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Conteúdo do Projeto UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE HISTÓRIA DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA ISABEELLE VIEIRA DE SOUSA PROJETO DE MONOGRAFIA não temos um título NITERÓI 2025 INTRODUÇÃO O jogo do bicho é sem dúvida um dos fenômenos culturais mais emblemáticos do Brasil Não raro ele é mencionado ao lado do samba e do carnaval como parte daquilo que muitos estrangeiros e até brasileiros enxergam como cultura brasileira Contudo é preciso cautela diante dessas generalizações embora tenha alcançado alguma projeção nacional o jogo do bicho está profundamente enraizado na cultura popular carioca não podendo ser tomado como representação de um país tão vasto e repleto de diversidades culturais quanto o Brasil Reconhecer essa especificidade é fundamental para evitar reduções que apagam outras realidades culturais de outras regiões Assim ao se afirmar que o jogo do bicho representa uma realidade de todo o Brasil é mais correto dizer que ele representa sobretudo uma expressividade cultural construída no contexto urbano do Rio de Janeiro A origem do jogo remonta às últimas décadas do século XIX mais precisamente ao bairro de Vila Isabel Foi lá que o Barão de Drummond proprietário do Jardim Zoológico local buscou uma forma criativa de atrair visitantes para seu empreendimento Inspirado pelo desejo de aumentar o fluxo de público lançou uma brincadeira inusitada a venda de bilhetes ilustrados com a imagem de 25 animais do zoológico Ao final do dia um animal era sorteado e aqueles que tivessem o bilhete correspondente recebiam um prêmio equivalente a vinte vezes o valor do ingresso que naquele dia foram 20000 réis No primeiro sorteio o avestruz foi o bicho premiado e 23 pessoas voltaram para casa com os bolsos cheios eufóricos por serem os sortudos a ganhar naquela nova forma de aposta O sucesso da iniciativa foi imediato A proposta curiosa de apostar em animais rapidamente despertou o interesse popular e em pouco tempo a brincadeira deixou de ser apenas uma atração pontual para se espalhar pela cidade Ainda sob a supervisão e com o aval do próprio Barão de Drummond o jogo começou a ultrapassar os muros do zoológico sendo vendido também em estabelecimentos comerciais próximos com o apoio de pequenos comerciantes que viam ali uma oportunidade de lucrar também A prática logo se disseminou pelas ruas do Rio de Janeiro tornandose uma febre popular Os jornais da época não apenas noticiavam os resultados dos sorteios como também contribuiam ativamente para a sua divulgação Em pouco tempo o que começou como uma ótima estratégia de marketing transformouse em um fenômeno social de grandes proporções porém esse escândalo todo não passou despercebido pelo Poder Público No fim a brincadeira durou pouco pois em 1895 o tal jogo do bicho foi proibido considerado uma loteria ilegal MAGALHÃES 2020 O jogo do bicho foi então enquadrado e classificado como loteria ilegal e posteriormente ampliado para a categoria mais ampla dos chamados jogos de azar uma tipificação que desde o Código Penal de 1890 buscava delimitar aquilo que se afastava das noções de trabalho mérito e esforço produtivo Segundo o artigo 370 do referido código eram considerados jogos de azar aqueles em que o ganho e a perda dependem exclusivamente da sorte o que incluía apostas em bilhetes sorteios e demais práticas em que o acaso fosse o único fator determinante Essa definição permitiu que o Poder Público encontrasse respaldo legal para reprimir o sorteio de animais promovido no Jardim Zoológico de Vila Isabel Por mais que à época o jogo estivesse institucionalizado sob a administração do próprio Barão de Drummond o crescente incômodo moral e o temor de que a prática incentivasse hábitos considerados nocivos à ordem urbana foram fatores determinantes para sua proibição formal ainda em 1895 MAGALHÃES 2020 A repressão contudo não se limitou ao zoológico Naquele mesmo contexto a cidade do Rio de Janeiro já convivia com um ambiente pulsante de apostas e sorteios legais e ilegais que envolviam desde rifas beneficentes até bilhetes importados de loterias estrangeiras Os cassinos embora mais associados à elite e à vida noturna glamourosa da Belle Époque carioca e mais tarde da década de 1930 também enfrentaram resistência moral e legal A preocupação com os vícios públicos era recorrente nos discursos das autoridades e da imprensa que viam nas práticas de jogo uma ameaça à moralidade à disciplina e à ordem do trabalho Assim o combate ao jogo do bicho se instaura numa lógica mais ampla de vigilância sobre os hábitos populares especialmente quando esses hábitos escapavam ao controle do Estado Apesar das tentativas de repressão o jogo do bicho não desapareceu Pelo contrário encontrou terreno fértil para se expandir nos espaços informais da cidade A circulação de bilhetes foi incorporada às rotinas dos bairros dos botequins das feiras e dos pontos de encontro dos cidadãos Fora dos muros do zoológico os bichos do barão sobreviveram e prosperaram Enquanto outras formas de jogo foram eliminadas ou severamente reguladas o jogo do bicho se enraizou na cultura urbana carioca desafiando os limites entre o legal e o ilegal o aceitável e o condenável Até hoje apesar de sua condição jurídica como contravenção o jogo permanece como uma prática viva sustentada por redes de sociabilidade códigos próprios e uma profunda adesão simbólica que escapa às normas formais do Estado E pouco menos de um século depois a brincadeira com os animais seria protagonista em diversos escândalos envolvendo o crime organizado a ditadura militar e a boêmia carnavalesca carioca O golpe militar de 31 de março 1964 inaugurou um dos períodos mais autoritários e violentos da história brasileira Sob a justificativa de conter uma suposta ameaça comunista e restaurar a ordem ergueuse um regime que operava por meio do medo da censura e da vigilância constante O aparato repressivo construído nesse contexto não se limitava à contenção de inimigos armados mas mirava qualquer forma de dissidência política cultural ou ideológica classificando como subversiva uma ampla gama de manifestações sociais A ditadura militar criou e aprimorou instituições com funções específicas dentro dessa lógica persecutória entre elas o SNI Serviço Nacional de Informações encarregado de articular os fluxos de informação entre diferentes setores da inteligência o DOPS Departamento de Ordem Política e Social associado à repressão política e reconfigurado para agir com ainda mais agressividade e o DOICODI Destacamento de Operações de Informações Centro de Operações de Defesa Interna núcleo mais violento da repressão diretamente envolvido com prisões ilegais torturas assassinatos e desaparecimentos Essa máquina de controle e extermínio operava sob a lógica da segurança nacional que posicionava o próprio cidadão como possível inimigo interno No entanto enquanto se apresentava como um regime moralizador e legalista o Estado ditatorial convivia com práticas profundamente contraditórias Em nome da ordem e da disciplina muitos agentes da repressão instrumentalizaram seu poder e conhecimento para enriquecimento próprio e se articularam com setores ilegais da economia como por exemplo o contrabando tráfico de