedade internacional Tradução do A 435 Capítulo 16 A justiça em John Rawls da relação entre os homens às Leonardo Carvalho Braga ser o que se quer ser Mesmo que esse ambiente liberal tenha suas regras e seus preceitos Mesmo que o ser seja o ser liberal Porque é o ser liberal que permite o não ser liberal através mesmo do exercício próprio e pleno da capacidade de ser as possibilidades do ser dentro de um ordenamento político moral de justiça partilhado que respeite a manifestação das diferenças morais fi losófi cas e reli giosas em suas mais diversas representações A capacidade de nós pessoas ou povos sermos o que desejamos ser dentre as várias possibilidades da existên cia humana individual e coletiva é traço característico do pensamento liberal e deve sêlo também na sua prática Por isso a Sociedade dos Povos não é composta somente por sociedades liberais porque estão em sua gênese liberal o conceito e a necessidade de to lerância entre as partes como marca própria do liberalismo político Os povos liberais então toleram os povos decentes a partir da certeza e da constatação de que os últimos cumprirão assim como os primeiros as condições específi cas de direito e de justiça a serem escolhidas e seguidas por eles mesmos como os parâmetros reguladores da Sociedade dos Povos razoavelmente justa Assim os povos liberais e decentes estão prontos a oferecer uns aos outros e a aceitar termos justos de cooperação que sejam aprovados por todos na certeza de que todos os honrarão A ideia é de elaborar princípios de justiça que sejam razoá veis para povos liberais e para povos decentes O critério de reciprocidade está marcadamente presente na Sociedade dos Povos como está na sociedade fecha da A certeza mútua do cumprimento desses termos faz então da Sociedade dos Povos um ambiente seguro A Sociedade dos Povos calcada no mesmo ideal de pluralismo razoável só poderia ser plural assim como é resultado da convivência pacífi ca entre di ferentes visões de mundo em torno de um conjunto de princípios de justiça po lítica A tolerância para Rawls assume o importante papel de conciliar os povos liberais e os povos decentes num mesmo ambiente no qual são partilhados prin cípios de justiça a partir da prática do respeito mútuo à essas representações cul turais enquanto povos que são As democracias liberais em nome desse respeito mútuo fruto próprio do liberalismo político e da concepção liberal de sociedade devem permitir que povos decentes existam como povos que são respeitando sua cultura e suas tradições sem tentar convertêlos em democracias liberais Rawls acredita que os povos decentes podem ao longo do tempo perceber como superior a constituição das sociedades como sociedades democráticas Rawls afi rma o valor do liberalismo político através do exercício do plura lismo razoável que permite o convívio entre povos liberais e povos decentes 436 ELSEVIER Curso de Ciência Política Certamente o mundo social dos povos liberais e decentes não é um mundo que pelos princípios liberais seja plenamente justo Alguns podem sentir que permitir essa injustiça e não insistir em princípios liberais para todas as sociedades exige razões fortes Creio que há tais razões O mais importante é manter o respeito mútuo entre os povos Cair no desprezo por um lado e na amargura e no ressentimento por outro só pode causar dano Essas relações não são uma questão da estrutura básica liberal ou decente de cada povo visto em separado Antes sustentar o respeito mútuo entre os povos na Sociedade dos Po vos constitui uma parte essencial da estrutura básica e do clima político dessa sociedade Rawls 2001b p 81 Cabrera contribui aqui para o entendimento do pensamento rawlsia no ao reforçar a postura adotada por Rawls de não interferência dos povos liberais nos povos decentes em relação às diferentes visões de mundo defen didas por eles Cabrera acredita que a defesa de valores liberais para todos os povos pode sugerir como uma defesa da democracia um imperialismo ocidental que pode levantar suspeitas sobre a sua razão de ser Assim Ca brera entende que It should be acknowledge here that discussion of any attempts by one state to encourage another to recognize a larger set of civil rights is bound to raise concern about Western imperialism or renewed adventurism in the name of democracy Any attempt by a liberaldemocratic state to persuade a hierar chical state to liberalize is likely to be greeted with suspicion about motive and the means to be used Cabrera 2001 p 64 Assim para Rawls mais valioso que defender ferozmente princípios de mocráticos liberais para todos os povos é preservar a pluralidade de manifes tações culturais políticas e sociais dentro dos limites do razoável que os povos liberais e os povos decentes se propõem a cumprir O respeito ao outro calcado na tolerância daquilo que nos é diferente fornece a base de justifi cação da exis tência da Sociedade dos Povos como pensada por Rawls plural e razoável 1643 Os princípios de justiça entre os povos e seu exercício O modelo de representação da posição original para a Sociedade dos Po vos obedece à mesma orientação apresentada no caso interno em quase todos 4 Cabrera Luis Op cit p 6 Deve ser observado aqui que a discussão sobre tentativas de um Estado encorajar outro a reconhecer um conjunto mais amplo de direitos civis leva à preocupação acerca do imperialismo ocidental ou aventura renovada em nome da democracia Qualquer tentativa de um Estado liberaldemocrático de persuadir um Estado hierárquico a liberalizar é visto com suspeita sobre os motivos e os meios a serem utilizados Tradução do A 437 Capítulo 16 A justiça em John Rawls da relação entre os homens às Leonardo Carvalho Braga os seus aspectos Os povos são capazes de cooperar entre si ao estabelecerem conjuntamente os princípios de justiça para a sociedade por eles formada Além disso os povos estão também cobertos pelo véu de ignorância As sim eles não conhecem o tamanho de seu território a população ou a força rela tiva uns dos outros como também desconhecem a condição de seus recursos na turais e o nível de desenvolvimento econômico que possuem Dessa maneira os povos vêem a si mesmos como livres e iguais por gozarem de posição equitativa no momento de escolha dos princípios que nortearão a Sociedade dos Povos Rawls entende que de acordo com essa situação os povos estão simetricamente dispostos em relação uns aos outros o que garante a imparcialidade na escolha dos princípios de justiça entre eles Na sociedade fechada os cidadãos elaboram os princípios de justiça e ofe recem uns aos outros o que consideram justos termos de cooperação razoáveis para que os outros cidadãos também aceitem Na Sociedade dos Povos as partes selecionam entre diferentes formulações ou interpretações dos oito princípios do Direito dos Povos É oportuno então elencálos conforme faz Rawls em O Direito dos Povos São eles 1 Os povos são livres e independentes e a sua liberdade e independên cia devem ser respeitadas por outros povos 2 Os povos devem observar tratados e compromissos 3 Os povos são iguais e são partes em acordos que os obrigam 4 Os povos sujeitamse ao dever de não intervenção 5 Os povos têm o direito de autodefesa mas nenhum direito de instigar a guerra por outras razões que não a autodefesa 6 Os povos devem honrar os direitos humanos 7 Os povos devem observar certas restrições especifi cadas na conduta da guerra 8 Os povos têm o dever de assistir outros povos vivendo sob condições desfavoráveis que os impeçam de ter um regime político e social justo ou decente Rawls 2001b p 4748 Assim Rawls percebe a Sociedade dos Povos a partir da seleção de seus princípios de justiça como um ambiente defi nido pela igualdade de todos os po vos enquanto povos no qual todos estão prontos para estabelecer entre si orga nizações cooperativas Esse ambiente tem por base uma condição equitativa dos povos em relação ao comércio por eles realizado e uma disposição dos povos para cumprirem dispositivos de assistência mútua dos povos bemordenados para com os povos onerados 438 ELSEVIER Curso de Ciência Política Segundo Rawls o objetivo de longo prazo dos povos bemordenados é trazer para a Sociedade dos Povos essas sociedades oneradas ou povos onera dos que carecem de tradições culturais e políticas além de capital humano e material para se tornarem bemordenadas Nesse sentido Rawls entende que os povos bemordenados têm o dever de assistir os povos onerados até que estes disponham de condições sufi cientes para se tornarem membros da Sociedade dos Povos O dever de assistência identifi cado no oitavo princípio de justiça para os povos é especifi cado melhor por Rawls como dispositivos para assistên cia mútua entre os povos em tempos de fome e seca e na medida do possível dispositivos para assegurar que em todas as sociedades liberais e decentes razoáveis as necessidades básicas dos povos sejam cumpridas 165 O direito dos povos como direito internacional da teoria à prática O papel do dever de assistência é ajudar sociedades oneradas a tornaremse membros plenos da Sociedade dos Povos e capazes de determinar o caminho do futuro por si mesmas Rawls2001b p 155 O que o dever de assistência proporciona assim como o princípio da di ferença o faz para as pessoas menos favorecidas é a melhora na qualidade de vida dos povos onerados possibilitandolhes desfrutar de uma condição que lhes permita desenvolver os seus interesses agora como povos bemordenados perante outros povos de acordo com os valores de dignidade tolerância e auto respeito 1651 Diretrizes para o dever de assistência Rawls identifi ca três diretrizes que devem ser consideradas para que se efetive o dever de assistência A primeira diretriz é considerar que uma socieda de bem ordenada não precisa ser uma sociedade rica Rawls afi rma que Uma sociedade com poucos recursos naturais e pouca riqueza pode ser bem ordenada se as suas tradições políticas sua lei e sua estrutura de propriedade e classes juntamente com as crenças morais e religiosas e a cultura subjacentes são tais que sustentem uma sociedade liberal decente Rawls 2001b p 139140 Rawls afi rma ainda que o dever de assistência dos povos bemordenados para com os povos onerados não implica necessariamente um princípio de jus tiça distributiva a fi m de regulamentar as eventuais desigualdades econômicas e sociais entre os povos Rawls acredita que um princípio dessa natureza não 439 Capítulo 16 A justiça em John Rawls da relação entre os homens às Leonardo Carvalho Braga apresenta claramente um limite da ação da assistência a partir do qual tal dever possa ser suspenso Além disso entende que os níveis de riqueza e de bemestar entre os povos possam variar mas que não é o objetivo do dever de assistência ajustar esses níveis A segunda diretriz apontada por Rawls para o cumprimento do dever de assistência trata de considerar como elemento de extrema importância a cultura política de uma sociedade onerada pois é fundamentalmente nela que Rawls acredita encontrarem as causas e as formas da riqueza de um povo Desse modo considera que os povos em geral mesmo quando dotados de poucos recursos podem a partir dos parâmetros do racional e do razoável se tornar bemordena dos Rawls destaca ainda como elementos importantes para que um povo onera do se torne um povo bemordenado as virtudes políticas o funcionamento de sua estrutura básica a capacidade de inovação e de industrialização e o talento cooperativo dos seus cidadãos Assim Rawls afi rma sem negar a importância do dinheiro que mais do que oferecer apoio fi nanceiro aos povos onerados é importante cuidar das eventuais defi ciências políticas e sociais e dos desvios de conduta dos governantes que não permitem a realização plena da justiça na sociedade Isso porque em função da má administração ou por exemplo da corrupção os recursos fi nanceiros e materiais podem não ser bem utilizados e a sociedade não alcançará os níveis de bemestar desejado para um povo bem ordenado Nas palavras de Rawls O que se deve perceber é que meramente dispensar fundos não será su fi ciente para retifi car as injustiças políticas e sociais básicas embora o dinheiro muitas vezes seja essencial Mas uma ênfase sobre os direitos humanos pode ajudar regimes inefi cazes e a conduta dos governantes que forem insensíveis ao bemestar do seu próprio povo Rawls 2001 p 140141 A terceira diretriz para o cumprimento do dever de assistência está rela cionada ao alvo requerido para que a assistência não seja mais necessária De acordo com Rawls os povos onerados devem receber a assistência até o mo mento em que sejam capazes de gerir os seus próprios negócios de um modo razoável e racional Rawsl 2001b p 142143 Esse é o alvo da assistência um momento de conquista por parte dos povos onerados de autonomia própria para o exercício de suas virtudes políticas e sociais e de suas atividades econô micas sem o auxílio dos povos bem ordenados Rawls chama a atenção de que é preciso evitar o paternalismo ou seja que chegado o momento sufi cientemente adequado os povos onerados tenham garantidas a liberdade e a igualdade como um povo agora bem ordenado Rawls considera muito importante que o espaço 440 ELSEVIER Curso de Ciência Política público dos povos outrora onerados sejam respeitados enquanto confi guração e expressão da cultura local de um povo bem ordenado Acredita também que as manifestações culturais diversas desses povos apesar de diferentes são boas em si mesmas e por isso é valioso para os seus cidadãos estarem à elas vincu lados desenvolvendo laços cívicos de convivência e de partilha de uma cultura comum Nas palavras de Rawls certamente é um bem para os indivíduos e associações estarem vin culados à sua cultura particular e participarem da sua vida pública e cívica comum Dessa maneira pertencer a uma sociedade política par ticular e sentirse à vontade no seu mundo cívico e social ganham ex pressão e plenitude Isso não é pouca coisa É um argumento a favor da preservação de espaço signifi cativo para a