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Jorge Caldeira HISTÓRIA DA RIQUEZA NO BRASIL CINCO SÉCULOS DE PESSOAS COSTUMES E GOVERNOS HISTÓRIA DA RIQUEZA NO BRASIL Jorge Caldeira Copyright 2017 por Mameluco Edições e Produções Culturais Ltda Todos os direitos reservados Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sob quaisquer meios existentes sem autorização por escrito dos editores Todos os esforços foram feitos para creditar devidamente todos os detentores dos direitos das imagens que ilustram este livro Eventuais omissões de crédito e copyright não foram intencionais e serão devidamente solucionadas nas próximas edições bastando que seus proprietários entrem em contato com os editores EDIÇÃO Pascoal Soto COPIDESQUE Claudio Marcondes REVISÃO Ana Kronemberger e Luis Américo Costa CAPA E PROJETO GRÁFICO Victor Burton DIAGRAMAÇÃO Adriana Moreno e Anderson Junqueira IMAGENS DE MIOLO p 182 Reprodução Revista Illustrada p 300 Fundação Casa de Rui Barbosa Arquivo p 522 Jean Manzon Paris 1915 São Paulo 1990 Hugo Borghi c 1950 impressão sobre papel pratagelatina 169 x 21 cm doação Pirelli 1995 Inv MASP01940 Coleção Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand Foto cortesia MASP Jean Manzon Cepar Consultoria e Participações LTDA p 523 Alice Brill Acervo Instituto Moreira Salles ADAPTAÇÃO PARA EBOOK Marcelo Morais CIPBRASIL CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS RJ C151h Caldeira Jorge História da riqueza no Brasil recurso eletrônico Jorge Caldeira 1 ed Rio de Janeiro Estação Brasil 2017 recurso digital Formato ePub Requisitos do sistema Adobe Digital Editions Modo de acesso World Wide Web ISBN 9788556080264 recurso eletrônico 1 Brasil Usos e costumes 2 Brasil Civilização 3 Antropologia 4 Livros eletrônicos I Título 17 44435 CDD 981 CDU 9481 Todos os direitos reservados no Brasil por GMT Editores Ltda Rua Voluntários da Pátria 45 Gr 1404 Botafogo 22270000 Rio de Janeiro RJ Tel 21 25384100 Fax 21 22869244 Email atendimentosextantecombr wwwsextantecombr APRESENTAÇÃO UM CLÁSSICO O ADJETIVO FOI CRIADO NO SÉCULO XVI SIGNIFICANDO O QUE FAZ autoridade o que deve ser imitado que serve como modelo Pois o livro que o leitor tem nas mãos é um clássico Mais um pois Jorge Caldeira já nos ofereceu outros Mauá empresário do Império História do Brasil com empreendedores e A nação mercantilista ensaios sobre o Brasil se tornaram há muito leitura obrigatória para quem quer conhecer nossa história Caldeira é sociólogo doutor em Ciências Políticas mestre em Sociologia e bacharel em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo além de renomado jornalista e editor de veículos importantes como a Folha de SPaulo revistas IstoÉ e Bravo Pesquisador apaixonado criou a Mameluco Produções responsável pelo mais importante acervo jamais reunido sobre José Bonifácio entre outras realizações A tantos atributos somase outro ele é um dos mais prolíficos e consistentes historiadores brasileiros Seus textos não são apenas sinônimos de autoridade mas também de prazer de descobrir Pois para Caldeira não se trata só de escrever ou descrever mas de emprestar a escuta aos sons ao mesmo tempo próximos e confusos que escapam dos arquivos oferecendo ao leitor interpretações absolutamente pioneiras capazes de ajudálo a enxergar o Brasil por outras lentes Sua visão da História convida a uma abordagem singular tanto nos métodos de trabalho quanto na delimitação dos campos a serem investigados Ele trata também de fugir de cansadas explicações gerais para aprofundar a pesquisa e revelar num tesouro de dados e documentos o que ela traz de original Como ele mesmo diz introduzir um entendimento novo do passado permite entender de um modo novo também os problemas atuais Acho que conhecer História não é só um problema da academia é um problema de todo cidadão História da riqueza no Brasil é ao mesmo tempo tão monumental quanto síntese Há algumas definitivas como as do trio Gilberto FreyreSérgio Buarque de HolandaCaio Prado A diferença São mais de quinhentos anos relidos e explicados em nova chave Pois para realizar a sua Caldeira serviuse de disciplinas vizinhas a antropologia e a econometria enriquecendo interpretações que já vinha consolidando em obras anteriores A antropologia lhe permitiu se aproximar do passado iluminando objetos como a família a mestiçagem atitudes econômicas as alianças de poder revelando sua surpreendente permanência ao longo de cinco séculos Quanto à econometria essa forneceu medidas e estatísticas mal e pouco conhecidas de grande parte dos historiadores para apreender fatos que só mediante essa abordagem são capturáveis Neste livro Caldeira faz emergir mais uma vez elementos originais e impressionantes Ele demonstra por exemplo como o governo central do Império mantém a escravidão e freia o crescimento jogando o país no atraso enquanto o Ocidente revoluciona o papel do governo e o desenvolvimento capitalista Ou como durante a I República a descentralização federal liberou o setor privado e em uma década e meia o Brasil passou de uma das economias mais estagnadas à que mais crescia no mundo O sucesso pasme leitor se deu por causa da diminuição da capacidade do Estado de funcionar como elemento capaz de isolar as relações entre o Brasil e o mundo Dessa forma empreendedores puderam se multiplicar nas brechas do sistema Não se trata de ideologia Governos explica o autor por vezes podem funcionar como muros que vedam a comunicação positiva entre o mercado interno e a situação internacional mas em outros momentos podem empregar as mesmas armas para proteger o mercado interno contra maus momentos internacionais como aconteceu entre 1930 e a década de 1970 quando as barreiras ajudaram no crescimento da economia Mudada a realidade mundial no entanto voltaram a ser muros contra o progresso do tempo como na forma imperial quando reforçados fosse pelo regime militar conservador fosse pelo governo petista de esquerda impedindo em ambos os casos que o país colhesse os benefícios das oportunidades internacionais da globalização além de gerar recessões Com informações inéditas Caldeira ilumina zonas de sombra E são elas que lhe permitem fazer o que ele faz melhor tecer sua trama e permitir que vejamos novos atores novas paisagens novos fatos Circular com Jorge Caldeira pelos caminhos da História é passear numa floresta que acreditávamos conhecer Tudo está lá as árvores o céu as alamedas E contudo a caminhada é decididamente especial singular Os lugares ou fatos da cronologia são familiares mas sua fisionomia é outra Num panorama analítico virtuoso e objetivo Caldeira explica outra sim outra História A que ainda não conhecemos Animado por generosa pesquisa e brilhante interpretação História da riqueza no Brasil é mais um livro de Jorge Caldeira que já nasce clássico Mary del Priore PREFÁCIO 1 História da Riqueza Em muitos sentidos este é um livro de história bastante tradicional A narrativa segue a cronologia de maneira linear indo do passado ao presente e tem como foco um território determinado Procura ser o mais clara possível sem recorrer a tabelas ou tecnicismos Mantém as divisões qualitativas conhecidas para agrupar os eventos que neste território se passam eou se superpõem ocupação primeva colônia monarquia república Trata de um assunto central a acumulação de bens Para esclarecer esse assunto vai apresentando sucessivamente medidas dessa acumulação números indicativos do tamanho da riqueza reunida a cada etapa dessa história A sucessão das séries de números permite avaliações do desempenho no tempo e dessas avaliações resultam contrastes entre momentos de crescimento e outros de estagnação ou queda Ao mesmo tempo os números locais são comparados a outros Até o final do período colonial com aqueles relativos à economia metropolitana daí em diante com o desempenho de economias ocidentais e para o período mais recente da história com os dados da economia global Dessas comparações resulta outra espécie de avaliação aquela que se manifesta como progresso ou atraso entre a economia local e do modo possível dentro das limitações o mundo Quase todos esses números derivam de trabalhos recentes e de uma mudança no modo de fazer pesquisa em história econômica A partir da década de 1970 a disciplina foi revolucionada por uma combinação de processamento digital uso de bancos de dados e análise estatística o cerne da econometria que permitiu o reconhecimento de nexos significativos num universo de dados que para quase todos os historiadores tradicionais eram dispersos demais ou de impossível compilação e análise Apenas um exemplo bons censos foram realizados no século XVIII com a coleta de dados razoavelmente uniformes mas esses dados estavam em manuscritos dispersos por centenas de arquivos locais No passado um historiador dedicado conseguiria consultar alguns desses arquivos e extrair umas poucas relações coerentes entre os dados consultados Com a informática a incorporação de dados desse tipo em bancos propiciou uma transformação radical nos métodos de análise O aumento exponencial da capacidade de agrupamento e interpretação estatística somado a técnicas de tratamento permitiu a muitos historiadores econômicos irem reunindo conjuntos inovadores alguns dos quais são apresentados aqui Tais conjuntos de dados como se poderá ver trazem resultados muito distintos daqueles consolidados no modelo metodológico anterior O contraste entre as revelações estatísticas e o padrão histórico clássico estabelecido até meio século atrás é muitas vezes chocante Um caso muito evidente é o das relações entre a riqueza da colônia e a da metrópole O estudo da documentação tradicional apontava consistentemente a subordinação política e administrativa como geradora de um resultado econômico pobreza na colônia e transferência de riqueza para o Reino Todas as interpretações eram solidamente ancoradas nessa inferência As diferenças ficavam para a avaliação de tendências mas o cenário da inferioridade colonial era um só Os números que os econometristas foram encontrando e que são apresentados no correr da narrativa sobre o período apontam na direção oposta à documentação tradicional Atualmente é consenso que a economia colonial era no final do século XVIII muito maior que aquela da metrópole Esse é o primeiro caso mas não o único na narrativa no qual os indicativos numéricos vindos de centenas de estudos das mais diferentes fontes levam a uma mudança radical de postura não se trata mais de dar uma nova resposta a um problema estabelecido na tradição mas antes de explicar um problema diferente daquele que vinha sendo colocado pelos estudiosos As implicações nesses casos são tremendas Para ficar no caso da colônia a inversão nas medidas derruba também toda uma série de noções consideradas unânimes Em termos de riqueza a mais ampla delas é aquela da economia de subsistência que define tanto as economias nativas quanto a atividade no mercado interno como incapazes de gerar excedentes permitir acumulação gerar riqueza Essa noção é indistintamente empregada por todas as correntes de historiadores que tentavam explicar o cenário comum da colônia pobre o espectro de uso ia sem divergências dos conservadores mais empedernidos até os marxistas mais radicais A unanimidade fazia sentido pois todos estavam tentando explicar um mercado interno pouco dinâmico e uma acumulação concentrada apenas na face exportadora da economia Para isso a ideia de que tanto a economia dos nativos como a do mercado interno não tinham qualquer possibilidade de gerar riqueza apenas a de garantir a subsistência era mais do que conveniente Por isso sempre aceitaram essa noção pouco mais que uma tautologia sobre a fraqueza acumulativa interna Evidentemente esse tipo de noção perde totalmente a razão de ser quando se trata de explicar uma economia colonial que cresce mais que a metropolitana pois o novo quadro somente pode ser explicado pelo crescimento do mercado interno da área colonial em ritmo mais rápido que aquele do comércio com a metrópole e o mundo Assim a primeira consequência de se entender os números descobertos estabelecidos é a de abandonar por completo as interpretações baseadas no conhecimento clássico Não por divergências pontuais ou ideológicas mas apenas porque os números mostram um cenário completamente diferente Novos instrumentos novas descobertas novos problemas novas possibilidades a serem exploradas e também novas divergências futuras O esforço é concentrado na busca de explicações alternativas para esse novo quadro de problemas e estas muitas vezes surgem de outras disciplinas que não a história No caso da noção de economia de subsistência por exemplo mudanças radicais de entendimento aconteceram a partir do momento em que os antropólogos também passaram a empregar técnicas quantitativas para avaliar o trabalho e a produtividade nas economias dos povos nativos Embora sejam economias sem moeda fato que levou os estudiosos tradicionais a supor uma economia incapaz de acumular riqueza descobriuse que são economias perfeitamente capazes de produzir excedentes e trocálos com outras formações além de terem mecanismos próprios para a administração dos bens acumulados da riqueza que produzem Em grau ainda mais acentuado a mesma capacidade de acumular bens muito ao contrário do que sugeria a restrita circulação do dinheiro foi sendo constatada em toda a economia do sertão Esse novo conhecimento fez ruir de vez os precários fundamentos empíricos da noção de economia de subsistência Permitiu comprovar que tanto a produção dos nativos quanto a dos sertanejos eram capazes de gerar riqueza em ritmo crescente ou de outro modo permitiu que se começasse a entender de que maneira o mercado interno tinha uma dinâmica de crescimento mais forte que a do setor exportador ou a da economia metropolitana Ao longo da leitura o leitor poderá aquilatar o tamanho das diferenças em relação ao padrão anterior de análise também para outros períodos históricos 2 Pessoas costumes e governos A necessidade de se adotar outro modo de análise quando se trata de explicar um novo problema não se limita à economia Tanto quanto a narrativa acompanha os variados resultados na produção da riqueza evidenciados nos novos cenários são também acompanhados os processos sociais da formação dessa riqueza com especial ênfase no papel das pessoas dos costumes e dos governos e o plural aqui é tudo O cenário tradicional de análise permitia mais do que a unanimidade em torno de noções como a de economia de subsistência Dava como certo que o foco principal da ação destinada a organizar a sociedade para produzir riqueza estava no centro fosse exportador ou metropolitano A civilização vinha de fora para dentro da autoridade real para os súditos A quase negação do processo interno de acumulação de riqueza levava a retratar como indistintas muitas outras esferas da vida social na noção de sertão selvagem ficavam englobados nativos caboclos e até mesmo autoridades interioranas Para se entender a nova espécie de realidade que os números mostram é preciso ir na direção contrária começar nas pessoas passar pelos costumes as esferas de governo e ver como nas relações entre todas elas se criaram as instituições que permitiram um desenvolvimento econômico centrado no mercado interno Tal perspectiva serve para mostrar melhor não apenas a realidade da colônia mas a quase totalidade do período analisado Um simples exemplo um símile ajuda a mostrar do que se trata com mais facilidade do que a linguagem técnica da ciência política Você gira a chave na partida o carro pega e a vida segue em frente Vida costumeira Noutro dia você tenta ligar e zás nada o carro encrenca Num átimo a programação cotidiana desaba em vez de seguir para o trabalho é preciso cancelar tudo Cadê o mecânico O redirecionamento de energia provoca uma tensão imediata Entre as reações mais sensatas estão as de fazer o possível para reduzir o estresse e trazer a vida de volta ao leito normal Por exemplo achar uma boa oficina e entregar o carro aos cuidados de quem conhece Embora não seja a vida de sempre ainda guarda um quê de normalidade pois é provável que o mecânico solucione o problema Mas também pode acontecer de você chegar à oficina e sem querer avistar o mecânico ao lado do carro batendo boca com um engenheiro um técnico com uniforme da fábrica Aí você se dá conta de que o caso é realmente sério Entrelaçaramse três níveis nessa cena O cotidiano aquele do automático da rotina sem problemas O da oficina aquele dos problemas solúveis também por meios rotineiros E por fim o das situações excepcionais cuja solução exige algum tipo de especialista Embora o carro que conduz a narrativa deste livro seja o do desenvolvimento econômico não se trata de um livro de economia O que se busca é contar a história ao longo do tempo das relações dessa esfera econômica com os governos Por que o plural De novo o exemplo O primeiro nível descrito na cena aquele que é hoje o do cotidiano das pessoas do carro que funciona pode também ser comparado com um nível de governo que no livro será designado como o governo do costume ou consuetudinário É também uma forma de governo com profundo enraizamento no espaço e no tempo embora seja usualmente ignorada quando se faz história de Brasil e para se entender a razão da escolha desse nível de governo é preciso explicar algo sobre as aspas Em termos de enraizamento espacial os governos montados unicamente sobre os costumes comuns e consensos entre pessoas isto é sem leis escritas nem áreas delimitadas de autoridade política ou seja sem oficinas nem técnicos eram os únicos existentes num vasto território Embora esse território fosse chamado Brasil desde a chegada de europeus demorou para que outras formas de governo estendessem sua autoridade sobre esses espaços e pessoas Ao longo dos séculos houve um domínio extenso de outras formas de governo ainda neste ano de 2017 algo como 11 do território da atual nação são governados quase exclusivamente na forma consuetudinária Mas a mesma forma vale para os muitos condutores de carro no espaço onde imperam outras formas de governo O costume é a forma de governo efetiva durante quase todo o tempo aquela que determina a existência da imensa maioria dos cidadãos brasileiros A rigor vivendo de acordo com o costume com a sociedade se governando muito por si mesma as novas gerações são criadas as leis e os regulamentos cumpridos os impostos pagos o trabalho realizado e a riqueza econômica acumulada Quase o tempo todo os cidadãos usam o carro do governo por conta própria sem quase nunca aparecer numa oficina estatal ou ter contato com seus agentes E nesse ambiente constroem riqueza Mesmo quando se entra na esfera formal dos governos quando se recorre a suas oficinas nem tudo é unanimidade sobretudo quando se trata de história Desde muito cedo houve diferentes tipos de oficina Em 1532 foi instalada a primeira vila mas com um território circunscrito de governo em 1534 implantaramse oficinas mais abrangentes que atuavam sobre conjuntos de vilas as chamadas capitanias hereditárias Em 1549 criouse uma oficina central o governogeral Desde então sem exceções essa estrutura com três níveis hoje chamados de municipal estadual e federal conforma a esfera dos governos de molde ocidental ainda que nem sempre de forma coesa A coordenação mínima entre essas três esferas demandou bastante tempo e gerou formas de acomodação entre os governos trazidos dalémmar e os governos de costume preexistentes O livro não tem como objeto a análise propriamente política Mas considera os costumes e governos formais em suas possíveis relações significativas com a acumulação de riqueza o carro desta narrativa vale repetir Tanto quanto possível o tratamento dessas instâncias segue o padrão da apresentação de números locais para medir a evolução e da comparação com situações externas para medir atraso ou adiantamento Mas como nesse caso tais indicativos são muito mais esparsos é impossível evitar um descompasso nas apresentações Por fim existe a esfera da teoria da ação dos engenheiros No geral ela ganha relevo nos momentos de grande dificuldade o carro não pega o mecânico não descobre as causas É a hora de apelar para os detentores de maior conhecimento como consertar a oficina mudando as normas Como recolocar a vida no eixo alterandose o próprio carro ou o conjunto das normas A resposta a essas perguntas cabe a teóricos Este porém não é um livro teórico Não há qualquer intenção de propor ideais de governos ditar normas produzir manuais de instrução vender veículos ou avaliar motoristas O principal objetivo aqui é o de juntar num todo que faça sentido uma série de novos conhecimentos sobre os números da riqueza de tal forma que se possa entender também o papel das instituições de governo A necessidade nesse ponto é semelhante àquela da revisão da noção de economia de subsistência Os estudos das relações entre governos e desenvolvimento no Brasil no quadro tradicional consideravam relevantes para a acumulação apenas as atividades governamentais do centro e aquelas que influíam sobre as exportações Nada disso serve muito quando se trata de explicar quais instituições permitiram um desenvolvimento que agora se sabe acontecer a partir justamente da área desprezada anteriormente 3 Clássicos e escrita Quatro décadas atrás na época da minha formação universitária bastava a leitura das obras tidas como clássicos para se vislumbrar um quadro histórico geral comum no âmbito do qual cabia apenas o esforço de interpretação Isso ajudou as pessoas de minha geração a mergulharem no processo de especialização acadêmica que então começava o consenso em relação ao todo servia de pressuposto comum a partir do qual todas as áreas especializadas podiam aprofundar a pesquisa Mas a própria especialização foi fazendo das suas como se viu posteriormente nos casos da econometria e da antropologia citados antes Assim foi se criando um contraste com o quadro geral antes considerado unânime com um impacto especial na área da história A boa regra nessa disciplina exige o tratamento de conjuntos documentais e sua interpretação No caso do Brasil contudo a busca desse ideal leva a um universo restrito No Brasil colonial e imperial as escolas foram escassas Tão raras que até a virada do século XX o baixo índice de alfabetização determinava um comportamento peculiar de quem passava por elas como a condição excepcional de alfabetizado permitia que o indivíduo se considerasse um ser de elevado estatuto social esses poucos alfabetizados costumavam reforçar ao máximo as diferenças entre o falar e o escrever como sinal de sua distinção Por isso escreviam e se comunicavam segundo normas complicadas de ortografia sintaxe e estilo Ironizavam a incapacidade dos analfabetos de entenderem a própria língua na qual se comunicavam Tornavam difíceis as condições para a disseminação da escrita nas escolas existentes perpetuando essa situação Deixaram também um problema que por muito tempo se mostrou insolúvel Uma vez que eram os únicos a produzir documentos escritos os historiadores tiveram de trabalhar apenas com esse universo restrito e artificial de manifestações sobretudo nos períodos iniciais do uso da escrita no território Os novos conjuntos de dados romperam uma limitação estrutural inerente à documentação escrita Tanto as descobertas da antropologia como as da econometria permitiram a formulação de modelos que apontam na mesma direção No primeiro caso graças à compilação das normas dos governos consuetudinários dos povos sem escrita tornouse possível a reavaliação dos seus sistemas produtivos No segundo tratando de maneira indistinta os dados relativos a alfabetizados e analfabetos possibilitaram uma nova perspectiva dos mercados e da acumulação de riqueza Devido a ambas inovações no campo da pesquisa um universo antes descartado e tido como marginal na formação da riqueza e no modo de governo de maneira muito ampla o chamado sertão termo que aparece já na carta de Caminha em 1500 pôde ser analisado de outra maneira diversa da que presidiu a produção de documentos coevos e as análises dos clássicos no século passado Vem dessa diferença a opção por contar uma história da relação entre os governos e o desenvolvimento que não se baseia no modelo tradicional da disciplina mas antes nas descobertas vindas de fora Para tanto foi preciso recorrer a uma visada transdisciplinar o que leva a um último ponto relevante Minha especialização técnica foi constituída formalmente num mestrado em Sociologia e num doutorado em Ciência Política Ao completála segui a norma da produção acadêmica que implica a especialização a delimitação progressiva de um campo pelo emprego de termos técnicos a constante referência à bibliografia e por fim a avaliação pelos pares Tenho apreço por tudo isso Mas tive de colocar de lado tudo isso ao redigir este livro que é basicamente uma tentativa de juntar materiais vindos de disciplinas diversas num todo que faça sentido para todos os leitores e não apenas para os especialistas num conjunto capaz de integrar os resultados obtidos por meio de novas formas de conhecimento Não há aqui nenhum desejo de mudar a história Tratase pelo contrário de uma modesta síntese daquilo que já existe não havendo portanto inovações em termos de explicações antropológicas demonstrações estatísticas interpretações históricas teorias políticas ou sociológicas Ao escrever sempre tive em mente o exemplo de um personagem inesquecível de Monteiro Lobato o Visconde de Sabugosa erudito no estilo anterior ao do modernismo sempre de casaca e cartola empregando citações doutas rigoroso defensor das normas cultas e detrator da ignorância ao redor Enquanto a vida corria solta lá fora o visconde se enfurnava na biblioteca do Sítio do PicaPau Amarelo Ali ia se enchendo de letras até embolorar começava a falar de modo incompreensível a fazer citações sem nexo Apenas Tia Nastácia sábia e analfabeta resolvia o problema do teórico pendurava o sabugo para secar ao sol as letrinhas excessivas iam caindo com o bolor e ele voltava a falar e se comportar como gente Para sem ofender minha formação contar essa história que a especialização não permite contar tanto quanto possível sem palavras em excesso e sem jargão espero ter perdido letras inúteis suficientes e ter me restringido ao que interessa A história aqui apresentada procura mostrar apenas com as referências técnicas mais essenciais como ao longo dos anos foi se dando o complexo balé entre governados e governantes na busca do bem comum a riqueza maior 15001808 Alianças colônia e o mundo do Antigo Regime Uma sociedade radicalmente nova instituições mescladas e governos locais eleitos sustentam uma economia dinâmica em contraste com um governo central que só retira recursos e um Ocidente que cresce lentamente BRASILIEN SIM VEL HOMINVM in Peru habiens CAPÍTULO 1 Costumes e problemas de escrita A DESPEITO DE TODAS AS DIFICULDADES ESTATÍSTICAS DEMÓGRAFOS HISTÓRICOS estimam que o território das chamadas Terras Baixas a porção a leste dos Andes no continente sulamericano teria em 1500 uma população entre 1 milhão e 85 milhões de pessoas Linguistas especializados em história identificaram mais de 170 línguas faladas por esses povos e distribuídas em quatro grandes troncos linguísticos tupiguarani jê caribe e aruaque Essa imensa variedade linguística leva a algumas discussões sobre os primórdios da ocupação humana na região De acordo com indícios recentes os primeiros grupos ali se instaram há 30 mil anos ampliando assim a estimativa anterior de pouco mais de 10 mil anos depois de terem eventualmente percorrido duas rotas uma por terra desde a América do Norte e a outra pelo oceano Pacífico As características comuns a tantos grupos são poucas quase todos viviam em aldeias autônomas Sempre que o grupo atingia certo porte havia divisão com parte dos moradores se mudando e formando um novo grupo Desse modo o governo era exercido apenas na área de domínio de cada aldeia Bastante variado era o nível de desenvolvimento tecnológico num extremo pequenos grupos de coletores migrantes que desconheciam a agricultura no outro os chamados cacicados da Amazônia com dezenas de milhares de indivíduos no século XVI para comparação a população de Madri era de 30 mil pessoas que viviam em aglomerações extensas e cultivavam terras irrigadas Como nenhum desses grupos conhecia a metalurgia as ferramentas de trabalho e os utensílios domésticos eram feitos de pedra e madeira Por outro lado o conhecimento sobre as espécies naturais era muito avançado Enquanto os médicos europeus manipulavam algo como uma centena e meia de espécies vegetais no século XVI algumas populações trabalhavam com cerca de 3 mil espécies e três quartos de todas as drogas medicinais de origem vegetal empregadas atualmente no mundo derivam desse conhecimento nativo Nenhum dos grupos conhecia a escrita o que está longe de significar a inexistência de leis Assim como dominavam a fala e a linguagem todos os grupos viviam segundo regras de comportamento precisas embora não escritas Para eles as leis se mostravam nos costumes nos comportamentos prescritos e seguidos