drogas e relações gerais com o crime organizado Nesse emaranhado de repressão e oposição seletiva surge a figura de Ailton Guimarães Jorge nascido em 1941 exoficial do Exército com passagem destacada pela Polícia do Exército da Vila Militar e pelo DOICODI do Rio de Janeiro De acordo com o projeto Brasil Nunca Mais foi citado sete vezes como um dos agentes diretamente envolvidos em atos de tortura tendo atuado intensamente no ano de 1969 Também foi denunciado por presos políticos em auditorias militares consolidando seu nome como uma peça ativa nos mecanismos de repressão e violência do regime Jupiara Otávio 2016 Ainda durante o período Ailton Guimarães começou a se envolver com esquemas de contrabando o que culminou em sua expulsão das Forças Armadas no início dos anos 1980 Contudo os métodos operacionais que aprendeu nos porões da repressão não ficaram para trás Fora do Exército ele aplicou os mesmos princípios de comunicação e inteligência ao começar a trabalhar no jogo do bicho reorganizando a atividade com a lógica do aparato repressivo e transformandose em um dos nomes mais poderosos da contravenção no Rio de Janeiro Essa análise nos leva a um ponto central e incômodo como um torturador identificado nomeado em relatórios e denúncias permanece presente e atuante no cenário público Essa permanência revela não apenas as fragilidades do processo de redemocratização mas também a ausência de uma justiça de transição efetiva no Brasil Não houve julgamento responsabilização ou mesmo alguma exclusão social por conta de seus atos na ditadura militar Pelo contrário o que se vê é um processo de reintegração dessas figuras em espaços sociais como se nada tivesse acontecido algumas ainda atuaram em áreas de influência muitas vezes com prestígio aplauso e honrarias No caso do capitão sua reintegração foi legitimada pelo jogo do bicho e pelos enredos da Unidos Vila Isabel O dito capitão não se limitou ao submundo da contravenção A partir da década de 1980 mergulhou no universo do samba e do carnaval uma das expressões mais importantes da cultura carioca Foi presidente da Unidos de Vila Isabel de 1983 a 1987 e da LIESA Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro entre 1987 e 1993 e novamente de 2001 a 2007 Nesse espaço de festa e identidade popular ele reconfigurou sua imagem pública de agente da repressão à figura paternal e respeitada do carnaval o famoso patrono Passou a ser chamado de capitão num gesto ambíguo que tanto reverência sua falsa alcunha durante os porões quanto silencia A presença de Guimarães na vida pública escancara uma zona cinzenta da ditadura será que a repressão conviveu com a contravenção porque a tolerava Ou será que o regime ao mesmo tempo em que opunha contra essas práticas as liberava Em termos de memória isso tem efeitos profundos A continuidade pública de nomes como o de Capitão Guimarães não como símbolo da violência do Estado repressivo mas como atualmente empresário benfeitor cultural ou líder da comunidade revela uma sociedade que naturaliza essas memórias por meio das festanças e da alegria proporcionada por homens como Guimarães A memória oficial do regime se dilui se acomoda e até muitas vezes se transforma em narrativas distorcidas apagando as marcas do autoritarismo em nome do samba carnaval cultura ou da festa E é assim que figuras que deveriam representar o horror se transformam em referências intencionalmente mascaradas festivas mas ainda profundamente marcadas pelas denúncias acusações e mortes do seu passado que ainda vive Figuras como Capitão Guimarães são celebradas em espaços de celebração popular contribuise para a construção de uma memória pública que suaviza ou silencia as feridas profundas da ditadura A alegria coletiva do samba e do carnaval nesse sentido não apenas ressignifica essa memória mas também é uma máscara fortíssima que esconde a outra face desses indivíduos E assim os fantasmas da repressão seguem desfilando discretos sob os holofotes da Marquês de Sapucaí JUSTIFICATIVA E RELEVÂNCIA O debate sobre a ditadura militar no Brasil retornou ao centro das discussões públicas impulsionada pelos 60 anos do golpe de 1964 em um cenário marcado pela ascensão de discursos de extrema direita que buscam distorcer ou silenciar essa memória e os crimes cometidos pelo regime Apesar dos avanços nos debates medidas e sobre a preservação da memória das vítimas dos presos políticos e dos desaparecidos um aspecto ainda pouco explorado diz respeito à como os agentes da repressão se entrelaçaram com o crime organizado e com o carnaval embora responsabilizados pela Comissão Nacional da Verdade jamais foram punidos devidamente Muitos deles transitaram durante os anos finais da ditadura entre o universo da repressão contravenção e do carnaval O seguinte trabalho possui uma contribuição acadêmica ao possibilitar uma análise de como o aparato repressivo da ditadura militar serviu como uma espécie de escola para a reestruturação do esquema dos banqueiros do jogo do bicho Ao longo desse processo observase como os conhecimentos e as redes construídas nos porões da repressão foram fundamentais para fortalecer o crime organizado nos anos finais e no pósditadura Além disso o trabalho também se debruça sobre a forma como a memória popular opta muitas vezes por silenciar ou ignorar o passado de violência desses agentes especialmente quando eles passam a se vincular a expressões culturais de grande relevância e prestígio carioca como o carnaval A trajetória de Ailton Guimarães Jorge o então exagente da repressão e bicheiro que reivindica o título de Capitão Guimarães nos dias de hoje é um dos exemplos desse entrelaço Durante a ditadura atuou diretamente na repressão sendo identificado como torturador e posteriormente se tornou uma das figuras mais influentes do jogo do bicho no Rio de Janeiro além de patrono da escola de samba da Unidos da Vila Isabel Sua figura ilustra como a inserção desses exagentes nos bastidores do carnaval contribuiu para a construção de uma imagem socialmente aceita que muitas vezes ofusca e apaga a memória de seus crimes cometidos durante o regime militar Assim este trabalho busca também oferecer uma reflexão social sobre como a memória coletiva é seletiva e sobre os mecanismos de apagamento que atuam na reconstrução das trajetórias desses personagens Ao trazer à tona essas relações a pesquisa evidencia como o sistema repressivo e seus agentes além de terem sido coniventes foram em muitos casos peças chaves no fortalecimento do jogo do bicho e do crime organizado cujos desdobramentos atravessam até hoje a imagem enraizada de um Rio de Janeiro vinculado a contravenção samba festança e carnaval A viabilidade dessa acontece por meio da principal base que será composta por documentos obtidos por meio do Sistema de Informações do Arquivo Nacional SIAN com ênfase nos fundos do Serviço Nacional de Informações SNI ativo entre 1964 e 1990 além de arquivos dos Ministérios do Exército e da Aeronáutica especialmente no período entre 1964 e 1985 Esses documentos oferecem evidências diretas da atuação dos órgãos de repressão processos referentes ao Capitão Guimarães entre outros agentes que se articularam com o jogo do bicho A pesquisa também fará uso do acervo da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional especialmente em relação às reportagens e matérias da época sobre a prisão de bicheiros em específico a prisão do Capitão Guimarães que ajudam a compreender a percepção pública e midiática dessas figuras Além disso será fundamental o exame dos relatórios e depoimentos contidos no projeto Brasil Nunca Mais e nos arquivos da Comissão Nacional da Verdade e da Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro que trazem importantes registros sobre violações de direitos humanos os processos as acusações e também a lista de todos os torturadores durante o período da ditadura militar REVISÃO HISTORIOGRÁFICA A bibliografia mobilizada neste trabalho permite compreender o jogo do bicho não apenas como uma prática às margens da lei mas como um fenômeno histórico cultural e político profundamente enraizado nas dinâmicas sociais do Rio de Janeiro A análise parte da compreensão de que essa prática extrapola os limites da ilegalidade formal articulandose com formas de sociabilidade urbana processos de legitimação popular e vínculos por vezes ambíguos com o Estado repressivo com o foco durante a ditadura militar de 1964 Nesse sentido a tese de doutorado de Felipe Santos Magalhães intitulada Ganhou leva do vale o impresso ao vale o escrito uma história social do jogo do bicho no Rio de Janeiro 18901960 oferece um aporte fundamental ao situar historicamente o surgimento e a consolidação do jogo do bicho como prática social urbana A partir de uma abordagem ancorada na história social o autor evidencia como o jogo se institucionalizou no tecido cotidiano da cidade sendo apropriado por diversas camadas sociais e adquirindo ao longo das décadas legitimidade cultural Essa perspectiva é relevante para a presente pesquisa uma vez que permite compreender como ainda antes da ditadura militar o jogo do bicho já ocupava uma posição ambivalente entre a marginalidade jurídica e a aceitação social o que contribui para explicar sua permanência e ressignificação durante o século XX A compreensão do contexto ditatorial no Brasil é sustentada sobretudo pelas contribuições de Marcos Napolitano Em 1964 a história do regime militar brasileiro o autor realiza uma análise abrangente dos fatores estruturais conjunturais e ideológicos que levaram ao golpe bem como dos mecanismos de repressão e controle implementados ao longo do período Ao mapear os diferentes aparatos estatais envolvidos na vigilância e na repressão política e social Napolitano oferece subsídios analíticos importantes para refletir sobre as formas pelas quais agentes do Estado atuavam em prol do aparato repressivo Essa articulação é aprofundada na obra de Aloy Jupiara e Chico Otávio Os porões da contravenção jogo do bicho e ditadura militar a história da aliança que profissionalizou o crime organizado A partir de uma extensa investigação documental e testemunhal os autores demonstram como o regime militar ao mesmo tempo em que sustentava uma retórica de combate à corrupção e ao crime tolerou escondeu ou até mesmo ignorou a atuação de agentes repressores junto às práticas ilegais como o jogo do bicho e o contrabando Figuras como o Capitão Guimarães amplamente denunciado por práticas de tortura são retratadas como pontes de ligação entre o aparato repressivo e a estrutura do jogo do bicho contribuindo para a militarização da contravenção e para sua reorganização cada vez mais idealizada sob esse viés No campo da cultura popular as obras de Maria Isaura Pereira de Queiroz e Roberto DaMatta elucidam as formas pelas quais o jogo do bicho se insere no imaginário simbólico da sociedade brasileira Em Carnaval brasileiro o vivido e o mito Queiroz analisa o carnaval como fenômeno sociocultural estruturante da identidade nacional no qual convivem tensões ambivalências e representações do popular A associação entre bicheiros e escolas de samba nesse contexto não se restringe ao patrocínio financeiro mas adquire contornos simbólicos de pertencimento legitimidade e poder Complementarmente DaMatta em Carnavais malandros e heróis e no estudo Águias burros e borboletas com Helena Soárez problematiza o papel dos bicheiros como figuras ambíguas que transitam entre a marginalidade e a centralidade entre a rebeldia e a representação do herói popular Ao tratar o jogo do bicho como um sistema simbólico estruturado por códigos e lógicas sociais próprias DaMatta contribui para a compreensão da aceitação social desses agentes inclusive quando associados à repressão A discussão sobre os modos de pensar a memória da ditadura militar por sua vez é orientada pelas contribuições de Daniel Aarão Reis e novamente de Marcos Napolitano Em Os muitos véus da impunidade sociedade tortura e ditadura no Brasil Reis discute como a impunidade de agentes da repressão se estrutura a partir do processo de Anistia mas também de uma cultura social de silenciamento e esquecimento A obra introduz a análise de que maneira torturadores identificados como Guimarães por exemplo puderam circular publicamente mantendo posições de poder e prestígio muitas vezes mesmo após o fim do regime Napolitano em Recordar é vencer as dinâmicas e vicissitudes da construção da memória sobre o regime militar brasileiro amplia essa reflexão ao abordar os processos sociais e políticos que conformam a memória coletiva O autor destaca as tensões entre justiça memória e esquecimento entre lembrança e negação que marcam o modo como o Brasil lida com seu passado do golpe de 1964 Por fim Michel Misse em Malandros marginais e vagabundos a acumulação social da violência no Rio de Janeiro 2006 analisa como práticas ilegais longe de serem completamente marginais ao Estado se organizam em torno de circuitos de poder prestígio e violência Misse investiga como categorias como bandido ou marginal são socialmente produzidas e como a ambiguidade entre legalidade e ilegalidade estrutura relações cotidianas inclusive com o próprio Estado Sua análise contribui para compreender a construção simbólica e política da criminalidade no Brasil especialmente no contexto urbano do Rio de Janeiro OBJETIVOS GERAIS Compreender a relação entre o jogo do bicho e a ditadura militar no Rio de Janeiro Reconhecer como a repressão e o Estado contribuíram para a estruturação do jogo do bicho no Rio de Janeiro OBJETIVOS ESPECÍFICOS Introduzir o histórico do jogo do bicho no Brasil Analisar como Capitão Guimarães utilizou sua experiência como agente de repressão e suas conexões para reestruturar e expandir o jogo do bicho no Rio de Janeiro durante a ditadura militar Discutir de que maneira o samba exemplificado pela Unidos de Vila Isabel e da posterior atuação de Guimarães na LIESA foi utilizado como instrumento de legitimação simbólica social e política pelos bicheiros nos anos finais da ditadura e no período de redemocratização Analisar como esses entrelaços entre jogo do bicho ditadura militar e carnaval contribuíram para a construção de uma memória da ditadura marcada por apagamentos normalizações e ressignificações especialmente por meio do carnaval carioca QUADRO TEÓRICOMETODOLÓGICO Este trabalho inserese no campo da História do Tempo Presente uma vertente historiográfica que se ocupa da análise de fenômenos históricos cuja temporalidade se projeta sobre o presente e que mantêm vínculos vivos com a experiência dos