ideia de autodeterminação de um povo Buscamos um mundo em que desapareçam os ódios étnicos que levam a guerras nacionalistas Um patriotismo adequado é apego ao nosso povo e ao nosso país disposição para defender suas reivindicações legítimas e ao mesmo tempo respeitar as reivindicações de outros povos Rawls 2001b p 146147 Na Sociedade dos Povos os povos também são considerados livres e iguais entre si como povos que são como representantes de coletividades e portanto como fontes legítimas de reivindicações como as pessoas são na socie dade fechada Os povos tomam parte no contrato social internacional da mesma maneira que as pessoas o fazem no caso interno Todos os povos têm os mesmos direitos inclusive o direito de ser assistido enquanto for um povo onerado a fi m de que possa num futuro próximo fazer parte da Sociedade dos Povos Assim da mesma maneira que as pessoas menos favorecidas são bene fi ciadas pelo princípio da diferença os povos onerados são benefi ciados pelo dever de assistência que os povos bem ordenados têm para com eles O raciocí nio no dois casos é o mesmo Rawls defende uma situação inicial de igualdade para as pessoas entre si e para os povos entre si e provê condições que pos sibilitem que essa igualdade se perpetue a partir da reparação de defi ciências congênitas e sociais A posição original é utilizada também no segundo caso na Sociedade dos Povos para tratar os povos como iguais sem distinções arbitrárias que viciem a escolha dos princípios de justiça Assim o dever de assistência e o princípio de diferença têm o mesmo papel Rawls imagina uma sociedade fechada e dos Povos como aquela em que os que dela fazem parte indivíduos e povos res pectivamente possam a partir de uma situação equitativa buscar a realização dos seus planos de vida dentro dos limites do racional e do razoável Rawls 441 Capítulo 16 A justiça em John Rawls da relação entre os homens às Leonardo Carvalho Braga imagina uma sociedade que evite e minimize as arbitrariedades e contingências da vida humana e social e não que as perpetue É preciso garantir com convicção e determinação mas sem paternalismos exagerados que as pessoas e os povos disponham de condições sufi cientemente necessárias que os capacitem a reali zar os seus objetivos de vida 1652 O debate entre cosmopolitismo e comunitarismo O exercício do dever de assistência voltado para sanar defi ciências in ternas de outros povos pode pressupor eventualmente a ruptura de alguns padrões tradicionais de confi guração das relações internacionais especialmente o da soberania Afi nal apontar um povo como onerado e dizer que ele precisa de assistência parece sugerir a violação desse padrão tão caro aos povos a não ser que o governante em determinado caso solicite essa assistência O debate sobre a então validade do dever de assistência põe de um lado aqueles que acreditam ser bom e necessário intervir em assuntos internos e do outro aqueles que se opõe a tal prática interventora O que está na base dessa dis sensão é a relação entre validar atos intervencionistas em povos supostamente onerados em defesa de princípios de justiça gerais e o respeito a princípios de justiça criados numa particularidade historicamente determinada A tentativa de preservar o exercício de direitos gerais que deveriam ser protegidos por to dos os povos internamente pode ser encarado como um desrespeito a um con junto de direitos específi cos criados por uma coletividade A linha entre garantia e desrespeito a direitos é muito tênue em função mesmo da compreensão e do acordo que podemos desenvolver sobre quais direitos devem ser preservados e que atos internos signifi cam a violação destesO debate entre comunitaristas e cosmopolitas tenta dar conta desse dilema Segundo Morrice é possível identifi car três pontos principais sobre o de bate entre liberais e comunitaristas Morrice 2000 p 235238 O primeiro ponto trata do indivíduo Os liberais em geral assumem que o indivíduo possui uma identidade ou valor anterior e independente da sociedade como se o indivíduo possuísse uma essência anterior à formação da sociedade Os comunitaristas acreditam por outro lado que o indivíduo é constituído pela comunidade na qual vive e que os valores que o infl uenciam e guiam sua vida são dados pela sociedade O segundo ponto referese à comunidade Os liberais tendem a valo rizar o individualismo contra o coletivismo autointeresse contra bem comum e mercado livre contra regulação estatal Os comunitaristas argumentam que esse individualismo e autointeresse são destrutivos da vida social da comunidade da coesão social e da solidariedade Além disso consideram que há um bem 442 ELSEVIER Curso de Ciência Política comum e um interesse da comunidade que são maiores que o bem ou interesse individual O terceiro ponto cuida da justifi cação dos princípios políticos Os liberais buscam uma base neutra para princípios de justiça política que sejam universais Para os comunitaristas o papel da fi losofi a política não é o de estabelecer a exis tência neutra de princípios universais mas explicitar os valores e signifi cados partilhados da comunidade A justifi cação de princípios políticos não se pode dar de acordo com a posição comunitarista pela neutralidade da comunidade política mas sim no reconhecimento de que existem visões de mundo diversas Assim de um modo geral o liberalismo procura defender a dignidade e a inte gridade do indivíduo e procura também promover a base imparcial ou objetiva para a formulação e a aplicação universal dos princípios de justiça O comuni tarismo por outro lado afi rma que os indivíduos não podem viver e que não vivem efetivamente suas vidas inteiras fora de suas comunidades e destacam as consequências antisociais do individualismo liberal Além disso o comunitaris mo a partir da noção de relativismo moral também questiona a posição liberal de neutralidade estatal para a formulação e justifi cação dos princípios de justiça Quando esse debate é colocado no campo das relações internacionais po demos considerar novamente os três pontos destacados acima Assim os cos mopolitas consideram o indivíduo como humano e não somente como cidadão e a comunidade global como de todos os humanos e não composta somente de várias comunidades políticas particulares neste caso os Estados nacionais pri vilegiadamente pois o que está em jogo é a validade de princípios universais que não sejam restritos a este ou àquele cidadão ou a esta ou àquela comunidade política mas que sejam aplicados a toda a espécie humana Os cosmopolitas acreditam que antes de fazerem parte de uma comunidade política específi ca os indivíduos possuem características comuns que os identifi cam como seres humanos E assim sendo a caracterização dos indivíduos como seres humanos é mais importante que sua constituição como cidadãos Para os cosmopolitas a noção de comunidade ameaça liberdades e direitos individuais além de sugerir que a divisão do mundo entre nós e eles negligencia a importância da vali dade e da aplicação de princípios de justiça universais A tendência e talvez a falha do cosmopolitismo é defender o liberalismo como ponto de vista válido universalmente o que sugere invalidar todos os outros pontos de vista que pos sam existir dentro dos limites do razoável Diferentemente dos cosmopolitas os comunitaristas rejeitam a caracteri zação dos indivíduos como seres humanos existentes a priori de suas respectivas comunidades políticas por acreditarem constituir isso risco de um imperialismo 443 Capítulo 16 A justiça em John Rawls da relação entre os homens às Leonardo Carvalho Braga cultural que crie preceitos e valores universais para todos os indivíduos indepen dentemente de suas crenças e culturas particulares Por isso os comunitaristas defendem a ideia de relativismo moral É essa ideia que garante a preservação das comunidades políticas enquanto tais ou seja enquanto locus privilegiador de culturas distintas O comunitarismo defende conceitos e valores como existências sociais e culturais distintas e que somente é possível pensar a justiça dentro de um contex to históricosocial particular A diversidade cultural é a defesa contra a opressão resultante da homogeneização liberal do cosmopolitismo Já não se elaboram uma idealização e uma abstração do agente humano ao contrário tratase do outro concreto no sentido em que o outro é resultado de história práticas costu mes e padrões diferentes do eu E isso exige que mais que uma universalização de direitos e deveres haja respeito à preservação do particular do local do ex clusivo do diferente Para o comunitarismo a imposição de padrões universais constitui uma injustiça e uma violação à integridade dos grupos diversos Nesse debate o liberalismo político rawlsiano acredita que é possível a convivência de povos que defendem doutrinas abrangentes diferentes e que a tolerância válida entre pessoas na sociedade fechada é característica do libera lismo político também entre os povos A maneira mais adequada de simples mente não homogeneizar globalmente as pessoas e pretender que elas defen dam um ponto de vista universal calcado na democracia liberal é considerar os povos como sujeitos do Direito Internacional com as suas diferentes e razoáveis visões de mundo num exercício que a tolerância permite realizar 1653 O direito dos povos da teoria à prática A partir de agora utilizarnosemos mais repetidamente das palavras de Rawls para tratar sumariamente de uma questão polêmica que é desenvolvida desde os escritos kantianos e que permanece nos dias de hoje o intervencionis mo Rawls parece assumir uma postura paradoxal Ao mesmo tempo que de fende o modelo democráticoliberal como referência maior de organização so ciopolítica com toda a defesa de direitos humanos mais amplos possíveis que isso sugere compreende que a realidade das relações internacionais não pode abarcar somente essa experiência liberal mas que encerra também outras que devem apesar de não liberais ser respeitadas Mas ao que se deve esse res peito às outras sociedades que não as liberais Ralws afi rma que a garantia do exercício de alguns direitos humanos pode ser motivo sufi ciente para que as so ciedades liberais respeitem as não liberais e que assim essas sociedades podem 444 ELSEVIER Curso de Ciência Política ser entendidas como bemordenadas e compondo a Sociedade dos Povos Bem ao tratar da realização da paz democrática Rawls afi rma que ela está sujeita a cinco condições que devem ser cumpridas pelos povos São elas 1 certa igualdade imparcial de oportunidade especialmente na educa ção a fi m de que todas as partes de sua sociedade possam participar dos debates da razão pública e possam também contribuir para as políticas sociais e econômicas 2 uma distribuição decente de renda e riqueza para que sejam garan tidos a todos os cidadãos os meios necessários para que façam uso inteligente e efi caz das suas liberdades básicas 3 ter a sociedade como empregador em última instância por meio do governo pois assim há um quadro de percepção de segurança e de oportunidade de trabalhos e cargos signifi cativos que mantém a sen sação de autorespeito entre cidadãos 4 assistência médica básica assegurada para todos os cidadãos 5 fi nanciamento público das eleições e disponibilização da informação pública sobre questões políticas Rawls 2001b p 6465 De acordo com Rawls à medida que cada povo liberal satisfaz essas con dições fi ca menos inclinado a guerrear com Estados fora da lei não liberais As sim as possibilidades de guerra restringemse a casos de legítima defesa ou pro teção dos direitos humanos Mas não podemos nos esquecer do rol apresentado em Uma Teoria da Jus tiça acerca dos direitos humanos que os homens numa sociedade liberal defen deriam a partir da noção de bens sociais primários Estes bens são defi nidos por Rawls como coisas que se supõe que um homem racional deseja não importa mais o que ele deseje Rawls 2000 p 27 Rawls considera que as pessoas pre fi ram ter uma quantidade maior a uma menor desses bens independentemente dos seus planos de vida Por isso mesmo são chamados bens sociais primários Segundo Rawls é a partir da posse desses bens que as pessoas acreditam poder alcançar seus planos de vida com maior sucesso Rawls caracteriza esses bens amplamente como direitos liberdades e oportunidades assim como renda e ri queza Rawls 2000 p 98 Além disso procura defi nilos mais especifi camente em cinco grupos a direitos e liberdades básicos que são igualmente dados por uma lis ta b liberdade de circulação e livre escolha da ocupação face a um quadro de oportunidades plurais 445 Capítulo 16 A justiça em John Rawls da relação entre os homens às Leonardo Carvalho Braga c poderes e prerrogativas de cargos e posições de responsabilidade nas instituições políticas e económicas da estrutura básica d rendimento e riqueza e por fi m e as bases sociais do respeito próprio ou autorespeito Rawls 2001a p 181182 Os direitos e liberdades básicos a que se refere Rawls no item a da lis ta acima são apresentados posteriormente do seguinte modo liberdade de pensamento e liberdade de consciência as liberdades políticas e a liberdade de associação bem como as liberdades especifi cadas pela liberdade e integridade da pessoa e fi nalmente os direitos e liberdades cobertos pelo princípio do do mínio da lei Rawls 2001a p 278 Os direitos logo acima elencados parecem compor os itens 1 e 2 daqueles que os povos liberais devem cumprir a fi m de alcançarem a paz democrática Aqui devemos entender que a paz democrática não implica que todos os povos sejam democráticos já vimos como isso é trabalhado por Rawls O sinônimo de democracia entre os povos se dá pela compreensão da existência do outro que me é diferente e do convívio tolerante que os diferentes estabelecem entre si Em relação aos povos não liberais mas decentes Rawls afi rma que eles devem honrar as leis da paz seu sistema de Direito deve ser tal que res peite os direitos humanos e imponha deveres e obrigações a todas as pessoas no seu