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Direito ·
Filosofia do Direito
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TÍTULO 2\nA teologia cristã e a filosofia\ndo direito do século V ao século XIII\n\nCapítulo I\nA DOUTRINA DO DIREITO DE SANTO AGOSTINHO\n\nSanto Agostinho viveu no mundo romano, na atual Ar-gélia. O norte do continente africano era então um centro de romanidade. Mas o mundo romano daquele tempo es-tava ameaçado, de fora, pelos bárbaros. Assim, em 430, quando santo Agostinho morreu na sua cidade, Hipona, os vândalos cercavam seus muros.\n\nÉ uma questão muito discutida saber se santo Agosti-nho e a Igreja realmente \"passaram para o lado dos bárba-ros\" ou se, como prefiro crer, quiseram permanecer fiéis, contra a crescente onda de bárbaros, à cultura greco-ro-ma-na. Como quer que seja, as bases do mundo romano, da cultura greco-romana, estavam sendo minadas por dentro pelas místicas orientais, que já haviam transformado o Es-tado. Talvez também estivessem sendo minadas pelo cris-tianismo: judeus e cristãos foram vistos durante muito tem-po como os inimigos do império, e, embora Constantino ti-vesse selado a aparente reconciliação entre as duas poten-cias - a Igreja e o império -, ela talvez não fosse total. Já a patrística grega (Justino, Clemente de Alexandria, Orígenes, Gregório de Nissa) havia confrontado a cultura grega e a sa-bedoria cristã, procurando o acordo entre ambas ou constata-do. 76\nA FORMAÇÃO DO PENSAMENTO JURÍDICO MODERNO\n\ndo suas oposições. Santo Agostinho ver-se-á confrontado com uma tarefa análoga.\n\nExistem poucas vidas mais célebres que a de santo Agostinho, graças ao sucesso das Confissões!.\n\nSanto Agostinho nasce em Tagasta, no norte da África (359). Faz os estudos normais de um jovem romano culto: gramática, retórica. Sua carreira de jovem estudante pobre leva-o a lecionar retórica, profissão que exerce em Tagasta, Cartago, Roma e Milão. Esses estudos não só familiarizam santo Agostinho com os grandes autores latinos (Cícero, Virgílio, Quintiliano), como também lhe dão a oportunidade de tomar contato com o direito. Seu amigo íntimo Alípio, que o acompanhava em Roma e em Milão, é um estudante de direito². E a própria retórica ocupa-se da eloquência judicia-ria. Ao aparecer a residência do imperador romano, e a en-tidade em Milão, Agostinho chega a pensar em seguir uma carreira administrativa³.\n\nMas, depois da gramática e da retórica (que a excelen-tia doçura das escolas romanas sabe manter no seu justo lugar), vem a filosofia, tentativa de encontrar a verdade e a sabedoria, auge do estudo para um cidadão romano culto. A leitura do Hortensius, diálogo perdido de Cícero, con-tinge Agostinho para a busca da verdade. Situa-se aí sua fase maniqueísta: fica seduzido pela doutrina dos sábios dessa seita, adere a ela, reune-se com Fausto, o maniqueísta. É tam-bém aí que se situa sua descoberta de Platão; o seu neopla-tonismo; o livro VII das Confissões4 demonstra o peso con-siderável que continuará a ter, no pensamento de santo. 77\nA FILOSOFIA DO DIREITO NOS TÉOLOGOS DO CRISTIANISMO\n\nAgostinho, a filosofia de Platão. O idealismo de Platão, seu senso das realidades invisíveis, encaminham-no para o cristianismo.\n\nE, com efeito, última etapa, da filosofia.pagã santo Agos-tinho acaba, por fim, elevando-se à sabedoria cristã sob a influência de santo Ambrósio, de sua mãe santa Mônica, que veio juntar-se a ele em Milão, e, conforme o célebre re-lato das Confissões5, por ação da graça divina. Santo Agosti-nho é batizado no ano de 387. Tem, então, 28 anos. Dali em diante, abandonará a leitura dos autores profanos para me-ditar a Sagrada Escritura e esforçar-se para viver como cris-tão. Inaugura-se aí um novo período de sua vida, a mais criativa.