sujeitos as disputas políticas e os processos de construção da memória Conforme apontam autores como Henry Rousso e François Bédarida a História do Tempo Presente se caracteriza por investigar acontecimentos ainda latentes na memória coletiva cuja significação continua em disputa sendo marcada pela convivência com testemunhos vivos pela disponibilidade de documentos recentes e pela constante tensão entre o tempo da experiência da memória e da narrativa histórica Essa abordagem permite problematizar como o passado recente Segundo Carlos Fico 2012p45 De fato a marca central da História do Tempo Presente sua imbricação com a política decorre da circunstância de estarmos sujeito e objeto mergulhados em uma mesma temporalidade que por assim dizer não terminou No interior dessa abordagem a presente pesquisa inserese no debate em torno da história e memória da ditadura entendendo que o modo como a sociedade brasileira se relaciona com esse passado revela não apenas o conteúdo da repressão mas também os silêncios apagamentos e disputas de significados que atravessam a construção da memória coletiva Como aponta Napolitano o que está em jogo não é apenas recordar fatos do regime autoritário mas compreender as dinâmicas pelas quais determinados eventos sujeitos ou estruturas são lembrados ressignificados ou sistematicamente esquecidos A memória portanto é aqui tomada como uma construção social sempre seletiva situada e politicamente orientada A esse respeito irei destacar Marcos Napolitano 2015 que propõe uma importante periodização da memória social sobre o regime militar dividindoa em três grandes fases entre 1974 e 2004 a primeira de 1974 a 1994 marcada pela construção de uma memória crítica e progressista fruto da articulação entre setores liberais e da esquerda não armada a segunda de 1995 a 2004 quando o Estado brasileiro passa a implementar políticas de memória como leis de reparação e reconhecimento oficial das vítimas e finalmente uma fase de intensificação das disputas em que a memória oficial crítica convive com o revisionismo conservador e com o silêncio institucional de setores como as Forças Armadas Essa leitura é central para compreender a instabilidade e a fluidez das narrativas sobre o passado autoritário bem como a permanência de discursos negacionistas e de apagamento simbólico na sociedade brasileira NAPOLITANO 2015 Esse enfoque ganha contornos ainda mais complexos quando se trata da análise de documentos produzidos pelos próprios órgãos da repressão como é o caso do acervo consultado nesta pesquisa proveniente majoritariamente do Sistema de Informações do Arquivo Nacional SIAN especialmente dos fundos do Serviço Nacional de Informações SNI do Ministério do Exército e da Aeronáutica todos atuantes entre 1964 e 1985 Tais documentos embora ofereçam informações cruciais para a reconstrução da atuação repressiva e das articulações entre agentes do Estado e a contravenção são produzidos sob uma lógica burocrática autoritária e por isso carregam intencionalidades específicas visam vigiar controlar e incriminar muitas vezes operando sob o viés da suspeição e da criminalização de determinados sujeitos e práticas Nesse sentido fazse necessário adotar uma postura crítica frente às fontes reconhecendoas não como espelhos da realidade mas como produtos de determinadas circunstâncias históricas ideológicas e políticas Os arquivos dos órgãos de informação devem ser interrogados a partir de suas condições de produção e circulação levando em conta o que dizem mas também o que omitem distorcem ou constroem como verdade e lógica do Estado A análise de matérias jornalísticas consultadas na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional especialmente as que retratam a prisão e atuação pública de bicheiros como o Capitão Guimarães deve ser analisada no viés de como a mídia enxerga a imagem dos bicheiros Outro conjunto de fontes fundamentais para este trabalho provém dos relatórios do projeto Brasil Nunca Mais da Comissão Nacional da Verdade e da Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro Esses documentos produzidos a partir de denúncias processos judiciais e depoimentos de vítimas de tortura operam em direção oposta aos arquivos repressivos pois buscam dar voz as vítimas divulgar e nomear os responsáveis e promover a responsabilização dos agentes da repressão Ao debruçarme sobre esses dois blocos documentais um institucional oficial vinculado ao Estado repressor outro memorial insurgente vinculado à luta por justiça e reconhecimento dos crimes cometidos a pesquisa pretende evidenciar as disputas de memória que ainda estruturam o modo como a ditadura é lembrada Por fim ao tratar de temas como repressão silenciamento apagamento e legitimação de figuras envolvidas com a violência de Estado este trabalho busca articular as noções de memória popular e memória oficial examinando como diferentes registros históricos estatais jornalísticos judiciais e culturais constroem narrativas divergentes sobre os mesmos sujeitos A investigação em torno da figura do Capitão Guimarães se apresenta assim como um caso exemplar das ambiguidades da memória da ditadura onde a figura do torturador se sobrepõe e por vezes desaparece sob a imagem do benfeitor do malandro ou do patrono do carnavalseria importante dizer que não é uam biogarfia mas um recorte CRONOGRAMA ATIVIDADEPERÍOD O AGOSTO SETEMBRO NOVEMBRO DEZEMBRO Revisão do Projeto Revisão bibliográfica x Pesquisa de Fontes x Redação da Monografia x x Revisão e entrega x FONTES a Arquivo Nacional fundos do SNI b Hemeroteca da Biblioteca Nacional de quando ele é preso c Brasil nunca mais httpsbnmdigitalmpfmpbrptbr d Comissão da verdade estadual do Rio de Janeiro e a nacional REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS LEOPOLDI José Sávio Escola de samba ritual e sociedade Petrópolis Vozes 1978 NAPOLITANO Marcos 1964 história do regime militar brasileiro São Paulo Contexto 2014 NAPOLITANO Marcos Recordar é vencer as dinâmicas e vicissitudes da construção da memória sobre o regime militar brasileiro Antíteses S l v 8 n 15esp p 944 2015 DOI 105433198433562015v8n15espp9 Disponível em httpsojsuelbrrevistasuelindexphpantitesesarticleview23617 Acesso em 9 jul 2025 JUPIARA Aloy Os porões da contravenção jogo do bicho e ditadura militar a história da aliança que profissionalizou o crime organizado Editora Record 2015 MAGALHÃES F Ganhou leva só vale o que está escrito Experiências de bicheiros na cidade do Rio de Janeiro 18901960 Rio de Janeiro 2005 FON CarlosComo eles agiam Os subterrâneos da ditadura militar espionagem e polícia política Rio de Janeiro Record 2001 QUADRAT Samantha Viz Poder e informação o sistema de inteligência e o regime militar no Brasil 2000 145 f Dissertação Mestrado Instituto de Filosofia e Ciências Sociais UFRJ Rio de Janeiro 2000 QUEIROZ Maria Isaura Pereira de Carnaval Brasileiro o vivido e o mito São Paulo Brasiliense 1992 REIS Daniel Aarão Os muitos véus da impunidade sociedade tortura e ditadura no Brasil artigo Seminário Internacional sobre Impunidade e Direito à Memória Fundação Delgado Lisboa 1999 MISSE Michel Malandros marginais e vagabundos a acumulação social da violência no Rio de Janeiro Tese Doutorado em Sociologia Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 1999