por todos Como dizia Rousseau o costume é a maior de todas as leis pois se grava nos corações A imensa maioria dos costumes não era apenas local como o espaço de governo de cada aldeia Havia um alto nível de generalidade mais notável no caso do macrogrupo TupiGuarani Apesar da variedade geográfica e linguística os TupiGuarani exibiam um nível comum de conhecimentos domínio tecnológico e costumes Alguns povos desse grupo alcançaram um patamar de tecnologia relativamente elevado em relação aos demais Além do conhecimento das espécies naturais domesticaram cultivares importantes como milho mandioca tabaco e algodão espécies desconhecidas até então no Ocidente Tinham sistemas agrícolas de boa produtividade em apenas três ou quatro horas diárias de trabalho os moradores das aldeias produziam não apenas o necessário para sobreviver mas o suficiente para manterem estoques de segurança alimentar Numa época em que a fome era um flagelo na Europa os Tupi Guarani se constituíam em exceção de relativa fartura Essa constatação de antropólogos levou a um consenso assim enunciado por Pierre Clastres estudioso da cultura Guarani Estamos portanto bem longe da miserabilidade que envolve a ideia de economia de subsistência Não só o homem das sociedades primitivas não está de forma alguma sujeito a esta existência animal que seria a busca permanente para assegurar a sobrevivência como é a preço de um tempo de atividade econômica curto que ele alcança esse resultado Isso significa que as sociedades primitivas dispõem se assim o desejarem de todo o necessário para aumentar a produção de bens materiais1 A noção de economia de subsistência e a consequente suposição de uma vida econômica restrita aos mínimos vitais foi empregada irrestritamente no século XX por economistas e historiadores de todas as tendências para descrever a produção dos povos das Terras Baixas Mas o cenário muda radicalmente com a constatação de que os TupiGuarani eram capazes de produzir muito além dos níveis vitais No que se refere a desenvolvimento isso obriga a pensar nos nativos como produtores de excedentes como produtores de riqueza a tomálos como base para a história dessa riqueza A possibilidade de uma economia na qual se consegue a produção de excedentes leva a um novo tipo de consideração O patamar no qual se produzem excedentes econômicos regulares para acumular ou trocar implica uma transformação importante nas organizações sociais Quando isso ocorre um grupo se destaca dos demais e assume o controle do estoque de excedentes Criamse assim dois grupos sociais um de produtores e outro de não produtores Nesse momento é que se forma o governo como unidade destacada do restante da sociedade Especializada a função de governante surgem pessoas encarregadas da gestão do Tesouro nome dado ao estoque destacado do consumo normal e reservado para acumulação que passam a levar uma vida diversa das pessoas comuns Apesar de produzir excedentes os TupiGuarani adotaram uma solução peculiar para conciliar a abundância material e a igualdade social Justificavam a solução com argumentos coerentes O sentido maior da preservação tornava inteligíveis outros pontos da teoria do valor Tupinambá Todo trabalho estava relacionado à preservação Sendo assim não fazia sentido trabalhar mais quando isso não representasse mais preservação2 Com isso todo o esforço econômico se voltava para a eficiência máxima da distribuição a igualdade social em vez de ampliar a produção acumulada numa sociedade dividida A produção começava na família Na cultura TupiGuarani família significava algo bastante diverso do que se entendia pelo termo no Ocidente No aspecto produtivo a família TupiGuarani se organizava em termos de uma separação radical de papéis sexuais Os homens cuidavam da derrubada das matas da abertura de roças e da caça as mulheres encarregavamse da roça e do preparo dos alimentos como apenas elas cozinhavam controlavam a distribuição inclusive da caça Tal produção circulava em unidades familiares de acordo com regras também baseadas nos papéis de homem e mulher Para os TupiGuarani há apenas um genitor o pai a mãe é considerada apenas um veículo de geração da vida Essa noção fundava um mundo de diferenças em relação às noções ocidentais Por exemplo os filhos de um irmão do pai são considerados por este como irmãos de seus filhos Sendo assim um casamento entre pessoas nessa situação é considerado incestuoso e punido com severidade Já os filhos de uma irmã desse mesmo pai nem sequer são tidos como parentes e não há nenhum impedimento para o casamento de uma de suas filhas Na cultura ocidental por outro lado são todos indistintamente primos A reunião de famílias numa oca obedece a uma regra costumeira igualmente forte Na hora de casar um homem deve procurar mulher em outra oca ou na via contrária a mulher deve receber um noivo vindo de fora Com tal regra toda estratégia de formação de uma família ganha cor própria Os filhos homens vivem em seus lares de origem apenas durante a infância e o início da puberdade Ajudam o grupo claro mas não constituem o arrimo no longo prazo uma vez que um dia vão partir Para renovar e melhorar as condições de vida portanto toda a estratégia das famílias se organiza na busca de marido para as filhas pois ele é que vai ficar morando na casa Assim as mulheres têm um papel fundamental mas oposto ao da responsabilidade pela geração da vida Uma oca típica reúne de forma permanente apenas a linhagem feminina avó materna mãe irmãs filhas Os maridos vêm de fora e os filhos são mandados para fora E todos são educados para obedecer tal costume Com isso as mulheres aprendem a casar com um homem vindo de fora capaz de enriquecer a vida do grupo de mulheres permanentes e homens passageiros Não é algo fácil pois casamento significa um ato de união consensual e temporária que pode ser desfeita a qualquer momento com a partida do homem Havia duas exceções fundamentais a essa organização cotidiana os momentos de guerra e os momentos de vivência religiosa A guerra era uma constante devido ao fato de os campos serem cultivados de maneira provisória derrubavase a mata queimavamse as árvores caídas e plantavase no terreno Em poucos anos porém diminuía a fertilidade do solo e o grupo saía em busca de outro trecho de mata nativa Com milhares de grupos em movimento os entrechoques eram inevitáveis Ser atacado ou atacar era uma certeza Por isso os homens treinavam constantemente para se manterem em forma E a guerra exigia preparo meticuloso não apenas no que se refere a armamentos e técnicas Era preciso guardar um excedente alimentar para o grupo pelo tempo que durassem os conflitos o que obrigava a um planejamento e também isso implicava mudança na forma de governo Sempre que surgia no horizonte a possibilidade de guerra um dos membros do grupo mudava de papel Em tempos de paz o chefe cuidava apenas de conversar com todos a fim de manter a unidade do grupo e o modo de vida da tribo Nos momentos de perigo ele comandava de outra forma mandava e era obedecido Nessa nova função ele ficava encarregado de controlar os excedentes do grupo regulando sua acumulação e distribuição conforme as necessidades Determinava colheitas chefiava treinamentos militares impunha táticas Também buscava reforços segundo os costumes do macrogrupo Uma das formas mais eficazes de reforço era firmar uma aliança militar com um grupo próximo em geral da mesma origem étnica a fim de compartilhar tanto os riscos como os despojos em caso de vitória Essa aliança era selada por um ritual reservado apenas para os chefes que recebiam uma mulher na maioria das vezes uma das filhas do chefe aliado em matrimônio Relações familiares e políticas se mesclavam para aumentar a concentração de poder Era uma dupla exceção Num primeiro plano a mulher que ia viver no grupo do chefe fazia o percurso contrário da regra normal de casamento O chefe por sua vez ficava com duas mulheres ou mais se repetisse o processo com outros grupos aliados A poligamia dos chefes era aceita com naturalidade por todos como parte das leis costumeiras e tinha consequências econômicas O chefe com muitas mulheres precisava trabalhar bem mais pois se tornava responsável pela caça e a abertura de roças para todas elas e seus filhos As mulheres por sua vez tinham de trabalhar proporcionalmente menos ao cuidar de um único marido e dividir os cuidados de distribuição entre todas Era a desigualdade aceita Passado o momento da guerra a situação de poligamia continuava assim como as alianças entre os grupos que se uniram para combater Mas recuperada a paz os guerreiros não mais deviam obediência ao chefe que se tornava igual a todos os demais exceto pelo fato de ter várias mulheres Sua autoridade voltava a se basear na capacidade de se apresentar para além da fama de guerreiro feroz ou trabalhador capaz de alimentar muitas mulheres e filhos como mantenedor da amizade cívica entre os moradores Em ocasiões de grande sucesso na guerra ou de fartura nas colheitas outra forma de acesso desigual aos estoques se apresentava A vida religiosa cotidiana dos Tupi Guarani se moldava num contato bastante direto com os deuses alguns homens com vocação eram treinados tanto para viajar pelo mundo divino como para relatar essas viagens a todos da aldeia no momento mesmo em que estavam ocorrendo em geral à noite os pajés iam cantando em versos aquilo que encontravam no mundo dos deuses e espíritos Todos ficavam nas redes entreouvindo os cantos No dia seguinte as palavras dos deuses eram comentadas com respeito pelos mais velhos glosadas não sem ironia pelos mais jovens viravam motivo de brincadeira entre as crianças antes assustadas Assim reconstruídos em palavras os deuses reviviam no cotidiano sem a intermediação de grupos especializados pois os pajés que cantavam à noite trabalhavam como outro qualquer na maior parte dos dias Mas também desempenhavam papel importante na destinação do excedente econômico Quando havia folga de excedentes os pajés organizavam grandes festas rituais que mobilizavam o grupo todo Dependendo dos estoques e da importância do ritual havia convites para que grupos aliados viessem comer e participar Em geral os rituais da guerra e da religião eram separados mas havia um caso no qual coincidiam a morte ritual de prisioneiros de guerra valorosos e a ingestão antropofágica de seus corpos cozidos tanto para que a coragem se transmitisse aos vencedores como para que fosse incorporada a força dos espíritos que guiavam o sacrificado Para esse ritual não se economizavam excedentes nem convites a aliados Terminada a festa consumidos os estoques distribuídos os excedentes econômicos que suplantassem os estoques alimentares dissolviase a autoridade do pajé sobre o Tesouro os convidados iam embora e a vida retornava ao normal Com esse brevíssimo resumo notase que os TupiGuarani mantinham um tal equilíbrio entre produção econômica alianças diplomáticas chefia política na guerra e destinação ritual dos excedentes que não os obrigava a criar uma função especializada de governo com a permanente divisão dos membros da sociedade entre governantes e governados Mesmo assim havia governo as instituições indicadas pelo costume funcionavam com regularidade e desfrutavam do respeito de todos Era um modo tão eficiente de governo e regulagem da vida que mal foi notado pela imensa maioria dos europeus que entraram em contato com os TupiGuarani Ficou famosa a frase de uma testemunha que não enxergou religião por falta de prédios que servissem de templo nem civilidade pela inexistência de códigos escritos para punir a inobservância dos costumes tampouco de uma classe separada para governar Sem fé sem lei sem rei escreveu glosando o não uso dos fonemas F L e R na língua geral Tupi Guarani o nhengatu Tratase de uma observação contundente reveladora de um problema secular para contar a história econômica dos governos nativos no atual território do Brasil Para que europeus pudessem conhecer com algum rigor e propriedade os costumes que governam ainda hoje os TupiGuarani é necessário bem mais que o domínio da escrita e umas poucas horas de contato Apenas no século XX começamos a entender melhor tais costumes E isso só foi possível porque uma descrição cuidadosa deles exige treinamento numa disciplina técnica a antropologia Assim os sistemas de produção econômica e de governo dos indígenas foram estudados por importantes intelectuais antropólogos do porte de Darcy Ribeiro Roberto da Matta e Eduardo Viveiros de Castro fizeram grandes descobertas sobre os Tupi desde a metade do século passado Já no caso dos Guarani os trabalhos de Bartolomeu Melià e Pierre Clastres complementam essas descobertas Além disso outros indícios permitem aos cientistas contar a história de povos sem escrita É o caso por exemplo de fósseis analisados por paleontólogos dos estudos de etnobiologia das teses de linguística comparada das análises de formas decorativas em artefatos e pinturas corporais feitas por historiadores da arte A rigor esse trabalho recente está em andamento ou em outras palavras ainda estamos delineando um retrato razoável por meio da escrita dos costumes que funcionam como leis no coração dos TupiGuarani Mas a literatura técnica já produzida é útil para avaliarmos o que está registrado na documentação histórica nos relatos produzidos desde o contato inicial dos europeus com os indígenas O governo consuetudinário que se revela dessa maneira não é bem o que foi descrito no passado nos documentos a que durante séculos os historiadores recorreram para fazer seu trabalho e contar a história do Brasil E o que se nota hoje é que essa documentação está fortemente enviesada pelas crenças dos escritores revelando até mais de seus preconceitos do que efetivamente dos costumes que procuravam descrever Mesmo quando tais autores viveram muito tempo em contato com essas sociedades e tinham grande capacidade de observação era o caso por exemplo de José de Anchieta ou em escala muito menor de convívio do calvinista Jean de Léry questões como a crença religiosa do observador marcavam as afirmações sobre os observados As mudanças trazidas pela escrita de antropólogos produziram um retrato tão mais fiel dos costumes do governo e da economia TupiGuarani que nem vale muito a pena repassar o senso comum remanescente desses séculos ou pior daquilo que se ensinou e se ensina até hoje sobre os nativos brasileiros em escolas secundárias e em cursos universitários de história O sumaríssimo resumo dos costumes permitido pelas novas técnicas leva a outro retrato nos primeiros séculos do milênio passado a combinação de organização em pequenos núcleos com relações de aliança domínio da tecnologia agrícola formação de excedentes e administração temporária em guerras e rituais permitiu que os grupos TupiGuarani dominassem um território cada vez maior no interior do continente A maior parte das terras férteis estava sob seu controle Cada unidade se governava a si mesma pelo costume Todas as unidades expandiam o costume comum fazendo pressão sobre mais de uma centena e meia de povos com outros costumes muito diversos daqueles dos TupiGuarani Podiam produzir e acumular riquezas com facilidade caso fosse necessário Nesse momento de sua evolução receberam inesperados visitantes CAPÍTULO 2 Governos com genros europeus A PARTIR DE 1500 OS HABITANTES DO LITORAL ATLÂNTICO DA AM ÉRICA DO SUL contemplaram uma cena que se repetiria com frequência cada vez maior grandes barcos fundeavam em baías se reabasteciam de água e mantimentos e em troca das cargas que levavam deixavam objetos e também pessoas Nos registros históricos constam vários motivos para o desembarque desses indivíduos Havia os marujos que cansados das viagens e dos riscos atiravamse por conta própria na busca de uma nova vida em meio à paisagem deslumbrante que incluía as mulheres vestidas apenas com coberturas púbicas e pinturas corporais Comandantes ordenavam o desembarque de tripulantes os chamados lançados que ficavam em terra para aprender os costumes dos moradores e relatar seus conhecimentos para um eventual próximo comboio E também passaram a ser comuns as arribadas de náufragos O destino dos que deram em terra foi tão variado quanto os motivos de desembarque Muitos terminaram mortos Mas os sobreviventes cuja história acabou sendo registrada tiveram quase sempre o mesmo destino eles travaram relações com os grupos TupiGuarani Não se tratava de acidente Um dos primeiros a escrever sobre essas relações foi Ulrich Schmidl alemão que fazia parte de uma leva de 300 espanhóis que subiram o rio da Prata a partir de 1535 Durante dois anos foram topando com habitantes nativos lutando por comida escorraçando e sendo escorraçados Não conseguiram estabelecer nenhuma outra forma de contato além da guerra com qualquer grupo exceto quando afinal encontraram os Guarani Após um breve combate estabeleceuse uma trégua e em seguida os 300 europeus receberam 300 mulheres nativas em casamento Não porque eram bonitos mas porque os Guarani firmaram com eles uma aliança pelas regras consuetudinárias tradicionais ou seja por meio da oferta matrimonial O determinante era a cultura Guarani os forasteiros não haviam mantido relações com mulheres de outros povos indígenas simplesmente porque a aliança por casamento não fazia parte do costume deles Essa peculiaridade cultural determinou a sobrevivência dos que vieram dar no litoral atlântico com uma pequena variante como a maior parte da costa era dominada pelos Tupi os despejados de navios no litoral acabaram conhecendo várias possibilidades de convivência com esse grupo Os mais belicosos e corajosos foram mortos como guerreiros e tiveram seus corpos devidamente ingeridos em banquetes rituais muitas vezes em festas que reuniam vários grupos Outros se salvaram pelo medo O alemão Hans Staden foi tratado como guerreiro valoroso e preparado para o sacrifício Porém quando chorou na hora em que ia ser morto a cerimônia foi interrompida um covarde sem honra transmitiria a covardia aos que ingerissem sua carne Por essa atitude desprezível Staden foi transformado em escravo Numa sociedade que não funcionava segundo o princípio da acumulação de bens os escravos não tinham valor como mercadoria Eram apenas seres humanos sem o valor dos guerreiros portanto destinados a uma existência corriqueira no grupo Se eram capazes de produzir alimentos e ajudar nos trabalhos recebiam uma mulher com quem tinham filhos e viviam no grupo tal como os velhos que não mais iam à guerra Mas não participavam dos grandes momentos rituais de ingestão de coragem guerreira muito menos das guerras reservadas para os homens valorosos A regularidade da passagem dos navios consolidouse a partir de uma fórmula que combinava a capacidade de produzir excedentes econômicos dos Tupi com a busca desses excedentes pelos navegadores em torno de um elemento crucial os utensílios de ferro Como desconheciam a metalurgia os Tupi apreciaram muito os machados de ferro europeus com os quais derrubavam árvores em um décimo do tempo do que o faziam com ferramentas de pedra Já os europeus descobriram que podiam obter elevados lucros com vários objetos entre os quais logo se destacaram as toras de paubrasil de onde se extraía uma tintura vermelha para tecidos que logo teve grande demanda no mercado europeu Não demorou para que se organizasse um esquema de trocas Franceses espanhóis e portugueses dispersos pelo litoral acabaram se firmando como intermediários concentrando a recepção e o armazenamento dos utensílios de ferro trazidos de portos europeus e que depois eram usados na troca com o paubrasil Isso criou uma mudança na estrutura da economia local com a introdução de uma produção regular de excedentes para a troca e o comércio de produtos vindos de fora até então muito limitado passou a fazer parte das vidas e dos planos cotidianos dos grupos Tupi que passaram a consumir produtos de ferro importados Todos os eventos descritos até aqui e todas as adaptações posteriores se passaram sem a participação efetiva de qualquer governo europeu Apenas e exclusivamente os governos Tupi viabilizaram esse fluxo comercial fazendo adaptações em seus modos de produzir mas mantendo seus governos consuetudinários aos quais os europeus por sua vez tiveram de se conformar Não chegou a ser exatamente um sofrimento A cultura TupiGuarani previa a absorção de forasteiros segundo um costume bem definido o qual era apenas uma dentre várias opções de relacionamento como também o sacrifício ritual ou a escravização dos covardes A aceitação de um estrangeiro se fazia como já se viu por um ato muito simples o casamento de aliança com uma filha de chefe E esse ato num grupo em que pelo costume os homens vinham de fora e as mulheres eram educadas para receber em casa os homens de fora era bem mais simples de ser arranjado quando envolvia indivíduos de plagas remotas O grupo que aceitava o estrangeiro o fazia com o sentido costumeiro de firmar uma aliança com todo o povo do noivo uma ideia à qual os negócios deram nova substância Para merecer uma filha de chefe o noivo deveria ser capaz de trazer progressos para todo o grupo algo que os objetos de ferro ajudavam muito a materializar Não demorou para que os detentores da maravilha fossem capazes também de obter uma segunda mulher o que os alçava a um plano mais elevado no modo de governar TupiGuarani A poligamia era em geral reservada àqueles capazes de produzir muito lutar com valor e fazer novas alianças de casamento em suma restringiase aos chefes Quando surgiram europeus com acesso a excedentes de ferro e isso era poder muitos chefes vislumbraram a oportunidade de se aliarem aos controladores desses excedentes recorrendo ao método a que estavam acostumados ou seja oferecendolhes as filhas em casamento ou caso isso já tivesse acontecido arranjando uma segunda mulher para o genro Com isso asseguravam a prioridade nos benefícios eventualmente trazidos por conterrâneos do novo genro O papel de genro do chefe foi aquele no qual acabaram se enquadrando todos os estrangeiros bemsucedidos nos negócios Em cada porto onde se deu um arranjo desse tipo um ou alguns poucos europeus apoiados nessas alianças foram capazes de organizar um fluxo comercial no qual os elementos básicos num primeiro momento foram de um lado os utensílios de ferro e de outro o paubrasil Para eles os ganhos eram evidentes como o ferro custava bem menos do que o paubrasil era possível ter um bom lucro na transação Mas seria também um bom negócio para os membros de uma sociedade na qual não tinha sentido acumular bens Para os nativos os utensílios de ferro valiam muito pelo que poupavam de trabalho e pelo poder que conferiam A tarefa mais dura que cabia aos homens era a de abrir as roças cortando árvores com machados de pedra A empreitada levava dias com os instrumentos tradicionais em vez de horas com um machado de ferro Mesmo que os Tupi não tivessem interesse econômico em sempre aumentar mais a produção a troca de ferramenta já valeria pelo tempo de trabalho poupado que poderia ser dedicado a mais bem viver Mas havia também uma razão estratégica fundamental a ressaltar a importância dos machados de ferro A abertura de uma nova roça exigia que um grupo grande de homens fortes deixasse a aldeia e ficasse fora por todos os dias em que durasse o trabalho E como todos os grupos em mudança cumpriam a tarefa na mesma época do ano esse era um fator muito considerado pelos chefes na hora de fazer a guerra Para um grupo sem machados de ferro a ausência do grupo empenhado em abrir uma roça longe durava muito tempo e criava uma oportunidade para atacar a aldeia desprotegida por aqueles que faziam o mesmo trabalho em menos tempo Portanto o chefe que contava com um genro fornecedor de implementos de ferro desfrutava de todas essas vantagens e não apenas em favor do grupo isolado que comandava A partir de certa escala as possibilidades produtivas de um único povo ou da natureza em sua área de domínio poderiam ser menores do que a demanda Nesse caso um chefe poderia aproveitar os utensílios de ferro para ampliar a produção em outros locais realizando alianças matrimoniais com chefes de outros grupos da mesma etnia Tudo isso era necessário para satisfazer a demanda como um único navio podia transportar até 5 mil toras de paubrasil a extração da madeira tinha de ser estendida por uma área considerável Mais ainda o trabalho de corte e transporte era contínuo entre as visitas dos navios de modo a deixar o carregamento pronto para facilitar e apressar o seu embarque Os intermediários europeus logo se tornaram mais do que simples sobreviventes casados ao modo Tupi Muitos receberam cargas de ferro suficientes para que as ofertas corressem o interior do continente Grupos cada vez mais distantes foram sendo mobilizados pelas ofertas metalúrgicas e pelos pedidos de madeira Também começou a surgir um sistema de logística com muita gente envolvida na dura tarefa de carregar as toras nas costas até o litoral Nas áreas afetadas as mudanças também se refletiram no próprio papel de chefe Antes nos tempos de paz o controle do chefe sobre os excedentes produtivos e os demais membros do grupo era bastante diluído resumindose na prática ao que conseguia por meio do convencimento Já o comando dessa produção de excedentes para a troca constituía uma oportunidade única de manter o tempo todo o poder que antes se gozava apenas em épocas de conflitos A mudança também se refletiu no equilíbrio com os demais grupos Se os Tupi da costa já desfrutavam de vantagens tecnológicas e estratégicas antes da chegada dos europeus quando tiveram maior acesso aos utensílios de ferro eles conseguiram aumentar a sua força guerreira possibilitandolhes o controle de praticamente todos os territórios que quisessem O aumento da escala produtiva e dos conflitos teve outras consequências Os cativos de guerra antes incorporados ao grupo agora passaram a ser empregados nos trabalhos produtivos e muitos começaram a ser vendidos como mercadoria pelos genros que serviam de intermediários Já na segunda década do século XVI esses negócios se tornaram comuns em todo o litoral e em vários portos surgiram entrepostos permanentes comandados pelos genros de chefes Assim passaram a ter um papel que antes não existia na sociedade Tupi o de pessoas ricas capazes de acumular a partir de trocas comerciais Alguns nomes de portugueses nessa situação e nesse período foram registrados por historiadores Vasco Fernandes Lucena em Pernambuco Diogo Álvares Correia o Caramuru na Bahia João Ramalho e Antônio Rodrigues em São Vicente Mas o fato é que talvez fossem minoria entre os europeus O número de franceses vivendo nas mesmas condições talvez fosse ainda maior uma vez que os negócios entre os genros franceses acomodados em grupos Tupi e os navegantes de seu país estendiamse por uma vastíssima área que ia desde a foz do rio Amazonas até a baía de Guanabara Havia também espanhóis em meio a esses grupos sobretudo no sul o Bacharel de Cananeia e Enrique Montes este em Santa Catarina foram os mais notórios E não havia exclusividade para os conterrâneos nas compras e vendas Alguns deles quando ganharam dinheiro suficiente viajaram para a Europa levando as suas diversas mulheres Tupi Foi o que fez Diogo Álvares Correia que seguiu para a França num navio comandado por Jacques Cartier o futuro descobridor do Canadá O grupo desembarcou em Rouen onde as mulheres foram batizadas em 1528 Uma delas Guaimbimpará filha do chefe Taparica teve como madrinha Catherine des Granges nobre e mulher de Cartier e adotou o nome desta ficando mais tarde conhecida como Catarina Paraguaçu O mesmo entrecruzamento de espaços e culturas acontecia no interior do continente Em 1526 o português Aleixo Garcia que vivia em aldeamentos na região de Cananeia embrenhouse pelo interior com um grande número de guerreiros seus parentes sempre avançando por regiões dominadas por Tupi ou Guarani Ali encontravam guias para levar a expedição adiante As trocas tinham dois sentidos Muitos grupos iam conhecendo o ferro já os europeus constatavam que as histórias ouvidas no litoral não eram apenas lendas ou mitos Depois do contato com os incas e a prata descobriram que o Império do Rei Branco existia e melhor ainda que havia prata em fartura Garcia recolheu amostras bem reais do metal e elas chegaram intactas ao ponto de partida da expedição ainda que ele tenha morrido no caminho Os europeus de Cananeia receberam as amostras Como essa espécie de notícia acompanhada de provas era sensacional moradores da região bem como suas mulheres foram levados para a Europa onde mostraram pessoalmente as peças para os reis de Portugal e da Espanha Os franceses souberam de tudo Diante da comprovação da existência de minerais preciosos os soberanos dos três reinos chegaram à mesma conclusão valia a pena gastar dinheiro próprio para fazer algo que até então vinha sendo totalmente desnecessário qual seja montar postos avançados oficinas no exemplo inicial de governo no território Até então durante três décadas as providências governativas para adaptar a produção crescente de mercadorias e manter a vida civilizada haviam sido