território Seu sistema de Direito deve seguir uma ideia de justiça do bem comum que leve em conta o que vê como interesses fundamentais de todos na sociedade E fi nalmente deve haver uma crença sincera e não irrazoável da parte de juízes e outros funcioná rios de que a lei é realmente guiada por uma ideia de justiça do bem comum Rawls 2001b p 88 Se Rawls considera que a Sociedade dos Povos é composta por povos li berais e não liberais mas decentes a razão de ser do Direito dos Povos além de preservar estes povos como são parece então estar relacionada aos chamados por Rawls de povos onerados Estados fora da lei e absolutismos benevolentes Es ses são os povos respectivamente que não são expansionistas mas carecem de tradições políticas e culturais de capital humano e conhecimento técnico e muitas vezes dos recursos materiais e tecnológicos necessários para que sejam bem ordenadosRawls 2001b p 139 são expansionistas na perspectiva clás sica do Estado como ator egoístaracional e honram a maior parte dos direitos humanos mas negam aos seus membros um papel signifi cativo nas decisões políticas Rawls 2001b p 83 446 ELSEVIER Curso de Ciência Política Esses devem ser os povos causadores dos grandes males da humanidade como afi rma Rawls a guerra injusta e a opressão a perseguição religiosa e a negação da liberdade de consciência a fome e a pobreza para não mencionar o genocídio e o assassinato em massa Rawls 2001b p 7 Vamos lembrar o 8º princípio de justiça entre os povos pensado por Rawls o dever de assistência os povos têm o dever de assistir outros povos vivendo sob condições desfa voráveis que os impeçam de ter um regime político e social justo ou decente Rawsl 2001b p 48 Aqui a questão sobre o intervencionismo ganha cor Rawls afi rma ainda que O objetivo a longo prazo das sociedades relativamente bemordena das deve ser o de trazer as sociedades oneradas tal como os Estados fora da lei para a sociedade dos povos bem ordenados Os povos bem ordenados têm um dever de assistir as sociedades oneradas Rawls 2001b p 139 Rawls ainda trata da relação do 8º princípio dever de assistência com o 1º liberdade e independência e o 4º não intervenção de modo a privilegiar o dever de assistência Um princípio como o quarto o da não intervenção obviamente terá de ser qualifi cado no caso geral de Estados fora da lei e de violações graves dos direitos humanos Embora adequado a uma sociedade de povos bemordenados fracassa no caso de uma sociedade de povos de sordenados na qual as guerras e violações sérias dos direitos humanos são endêmicas Rawls 2001b p 48 E continua O direito à independência e igualmente o direito à autodeterminação são válidos apenas dentro de certos limites Assim nenhum povo tem o direito de autodeterminação ou um direito de secessão à custa de subjugar outro povo Tampouco pode um povo protestar contra a sua condenação pela sociedade mundial quando as suas instituições internas violam os direitos humanos ou limitam os direitos das minorias de viver entre ele O direito de um povo à independência e à autodeterminação não é escudo contra a condenação ou mesmo contra a intervenção coerci tiva de outros povos em casos graves Rawls 2001b p 4849 Visualizamos essa discussão muito claramente hoje A questão acerca da intervenção ou da não intervenção chega mesmo a causar debates calorosos e posições antagônicas fervorosas A polêmica levantada sobre o intervencionis mo faz referência às razões aos meios e aos fi ns da intervenção Aternosemos brevemente aos fi ns A crítica feita é a de que há uma tentativa de ocidentaliza 447 Capítulo 16 A justiça em John Rawls da relação entre os homens às Leonardo Carvalho Braga ção do mundo e de democratização das outras sociedades Essa crítica parece fazer sentido quando levamos em conta os desígnios cosmopolitas de libertação e liberalização das sociedades no mundo como apresentados anteriormente A paz democrática para os cosmopolitas inspira de fato a necessidade de que a democracia seja o modelo político a ser adotado para que ela efetivamente seja perpétua Tudo isso em função da abstração pela qual o homem é considerado Não existem homens concretos no plural para o cosmopolitismo mas apenas o homem como única representação da espécie humana Os comunitaristas ca minham em direção contrária Para eles o homem é uma experiência concreta factual e histórica Abstrair a existência humana para tentar pensar numa essên cia humana constitui um erro e um perigo de universalização incompatível com as diferentes representações sociais do humano ou dos homens Em Rawls há outra percepção Nem cosmopolista nem comunitarista Talvez um pouco dos dois E talvez aí esteja a grande riqueza da contribuição de Rawls para a compreensão de um direito internacional O liberalismo político rawlsiano se opõe à ocidentalização e à democratização do mundo para garantir a paz entre os povos Ao contrário está no espírito liberal aceitar diferenças culturais religiosas fi losófi cas morais etc que são resultado de um processo histórico particular de construção social Essas diferenças devem ser respeita das Claro que há condicionantes Para Rawls o respeito às diferenças entre os povos está ligado ao respeito aos direitos humanos mínimos dentro dos povos É preciso garantir um nível de liberdade e de representação política que permita aos indivíduos que compõem os povos um patamar mínimo de seu exercício em povos liberais e não liberais mas decentes povos hierárquicos Por isso o Direito dos Povos não é etnocêntrico ou ocidental especialmen te porque o critério de reciprocidade entre os povos é satisfeito povos liberais e não liberais são capazes de cumprir internamente e uns em relação aos outros critérios de conduta que os princípios de justiça entre eles estabelecem Assim é mantido o respeito mútuo entre os povos e não se confi guram o desprezo a amargura e o ressentimento entre eles nem a dominação porque enquanto povos são iguais É assim realizado o Direito dos Povos ou pelo menos esse é o exercício que devemos tentar fazer o respeito às diferenças e o contrato às necessidades e padrões mínimos de conduta individual e coletiva 166 Conclusão O caminho que percorremos até aqui foi o de apresentar os principais as pectos da formulação do pensamento de John Rawls sobre a justiça entre os homens e entre os povos Foinos possível observar algumas semelhanças no 448 ELSEVIER Curso de Ciência Política contratualismo ralwsiano nessas duas esferas da ação humana Talvez a mais signifi cativa delas seja a defesa do liberalismo político Para Rawls um liberal não há valor maior a ser defendido que a liberdade humana e é essa liberdade que permite que homens e povos escolham num determinado momento da his tória quais serão os critérios de justiça que nortearão as suas vidas A defesa do liberalismo político é de fundamental importância para que sejam escolhidos princípios de justiça que possibilitem a realização razoável dos planos de vidas que os homens desejam para si enquanto indivíduos e en quanto componentes de uma coletividade É a liberdade que garante a possibi lidade dessa realização Na difi culdade ou na dúvida de que essa realização possa ser alcançada o Estado tem de proteger os menos afortunados natural e socialmente preservan doos da má sorte na distribuição de renda e riqueza e de participação político social O princípio da diferença tenta dar conta disso ao propor algum sistema de compensação ou proteção social aos menos favorecidos Da mesma forma o dever de assistência nas relações internacionais tenta prover aos povos onera dos a possibilidade de a partir do respeito aos direitos humanos oferecer uma vida em que a liberdade e a participação dos indivíduos sejam minimamente garantidas Fica muito claro então o papel intervencionista da justiça e do direito rawlsianos tendo por base o liberalismo político para evitar que visões de mun do diferentes sejam castradas e para que não corramos o perigo de fazer da intervenção um exercício etnocêntrico ou ocidental a garantia de bemestar e da possibilidade de realização dos planos de vida a partir de um mínimo comum partilhado entre os homens e entre os povos 167 Perguntas para reflexão 1 Qual é a proposta da justiça rawlsiana 2 Qual a importância do véu de ignorância na teoria de Rawls 3 Qual a relação entre doutrinas abrangentes e consenso de sobreposição e qual sua importância no pensamento rawlsiano de justiça 4 Quais as principais considerações do comunitarismo 5 Quais as principais considerações do cosmopolitismo 6 De que maneira o liberalismo político de Rawls se insere neste debate comunitarismo x cosmopolitismo 449 Capítulo 16 A justiça em John Rawls da relação entre os homens às Leonardo Carvalho Braga 7 Qual é a proposta do Direito dos Povos 8 O que faz com que os povos não liberais mas decentes possam compor a Sociedade dos Povos 9 De que modo podemos relacionar o princípio da diferença com o dever de assistência 10 Como relacionamos o Direito dos Povos com o intervencionismo Bibliografia BEITZ Charles International Ethics Nova Jersey Princeton University Press 1985 Political Theory and International Relation Princeton Nova Jersey Princeton University Press 1979 International Liberalism and Distributive Justice World Politics v 51 n 2 1999 Social and cosmopolitan liberalism International Affairs 75 3 1999 Rawlss Law of Peoples Ethics 110 4 2000 BROWN Chris John Rawls The Law of Peoples and International Poli tical Theory Ethics and International Affairs v 14 2000 The construction of a realistic utopia John Rawls and internatio nal political theory Review of International Studies 28 2002 CABRERA Luis Toleration and tyranny in Rawlss Law of Peoples Polity winter 2001 CITTADINO Gisele Pluralismo direito e justiça distributiva Elementos da fi lo sofi a constitucional contemporânea Rio de Janeiro Lumen Juris 2000 KUKATHAS Chandran PETTIT Philip Rawls Uma Teoria da Justiça e os seus Críticos Trad Maria Carvalho Lisboa Gradiva 1995 MOELLENDORF Darrel Cosmopolitan justice Colorado Westview Press 2002 MORRICE David The liberalcommunitarian debate in contemporary po litical philosophy and its signifi cance for international relations Review of International Studies v 26 2000 MULHALLS S SWIFT A El individuo frente la comunidad El debate entre liberales y comunitaristas Madri Temas de Hoy 1996 RAWLS John Uma Teoria da Justiça Trad Almiro Pisetta Lenita Esteves São Paulo Martins Fontes 2000 450 ELSEVIER Curso de Ciência Política Justicia como equidad Materiales para una teoria de la justicia 2 ed Trad Miguel Angel Rodilla Madri TECNOS SA 1999 O Liberalismo Político Trad João Sedas Nunes Lisboa Presença 2001a O Direito dos Povos Trad Luís Carlos Borges São Paulo Martins Fontes 2001b VITA Alvaro de Uma concepção liberaligualitária de justiça distributiva DADOS v 14 n 39 1999 Justiça Distributiva A Crítica de Sen a Rawls DADOS v 42 nº 1999 Justiça Liberal Argumentos liberais contra o neoliberalismo Rio de Ja neiro Paz e Terra 1993 A justiça igualitária e seus críticos São Paulo UNESP 2000 Capítulo 17 Estado mínimo contra a fase histórica camaleônica do Estado capitalista um estudo da teoria neoliberal de Robert Nozick Wallace dos Santos de Moraes1 171 Vida e obra Robert Nozick nasceu em Nova York em 1938 no seio de uma família de russos emigrados e faleceu em janeiro de 2002 em Harvard Graduouse em Filosofi a na Universidade de Columbia onde participou como ativo militante de um pequeno partido político socialista Na sua pósgraduação em Princeton teve contato com as ideias neoliberais infl ectindo sua posição política de mi Professor adjunto da Universidade Federal Fluminense Pesquisador senior do NEICIUPERJ e do INCTPPED Doutor e mestre em Ciência Política IUPERJ Bacharel e licenciado em História UFRJ Pósgraduado em História contemporânea UFF Contato moraeswsyahoocombr 452 ELSEVIER Curso de Ciência Política litante socialista passou a defensor ardoroso do neoliberalismo Sem embargo foi em Harvard como professor que se tornou um ícone deste pensamento no mundo político com a obra Anarquia Estado e Utopia 1974 objeto de pesquisa neste ensaio Nozick foi autor de dentre outras obras Philosophical explanations Explicações fi losófi cas 1982 e Socratic puzzles Quebracabeças socráticos 1997 mas nenhuma teve o impacto e a importância política daquela de modo que procuraremos descrever aqui as principais teses hipóteses e metodologias de senvolvidas ao longo daquele livro Antes é mister frisar que normalmente os intelectuais inseremse em uma determinada escola de pensamento quando não inauguram uma Nozick segue a matriz da escola conhecida como neoliberal mais precisamente da liber tariana uma de suas correntes centrais1 Cabe destacar que o autor pertence a uma tradição inaugurada por John Locke na segunda metade do século XVII na Inglaterra defensora das formas mais variadas do capitalismo da qual fi zeram parte vários intelectuais como Adam Smith John Stuart Mill David Ricardo Paul A Samuelson Milton Friedman Friedrich Hayek pensadores dos séculos XVIII XIX e XX Todavia tratase de um intelectual que não se limita a repro duzir o que outros disseram Com independência inserese no campo como um publicista importante da corrente que defende pois se caracterizou por criar ideias originais que subsidiaram o fortalecimento da escola citada O livro em tela foi publicado em 1974 no início da crise do chamado Estado de BemEstar no Primeiro Mundo Entender o momento histórico de sua publica ção é de fundamental importância pois podemos perceber se a obra segue uma tendência ou se cria um novo patamar de discussão Decerto o legado de Nozick é importante para ratifi car uma tendência que começara em meados da década de 1940 com os escritos de Hayek2 ao mesmo tempo sua publicação crítica ao Es tado intervencionista valorizase sobremaneira tendo em vista o início da crise do capitalismo e desse modelo de Estado início da década de 1970 Mas qual a principal tese do autor Tratase da defesa incondicional de que 1 O