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Conteúdo do Projeto UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE HISTÓRIA DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA ISABEELLE VIEIRA DE SOUSA PROJETO DE MONOGRAFIA não temos um título NITERÓI 2025 INTRODUÇÃO O jogo do bicho é sem dúvida um dos fenômenos culturais mais emblemáticos do Brasil Não raro ele é mencionado ao lado do samba e do carnaval como parte daquilo que muitos estrangeiros e até brasileiros enxergam como cultura brasileira Contudo é preciso cautela diante dessas generalizações embora tenha alcançado alguma projeção nacional o jogo do bicho está profundamente enraizado na cultura popular carioca não podendo ser tomado como representação de um país tão vasto e repleto de diversidades culturais quanto o Brasil Reconhecer essa especificidade é fundamental para evitar reduções que apagam outras realidades culturais de outras regiões Assim ao se afirmar que o jogo do bicho representa uma realidade de todo o Brasil é mais correto dizer que ele representa sobretudo uma expressividade cultural construída no contexto urbano do Rio de Janeiro A origem do jogo remonta às últimas décadas do século XIX mais precisamente ao bairro de Vila Isabel Foi lá que o Barão de Drummond proprietário do Jardim Zoológico local buscou uma forma criativa de atrair visitantes para seu empreendimento Inspirado pelo desejo de aumentar o fluxo de público lançou uma brincadeira inusitada a venda de bilhetes ilustrados com a imagem de 25 animais do zoológico Ao final do dia um animal era sorteado e aqueles que tivessem o bilhete correspondente recebiam um prêmio equivalente a vinte vezes o valor do ingresso que naquele dia foram 20000 réis No primeiro sorteio o avestruz foi o bicho premiado e 23 pessoas voltaram para casa com os bolsos cheios eufóricos por serem os sortudos a ganhar naquela nova forma de aposta O sucesso da iniciativa foi imediato A proposta curiosa de apostar em animais rapidamente despertou o interesse popular e em pouco tempo a brincadeira deixou de ser apenas uma atração pontual para se espalhar pela cidade Ainda sob a supervisão e com o aval do próprio Barão de Drummond o jogo começou a ultrapassar os muros do zoológico sendo vendido também em estabelecimentos comerciais próximos com o apoio de pequenos comerciantes que viam ali uma oportunidade de lucrar também A prática logo se disseminou pelas ruas do Rio de Janeiro tornandose uma febre popular Os jornais da época não apenas noticiavam os resultados dos sorteios como também contribuiam ativamente para a sua divulgação Em pouco tempo o que começou como uma ótima estratégia de marketing transformouse em um fenômeno social de grandes proporções porém esse escândalo todo não passou despercebido pelo Poder Público No fim a brincadeira durou pouco pois em 1895 o tal jogo do bicho foi proibido considerado uma loteria ilegal MAGALHÃES 2020 O jogo do bicho foi então enquadrado e classificado como loteria ilegal e posteriormente ampliado para a categoria mais ampla dos chamados jogos de azar uma tipificação que desde o Código Penal de 1890 buscava delimitar aquilo que se afastava das noções de trabalho mérito e esforço produtivo Segundo o artigo 370 do referido código eram considerados jogos de azar aqueles em que o ganho e a perda dependem exclusivamente da sorte o que incluía apostas em bilhetes sorteios e demais práticas em que o acaso fosse o único fator determinante Essa definição permitiu que o Poder Público encontrasse respaldo legal para reprimir o sorteio de animais promovido no Jardim Zoológico de Vila Isabel Por mais que à época o jogo estivesse institucionalizado sob a administração do próprio Barão de Drummond o crescente incômodo moral e o temor de que a prática incentivasse hábitos considerados nocivos à ordem urbana foram fatores determinantes para sua proibição formal ainda em 1895 MAGALHÃES 2020 A repressão contudo não se limitou ao zoológico Naquele mesmo contexto a cidade do Rio de Janeiro já convivia com um ambiente pulsante de apostas e sorteios legais e ilegais que envolviam desde rifas beneficentes até bilhetes importados de loterias estrangeiras Os cassinos embora mais associados à elite e à vida noturna glamourosa da Belle Époque carioca e mais tarde da década de 1930 também enfrentaram resistência moral e legal A preocupação com os vícios públicos era recorrente nos discursos das autoridades e da imprensa que viam nas práticas de jogo uma ameaça à moralidade à disciplina e à ordem do trabalho Assim o combate ao jogo do bicho se instaura numa lógica mais ampla de vigilância sobre os hábitos populares especialmente quando esses hábitos escapavam ao controle do Estado Apesar das tentativas de repressão o jogo do bicho não desapareceu Pelo contrário encontrou terreno fértil para se expandir nos espaços informais da cidade A circulação de bilhetes foi incorporada às rotinas dos bairros dos botequins das feiras e dos pontos de encontro dos cidadãos Fora dos muros do zoológico os bichos do barão sobreviveram e prosperaram Enquanto outras formas de jogo foram eliminadas ou severamente reguladas o jogo do bicho se enraizou na cultura urbana carioca desafiando os limites entre o legal e o ilegal o aceitável e o condenável Até hoje apesar de sua condição jurídica como contravenção o jogo permanece como uma prática viva sustentada por redes de sociabilidade códigos próprios e uma profunda adesão simbólica que escapa às normas formais do Estado E pouco menos de um século depois a brincadeira com os animais seria protagonista em diversos escândalos envolvendo o crime organizado a ditadura militar e a boêmia carnavalesca carioca O golpe militar de 31 de março 1964 inaugurou um dos períodos mais autoritários e violentos da história brasileira Sob a justificativa de conter uma suposta ameaça comunista e restaurar a ordem ergueuse um regime que operava por meio do medo da censura e da vigilância constante O aparato repressivo construído nesse contexto não se limitava à contenção de inimigos armados mas mirava qualquer forma de dissidência política cultural ou ideológica classificando como subversiva uma ampla gama de manifestações sociais A ditadura militar criou e aprimorou instituições com funções específicas dentro dessa lógica persecutória entre elas o SNI Serviço Nacional de Informações encarregado de articular os fluxos de informação entre diferentes setores da inteligência o DOPS Departamento de Ordem Política e Social associado à repressão política e reconfigurado para agir com ainda mais agressividade e o DOICODI Destacamento de Operações de Informações Centro de Operações de Defesa Interna núcleo mais violento da repressão diretamente envolvido com prisões ilegais torturas assassinatos e desaparecimentos Essa máquina de controle e extermínio operava sob a lógica da segurança nacional que posicionava o próprio cidadão como possível inimigo interno No entanto enquanto se apresentava como um regime moralizador e legalista o Estado ditatorial convivia com práticas profundamente contraditórias Em nome da ordem e da disciplina muitos agentes da repressão instrumentalizaram seu poder e conhecimento para enriquecimento próprio e se articularam com setores ilegais da economia como por exemplo o contrabando tráfico de