tomadas apenas pelos Tupi Como eram capazes de produzir segundo seus costumes mais excedentes que o padrão anterior exigido pelos europeus o crescimento da acumulação econômica não exigiu transformações de monta nesses costumes dentro deles com variantes palatáveis os genros foram ampliando as atividades e se adaptando ao modo de vida TupiGuarani CAPÍTULO 3 Governo português teoria escrita e Igreja SE O MAIS DIFÍCIL NA ANÁLISE HISTÓRICA DO PAPEL DOS GOVERNOS TUPIGUARANI é formular os costumes que os regem na forma escrita pela qual estamos acostumados a pensar a dificuldade para entender o governo português do século XVI é inversa destrinchar um resumo coerente das muitas escritas que o regiam Nesse caso vale a pena seguir o caminho inverso indo da teoria às leis Em termos de teoria o reino português não se distinguia de outras monarquias na Europa Desde a Antiguidade todas seguiam uma regra máxima que definia a lógica das leis e do exercício da autoridade a manutenção da desigualdade entre os seres humanos Quem formulou a regra foi Aristóteles que assim a definiu na Política Todos os homens que diferem entre si para pior no mesmo grau em que a alma difere do corpo e o ser humano difere de um animal são naturalmente escravos e para eles nada melhor do que estarem sujeitos à autoridade de um senhor1 Essa desigualdade radical definida como natural funcionava como guia para a ação de quem detinha o poder Com o cristianismo uma pequena alteração foi introduzida na fórmula O governante mais sábio era aquele que não interferia nas desigualdades introduzidas por Deus na natureza mas antes as mantinha tal como haviam sido criadas A manutenção do desigual se bem realizada equivalia a fazer justiça e o cumprimento desse objetivo nada tinha a ver com a fórmula atual de que todos são iguais perante a lei Ao contrário o ideal de justiça era dar a cada qual o seu direito ou seja tratar desigualmente cada um segundo sua qualidade Essa capacidade central era nomeada fuero juzgo no pensamento hispânico Faciendo derecho el rey debe haber nome de rey et faciendo torto pierde nome de rey na expressão de Francisco de Vitoria2 O direito e o torto no caso não resultam da ação própria do soberano mas antes do fato de suas ações se pautarem pelo respeito ao plano divino o qual funciona como a régua da vida terrena E régua que seria conhecida na Terra apenas pelo rei cujo poder teria portanto origem divina Com base nessa régua e atribuindo a justa parte a cada um o soberano mereceria a fama de justo Os reis de Portugal resolveram merecer seu nome fazendo algo que nem era obrigatório para quem conhecia as medidas da Justiça desde o século XV passaram a editar as leis que mantinham a justa medida que sustentava as desigualdades entre os homens num código conhecido como as Ordenações do Reino Em 1521 o rei D Manuel deu um passo adiante empregando sua versão as chamadas Ordenações Manuelinas como arma de difusão e propaganda num tempo de mudanças Aproveitou a recente invenção da tipografia para fazer cópias do conjunto de leis e distribuir essas cópias pelos incontáveis órgãos com poderes judiciários visando a uniformidade de aplicação que não tinha nada a ver com universalidade da lei ou igualdade Tratavase apenas da organização da desigualdade O código era organizado em cinco livros cada um deles subdividido em títulos O conjunto visava criar uma hierarquia algo que pode ser facilmente entendido a partir de um exemplo as determinações do modo pelo qual uma pessoa podia ser presa O Livro I tratava das formas mais altas de Justiça No caso das prisões o título 14 definia a esfera mais alta aquelas detenções que só o monarca podia mandar fazer através do meirinhomor o único que poderia prender pessoas de Estado quando por nós o rei lhe for mandado e assim grandes fidalgos ou tais que outras justiças não possam prender Já o Livro II que de maneira geral regulamentava as relações do poder régio mais alto com a nobreza e o clero definia caso a caso como funcionavam as prisões de nobres apenas o rei podia determinálas e eram feitas com discrição ou clérigos da alta hierarquia cada ordem tinha os próprios privilégios e algumas delas detinham plenos poderes para julgar o preso acima até mesmo da vontade real O Livro III codificava várias relações entre agentes do rei clero e nobreza com os estratos intermediários os cavaleiros e fidalgos O título 4 desse livro definia que desembargadores e altos funcionários podiam trazer para a Corte todos os processos em que estivessem envolvidos enquanto o título 6 dizia que esses funcionários só podiam ser citados ou presos com autorização direta do rei Os livros IV e V tratavam em geral das relações entre os fidalgos e os estratos mais baixos da sociedade os homens de negócios e o povo Mesmo os empresários podiam muito pouco judicialmente O título 52 determinava os poucos casos nos quais poderia haver prisão pelo não pagamento de dívidas e apenas quem não tinha nenhuma espécie de privilégio estava sujeito a ela O Livro IV definia também uma série de normas civis reservadas às pessoas sem privilégios herança partilhada entre os filhos as propriedades da Igreja e dos nobres não eram divididas compra e venda de bens inclusive a terra Já o Livro V trazia as normas de comportamento geral mas punições particulares O título 31 por exemplo trazia as punições para homens que se vestissem de mulher ou mulheres que se vestissem de homens com as respectivas penas pessoas sem nenhum grau de fidalguia deveriam ser açoitadas em público escudeiros e daí para cima teriam pena de dois anos de degredo Com esses exemplos é possível entender a própria finalidade da lei escrita em Portugal definir direitos diferentes de acordo com a posição social do indivíduo Por isso sobretudo a partir das Ordenações Manuelinas a busca de lugares apropriados para cada um ganhou um nome duradouro corporativismo O vocábulo indicava o emprego da metáfora do corpo como modelo ideal para o funcionamento de toda a sociedade Como definiram Barreto e Hespanha faz parte deste patrimônio doutrinal a ideia de que cada parte do corpo social como cada órgão humano tem sua própria função de modo que a cada parte deve ser concedida autonomia para o corpo funcionar3 Nessa metáfora o governo é concebido como sendo a cabeça da sociedade ao passo que as partes desta são os diversos órgãos a ela subordinados O corporativismo configurava uma versão atenuada da definição aristotélica na medida em que se calcava mais no princípio da diferença funcional entre órgãos do que naquele da desigualdade radical entre pessoas Essa nuance era importante pois deu origem a um instrumento eficaz de ação política depois da codificação escrita das leis o recurso de buscar o Judiciário para arrancar concessões no sentido do reconhecimento de pequenos privilégios pelo enquadramento na lei Esse fluxo inverteu até mesmo o privilégio maior do rei amparado na origem divina de suas medidas de justiça Uma vez que a doutrina corporativa do poder estabelecia como núcleo dos deveres do rei o respeito à Justiça este ficava obrigado a observar o direito quer enquanto conjunto de comandos dever de obediência à Lei quer enquanto instância geradora de direitos particulares dever de respeito aos direitos adquiridos 4 Como a expressão corporativismo o termo direitos adquiridos tem vida longa Na origem o significado da expressão vinha a ser exatamente o contrário da igualdade Marcava antes o privilégio particular que distinguia um indivíduo de outro o fato de só poder ser preso de determinado modo ser condenado a penas menores etc identificava uma função corporal na sociedade e funcionava como cimento para a ideia de que as diferenças eram a verdade política criada pela natureza sancionada pela Justiça e mantida pelo rei O uso do Judiciário como instância maior de defesa do corporativismo e do reconhecimento de direitos adquiridos levou esse poder a funcionar em Portugal como uma espécie de órgão emissor da moeda da diferença social algo que não acontecia nas versões mais castiças da filosofia aristotélica nas quais tal papel era reservado apenas a Deus e ao olho divino do rei Como resultado dessa descentralização os limites se alargaram O princípio da intangibilidade dos privilégios era uma peça central nas estratégias jurídicas de defesa do status quo político A tal ponto que mesmo Pascoal de Melo continua a afirmar que também os privilégios concedidos individualmente a alguém se chamam leis pois ninguém pode perturbar aquele cidadão na fruição de seu direito5 Todos os privilégios tidos como direito deixaram de ser apenas tradicionais para se transformarem em assunto de tribunal A derrogação de um direito adquirido fosse a propriedade de bens a posse de ofícios a detenção de um privilégio irrevogável o direito de não pagar impostos ilegalmente criados só era possível em sede judicial Dito isso já se vê como os tribunais como instâncias de salvaguarda da justiça e de defesa dos direitos de cada um ocupam na constituição jurídica do Antigo Regime uma função constitucional determinante 6 A codificação de leis e a judicialização dos conflitos inerentes ao reconhecimento de diferenças e direitos adquiridos não eram as únicas peculiaridades da formalização escrita do governo português da época A empresa dos descobrimentos e a administração das novas terras estavam ligadas a uma singular estrutura capaz de dar conta ao mesmo tempo de uma operação tecnológica de ponta e uma diplomacia religiosa a Ordem de Cristo Essa instituição tinha uma história reveladora Embora conquistada pelos cristãos na Primeira Cruzada em 1098 Jerusalém viuse de novo cercada pelos árabes em 1116 Foi nessa ocasião que os nobres franceses Hugo de Poiens e Geoffroi de SaintOmer juraram na igreja do Santo Sepulcro o templo dos cristãos na cidade viver em perpétua pobreza e defender os peregrinos que iam à Terra Santa Nascia assim a Ordem dos Cavaleiros Pobres de Cristo renomeada em 1119 como Ordem dos Cavaleiros do Templo quando a sede foi transferida para o Templo de Salomão e por isso ficou conhecida como a Ordem dos Templários Na época várias organizações católicas congregavam devotos sob regimento próprio A dos templários entretanto tinha um regimento particular seus membros eram mongesguerreiros que se empenhavam em combates militares As regras da ordem eram secretas e só conhecidas na totalidade pelo comandantechefe o grãomestre e pelo papa Desde o início os templários foram desobrigados de obedecer aos reis Podiam assim ter interesses próprios Ao entrar na ordem o novato só conhecia parte das regras e à medida que era promovido sempre em batalha tinha acesso a outros conhecimentos reservados aos graus hierárquicos superiores Ritos de iniciação marcavam as promoções Essa estrutura com graus de iniciação permitiu que os templários atuassem em frentes pouco comuns para uma ordem religiosa Enquanto as cruzadas empolgaram a Europa os templários receberam milhares de propriedades por doação ou herança o que gerou uma oportunidade administrativa e financeira Cada sede foi orientada a criar uma caixaforte para depósitos de ouro e outros objetos preciosos Elas aceitavam joias de viajantes entregando uma letra com o valor do depósito o viajante entregava a letra em qualquer sede e recebia o valor eram as primeiras letras de câmbio e o início de um banco de empréstimos com agências internacionais Os ritos de iniciação também permitiram que se especializassem em arquitetura e engenharia O mito central que envolvia as atividades era o de que os templários haviam descoberto a planta do Templo de Salomão que teria sido riscada por Deus e com isso os iniciados como pedreiros homens que dominavam régua esquadro e compasso seriam capazes de construir as melhores fortalezas e catedrais do mundo A necessidade de ligação constante entre o Oriente e a Europa levou a outra forma de iniciação cavaleiros que construíam navios e conheciam os segredos da navegação cuidavam da frota que interligava as duas regiões uma das instalações mais importantes eram os estaleiros de Lisboa E assim em muitas áreas Os templários precisavam o tempo todo de cavalos e acabaram desenvolvendo métodos de cruzamento e seleção de raças em seus estábulos Outro desenvolvimento veio com a obtenção e o processamento regular de informações Estabeleceuse um fluxo de informações sobre terras caminhos e riquezas que era ordenado a partir do centro Um dos textos dessa espécie que acabou circulando na ordem foi o das viagens de Marco Polo aliás sobrinho de um grãomestre ao Oriente Mas todos esses avanços tecnológicos estavam ligados a uma causa central Enquanto houve cruzadas os templários exibiram orgulhosamente o manto branco com a cruz quadrada vermelha Com a queda da Cidade Santa em 1244 e a expulsão das tropas cristãs da Palestina em 1291 a mística se dissipou As derrotas no Oriente Médio desencadearam uma onda de acusações segundo as quais os cavaleiros teriam feito acordos com os muçulmanos fugido de campos de batalha e traído os cristãos Aproveitando o clima em 13 de outubro de 1307 o rei francês Felipe o Belo invadiu de surpresa as sedes templárias em toda a França Só em Paris foram detidos 500 cavaleiros muitos dos quais acabaram degolados Todos os bens da ordem foram confiscados Esperavase uma fortuna mas como pouco foi efetivamente recolhido criouse a lenda de que tesouros teriam sido transferidos em segurança para outro país Para muitos esses país teria sido Portugal O rei D Dinis 12611325 decidiu de outro modo Em 1317 reiterando que os templários não haviam cometido crime em Portugal D Dinis transferiu o patrimônio deles para uma organização recémfundada a Ordem de Cristo Assim Portugal serviu de refúgio para perseguidos em toda a Europa De vários países chegavam fugitivos carregando o que podiam O castelo de Tomar virou a caixaforte dos segredos que a Inquisição não conseguiu arrancar Nas primeiras décadas de existência da Ordem de Cristo os extemplários mantiveram os estaleiros em Lisboa fizeram contratos de manutenção de navios e dedicaramse à tecnologia náutica aproveitando o conhecimento adquirido no transporte marítimo de peregrinos entre a Europa e o Levante Alimentaram planos para voltar à ação contornando a África por mar e aliandose a cristãos orientais expulsar os mouros do comércio de especiarias Convenceram alguém importante O infante D Henrique sagrouse cavaleiro em 1415 na batalha de Ceuta no atual Marrocos em que os portugueses expulsaram os muçulmanos da cidade No ano seguinte o príncipe foi nomeado comandante da Ordem de Cristo Solteiro e casto dividia o tempo entre o castelo de Tomar sede da ordem e a vila de Lagos no Algarve Em Tomar cuidava das finanças da diplomacia e da carreira dos pilotos iniciados nos segredos do empreendimento cruzado O castelo era um repositório de recursos e informações secretas Lagos era a base naval e uma corte aberta Desde Tomar D Henrique chefiou as negociações com o Vaticano Em 1418 conseguiu sagrar uma importante aliança uma bula papal deu aval para o projeto de navegação classificandoo como uma cruzada Em termos técnicos o reconhecimento desse estatuto na bula transferia à Ordem de Cristo o poder de organizar e administrar a Igreja nos territórios conquistados Da cobrança dos impostos eclesiásticos à criação de bispados ou paróquias tudo dependia do grãomestre da ordem Ao mesmo tempo o papa reconhecia o direito desta aos territórios conquistados aos infiéis e se comprometia a lutar pelo reconhecimento desses direitos entre outros reis católicos Daí em diante cada avanço para o sul e para o oeste será seguido da negociação de novos direitos Em um século os papas emitiram onze bulas privilegiando a Ordem de Cristo com monopólios de navegação na África posse de terras isenção de impostos eclesiásticos e autonomia para organizar a ação da Igreja nos locais descobertos Já em Lagos a vida era muito cosmopolita para o tempo Vinham viajantes de todo o mundo de desvairadas nações de gentes tão afastadas de nosso uso como diz Gomes Eanes de Zurara na Crônica da tomada da Guiné Entre outros o autor cita moradores das ilhas Canárias caravaneiros do Saara mercadores de Timbuctu hoje no Mali monges de Jerusalém navegadores venezianos alemães e dinamarqueses cartógrafos italianos e astrônomos judeus Até a metade do século XV todos os volumosos investimentos para transformar essa variedade de informações em conhecimentos capazes de permitir a navegação oceânica foram bancados pela Ordem de Cristo e os resultados mapas instrumentos de navegação relatos de viagens guardados em Tomar e mostrados apenas aos cavaleiros iniciados que agora comandavam navios e missões diplomáticas Enquanto o tesouro de dados marítimos esteve sob a sua guarda a estrutura secreta da ordem garantiu a exclusividade para os portugueses Em Tomar e em Lagos os navegadores progrediam na hierarquia apenas depois que a sua lealdade era comprovada se possível em batalha Só então tinham acesso aos relatórios reservados de pilotos que já haviam explorado regiões desconhecidas e a preciosidades como as tábuas de declinação magnética que permitiam calcular a diferença entre o polo norte verdadeiro e o polo norte magnético assinalado pelas bússolas E à medida que as conquistas avançavam no Atlântico eram feitos novos mapas de navegação astronômica que forneciam orientação pelas estrelas do hemisfério Sul a que também unicamente os iniciados tinham acesso Todavia com a consolidação do comércio na rota das Índias a partir da sua descoberta em 1498 a Coroa foi aos poucos absorvendo os poderes da ordem Já no reinado de D Manuel de 1495 a 1521 o rei de Portugal era também o comandante dela em caráter privado pois a instituição não se fundiu com o restante do governo As terras americanas estavam até então subordinadas apenas à Ordem de Cristo À frente dessa complexa estrutura legal e administrativa o rei D João III herdeiro de D Manuel se viu às voltas com maridos de mulheres Tupi e decidiu que espécie de governo iria instalar no Brasil CAPÍTULO 4 Vilas OS MORADORES DE CANANEIA QUE HERDARAM AS AMOSTRAS DE PRATA OBTIDAS por Aleixo Garcia foram levados para Sevilha na Espanha em 1530 com todas as suas mulheres com seus filhos e parentes O rei Carlos V então o homem mais poderoso da Europa dono das coroas de Castela Aragão Leão Navarra Catalunha Alemanha Áustria Borgonha Sicília Sardenha Nápoles e Milão ligou pouco para a poligamia que exibiam abertamente e muito para o metal Recebeu os recémchegados ouviulhes os relatos cobriuos de honrarias e tratou de modificar sua estratégia Enquanto Carlos V tomava providências espiões portugueses ficaram sabendo do encontro e avisaram o rei D João III em Lisboa Este ordenou a seu embaixador que fizesse o possível para convencer algum dos náufragos a lhes contar a mesma história O embaixador mostrouse convincente o bastante para que Gonçalo da Costa aceitasse rever seu Portugal natal Finda a conversa o monarca ofereceu mundos e fundos para que ele deixasse de lado as benesses espanholas e servisse a um novo senhor Porém como o acordo proposto não incluía a permissão para que vivesse com as duas mulheres Tupi e os filhos Gonçalo achou mais prudente fugir de fininho O embaixador repetiu o processo de aliciamento com Henrique Montes igualmente português Mais sensível ao dinheiro que aos casamentos abandonou as suas mulheres na Espanha e foi para Lisboa no início de novembro de 1530 Já no dia 15 foi nomeado cavaleiro da Casa Real um fidalgo de nobre estirpe e passou a ganhar 24 milréis por ano No mesmo ato foi nomeado provedor da armada de Martim Afonso de Sousa quase pronta para levantar âncoras o que ocorreu no dia 3 de dezembro de 1530 Ao longo de 30 anos a monarquia portuguesa vinha recebendo notícias bens e pessoas do Brasil Nada disso levara o rei a mover um dedo no sentido de instalar qualquer dispositivo de governo no território nem ao menos um modesto funcionário ou um casebre haviam sido instalados para competir com a autoridade governativa dos chefes TupiGuarani Martim Afonso de Sousa um amigo de infância do rei recebeu de D João III algo mais que o comando das naus Levava uma carta que o designava capitãomor de todo o Brasil Em outras palavras o texto delegava ao comandante uma série de poderes que só o rei poderia exercer Entre esses poderes o mais importante era o de tomar posse do território Martim Afonso de Sousa deveria percorrer todo o litoral desde a foz do Amazonas até a foz do Prata e fincar marcos de pedra nos mais diversos pontos como prova material do domínio português O comandante gastou um ano cumprindo essas ordens Era um serviço para o rei em disputa com outros soberanos europeus mas como marcos de pedra não significavam muita coisa para os moradores da terra nenhum deles deu muita atenção aos artefatos reais Em 1o de agosto de 1531 a armada chegou a Cananeia o ponto de partida da expedição pioneira de Aleixo Garcia Dali todos se lançaram à região da prata por dois caminhos um grupo de 70 homens sem experiência no convívio com os nativos foi enviado por terra aos domínios do Rei Branco Já os navios seguiram a rota determinada pelo rei descer pelo mar até a foz do rio da Prata e subir continente adentro por ele e pelo rio Paraná Os dois projetos fracassaram A tropa terrestre desapareceu sem notícias o navio de Martim Afonso naufragou em baixios os outros não conseguiram ir muito longe rio acima Juntando as sobras o capitão voltou no rumo norte e foi dar em dia exato num local que já fora batizado em português No dia 22 de janeiro de 1502 as naus de Gonçalo Coelho haviam aportado numa baía e como era dia de são Vicente padroeiro de Portugal deram o nome dele ao local Durante o longo intervalo de três décadas nenhuma autoridade havia aparecido por lá e assim o nome original caíra no esquecimento Mais práticos os frequentadores o conheciam pelo tipo de atividade ali praticada Porto dos Escravos Na falta de paubrasil abundante na região outra mercadoria embora menos rentável que a madeira de tintura mostrarase atraente o suficiente para ser trocada por utensílios de ferro Para estabelecer esse fluxo foi necessária apenas uma adaptação nos hábitos guerreiros locais Em vez de deixarem soltos os prisioneiros de guerra os europeus associados aos chefes passaram a se apossar deles leválos até o porto e promover as convenientes trocas Em tudo o mais procediam ao modo Tupi forneciam artefatos recebiam mulheres apoiavam os chefes no preparo das guerras que davam substância a seu poder de mando Os principais chefes da aliança local perfilaramse para receber o capitão que desembarcava Tibiriçá Caiubi e Piquerobi todos Tupi João Ramalho e Antônio Rodrigues náufragos que ali viviam por duas décadas e casados com inumeráveis mulheres das muitas tribos que se aliaram para formar a rede de negócios também estavam presentes Estimase que comandassem 20 mil homens que espalhavam utensílios de ferro e terror continente adentro Com isso Martim Afonso de Sousa sentiuse seguro o suficiente para aceitar um convite e visitar a taba de Tibiriçá que ficava num local conhecido como Piratininga onde mais tarde os jesuítas fundariam o colégio de São Paulo Subiu a serra do Mar conheceu o rio Anhembi mais tarde Tietê que os exércitos da aliança usavam para penetrar no interior Martim Afonso voltou para São Vicente Nesse cenário que combinava o augúrio do santo protetor com a rudeza dos moradores por um motivo até hoje desconhecido o comandante tomou uma medida diversa daquelas que vinha tomando antes Por mais de um ano andara de porto em porto conhecera diversas instalações de genros de chefes Tupi avaliara suas condições sem fazer mais que observações Diante da grande autoridade do grupo que o recebia com honras a cada dia chegavam ao local mais chefes e genros europeus convocados por eles decidiu que era hora de uma nova atitude Ofereceu uma possibilidade para alguns de seus homens desembarcar casar com uma mulher indicada por João Ramalho e passar a viver na terra Houve aceitação em número suficiente para o comandante desencadear um longo rol de providências escritas capazes de criar não apenas um governo regido por leis mas a substância de uma vida sob essa espécie de governo Mandou chamar o escrivão da armada e fez com que formalizasse por escrito os títulos de sesmarias Cada genro importante recebeu o seu título de modo que todos passaram a ostentar também a condição de proprietários da terra na qual morariam garantida por alguém que assinava em nome do próprio rei Até mesmo Henrique Montes recebeu uma sesmaria Depois Martim Afonso convocou o capelão para que batizasse as nativas Como os sacerdotes não podiam batizar fiéis de outras religiões a saída foi considerar as índias como inocentes ou seja como desprovidas de qualquer tipo de religião Desse modo depois de batizadas elas passaram a ser enquadradas na categoria de cristãsvelhas isto é de descendentes de cristãos pelos quatro costados e portanto aptas a receber títulos de nobreza O batismo permitiu que as nativas fossem casadas no ritual católico interpretado nos moldes de sua cultura como um ato que as vinculava a filhos de chefe com dignidade suficiente para que invertessem a regra usual e mudassem para a casa dos maridos E agora iriam viver nas terras cedidas também pelos nativos como parte da aliança aos casais Em seguida um juiz preparou a lista dos homens bons do local Na definição do tempo tais homens bons seriam cristãosvelhos netos de cristãos pelos quatro costados tal como suas mulheres proprietários de bens de raiz garantidos pelos recémconcedidos títulos de terras pessoas que não viviam do comércio com dinheiro na falta deste a atividade central do porto deixava de ser empecilho e pessoas que viviam de acordo com a lei da Igreja como a poligamia dos que estavam há tempos na terra também foi esquecida eles entraram na lista e se tornaram imediatamente aptos a exercer um direito importante Homens bons funcionavam como eleitores das autoridades que poderiam governar uma vila e um decreto de Martim Afonso de Sousa transformou São Vicente em vila Na realidade portuguesa o governo de uma vila por pessoas eleitas era o mais adequado para locais nos quais não existiam nobres clérigos ou fidalgos com direitos sobre terras e pessoas apenas pessoas do terceiro estado povo e aspirantes a fidalguia como os novos homens bons o que era o caso do Brasil Portanto os homens bons procederam segundo a lei elegendo aqueles que teriam o poder de governar em nome do rei fazendo cumprir as Ordenações do Reino E reunidos em uma câmara os homens bons escolheram aqueles que seriam vereadores e fariam as leis administradores e fariam cumprir as leis inclusive com o poder de prender os recalcitrantes e juízes e julgavam aqueles que transgrediam as leis Tudo foi registrado em ata inclusive as decisões dos três primeiros eleitos para governar Juntos se revezariam nas funções administrativas e judiciais Assim numa sequência de rituais textos padronizados nos formatos usuais atos preparatórios e sagrações instalouse a vila de São Vicente a primeira oficina do governo português no território brasileiro Pelo conjunto de atos registrados em documentos escritos formais os genros que antes controlavam o Porto dos Escravos se transformaram em fidalgos Não mudaram de roupa não abandonaram as mulheres e continuaram a viver exatamente como antes Mas nem tudo era como antes Martim Afonso de Sousa sabia empregar muito bem as fórmulas rituais Os antigos náufragos foram enobrecidos para garantir uma sólida aliança com os desembarcados Estes ficariam na terra como esteio de um projeto que incluía algo mais do que as trocas comandadas pelos genros europeus A vila garantia domínio suficiente para que Martim Afonso de Sousa iniciasse um investimento de longo prazo no local com a instalação de um engenho de açúcar Não se tratava apenas de aproveitar as oportunidades locais mas de criar oportunidades produtivas de longo prazo O nome popular do local já indicava que o fornecimento de trabalho cativo para o plantio e a colheita da cana não seria um problema A vila instalada serviu de garantia para que um dos grupos financeiros mais importantes da época os Fugger alemães se associasse ao flamengo Erasmo Schetz para financiar as compras de equipamentos e instalações Com tais projetos assentados Martim Afonso de Sousa partiu Por mais duas décadas a vila de São Vicente mantevese isolada e sem contatos com qualquer representante da autoridade real Tempo suficiente para que os rituais e as formalidades fossem esquecidos Tempo para que o Porto dos Escravos voltasse a ser o que eram todos os assentamentos com europeus no território ponto de negócios comandados por genros de chefes Mas não foi assim Aquela gente preservou um ritual As autoridades eleitas governaram distribuíram títulos mal escritos pelos raríssimos alfabetizados prenderam multaram e julgaram Passados os três anos dos mandatos regulares os vereadores convocaram eleições os eleitos tomaram posse aqueles que deixaram o governo voltaram para a condição de simples governados os novos governantes passaram a exercer a autoridade Eram quase