\n\nA intenção primeira de santo Agostinho convertido é levar vida monástica: renunciando a um projeto de casa-mãe, recolhe-se com um grupo de amigos em Cassiciaco como. Dessa época data a maioria de seus Diálogos filosófi-cos: neles explica-se, de seu novo ponto de vista, com a fi-losofia pagã. Elabora uma doutrina do conhecimento pela iluminação divina, de espírito ainda platônico, mas cris-tianizado. Escreve sobre a verdade, a ordem natural do univer-so, a alma humana, ou então, o livre-arbítrio.\n\nMas as circunstâncias o arrancarão de seu ideal mo-nástico. De volta à Argélia - depois do êxtase em Óstia e da morte de sua mãe Mônica -, o povo de Hipona elege-o bis-po. Ele-Io à frente de uma das dioceses mais vivas da famo-sa igreja da África - ilustrada por Tertuliano e são Cipriano -, confidente do primaz de Cartago e, ademais, devido a seu prestígio pessoal, escutado por toda a cristandade no mun-do. Além de suas funções de bispo (sermões, coenó-tários sobre a Sagrada Escritura, catequese, administração da justiça e dos assuntos temporais da Igreja) e seu perma-nente interesse pelas comunidades monásticas (atribuem-se a ele diversas regras), santo Agostinho terá de enfrentar. os inimigos da ortodoxia. Uma parte cada vez maior de seu tempo será, pois, dedicada a escrever cartas e tratados dou- pela ortodoxia contra os maniqueístas, os donatistas e os pelagianos: - Santo Agostinho saiu do maniqueísmo. Contra essa seita ainda atuante, defenderá o cristianismo, o valor do An- tigo Testamento e a bondade da natureza e do conjunto da criação (Contra Faustum manichaeum) . - O cisma donatista, que nasceu primeiro de uma di- vergência a propósito da reintegração da Igreja dos apósta- tico, espelha-se perigosamente pela África. Santo Agosti- nho dirige contra ela uma campanha ardente: contra os do- natistas, defende a unidade da Igreja cristã e decide reco- rrê ao braço secular, pondo em andamento uma teoria das funções do Estado e a servidão da ortodoxia. - O monge bretão Pelágio, extremamente na- época, desenvolve uma moral ascética que da grande im- portância às virtudes humanas e corre o risco de apresentar o homem como capaz de se salvar exclusivamente por seus méritos naturais. Contra Pelágio, santo Agostinho empe- nha uma longa e apaixonada luta: apresenta-se agora como o teólogo da graça e o contendor da natureza (esse aspecto de sua obra foi, de todos, o mais célebre no século XVII, na época do jansenismo). Santo Agostinho tem ainda de lutar contra o paga- nismo, que não desapareceu no império romano oficialmente convertido, e cuja chama volta a se acender esporadicamente. Também tem de se preocupar com o perigo bárbaro. Em 410, os visigodos tomam Roma: esse fato dá lugar à Ci- dade de Deus. Há ainda outro aspecto da obra de santo Agostinho. Ele é um místico, mais inclinado para a vida de monge que. para a de bispo, e para a oração que para as lutas doutrinai. Escreve inúmeras preces, os Solilóquios e as Confissões. que se tornaram suas obras mais famosas, meditação sobre os acontecimentos de sua vida, de aspecto incrivelmente mo- derno, obra subjetiva, interior e cheia da presença de Deus, com que ele dialoga. Foi uma vida plena: estudos sólidos, tanto profanos como sacros, resultam, na idade madura, numa transbordante atividade e terminam em contempla- ção. Ora, só poderemos compreender bem a doutrina e a vinculá-la estreitamente com as circunstâncias que a suscitaram. É difícil escolher, na obra colossal de santo Agostinho, os textos que abordam nosso tema. Nada trata especificamente de direito; mas muitas obras a ele se referem indi- retamente. Num diálogo filosófico (o De magistro !), santo Agostinho edifica, por exemplo, sua teoria do conhecimento, a respeito da de iluminação