drogas e relações gerais com o crime organizado Nesse emaranhado de repressão e oposição seletiva surge a figura de Ailton Guimarães Jorge nascido em 1941 exoficial do Exército com passagem destacada pela Polícia do Exército da Vila Militar e pelo DOICODI do Rio de Janeiro De acordo com o projeto Brasil Nunca Mais foi citado sete vezes como um dos agentes diretamente envolvidos em atos de tortura tendo atuado intensamente no ano de 1969 Também foi denunciado por presos políticos em auditorias militares consolidando seu nome como uma peça ativa nos mecanismos de repressão e violência do regime Jupiara Otávio 2016 Ainda durante o período Ailton Guimarães começou a se envolver com esquemas de contrabando o que culminou em sua expulsão das Forças Armadas no início dos anos 1980 Contudo os métodos operacionais que aprendeu nos porões da repressão não ficaram para trás Fora do Exército ele aplicou os mesmos princípios de comunicação e inteligência ao começar a trabalhar no jogo do bicho reorganizando a atividade com a lógica do aparato repressivo e transformandose em um dos nomes mais poderosos da contravenção no Rio de Janeiro Essa análise nos leva a um ponto central e incômodo como um torturador identificado nomeado em relatórios e denúncias permanece presente e atuante no cenário público Essa permanência revela não apenas as fragilidades do processo de redemocratização mas também a ausência de uma justiça de transição efetiva no Brasil Não houve julgamento responsabilização ou mesmo alguma exclusão social por conta de seus atos na ditadura militar Pelo contrário o que se vê é um processo de reintegração dessas figuras em espaços sociais como se nada tivesse acontecido algumas ainda atuaram em áreas de influência muitas vezes com prestígio aplauso e honrarias No caso do capitão sua reintegração foi legitimada pelo jogo do bicho e pelos enredos da Unidos Vila Isabel O dito capitão não se limitou ao submundo da contravenção A partir da década de 1980 mergulhou no universo do samba e do carnaval uma das expressões mais importantes da cultura carioca Foi presidente da Unidos de Vila Isabel de 1983 a 1987 e da LIESA Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro entre 1987 e 1993 e novamente de 2001 a 2007 Nesse espaço de festa e identidade popular ele reconfigurou sua imagem pública de agente da repressão à figura paternal e respeitada do carnaval o famoso patrono Passou a ser chamado de capitão num gesto ambíguo que tanto reverência sua falsa alcunha durante os porões quanto silencia A presença de Guimarães na vida pública escancara uma zona cinzenta da ditadura será que a repressão conviveu com a contravenção porque a tolerava Ou será que o regime ao mesmo tempo em que opunha contra essas práticas as liberava Em termos de memória isso tem efeitos profundos A continuidade pública de nomes como o de Capitão Guimarães não como símbolo da violência do Estado repressivo mas como atualmente empresário benfeitor cultural ou líder da comunidade revela uma sociedade que naturaliza essas memórias por meio das festanças e da alegria proporcionada por homens como Guimarães A memória oficial do regime se dilui se acomoda e até muitas vezes se transforma em narrativas distorcidas apagando as marcas do autoritarismo em nome do samba carnaval cultura ou da festa E é assim que figuras que deveriam representar o horror se transformam em referências intencionalmente mascaradas festivas mas ainda profundamente marcadas pelas denúncias acusações e mortes do seu passado que ainda vive Figuras como Capitão Guimarães são celebradas em espaços de celebração popular contribuise para a construção de uma memória pública que suaviza ou silencia as feridas profundas da ditadura A alegria coletiva do samba e do carnaval nesse sentido não apenas ressignifica essa memória mas também é uma máscara fortíssima que esconde a outra face desses indivíduos E assim os fantasmas da repressão seguem desfilando discretos sob os holofotes da Marquês de Sapucaí JUSTIFICATIVA E RELEVÂNCIA O debate sobre a ditadura militar no Brasil retornou ao centro das discussões públicas impulsionada pelos 60 anos do golpe de 1964 em um cenário marcado pela ascensão de discursos de extrema direita que buscam distorcer ou silenciar essa memória e os crimes cometidos pelo regime Apesar dos avanços nos debates medidas e sobre a preservação da memória das vítimas dos presos políticos e dos desaparecidos um aspecto ainda pouco explorado diz respeito à como os agentes da repressão se entrelaçaram com o crime organizado e com o carnaval embora responsabilizados pela Comissão Nacional da Verdade jamais foram punidos devidamente Muitos deles transitaram durante os anos finais da ditadura entre o universo da repressão contravenção e do carnaval O seguinte trabalho possui uma contribuição acadêmica ao possibilitar uma análise de como o aparato repressivo da ditadura militar serviu como uma espécie de escola para a reestruturação do esquema dos banqueiros do jogo do bicho Ao longo desse processo observase como os conhecimentos e as redes construídas nos porões da repressão foram fundamentais para fortalecer o crime organizado nos anos finais e no pósditadura Além disso o trabalho também se debruça sobre a forma como a memória popular opta muitas vezes por silenciar ou ignorar o passado de violência desses agentes especialmente quando eles passam a se vincular a expressões culturais de grande relevância e prestígio carioca como o carnaval A trajetória de Ailton Guimarães Jorge o então exagente da repressão e bicheiro que reivindica o título de Capitão Guimarães nos dias de hoje é um dos exemplos desse entrelaço Durante a ditadura atuou diretamente na repressão sendo identificado como torturador e posteriormente se tornou uma das figuras mais influentes do jogo do bicho no Rio de Janeiro além de patrono da escola de samba da Unidos da Vila Isabel Sua figura ilustra como a inserção desses exagentes nos bastidores do carnaval contribuiu para a construção de uma imagem socialmente aceita que muitas vezes ofusca e apaga a memória de seus crimes cometidos durante o regime militar Assim este trabalho busca também oferecer uma reflexão social sobre como a memória coletiva é seletiva e sobre os mecanismos de apagamento que atuam na reconstrução das trajetórias desses personagens Ao trazer à tona essas relações a pesquisa evidencia como o sistema repressivo e seus agentes além de terem sido coniventes foram em muitos casos peças chaves no fortalecimento do jogo do bicho e do crime organizado cujos desdobramentos atravessam até hoje a imagem enraizada de um Rio de Janeiro vinculado a contravenção samba festança e carnaval A viabilidade dessa acontece por meio da principal base que será composta por documentos obtidos por meio do Sistema de Informações do Arquivo Nacional SIAN com ênfase nos fundos do Serviço Nacional de Informações SNI ativo entre 1964 e 1990 além de arquivos dos Ministérios do Exército e da Aeronáutica especialmente no período entre 1964 e 1985 Esses documentos oferecem evidências diretas da atuação dos órgãos de repressão processos referentes ao Capitão Guimarães entre outros agentes que se articularam com o jogo do bicho A pesquisa também fará uso do acervo da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional especialmente em relação às reportagens e matérias da época sobre a prisão de bicheiros em específico a prisão do Capitão Guimarães que ajudam a compreender a percepção pública e midiática dessas figuras Além disso será fundamental o exame dos relatórios e depoimentos contidos no projeto Brasil Nunca Mais e nos arquivos da Comissão Nacional da Verdade e da Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro que trazem importantes registros sobre violações de direitos humanos os processos as acusações e também a lista de todos os torturadores durante o período da ditadura militar REVISÃO HISTORIOGRÁFICA A bibliografia mobilizada neste trabalho permite compreender o jogo do bicho não apenas como uma prática às margens da lei mas como um fenômeno histórico cultural e político profundamente enraizado nas dinâmicas sociais do Rio de Janeiro A análise parte da compreensão de que essa prática extrapola os limites da ilegalidade formal articulandose com formas de sociabilidade urbana processos de legitimação popular e vínculos por vezes ambíguos com o Estado repressivo com o foco durante a ditadura militar de 1964 Nesse sentido a tese de doutorado de Felipe Santos Magalhães intitulada Ganhou leva do vale o impresso ao vale o escrito uma história social do jogo do bicho no Rio de Janeiro 18901960 oferece um aporte fundamental ao situar historicamente o surgimento e a consolidação do jogo do bicho como prática social urbana A partir de uma abordagem ancorada na história social o autor evidencia como o jogo se institucionalizou no tecido cotidiano da cidade sendo apropriado por diversas camadas sociais e adquirindo ao longo das décadas legitimidade cultural Essa perspectiva é relevante para a presente pesquisa uma vez que permite compreender como ainda antes da ditadura militar o jogo do bicho já ocupava uma posição ambivalente entre a marginalidade jurídica e a aceitação social o que contribui para explicar sua permanência e ressignificação durante o século XX A compreensão do contexto ditatorial no Brasil é sustentada sobretudo pelas contribuições de Marcos Napolitano Em 1964 a história do regime militar brasileiro o autor realiza uma análise abrangente dos fatores estruturais conjunturais e ideológicos que levaram ao golpe bem como dos mecanismos de repressão e controle implementados ao longo do período Ao mapear os diferentes aparatos estatais envolvidos na vigilância e na repressão política e social Napolitano oferece subsídios analíticos importantes para refletir sobre as formas pelas quais agentes do Estado atuavam em prol do aparato repressivo Essa articulação é aprofundada na obra de Aloy Jupiara e Chico Otávio Os porões da contravenção jogo do bicho e ditadura militar a história da aliança que profissionalizou o crime organizado A partir de uma extensa investigação documental e testemunhal os autores demonstram como o regime militar ao mesmo tempo em que sustentava uma retórica de combate à corrupção e ao crime tolerou escondeu ou até mesmo ignorou a atuação de agentes repressores junto às práticas ilegais como o jogo do bicho e o contrabando Figuras como o Capitão Guimarães amplamente denunciado por práticas de tortura são retratadas como pontes de ligação entre o aparato repressivo e a estrutura do jogo do bicho contribuindo para a militarização da contravenção e para sua reorganização cada vez mais idealizada sob esse viés No campo da cultura popular as obras de Maria Isaura Pereira de Queiroz e Roberto DaMatta elucidam as formas pelas quais o jogo do bicho se insere no imaginário simbólico da sociedade brasileira Em Carnaval brasileiro o vivido e o mito Queiroz analisa o carnaval como fenômeno sociocultural estruturante da identidade nacional no qual convivem tensões ambivalências e representações do popular A associação entre bicheiros e escolas de samba nesse contexto não se restringe ao patrocínio financeiro mas adquire contornos simbólicos de pertencimento legitimidade e poder Complementarmente DaMatta em Carnavais malandros e heróis e no estudo Águias burros e borboletas com Helena Soárez problematiza o papel dos bicheiros como figuras ambíguas que transitam entre a marginalidade e a centralidade entre a rebeldia e a representação do herói popular Ao tratar o jogo do bicho como um sistema simbólico estruturado por códigos e lógicas sociais próprias DaMatta contribui para a compreensão da aceitação social desses agentes inclusive quando associados à repressão A discussão sobre os modos de pensar a memória da ditadura militar por sua vez é orientada pelas contribuições de Daniel Aarão Reis e novamente de Marcos Napolitano Em Os muitos véus da impunidade sociedade tortura e ditadura no Brasil Reis discute como a impunidade de agentes da repressão se estrutura a partir do processo de Anistia mas também de uma cultura social de silenciamento e esquecimento A obra introduz a análise de que maneira torturadores identificados como Guimarães por exemplo puderam circular publicamente mantendo posições de poder e prestígio muitas vezes mesmo após o fim do regime Napolitano em Recordar é vencer as dinâmicas e vicissitudes da construção da memória sobre o regime militar brasileiro amplia essa reflexão ao abordar os processos sociais e políticos que conformam a memória coletiva O autor destaca as tensões entre justiça memória e esquecimento entre lembrança e negação que marcam o modo como o Brasil lida com seu passado do golpe de 1964 Por fim Michel Misse em Malandros marginais e vagabundos a acumulação social da violência no Rio de Janeiro 2006 analisa como práticas ilegais longe de serem completamente marginais ao Estado se organizam em torno de circuitos de poder prestígio e violência Misse investiga como categorias como bandido ou marginal são socialmente produzidas e como a ambiguidade entre legalidade e ilegalidade estrutura relações cotidianas inclusive com o próprio Estado Sua análise contribui para compreender a construção simbólica e política da criminalidade no Brasil especialmente no contexto urbano do Rio de Janeiro OBJETIVOS GERAIS Compreender a relação entre o jogo do bicho e a ditadura militar no Rio de Janeiro Reconhecer como a repressão e o Estado contribuíram para a estruturação do jogo do bicho no Rio de Janeiro OBJETIVOS ESPECÍFICOS Introduzir o histórico do jogo do bicho no Brasil Analisar como Capitão Guimarães utilizou sua experiência como agente de repressão e suas conexões para reestruturar e expandir o jogo do bicho no Rio de Janeiro durante a ditadura militar Discutir de que maneira o samba exemplificado pela Unidos de Vila Isabel e da posterior atuação de Guimarães na LIESA foi utilizado como instrumento de legitimação simbólica social e política pelos bicheiros nos anos finais da ditadura e no período de redemocratização Analisar como esses entrelaços entre jogo do bicho ditadura militar e carnaval contribuíram para a construção de uma memória da ditadura marcada por apagamentos normalizações e ressignificações especialmente por meio do carnaval carioca QUADRO TEÓRICOMETODOLÓGICO Este trabalho inserese no campo da História do Tempo Presente uma vertente historiográfica que se ocupa da análise de fenômenos históricos cuja temporalidade se projeta sobre o presente e que mantêm vínculos vivos com a experiência dos