libertarianismo formado por um conjunto pequeno de doutrinadores mas com um poder de lobby considerável e ideias variadas caracterizase por defender a primazia do livre mercado como uma instância justa de um individualismo ególatra um exorbitante enaltecimento da propriedade privada ilimitada e um repúdio a toda forma de coletivismo Morresi p 2002 Podemos classifi car o libertaria nismo portanto como uma corrente central do neoliberalismo 2 F Hayek foi o principal teórico crítico do Welfare State criador e divulgador do chamado neolibe ralismo A primeira obra nesse sentido foi escrita em 1944 O caminho da servidão Tratase de crítica contundente aos regimes do Leste Europeu à época e à nova face do Estado capitalista de orientação socialdemocrata 453 Capítulo 17 Estado mínimo contra a fase histórica camaleônica do Estado capitalista Wallace dos Santos de Moraes Um Estado mínimo limitado às funções restritas de proteção contra a força o roubo a fraude de fi scalização do cumprimento de contra tos e assim por diante justifi case que o Estado mais amplo violará os direitos das pessoas de não serem forçadas a fazer certas coisas e que não se justifi ca e que o Estado mínimo é tanto inspirador quanto certo Duas implicações dignas de nota são que o Estado não pode usar sua máquina coercitiva para obrigar certos cidadãos a ajudarem a outros e que não pode proibir atividades a pessoas que desejam realizálas para seu próprio bem ou proteção Nozick 1991 1974 p 9 Pois bem se a principal proposta do autor é a defesa do Estado mínimo então para não fi carmos reféns dos seus argumentos é preciso historiar alguns modelos de organização estatal estudar seus meandros a fi m de poder identi fi car claramente contra o que escreve Nozick Depois discutiremos os principais postulados do autor que virão acompanhados de suas metodologias hipóteses e teses 172 Contextualização da obra Os escritos de Nozick atentam diretamente contra dois modelos de Esta do o Estado de orientação socialdemocrata e o de tipo socialista A argumenta ção para tal amparase na defesa exacerbada do individualismo que para efeito deste aspecto signifi ca que os homens não devem ser obrigados a preocuparse com os outros e da liberdade de não ter de cooperar com o bemestar de outrem por meio do pagamento de impostos ou com quaisquer outros esforços No fun do são pressupostos diferentes que chegam aos mesmos objetivos o Estado mí nimo sem intervenção no mercado e sem garantir a priori direitos ou quaisquer benesses para todos na sociedade em particular aos despossuídos dos meios de produção Para melhor entender os escritos libertarianos de Nozick faremos um breve histórico privilegiando as principais diferentes funções do Estado feudal absolutista e do Estado capitalista de orientação liberal socialdemocrata e ne oliberal vividas por boa parte da humanidade ao longo dos últimos séculos Advertese que o conceito de tipo de Estado aqui utilizado se fi lia a uma con cepção mais geral de relação entre estrutura econômica relações de produção mais forças produtivas e estrutura jurídicopolítica Estado Isto é cada tipo de Estado capitalista feudal escravista é resultado portanto de uma estrutura jurídicopolítica histórica particular cuja função é reproduzir de um modo tam bém particular determinadas relações de produção 454 ELSEVIER Curso de Ciência Política Cumpre ainda afi rmar que o Estado capitalista se diferencia dos demais por apresentarse como defendente do interesse geral da sociedade em função da apa rente universalidade de suas instituições Os Estados précapitalistas como o ab solutista afi rmam abertamente o caráter particularista de suas instituições isto é no caso em questão o papel desse Estado era guarnecer os interesses dos grandes proprietários de terras Esse modelo de Estado vigorou nos princípios da Época Moderna em boa parte da Europa Ocidental Como regra o Estado absolutista só admite que as classes dominantes ocupem as funções de comando do Estado3 Um dos aspectos mais importantes deste Estado é sua política econômica o mercantilismo Privilegiando apenas o aspecto do desenvolvimento comercial percebese que o comércio tinha barreiras jurídicas e ideológicas como existência de alfândegas dentro das próprias fronteiras dos países lei que condenava a usura e estigmatização das atividades mercantis Esses aspectos impediam o pleno desen volvimento das relações comerciais e o rápido enriquecimento dos proprietários É contra esse Estado que os portadores de princípios liberais se levan taram vitoriosamente Por consequência o Estado de tipo capitalista formado após as revoluções burguesas dos séculos XVII XVIII e XIX caracterizase pela defesa do livrecomércio da universalidade de suas instituições franqueadas a todos os cidadãos e como suposto representante do interesse geral O grande diferencial deste modelo de Estado para os de tipo précapitalistas é a igualdade jurídica entre os cidadãos todos são iguais perante a lei mesmo em meio a grandes desigualdades econômicas e sociais isto é juridicamente os desiguais econômica e socialmente são considerados como se fossem iguais Como consequência do anteriormente exposto e para o melhor entendi mento das teses de Nozick a existência do Estado capitalista foi dividida em três fases liberal socialdemocrata e neoliberal4 Comecemos com a descrição da ideologia política a qual Nozick se fi lia o liberalismo No interior dessa dis cussão virão as características do Estado capitalista na sua fase liberal O liberalismo normalmente é dividido em três classifi cações gerais eco nômica política e cultural Aqui incluo uma espécie de irmão siamês do libera lismo que é o positivismo jurídico5 Vejamos 3 Na sociedade feudal dividida em ordens homens livres e servos e estamentos nobreza clero e plebe não existia a fi gura do indivíduocidadão 4 Cumpre destacar que o modelo de Estado nos diversos países nunca será idêntico a outro portanto procurarei aqui destacar as características gerais do capitalismo e de seus respectivos Estados ao longo dos séculos XIX XX e XXI até porque no escopo deste trabalho seria impossível analisar caso a caso 5 O liberalismo confi gura junto com o positivismo e em certa medida com o nacionalismo institutos centrais que sustentam as sociedades capitalistas desde o século XIX 455 Capítulo 17 Estado mínimo contra a fase histórica camaleônica do Estado capitalista Wallace dos Santos de Moraes O liberalismo econômico constituise no núcleo duro deste pensamento que segundo grande parte da literatura especializada tem suas raízes nos es critos do escocês Adam Smith no século XVIII6 não obstante os escritos de John Locke no século XVII já tivessem a defesa de uma nova caracterização da prin cipal instituição sustentadora desta ideologia a saber a apologia da inviolabi lidade da propriedade privada como prioridade máxima de todo governo Em outros termos esse autor defendera que nenhum governo poderia atentar con tra os direitos de propriedade privada por ser um direito natural que inclusive tem primazia sobre a liberdade e a vida Moraes p 2003 A doutrina liberal dos séculos XVII e XVIII surgiu desafi ando as restrições feudais à propriedade privada ao comércio à produção e à livretroca de trabalho por salários Nesse sentido a classe social benefi ciária deste pensamento é a burguesia dona dos meios de produção fábricas e indústrias bancos e grandes extensões de terras normalmente voltada para o comércio de mercadorias na busca incessante por lucros Por outro lado os não proprietários ao serem expulsos dos campos comuns e dos domínios feudais passaram a ser donos de uma única coisa sua força de trabalho restandolhes vendêla a um proprietário sob pena de perecerem Nesse sentido sua liberdade que era bastante restrita no feuda lismo pois o servo por exemplo tinha restrições para locomoverse de um lugar a outro no capitalismo este trabalhador muda de situação jurídica e passa a ser livre como os pássaros para vender sua força de trabalho to davia indubitavelmente não conseguirá locomoverse sem dinheiro Assim sua liberdade continua restrita sob outros termos na medida em que não pode viver autonomamente sem que seja produzindo riquezas ou subordi nandose ao vender sua força de trabalho para um proprietário em troca de um salário que lhe permita viver7 O liberalismo político teve suas raízes na luta contra o poder absoluto da monarquia na Inglaterra no século XVII Sua luta foi por distribuir o poder entre os grandes proprietários de terra únicos que podiam ocupar as cadeiras do Parlamento inglês Cabe lembrar que no século XIX liberalismo e democra cia estavam em campos opostos Os liberais eram contra a participação popu lar nas decisões políticas negando aos não proprietários por exemplo o voto 6 Mais precisamente em 1776 com a publicação de A riqueza das nações 7 A melhor descrição deste processo é feita por K Marx 1983 1867 pois rica em detalhes Ver tam bém Polanyi 2000 e Moraes 2007 456 ELSEVIER Curso de Ciência Política bem como a própria ocupação de cargos chaves do Estado8 Sua argumentação pautavase no medo de uma ditadura da maioria que poderia por conseguinte afetar os lucros e o desenvolvimento do capitalismo No aspecto cultural o liberalismo tem seus princípios relacionados com a liberdade de opção sexual e de usos e costumes opondose fortemente ao con servadorismo No plano jurídico o liberalismo caminhou pari passu com o positivismo Como a ideologia liberal atua como sustentadora do capitalismo o respeito às leis é de fundamental importância Aliás os elaboradores e benefi ciários das leis mormente detentores do poder sempre defenderão que todos devem res peitálas por questões óbvias Isto independente do modelo de Estado e de eco nomia vigentes Por consequência as leis para o positivismo jurídico devem ser respeitadas visando ou não justiça social Este é o seu princípio primeiro separar lei de justiça Como as leis eram criadas pelos grandes proprietários ou pelos seus representantes nas Assembleias Legislativas seus objetivos estavam sempre atrelados à defesa do desenvolvimento capitalista livre de limites Dessa maneira as leis não serviam como entrave ao desenvolvimento econômico ao contrário ajudavamno por exemplo ao proibir reivindicações dos trabalhado res bem como o direito de greve por melhores condições de vida Destarte o liberalismo como ideologia sustentadora e impulsionadora do capitalismo defende e é bastante efi caz ao impor ao mundo uma nova caracte rística ao Estado uma nova organização do Direito uma nova divisão social do trabalho e novas relações de produção ao solapar as restrições feudais sobre a circulação de mercadorias trabalho e capital desempenhando assim um papel revolucionário porque contra o sistema estabelecido Ao mesmo tempo o libe ralismo estimulou o crescimento das cidades e dos complexos urbanos indus triais Enfi m ele impõe ao mundo uma mudança que busca apresentarse como irreversível e nesse sentido temse mostrado bastante efi caz O Estado capitalista de orientação liberal portanto historicamente situa do no século XIX como forma hegemônica de organização política da sociedade tem seus princípios relacionados no plano da natureza humana com o indivi dualismo a liberdade no e para o mercado e a desigualdade entre os homens como um valor positivo A justifi cativa para a defesa desses princípios é que levam em conjunto ao progresso e ao pleno desenvolvimento Assim o papel do Estado para a teoria mencionada é precipuamente o de garantir a propriedade privada dos meios de produção a divisão social do tra balho e a ausência ou minimização do controle estatal sobre o mercado baseado 8 Para o aprofundamento desta questão ver Miguel 2002 457 Capítulo 17 Estado mínimo contra a fase histórica camaleônica do Estado capitalista Wallace dos Santos de Moraes na argumentação de que só assim é possível alcançar o auge do desenvolvimen to o qual por conseguinte conduziria ao bemestar da sociedade Entretanto esse modelo de Estado não provê direitos aos trabalhadores Sua justifi cativa apresentase como defendente do ótimo desenvolvimento eco nômico que direitos aos trabalhadores obstaculizariam Dito isto podese en tender porque no século XIX não existiam direitos aos que viviam do trabalho Com efeito o Estado postase de maneira muito clara na defesa dos interesses das classes proprietárias dominantes Não obstante o Estado capitalista não é imune às pressões Embora seu papel seja o de garantir a reprodução do capital por vezes em função das lutas populares ele pode assumir um papel reformista com relação à garantia da ex ploração de uma classe sobre outra Portanto esse Estado cede às pressões 173 Uma nova fase do estado capitalista o modelo camaleão Pedagogicamente podemos dizer que o Estado capitalista assume três feições diferentes ao longo da história as quais estão diretamente relacionadas com a luta de classes Isto é como se trata de um Estado cedente à medida que os trabalhadores organizadamente passam a contestar o capitalismo e concomi tantemente reivindicam direitos imediatos o Estado capitaneado pelas classes dominantes por vezes em confl ito entende que é melhor conceder direitos Além de criar direitos para os que vivem do trabalho também é posta em práti ca uma política de inclusão de camadas subordinadas da população na institu cionalidade por meio da participação eleitoral o voto passa a ser universal e são retiradas algumas barreiras para a chegada ao poder por meio deste Todavia paralelamente o Estado mantém a coerção sobre os segmentos sociais que não se subordinam ao poder do Estado capitalista Estas políticas podem ser reduzi das em duas palavras coerção e convencimento9 No decorrer das primeiras décadas do século XX vários acontecimentos fazem mudar o papel do Estado capitalista duas grandes guerras mundiais exacerbado crescimento e um certo grau de politização da classe operária Revo lução Russa de 1917 e em derradeiro a crise de superprodução de 1929 Esses fatos seguem concomitantes