divina, que evoca a realidade platônica. Isso cerne a nós: se só podemos conhecer o verdadeiro, o bem, a justiça por meio de Deus e não pela experiência sensível, se é verdade, a justiça são Deus mesmo, então teremos sem dúvida que renunciar ao direito natural de Aristóteles e dos jurisconsultos romanos. As obras polêmicas também são todas ricas em consequências para a teoria geral do direito. Contra o manique- ta Fausto, acabamos de dizer que santo Agostinho reabilita a natureza (Contra Faustum) ; dedica também um tratado (De bono conjugali) para defender, no mesmo espírito, a ins- titição do casamento; uma carta, contra os mesmos adver- sários, para defender a propriedade (carta 157 ad Ilarium ) . Contra os donatistas, construiu a doutrina do braço secular e das funções ministeriais do Estado em relação à Igreja, na sua série de cartas (ad Marcellinum - ad Vincentium - ad Olympium) destinadas, ademais, à leitura pública e que consti- tuem, cada uma, uma pequena obra: aliás, terão longa vida em direito canônico medieval. Contra os pelagianos, sobre- tudo, santo Agostinho discorre abundantemente sobre a im- potência do homem para encontrar naturalmente a justiça, e a necessidade de recorrer à Revelação divina. Se a única verdadeira justiça e o único verdadeiro di- reito são divinos, nada na obra de santo Agostinho merece, como é fá- cil compreender, ser descartado. Nem o De vera religione , nem mesmo o tratado sobre a Trindade, onde encontramos longas passagens sobre a lei divina. O De doctrina christiana (que inspirou na Idade Média a or- ganização dos estudos) nos ensina como compreender e in- terpretar a ela revelada na Sagrada Escritura, e que auxílio secundário pedir à ciência paga. O comentário do Salmo 118 nos apresenta apologias da lei eterna e o valor da lei judi- ca; o do sermão da montanha, a transformação da lei mo- saica em lei cristã evangélica; aquele sobre o Gênese, as in- tensões de Deus sobre a ordem da criação; aquele sobre a Epístola de são Paulo aos romanos, a nova significação cris- tá da lei natural etc. Será em todas essas obras esparsas de santo Agostinho, de objeto propriamente religioso, que a Idade Média buscará sua concepção da ordem social. Contudo, se tivermos de separar alguns textos essenciais (o que não pode ser feito sem certa arbitrariedade), eu escolheria, por um lado, o diálogo sobre o livre-arbítrio no qual santo Agostinho, estudando a liberdade do homem conciliada com a onipotência divina, nos fornece uma te... O que, em história da França, costuma ser chamado de a grande invasão ocorreu em 406. Em 410, escândalo mais grave, Alarico toma e saqueia Roma... com que compôs a Cidade de Deus: tratava-se de defender a fé contra esses renovados ataques, de reconfortar os fiéis mergulhados na provação temporal, de suscitar ao contrário, nessa oportunidade, um encorajamento de vida espiritual e de ensiná-los a julgar esses acontecimentos históricos a partir da fé cristã. Redigida sem ordem aparente, por pedaços, durante catorze anos, a obra foi publicada e lida por fragmentos... Deus é uma realidade mística, é a comunidade dos santos; mas ela se encara historicamente nos grupos humanos cujos chefes são Abel, Noé, Abraão e os reis justos de Israel, e, enfim, na Igreja cristã. Ela tem sua justiça, suas leis próprias. Está prometida para durar e ser vitoriosa eternamente. É sobretudo nela que os cristãos deveriam finca... Sobre a doutrina jurídica de santo Agostinho existe uma literatura abundante. O mais notável é que essa lite... A FORMAÇÃO DO PENSAMENTO JURÍDICO MODERNO\n\nratura seja tão contraditória. Alguns intérpretes \"bem pen- \nsantes\" fazem de santo Agostinho um adepto do direito na- \ntural concebido à maneira tomista: esta é, por exemplo, a \ntendência de Giorgiani. Outros vêem nele o inspirador da \nteocracia, o profeta de um direito sacro que se abebeira não \na natureza mas nas fontes da Revelação: tese do \"agoisti- nismo político\", de todas a mais antiga e, por muito tempo, \na mais influente. Mas um terceiro grupo de autores acaba \nde tentar demonstrar (algo que talvez não seja tão novo) \nque o verdadeiro significado de sua doutrina sobre o direi- to seria o positivismo jurídico (Cotta). \n\nO que acabamos de dizer sobre as condições de ativida- de de santo Agostinho pode em parte explicar essas di- vergências. Sua obra nada tem de escolástica, não trata ex- \nprofesso de questões abstratas, intemporais, como aquelas \nnas quais nós, universitários, costumamos nos encerrar. \nResponde a situações: determinada heresia, o cisma dona- tista ou a tomada de Roma. Não tem a pretensão de que \ner chegar de uma só vez a respostas definitivas e não tem \ntermo desmesurado de se contradizer: vimos-lo, em pre- \nxistência do direito natural; perante a heresia pelagia- na, é da verdade oposta que ele nos adverte, ou seja, da \ncorrução do homem e da constante necessidade de re- \ncorrer à graça divina. Mostra-nos a primazia da cidade de \nDeus, mas não pretende desconhecer a cidade terrena e \nsuas leis. A realidade é rica demais para se encaixar em \nalgum sistema e santo Agostinho culta demais a verda- de para não registrar seus aspectos aparentemente con- traditórios.\n\nContudo, a unidade profunda, a coerência de sua dou- trina aparecem quando, afastando-nos do ponto de vista\n\nrique, 1954; Ver Giorgiani, Il concetto di diritto e dello stato di S. Agostino, Padua, Cedam, 1951; O. Schilling, Die Staats und Soziallehre des heil. Augustinus, Frei- burg, 1910; A. Truyl y Serra, El Derecho y el Estado en San Agustín, Madrid, Editorial Revista de Derecho Privato, 1944; G. Combès, La doctrine politique de saint Augustin, Paris, 1927.
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TÍTULO 2\nA teologia cristã e a filosofia\ndo direito do século V ao século XIII\n\nCapítulo I\nA DOUTRINA DO DIREITO DE SANTO AGOSTINHO\n\nSanto Agostinho viveu no mundo romano, na atual Ar-gélia. O norte do continente africano era então um centro de romanidade. Mas o mundo romano daquele tempo es-tava ameaçado, de fora, pelos bárbaros. Assim, em 430, quando santo Agostinho morreu na sua cidade, Hipona, os vândalos cercavam seus muros.\n\nÉ uma questão muito discutida saber se santo Agosti-nho e a Igreja realmente \"passaram para o lado dos bárba-ros\" ou se, como prefiro crer, quiseram permanecer fiéis, contra a crescente onda de bárbaros, à cultura greco-ro-ma-na. Como quer que seja, as bases do mundo romano, da cultura greco-romana, estavam sendo minadas por dentro pelas místicas orientais, que já haviam transformado o Es-tado. Talvez também estivessem sendo minadas pelo cris-tianismo: judeus e cristãos foram vistos durante muito tem-po como os inimigos do império, e, embora Constantino ti-vesse selado a aparente reconciliação entre as duas poten-cias - a Igreja e o império -, ela talvez não fosse total. Já a patrística grega (Justino, Clemente de Alexandria, Orígenes, Gregório de Nissa) havia confrontado a cultura grega e a sa-bedoria cristã, procurando o acordo entre ambas ou constata-do. 76\nA FORMAÇÃO DO PENSAMENTO JURÍDICO MODERNO\n\ndo suas oposições. Santo Agostinho ver-se-á confrontado com uma tarefa análoga.\n\nExistem poucas vidas mais célebres que a de santo Agostinho, graças ao sucesso das Confissões!.