sujeitos as disputas políticas e os processos de construção da memória Conforme apontam autores como Henry Rousso e François Bédarida a História do Tempo Presente se caracteriza por investigar acontecimentos ainda latentes na memória coletiva cuja significação continua em disputa sendo marcada pela convivência com testemunhos vivos pela disponibilidade de documentos recentes e pela constante tensão entre o tempo da experiência da memória e da narrativa histórica Essa abordagem permite problematizar como o passado recente Segundo Carlos Fico 2012p45 De fato a marca central da História do Tempo Presente sua imbricação com a política decorre da circunstância de estarmos sujeito e objeto mergulhados em uma mesma temporalidade que por assim dizer não terminou No interior dessa abordagem a presente pesquisa inserese no debate em torno da história e memória da ditadura entendendo que o modo como a sociedade brasileira se relaciona com esse passado revela não apenas o conteúdo da repressão mas também os silêncios apagamentos e disputas de significados que atravessam a construção da memória coletiva Como aponta Napolitano o que está em jogo não é apenas recordar fatos do regime autoritário mas compreender as dinâmicas pelas quais determinados eventos sujeitos ou estruturas são lembrados ressignificados ou sistematicamente esquecidos A memória portanto é aqui tomada como uma construção social sempre seletiva situada e politicamente orientada A esse respeito irei destacar Marcos Napolitano 2015 que propõe uma importante periodização da memória social sobre o regime militar dividindoa em três grandes fases entre 1974 e 2004 a primeira de 1974 a 1994 marcada pela construção de uma memória crítica e progressista fruto da articulação entre setores liberais e da esquerda não armada a segunda de 1995 a 2004 quando o Estado brasileiro passa a implementar políticas de memória como leis de reparação e reconhecimento oficial das vítimas e finalmente uma fase de intensificação das disputas em que a memória oficial crítica convive com o revisionismo conservador e com o silêncio institucional de setores como as Forças Armadas Essa leitura é central para compreender a instabilidade e a fluidez das narrativas sobre o passado autoritário bem como a permanência de discursos negacionistas e de apagamento simbólico na sociedade brasileira NAPOLITANO 2015 Esse enfoque ganha contornos ainda mais complexos quando se trata da análise de documentos produzidos pelos próprios órgãos da repressão como é o caso do acervo consultado nesta pesquisa proveniente majoritariamente do Sistema de Informações do Arquivo Nacional SIAN especialmente dos fundos do Serviço Nacional de Informações SNI do Ministério do Exército e da Aeronáutica todos atuantes entre 1964 e 1985 Tais documentos embora ofereçam informações cruciais para a reconstrução da atuação repressiva e das articulações entre agentes do Estado e a contravenção são produzidos sob uma lógica burocrática autoritária e por isso carregam intencionalidades específicas visam vigiar controlar e incriminar muitas vezes operando sob o viés da suspeição e da criminalização de determinados sujeitos e práticas Nesse sentido fazse necessário adotar uma postura crítica frente às fontes reconhecendoas não como espelhos da realidade mas como produtos de determinadas circunstâncias históricas ideológicas e políticas Os arquivos dos órgãos de informação devem ser interrogados a partir de suas condições de produção e circulação levando em conta o que dizem mas também o que omitem distorcem ou constroem como verdade e lógica do Estado A análise de matérias jornalísticas consultadas na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional especialmente as que retratam a prisão e atuação pública de bicheiros como o Capitão Guimarães deve ser analisada no viés de como a mídia enxerga a imagem dos bicheiros Outro conjunto de fontes fundamentais para este trabalho provém dos relatórios do projeto Brasil Nunca Mais da Comissão Nacional da Verdade e da Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro Esses documentos produzidos a partir de denúncias processos judiciais e depoimentos de vítimas de tortura operam em direção oposta aos arquivos repressivos pois buscam dar voz as vítimas divulgar e nomear os responsáveis e promover a responsabilização dos agentes da repressão Ao debruçarme sobre esses dois blocos documentais um institucional oficial vinculado ao Estado repressor outro memorial insurgente vinculado à luta por justiça e reconhecimento dos crimes cometidos a pesquisa pretende evidenciar as disputas de memória que ainda estruturam o modo como a ditadura é lembrada Por fim ao tratar de temas como repressão silenciamento apagamento e legitimação de figuras envolvidas com a violência de Estado este trabalho busca articular as noções de memória popular e memória oficial examinando como diferentes registros históricos estatais jornalísticos judiciais e culturais constroem narrativas divergentes sobre os mesmos sujeitos A investigação em torno da figura do Capitão Guimarães se apresenta assim como um caso exemplar das ambiguidades da memória da ditadura onde a figura do torturador se sobrepõe e por vezes desaparece sob a imagem do benfeitor do malandro ou do patrono do carnavalseria importante dizer que não é uam biogarfia mas um recorte CRONOGRAMA ATIVIDADEPERÍOD O AGOSTO SETEMBRO NOVEMBRO DEZEMBRO Revisão do Projeto Revisão bibliográfica x Pesquisa de Fontes x Redação da Monografia x x Revisão e entrega x FONTES a Arquivo Nacional fundos do SNI b Hemeroteca da Biblioteca Nacional de quando ele é preso c Brasil nunca mais httpsbnmdigitalmpfmpbrptbr d Comissão da verdade estadual do Rio de Janeiro e a nacional REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS LEOPOLDI José Sávio Escola de samba ritual e sociedade Petrópolis Vozes 1978 NAPOLITANO Marcos 1964 história do regime militar brasileiro São Paulo Contexto 2014 NAPOLITANO Marcos Recordar é vencer as dinâmicas e vicissitudes da construção da memória sobre o regime militar brasileiro Antíteses S l v 8 n 15esp p 944 2015 DOI 105433198433562015v8n15espp9 Disponível em httpsojsuelbrrevistasuelindexphpantitesesarticleview23617 Acesso em 9 jul 2025 JUPIARA Aloy Os porões da contravenção jogo do bicho e ditadura militar a história da aliança que profissionalizou o crime organizado Editora Record 2015 MAGALHÃES F Ganhou leva só vale o que está escrito Experiências de bicheiros na cidade do Rio de Janeiro 18901960 Rio de Janeiro 2005 FON CarlosComo eles agiam Os subterrâneos da ditadura militar espionagem e polícia política Rio de Janeiro Record 2001 QUADRAT Samantha Viz Poder e informação o sistema de inteligência e o regime militar no Brasil 2000 145 f Dissertação Mestrado Instituto de Filosofia e Ciências Sociais UFRJ Rio de Janeiro 2000 QUEIROZ Maria Isaura Pereira de Carnaval Brasileiro o vivido e o mito São Paulo Brasiliense 1992 REIS Daniel Aarão Os muitos véus da impunidade sociedade tortura e ditadura no Brasil artigo Seminário Internacional sobre Impunidade e Direito à Memória Fundação Delgado Lisboa 1999 MISSE Michel Malandros marginais e vagabundos a acumulação social da violência no Rio de Janeiro Tese Doutorado em Sociologia Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 1999