com as grandes reivindicações dos trabalhadores organizados Daí emerge a característica camaleônica do Estado capitalista que diferentemente de outros modelos de Estado se metamorfoseia com vistas a manter o poder capitaneado pelos interesses das classes dirigentes10 A mudan 9 Conceitos caros a Gramsci 10 O próprio crescimento do fascismo é uma forma de expressão do estado camaleão O Estado muda de face mas continua a garantir os interesses do capital como um todo 458 ELSEVIER Curso de Ciência Política ça de cor do camaleão diante dos seus possíveis inimigos para manterse vivo exemplifi ca bem o ocorrido com o Estado capitalista sobretudo na passagem do modelo liberal para o socialdemocrata Este modelo mostrouse hegemôni co enquanto a luta e organização do movimento estiveram fortalecidas mais ou menos dependendo da correlação de forças em cada país entre as décadas de 192019301940 até as décadas de 198019902000 consubstanciandose em adoção de políticas socialdemocratas Aqui antes de avançarmos cumpre advertir o leitor a respeito da forma como a literatura trata o assunto Normalmente nem se faz alusão ao Estado capitalista como outras dicotomias ou outros parâmetros ignorando assim sua relação jurídicopolítica Com efeito o período de criação de direitos e de inclu são dos trabalhadores na institucionalidade democrática é tratado como uma be nesse estatal ou como se fosse papel do Estado fazêlo ignorando por completo a história dessa instituição Assim utilizando termos próprios parte da literatura saudosa desse período do Estado capitalista denominao como Estado de Bem estar Welfare state ou Estado Providência Por outro lado os críticos o chamam de Estado Assistencialista Intervencionista ou Empresário Ou mesmo criam uma determinada dicotomia que responderia pela existência de dois modelos Estados mínimo e máximo Como penso que esses conceitos não dão conta na sua plenitude dos acontecimentos históricos do período tampouco do papel exercido pelo Esta do pois privilegiam apenas as características que servem aos seus interesses estando mais a serviço de suas matrizes ideológicas interpretativas do que com o compromisso histórico ao valorizar ou desvalorizar extremamente o mode lo em questão resolvi seguir outra metodologia para solucionar a questão Por consequência preferi cunhar o Estado capitalista na sua fase socialdemocrata pela expressão estado camaleão buscando representar um movimento bali zado em seu momento histórico caracterizado pelas pressões dos trabalhadores organizados por direitos um recuo ideológico das classes proprietárias em seu liberalismo impenitente que culmina em algumas mudanças na função do Esta do menos voltada para o mercado e mais republicana11 O termo camaleão re presenta o fato de o Estado mudar de face para sobreviver junto com o capitalis mo criando direitos sociais e estendendo os direitos políticos à quase totalidade 11 A aplicação de uma legislação social segundo Polanyi 1980 p 51 visava conter os interesses exclusivos do mercado e do liberalismo econômico pois este interpretou mal a história da Revolução Industrial porque insistiu em julgar os acontecimentos sociais a partir de um ponto de vista econômico O problema maior era a ausência de garantias sociais aos trabalhadores que a ideia de mercado auto regulável ignora 459 Capítulo 17 Estado mínimo contra a fase histórica camaleônica do Estado capitalista Wallace dos Santos de Moraes dos trabalhadores por outro lado faz tudo isso mantendo suas características essenciais como garantidor do pleno funcionamento da economia capitalista da exploração e da desigualdade que o acompanham O conceito de estado camaleão tem como fi to expressar um momento histórico estatal em que os trabalhadores organizados pressionam o Estado capitalista a garantir melhores condições de vida trabalho e participação O Estado cede às pressões assume uma nova postura estipulando direitos so ciais embora esse jamais tenha sido o seu papel todavia mesmo neste ínterim o seu objetivo é garantir o pleno funcionamento da reprodução do capital das suas instituições e frear a luta dos trabalhadores desvirtuandoos de suas ideias socialistas A qualidade distintiva fundamental do estado camaleão é a adoção de políticas socialdemocratas principalmente nos países do primeiro mundo tendo como melhor exemplo os países escandinavos Essas políticas buscam colocarse entre a proposta socialista de negação absoluta do mercado e a li beral de negação de direitos para os trabalhadores12 Com efeito o Estado ga rante o funcionamento do mercado por meio da garantia de suas instituições como a propriedade privada dos meios de produção a divisão social do tra balho o império da lei mas ao mesmo tempo institui direitos para os não proprietários através do Direito do Trabalho e Previdenciário por exemplo Suas políticas caracterizamse por forte intervenção na economia criando es tatais obras públicas regulando preços limitando na maior parte das vezes apenas na teoria a propriedade ao uso social etc Essas políticas trazem em última instância uma redefi nição clara do papel do Estado abandonando a ortodoxia liberal mas sem esquecer de manter o controle sobre as ações dos trabalhadores Cumpre ainda ressaltar que quanto mais reivindicativas e organizadas estiveram as classes trabalhadoras mais direitos arrancaram do Estado Só a par tir desta premissa podemos entender os diferentes níveis de direitos para os tra balhadores nos diversos Estados ocidentais Outrossim como o estabelecimento de direitos está diretamente ligado às reivindicações em muitos Estados nacio 12 Segundo EspingAndersen 1995 p 73 o welfare state teve algumas implicações importantes economicamente signifi cou um abandono da ortodoxia da pura lógica do mercado em favor da exi gência de extensão da segurança do emprego e dos ganhos como direitos de cidadania moralmente a defesa das ideias de justiça social solidariedade e universalismo Politicamente o welfare state foi parte de um projeto de construção nacional a democracia liberal contra o duplo perigo do fascismo e do bolchevismo 460 ELSEVIER Curso de Ciência Política nais alguns segmentos dos trabalhadores em função de suas lutas corporativas conseguiram mais vantagens que outros13 Por outro lodo a postura defensiva e setorial dos sindicatos de trabalha dores europeus a posteriori proporcionou a convivência pacífi ca entre capital e trabalho sendo ainda mais arraigada com a criação dos partidos operários abandonando o projeto de superação do capitalismo como objetivo imediato Assim o objetivo do capital era contemplado passar o trabalho de antagonista estrutural para interlocutor e participante da democracia representativa vigente no Ocidente14 Para efeito dos países periféricos do capitalismo e em particular do Brasil no qual a implementação de direitos fi cou muito aquém dos países imperialis tas do centro do capitalismo o conceito normalmente usado para designar o período em questão é nacionaldesenvolvimentismo Não obstante o método de análise aqui pensado aplicase perfeitamente aos casos dos países periféricos ou seja é a força dos trabalhadores que determina as alterações das funções do Estado capitalista Só mais uma ressalva a força dos trabalhadores não deve ser medida pela sua participação na institucionalidade capitalista Entretanto depois do franco descenso reivindicativo do movimento so cial da crise das sociedades de capital póscapitalistas15 do Leste Europeu asso ciados à estagnação dos anos de forte crescimento econômico anteriores da crise do petróleo e fi scal a economia capitalista entra em crise ao longo da década de 1970 cedendo espaço para se pensar em um retorno ao liberalismo como solução Assim o Estado capitalista sem o perigo da revolução social entra em processo de retorno ao seu papel original típico da fase liberal do século XIX A nova orientação do Estado consiste em uma retomada das propostas liberais signifi cando que o Estado não deve intervir na economia deixando o mercado livre autoregulável inclusive o de trabalho Com o fi to de retomar os lucros do grande capital o que efetivamente se consegue o Estado passa a destruir aquilo que fez para impedir a revolução social direitos dos trabalhadores em todo o mundo são fl exibilizados estatais são privatizadas a previdência social é vista como perdulária Junto com esses aspectos há um controle maior sobre 13 O caso brasileiro é exemplar para este aspecto durante a Era Vargas apenas os trabalhadores urba nos mais reivindicativos tinham direitos 14 Sobre este assunto ver Mészáros 2003 principalmente o capítulo 3 15 Este conceito foi desenvolvido por I Mészáros 2002 para designar por exemplo a União Soviética que não seria uma sociedade socialista por não romper com o poder do capital com a divisão social do trabalho nem entrar em processo de defi nhamento do Estado Daí chamála de sociedade de capital póscapitalistas 461 Capítulo 17 Estado mínimo contra a fase histórica camaleônica do Estado capitalista Wallace dos Santos de Moraes a infl ação e a moeda e um aumento da repressão sobre os pobres16 através de políticas de segurança do tipo tolerância zero É aqui que desponta a impor tância da obra de Nozick na luta pela hegemonia dessas ideias ou pelo retorno ao Estado mínimo liberal Cumpre portanto observar contra o que Robert Nozick direciona suas críticas De maneira geral contra as características do estado camaleão do so cialismo do anarquismo clássico de Bakunin Kropotkin Proudhon de maneira mais particular contra as ideias de John Rawls defensor de uma certa justiça distributiva respeitando os marcos do capitalismo17 Enfi m Nozick atenta con tra toda e qualquer ideia de justiça distributiva de igualdade econômica e social de coletivismo e de intervenção do Estado na economia Nesse sentido sua obra faz parte de uma biblioteca que se mostrou bastante vitoriosa pois ganhou os meios de comunicação de todo o mundo e colocou as ideias de outros modelos de Estado estado camaleão socialismo ou mesmo de sua ausência anarquis mo como um verdadeiro anátema Feitas as advertências necessárias traduzidas na historicização da vida e obra do autor bem como das características do Estado capitalista em suas dife rentes fases podemos descrever suas teses Como um tratado clássico de Ciên cia Política Nozick discute seus temas centrais como Estado a propriedade e a justiça Comecemos pelos seus postulados 174 Os postulados norteadores da obra de Nozick A obra de Nozick em questão está dividida em três partes A primeira jus tifi ca a existência do Estado mínimo a segunda alega que nenhum Estado mais amplo pode ser justifi cado porque é moralmente injusto e atenta contra a liber dade das pessoas A última parte busca igualmente justifi car o Estado mínimo mas por meio de argumentos ditos utópicos Enfi m toda a obra tem o objetivo de legitimar o Estado mínimo por meios racionais e utópicos e desqualifi car qualquer outra forma de organização estatal Sem embargo quais os caminhos postulados e metodologias escolhidos por Nozick Para chegar às suas teses o autor recorre metodologicamente a quatro postulados centrais 1 a teoria da mão invisível 2 a teoria do estado de nature za para justifi car a existência do Estado mesmo que nenhum Estado real jamais tenha surgido dessa maneira Nozick 1991 p 22 3 a teoria do individualis mo metodológico 4 a desigualdade econômica e social como um valor positivo 16 Ver Wacquant 2003 17 O debate entre Rawls e Nozick ganhou espaço considerável na academia dos Estados Unidos e depois extrapolou suas fronteiras 462 ELSEVIER Curso de Ciência Política reverberandose em desigualdade em propriedades Estas opções metodológi cas dizem muito pois tratase de tendência majoritária da matriz explicativa liberal que abstraindo dos fatos concretos busca reescrever a história estatal e social por meio de deduções racionais 1 Seu principal princípio condutor é o da mão invisível como modo expli cativo da história do papel do Estado uma vez que assevera que os fatos são construídos desprovidos de intencionalidade de indivíduos grupos frações de classe ou classes sociais Vejamos As explicações da mão invisível minimizam o emprego de ideias que constituem os fenômenos a serem explicados Em contraste com expli cações diretas não explicam modelos complicados incluindo as ideias do modelo plenamente desenvolvidas como objetos dos desejos ou crenças das pessoas Uma explicação da mão invisível mostra que o que parece ser produto do trabalho intencional de alguém não foi produzido pela intenção de ninguém Poderíamos denominar o tipo oposto de explicação da mão oculta Uma explicação da mão oculta explica o que parece ser apenas um conjunto desconexo de fatos que com certeza não é produto de trabalho intencional como o produ to do trabalho intencional de um indivíduo ou grupo Nozick 1974 1991 p 34 As explicações do estado de natureza da esfera política são explica ções potenciais fundamentais do mesmo e possuem força explica tiva e poder de esclarecimento mesmo que incorretas Apreende mos muito observando como o Estado poderia ter surgido mesmo que ele não tenha surgido dessa maneira Se não surgiu dessa ma neira aprenderíamos muito também verifi cando por que não sur giu ou tentando explicar por que a parte particular do mundo real que diverge do modelo do estado de natureza é o que é Nozick 19741991 p 23 2 Para explicação de sua teoria do estado de natureza Nozick opta por ba searse no equivalente lockeano afi rmando que considerações da fi losofi a política convergem para ele Decerto toda e qualquer opção que fazemos para descrever um fato histórico é fruto de nossas escolhas teóricas e me todológicas seja na seleção das fontes do período dos personagens etc Portanto quando Nozick escolhe como princípio de sua teoria os escritos de John Locke 1689 para nós que conhecemos a obra deste autor signifi ca que haverá uma valorização extremada da propriedade privada enquanto uma instituição ilimitada e absoluta cujo papel central