todos analfabetos indivíduos de origem humilde nobilitados apenas no papel casados com índias ou filhas de índias Estas mulheres estavam mais que acostumadas com a autoridade dos governos do costume eleita e provisória competente na busca de consenso e com a vida em coletividades nas quais mandavam os homens ainda que a casa permanente se organizasse em torno da linhagem feminina Nesse grupo misto operouse o milagre da multiplicação das eleições e do governo cuja autoridade derivava da escolha dos governados Assim a instituição portuguesa da vila sobreviveu num ambiente inteiramente diverso daquele no qual havia sido criada Em Portugal a autoridade dos vereadores eleitos era apenas uma entre muitas e de pouca importância na hierarquia Os escolhidos só podiam decidir questões que não afetassem os poderes do rei dos nobres da Igreja e dos fidalgos ou seja quase nada No Brasil como não havia nenhuma dessas autoridades superiores os eleitos se tornaram os únicos governantes formais no território Dividiam a autoridade com seus aliados os chefes Tupi ao redor Mas o fato é que os genros desses chefes passaram a ser também homens bons e eventualmente ganhavam mandatos de vereador que cumpriam apenas até o final do prazo e assim se tornaram interessados na nova forma de governo Dessa maneira ocorreu uma sobreposição do governo regular mas sem escrita das aldeias e do governo baseado em fórmulas escritas legais sem contrastes invencíveis entre um e outro Antes que tal construção de grande plasticidade passasse pela prova do tempo no entanto mudaram as regras do jogo Ainda com partes da armada de Martim Afonso de Sousa no Brasil o rei D João III criou no território outra instância de governo Em carta a Martim Afonso de Sousa disse que tinha encontrado outro caminho Cancelou as franquias concedidas ao capitão e amigo de infância para governar todo o território em seu nome e resolveu fatiar o domínio em capitanias hereditárias Na carta o soberano não deixou de lembrar que reservara as melhores fatias para o comandante e para o irmão deste Pero Lopes de Sousa os quais receberam capitanias alternadas no litoral sul e além disso Pero Lopes tornouse capitão de Itamaracá em Pernambuco Os títulos começaram a ser distribuídos a partir de 1534 Em pouco mais de dois anos todo o território foi redistribuído Começava uma nova era na qual os pedaços de papel fundavam novos cálculos de governo que a prática do contato com a economia mista dos Tupi e dos genros trataria de transformar em destinos CAPÍTULO 5 Capitanias AS AMOSTRAS DE PRATA E AS HISTÓRIAS DE HENRIQUE MONTES LEVARAM O REI D João III a gastar dinheiro do Tesouro para financiar a viagem do amigo Martim Afonso de Sousa Mas os relatos do capitãomor listando fracassos e as mortes dos buscadores de metal o levaram a enfrentar uma dura realidade Os governos se mantêm graças ao que arrecadam dos governados e ao que conseguem emprestado D João III avançara sobre os recursos do reino para pagar a expedição e não podia contar com a sonhada prata para repor com lucro esse dispêndio Pior ainda gastara num período em que a agricultura portuguesa enfrentava problemas devido ao clima em que os franceses faziam provocações diplomáticas e em que as viagens para a Índia não estavam rendendo o previsto Tudo isso também significava aumento de despesas Fechando a conta e constatando o déficit os conselheiros do rei o chamaram para uma reunião em Évora no verão de 1532 Saiu dela convencido de que não valia a pena gastar muito dinheiro do Tesouro para instalar um governo no Brasil E foi convencido porque os conselheiros apresentaramlhe um plano de repassar a missão a particulares Nos moldes da época era uma fórmula clássica O rei concedia parte de seus poderes a empreendedores que realizavam por conta própria serviços governamentais em troca dos quais cobravam impostos dos beneficiários embolsando a diferença na forma de lucros Já havia sido empregada com êxito nas ilhas dos Açores e da Madeira de modo que era só adaptar a ideia para a nova terra O segredo estava no equilíbrio adequado entre o que o rei cedia ao interessado e o que reservava para si mesmo como autoridade A parte cedida ficava registrada numa carta de doação o domínio sobre uma porção de terra a capitania as regras de transmissão desse domínio para herdeiros por isso hereditárias os poderes de governo reservados ao donatário em relação ao controle da justiça e da vida civil exercidos como autoridade no lugar do rei Já a parte da autoridade partilhada era definida em outra carta o foral No princípio o termo designava uma concessão régia pela qual os moradores das vilas ficavam num território delimitado diretamente sob a autoridade do rei e fora da jurisdição de senhores feudais ou clérigos A instituição foi adaptada para o caso brasileiro com algumas variações Juntamente com a capitania o rei concedia ao donatário os poderes de criar vilas ou escravizar nativos para o cultivo da terra Além disso o donatário ficava isento de parte dos impostos a que estaria obrigado como o dízimo e a contribuição para a Ordem de Cristo assim como das taxas incidentes no comércio de paubrasil e pescados Todavia os demais impostos deveriam ser pagos ao rei de modo que a ideia central era assegurar uma renda para o Tesouro evitar despesas e ainda assim estabelecer no território alguma espécie de governo submetido a Lisboa Como tudo isso era dado de graça não faltaram interessados na doação das capitanias Porém com as cartas nas mãos esses interessados teriam de viabilizar o governo nos novos domínios o que implicava investir dinheiro na montagem da operação a fim de colher lucros Nas ilhas do Atlântico a fórmula dera certo com a instalação de engenhos de açúcar Estes eram construídos e geridos por operadores interessados em enriquecer Quando começava a produção e vinham os lucros os operadores pagavam impostos ao donatário que por sua vez repassava ao rei parte do dinheiro No Brasil surgiram interessados em 15 fatias e cada um deles experimentou fórmulas próprias para transformar os dois pedaços de papel em governo efetivo e dinheiro nos bolsos Começando do Norte o donatário de uma das duas capitanias intituladas Maranhão era João de Barros Tesoureiro da Casa da Índia não tinha dificuldades para obter recursos mas faltavalhe tempo para cuidar do assunto Arranjouse então com seu vizinho na segunda capitania do Maranhão Fernando Álvares de Andrade e seu sócio na capitania do Maranhão Aires da Cunha Os investimentos seriam feitos em conjunto começando pela ocupação da capitania do Maranhão O trio armou dez navios que levantaram âncora em 1535 A maior parte da frota se perdeu numa tempestade e alguns sobreviventes foram dar no Caribe Só um pequeno grupo desembarcou no Maranhão Como ali os aliados dos Tupi eram franceses foram recebidos a flecha e acabaram expulsos O prejuízo dizimou as fortunas dos donatários Apenas em 1554 reuniram dinheiro para tentar de novo dessa vez com dois navios E de novo foram expulsos pelos nativos aliados aos franceses A capitania do Ceará foi doada a Antônio Cardoso de Barros alto funcionário do Tesouro As notícias do fracasso maranhense e da existência de feitorias francesas em seu quinhão foram decisivas ao pesar os prós e os contras entre a proximidade segura de um tesouro real e os riscos para fazer o seu resolveu ficar com o que já punha no bolso e deixou o governo e os negócios cearenses em mãos dos Tupi e franceses No caso da capitania de Rio Grande ela foi dada em sociedade para João de Barros e Aires da Cunha justamente os dois que perderam muito investindo no Maranhão Por conta disso os sócios tiveram a mesma atitude do vizinho setentrional deixaram o governo e os negócios para os nativos e franceses Pero Lopes de Sousa o donatário de Itamaracá tinha uma relação bem diferente com seu território No comando de navios da frota do irmão Martim Afonso de Sousa ele atacara e tomara duas vezes a feitoria francesa ali existente Instalara gente de confiança na administração mas o diabo é que a clientela que vinha de navio era toda francesa de modo que ficou muito difícil criar um fluxo de comércio em outra direção O melhor que conseguiu foi reforçar a posição minoritária de náufragos portugueses que eram sócios dos investidores franceses contentandose com alguns trocados O vizinho ao sul era Duarte Coelho donatário da capitania de Pernambuco Ele decidiu vir pessoalmente trazendo a mulher Brites de Albuquerque o cunhado Jerônimo de Albuquerque e todos os técnicos que julgava necessários para instalar engenhos além de ter encontrado financiadores e fornecedores europeus para garantir a operação Ainda assim passou apertado pelo motivo de sempre nativos pouco interessados em abandonar as terras que controlavam ou em abrir roças para os outros pois sabiam o quanto isso era trabalhoso As disputas pela mão de obra de nativos aliados continuaram até serem resolvidas ao modo da terra Vasco Fernandes Lucena náufrago português com vasta experiência no trato com governos nativos convenceu Jerônimo de Albuquerque a se casar com Muira Ubi filha de um chefe Tabajara Selada a aliança o sogro mudou de lado e as coisas mudaram de rumo Enquanto Jerônimo ia tendo filho atrás de filho com sua mulher batizada de Maria do Espírito Santo Arcoverde e com outras filhas de chefe que garantiram a ampliação da aliança original tudo se resolvia O território governado pelos sogros dos franceses foi limitado apareceram escravos para trabalhar os campos foram cultivados os negócios progrediram e um governo português se firmou no território com duas instâncias distintas Além da capitania em 1541 foi instalada a vila de Olinda com a repetição de todas as formalidades de São Vicente títulos de sesmarias lista de homens bons aptos a votar eleição de vereadores alternância no poder A diferença era que havia entre eles produtores regulares plantadores de cana artesãos senhores de engenho e portanto uma volumosa produção de excedentes fora do controle dos nativos Mas a vila era apenas uma instância menor de governo Em Pernambuco passou a funcionar de maneira efetiva a autoridade do donatário em dois sentidos No das receitas implantou a cobrança de impostos inclusive com repasses ao rei e tais recursos financiavam serviços delegados ao donatário como o de atuar como instância mais alta que o Judiciário da vila e o de controlar a vida civil Dezoito anos depois da chegada em 1553 Duarte Coelho voltou à Europa levando os filhos para estudar e deixou a mulher Brites de Albuquerque que era alfabetizada coisa muito rara na época no exercício do cargo de capitoa e governadora como diziam os pernambucanos O marido morreu no ano seguinte de modo que Brites governou Pernambuco até sua morte em 1584 como casta viúva e em sociedade com o seu irmão casado com muitas mulheres Jerônimo teve um mínimo de três dúzias de filhos com muitas índias algumas escravas africanas e a mulher portuguesa que lhe enviou a rainha Catarina quando ele tinha 52 anos com ordens para desposála e deixar de viver na lei de Moisés com suas trezentas concubinas a parte do casamento foi cumprida e ele teve uma dúzia de filhos com a enviada mas não se desfez das concubinas Se tivesse prestado um mínimo de atenção nas alianças de casamento com nativas o vizinho ao sul dos Coelho Albuquerque Arcoverde talvez tivesse sido o mais bemsucedido de todos os donatários Francisco Pereira Coutinho desembarcou na baía de Todos os Santos em 1536 e foi bem recebido por Diogo Álvares Correia o Caramuru suas mulheres e os sogros indígenas Viu a igreja da Graça que os parentes índios haviam erguido para a mulher de Caramuru Guaibimpará agora rebatizada como Catarina Paraguaçu Conseguiu com facilidade terras e escravos para implantar engenhos Por dez anos reinou a prosperidade tanto dos engenhos e dos ganhos de Coutinho como dos negócios com os franceses que faziam a fortuna de Caramuru Por algum motivo contudo o donatário fez valer seu apelido de Rusticão obtido em batalhas pela Ásia e África e a situação degringolou Em 1545 os parentes nativos de Diogo e Catarina atacaram os engenhos e a pequena aglomeração urbana Coutinho ao contrário de Coelho não dividiu seus poderes com os moradores fundando uma vila expulsando os portugueses para Porto Seguro Tentando retomar a capitania Coutinho organizou uma expedição em 1547 O navio no qual vinham naufragou e todos foram dar na ilha de Taparica assim nomeada porque ali vivia o sogro de Caramuru Então comprovouse que o Rusticão era de fato um guerreiro valente foi morto ritualmente a golpes de borduna teve o corpo cozido e as partes devidamente deglutidas para infundir coragem em seus vencedores entre eles Caramuru A mesma relação inicial entre sucesso econômico e boas relações com os governos Tupi marcou a evolução da capitania de Ilhéus cujo donatário era Jorge Figueiredo Correia Ele organizou a expedição mas deixou o comando nas mãos de Francisco Romero e voltou para Portugal Este seguiu o roteiro de sucesso fez aliança com os índios instalou os engenhos foram nove organizou vilas quatro As coisas andaram tão bem que um simples proprietário local Lucas Giraldes acabou comprando a capitania dos descendentes do donatário original depois da morte deste em 1552 Mas tudo desandou quando os Aimoré se desentenderam com os novos ocupantes e passaram a empreender ataques seguidos desarticulando a produção e retomando o governo efetivo da maior parte do território Pero de Campos Tourinho o donatário de Porto Seguro desembarcou com 700 homens e muitas famílias O potencial da capitania era grande terras férteis e muito paubrasil além de um mar especialmente piscoso por causa dos corais de Abrolhos Os problemas eram os mesmos de outros donatários os franceses dominavam os negócios de paubrasil porque se haviam aliado por casamento aos Tupi locais Homem rude e conhecido pela propensão e profusão de blasfêmias o donatário foi se virando como pôde Aliouse aos nativos para mexer na estrutura francesa dos negócios de paubrasil Conseguiu espaço suficiente para criar vilas montar uma produção pesqueira de certo porte vendia peixe salgado para a Bahia abrir roças mas não conseguiu instalar nenhum engenho de grande porte Por fim acabou prejudicado por sua boca mesmo tendo fundado oito igrejas foi preso por blasfemar e obrigado a responder a processo em Lisboa Inocentado viuse proibido de voltar à capitania que teve de transferir para o filho Já Vasco Fernandes Coutinho o donatário da capitania do Espírito Santo era o menos abastado de todos Desembarcou com um pequeno grupo de 60 degredados e só os que sobreviveram aos primeiros embates com os nativos conseguiram se aliar a eles pelo casamento sobrevivendo de modo semelhante aos paulistas fornecendo objetos de ferro para seus parentes que governavam Dali para o sul começava uma região de forte associação entre franceses e nativos Por toda parte essa aliança se fez valer O donatário de São Tomé Pero de Góis foi expulso em 1536 Martim Afonso de Sousa e Pero Lopes de Sousa donatários respectivamente do primeiro quinhão de São Vicente no litoral do atual estado do Rio e de Santo Amaro parte no atual estado do Rio e parte no atual litoral norte de São Paulo não fizeram nada nesses domínios Mas a vila de São Vicente prosperou o suficiente para que a capitania de Martim Afonso fosse se firmando basicamente porque ali não havia conflito com os nativos uma vez que o controle do governo da vila estava nas mãos dos genros de chefes importantes e de seus parentes Um representante local do donatário colhia umas poucas receitas de impostos mas estas eram lucro já que ele mesmo não tinha gasto nada para instalar o governo Na mais meridional das capitanias a de Santana não aconteceu nada Para resumir sete dos quinze lotes permaneceram o tempo todo sob governo dos nativos e dos negócios franceses Em Itamaracá e Porto Seguro houve ocupação portuguesa mas os franceses continuaram negociando paubrasil Nas regiões de alianças entre nativos e genros portugueses os resultados foram variados Na Bahia e em Ilhéus os donatários começaram bem mas se perderam pois não souberam lidar com aqueles que os precederam No Espírito Santo mal e mal os recémchegados sobreviveram Do lado dos resultados políticos em todas as capitanias nas quais vingou a ocupação instalaramse vilas e funcionaram os governos eleitos em uma realidade de mestiçagem progressiva com os aliados nativos No campo dos resultados econômicos muitos investimentos se perderam e poucos impostos chegaram aos cofres do rei Apenas em duas capitanias a aliança entre chefes Tupi e genros portugueses permitiu certo progresso em conjunção com o governo do donatário Pernambuco sob o comando de Brites de Albuquerque foi de longe a tentativa mais bemsucedida Depois do acerto com os locais implantouse a produção de açúcar A riqueza crescente garantiu o fornecimento de utensílios de ferro para os nativos boa vida para o donatário ricos animados na vila de Olinda e impostos para o rei Em escala muito mais modesta o mesmo se deu em São Vicente Esse balanço foi realizado por D João III e dele resultou uma fórmula pessoal para outra tentativa de governo A maior parte do território era governada pelos habitantes nativos a seu modo tradicional e apenas com contatos esporádicos de alguns deles para as trocas por ferro que exigiam pequenas adaptações dos costumes No litoral esses governos consuetudinários tinham participação importante de aliados franceses na maior extensão e portugueses O governo propriamente português tinha autoridade sobre uma parcela ínfima do território aquela ocupada pelas vilas com a única exceção de São Vicente onde muitas das autoridades locais exerciam grande influência sobre os governos Tupi ao redor Apenas nesse espaço valia a autoridade dos donatários E só em Pernambuco consolidouse a projetada combinação de duas esferas de governo a das vilas e a do donatário Nessa realidade é que o rei vai instalar uma representação da Coroa um governo de natureza bem mais sofisticada que os existentes CAPÍTULO 6 Governogeral AO DECIDIR INSTALAR UMA NOVA ESFERA DE GOVERNO NO BRASIL O PRIMEIRO ATO de D João III foi o de comprar de volta a capitania da Bahia recuperando os seus plenos direitos em troca de uma compensação financeira à família do falecido donatário Francisco Pereira Coutinho Ao praticar esse ato deixou de praticar outros igualmente possíveis nos limites de seus muitos poderes de monarca Para começar não demarcou os domínios como sendo propriedade real como eram suas possessões metropolitanas Também não escolheu um nobre para lhe conceder poderes de mando no campo da justiça civil e criminal Preferiu instalar o governogeral como uma esfera adicional no âmbito da capitania cujo capitãomor por acaso era o rei Dessa forma enquadrou a administração de todo o Brasil como governo sobre terras nas quais não existiriam nobres nem clérigos com poderes especiais E isso numa época em que as possessões da Índia eram governadas por um vice rei um nobre dotado de muito mais poder Assim o governadorgeral do Brasil tinha também de governar uma capitania real com os mesmos poderes dos demais donatários criar vilas distribuir títulos de terras cobrar determinados impostos ter certas franquias judiciárias As terras cedidas eram todas negociáveis de modo que sobre elas não se estabelecia qualquer direito de transmissão para um herdeiro Uma vez que todas as demais instituições de governo seguiam esse modelo não se transferiu ao Brasil nenhum dos privilégios maiores da nobreza do alto clero ou até da fidalguia de maior qualidade Apenas como exemplo a terra cedida era mercadoria vendável algo que só foi disseminado no Ocidente no século XIX e o sistema de heranças obrigatório era o mesmo do estrato mais baixo da sociedade metropolitana do povo divisão igualitária de bens entre os herdeiros Esse desenho do governogeral estabeleceu um exemplo contundente Se o próprio rei cabeça espiritual do poder não empregava os poderes de conceder domínios de terra e jurisdição apartados para si mesmo por que haveria de fazer concessões similares para a nobreza Desse modo a ação direta do governo ficava nas mãos de agentes que circulavam em torno das ordens militares da pequena fidalguia e dos primeiros técnicos de governo a chamada nobreza togada a nobreza dos direitos adquiridos resultantes da mistura entre empreendimento e nobilitação menor Esse enquadramento não era corriqueiro nem mesmo para D João III Ao assumir o trono em 1521 os conflitos entre a nobreza togada e a nobreza hereditária estavam provocando uma ruptura importante Ao longo do século XV Portugal fizera um esforço tecnológico admirável com base em adesões conseguidas pela Ordem de Cristo cartógrafos judeus matemáticos árabes pilotos italianos financiadores de toda a Europa O objetivo central foi atingido a navegação oceânica permitiu ligar povos e países de todo o mundo Os navios levavam nos porões mercadorias que criavam novos fluxos de comércio gerando lucros e concentração de capital para seus proprietários em proporções capazes de mudar a vida econômica do Ocidente Lisboa foi o primeiro centro mundial a viver essas novas circunstâncias Porém assim que os lucros começaram a fluir o governo português passou a dividir aquilo que lhe custara muito a congregar A capacidade de absorver inovações esbarrou em limites quando se tratou de criar um ambiente de negócios capaz de dar conta das gigantescas possibilidades abertas pela navegação marítima Novas tecnologias e novos negócios se traduziam na multiplicação de pessoas de formação técnica e de empresários e em termos de governo em pressão para ampliar o âmbito de poder dessas pessoas A adaptação a essa mudança começou ainda antes do reinado de D João III mas não exatamente na direção favorável a tal expansão As expulsões de judeus primeiro da Espanha e depois de Portugal ocorreram na altura em que se abriam as rotas marítimas Os expulsos levaram seus capitais para as cidades da Flandres que logo se tornaram pontos efervescentes de comércio internacional Uma das primeiras medidas do novo monarca em sua condição de administrador da Igreja foi a de instalar a Inquisição em Portugal ajudando a expulsar não apenas as pessoas mas também os capitais e as tecnologias que dominavam para alegria da nobreza tradicional ameaçada e desespero dos empreendedores Em tal cenário a sobreposição do governogeral ao esquema das capitanias apontava no sentido contrário à tradição feudal E o passo seguinte do monarca levou as coisas ainda mais nessa direção Como primeiro governadorgeral ele escolheu Tomé de Sousa que recebeu poderes temporários ligados ao cumprimento de certos objetivos determinados pelo soberano Tudo isso era explicitado num Regimento entregue ao futuro governador Ou seja cabia a ele sobretudo executar ordens No terreno econômico o principal objetivo era o mesmo das doações de capitanias reunir gente e meios capazes de permitir a instalação de atividades produtivas geradoras de lucro no âmbito empresarial e impostos naquele do governo Tais objetivos econômicos não vinham a ser exatamente aqueles que caracterizavam as relações do monarca com os nobres em Portugal Nas instruções de ação política o ar de novidade era ainda maior Elas eram detalhadas passo a passo no Regimento a partir de uma constatação essencial Tanto que chegardes à dita baía de Todos os Santos tomareis posse da cerca que nela está que fez Francisco Pereira Coutinho a qual sou informado que está ora povoada de meus vassalos e que é favorecida de alguns gentios da terra e está de maneira que pacificamente e sem resistência podereis desembarcar e aposentarvos nela com a gente que convosco vai 1 A construção do governo teria um alicerce duplo o favor dos gentios da terra como eram chamados os índios e os vassalos existentes Em apenas uma frase o monarca reconhecia um poder de fato aquele dos nativos capaz de dar apoio ao governador com tais vassalos existentes D João III explicitava o que entendia por reconhecimento desse poder dos nativos O texto do Regimento citava os conflitos entre o primeiro donatário e os nativos que terminaram com as partes do corpo de Coutinho trinchadas e moqueadas para mostrar que mesmo sendo monarca de um Império poderoso sabia tirar lições dos erros e apontar novos caminhos com ordens bastante diretas Portanto vos mando que como chegardes a dita baía vos informeis de quais são os gentios que mantiveram a paz e os favoreçais de maneira que sendovos necessário sua ajuda a tenhais certa2 Assim com palavras o monarca aceitava aquilo que todos os sobreviventes no Brasil haviam aceitado a aliança com os governantes Tupi E mesmo sem palavras diretas dispunhase a consagrar a sábia decisão dos sobreviventes No lugar de simplesmente entregar territórios por cartas sem ligar a mínima para vassalos existentes preferiu entenderse com o maior deles Alguns historiadores dizem que antes de entregar o Regimento a Tomé de Sousa D João III escreveu uma carta a Diogo Álvares Correia o Caramuru Sem nenhum cargo formal de governo ele sustentava as alianças essenciais com os Tupi a partir de seus casamentos Pelas alturas de 1549 era já um homem rico e algumas de suas filhas especialmente aquelas tidas com Guaibimpará agora Catarina Paraguaçu estavam casadas com homens ricos Tudo isso se constituía em poder que foi reconhecido pelo monarca tenha ou não escrito a carta Assim que desembarcou o novo governador fez em nome do rei aliança com a família lusoTupi Três dos filhos homens do casal foram nobilitados quase no ato do desembarque alçados a membros da nobreza togada Logo em seguida alguns recémchegados abastados e prestigiosos casaramse com filhas do casal Assim se constituiu muito rapidamente uma ocupação econômica As terras para a agricultura foram distribuídas sem atritos com os territórios das aldeias aliadas os utensílios de ferro chegaram ali em abundância e parte deles foi trocada por escravos que os aliados dos aliados agora traziam do interior de modo que não faltava mão de obra para abrir matas plantar cana e construir engenhos Salvador foi transformada em vila com a repetição dos rituais de São Vicente e Olinda uma série de títulos de propriedade distribuídos e uma eleição para dar substância e poder ao governo local recéminstalado e que passava a processar os interesses representados na eleição Mas a vila não seria como as outras já instaladas no Brasil Estabelecer uma capitania produtiva para o real donatário era apenas parte do plano O Regimento também era claro sobre o que fazer em caso de êxito Tanto que os negócios que na dita baía haveis de fazer estiverem para os poderdes deixar vós com os navios e gente que vos bem parecer ireis visitar as outras capitanias E porque a do Espírito Santo que é a de Vasco Fernandes Coutinho está levantada ireis a ela com a mais brevidade que puderdes e tomareis a informação por o dito Vasco Fernandes Coutinho e por quaisquer outras pessoas que vos disso saibam dar razão da maneira que estão com os ditos gentios e o que cumpre fazerse para se a dita capitania tornar a reformar e povoar e o que assentardes poreis em obra trabalhando tudo o que for em vós porque a terra se segure e fique pacífica e de maneira que ao diante se não levantem mais os ditos gentios e na dita capitania do Espírito Santo estareis o tempo que vos parecer necessário para fazerdes o que é dito 3 A lição do reconhecimento da aliança Tupi como alicerce sobre o qual assentaria o progresso deveria se estender transformada em realidade política onde quer que chegasse a ação do governogeral Como parte dessa transformação havia mais um ponto expresso no Regimento A principal tentativa minha é que se convertam à nossa santa fé logo é razão que se tenha com eles todos os modos que puderem ser para que o façais assim E o principal há de ser escusardes fazerlhes guerra porque com ela se não pode ter a comunicação que convém que se com eles tenha4 As novidades foram além Até então o comandante da cruzada empreendida pela Ordem de Cristo não tinha feito o menor gesto para instalar a Igreja que comandava naquela terra onde agora instalava uma representação da esfera real de governo Até 1549 os documentos revelam apenas a construção de igrejas por encomenda de moradores fossem europeus como em Iguape onde existe menção de uma capela de Nossa Senhora da Conceição das Neves em 1534 ou nativos convertidos como a igreja erguida por ordem de Catarina Paraguaçu No entanto tudo mudou de figura depois que Tomé de Sousa conseguiu acertar as coisas durante a viagem em que passou pelos pontos então ocupados Em 1553 ele saiu de Salvador para executar um plano diretamente associado à combinação de conversão religiosa dos nativos com domínio político ampliado do território Esse plano havia sido concebido por membros de uma ordem religiosa fundada em 1540 a Companhia de Jesus Ainda em seus primórdios a organização caiu nas graças de D João III que como chefe da Igreja em seus domínios foi entregando sucessivas missões aos jesuítas a começar pela reforma da universidade de Coimbra As relações entre o rei que encomendava serviços e