\n\nSanto Agostinho nasce em Tagasta, no norte da África (359). Faz os estudos normais de um jovem romano culto: gramática, retórica. Sua carreira de jovem estudante pobre leva-o a lecionar retórica, profissão que exerce em Tagasta, Cartago, Roma e Milão. Esses estudos não só familiarizam santo Agostinho com os grandes autores latinos (Cícero, Virgílio, Quintiliano), como também lhe dão a oportunidade de tomar contato com o direito. Seu amigo íntimo Alípio, que o acompanhava em Roma e em Milão, é um estudante de direito². E a própria retórica ocupa-se da eloquência judicia-ria. Ao aparecer a residência do imperador romano, e a en-tidade em Milão, Agostinho chega a pensar em seguir uma carreira administrativa³.\n\nMas, depois da gramática e da retórica (que a excelen-tia doçura das escolas romanas sabe manter no seu justo lugar), vem a filosofia, tentativa de encontrar a verdade e a sabedoria, auge do estudo para um cidadão romano culto. A leitura do Hortensius, diálogo perdido de Cícero, con-tinge Agostinho para a busca da verdade. Situa-se aí sua fase maniqueísta: fica seduzido pela doutrina dos sábios dessa seita, adere a ela, reune-se com Fausto, o maniqueísta. É tam-bém aí que se situa sua descoberta de Platão; o seu neopla-tonismo; o livro VII das Confissões4 demonstra o peso con-siderável que continuará a ter, no pensamento de santo. 77\nA FILOSOFIA DO DIREITO NOS TÉOLOGOS DO CRISTIANISMO\n\nAgostinho, a filosofia de Platão. O idealismo de Platão, seu senso das realidades invisíveis, encaminham-no para o cristianismo.\n\nE, com efeito, última etapa, da filosofia.pagã santo Agos-tinho acaba, por fim, elevando-se à sabedoria cristã sob a influência de santo Ambrósio, de sua mãe santa Mônica, que veio juntar-se a ele em Milão, e, conforme o célebre re-lato das Confissões5, por ação da graça divina. Santo Agosti-nho é batizado no ano de 387. Tem, então, 28 anos. Dali em diante, abandonará a leitura dos autores profanos para me-ditar a Sagrada Escritura e esforçar-se para viver como cris-tão. Inaugura-se aí um novo período de sua vida, a mais criativa.\n\nA intenção primeira de santo Agostinho convertido é levar vida monástica: renunciando a um projeto de casa-mãe, recolhe-se com um grupo de amigos em Cassiciaco como. Dessa época data a maioria de seus Diálogos filosófi-cos: neles explica-se, de seu novo ponto de vista, com a fi-losofia pagã. Elabora uma doutrina do conhecimento pela iluminação divina, de espírito ainda platônico, mas cris-tianizado. Escreve sobre a verdade, a ordem natural do univer-so, a alma humana, ou então, o livre-arbítrio.\n\nMas as circunstâncias o arrancarão de seu ideal mo-nástico. De volta à Argélia - depois do êxtase em Óstia e da morte de sua mãe Mônica -, o povo de Hipona elege-o bis-po. Ele-Io à frente de uma das dioceses mais vivas da famo-sa igreja da África - ilustrada por Tertuliano e são Cipriano -, confidente do primaz de Cartago e, ademais, devido a seu prestígio pessoal, escutado por toda a cristandade no mun-do. Além de suas funções de bispo (sermões, coenó-tários sobre a Sagrada Escritura, catequese, administração da justiça e dos assuntos temporais da Igreja) e seu perma-nente interesse pelas comunidades monásticas (atribuem-se a ele diversas regras), santo Agostinho terá de enfrentar. os inimigos da ortodoxia. Uma parte cada vez maior de seu tempo será, pois, dedicada a escrever cartas e tratados dou- pela ortodoxia contra os maniqueístas, os donatistas e os pelagianos: - Santo Agostinho saiu do maniqueísmo. Contra essa seita ainda atuante, defenderá o cristianismo, o valor do An- tigo Testamento e a bondade da natureza e do conjunto da criação (Contra Faustum manichaeum) . - O cisma donatista, que nasceu primeiro de uma di- vergência a propósito da reintegração da Igreja dos apósta- tico, espelha-se perigosamente pela África. Santo Agosti- nho dirige contra ela uma campanha ardente: contra os do- natistas, defende a unidade da Igreja cristã e decide reco- rrê ao braço secular, pondo