do Estado deve ser 463 Capítulo 17 Estado mínimo contra a fase histórica camaleônica do Estado capitalista Wallace dos Santos de Moraes garantila Todavia se ele partisse do estado de natureza de Rousseau18 se gundo o qual por exemplo a propriedade foi construída pela usurpação ou mesmo se sua opção fosse caminhar pelo materialismo histórico de Karl Marx segundo o qual a propriedade foi construída pela forçaviolência difi cilmente suas conclusões poderiam ser as mesmas No resgate do estado de natureza lockeano Nozick afi rma que os limites da lei de natureza estabelecem que ninguém deve prejudicar a outrem em sua vida liberdade e propriedade Cabe lembrar que para Locke a propriedade pri vada fora fundada pelo trabalho pelo mérito sendo portanto absolutamente legítima Outro fator importante que o singulariza em sua época é asseverar que no estado de natureza já existia a propriedade privada que por consequência é elevada ao status de direito natural Com efeito para garantir esses direitos bá sicos das leis da natureza Locke afi rma que os homens realizaram um contrato que criou o Estado Já Nozick substitui o contrato e a criação imediata do Esta do criando etapas que não vão de encontro aos princípios lockeanos mas que estabelecem novas inferências Para ele na passagem do estado de natureza até o advento do Estado foram criadas primeiro agências de proteção cujos objeti vos eram garantir os direitos naturais do pensamento lockeano vida liberdade e propriedade dos associados como veremos adiante 3 Por fi m para justifi cativa de seu individualismo metodológico Nozick es creve as seguintes palavras Individualmente todos resolvemos às vezes suportar alguma dor ou sacrifício por um benefício maior ou para evitar maior dano Em todos os casos algum custo é incorrido em troca do bem geral maior Por que não analogamente sustentar que algumas pessoas tem que arcar com alguns custos a fi m de benefi ciar mais outras pessoas tendo em vista o bem social geral Mas não há entidade social com um bem que suporte algum sacrifício para seu próprio bem Há apenas pessoas individuais pessoas diferentes com suas vidas individuais próprias Usar uma dessas pessoas em benefício das outras implica usála em proveito das demais Nada mais O que acontece é que alguma coisa é feita com ela em benefício dos outros Conversas sobre bem social ge ral disfarçam esta situação intencionalmente Usar uma pessoa dessa maneira além de indicar desrespeito não leva em conta o fato de que ela é uma pessoa separada que é sua a vida de que dispõe Ela não obtém algum bem que contrabalance seu sacrifício e ninguém tem o direito de obrigála a isso e ainda menos o Estado ou o governo que 18 De acordo com o texto Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os ho mens 1755 1983 464 ELSEVIER Curso de Ciência Política alegam que lhe exige a lealdade o que outros indivíduos não fazem e que por conseguinte deve ser escrupulosamente neutro entre seus cidadãos Nozick 1974 1991 p 48 Esse individualismo metodológico se expressa sobretudo ao elevar os indivíduos ao patamar de seres autônomos na e independentes da sociedade que não precisam e não devem preocuparse com ela Esta premissa atinge o apogeu quando o autor defende que os homens não devem ser tributados em favor do bemestar de outrem pois se assim ocorrer o indivíduo estará sendo sacrifi cado injustamente 4 Todas essas discussões estão acompanhadas da premissa de que a desigual dade é um fator positivo que não deve ser atacado Ao contrário é a desi gualdade que impulsiona o desenvolvimento gerando por fi m um bem estar para todos A grande objeção quando se diz que todos têm direito a várias coisas tais como igualdade de oportunidades à vida etc é fazer valer esse direito é que esses direitos exigem uma infraestrutura de coisas materiais e atos e outras pessoas podem ter direitos e títulos a elas Ninguém tem direito a alguma coisa cuja realização exige certos usos de coisas e atividades sobre as quais outras pessoas têm direitos e tí tulos Os direitos e títulos de outras pessoas a coisas particulares esse lápis seu corpo etc e a maneira como resolvem exercer esses direitos e títulos estabelecem o meio externo de qualquer dado indivíduo e os meios que ele terá à sua disposição Nozick 1974 1991 p 262 No mesmo diapasão em suas discussões sobre o papel do Estado Nozick evoca um anarquista individualista com o qual simula um diálogo Qual é o problema desse diálogo Primeiro o autor não cita qual pensador defende as ideias descritas segundo o pensamento anarquista clássico colocase indubita velmente contra o Estado mas não pelos motivos que Nozick diz serem defen didos pelo suposto anarquista individualista terceiro o pensamento libertário é intrinsecamente antiindividualista e contra a propriedade privada e a divisão social do trabalho que o Estado capitalista garante Isto posto podemos ter com clareza que embora Nozick reivindique questões do pensamento anarquista ele nada tem que ver com o pensamento clássico e hegemônico do anarquismo Vejamos As próprias maneiras em que uma agência ou associação de proteção dominante em um território fi ca aquém de ser um Estado proporcio nam o foco à queixa do anarquista individualista contra o Estado Isso porque sustenta ele que quando o Estado monopoliza o uso da força 465 Capítulo 17 Estado mínimo contra a fase histórica camaleônica do Estado capitalista Wallace dos Santos de Moraes em um território e pune aqueles que violarem seu monopólio e quando proporciona proteção a todos forçando alguns a comprar proteção para outros ele viola as restrições morais indiretas sobre a maneira como indivíduos podem ser tratados Daí conclui ele o Estado em si é intrin secamente imoral Nozick 1974 1991 p 66 Nozick também estabelece um diálogo com a teoria de John Rawls19 Este por sua vez defende os princípios fundamentais do capitalismo como a ga rantia da propriedade privada o mercado a divisão social do trabalho a desi gualdade econômica e social como um fator benéfi co etc todavia suas refl exões caminhem para um favorecimento do que ele chamou de menos favorecidos por meio de intervenções estatais como tributação das grandes fortunas etc assemelhandose ao defendido pelos socialdemocratas Portanto as críticas de Nozick não são feitas a todas as teses de Rawls pois fazem parte grosso modo da mesma matriz interpretativa isto é entendem o capitalismo como a melhor forma organizacional da economia e da vida ambos inclusive ignoram os fatos concretos históricos para elaboração de suas teses Portanto a crítica de Nozick à obra de Rawls que por vezes fi gura na literatura de maneira bastante equi vocada como se fossem água e vinho são praticamente pontuais restritas à contrariedade da tributação para fi ns redistributivos Conhecidos seus postulados passemos às concepções sobre um compo nente central do pensamento capitalista e particular de Nozick 175 Concepções sobre a propriedade No decorrer da história da sociedade humana a propriedade privada tem se mostrado determinante nas relações de poder de liberdade de sobrevivência de Estado enfi m nas relações políticas sociais e econômicas Nozick além de não se abster de ter uma concepção acerca da propriedade colocaa como tema central de seu pensamento Aqui tal como na matriz capitalista o autor busca por inferências racionais defender a tese da legitimidade da propriedade che gando à conclusão de que se ela é legítima deve ser legalizada mas para além disso dois raciocínios a acompanham o Estado tem o dever de protegêla é a sua existência que possibilita o progresso o desenvolvimento da humanidade Para o novaiorquino o objeto de justiça em propriedade consiste em três tópicos principais O primeiro é a aquisição inicial das propriedades o segundo diz respeito à transferência de propriedades de uma pessoa a outra e o terceiro a reparação da injustiça na propriedade Estes tópicos guiam suas refl exões so bre a legitimidade da propriedade descritas nos parágrafos seguintes 19 Mais precisamente consubstanciada no livro Uma Teoria da Justiça de 1971 466 ELSEVIER Curso de Ciência Política Segue argumentação de Nozick que coloca a propriedade como fruto dos dotes naturais de determinadas pessoas Este argumento não só justifi ca sua existência como a desigualdade de sua distribuição as pessoas têm direito a seus dotes naturais 1 Se pessoas têm direito a alguma coisa elas têm direito a tudo que de corre dela através de tipos especifi cados de processos 2 As propriedades de pessoas decorrem de seus dotes naturais Logo 3 As pessoas têm direito às suas propriedades 4 Se pessoas têm direito a alguma coisa então devem têla e isso elimi na qualquer presunção de igualdade que possa haver sobre proprie dades Nozick 1974 1991 p 242243 Em consonância com Nozick no estado de natureza a propriedade é ad quirida de acordo com o princípio de justiça na aquisição e desse ponto em diante segundo o princípio de justiça na transferência por troca de propriedade possuída por outra por serviços compromissos ou presentes Nozick 1974 1991 p 305306 Aqui está subjacente a ideia de que a propriedade foi possível para todos no estado de natureza tal como defendido por Locke Logo suas deduções apontam para o fato de que hodiernamente aquele que não a tem foi porque ou não quis trabalhar tendo em vista que a propriedade é fruto do trabalho ou porque a trocou por outras benesses Segundo esse pensamento o que decorrer daí só pode ser fruto de justiça salvo o roubo que deve ser reprimido com todo rigor Aliás por isso a neces sidade da existência do Estado mínimo cuja função é precipuamente reprimir àqueles que atentem contra a propriedade privada alheia Um objeto que passa à propriedade de alguém muda a situação de to das as outras pessoas uma vez que antes elas tinham liberdade de usálo o que não acontece mais Esta mudança na situação dos outros retirandolhes a liberdade de agir no tocante a um objeto que antes não tinha dono porém não precisa tornarlhes pior a situação Se eu me aproprio de um grão de areia de Coney Island ninguém mais pode fazer o que quiser com aquele grão Mas sobram grãos à vontade para que façam com eles o que quiserem Ou se não grãos de areia outras coisas Alternativamente as coisas que faço com o grão de areia de que me apropriei pode melhorar a posição dos demais compensandolhes a perda de liberdade para usálo O ponto crucial é se a apropriação de um objeto sem dono torna pior a situação dos demais Nozick 1974 1991 p 195 467 Capítulo 17 Estado mínimo contra a fase histórica camaleônica do Estado capitalista Wallace dos Santos de Moraes A conclusão a que o autor chega é que se as propriedades de cada pessoa são justas então o conjunto total de distribuição das propriedades é justo Além disso a apropriação de algo em comum a todos pode tornar melhor a vida das demais pessoas Nesse sentido na argumentação em prol da constituição da propriedade podemos perceber que os argumentos são individualistas posses sivos com vistas ao mercado Invertamos a lógica para melhor entender Isto é se as distribuições feitas até aqui foram justas como podemos justifi car a injustiça atual ou o que temos a dizer sobre ela sobretudo com referência à posse de propriedades Para Nozick a propriedade que não for adquirida com base nos princípios de justiça na aquisição e na transferência gera o terceiro tópico por ele elencado aliás um tópico absolutamente necessário tratase da reparação da injustiça na propriedade As perguntas que ele faz a si mesmo são as seguintes se injustiça passada modelou de várias maneiras propriedades pre sentes algumas identifi cáveis e outras não o que agora deve ser feito para corrigir essas injustiças Que obrigações têm os autores da injus tiça para com aqueles cuja posição é pior do que poderia ter sido se a injustiça não fosse praticada Ou que teria sido se uma compensação tivesse sido paga imediatamente Como se é que isso ocorre as coisas mudam se os benefi ciários e os colocados em pior situação não são as partes diretas no ato de injustiça mas por exemplo seus descenden tes Nozick 1974 1991 p 173 O autor ao problematizar essas questões fundamentais acerca dos crité rios de justiça da distribuição da propriedade mostra toda sua destreza refl e xiva todavia decepciona sobremaneira ao não apontar as soluções não co nheço um tratamento teoricamente sofi sticado ou exaustivo dessas questões Nozick 1974 1991 p 173 É claro que existem tratamentos teoricamente sofi sticados e exaustivos dessas questões pelo menos desde o século XIX mas Nozick nega essas concepções pois não coadunam com suas teses O que está em tela para a teoria de Nozick é a sua completa objeção contra todas as tentativas de impor à sociedade um padrão de distribuição deliberadamente escolhido seja ele uma ordem principalmente de igualdade Quando o autor assume a posição de negação absoluta de todo padrão de distribuição deliberadamente escolhido devese levar em conta que a sociedade atual está permeada por grandes desigualdades que não foram construídas por quaisquer mãos invisíveis mas por interesses de determinadas classes ao longo da História Contudo devese saber que a posição aparentemente isenta de Nozick favorece as desigualdades construídas pela história 468 ELSEVIER Curso de Ciência Política Por fi m cabe lembrar quando Nozick discute temas como proibição leis ordem indenização e risco que seu principal objetivo é encontrar a melhor for ma de defender a propriedade privada A forma de punir e de compensar estão latentes como papel do Estado Punese aquele que atentar contra a propriedade e compensase aquele que sofre de alguma forma no pleno uso de sua proprie dade 176 Concepções sobre o Estado 1761 Defesa do Estado Mínimo Com o objetivo de demonstrar como surgiu o Estado Nozick imagina uma possibilidade racional sem compromisso com os fatos históricos Assim seu trabalho explica que primeiramente a organização social era anárquica isto é não existia o Estado A passagem daquele estádio para a organização