os padres que os realizavam eram muito diferentes das tradicionais Em vez de ficarem em conventos os jesuítas eram treinados para andar no mundo o rei se aproveitava desse treino para encarregálos de missões específicas diretamente financiadas com recursos do Tesouro Sem precisar perder tempo buscando dinheiro de esmolas os padres iam direto ao ponto E o ponto no caso dos seis jesuítas que vieram com o governadorgeral era o de estudar cuidadosamente a cultura dos índios num local onde ainda vivessem a seu modo e montar um projeto exequível de conversão em massa Ao passar por São Vicente Tomé de Sousa conheceu João Ramalho e assim o descreveu ao rei Tem tantas mulheres filhos netos e bisnetos e descendentes que não ouso dizer o número a Vossa Alteza Não tem cãs na cabeça e anda nove léguas a pé todos os dias antes do jantar Por educação deixou de fora o número de mulheres e a nudez mas não hesitou em fazer uma série de concessões de fidalguia transformou a taba onde João Ramalho vivia na vila de Santo André concedeu títulos de homens bons aos parentes indianizados conferiu ao andarilho o título de capitão e reconheceulhe o mandato de vereador Em troca de tudo isso conseguiu que ele arranjasse junto a seu sogro Tibiriçá uma forma de acomodar os padres europeus na tribo sem que tivessem de casar algo que causava muita estranheza a um Tupi Mas afinal tudo se ajeitou de forma que o estudo da cultura Tupi foi adiante como parte da ação do governogeral no Brasil Coube ao padre Manuel da Nóbrega chefiar a missão que contou com grande ajuda de José de Anchieta capaz de destrinchar em pouco tempo tanto a língua como o sistema de parentesco dos nativos cumprindo tarefas dignas de um antropólogo moderno Para o que interessa ao plano de conversão uma indagação básica precisava ser respondida os nativos eram seres racionais capazes de reconhecer Deus ou apenas brutos danados Ao fim do estudo Nóbrega chegou à conclusão de que embora fossem descendentes de Caim e por isso ficam nus não chegavam a ser como seres humanos substancialmente diferentes de europeus e povoadores Toda esta gente uma e outra naquilo que se cria tem uma mesma alma e um mesmo entendimento5 Porque tinham alma racional e capacidade de entendimento o padre jesuíta não via diferenças humanas essenciais entre antropófagos e europeus Mas exatamente por não vislumbrar tanta diferença esboçou um programa de catequese expresso no Diálogo sobre a conversão do gentio pelo qual os índios deveriam ser transformados à força em cristãos e colocados num lugar determinado na nova sociedade a ser criada A lei que lhe hão de dar é defenderlhes de comer carne humana e guerrear sem licença do governador fazerlhes ter uma só mulher vestiremse pois têm muito algodão depois de transformálos em cristãos tirarlhes os feiticeiros mantêlos em justiça entre si e para com os demais cristãos fazêlos viver quietos e sem mudarem para outras partes tendo terras repartidas que lhes bastem e padres da Companhia para doutrinálos6 Na altura em que traçou tal plano a realidade prática do governo no território ainda era marcada pelo domínio das formas anteriores à chegada dos primeiros navios pelo governo autônomo de pequenos grupos Mas o comércio de ferro e madeira por navios marca da nova era havia promovido as transformações das alianças entre europeus e grupos cada vez mais extensos de Tupi uma realidade que até mesmo D João III reconheceu como fundamento para a política Os territórios das principais áreas de contato entre portugueses e Tupi ganharam o estatuto de vilas mesmo quando não passavam de tabas como a Santo André de João Ramalho Aglomerados regionais de vilas eram supervisionados por donatários O governogeral começou como uma capitania de sucesso e como um centro de dispersão das decisões de fundar a política de fato nas alianças com nativos e nos planos de controle dele Parecia muito pouco mas logo apareceu a oportunidade de mudar radicalmente o quadro CAPÍTULO 7 Governo francês corpo e espírito A ALIANÇA ENTRE FRANCESES E TUPI DEU CERTO EM TODO O TRECHO DO LITORAL que vai do Maranhão ao Rio de Janeiro Os métodos políticos foram exatamente os mesmos o casamento de franceses com filhas de chefes fundamentou um fluxo de comércio no qual o algodão e o paubrasil eram trocados por utensílios de ferro Os efeitos também foram os mesmos aglutinação de grupos em torno do fluxo mercantil guerras seguidas contra os demais ocupantes do território Os registros sobre o governo em terras americanas são escassos entre outros motivos porque há pouco interesse de historiadores franceses em estudar os compatriotas que se tupinizaram e as relações deles com seus parentes poderosos em nível local Uma das exceções é Ferdinand Denis que escreveu O francês que se decidia a viver entre os Tupinambá começava a se conformar pouco a pouco em todas as coisas com o modo de vida de seus companheiros Adotado por uma aldeia tomava como seus os interesses dela e seguia os seus costumes Tal se tornava seu desprezo pelos hábitos que abandonara que por vezes se pintavam como selvagens e viviam em florestas Seguindo o exemplo dos chefes com quem gostava de se comparar esposava muitas mulheres1 Francês português espanhol não importa o europeu A regra do sucesso econômico e social era a mesma aculturação no governo de costume Tupi e a concomitante criação de um fluxo de negócios A medida desse fluxo na vertente francesa aparece mais em outro tipo de documentação desde o início do século XVI há registros de nativos brasileiros vivendo na França sobretudo em torno de Rouen Os negócios com o Brasil passaram a envolver negociantes poderosos dessa cidade que reclamavam junto ao rei quando seus navios eram apreendidos como invasores do Brasil Francisco I não hesitou em defender os súditos Pediu ao papa para ver o testamento de Adão que teria justificado o Tratado de Tordesilhas que dividia entre portugueses e espanhóis o mundo então acessível por navios O soberano francês também ajudou em processos de perdas movidos pelos armadores e promoveu todo tipo de intriga diplomática Havia razões econômicas Os negócios franceses andavam tão bem que em 1548 Luís de Góis morador de São Vicente escreveu a D João III Não sei que fim terá esta carta pois de dois anos para cá vem a esta parte sete ou oito naus francesas a cada ano direto para Cabo Frio e o Rio de Janeiro e não há navio português que ouse aparecer pois muitos têm sido tomados pelos franceses2 As naus francesas não levavam apenas paubrasil Os muitos produtos agrícolas domesticados pelos nativos iam encontrando mercado O algodão tornavase conhecido entre tecelões Até mesmo a rainha Catarina de Médici adotou o hábito de fumar tabaco Havia tantos Tupi vivendo em Rouen que as autoridades da cidade resolveram transformálos em atração das festividades de recepção ao rei Henrique II e à rainha fumante que em 1550 visitaram a cidade E era atração forte o suficiente para atrair gente importante Maria Stuart rainha da Escócia os embaixadores da Espanha Veneza Inglaterra e Alemanha entre outros além de sete cardeais e nobres de alta estirpe O espetáculo foi apresentado ao ar livre O cenário era aquele de uma aldeia que tinha tabas redes moquém instrumentos de todo tipo Cinco dezenas de Tupi nus e duas centenas de figurantes franceses iam mostrando como era a vida cotidiana inclusive o modo de cortar paubrasil O ponto alto do espetáculo ficou para o final o ataque simulado de uma tribo inimiga aliada dos portugueses repelido com ajuda dos franceses O fluxo de mercadorias e signos entre o Brasil e a França dependia por completo no lado americano dos governos Tupi Cada grupo nativo segundo seu costume dava conta de processar as mudanças econômicas de monta Tudo funcionava tão bem que nenhum francês teve a ideia de implantar algum tipo de governo na terra Com o governogeral porém a situação mudou Em 1554 o cavaleiro Nicolas Durand de Villegagnon depois de uma incursão a Cabo Frio convenceu o rei de que afinal seria vantajoso instalar um governo francês Mesmo sem a perspectiva de muito lucro Henrique II topou Ajudando aqui e ali permitiu que Villegagnon armasse uma esquadra embarcasse 600 homens e tomasse o rumo da baía de Guanabara Ao desembarcar ali em novembro de 1555 foi recebido pelos franceses casados na terra Escolheu o local que lhe pareceu adequado para edificar uma fortaleza que seria a primeira obra de seu governo uma laje de pedra no meio da baía onde hoje funciona a Escola Naval ao lado do aterro onde foi construída a pista do aeroporto Santos Dumont Apesar da esquisitice do lugar quente e sem água não faltaram meios para instalar os aliados dos aliados com ajuda dos Tupinambá em três meses o forte estava pronto Bastou esse curto intervalo para que os soldados e marujos percebessem que podiam ter uma vida muito boa se casassem com as índias que lhes eram oferecidas a cada dia pois a aliança matrimonial era a linguagem política dos Tupinambá Villegagnon porém ficou com medo de perder autoridade e acabar governado pelos moradores e por isso baixou medidas draconianas para separar as partes A consequência foram os motins e as fugas Tentando recuperar o comando Villegagnon começou a escrever cartas a conhecidos por toda a Europa Num dia de 1556 uma delas chegou a Genebra Escrita para um antigo companheiro de colégio chamado João Calvino ausente foi aberta por seus auxiliares e os resultados da leitura foram registrados por Charles Baird Um culto solene teve lugar na catedral Todos naturalmente desejosos de difundir sua religião deram graças a Deus por aquilo que viam como um caminho aberto para estabelecer sua doutrina e permitir que a luz do Evangelho brilhasse entre os povos bárbaros sem Deus nem lei nem religião3 Vários jovens estudantes cheios de fé um dos quais o sapateiro Jean de Léry se ofereceram para o trabalho de instruir os selvagens a respeito do cristianismo revelado Formouse assim o primeiro grupo de protestantes a cruzar o Atlântico Depois de muitas peripécias chegaram ao Rio de Janeiro em março de 1557 Foram recebidos por Villegagnon Depois ainda segundo Baird Concluída a sóbria refeição o grupo foi deixado nas instalações providenciadas para todos Consistiam em estacas cravadas na beira da água as quais os selvagens a serviço do governador cobriram de grama No lugar de camas tinham redes suspensas no ar segundo o costume local Podemos supor que foi uma noite insone para uma parte do grupo O ar era tépido como costuma ser em maio na Europa O céu sem nuvens permitia a vista de novas constelações A baía com suas costas irregulares recobertas por graciosas palmeiras e as montanhas que lembravam os Alpes deve ter deixado insone parte do grupo Para os pastores ao menos os projetos acalentados eram ainda mais impressionantes Estavam no Novo Mundo onde a Palavra do Filho de Deus tão recentemente revelada em toda sua pureza para as nações da Europa iria ser levada para as tribos selvagens imersas na escuridão Agora com a primeira missão do protestantismo a pura doutrina da Cristandade poderia ser anunciada antes que os emissários de Loyola pudessem introduzir suas crenças corruptas4 Na verdade os discípulos de Loyola já haviam chegado e estavam pregando para as tribos no Colégio de São Paulo E a missão dos pastores era bem mais complexa que a dos padres em um grupo humano que desconhecia a Bíblia e a escrita eles contavam com a capacidade de distinguir uma interpretação específica do texto bíblico por eles tida como verdade revelada e também que os nativos entendessem que tal interpretação contrariava outra considerada corrupta e vislumbrassem nesse modo novo de interpretar o texto do livro a verdade da razão e afinal se convertessem por vontade própria De acordo com o roteiro protestante eles deveriam abandonar sua cultura e seu modo de vida passando a viver como cristãos renovados sob a direção espiritual dos pastores Tanta exigência teve poucos resultados menos de um mês após a chegada nas palavras de Baird a avaliação dos homens de fé sobre os nativos estava muito longe daquela em que eram vistos como inocentes à espera da Palavra A respeito dos bárbaros habitantes da terra os pastores escreveram com indisfarçável horror Não apenas estavam acostumados a comer carne humana mas de vários modos haviam caído ao nível dos animais Não distinguiam o bem do mal não tinham a concepção da existência de um Deus Os pastores sentiamse deprimidos pela incapacidade de incutir em tais pagãos as boas novas da Redenção5 Frustração maior condenação maior Até mesmo Jean de Léry um dos que mais conviveram com os índios não se furtou a um julgamento muito negativo sobre os canibais Em verdade penso que pouco diferem dos brutos e que no mundo não há pessoas mais afastadas das ideias religiosas São descendentes de Caim e trazem o estigma da maldição de Deus Por mim reputo certo descender esta gente da raça maldita de Adão6 Tal juízo decorria do mesmo roteiro inquiridor traçado pelo padre Manuel da Nóbrega tratavase primeiro de saber se os índios tinham capacidade de entendimento para católicos e protestantes isso equivalia a entender a existência do Deus da Bíblia a partir dessa resposta era preciso avaliar se eles andavam nus por serem inocentes ou porque eram os filhos danados de Caim em função de tudo decidir se podiam ser convertidos ou deveriam ser declarados inimigos da fé O pastor foi bem mais duro do que o padre Manuel da Nóbrega incluiu os Tupinambá entre os descendentes de Caim relegandoos à esfera dos animais desprovidos de razão e não à dos homens com alma racional tal como todos os demais conforme o julgamento de Nóbrega e dos malditos Nóbrega entendia racional como capaz de ouvindo sentir a divindade Léry entendia racional como sinônimo da capacidade de se curvar à palavra escrita e revelada pela interpretação sendo esta o grande ente de razão Como seus interlocutores não mostraram disposição para se converter ouvindo a Palavra foram incluídos entre os animais ferozes O que veio em seguida foi pior que frustração No agrupamento francês havia tanto padres e fiéis católicos quanto pastores e fiéis protestantes Convivendo com antropófagos reais os dois grupos logo se engalfinharam num acirrado debate teológico cujo tema era um milenar ritual de antropofagia simbólica assim descrita por Carl Gustav Jung Os horrores da morte na cruz são imprescindíveis como condição preliminar da transformação na missa Esta consiste primeiramente na vivificação de substâncias inanimadas e depois na mudança intrínseca e essencial dessas mesmas substâncias no sentido de uma espiritualização como matéria sutil Tal concepção se expressa na participação concreta no corpo e sangue de Cristo pela comunhão7 Até o encontro com os Tupinambá da Guanabara a ritualização da união entre corpo e espírito num ritual antropofágico simbólico era tão diáfana para todos os cristãos quanto a espiritualização do pão e do vinho Mas depois dele tornouse impossível evitar a impressão material causada pela ingestão da carne dos prisioneiros sacrificados Sérgio Buarque de Holanda narrou com certo detalhe as controvérsias teológicas surgidas na ilha A crise surgiria no Pentecostes de 1557 quando nasceram dúvidas sobre se era lícito deitar água no vinho na cerimônia da consagração Villegagnon optou pela afirmativa evocando a tradição particularmente são Cipriano são Clemente e os sagrados concílios O pastor Pierre Richier valendose das Escrituras contradizia firmemente essa opinião8 Villegagnon tinha tanta certeza de que sua posição teológica não apenas seria correta mas de acordo com as novas doutrinas que a defendeu em carta enviada ao próprio Calvino na qual criticava as posições de outro pastor Guillaume Chartier Ensinava ele que a realidade interior é intelectual não corporal a ser percebida pela fé Desse modo se vos for oferecido o Cristo crucificado da morte e ressuscitado e crerdes que O recebereis será isso mesmo de outra forma será apenas pão que comeis Que Cristo deve ser adorado apenas no espírito e não na carne para não se adorar o elemento terreno9 Enquanto os guerreiros Tupi exaltavam em seus discursos a união de corpo e espírito ao ingerirem a carne dos prisioneiros sacrificados ritualmente os franceses se desentendiam cada vez mais a respeito dessa relação simbolizada na missa como narra Sérgio Buarque de Holanda A controvérsia estava lançada e degenerou logo em violentos debates sobre a natureza da presença de Cristo nas espécies da Eucaristia Aos poucos foramse avolumando essas desinteligências e Villegagnon pretendeu impor a qualquer preço sua autoridade desmandandose em atos que fecharam o caminho a qualquer reconciliação O convívio entre as facções em que se dividia a colônia foi ficando cada vez mais insustentável agravandose com as notícias bem ou mal fundadas de insubordinação e revoltas10 Depois de vários episódios de conflito o ato final assemelhouse ao sacrifício dos prisioneiros Tupi dessa vez com a integridade espiritual exposta pelos prisioneiros protestantes interrogados por Villegagnon antes do sacrifício Submeteu todos a um rigoroso questionário que versou sobre pontos de teologia referentes aos sacramentos E como três deles se mostrassem obstinados no apego às opiniões dos reformados condenouos por hereges mandando supliciá los e depois lançálos ao mar11 A disputa cindiu o governo francês na Guanabara que assim chegou a resultados opostos aos acordos com nativos que haviam permitido o estabelecimento do governogeral português em Salvador No lugar de reforçar alianças e tolerar os costumes de governo Tupi os governantes franceses passaram a condenar os casamentos com índias impedir alianças e brigar entre si por motivos religiosos Foi um fracasso total Católicos e protestantes foram abandonando a Guanabara O projeto ruiu antes mesmo do primeiro ataque português E as desavenças de católicos e protestantes em torno da simbologia antropofágica de união de corpo e espírito na missa prosseguiram no retorno à França De lá a controvérsia se espalhou pela Europa com os desentendimentos levando à primeira guerra entre católicos e calvinistas na França e pelo menos outras oito ocorreriam até o final da década de 1570 Assim a simbologia Tupinambá entrou na cultura europeia Um francês da região de Rouen Michel Eyquem senhor do castelo de Montaigne conheceu os Tupinambá dizem que tinha um criado trazido do Rio de Janeiro e as guerras religiosas Com isso na memória em algum momento da década de 1570 ele escreveu um ensaio intitulado Dos Canibais no qual dizia O benefício da vitória dos canibais na guerra consiste na glória que auferem dela e na vantagem de se terem mostrado superiores em valentia e coragem pois não saberiam o que fazer dos bens dos vencidos Quando vencidos seus inimigos procedem de igual maneira Aos prisioneiros não se exige senão que se confessem vencidos Mas não se encontra um só em um século que não prefira a morte a assumir uma atitude ou uma palavra capazes de desmentir uma coragem que timbram em ostentar acima de tudo Não se vê quem não prefira ser morto e comido a pedir mercê Dãolhes todas as comodidades imagináveis para que a vida lhes seja mais grata mas ameaçam nos frequentemente com a morte futura com os tormentos que os esperam com os preparativos feitos para tal fim com a destruição dos seus membros e o festim que celebrarão à sua custa Fazem tudo isso para lhes arrancar da boca alguma palavra de fraqueza ou de humilhação ou induzilos a fugir vangloriandose então de os terem amedrontado e quebrantado a sua firmeza Porque em verdade só nisto consiste a verdadeira vitória A vitória verdadeira é a que constrange o inimigo a declararse vencido12 Como tal espécie de vitória nem sempre acontecia a escolha mais comum dos prisioneiros seria outra Longe de se renderem diante do que se lhes faz conservam um ar alegre nos dois ou três meses que estão em poder do inimigo incitam seus captores a apressarlhes a morte desafiamnos injuriamnos lançamlhes na cara a sua covardia e relembram as inúmeras batalhas por eles perdidas contra os seus Conservo uma canção feita por um desses prisioneiros onde se encontra este dito Que venham todos quanto antes e se reúnam para comer minha carne porque comerão ao mesmo tempo aquela de seus pais e avós que outrora alimentaram e nutriram meu corpo Estes músculos esta carne e estas veias são as vossas pobres loucos não reconheceis que a substância dos membros dos vossos antepassados ainda está em mim Saboreaios bem e achareis o gosto da vossa própria carne Não há o menor traço de barbárie neste discurso As testemunhas que descrevem os moribundos no momento do sacrifício pintam o prisioneiro cuspindo na cara de seus matadores e fazendo lhes caretas Não deixam até ao último suspiro de os insultar e desafiar por palavras e obras 13 A descrição da morte ritual termina antes do ritual do repasto antropofágico pois o autor coloca nesse momento a questão essencial que está sendo examinada no ensaio Empregando nossos olhos diríamos sem dúvida eis aqui homens completamente selvagens Mas de fato ou eles o são na realidade ou o somos nós Isso porque existe uma maravilhosa distância entre a maneira de ser deles e a nossa14 Esse ensaio marcou a primeira grande influência da cultura TupiGuarani no pensamento europeu Para Montaigne seriam os Tupi e não os reis ou religiosos europeus aqueles que manteriam a integridade mística entre corpo e espírito aquela que se perdia com as guerras no âmbito da cristandade Essa integridade resistiu a governos e religiosos no meio século em que os Tupi puderam controlar o avanço do governo formal e da palavra escrita por meio do controle dos genros aliados Em seguida porém não mais conseguiriam manter monopólio de governo em sua terra natal CAPÍTULO 8 Aliança geral EM 1557 O TRONO DE PORTUGAL PASSOU PARA UM MENINO DE TRÊS ANOS D Sebastião já então apelidado de O Desejado Um dos primeiros atos da regente D Catarina a avó do menino foi indicar Mem de Sá filho de padre num tempo em que padres ainda podiam casar e ter filhos funcionário do alto escalão juiz de instâncias superiores legislador embaixador para ocupar o cargo de governadorgeral do Brasil Tinha 58 anos de idade bem mais que a média de vida da época Ao desembarcar em Salvador no dia 27 de dezembro de 1557 em vez de seguir para o palácio do governo internouse no convento dos jesuítas Durante vários dias discutiu ponto por ponto os planos para a colônia elaborados pelo padre Manuel da Nóbrega O jesuíta Serafim Leite definiu desta forma o resultado das conversas Adotou e cumpriu sem reservas não obstante a oposição1 Uma de suas primeiras medidas em 1559 foi alterar as tarifas alfandegárias reduzindo em quase 40 a alíquota para a entrada de escravos africanos tornando mais barata a importação Quem mais ganhava com isso eram os comerciantes que pagavam parte das compras de açúcar com escravos africanos E quem mais perdia eram os produtores que empregavam a mão de obra nativa e seus fornecedores Quase ao mesmo tempo o novo governadorgeral promoveu algo inédito ao reunir exércitos Tupi aliados de toda a colônia para uma investida contra o governo francês no Rio de Janeiro Até então a capacidade de arregimentar tropas aliadas restringiase à esfera de cada aliança local via casamentos Mas algo havia mudado os jesuítas haviam estabelecido relações entre os vários espaços portugueses preparando o terreno para um alistamento geral em todas as áreas nas quais viviam portugueses indianizados Em 1560 a ordem de reunir os aliados foram cumpridas e visavam um objetivo claramente ligado a um projeto de governo que ia além das alianças com governos locais Tupi e conferia um caráter nacional a conflitos tribais e mercantis Nesse novo tipo de guerra o primeiro alvo era o forte francês na baía de Guanabara A vitória foi rápida até porque ali restara apenas uma pequena fração dos ocupantes originais Mas a ela seguiuse um longo e demorado embate com a verdadeira base da atividade econômica francesa os miscigenados e Tamoio esse é o nome dado pelos demais Tupi aos Tupinambá da região que se haviam aliado aos franceses que afinal eram os governantes de fato do território O conflito se estendeu por uma área enorme Numa primeira etapa as tropas dos muitos Tamoio avançam por todo o litoral ao sul da Guanabara e o vale do Paraíba em 1562 Só foram detidos por João Ramalho quando tentavam invadir São Paulo Os jesuítas foram arregimentando os índios que podiam e enviando notícias a Salvador onde o governador preparava um novo grupo de ataque que ficaria sob o comando do seu sobrinho Estácio de Sá Além disso no Espírito Santo os jesuítas conseguiram uma ajuda de peso Arariboia vivia com a sua gente nos fundos da baía de Guanabara mas acabou tendo de fugir dali para o Espírito Santo após a chegada do grupo do governador francês Internouse pelos matos arregimentou pessoal Aceitou com fúria o convite para se reunir ao grupo organizado para retomar sua região nativa em 1564 No ano seguinte as tropas portuguesas comandadas por Estácio de Sá e por aliados indígenas entraram na baía de Guanabara A guerra longamente preparada foi bemsucedida Depois de um primeiro ataque caíram as posições dos franceses miscigenados de Uruçumirim hoje praia do Flamengo Numa segunda onda de ataques Estácio de Sá acabou ferido no rosto por uma flecha envenenada vindo a morrer pouco depois Mas a taba de Paranapuã também caiu e a vitória foi completa O que houve em seguida foi também a inauguração de novos métodos de tratamento dos vencidos Em vez de fazer escravos o objetivo do combate Tupi os Tamoio foram massacrados a sanguefrio Seguiram o destino dos franceses pendurados em paus para escarmento nas palavras do jesuíta Simão de Vasconcelos Os combates ainda continuaram pelos anos seguintes Em 1575 os Tamoio foram expulsos de Cabo Frio Com essa vitória a guerra tribal em escala ampliada promovida pelo governogeral cumpriu seu efeito mundial refugiando se no interior os Tamoio perderam contato com o aliado europeu com quem trocavam mercadorias e os franceses perderam tanto o negócio como o domínio por falta de produtos para trocar A partir desse momento cessaram os fluxos do Rio de Janeiro para Rouen as exibições para a Corte francesa as possibilidades de comprar paubrasil algodão e tabaco A instalação de Tupi aliados dos portugueses no novo território não seguiu o modelo tradicional da expansão das alianças de fundo matrimonial Os vencedores eram agora representantes diretos do rei e portanto capazes de dar a cada um conforme o seu numa escala mais ampla e conforme aos moldes da época Primeiro deram ao rei Em teoria o território conquistado deveria pertencer a dois capitães donatários os descendentes de Martim Afonso de Sousa um quinhão de São Vicente e Pero Góis da Silveira São Tomé Mas o governadorgeral promulgou uma lei na qual se dizia que uma vez que a terra tinha sido abandonada justificavase a criação de uma nova capitania real a do Rio de Janeiro Também por decreto o governadorgeral nomeou o sobrinho Estácio de Sá capitãomor da capitania recémcriada Para ele e outros amigos o governador geral distribuiu as melhores terras como sesmarias fazendo da região quase uma capitania hereditária dos Sá Mem de Sá não se esqueceu dos aliados Os jesuítas receberam generosas doações de terras nas quais montaram engenhos e fazendas Ao longo dos séculos seguintes as propriedades jesuíticas do Rio de Janeiro em especial o Engenho de Dentro e a Fazenda Santa Cruz seriam das mais rentáveis da região O governadorgeral e os jesuítas souberam criar uma situação especial para seu principal aliado militar Primeiro conseguiram a conversão de Arariboia que foi batizado com o nome de Martim Afonso de Sousa Além disso pediram ao rei que lhe conferisse um título de nobreza togada extraordinário o de cavaleiro da Ordem de Cristo com pensão de 12 mil réis anuais Para merecer um título como esse o pretendente precisava provar que era cristãovelho ou seja neto de cristãos pelos quatro avós A definição que Manuel da Nóbrega criara aquela do índio inocente e dotado de razão serviu para contornar o caso ela transformava o batizado de um inocente num atalho para a nobilitação Poucos conseguiam o título na ordem chefiada pelo rei e quase ninguém era ainda por cima agraciado com uma pensão Receber dinheiro era um privilégio tão grande no século XVI que apenas nove testamentos do período em São Paulo registram herança nessa espécie Além da nobilitação Arariboia ainda ganhou duas sesmarias A maior delas conhecida como São Gonçalo dos Índios na atual Niterói virou uma mescla de aldeamento jesuítico com propriedade comunal misturando as funções de arregimentação de defesa e fornecimento de mão de obra Os vencedores também providenciaram para o agraciado uma casa na cidade perto daquelas das autoridades Cada vez que vinha à casa o proprietário era tratado com a deferência reservada a um fidalgo embora o registro definitivo na Ordem de Cristo nunca tenha sido realizado Seja como for o arranjo marcou um novo tempo No Brasil como um todo a atuação do governogeral levou a um realinhamento das alianças tribais A mobilização geral de várias