em andamento uma teoria das funções do Estado e a servidão da ortodoxia. - O monge bretão Pelágio, extremamente na- época, desenvolve uma moral ascética que da grande im- portância às virtudes humanas e corre o risco de apresentar o homem como capaz de se salvar exclusivamente por seus méritos naturais. Contra Pelágio, santo Agostinho empe- nha uma longa e apaixonada luta: apresenta-se agora como o teólogo da graça e o contendor da natureza (esse aspecto de sua obra foi, de todos, o mais célebre no século XVII, na época do jansenismo). Santo Agostinho tem ainda de lutar contra o paga- nismo, que não desapareceu no império romano oficialmente convertido, e cuja chama volta a se acender esporadicamente. Também tem de se preocupar com o perigo bárbaro. Em 410, os visigodos tomam Roma: esse fato dá lugar à Ci- dade de Deus. Há ainda outro aspecto da obra de santo Agostinho. Ele é um místico, mais inclinado para a vida de monge que. para a de bispo, e para a oração que para as lutas doutrinai. Escreve inúmeras preces, os Solilóquios e as Confissões. que se tornaram suas obras mais famosas, meditação sobre os acontecimentos de sua vida, de aspecto incrivelmente mo- derno, obra subjetiva, interior e cheia da presença de Deus, com que ele dialoga. Foi uma vida plena: estudos sólidos, tanto profanos como sacros, resultam, na idade madura, numa transbordante atividade e terminam em contempla- ção. Ora, só poderemos compreender bem a doutrina e a vinculá-la estreitamente com as circunstâncias que a suscitaram. É difícil escolher, na obra colossal de santo Agostinho, os textos que abordam nosso tema. Nada trata especificamente de direito; mas muitas obras a ele se referem indi- retamente. Num diálogo filosófico (o De magistro !), santo Agostinho edifica, por exemplo, sua teoria do conhecimento, a respeito da de iluminação divina, que evoca a realidade platônica. Isso cerne a nós: se só podemos conhecer o verdadeiro, o bem, a justiça por meio de Deus e não pela experiência sensível, se é verdade, a justiça são Deus mesmo, então teremos sem dúvida que renunciar ao direito natural de Aristóteles e dos jurisconsultos romanos. As obras polêmicas também são todas ricas em consequências para a teoria geral do direito. Contra o manique- ta Fausto, acabamos de dizer que santo Agostinho reabilita a natureza (Contra Faustum) ; dedica também um tratado (De bono conjugali) para defender, no mesmo espírito, a ins- titição do casamento; uma carta, contra os mesmos adver- sários, para defender a propriedade (carta 157 ad Ilarium ) . Contra os donatistas, construiu a doutrina do braço secular e das funções ministeriais do Estado em relação à Igreja, na sua série de cartas (ad Marcellinum - ad Vincentium - ad Olympium) destinadas, ademais, à leitura pública e que consti- tuem, cada uma, uma pequena obra: aliás, terão longa vida em direito canônico medieval. Contra os pelagianos, sobre- tudo, santo Agostinho discorre abundantemente sobre a im- potência do homem para encontrar naturalmente a justiça, e a necessidade de recorrer à Revelação divina. Se a única verdadeira justiça e o único verdadeiro di- reito são divinos, nada na obra de santo Agostinho merece, como é fá- cil compreender, ser descartado. Nem o De vera religione , nem mesmo o tratado sobre a Trindade, onde encontramos longas passagens sobre a lei divina. O De doctrina christiana (que inspirou na Idade Média a or- ganização dos estudos) nos ensina como compreender e in- terpretar a ela revelada na Sagrada Escritura, e que auxílio secundário pedir à ciência paga. O comentário do Salmo 118 nos apresenta apologias da lei eterna e o valor da lei judi- ca; o do sermão da montanha, a transformação da lei mo- saica em lei cristã evangélica; aquele sobre o Gênese, as