societal com um Estado segundo sua concepção não ocorreu de forma direta Portanto da anarquia ao Estado como hoje o conhecemos a humanidade passou por fa ses intermediárias como a criação das agências de proteção do Estado ultramí nimo o Estado mínimo e o Estado interventor A discussão sobre o papel do Estado iniciase com uma questão funda mental da fi losofi a política que precede qualquer outra sobre como o Estado deve ser organizado se ele deve ou não realmente existir Por que não temos a anarquia Nozick 1974 1991 p 18 Sua resposta acompanhase do crité rio minimax que comparativamente coloca o estado de natureza hobbesiano mais pessimisticamente descrito com o Estado possível mais pessimistica mente descrito incluindo futuros Estados Sua conclusão é que o pior estado de natureza certamente ganharia em tal comparação Nozick 1974 1991 p 18 Aqui Nozick distinguese fundamentalmente do anarquismo clássico que concebe o Estado como opressor maior e garantidor das injustiças em geral e da propriedade em particular ao defender que sempre será melhor a existência de qualquer Estado comparativamente com qualquer estado de natureza A partir da resolução da questão se o Estado deve ou não existir Nozick começa a descrição racional dedutiva do seu surgimento tendo sua gênese nas agências privadas de proteção Mais uma vez baseado no estado de natureza lockeano o libertariano esta dunidense afi rma que como resultado da necessidade dos homens em resguar dar suas propriedades vidas e liberdades foram criadas primeiro as agências privadas de proteção com as quais os indivíduos associados eram defendidos Concomitantemente algum tipo de legislação estava sendo composta para re primir aqueles que atentassem contra os bens básicos da sociedade lockeana 469 Capítulo 17 Estado mínimo contra a fase histórica camaleônica do Estado capitalista Wallace dos Santos de Moraes Com a proliferação dessas agências sobre as mais variadas regiões a associação mais forte conseguiu o monopólio da proteção com respectivo monopólio da força surgindo aí o que Nozick cunhou de Estado ultramínimo cujo único obje tivo era defender os chamados direitos naturais reivindicados pelo pensamento liberal A transição das agências privadas de proteção para o Estado ultramíni mo ocorrera através da mão invisível que conduziunos para algo melhor em uma maneira moralmente permissível sem que ninguém tivesse seus direi tos violados Ao mesmo tempo que esse Estado era maior que as agências de proteção ele não dava conta de todo o território portanto não abrangendo todas as pessoas A grande diferença da agência de proteção dominante para o Estado segundo Nozick é que a primeira em um território não só carece do necessário monopólio sobre o uso da força mas também não consegue fornecer proteção a todos em sua jurisdição Em vista disso a agência dominante parece fi car aquém da condição de Estado Dessa forma faziase então necessária a ampliação do Estado ultramínimo para mínimo Essa transição diznos o autor tem moral mente que ocorrer pois seria intolerável que pessoas mantivessem o monopólio no Estado ultramínimo sem fornecer serviços de proteção a todos mesmo que isso implicasse uma redistribuição específi ca Os operadores dessa organização estatal estão moralmente obrigados a criar o Estado mínimo Nozick 1974 1991 p 68 Assim sendo o objetivo da obra de Nozick é fazer ver que o Estado míni mo é moralmente legítimo bem como as transições anteriores e que ele abrange a todas as pessoas de uma determinada região inclusive aos chamados inde pendentes aqueles que eram contrários à criação do Estado e das agências privadas de proteção Dessa forma Da anarquia gerada por grupamentos espontâneos associações de pro teção mútua divisão de trabalho pressões de mercado economias de escala e autointeresse racional surge algo que se assemelha muito a um Estado mínimo ou a um grupo de Estados mínimos geografi camente distintos A natureza do serviço coloca não só diferentes agências em concorrência pela preferência dos clientes mas também as lança em violentos confl itos entre si Quando apenas uma agência exerce realmente o direito de proibir ou tros de usar seus procedimentos duvidosos para impor justiça privada isso a torna o Estado de fato Nozick 1974 1991 p 160 O Estado ultramínimo mantém o monopólio do uso da força exceto a necessária a autodefesa imediata e dessa maneira exclui a retaliação privada ou de alguma agência por lesões cometidas e exigência de indenização Mas proporciona serviços de proteção e cumprimento de 470 ELSEVIER Curso de Ciência Política leis apenas àqueles que adquirem suas apólices de proteção e respeito às leis Nozick 1974 1991 p 42 Percebemos anteriormente que Nozick parte do princípio de que existia já no estado de natureza um homem de negócios voltado para o mercado Isso implica a descrição de características do homem capitalista moderno como per tencentes à natureza humana cioso por lucro vendo tudo em forma de cifrão De tal modo encaixase a defesa do Estado mínimo na teoria do autor isto é um Estado limitado às funções restritas de proteção da propriedade privada contra a força dos despossuídos o roubo e pela fi scalização do cumprimento de contratos Nozick portanto advoga a instauração de um Estado mínimo visto que esta é a única maneira de não prejudicar o direito ao livre desenvolvimento individual Na segunda parte do trabalho Nozick argumenta que nenhum Estado mais poderoso ou extenso que o mínimo é legítimo ou justifi cável porque sim plesmente fere os direitos dos indivíduos principalmente se tem meios eou objetivos redistributivos isto é obrigar algumas pessoas a contribuir por algo que gere o bemestar de outrem 1762 Contra o Estado maior que o mínimo A fi m de demonstrar que o Estado mínimo é moralmente legítimo e que não é imoral em si temos que provar também que as transições anteriores são moralmente legítimas Argumentaremos que a transição do Estado ultramínimo para o mínimo tem moralmente que ocorrer Seria moralmente intolerável que pessoas mantivessem o monopólio no Estado ultramínimo sem fornecer serviços de proteção a todos mesmo que isso requeresse uma redistribuição específi ca Nozick 1974 1991 p 6768 Percebase na passagem acima que o Estado mínimo justifi case funda mentalmente porque deve fornecer serviços de proteção a todos A proteção aqui não é entendida como proteção do emprego da saúde na educação Longe e contra isto O Estado deve garantir os bens individuais da sociedade Este é seu único papel justifi cável Por isso um Estado maior que o mínimo não se justifi ca moralmente pois o Estado intervém na individualidade das pessoas obrigandoas inclusive a pagar impostos para o provimento de saúde educa ção bemestar para aqueles que não têm condições fi nanceiras Na busca de seus objetivos Nozick apresenta a relação de D1 distribuição entre todos justa com uma passagem para D2 onde alguns despontam em pro 471 Capítulo 17 Estado mínimo contra a fase histórica camaleônica do Estado capitalista Wallace dos Santos de Moraes priedade A questão central discutida é que nenhum princípio de estado fi nal ou distributivo padronizado de justiça pode ser continuamente implementado sem interferência contínua na vida das pessoas Exemplifi cando o anteriormente exposto segue uma das passagens mais inteligentes da obra de Nozick pois para ele a tributação de salários ou o con fi sco de lucros através de princípios padronizados signifi cam apropriação de atos de outras pessoas Vejamos Seja isso feito através de tributação dos salários ou dos salários acima de certo volume ou de confi sco de lucros ou ainda se há uma grande panela social de modo que não é claro o que vem de onde e para onde vai os princípios padronizados implicam a apropriação de atos de ou tras pessoas Tomar os resultados do trabalho de alguém equivale a tomarlhe horas e dirigilo para que execute várias atividades Se pes soas o obrigam a realizar certo trabalho ou trabalho não remunerado durante certo período de tempo elas decidem o que você tem de fazer e a que fi nalidades seu trabalho deve atender à parte suas próprias deci sões Esse processo pelo qual lhe tomam essa decisão transformamnos em coproprietários de sua pessoa dãolhes um direito de proprietário sobre você da mesma maneira que ter esse controle e poder de decisão parcial por direito sobre um animal ou objeto inanimado implicaria ter um direito de propriedade sobre eles Os princípios de justiça distributiva de resultado fi nal e a maioria dos padronizados instituem a posse parcial por outros de pessoas seus atos e trabalho Esses princípios implicam uma mudança da ideia libe ral clássica de propriedade de si mesmo para uma de direito de proprie dade parciais sobre outra pessoas Nozick 19741991 p 191192 Por que não podemos violar pessoas tendo em vista o bem social maior Individualmente todos resolvemos às vezes suportar alguma dor em benefício maior ou para evitar maior dano Vamos ao dentista para evi tar maior sofrimento mais tarde Em todos os casos algum custo é incorrido em troca do bem geral maior Por que não analogamente sustentar que algumas pessoas têm que arcar com alguns custos a fi m de benefi ciar mais outras pessoas tendo em vista o bem social geral Usar uma dessas pessoas em benefício das outras implica usála e benefi ciar os demais Nada mais O que acontece é que alguma coisa é feita com ela em benefício dos outros Usar uma pessoa dessa ma neira além de indicar desrespeito não leva em conta o fato de que ela é uma pessoa separada que é sua a vida de que dispõe Ela não obtém algum bem que contrabalance seu sacrifício e ninguém tem o direito de obrigálo a isso e ainda menos o Estado ou o governo que alegam 472 ELSEVIER Curso de Ciência Política que lhe exige a lealdade o que outros indivíduos não fazem e que por conseguinte deve ser escrupulosamente neutro entre seus cidadãos Nozick 1974 1991 p 48 Todos os padrões distributivos que incluem um componente igualitário são subvertidos ao longo do tempo por atos voluntários de indivíduos isolados como também toda situação padronizada com um conteúdo sufi ciente para ter sido realmente proposta como representando o âma go da justiça distributiva Nozick 19741991 p 184 As passagens anteriores são centrais e dizemnos muito 1 explicita uma crítica em conjunto à teoria de John Rawls ao estado de orientação socialdemo crata ao socialismo e enfi m a todas as políticas redistributivistas 2 evidencia dois pressupostos clássicos do liberalismo o da desigualdade econômica e so cial entre os homens enquanto um valor benéfi co e a valorização do fruto do tra balho do proprietário 3 como resumo das suposições anteriores nada justifi ca que o Estado tribute os ricos em favor dos pobres outro princípio liberal Só se justifi ca que o Estado tribute os ricos para o benefício deles próprios sobretudo para garantirlhes segurança em sua propriedade vida e liberdade Em resumo Nozick contesta até mesmo os impostos que o Estado se questra dos cidadãos sobretudo se eles têm por destino vias distributivas pois em consonância com sua visão é ilegítimo querer frear ou repartir os bens so ciais visto que são fruto do trabalho de quem os produziu Pari passu o cidadão tampouco tem direito de reclamar proteção social do Estado Aqui está claro o individualismo possessivo do autor Derradeiramente reconhecendo que as desigualdades econômicas re sultam frequentemente em desigualdades em poder político Nozick fazse uma pergunta com o fi to de convencernos de que as desigualdades econô micas teriam menos infl uências e consequentemente menor poder político com o Estado mínimo não poderia uma maior igualdade econômica e um Estado mais extenso como meio de realizar isso ser necessária e justifi cada a fi m de evitar as desigualdades políticas com as quais as desigualdades eco nômicas estão muitas vezes correlacionadas Nozick 1974 1991 p 293 294 Resposta Pessoas em boa situação econômica desejam maior poder político em um Estado não mínimo porque poderão usar esse poder para obter benefí cios econômicos diferenciais Nos casos em que existe um centro de po der não é de surpreender que pessoas tentem usálo para promover seus próprios fi ns O uso ilegítimo do Estado por interesses econômicos para seus próprios fi ns baseiase em um poder ilegítimo preexistente do Esta 473 Capítulo 17 Estado mínimo contra a fase histórica camaleônica do Estado capitalista Wallace dos Santos de Moraes do de enriquecer algumas pessoas à custa de outras Eliminese esse po der ilegítimo de conferir benefícios econômicos diferenciais e eliminase ou se reduz drasticamente o motivo para querer infl uência política O Estado mínimo é o que melhor reduz as possibilidades dessa tomada ou manipulação do Estado por pessoas que desejam poder ou benefícios econômicos especialmente se combinado com um corpo de cidadãos ra zoavelmente alerta uma vez que é o alvo minimamente desejável para tal tomada ou manipulação Nozick 1974 1991 p 294 Neste aspecto o autor está amparado em várias pesquisas históricas e na percepção popular que mostram a prática patrimonialista recorrente do Estado servindo aos interesses dos que têm mais infl uências sobre ele 177 Utopia Nozick termina sua obra com um capítulo descrevendo sua utopia Ini cialmente o autor estabelece alguns critérios para a elaboração da utopia O primeiro e mais importante deles diz respeito à total liberdade de locomoção caso os indivíduos não se satisfaçam com o lugar e suas regras20 Outro aspecto diz respeito à existência e legitimidade da propriedade privada como inviolável Aos poucos as regras do mercado bem como as principais instituições do capi talismo vão se colocando como resultados dos sonhos do autor apresentados como se fossem sonhos de todos Para não me alongar aqui digo que Nozick repete as mesmas teses desenvolvidas nas partes I e II da obra só que por outros caminhos chamados por ele de utópicos Em outros termos a parte III da obra tem o objetivo de mostrar que mesmo se caminhássemos