alianças locais em torno de um único objetivo nacional português mostrouse viável A reorganização da produção após a vitória permitiu uma escala inusitada de concentração de riqueza na qual a proximidade ao centro de poder servia de acesso às benesses Essa reorganização geral explica o destino negativo de outros combatentes na guerra João Ramalho arregimentou tropas arriscou a vida defendeu seu espaço escorraçou os Tamoio Mas só ganhou reprimendas dos jesuítas que não julgavam mais necessitar dele agora que tinham o governogeral como instrumento de apoio mais poderoso são desse período as seguidas cartas condenatórias dos maus costumes do representante da aliança matrimonial Não se tratava de nada pessoal Manuel da Nóbrega tinha traçado um plano completo para o Brasil e nele as alianças locais deveriam ser controladas A nobilitação potencial dos Tupi aliados fora das alianças tradicionais como foi o caso de Arariboia era um passo necessário na implementação da mudança Na segunda metade da década de 1560 Manuel da Nóbrega escreveu uma série de estudos teológicos sobre a inocência dos índios Num deles procurando responder à pergunta Pode um pai vender a seu filho ou venderse a si mesmo dizia que um inocente não poderia fazer isso porque o ato feriria a liberdade natural dos homens Essa era uma ideia totalmente estranha aos costumes políticos e jurídicos da época baseados na tradição aristotélica na qual a desigualdade natural entre senhores e escravos era o fundamento de toda a vida social Mas o desenvolvimento do princípio não levava ao corolário de que todos os homens livres eram iguais Aplicada restritamente aos Tupi que teriam liberdade natural mas não todo o entendimento racional o conhecimento de Deus para usufruíla havia a necessidade de serem tutelados em sua transição para o pleno exercício dela Quem tutelaria Jamais os moradores que eram definidos como movidos apenas pelo interesse Esse era o papel adequado aos jesuítas que poderiam manter os tutelados em aldeamentos de modo a lhes garantir a liberdade parcial O conceito inovador e interessado foi vendido ao rei e transformado em alvará em 1570 Nele aparecia outra novidade depois de sete décadas os nativos eram incluídos entre os súditos de Portugal mas não exatamente como os mais capazes O artigo mais famoso do decreto dizia Mando que daqui em diante não se use nas ditas partes do Brasil o modo que se usou até agora em fazer cativos os ditos gentios nem se possa cativar de modo e de maneira alguma salvo aqueles que forem tomados em guerra justa que os portugueses fizerem ao dito gentio com autoridade ou licença minha ou do governador das ditas partes2 A rigor a lei não acabava com as guerras Mas a decisão quanto à legalidade de uma guerra era transferida dos aliados portugueses e dos chefes tribais para um representante do rei Tipicamente o decreto ampliava ao máximo a margem discricionária da autoridade quase sem mexer na realidade No momento em que a lei foi escrita era pouco mais que um pedaço de papel que dizia algo sobre uma porção ínfima do território Mas deixava transparecer uma pretensão de governo que ia muito além da recomendação ao primeiro governadorgeral para se entender com os nativos Dizia muito também sobre os cativos tomados em guerra em tese deveriam ser entregues aos jesuítas e viver nos aldeamentos Como ali todas as trocas de excedentes eram comandadas pelos padres que também embolsavam as rendas auferidas os índios livres se tornavam produtores de bens para seus tutores Isso tornou os jesuítas funcionários diretamente ligados à Coroa não custa relembrar na autoridade central mais efetiva do território Ao mesmo tempo que criava uma legalidade à feição da época dando a cada um o seu a lei criava uma larga área de ilegalidade na qual incluía todos os índios e todos os moradores que realizavam alianças matrimoniais do lado pessoal e todo o resultado da troca de excedentes econômicos entre as duas partes Até a véspera da lei eles vinham conhecendo um período de relativa aceitação por parte do governo Mas os tempos em que até mesmo a rainha reconhecia candidamente a necessidade de um fidalgo viver na lei de Moisés com suas trezentas concubinas duraram apenas o necessário para a acomodação de um representante da autoridade central com capacidade própria de ação Claro a lei não tinha como alterar a realidade Tanto quanto antes o fluxo de excedentes econômicos gerados nas relações com os Tupi promovia uma acumulação cada vez maior entre os moradores Em termos da política tal crescimento se refletia no número de vilas que não parava de aumentar Quase todas ficavam muito longe da ação regular do governogeral a maior parte distante também da interferência dos senhores de capitanias o poder era todo dos moradores que elegiam seus representantes para governar No lado econômico as trocas começavam a gerar fortunas monetárias de todo tipo O homem mais rico de Salvador era Garcia dÁvila que acumulou sua riqueza com uma mistura de fazendas de gado tocadas por índios venda de farinhas e algodão tudo construído a partir de casamentos com nativas a despeito de ter trazido mulher do Reino Esse exemplo serve para lembrar que nem só a atividade de exportar açúcar gerava renda monetária no Brasil do século XVI Mas o exemplo também não nega o fato de que a atuação do governogeral foi capaz de direcionar os fluxos de riqueza na direção da combinação escravos africanos e exportação Como lembra Joseph Miller essa combinação permitia vencer o principal obstáculo para a manutenção de um fluxo de comércio com a Europa Os construtores do sistema não só tiveram de organizar especulações comerciais caras e altamente especializadas mas também de custear as despesas relativas à compra e manutenção de sua força laboral abrir manter e defender vastas áreas construir e operar complexas máquinas industriais sem o desembolso dos escassos e por conseguinte preciosos metais monetários Não apenas a baixo custo mas especificamente sem fazer uso do ouro e da prata3 Um único exemplo explica essa necessidade imperiosa Em 1640 o valor total da produção de açúcar brasileiro foi equivalente a 17790 quilos de ouro no mesmo ano a entrada total de ouro na Casa da Moeda de Lisboa foi de 3004 quilos o equivalente a 16 da produção Com isso se percebe que não existia outra alternativa senão a introdução do pagamento com outras mercadorias e que o esforço governamental para utilizar o escravo africano e afastar os nativos dessa produção tinha um sentido que ia além das questões teológicas Toda a acumulação de riqueza em moeda na colônia seja resultante dos negócios internos seja derivada da atividade no setor exportador teria de ser feita internamente Mais ainda teria de ser feita à margem do estatuto legal Ninguém notou isso com mais acuidade do que frei Vicente do Salvador autor do primeiro livro com o título História do Brasil de 1625 ao relatar a impressão de um empresário que visitou Salvador em 1585 Notava ele que se mandava comprar um frango quatro ovos e um peixe para comer nada lhe traziam porque não se achava na praça nem no açougue Mas se mandava pedir as ditas coisas às casas particulares lhes mandavam4 Em vez da proteção jurídica para a existência pública os negócios produtivos internos eram relegados ao espaço da informalidade onde eram invisíveis para o governo eram postos no âmbito dos costumes e não da lei E no sentido oposto todos aqueles que produziam para o mercado e negociavam a produção interna procuravam viver o mais longe possível da autoridade central portuguesa Esta por sua vez só cuidava de dar a cada um para as pessoas próximas do governogeral pouco se importando com os demais O resultado nas palavras do padre era uma inversão que não se limitava aos mercados Nessa terra andam as coisas trocadas porque toda ela não é república sendoo cada casa Pois o que é fontes pontes caminhos e outras coisas públicas é uma piedade5 Uma das razões dessa inversão no Brasil era justamente a realidade dos governos pósD João III Depois da morte de D João III que soube estimálo e curálo não houve outro que dele curasse senão para colher suas rendas e direitos6 Nesse cenário encontrar um representante do governo central significava provavelmente dar de cara com um cobrador de impostos e não com alguém disposto a prestar serviços gerais Com isso surgiu uma dupla legalidade De um lado aquela que refletia o interesse dos moradores dos produtores locais interessados em enriquecer fosse com produção interna ou exportação e o interesse de seus aliados Tupi em trocar excedentes que permitiam que isso acontecesse De outro aquela que refletia os interesses do centro representados no Brasil pelo governogeral e pelos jesuítas Também foi surgindo uma divisão espacial Tanto o governogeral como os administradores de capitanias as mais altas instâncias da autoridade metropolitana de fato mal e mal arranhavam o litoral Já as câmaras eram a autoridade efetiva única no sertão Onde havia negócios de exportação havia escravos e alfândega abastecedores do comércio europeu e dos governos Fora de Salvador e das sedes de capitanias o governo era de responsabilidade dos moradores miscigenados das vilas No restante do imenso território continuavam a existir apenas os governos de costume Comerciando guerreando ou se casando estabeleciamse as relações entre essas duas últimas partes ambas em expansão CAPÍTULO 9 Governos da Espanha UMA DAS CONFUSÕES MAIS COMUNS QUANDO SE TRATA DA HISTÓRIA DE PORTUGAL e Espanha é a generalização da atuação do clero católico Até mesmo estudiosos de peso costumam atribuir todas as decisões ao papado a Roma ou mesmo aos jesuítas como se tais instâncias tivessem todo o poder para avançar seus interesses Mas as generalizações desse tipo tornam quase impossível o entendimento de fenômenos muito importantes Tomese por exemplo o seguinte conjunto único de generalidades um mesmo rei governando Portugal e Espanha como ocorreu a partir de 1580 a notória união entre os jesuítas de todo o mundo relações muito especiais com o papado duas colonizações que fundamentavam suas pretensões jurídicas em bulas papais Tudo isso pode levar a imaginar que se tratava de uma realidade católica única sobretudo no que se refere a questões de governo Mas tal impressão não se sustenta diante dos fatos históricos Os jesuítas desembarcaram no Brasil em 1549 diretamente a serviço do rei D João III Como eram financiados pela Coroa não perderam tempo disputando esmolas de fiéis e concentraramse na conversão da população nativa o que não quer dizer que descuidassem do resto Também montaram uma rede de colégios para formar na terra os seus sacerdotes tudo financiado com dinheiro do rei Tornaramse empresários explorando propriedades muito lucrativas sobretudo na Bahia e no Rio de Janeiro Criaram e se beneficiaram da política de aldeamentos Ao fim do século XVI havia nada menos que 169 jesuítas empenhados em todo esse projeto Sendo uma ordem centralizada e geradora de um fluxo regular de informações todos os inacianos eram obrigados a redigir relatórios trimestrais de suas atividades todos os colégios reuniam a informação de sua área e produziam relatórios consolidados todas as províncias faziam o mesmo em relação a Roma algo raro na época tinha nesse sentido uma atuação fortemente coordenada Mas havia também barreiras importantes No mesmo ano de 1600 apenas oito jesuítas espanhóis atuavam em toda a bacia do Prata concentrados na área de Córdoba Em toda a América hispânica do México à Patagônia o número total de jesuítas era inferior ao do Brasil Nenhum desses jesuítas tinha qualquer privilégio do rei de modo que para sobreviver precisavam disputar com outros clérigos o bolo das esmolas dos moradores E eram alvo sobretudo dos 2 mil franciscanos agraciados com favores imperiais e espalhados por todos os territórios hispânicos As críticas concentravamse quase sempre na política dos inacianos de não dispersarem esforços em missões de evangelização dos nativos que implicavam custos e não geravam receitas e se dedicarem apenas aos colégios e suas rendas Tal diferença da situação financeira dos inacianos no Brasil e na América espanhola não se devia a uma decisão da ordem e sim ao modo como haviam sido avaliados pelos reis espanhóis Santo Inácio de Loyola nunca fez milagre em casa ainda vivo a ordem que fundou foi considerada estranha e pouco obediente aos monarcas de seu país natal Por causa disso os jesuítas tiveram de esperar até 1566 para receber a autorização para se instalarem no Peru A atuação deles incluiu períodos favoráveis com os colégios funcionando e desfavoráveis expulsões gerais Só a partir da década de 1580 no reinado de Felipe II teve início o que se poderia chamar de participação mais regular Então em 1598 com Felipe III os jesuítas passaram a desfrutar a confiança do monarca Quase em seguida à ascensão deste ao trono jesuítas graduados foram inspecionar as propriedades e conventos da ordem na região do rio da Prata Nos locais em que os padres instalaram unidades de produção a realidade era uniforme trabalho forçado dos nativos através de uma instituição chamada encomienda legal em todo o território e de emprego generalizado Para surpresa dos padres os superiores ordenaram que fossem libertados todos os encomendados que até então os haviam servido sem qualquer reclamação Em 1607 o rei financiou o transporte e a instalação em Buenos Aires de oito jesuítas encarregados de ali fundar um colégio dobrando o número dos inacianos na região Dois anos depois não apenas mandou pagar as despesas de outros 20 padres como determinou ao governador de Tucumán que entregasse à ordem um colégio já existente e lhe assegurasse 2 mil pesos de renda anual Em 1610 outra leva de mais 27 padres Numa década o número passou de oito para 63 Nessa etapa inicial foi estabelecida uma rede de colégios e fazendas que interligavam a bacia do rio da Prata com a região mineradora de prata de Potosí então possivelmente a cidade mais populosa do mundo 200 mil habitantes contra 60 mil de Roma por exemplo Foi nessa altura que se delineou para eles um alvo o Paraguai Desde 1537 ali predominava uma aliança entre espanhóis e Guarani que era mais forte e mais dinâmica do que aquelas firmadas entre portugueses e índios Tupi entre outros motivos pelo ímpeto inicial pois formada a partir do casamento de 300 espanhóis com mulheres Guarani Tendo Assunção como centro espraiarase por uma série de vilas no interior do continente Com o tempo a área transformouse em abastecedora da região mineradora peruana Milho algodão tabaco e especialmente a nativa erva mate passaram a ser cada vez mais cultivados Mas o fluxo também eventualmente incluía escravos inclusive vários Tupi brasileiros que eram registrados ao passarem pela alfândega em Tucumán já no caminho de Potosi A vida política seguia em plena normalidade nas três esferas de governo hispânicas câmaras eleitas governando nas vilas um governador na província do Paraguai um vicerei em Lima A legislação espanhola também seguia o tradicional modelo corporativo ainda que com as necessárias adaptações E no Paraguai a mais notável adaptação era o uso da encomienda como reguladora das relações entre moradores e nativos em quase tudo iguais àquelas vigentes com os Tupi brasileiros As alianças eram firmadas por meio de casamentos com as mulheres dos grupos nativos e sobre tal base se estabeleciam os fluxos econômicos de excedentes e militares que asseguravam o domínio territorial Enquanto chefes e pajés comandavam os grupos os genros cuidavam do comércio Com tal aliança os Guarani tornaramse senhores únicos de uma vasta área mesmo tendo de enfrentar inimigos mais organizados do que a maioria dos Tupi brasileiros Os utensílios de ferro ajudavam a consolidar o domínio enquanto os produtos de troca enriqueciam os aparentados das vilas Os paraguaios alimentavam planos próprios de expansão Em 1603 enviaram uma comitiva a São Paulo com a finalidade de formar uma aliança entre as duas vilas que fosse capaz de garantir um caminho seguro de abastecimento entre o porto de Santos e Potosí algo plausível uma vez que ambos eram súditos do mesmo monarca Não durou muito tal otimismo Em 1609 apareceu em Assunção o padre Diego Torres superior jesuíta levando planos para abrir missões em três frentes na região Para tanto recebeu ajuda dos franciscanos que havia décadas mantinham missões entre os Guarani gramáticas Guarani escritas pelo frei Bolaños e até catecúmenos emprestados para ajudar No início do ano seguinte enquanto o governador era substituído correram em Madri acusações de que os franciscanos paraguaios se aproveitavam do trabalho nativo No final de setembro de 1610 o superior Torres em carta ao rei Felipe III afirmou que o serviço dos nativos era contra o direito natural e divino Era a senha para a repetição de uma institucionalização semelhante à que ocorrera no Brasil mas na qual os jesuítas espanhóis teriam outro papel O rei enviou então ao Paraguai o visitador Domingo de Alfaro e no dia 12 de outubro de 1611 este promulgou uma nova legislação inteiramente contrária à tradição a fonte de legitimidade para as leis naquele tempo Conhecidas como Ordenações de Alfaro elas dispunham que um único direito passaria a vigorar para os Guarani o direito natural à liberdade Esse novo direito deveria substituir o antigo vínculo da encomienda Com a implantação do novo quadro jurídico os moradores ficavam legalmente proibidos de muitos atos que haviam sido legais na véspera como obter trabalho cobrar tributos comerciar morar próximo manter gado perto de aldeias ter nativos operando moinhos participar de guerras ou incursões pela mata empregar índias como ama de leite e claro casar com índias segundo os costumes Guarani ou reconhecer os filhos desses casamentos Além de todas essas proibições para os moradores as Ordenações de Alfaro traziam uma longa lista de privilégios para os Guarani que fossem morar nas reduções dos padres jesuítas entre eles isenção total de tributos por dez anos A despeito dos protestos de toda espécie os inacianos conseguiram se impor depressa para além do apoio do rei mostraramse preparados para a missão que haviam cuidadosamente planejado E contavam com um conhecimento obtido na prática O modelo de atuação português desenvolvido em décadas com apoio dos monarcas de Lisboa inclusive os Felipes espanhóis baseavase no aldeamento Este funcionava sem que os padres entrassem no sertão os jesuítas portugueses eram obrigados a seguir um regulamento que os proibia de sair da área central das vilas com isso os aldeamentos só recebiam nativos trazidos por moradores O modelo da redução apresentado pelos jesuítas espanhóis à Coroa castelhana ia muito mais longe Previa a entrada dos padres no ambiente nativo dos Guarani visando o domínio exclusivo e monopolista de todas as relações espirituais e materiais destes com o mundo colonial Para funcionar os padres teriam de alcançar dois objetivos simultâneos converter e chefiar Não era exatamente fácil mas foi feito depressa por um caminho preciso Em vez de se aliarem a chefes como faziam os moradores os padres tomaram o lugar dos pajés Como conheciam a cultura religiosa dos Guarani os padres apareciam falando como os grandes profetas os caraíbas Prometiam transformar a redução na Terra Sem Mal o paraíso que só os caraíbas conheciam Listavam os males que seriam afastados com a adesão do grupo às reduções não haveria mais guerras nem exploração por parte dos espanhóis e portugueses Falavam do bem fartura de alimentos vida em paz Os pajés que criticavam o discurso eram chamados de mentirosos presos e supliciados Bemsucedido o missionário anulava uma esfera de poder na cultura tradicional e assumia também uma posição que lhe permitia controlar os excedentes produtivos e a vida econômica Havia argumentos para convencer também os chefes mais fartura a oferecer nas alianças sob a forma de utensílios de ferro de sementes ou de gado Para os demais havia a receita descoberta por José de Anchieta estabilizar a vida da maioria das famílias com os casamentos monogâmicos de primos cruzados Tudo isso promoveu um progresso acentuado nas reduções A produção logo crescia com a introdução do gado e de técnicas de plantio europeias Uma vez produzidos os excedentes entrava a questão de como distribuílos antes resolvida por chefes ou pajés agora pelos padres Toda produção ia para eles que substituíam chefes e pajés na função de redistribuir os excedentes e eles tinham muito para redistribuir Cumpriam a promessa de evitar guerras de modo que sobrava força para o trabalho tornaram o trabalho mais produtivo com a mescla de novas técnicas Os efeitos do imenso crescimento da produção possivelmente beneficiaram as duas partes no momento de redistribuir Aos índios reduzidos pela melhora da dieta sem exigir sobrecarga de trabalho Aos padres pela imensa riqueza que acumularam com a parte do excedente de produção que retinham para si e comercializavam em Potosí distribuído com ajuda da rede de propriedades por todo o caminho As consequências foram notáveis Em apenas três anos passaram a funcionar nada menos de 19 reduções jesuíticas no Prata nas quais atuavam 101 padres Com uma década de ação em 1622 havia na Província do Paraguai 11 colégios duas casas comunais uma de noviciado Além disso as fazendas e propriedades distribuídas pelo vicereinado do Peru chegavam às dezenas a maior propriedade a do Colégio de Buenos Aires estendiase por 2 mil quilômetros quadrados e o total de padres na região chegou a 194 Em apenas uma década a influência ativa da Coroa em todo o processo permitiu que a Companhia de Jesus construísse uma estrutura no Paraguai maior do que a implantada em 70 anos de atuação no Brasil Além do domínio monopolístico das relações com os Guarani reduzidos parte do êxito financeiro do empreendimento se devia ao fato de que os padres tinham isenção tributária em todos os negócios não apenas naqueles com os índios Mas houve também quem perdeu e muito com a mudança Os ganhos obtidos nos negócios com os excedentes Guarani antes eram apropriados pela população paraguaia o que evidentemente deixou de ocorrer Para piorar a situação dos moradores os jesuítas não pagavam impostos o que lhes conferia enorme vantagem em relação aos comerciantes locais Como resumiu o historiador paraguaio Blas Garay todo o benefício recebido pelos jesuítas implicava prejuízos para os espanhóis cujos comércios minguavam enquanto aquele prosperava1 A primeira reação de peso para aliviar a situação dos moradores veio da parte do bispo de Assunção Tomás de Torres outro dos perdedores Antes da chegada dos jesuítas o bispo comandava o clero e recebia rendas depois tornouse figura sem poder Para mudar as coisas tentou transformar algumas reduções em territórios sob sua jurisdição em 1623 Acabou tendo de deixar a cidade em meio a uma concentração de tropas Guarani trazidas das reduções que saltaram de 19 em 1622 para 40 em 1628 Nessa altura a expansão para leste começava a ultrapassar o território Guarani e surgiram as primeiras tentativas de instalar reduções entre os Caingangue povos Jê que dominavam o território intermediário entre o dos Guarani associados a espanhóis do Paraguai e o dos Tupi associados a portugueses em São Paulo Logo depois surgiram reduções que recebiam Tupi fugidos de São Paulo em busca de proteção e planos para entrar no antigo território da Coroa portuguesa A justificativa para tal ação apareceu pela primeira vez numa carta privada do padre Nicolás Durán firmada em Buenos Aires em 24 de outubro de 1627 Ela informava da existência de reduções a dez dias de marcha de São Paulo e que esta vila era habitada por moradores de tal forma selvagens que uma vez tomados índios cativos os tratam com tanta crueldade que não parecem cristãos matando as crianças e os velhos que não podem andar e dandoos como alimento para seus cães2 O argumento foi repetido literalmente numa carta enviada pelo procuradorchefe dos jesuítas espanhóis ao Conselho das Índias em 31 de agosto de 1628 pela qual pedia licença para dar castigo exemplar a tais pecadores3 O Conselho aprovou a ideia mesmo sabendo perfeitamente que estava dando ordens para súditos espanhóis agirem em território da Coroa portuguesa Menos de duas semanas depois em 12 de setembro de 1628 o rei Felipe IV ordenava ao governador de Buenos Aires que por todos os meios possíveis capture e castigue os delinquentes paulistas que tratavam índios com tanta crueldade que dão as crianças e os velhos que não podem andar como comida para seus cães4 São Paulo a vila a ser atacada por sua vez passava por uma mudança Até 1620 havia sido governada apenas pelos homens bons eleitos para a Câmara Os representantes dos donatários eram figuras distantes até a chegada de Fernão Vieira Tavares que apareceu com uma carta que o nomeava representante do donatário da capitania de Santo Amaro doada 86 anos antes a Pero Lopes de Sousa e desde então abandonada Recorrendo a truques e com o apoio de outros interessados forjou uns tantos papéis que colocavam as vilas de São Vicente e São Paulo nos domínios dessa capitania Os moradores da vila eram parceiros de negócios daqueles que viviam no lado espanhol e sentiram os efeitos do empobrecimento deles Quando as reduções ultrapassaram a fronteira Guarani o sucessor do novo representante do donatário seu filho Antônio Raposo Tavares juntouse à Câmara para declarar guerra justa contra os espanhóis em 1628 sem saber que no mesmo momento o rei espanhol dava ordens militares de mesmo sentido Nesse exato momento surge em São Paulo um providencial representante do acaso Luis de Céspedes Xería havia sido nomeado governador do Paraguai em 1625 Devido à invasão da Bahia pelos holandeses a sua viagem foi repleta de peripécias e contratempos Depois de roubado e preso o governador desembarcou no Rio de Janeiro em 1628 Ali acabou acertando um casamento com Vitória de Sá bisneta de Estácio de Sá e irmã do governador Martim de Sá Luis de Céspedes também nada sabia das ordens de seu rei A fim de alcançar o quanto antes os seus domínios resolveu cortar caminho por São Paulo aonde chegou em junho de 1628 três meses antes de o soberano espanhol conclamar à punição dos paulistas Partiu quase ao mesmo tempo que as tropas formadas por Tupi aliados e moradores Em Guairá no centro da área de reduções escreveu ao superior das missões padre Antonio Ruiz de Montoya pedindo que organizasse uma comitiva para visitálas Ficou furioso com a recepção que lhe deram Recebi míseros 15 índios com duas canoas5 Foi um momento crítico Houve pequenas escaramuças militares em três reduções com duas vitórias espanholas e um máximo de 14 mortes se admitidas todas as relacionadas pelos jesuítas Mas a conjunção da presença de um governador das tropas paulistas e do apoio dos moradores locais reforçou o discurso repetido por todos os atacantes o padre Montoya era um falso caraíba a prometida Terra Sem Mal não existia e os moradores das reduções já não eram guerreiros mas apenas covardes O padre Montoya sabia que era visto como caraíba Entre os Guarani corre o boato de que eu sou TepãEté o verdadeiro Deus Sabia também das vantagens ser ouvido como Deus e desvantagens ser morto em caso de mentir da posição Perdeu parcialmente a guerra das palavras Os padres Stuck e Mansilla autores de uma denúncia contra os paulistas mostraram o efeito das palavras destes entre os índios das reduções Devido ao que ouviram imaginam que somos traidores e que temos relações secretas com os portugueses e por isso andam em grupos procurando os padres para os matarem6 As palavras mostraramse mais eficazes do que as armas Se os mortos foram 14 as dissensões levaram 60 mil índios a abandonar as reduções Todo o conjunto de missões do Guairá foi desarticulado Com vistas a salvar as reduções mais antigas nas quais toda uma geração havia crescido em contato com os padres e onde a palavra destes não foi posta em dúvida Montoya chefiou a transferência de todos para uma nova Terra Sem Mal no vale do rio Uruguai No sentido inverso desfizeramse as vilas espanholas de Guairá e Vila Rica com os moradores transferindose para São Paulo com todos os aliados nativos que puderam levar Essa vitória ampliou de forma exponencial o território governado pelos moradores da vila de São Paulo e seus aliados nativos Uma vasta área que incluía os territórios dos Caingangue e dos Guarani o espinhaço central e as bacias leste dos rios Paraná e Paraguai passou a ser incluída no domínio paulista Na própria São Paulo quase metade da população da vila era de espanhóis e Guarani Sem nenhuma ação do governogeral contra o rei apenas pela ação dos moradores marginalizados legalmente crescia o domínio português numa época crucial CAPÍTULO 10 Governos da Holanda O INVESTIMENTO HOLANDÊS PARA IMPLANTAR UM GOVERNO NO BRASIL SEGUIU UM caminho único organizandose em torno de uma empresa a Companhia das Índias Ocidentais fundada em 1621 Esta reuniu capital com a venda de ações e tinha o lucro como objetivo assim o governo de novas terras era um meio de obtenção de renda Mas a organização tinha outras peculiaridades A formação