in- tensões de Deus sobre a ordem da criação; aquele sobre a Epístola de são Paulo aos romanos, a nova significação cris- tá da lei natural etc. Será em todas essas obras esparsas de santo Agostinho, de objeto propriamente religioso, que a Idade Média buscará sua concepção da ordem social. Contudo, se tivermos de separar alguns textos essenciais (o que não pode ser feito sem certa arbitrariedade), eu escolheria, por um lado, o diálogo sobre o livre-arbítrio no qual santo Agostinho, estudando a liberdade do homem conciliada com a onipotência divina, nos fornece uma te... O que, em história da França, costuma ser chamado de a grande invasão ocorreu em 406. Em 410, escândalo mais grave, Alarico toma e saqueia Roma... com que compôs a Cidade de Deus: tratava-se de defender a fé contra esses renovados ataques, de reconfortar os fiéis mergulhados na provação temporal, de suscitar ao contrário, nessa oportunidade, um encorajamento de vida espiritual e de ensiná-los a julgar esses acontecimentos históricos a partir da fé cristã. Redigida sem ordem aparente, por pedaços, durante catorze anos, a obra foi publicada e lida por fragmentos... Deus é uma realidade mística, é a comunidade dos santos; mas ela se encara historicamente nos grupos humanos cujos chefes são Abel, Noé, Abraão e os reis justos de Israel, e, enfim, na Igreja cristã. Ela tem sua justiça, suas leis próprias. Está prometida para durar e ser vitoriosa eternamente. É sobretudo nela que os cristãos deveriam finca... Sobre a doutrina jurídica de santo Agostinho existe uma literatura abundante. O mais notável é que essa lite... A FORMAÇÃO DO PENSAMENTO JURÍDICO MODERNO\n\nratura seja tão contraditória. Alguns intérpretes \"bem pen- \nsantes\" fazem de santo Agostinho um adepto do direito na- \ntural concebido à maneira tomista: esta é, por exemplo, a \ntendência de Giorgiani. Outros vêem nele o inspirador da \nteocracia, o profeta de um direito sacro que se abebeira não \na natureza mas nas fontes da Revelação: tese do \"agoisti- nismo político\", de todas a mais antiga e, por muito tempo, \na mais influente. Mas um terceiro grupo de autores acaba \nde tentar demonstrar (algo que talvez não seja tão novo) \nque o verdadeiro significado de sua doutrina sobre o direi- to seria o positivismo jurídico (Cotta). \n\nO que acabamos de dizer sobre as condições de ativida- de de santo Agostinho pode em parte explicar essas di- vergências. Sua obra nada tem de escolástica, não trata ex- \nprofesso de questões abstratas, intemporais, como aquelas \nnas quais nós, universitários, costumamos nos encerrar. \nResponde a situações: determinada heresia, o cisma dona- tista ou a tomada de Roma. Não tem a pretensão de que \ner chegar de uma só vez a respostas definitivas e não tem \ntermo desmesurado de se contradizer: vimos-lo, em pre- \nxistência do direito natural; perante a heresia pelagia- na, é da verdade oposta que ele nos adverte, ou seja, da \ncorrução do homem e da constante necessidade de re- \ncorrer à graça divina. Mostra-nos a primazia da cidade de \nDeus, mas não pretende desconhecer a cidade terrena e \nsuas leis. A realidade é rica demais para se encaixar em \nalgum sistema e santo Agostinho culta demais a verda- de para não registrar seus aspectos aparentemente con- traditórios.\n\nContudo, a unidade profunda, a coerência de sua dou- trina aparecem quando, afastando-nos do ponto de vista\n\nrique, 1954; Ver Giorgiani, Il concetto di diritto e dello stato di S. Agostino, Padua, Cedam, 1951; O. Schilling, Die Staats und Soziallehre des heil. Augustinus, Frei- burg, 1910; A. Truyl y Serra, El Derecho y el Estado en San Agustín, Madrid, Editorial Revista de Derecho Privato, 1944; G. Combès, La doctrine politique de saint Augustin, Paris, 1927.