por outras estradas chegaríamos à defesa do Estado mínimo do individualismo e das principais instituições do capitalismo como melhor forma de organizar a sociedade for mando o melhor mundo possível Argumentamos na Parte I que o Estado mínimo é moralmente legíti mo na parte II dissemos que nenhum Estado mais extenso poderia ser moralmente justifi cado que qualquer um deles violaria violará os direitos do indivíduo Vemos agora que esse Estado moralmente apro vado o único moralmente legítimo e o único moralmente tolerável é o que melhor realiza as aspirações utopistas de incontáveis sonhadores e visionários Ele preserva tudo o que podemos conservar da tradição utopista e abre o resto dela às nossas aspirações individuais Nozick 1974 1991 p 357 20 Tratase de uma alusão explícita aos regimes autoritários do Leste Europeu da década de 1970 que impediam que as pessoas emigrassem de seus países 474 ELSEVIER Curso de Ciência Política 178 Críticas metodológicas Para problematizar criticamente as teses de Nozick farei a seguir uma crítica interna por meio de sua própria argumentação dedutiva A primeira ob jeção crítica diz respeito ao fato de não ser lógico que a maioria das pessoas que dependiam de sua terras livres para viverem autonomamente concedessem a criação do Estado e da propriedade privada que as excluíam O segundo aspecto passa pela seguinte pergunta por quais pessoas serão criadas as associações de proteção Se as associações de segurança são criadas pelos grandes proprietários elas não podem surgir de um contrato muito me nos de unanimidade Logo elas não são moralmente justas Qual seria a vanta gem para os pobres fazerem um contrato que apenas regulariza a grande pro priedade do rico Por que o pequeno proprietário ou o sem propriedade faria um contrato participando de uma associação em que suas vantagens são muito inferiores ou inexistentes enquanto outros usufruem grandiosamente A partir da criação das agências de proteção surge a ideia do independen te que não adere à criação das agências como fazer Entendo que a pergunta provocativa não é o que deve ser feito com o independente do ponto de vista moral como propõe Nozick mas ver se se justifi ca tal como o autor afi rma a criação das agências de proteção Portanto o que poria em xeque a tese do au tor pois se a criação das agências viola direitos de liberdade de outros que não encamparam o Estado logo ela é injusta imoral e não se justifi ca Falta a Nozick perquirir se o número de independentes era maior que o de pessoas que queriam a criação do Estado Empiricamente é mais plausível que os independentes fossem em número muito maior que os que queriam o Esta do tendo em vista que poucos se benefi ciaram com a sua criação cujo objetivo maior era a garantia da propriedade O mais provável é que poucos tenham se organizado para constituir o Estado e depois tenham imposto aos demais atra vés da força Isto é demonstrado por toda pesquisa histórica séria Talvez isso explique porque Nozick prefere fazer deduções sobre a criação do Estado 179 Conclusão A obra de Robert Nozick já é um clássico do pensamento liberal contem porâneo Suas deduções racionais são inteligentes e fazem refl etir sobretudo acerca do papel do Estado em nossa sociedade Conquanto não precisamos con cordar com elas Sua defesa intransigente do Estado mínimo que signifi ca o des compromisso exacerbado com os pobres com a forma de provimento do Estado de saúde educação e moradia gratuitas estão na ordem do dia sem contar a não interferência do Estado no mercado por meio da privatização das estatais 475 Capítulo 17 Estado mínimo contra a fase histórica camaleônica do Estado capitalista Wallace dos Santos de Moraes O livro em tela de 1974 ganhou força tal associado a vários outros trabalhos intelectuais e a uma conjuntura específi ca de enfraquecimento dos movimentos autônomos dos trabalhadores que nas últimas décadas os meios de comunica ção em todo o mundo e inclusive no Brasil parecem seguidores de suas teses Podese portanto afi rmar que o mundo em que vivemos hoje é resultado dos escritos de Robert Nozick com extremas desigualdades e défi cit de provi mento por meio do Estado das necessidades básicas da sociedade sobretudo dos mais pobres Não é preciso escrever mais nada embora caiba uma última questão Nozick tem razão quando defende que o papel histórico do Estado ca pitalista não é de prover direitos para os trabalhadores mas apenas de controlá los 1710 Perguntas para reflexão 1 Descreva o contexto de elaboração da obra de Robert Nozick 2 Aponte os pressupostos que guiam o desenvolver das teses de Nozick 3 Ao descrever suas teses Nozick filiase a uma determinada ideologia po lítica Apontea e descreva suas principais ideias 4 Aponte a principal característica distintiva do Estado capitalista para os demais escravista e feudal 5 Explique o processo que faz com que o Estado Capitalista abandone sua postura de não intervenção no mercado 6 Qual o papel dos trabalhadores na mudança de fase do Estado 7 Descreva o significado de Estado mínimo 8 Qual o papel de meios redistributivos na sociedade para a teoria de No zick 9 Explique a relação das ideias de Nozick com as do anarquismo clássico 10 Disserte sobre a relação entre positivismo jurídico liberalismo e capita lismo Bibliografia ANDERSON Perry Balanço do neoliberalismo In SADER Emir GENTI LI Pablo Orgs Pósneoliberalismo as políticas sociais e o Estado democráti co Rio de Janeiro Paz e Terra 1995 476 ELSEVIER Curso de Ciência Política BAKUNIN Michael A Textos anarquistas Porto Alegre LPM 2006 BOITO JR Armando A burguesia no governo Lula Revista Crítica Marxis ta Rio de Janeiro n 21 p 5276 2005 ESPINGANDERSEN Gosta The Three Worlds of Welfare Capitalism Nova Jersey Princeton University Press 1990 HARVEY David A condição pósmoderna13 ed São Paulo Loyola 1992 HOBBES Thomas Leviatã ou Matéria forma e poder de um estado eclesiástico e civil Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva 3 ed São Paulo Abril Cultural 1983 Col Os Pensadores HOBSBAWM Eric A era dos extremos São Paulo Companhia das Letras 1995 KROPOTKINE Pedro A conquista do pão Rio de Janeiro Ed da Organização Simões 1953 LOCKE John Segundo Tratado sobre o Governo Tradução de Anoar Aiex e E Jacy Monteiro 3 ed São Paulo Abril Cultural 1983 Col Os Pensado res LUPERFOY Steven org The possibility of Knowledge Nozick and His Cri tics Nova Jersey Rowman Littlefi eld Publishers 1987 MACPHERSON C B Teoria política do individualismo possessivo de Hobbes até Locke Rio de Janeiro Paz e Terra 1979 MANDEL Ernest A crise do capital os fatos e sua interpretação marxista Campinas Editora da Unicamp 1990 MARX K O capital crítica da economia política São Paulo Victor Civita 1867 1983 v 1 tomo 2 capítulo 24 MÉSZÁROS I O século XXI socialismo ou barbárie São Paulo Boitempo 2003 Para além do capital rumo a uma teoria da transição São Paulo Boitempo 2002 MIGUEL Luis Felipe Sorteios e representação democrática Lua Nova n 50 2000 p 6996 A democracia domesticada bases antidemocráticas do pensamento democrático contemporâneo Dados v 45 n 3 Rio de Ja neiro 2002 MORAES W S Um capítulo esquecido da História do Direito a forma ção do capitalismo e uma contradição interna dos Direitos Humanos In GUERRA S BUZANELLO J C orgs Direitos humanos uma abordagem interdisciplinar Rio de Janeiro Freitas Bastos 2007 477 Capítulo 17 Estado mínimo contra a fase histórica camaleônica do Estado capitalista Wallace dos Santos de Moraes Empresariado industrial e Direito do Trabalho a partir do re ferencial teórico proposto por Poulantzas Ensaio elaborado para apre sentação no XII Encontro Regional de História ANPUHRio entre dias 14 e 18 de agosto de 2006a na Universidade Federal Fluminense UFF Campus do Gragoatá Niterói RJ Notas introdutórias para o estudo da História do Direito do Trabalho no Brasil Trabalho apresentado no II Encontro Brasileiro de His tória do Direito realizado na UFF entre dias 20 e 24 de agosto de 2006b O lugar conceitual da propriedade no Segundo Tratado de Governo Dissertação apresentada ao Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro IUPERJ como requisito parcial para a obtenção do grau de mestre em Ciência Política 2003 MORRESI S D Robert Nozick e o liberalismo fora do esquadro Lua Nova São Paulo n 5556 2002 NOZICK Robert Philosophical Explanations Harvard Harvard University Press 1981 Anarquia Estado e Utopia Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1974 1991 The Nature of Rationality Princeton University Press 1993 Meditaciones sobre la vida 1989 Barcelona Gedisa 1997 Interview with Robert Nozick Laissez Faire Books 24 de jan 2002 OCONNOR James USA a crise do Estado capitalista Rio de Janeiro Paz e Terra 1977 PAUL Jeffrey org Reading Nozick Essays on Anarchy Satet and Utopia Oxford Basil Blackwell 1982 PETRAS J Os fundamentos do neoliberalismo No fi o da navalha crítica das reformas neoliberais de FHC OURIQUES N D RAMPINELLI J A Orgs São Paulo Xamã 1997 POLANYI Karl A grande transformação Rio de Janeiro Campus 2000 POULANTZAS N Poder político e classes sociais do Estado capitalista Porto Portucalense 1971 As classes sociais no capitalismo de hoje Rio de Janeiro Zahar Editores 1975 O Estado o poder o socialismo Rio de Janeiro Graal 2000 PURDY J S The Libertarian Conceit The American Prospect n 35 1997 478 ELSEVIER Curso de Ciência Política ROUSSEAU Jeanjacques Discurso sobre a origem e os fundamentos da desi gualdade entre os homens Tradução de Lourdes Santos Machado 3 ed São Paulo Abril Cultural 1983 Col Os Pensadores SAES Décio Cidadania e capitalismo uma crítica a concepção liberal de cidadania Revista Crítica Marxista n 16 São Paulo Boitempo 2003 WACQUANT Loic Punir os pobres a nova geração da miséria nos Estados Uni dos 2 ed Rio de Janeiro Revan 2003 WOLKMER Antônio Carlos História do Direito no Brasil Rio de Janeiro Fo rense 2005 Butter Lamb 1 Descreva o contexto de elaboração da obra de Robert Nozick R a obra foi elaborada em 1974 buscando frear movimentos autônomos de trabalhadores É uma obra que confronta toda a tradição de pensadores que focam na noção de justiça distributiva 2 Aponte os pressupostos que guiam o desenvolver das teses de Nozick R para chegar às suas teses o autor recorreu metodologicamente a quatro postulados centrais a teoria da mão inivisível a teoria do estado de natureza para justificar a existência do estado a teoria do individualismo metodológico e a desigualdade econômica e social como um valor positivo 3 Ao descrever suas teses Nozick filiase a uma determinada ideologia política Apontea e descreva suas principais ideias R Robert Nozick é libertário Defende a liberdade como principio central Apoia a ideia de um governo limitado quanto aos poderes direitos individuais livre mercado democracia etc 4 Aponte a principal característica distintiva do Estado capitalista para os demais escravista e feudal R a contraprestação no caso o salário Escravos não recebiam salários e podiam ser castigados caso não trabalhassem ou fizessem algo errado No sistema feudal os trabalhadores também não recebiam salários porém recebiam um espaço de terra para sobreviverem e davam grande parte da produção ao senhor feudal como pagamento mas não eram castigados Já no capitalismo o trabalhador recebe o salário e também não pode ser castigado 5 Explique o processo que faz com que o Estado Capitalista abandone sua postura de não intervenção no mercado R Esse processo está relacionado com o Estado camaleão onde os trabalhadores pressionam o Estado capitalista a garantir melhores condições de vidatrabalho e o Estado cede assumindo novas posturas como a intervenção no estado como forma de controle desses trabalhadores 6 Qual o papel dos trabalhadores na mudança de fase do Estado R eles são fundamentais para a luta de classes pois o Estado é cedente ou seja à medida que os trabalhadores se organizam e passam a contestar o capitalismo e concomitantemente reivindicar direitos o Estado entende que essa é a melhor forma de manter a população sem conflitos é concedendo alguns direitos Isso faz com que o Estado mude de fase constantemente 7 Descreva o significado de Estado mínimo R Estado mínimo significa que o Estado deve encontrar limites em seu próprio poder Deve se abster de intervir em determinados assuntos que pertencem tão somente a vontade particular se limitando à proteção de seus cidadãos e ao cumprimento de leis para isso apenas 8 Qual o papel de meios redistributivos na sociedade para a teoria de Nozick R os meios redistributivos na sociedade para Nozick são ilegítimos pois de acordo com ele nenhum Estado por mais poderoso ou extenso que o mínimo é legitimo ou justificável porque simplesmente fere os direitos dos indivíduos principalmente se tem meios ou objetivos redistributivos ou seja de obrigar alguma pessoa a contribuir por algo que gere o bemestar de outrem 9 Explique a relação das ideias de Nozick com as do anarquismo clássico R as ideais de Nozick se relacionam com o anarquismo ao passo em que o anarquismo é uma ideologia política que se opõe a todo tipo de hierarquia e dominação As ideias de Nozick são baseadas exatamente nisso por isso a defesa tão profunda ao Estado mínimo 10 Disserte sobre a relação entre positivismo jurídico liberalismo e capitalismo R Positivismo Jurídico é uma corrente da filosofia do direito que procura reduzir o Direito apenas àquilo que está positivado ou seja que está na lei e utilizar um método científico para estudálo O positivismo crê no progresso do sistema capitalista e nos benefícios gerados pela industrialização O Liberalismo é uma filosofia política e moral baseada na liberdade consentimento dos governados e igualdade diante da lei Está de mãos dadas com o capitalismo pois a base do mesmo é a livre concorrência base fundamental do liberalismo Como podemos observar os três se complementam o positivismo se limitando a lei o liberalismo se ligando a liberdade e livre concorrência e o capitalismo que nada mais é do que a materialização de tudo isso