da empresa era parte de um longo esforço de guerra pelo qual o país tentava libertarse da Espanha E a guerra tinha fundamentos religiosos na medida em que a Igreja calvinista se constituíra em religião oficial do Estado holandês Por causa disso o governo era acionista e a Igreja tinha papel dominante na condução da companhia Os primeiros anos de sua existência foram de altos e baixos em decorrência da modalidade de atuação escolhida a pirataria Essa opção por sua vez deviase ao fato de os holandeses contarem com muitos navios armados e pouca gente para os empreendimentos de longo prazo Dadas essas condições em certo momento o Brasil passou a ser visto como alvo promissor de um ataque Em 1624 uma esquadra da companhia investiu contra a cidade de Salvador que foi tomada e devidamente saqueada os armazéns repletos e as alfaias de prata das igrejas acabaram pagando com lucros a parte inicial do plano Pelos cálculos dos invasores a tomada da capital obrigaria os moradores da região a vir comerciar na cidade onde teriam de pagar o que lhes fosse pedido pelas mercadorias trazidas na frota aumentando o lucro da incursão Mas as coisas não saíram conforme o planejado A imensa maioria dos moradores refugiouse no interior Ali havia todo o necessário para viver bem e também reservas de tropas a serem mobilizadas Assim foram organizados grupos de índios e europeus que fustigavam os invasores toda vez que estes se aventuravam fora da cidade Em consequência os invasores é que ficaram na dependência do abastecimento naval Por isso não foi difícil para uma frota lusoespanhola forçar a retirada dos holandeses em 1625 No caminho de volta alguns navios atracaram na Paraíba encontraram um grupo Tupi que os recebeu amigavelmente e levaram cinco nativos para serem devidamente educados em outros moldes Os indígenas foram entregues a pastores que então viviam momentos de transição As doutrinas protestantes eram fundadas na exegese do texto bíblico Exigiam a adesão consciente a uma interpretação dele algo que desde Jean de Léry era evidente que estava fora do alcance de povos iletrados O primeiro território de contato maciço de missionários reformados com nativos americanos havia sido os Estados Unidos e desse contato não resultaram exatamente conversões e compreensão como notou a historiadora Betty Wood Os puritanos passaram a interpretar o comportamento dos nativos de modo a reforçar sua imagem de bárbaros ou incivilizados Estes não só ameaçavam a civilização inglesa como punham em risco a própria sociedade puritana Os colonos passaram a dizer que os nativos teriam recebido a custódia da terra de Deus mas eram incapazes de ter noção exata das finalidades para as quais ela foi criada de modo que podiam ser declarados como tendo perdido o direito sobre a terra onde estavam1 Essas justificativas teológicas serviram de fundamento a várias políticas proibição de casamentos interraciais guerras de extermínio tratamento dos nativos como membros de nações inimigas nada muito diferente do que os católicos faziam no sul do continente com a exceção dos casamentos de aliança A presunção de maior humanidade protestante no início do século XVII aplicavase mais à escravidão Esta era quase inexistente nos Estados Unidos e considerada em geral como instituição selvagem e ao gosto do primitivismo católico Alinhados a essa posição os estatutos da Companhia das Índias Ocidentais revistos por pastores proibiam expressamente que a empresa se dedicasse ao tráfico de escravos Enquanto a Companhia das Índias Ocidentais procurava se consolidar chegou uma grande notícia o almirante Peter Heyn conseguira 85 toneladas de prata ao atacar a frota anual que levava para a Espanha a produção de toda a América Com isso os planos para atacar Pernambuco foram acelerados A frota com 67 navios e 7 mil soldados vinha preparada para uma campanha prolongada Depois de algumas tentativas os invasores conseguiram tomar Olinda e Recife Repetiram o procedimento de saque e devastação das igrejas e armazéns Tal como havia ocorrido na Bahia os moradores que puderam se retiraram para o interior A produção de açúcar passou a ser despachada de portos alternativos Diante da paralisia econômica os holandeses adotaram uma medida drástica arrasaram Olinda a fim de diminuir as guarnições necessárias Expulsaram definitivamente tanto os padres regulares como os pertencentes às ordens dos jesuítas franciscanos carmelitas e beneditinos que viviam em mosteiros Os jesuítas foram presos e mandados para a Holanda No entanto não agiram com o mesmo rigor nos aldeamentos Durante a estadia na Holanda os nativos Potiguar não apenas se converteram mas mostraram que fazia sentido para sua cultura a vida regrada em torno de uma igreja e assim se tornaram arautos de uma outra modalidade de aliança com o apoio das autoridades holandesas Tal como os jesuítas os governantes declararam os índios livres por direito natural algo que não acontecia na América protestante Além de ampliar o escopo da doutrina isso tornou possível uma ajuda essencial Os convertidos convenceram muitos parentes a lutar ao lado dos holandeses de forma que não demorou muito para que um terço das tropas em combate fosse de índios Potiguar Essa ajuda foi essencial para que as tropas holandesas treinadas para lutar em condições europeias se adaptassem aos ataques de guerrilha e ações na mata dos adversários Com isso depois de dois anos de cerco alterouse o equilíbrio das forças A área de produção no interior foi invadida e os engenhos foram tomados A resistência foi sendo quebrada de ponto em ponto Até o final de 1636 toda a vasta área de domínio dos pernambucanos do Maranhão até a foz do rio São Francisco caiu sob domínio holandês Por todo o período praticamente nenhuma ajuda veio de fora O domínio do território trouxe a necessidade de reestruturar o governo dos holandeses Enquanto a emergência militar presidia as ações tudo se justificava pela lógica dos combates dos saques aos aprisionamentos as ações governativas eram decididas por uma junta de autoridades militares políticas e eclesiásticas A vitória significou não apenas o fim das oportunidades fortuitas como a necessidade de reiniciar a produção que havia sido desarticulada E isso teria de ser feito nos moldes empresariais que estavam por trás de todo o empreendimento A mudança de atitude foi decidida nas assembleias da Companhia das Índias Ocidentais nas quais os acionistas e os pastores que votavam nem sempre tinham os mesmos objetivos em mente Havia vários dilemas a resolver Do ponto de vista do negócio o problema era o de fazer mais investimentos bem num momento em que as fontes de recursos que sustinham a empreitada os saques começavam a rarear Além disso para retomar a produção seria preciso agregar gente e capacidades algo mais complexo do que construir uma nova infraestrutura uma vez que os prédios e instalações dos engenhos haviam sido preservados Como não havia gente nem capacidade entre soldados era necessário encontrálas onde fosse possível Para atrair operadores de engenho e mão de obra alguma oferta deveria ser feita Também havia impasses entre os acionistas religiosos a Igreja calvinista era parte do governo de modo que os pastores esperavam algum tipo de ganho no terreno das almas Por isso tinham apoiado medidas repressivas como a interdição de missas católicas em lugares públicos e com portas abertas apenas os cultos tinham essa permissão Em suma queriam conversões Mas enfrentavam diante dos católicos que falavam português os mesmos obstáculos que os afastavam dos nativos dificuldades de língua e de métodos para mostrar a verdade revelada a partir do texto sagrado pois os moradores eram quase todos analfabetos Não queriam relaxar o tratamento aos recalcitrantes tinham muito pouca disposição para permitir a livre prática do catolicismo e facilitar negócios com os seguidores dessa fé A solução de compromisso foi entregar o governo de Pernambuco a um nobre holandês o príncipe Maurício de Nassau Ele tinha prestígio suficiente entre os acionistas para receber uma delegação contratual de autoridade que lhe permitiria decidir com autonomia Como o acordo também lhe propiciaria muito dinheiro ele contratou uma corte inteira de serviçais para acompanhálo médicos naturalistas pintores administradores artesãos e até lavadeiras O príncipe atraiu ainda um grupo muito especial os judeus sefarditas de Amsterdã com suas conexões seus conhecimentos do mercado e seus capitais assegurandolhes um ambiente de tolerância religiosa de modo que puderam instalar no Recife a primeira sinagoga das Américas Essa tolerância não foi bemvista pelo clero calvinista da cidade Por algum tempo os religiosos acusaram os judeus de controlar o comércio e a produção de açúcar e açambarcar as melhores oportunidades de negócio Mas o máximo que obtiveram foi a restrição de que os cultos ocorressem em ambiente fechado Quanto aos católicos os cultos públicos foram efetivamente proibidos apenas no Recife onde os fiéis só podiam assistir a missas em recintos fechados da mesma forma que os judeus nas sinagogas Mas a política para o interior foi de cegueira ostensiva autoridades soldados e pastores fingiam não ver toda espécie de rito nas vilas e engenhos desde as missas solenes até as procissões com índios e os cultos africanos Tais atos eram duros de engolir pelos pastores mas a necessidade de integrar todos à produção falou mais alto A pregação protestante acabou avançando sobretudo nos aldeamentos Ali aproveitaram as capelas simples e sem aparatos para os cultos Havia nativos já convertidos que pregavam em nhengatu a língua geral TupiGuarani e logo dois pastores holandeses se mostraram capazes de fazer o mesmo com grande sucesso As idiossincrasias locais acabaram indicando um caminho adaptado às condições existentes Nassau ajudou na produção de uma cartilha trilíngue holandês nhengatu português que era distribuída como instrumento para tentar firmar uma conversão consciente baseada na leitura da Bíblia como era da raiz do protestantismo Somando tudo a ação de Maurício de Nassau foi suficiente para permitir que a complicada engrenagem religiosa gerida pelo trio governo companhiaigreja girasse sem atritos nem solavancos excessivos e que ele concentrasse a atenção na tarefa de reorganizar a produção Ele acelerou a redistribuição dos engenhos tomados a novos proprietários privilegiando os que tinham conhecimento anterior e capacidade de reunir a mão de obra essencial para produzir cana e açúcar Havia muito a fazer pois a produção despencara para um terço do volume anterior à instalação do novo governo Em seguida Nassau atacou depressa um ponto essencial os combates haviam desarticulado as equipes treinadas que movimentavam o complexo maquinário dos engenhos que não eram formadas apenas por técnicos A produção dependia de trabalho de equipes em turnos e a maioria desses trabalhadores era de escravos africanos Nassau não hesitou em passar por cima dos estatutos da empresa que proibiam o tráfico Uma das suas primeiras providências foi a de enviar uma esquadra com tropas mistas de índios e soldados para tomar o forte de São Jorge da Mina o maior entreposto escravista português na África No primeiro ano de sua gestão os desembarques dobraram Pastores e empresários que formavam o Conselho dos 19 órgão máximo de direção em Amsterdã entenderam que as necessidades da produção estavam então muito acima de eventuais considerações religiosas de modo que mais essa adaptação se fez com pouco ruído No que de fato interessava os objetivos de produção da Companhia das Índias Ocidentais logo foram atingidos Já em 1642 depois da tomada de Angola as entregas de escravos africanos em Pernambuco atingiram 14 mil cativos e a produção recuperou o nível anterior à invasão Como se tratava de uma companhia a expectativa era a de que a elevada produção resultasse em lucros no balanço mas o que se viu foi exatamente o contrário E esse balanço trazia uma totalidade complexa assim descrita pelo historiador Niels Steensgard O governo era gerido como um negócio não como um império Garantindo a sua própria proteção as companhias não apenas se apropriavam de tributos mas também se tornavam capazes de determinar a qualidade e o custo da defesa Este era trazido para a órbita do custo racional e não deixado ao sabor dos atos de Deus e dos inimigos do rei2 Na órbita do custo racional as despesas com defesa do governo holandês no Brasil eram bem maiores que as necessárias para manter a raquítica máquina do governogeral português A defesa holandesa era garantida por uma tropa remunerada de europeus que lutavam contra exércitos organizados por conta de moradores que não custavam um real ao governo português O governo holandês era caro em relação ao português porque pagava em dinheiro uma despesa que sempre fora coberta pelos moradores Essa realidade aparecia no balanço da companhia como despesa e os acionistas esperavam recuperála como lucro por meio da cobrança de impostos dos produtores Mas também pelo lado desses produtores havia outro problema no balanço da companhia Para recolocar as moendas em funcionamento não bastou o dinheiro dos investidores da Holanda Muitos dos novos proprietários julgaram prudente comprar escravos e instrumentos a crédito e a companhia aceitou bancar os pedidos com seu caixa Depois os novos senhores conseguiram financiar o custeio das safras com a companhia Sob o governo português eles mesmos bancavam tudo isso Quando chegou a produção e fechouse afinal o balanço veio o susto o déficit resultante dos custos de defesa financiamento de escravos e custeio das safras era alarmante Da análise do balanço nasceu uma crise de governo os acionistas ficaram descontentes com a pouca disposição do príncipe para sair cobrando dívidas dos produtores e decidiram que era hora de fazer caixa Nassau foi chamado de volta e os novos administradores saíram executando dívidas dos mercadores do Recife que apertaram os comerciantes do interior que apertaram os produtores que reagiram de modo inesperado Chefiada por João Fernandes Vieira o segundo maior devedor da companhia uma revolta explodiu em 1645 Em poucas semanas todo o território do interior tão duramente conquistado foi perdido O governo holandês viu o seu espaço de domínio limitado ao Recife e o balanço da Companhia das Índias Ocidentais foi acumulando registros de prejuízo em praticamente todos os empréstimos feitos a empresários além de refletir o aumento nos custos de defesa Os empresários holandeses não perderam tudo Os anos de experiência foram suficientes para que percebessem a elevadíssima produtividade comparada à época do trabalho escravo organizado em turmas Muitos se mudaram para o Caribe onde a produção de açúcar era entremeada com a de tabaco e milho em pequenas propriedades Aonde chegavam mudavam tudo depressa O historiador Eric Williams narra um dos muitos casos Os holandeses expulsos do Brasil chegaram a Barbados para ensinar aos habitantes os segredos da cultura e da manufatura do açúcar Havia 11 mil proprietários na ilha por volta de 1667 estavam reduzidos a 745 e o número de escravos elevado de 6 mil para o formidável número de 82 mil o que fez da ilha a mais preciosa pérola da Coroa britânica3 O mesmo ocorreu em todo o Caribe e até mesmo nos Estados Unidos onde judeus saídos de Pernambuco compraram a ilha de Manhattan Em pouco tempo toda a produção foi adaptada para o trabalho de grandes turmas de escravos em especial nas plantações de tabaco da Virgínia Essas mudanças na estrutura produtiva de toda a América a partir de variações de um mecanismo desenvolvido no Brasil marcam duplamente um novo momento No cenário econômico do continente mercantilismo e escravismo serão as notas dominantes de uma forte concorrência entre territórios coloniais das diferentes nações que se engalfinharam em algum momento pelo domínio do Brasil mais a Inglaterra Todavia no cenário interno a partir da segunda metade do século XVII haverá um único governo central atuando no território aquele de Portugal Mais de um século e meio havia se passado desde o primeiro contato dos portugueses com a terra um século se passara desde a instalação formal do governogeral em Salvador Nesse longo intervalo a evolução política e econômica do Brasil acontecera num ritmo inverso ao da metrópole Esse contraste é atualmente conhecido em grandes números muito diferentes das suposições que formaram a base da interpretação dos clássicos Essa diferença de ritmos coloca em novas bases a avaliação do papel do governo metropolitano e de sua oficina brasileira o governo central CAPÍTULO 11 Economia colonial economia metropolitana e o lugar do Brasil QUANDO PASSOU A SER GOVERNADO PELA COROA ESPANHOLA EM 1580 PORTUGAL ainda era o mais avançado centro de navegação do planeta seus navios mantinham domínios no Brasil na costa africana na Índia em Macau e no Japão O país só viria recuperar a independência política em 1640 e estabilizarse como nação soberana em 1661 ao assinar um tratado de paz com a Holanda No intervalo perdeu o domínio da tecnologia naval para a Inglaterra sobretudo devido à invenção do cronômetro e ao cálculo da longitude e a maior parte das suas possessões africanas e asiáticas Tornarase apenas uma potência secundária no cenário europeu A evolução brasileira seguiu um rumo oposto Em 1560 o domínio português mal e mal firmarase em três pontos isolados no imenso litoral Pernambuco Bahia e São Vicente Além desses locais sobreviviam os assentamentos do Espírito Santo Porto Seguro e Ilhéus Havia apenas uma vila no interior São Paulo Todo o restante do litoral na vasta faixa que se estendia desde o Amazonas até o Rio de Janeiro era na prática território de negócios franceses Pelo interior do continente havia uma sólida base espanhola em Assunção a partir da qual se negociava ervamate no território dos atuais estados do Mato Grosso e Paraná além de fornecimentos variados para Potosí A expansão de domínio territorial e negócios a partir de cada um dos pontos centrais da aliança entre Tupi e portugueses foi notável Começando por Pernambuco em 1550 o domínio restringiase às cercanias de Olinda Nos setenta anos que se seguiram de Pernambuco partiram os conquistadores da Paraíba Rio Grande do Norte Ceará Maranhão e Pará O conjunto absorveu o impacto da invasão holandesa preservando o espaço amazônico Depois de 1645 todo esse território com exceção de Recife voltou a ficar sob domínio dos pernambucanos E tudo por obra dos moradores locais Da Bahia partiram incursões de criadores de gado com as quais ficou assegurado o domínio de todo o vale oeste do rio São Francisco A produção do Recôncavo baiano se diversificou com o cultivo do tabaco outra herança Tupi Em meados do século XVII Salvador abrigava 30 mil habitantes uma população equivalente à de uma grande cidade europeia e 70 mil moradores se distribuíam pelas vilas do interior Perto de uma centena de engenhos de açúcar instalados estavam em funcionamento na região Em 1580 mal e mal os moradores de São Paulo navegavam o Tietê Em 1661 os paulistas mantinham negócios com os nativos em toda a bacia oriental do PrataParaná área dos atuais estados do Paraná São Paulo Mato Grosso do Sul e Mato Grosso nos vales do Araguaia e Tocantins Goiás Tocantins e Pará nos vales dos afluentes do Tietê e na região dos formadores do rio São Francisco Minas Gerais Na esteira da expansão fundaram uma dezena de vilas pelo interior nas quais se fixaram algo como 50 mil pessoas Outro ponto de expansão se formou após a fundação do Rio de Janeiro em 1565 mas não na direção do interior graças a Salvador Correia de Sá o maior empresário brasileiro do século XVII Ainda jovem foi a Assunção levar a irmã que iria se casar com o governador Luis de Céspedes Xería Convidado para participar de incursões contra nativos locais virou herói em Tucumán onde se casou com uma rica herdeira A fim de ampliar os negócios da mulher foi até Potosí o centro da mineração de prata e de toda economia mercantil da América do Sul De volta ao Rio de Janeiro estabeleceu uma rede de trocas alternativa à dos paulistas pelo interior comprava escravos em Angola e os vendia para os espanhóis em Buenos Aires acumulando lucros sob a forma de moedas de prata Com a Restauração em 1640 conseguiu ser designado por D João IV para reconquistar Luanda que havia sido tomada pelos holandeses Com um exército de índios reunido no Rio de Janeiro para lutar na África ele cumpriu a missão e foi nomeado governador o primeiro de uma série de nativos da colônia a ocuparem o posto Remontou a estrutura de tráfico de escravos com capitais brasileiros de modo que toda a economia africana das possessões portuguesas se tornou uma extensão dos negócios de comerciantes estabelecidos na colônia brasileira A expansão internacional viabilizou a instalação local de meia centena de engenhos de açúcar alguns ao redor da cidade do Rio de Janeiro e a maioria na região de Campos dos Goitacazes O conjunto de atividades gerou volume de negócios suficiente para Salvador de Sá entrar em novos empreendimentos Na década de 1650 criou um estaleiro na ilha do Governador e nele iniciou com a contribuição de carpinteiros indígenas a construção do maior navio do mundo da época o galeão Padre Eterno Investimentos como esse exigiam muito capital O comércio com Buenos Aires e as incursões paulistas pelo vale do Paraguai constituíam uma rede de captação de prata e os indivíduos enriquecidos pelo interior deixaram de ser apenas aqueles casados com muitas mulheres índias e donos de muito gado e muitos títulos de terra Tanto quanto os produtores de açúcar e os comerciantes do litoral o surgimento de fortunas monetárias sob a forma de prata refletia uma acumulação de capital nos circuitos econômicos internos da América A prata originária da área espanhola não só permitia a acumulação de capital no interior do continente mas era essencial para manter a produção exportadora A expressão mais artística dessa forma de riqueza sobrevive até hoje em muitos pontos do país na miríade de objetos sacros de prata do século XVII Não se tratava apenas de religiosidade mas também de uma maneira de os proprietários de capital colocarem essa riqueza fora do alcance do Fisco o que leva à peculiar administração da Igreja pelo governo português Embora não permitisse que organizações religiosas tivessem propriedades com privilégios de nobreza na colônia o governo admitia exceções protegidas do Fisco estavam as riquezas incorporadas em objetos sacros das Santas Casas e das Ordens Terceiras do clero regular Graças a isso tais instituições puderam atuar como bancos Tinham capital em prata e emprestavam a juros transformandose em financiadoras da produção inclusive do açúcar e do tráfico de escravos As análises dos balanços feitas posteriormente revelaram indícios fortes de uma contínua acumulação de capital no século XVI e na primeira metade do XVII Essa lógica de acumulação conferia unidade à expansão contínua da aliança entre portugueses e Tupi Em 1661 essa aliança preservava o domínio dos negócios e o controle territorial em uma área que no caso do litoral estendiase desde o Amapá até o sul de Santa Catarina No interior essa expansão havia sido ainda mais intensa A partir de São Paulo os domínios continuaram a se dilatar Surgiram negócios com toda a área Jê do Espinhaço Central a mineração e a criação de gado levaram à ocupação do leste do Paraná em 1680 os paulistas fundaram Laguna no sul de Santa Catarina A partir de Pernambuco os domínios haviam se ampliado pela margem esquerda do São Francisco com os currais chegando ao Piauí no final do século XVII Após a fundação de Belém pelo grupo que tomou o Maranhão em 1620 as alianças com os Tupi permitiram acelerada expansão pela bacia amazônica avançando pelos vales dos rios Negro Tapajós e Araguaia Tocantins Em 1639 Pedro Teixeira comandou um grupo que chegou até Quito no Equador Uma figura interligou simbolicamente todo esse território Antônio Raposo Tavares estava entre aqueles que desarticularam as reduções espanholas em 1629 em seguida participou de uma incursão ao Rio Grande do Sul lutou contra os holandeses desembarcou no Rio Grande do Norte em 1639 e percorreu 3 mil quilômetros pelo sertão nordestino até chegar a Salvador Partindo de São Paulo em 1648 embrenhouse pelo território Guarani atravessou o Pantanal matogrossense adentrou o espaço da atual Bolívia atravessou o divisor das bacias do Prata e do Amazonas desceu o Guaporé e o Madeira e foi dar em Belém três anos e 18 mil quilômetros depois da partida Marcou assim novos limites interiores da área controlada pela aliança que agora era dos TupiGuarani com os portugueses Diante do acentuado contraste nos ritmos econômicos do Brasil e de Portugal nesse período duas perguntas se impõem qual a relação existente entre as economias da colônia e da metrópole Qual o papel dos governos nessa realidade Uma resposta adequada à primeira pergunta mostra hoje muita produção local contrabando de moeda com a área espanhola para formar reservas metálicas que eram o capital da época e financiar a expansão Tudo confirmado pelo novo tratamento de dados documentais extraídos de contratos testamentos documentos fiscais ou contábeis Essas demonstrações de acumulação crescente de riqueza e desenvolvimento só ganham sentido para explicar esse período quando combinadas com as conclusões de antropólogos sobre a capacidade de produção de excedentes nas sociedades TupiGuarani desde os primórdios da aliança as trocas comerciais com as sociedades nativas eram em escala suficiente para permitir a acumulação de riqueza sob a forma de dinheiro e capital nas vilas Essa acumulação derivava sobretudo de várias atividades da produção interna pecuária agricultura alimentar farinhas feijão etc indústrias manufatureiras como tecelagem de algodão ou metalurgia do ferro transportes etc Mesmo na área exportadora algumas das maiores fortunas monetárias foram obtidas por criadores de gado e comerciantes da produção local alguns deles chegaram a reunir fortunas maiores que as dos senhores de engenhos Os estudos quantitativos revelam que todas as atividades internas ou externas geravam riquezas que os mais ricos em todas as localidades eram os comerciantes E que os mais ricos entre os comerciantes eram os traficantes de escravos africanos Os produtores agrícolas na exportação ou no mercado interno tinham fortunas menores Em áreas mais distantes da exportação como São Paulo as grandes fortunas monetárias eram obtidas a partir das trocas com os nativos e com a área espanhola vinculada à mineração da prata Tudo isso permite mostrar um retrato muito diferente não apenas nas áreas de governo Tupi mas também naquelas das vilas do sertão daquele obtido com o emprego da noção de economia de subsistência unanimemente adotada pelos clássicos Tal noção gerou a descrição tradicional da economia das vilas ou do sertão nesse período como sendo uma economia de baixa produtividade incapaz de gerar excedentes sem dinâmica mercantil ao mesmo tempo que atribuía toda a dinâmica mercantil ao setor exportador Um único dado basta para mostrar que nesse período o setor exportador não era capaz de gerar dinâmica no mercado interno a produção de açúcar no Brasil em 1624 ano da primeira invasão holandesa foi de 960 mil arrobas esse volume somente seria atingido novamente mais de um século depois em 1737 quando foram produzidas 937 mil arrobas E os preços caíram continuamente na maior parte do período de 17 milréis por arroba em 1637 para 778 réis por arroba em 1689 Desse modo a grande expansão da área de domínio e também da riqueza mostradas pelos estudos quantitativos como existente desde o século XVI só pode ser devidamente explicada com uma radical mudança na forma de se entender tanto a produção interna como os governos e a vida no sertão Ainda que se ressalve o acentuado crescimento da produção de açúcar entre 1580 e 1624 quando o produto tornouse o mais importante das trocas entre as Américas e a Europa os levantamentos quantitativos sugerem que não há como sustentar o conceito de uma economia colonial dual formada por um setor interno sem dinâmica mercantil e um setor exportador concentrando o aspecto acumulador da produção Quando se reconhece na economia nativa a capacidade de gerar excedentes e a circulação desses excedentes tudo muda O que então se nota graças aos novos conhecimentos é um contínuo de acumulação que começa nas trocas de ferro entre tribos sem contato direto com europeus passa pelos ranchos nos quais os produtos eram guardados para serem trocados por ferro quando viessem parentes aliados desses grupos Tupi nativos ou moradores de vilas continua na atividade local de produção das vilas metalurgia gado etc na acumulação de dinheiro que financiava a produção exportadora e segue para além do espaço da aliança com o controle do tráfico de escravos africanos pelos capitais brasileiros ou o envio regular de navios com escravos para Buenos Aires e as trocas de prata pelo interior completando um circuito multinacional de acumulação centrado no Brasil Tal retrato econômico implica igualmente a necessidade de uma revisão sociológica A noção de economia de subsistência associada ao conceito de uma dualidade radical entre produção interna desprovida de dinamismo e setor exportador acumulador acabou por gerar uma série de definições dos papéis sociais segundo as quais a escravidão africana seria o indicador maior de dinâmica produtiva e portanto a clivagem central para entender a estratificação social e as disputas de classes pelos resultados da produção Para essa análise tradicional a sociedade do sertão seria apenas um conjunto indistinto de pessoas que viviam em regime de subsistência enquanto a produção exportadora concentraria a geração de excedentes significativos e portanto toda acumulação de capital seria fruto da espoliação daquilo que os escravos produziam para os seus senhores Nada disso porém faz muito sentido em face das descobertas mais recentes possibilitadas pelas novas metodologias Uma tradução sociológica mais acurada dessas descobertas tem de levar em conta uma gama de frações acumuladoras Havia aquelas realizadas por agentes que funcionam como produtores coletivos no caso dos excedentes gerados por nativos Mas a maior fração da produção econômica colonial cabia aos produtores independentes donos de seus meios de produção e tomadores de risco ou seja aos empreendedores Do ponto de vista sociológico os estudos quantitativos mostram que a unidade produtiva mais comum era a pequena posse largamente dominante ou propriedade seja individual ou familiar em múltiplas formas um curral de gado no sertão uma pequena roça próxima de uma vila os ganhos nas caravanas de trocas com nativos tecelagem artesanal venda de quitutes nas ruas nas vilas maiores pequeno comércio transporte trabalhos especializados fundição de ferro carpintaria construção etc Até o século XVII a regra praticamente geral era a de produzir tudo isso sem o emprego de escravos nas vilas espalhadas pelo vasto território da aliança Apenas nos maiores centros exportadores havia a presença da mão de obra cativa e mais cara em trabalhos competitivos com os empreendedores independentes Com tal retrato econômico e sociológico se pode avaliar de outra forma o papel dos diversos governos atuantes no período CAPÍTULO 12 Governo central e economia ASSIM COMO CONCENTRAVAM VALOR EXPLICATIVO NO SETOR EXPORTADOR OS clássicos focavam inteiramente na esfera central de governo a Coroa e o governogeral como a única relevante na determinação dos rumos da colônia Os novos conhecimentos obrigam a uma nova mirada sobre tal pressuposto tão unânime como a aplicação da noção de economia de subsistência Uma das maneiras mais simples para avaliar qualitativamente a atuação da esfera central de governo na economia do período é examinar o modo como operava os seus recursos financeiros captando impostos e gastando com serviços Desde o início do domínio espanhol em 1580 até pouco além da retomada da normalidade com o tratado de 1661 no final do século XVII os dados disponíveis mais constantes referemse na prática ao governo português como um todo no âmbito do império do qual o Brasil fazia parte No que tange às receitas que o império português obtinha com o Brasil o mais relevante eram as exportações da colônia E isso porque o governo central a soma de governo geral no Brasil com o metropolitano captava dinheiro de impostos da economia brasileira basicamente nas alfândegas locais ou na de Lisboa e sobretudo após a retomada de Angola em 1641 dos traficantes brasileiros que faziam negócios na África No princípio o rendimento com o Brasil era relativamente insignificante no contexto do império Em 1607 quando a produção exportável ainda estava sendo organizada as receitas brasileiras representavam apenas 5 do total arrecadado no vasto império mundial Nessa altura é provável que houvesse certo equilíbrio entre despesas e receitas e a ação econômica da esfera central na economia local seria de relativa neutralidade Em 1681 pouco depois da estabilidade as receitas tributárias extraídas do Brasil representavam metade de toda a arrecadação do império português Proporcionalmente a colônia passou a pagar dez vezes mais impostos do que no início do século Desde que o balanço com as despesas fosse preservado isso não seria problemático Mas não foi o que aconteceu No final do século XVII o Brasil fornecia cerca de 60 da receita tributária global de Portugal enquanto as demais partes do império ultramarino as possessões africanas com destaque para Angola onde traficantes brasileiros pagavam impostos além de uns poucos domínios asiáticos restantes forneciam 20 No total 80 das receitas tributárias do império vinham das possessões e apenas 20 dos moradores metropolitanos Naquilo que se refere às despesas 75 delas eram realizadas no Reino e 25 no ultramar Nesse cenário na melhor das hipóteses gasto zero na África e Ásia dois terços daquilo que os brasileiros pagavam em impostos eram transferidos para fora e gastos na economia metropolitana ou em outras partes do império Em outros termos ao longo do século XVII o governo central português se transformou numa máquina que extorquia muitos impostos e gastava apenas uma fração do arrecadado na economia brasileira Do ponto de vista fiscal o Brasil foi transformado naquilo que o rei D João IV definiu com total clareza como a vaca leiteira do Reino Essa mudança radical da posição do Brasil no cenário das finanças públicas do império português era um reflexo direto da decadência deste no cenário internacional durante o período Em 1621 sob quatro décadas de domínio espanhol as receitas ultramarinas e as despesas globais portuguesas ainda mantinham certo equilíbrio Apenas sete anos depois em 1628 as receitas alfandegárias haviam caído 30 e as da Casa da Índia se reduzido praticamente a zero A primeira reação do governo foi contratar empréstimos para cobrir o rombo na esperança de uma retomada Nesse primeiro momento a Coroa também aumentou os impostos pagos pelos metropolitanos Em 1632 no auge da crise da invasão holandesa os reinóis pagaram impostos para fornecer 58 das receitas Ainda assim a situação relativa lhes era favorável Somando receitas e despesas desse ano os metropolitanos pagaram 58 dos impostos e receberam de volta 81 dos gastos uma diferença favorável de 23 financiada sobretudo com empréstimos e receitas asiáticas Aos poucos foi ficando claro que a retomada das receitas ultramarinas não estava no horizonte e também que a política tributária apontava numa direção clara entre 1621 e 1641 os impostos pagos pelos metropolitanos tiveram um aumento de 55 especialmente na região agrícola do interior Os gastos também mostraram uma direção clara 46 das despesas de 1641 foram para o pagamento de juros quase todos devidos à burguesia mercantil de Lisboa Esse aumento relativo dos ganhos de uma burguesia mercantil que não tinha mais acesso a boa parte de seus antigos mercados fora do reino e feito à custa da nobreza e do funcionalismo se expressava num dado o pagamento de juros superou as despesas de manutenção de funcionários e nobres que em 1641 chegaram a 35 dos gastos governamentais O balanço entre esses dois maiores beneficiários da despesa pública mudou radicalmente com a Revolução de 1640 que levou um português de volta ao trono Uma das primeiras medidas do novo governo foi uma forte diminuição da carga tributária na metrópole que passou a responder por pouco mais de 20 da receita total quase um terço da proporção vigente apenas oito anos antes A partir daí sobrevivendo como pôde o governo manteve o mesmo rumo aumentando impostos no Brasil e diminuindo o quanto possível o pagamento de juros para a burguesia lisboeta em 1681 ano em que os tributos brasileiros representaram 50 das receitas totais do reino o pagamento de juros representou 25 do total das receitas contra 46 do que era pago na época em que mudou a dinastia e aumentando o quanto possível os pagamentos a nobres e funcionários nesse mesmo ano alcançaram 40 das despesas eram 25 em 1641 Essa política fiscal mostra com clareza o sentido da ação metropolitana arrancar dinheiro da economia produtiva do Brasil e transferir o máximo possível para o funcionalismo e a nobreza agrária do interior da metrópole Para isso valia quase tudo Em 1647 dois anos depois do início da revolta no território holandês com os moradores do Brasil bancando toda a luta e a produção ainda desarticulada o governo metropolitano instalou cobradores de impostos na região para a qual não havia enviado soldados Pior ainda a política fiscal não era a única ação prejudicial ao desempenho da economia colonial A partir de 1649 como forma de compensar as perdas da burguesia comercial lisboeta o monarca determinou a criação da Companhia Geral do Estado do Brasil criada a partir de um empréstimo do Tesouro ou seja dinheiro do governo Os acionistas que se beneficiaram do dinheiro eram os que emprestavam ao governo que passou a lhes garantir um monopólio e expulsou os comerciantes menores da rota Como resultado do monopólio aumentaram os preços das mercadorias metropolitanas para o Brasil e diminuíram os pagamentos para produtores A eficácia também diminuiu muito nos primeiros tempos a empresa só conseguia mandar uma frota a cada dois anos interrompendo na prática as importações e exportações por longos intervalos No caso do tabaco o tratamento foi ainda mais feroz Em 1675 o monarca transformou o comércio do produto em monopólio real Os resultados produtivos foram ruins as exportações caíram de 100 mil arrobas nesse ano para 80 mil arrobas em 1690 O preço pago pelo monopolista régio aos produtores caiu de 2 milréis por arroba em 1674 último ano antes do monopólio para 12 milréis em 1700 nada menos que 40 Mas o essencial para os objetivos metropolitanos foi o fato de que cada arroba exportada rendia agora 213 milréis para o governo metropolitano 80 a mais do que recebiam os produtores Em escala menor o mesmo tipo de medida monopolista foi adotado numa das capitanias administradas diretamente pelo rei a do GrãoPará e do Maranhão Em 1681 o governo criou o monopólio de comércio para a capitania e no ano seguinte o repassou a um particular O aumento extorsivo do preço dos produtos trazidos de Lisboa e a queda violenta dos pagamentos aos produtores locais foi a consequência direta do monopólio Este só cessou em 1684 quando eclodiu uma revolta popular que forçou o governo a abandonar a ideia Mas nem por isso acabou a ordenha fiscal nesse nível intermediário de governo O primeiro capitãomor enviado conseguiu aprovar na Câmara um aumento dos impostos locais para compensar o alívio no comércio Em 1693 a arrecadação da capitania foi de 13 contos de réis os gastos de cinco e a diferença mandada para Lisboa A contínua transferência de recursos fiscais para o centro e a miséria nos investimentos do governo central na colônia torna muito difícil supor que essa esfera tenha de fato influência no crescimento da economia colonial Ainda que se argumente com o papel organizador da produção nos tempos de Mem de Sá e no período até a virada final do século XVII parece claro que o governo central foi no balanço geral dos dois primeiros séculos muito mais um obstáculo do que uma alavanca para o desenvolvimento Apesar disso um ponto deve ser considerado tal governo se impôs em meio a forte competição Houve tentativas de implantação de governos franceses e holandeses além de disputas diretas com o governo espanhol Bem ou mal com ou sem investimentos o governo central português foi capaz em meio a esses conflitos de assegurar uma área de domínio que se ampliou constantemente na maior parte das vezes por guerras e combates Nesses casos os moradores eventualmente tiveram opções Caramuru fez negócios com franceses e portugueses mas acabou atraído para a órbita do governogeral Os pernambucanos produziram sob ordenamento jurídico português e holandês e terminaram optando pelo primeiro Moradores espanhóis do Paraguai e portugueses de São Paulo oscilaram entre as duas ordens até que a portuguesa se estabeleceu em parte do território antes sob controle espanhol O vencedor em todos os casos foi um só Apesar de esses governos alternativos derrotados eventualmente serem menos prejudiciais do ponto de vista fiscal tiveram dificuldades para se estabelecer Os franceses por causa do específico momento de divergência religiosa os holandeses pelas dificuldades em manter o equilíbrio nos balanços de uma empresa que pagava as contas do governo e as necessidades da produção os espanhóis pela cessão de poderes aos inacianos que empurrou moradores para a aliança vitoriosa com o governo do outro lado da fronteira Com exceção parcial da expulsão dos franceses do Rio de Janeiro quando o governogeral arregimentou os índios que lutaram em nenhum dos outros a instância central teve sequer um papel secundário no resultado Os moradores de São Paulo e Assunção moldaram o cenário a seu modo os pernambucanos como dizia a Câmara de Olinda expulsaram os holandeses à custa de nosso sangue e fazendas bens A regra que vale para as lutas contra governos estrangeiros vale em grau maior ainda para toda a expansão rumo ao interior O governogeral não tinha meios para nada Tropas planos resultados tudo dependia das capitanias sobretudo Pernambuco e São Paulo dos moradores das vilas e dos nativos Por quase dois séculos o governo central português se limitou a cobrar muito em impostos devolver quase nada em serviços teve uma presença que praticamente se restringia à capital apenas os jesuítas funcionários públicos pagos pelo rei tiveram um papel no território como um todo Portanto para se entender a expansão interna mostrada pelas novas metodologias todo o desenvolvimento precisa ser entendido a partir dos governos intermediários das capitanias dos governos locais das vilas mas sobretudo dos governos consuetudinários em especial os TupiGuarani Para isso no entanto é necessária uma forte mudança de sinais No modo tradicional de contar a história não é apenas a economia que aparece segmentada entre um setor dinâmico e outro anêmico seja de nativos ou de moradores Sem acesso à visão de uma produção dinâmica permitida pela combinação dos estudos antropológicos e econométricos não era possível para esses historiadores perceber que os interesses derivados dessa riqueza inexistentes por definição devido ao uso da noção de economia de subsistência sustentassem formas próprias de governo Por não terem acesso aos interesses a história política derivada da visão de estagnação na economia de subsistência é aquela da quase total desconsideração das esferas descentralizadas de poder Assim como a história econômica tende a se confundir com a do setor exportador a história política dos clássicos se confunde muitas vezes com a história da instância central A constatação da existência de uma dinâmica econômica interna requer também na presença de um governo central que não contribuía para o progresso desse âmbito o entendimento de como os governos locais se portavam com relação ao desenvolvimento econômico Em vez da complementaridade surge então uma tensão gerada pela disputa por riqueza entre os moradores e os governos que eles controlavam ou influenciavam e o governo central Para que tal tensão seja percebida no entanto é necessário reconhecer o valor de uma série de instituições locais que representavam interesses locais reconhecimento totalmente ignorado pela formulação clássica Entre tais instituições estavam por exemplo as Santas Casas que eram formalmente instituições não governamentais locais para atender gratuitamente doentes sustentadas por doações dos moradores de uma vila Cada uma era independente da outra embora funcionassem de acordo com a mesma regra o dinheiro das doações era isento de tributos de modo que escapava da ação dos captadores metropolitanos Muita gente importante se aproveitava da brecha Ricos faziam doações muitas vezes grandes o suficiente para influírem na administração do patrimônio da entidade Tal patrimônio era muitas vezes aplicado em empréstimos e isso tornava as Santas Casas e as Ordens Terceiras sujeitas ao mesmo regimento nos bancos locais da economia A tensão entre os interesses do capital local mobilizado pelas Santas Casas e os interesses do governogeral podem ser medidas na situação da maior delas a Santa Casa de Misericórdia de Salvador Sua capitalização foi crescente desde a fundação nos tempos da instalação do governogeral na cidade O auge da crise portuguesa e das exportações brasileiras entre 1624 e 1650 coincidiu com um período áureo de capitalização com o recebimento de 128 contos de réis de legados Essa base sólida de capitalização permitiu empréstimos de 40 contos em 1650 A partir daí no período da máxima expansão fiscal do governo central uma conjunção de legados em queda com inadimplência em alta levou a uma crise na instituição Em 1675 os empréstimos haviam caído para 125 contos menos que no primeiro quarto do século Esse é apenas um exemplo relevante das tensões entre a capitalização interna da economia e a ação do governo central na direção contrária Mas a capacidade de pressão metropolitana por recursos fiscais era limitada Nos locais em que o governo central tinha dificuldade para arrecadar impostos como por exemplo em São Paulo os efeitos da ordenha e as tensões eram menores Como o governo local era relativamente muito mais poderoso as relações com o centro se revestiam de uma formalidade curiosa para os habitantes valia a pena fingir que obedeciam ao centro na via inversa os atos governamentais da Coroa se resumiam a trocar cartas pedindo favores com o dinheiro alheio e retribuindo com títulos de fidalguia totalmente simbólicos Um curioso resumo dessa situação aparece num documento que circulou na Corte em 1690 intitulado Apologia dos Paulistas Na parte positiva dizia que os paulistas são os verdadeiros exploradores do Brasil e nisso fizeram grandes serviços a Vossa Majestade com seu destemor e armas Mas a seguir vinha uma constatação de que eram gente incapaz de se reduzir a termos especulativos porquanto entre eles suas leis são as da sua conveniência Sem as possibilidades de pensar trazidas pela observância da lei escrita diz o texto podem ser facilmente manejados animandoos Vossa Majestade com a mercê de honrálos porque são ainda daquela inclinação dos primeiros moradores diante de qualquer pano vermelho que lhes mostravam1 Era sarcasmo mas sarcasmo capaz de permitir entender que o ponto definidor das relações entre o governo metropolitano e o governo local não era tanto o dos panos vermelhos vistosos na narração mas a constatação de que o governo efetivo da vila era aquele da conveniência mútua das partes Os panos vermelhos e os papéis de fidalguia permitiam um reconhecimento mútuo formal de costumes Os paulistas reconheciam a autoridade do rei como centro do poder o rei limitava sua atuação efetiva aos panos vermelhos Assim o governo efetivo exercido naquele espaço era apenas aquele dos moradores que sagrava seus costumes suas leis gravadas no coração Para saber como esse governo sancionava o progresso é necessário olhar em detalhe as relações entre ele e os costumes CAPÍTULO 13 Governos locais e costumes EM TERMOS FORMAIS TODOS OS GOVERNOS DAS VILAS ESTAVAM OBRIGADOS A SEGUIR as normas escritas pautando o governo de acordo com as Ordenações do Reino Porém como o faziam numa realidade que nada tinha a ver com o mundo ordenado dos valores medievais havia necessidade de adaptações A primeira vila do Brasil São Vicente foi criada em 1532 Após a partida do capitão Martim Afonso de Sousa os moradores assumiram o comando do próprio destino A economia andou o Porto dos Escravos manteve sua atividade de sempre ao lado de um engenho de cana de relativa prosperidade Os costumes também se mantiveram com os habitantes vivendo de acordo com as normas vigentes entre os aliados Tupi embora fossem donos da própria taba Poderiam muito bem ter deixado de lado os rituais eleitorais prescritos nas Ordenações do Reino ou a utilização da lei escrita mas não foi o que aconteceu também fazia parte da cultura local a busca do consenso comandada por um chefe ou a confiança nos poderes que lhe eram delegados em casos de guerra Assim é que as eleições continuaram a ser realizadas a cada três anos com os eleitos tomando posse e transmitindo o cargo aos sucessores Ninguém de fora se intrometeu no governo Com isso os vereadores aplicaram as leis a costumes que não eram bem aqueles definidos como apropriados pelo código João Ramalho viveu muito bem com suas 30 mulheres e nenhum vereador o perturbou Esses matrimônios do ponto de vista Tupi estavam dentro dos códigos dos bons costumes e da mais elevada moral Por causa dessas mulheres ele era respeitado não apenas na vila mas entre os membros dos muitos grupos Tupi que compunham as redes de aliados criadas pelos casamentos como figura poderosa e pródiga de bens e como líder capaz de comandar guerreiros que dominavam um vasto território Além disso era muito influente na vila Do ponto de vista social porque arranjara os casamentos de quase todos os moradores e soubera também fazer essas uniões ganharem um significado relevante no universo administrativo do governo local Tupi Do ponto de vista político porque sabia mobilizar a parentela nas eleições Do ponto de vista econômico porque sem seu beneplácito ninguém negociava com os nativos Por isso nenhuma autoridade se lembrou de enquadrar o potentado na lei portuguesa que ele transgredia de maneira evidente afinal João Ramalho era um homem casado na Igreja que abandonara a mulher legítima em Portugal para viver em pecado aberto Tal comportamento transgredia vários títulos das Ordenações de modo que o dever de quem velava por tal lei seria processálo e condenálo por tais desvios A primeira autoridade do governo central a lidar com o dilema foi o governadorgeral Tomé de Sousa Como já se viu esteve com João Ramalho em 1553 e viu com os próprios olhos que ele andava nu pelas ruas seguido por mulheres e filhos Notou ainda o enorme poder econômico e social que detinha Apesar de tudo o que viu em vez de julgar pelas transgressões explícitas preferiu levar em conta outros aspectos relevantes de sua missão Entre eles estavam as ordens para instalar os jesuítas no sertão a fim de que estudassem a melhor maneira de converter os nativos Tanto o governador como os padres resolveram esquecer certas determinações das Ordenações do Reino e tentaram atender os próprios interesses de governo Se o próprio governadorgeral mostrava tolerância os jesuítas não tinham por que agir de outro modo Instalados em Piratininga sob proteção de João Ramalho no princípio esforçaramse ao máximo para tratar bem seu protetor Em carta Manuel da Nóbrega faz uma avaliação positiva dele mencionando sua intenção de abandonar as mulheres nativas e trazer a legítima esposa de Portugal Todavia assim que perceberam a extensão de sua influência entre os nativos que não era exatamente na direção da monogamia nem da submissão à autoridade de padres foram mudando de tratamento Até 1562 quando o vereador João Ramalho comandou as tropas que salvaram a vila de um ataque Tamoio mostraramse comedidos Depois com o controle de toda a região nas mãos dos aliados Tupi dos portugueses os padres retomaram a preocupação moral e passaram a descrevêlo como um pecador contumaz que havia abandonado a mulher para levar uma vida devassa Por esse exemplo notase que um mesmo costume é objeto de tratamento muito diferente conforme a cultura em que está inserido Que as leis do costume Tupi não eram todas enquadráveis na lei escrita portuguesa Que dependendo das circunstâncias efetivas até mesmo os encarregados de fazer valer a lei escrita não podiam tudo Que a realidade dos costumes muitas vezes se impunha às normas codificadas E até mesmo que os costumes podiam dar um novo sentido positivo a tais normas como se viu no caso das eleições repetidas costume português que pegou no Brasil Onde quer que se criasse uma vila no Brasil a história se repetia eleições de três em três anos posse dos eleitos nova eleição transmissão do cargo Não há notícias de comportamento diverso em nenhuma vila da colônia apenas as quantificações são mais raras Também não há notícias de outro comportamento que não a tolerância mais aberta para conciliar as discrepâncias entre as prescrições do livro e a realidade O caso de São Paulo nome que a vila de João Ramalho recebeu depois de 1560 também serve de exemplo para outra regra havia rotatividade no poder Apenas entre 1596 e 1625 foram 222 pessoas diferentes ocupando cargos eletivos de governo quando o número de famílias na época o termo definia um agrupamento político no sentido aristotélico um chefe com sua mulher filhos criados e escravos não passava de 190 Um quinto dos moradores mais ricos jamais ocupou cargos enquanto pessoas que praticamente não deixaram bens em testamento o fizeram repetidas vezes João Ramalho entre elas Em todo esse período o isolamento foi a marca da vila apenas um ex governadorgeral ali se instalou e uma única autoridade ligada ao governogeral um juiz por lá passou alguns dias depois de meio século sem nenhuma visita de autoridades externas Apenas os jesuítas permaneceram Montaram aldeamentos os moradores entregavam os índios pregavam contra o pecado em que todos viviam e conseguiram influenciar alguns moradores Mas a regra da mistura de costumes e de enquadramento destes pelo governo local segundo as conveniências da vida continuou No decorrer do tempo foram se consolidando não apenas costumes de pessoas miscigenadas mas todo um modo de adequar as Ordenações do Reino a essa realidade mesclada Isso não valia só para as questões de moralidade sexual ou para os momentos iniciais de contato A recuperação das normas que regem os costumes Tupi por parte dos antropólogos permitiu entre outras coisas que estudiosos e leitores contemporâneos com acesso apenas à escrita para formar seus juízos possam entender a documentação histórica com nova mirada muitas vezes reveladora de uma extensão muito maior das fusões e amalgamentos entre sistemas normativos pois o comportamento dos Tupi não era errático mas seguia as normas consuetudinárias depois explicitadas pelos antropólogos e costumes diversos O padre Guilherme Pompeu de Almeida paulista da segunda metade do século XVII altamente letrado era doutor em teologia formado no Colégio dos Jesuítas de Salvador e empresário abastado anotou a seguinte genealogia João Ramalho filho do Reino teve uma filha que se casou com Bartolomeu Camacho este teve uma filha que se casou com Jerônimo Dias Cortes este teve outra filha que se casou com Domingos Luiz o Carvoeiro este teve uma filha que se casou com João da Costa este teve uma filha Maria de Lima que se casou com João Pedroso estes tiveram a filha Ana Lima casada com o capitãomor Guilherme Pompeu de Almeida1 Além de se tratar de um dos raros documentos em primeira pessoa da época colonial ele mostra uma estrutura que soa estranha aos costumes ocidentais menciona apenas os nomes de homens por muitas gerações mas segue a linhagem descendente feminina indo das mães para as filhas Essa peculiaridade genealógica ganha outro significado quando vista à luz das referências antropológicas à cultura TupiGuarani Nessa cultura a filha é só do pai mas são as mulheres que constituem a estrutura permanente do grupo acolhendo os homens de fora Em linguagem técnica atual a genealogia apresentada pelo padre é ao modo da concepção Tupi patrilinear e matrifocal por quatro gerações Apenas na quinta aparece uma fusão parcial com o modo ocidental de pensar com as filhas sendo atribuídas a pai e mãe como no Ocidente além de serem nomeadas Mas a estrutura maior continua sendo a da linhagem de mulheres ancestrais que acaba no padreautor Uma vez reconhecido esse modo de pensar Tupi pode ser aplicado a realidades mais amplas O pai do padre o capitãomor Guilherme Pompeu de Almeida embora filho de letrado casouse com uma mulher pobre e mestiça Ao modo dos Tupi mudouse em 1630 para a recémfundada vila de Santana de Parnaíba a casa de sua mulher Foi viver ao lado do sogro bastante indianizado cujo apelido era Terror dos Índios Comprou uma mina de ferro abandonada montou uma pequena oficina e passou a fornecer ferro para os parentes da mulher que circulavam pelo sertão recebendo como pagamento parte das mercadorias que traziam na volta Ficou rico depressa e soube investir Na segunda metade do século era dono de uma grande manufatura com cinco oficinas especializadas empregando pelo menos 200 artesãos a grande maioria escravos nativos mas com alguns mestiços e europeus bem pagos apesar de formalmente escravos nas funções mais técnicas Juntou dinheiro suficiente para financiar negócios de grande monta e grande amplitude espacial Entre eles estavam empreendimentos como a instalação de parentes mineradores em Curitiba a transferência de 5 mil moradores de uma vila espanhola do atual território da Bolívia para São Paulo faziam parte do grupo de artesãos especializados que construíram os grandes tesouros artísticos e arquitetônicos paulistas da época e a construção da Colônia do Sacramento um ponto de contrabando diante de Buenos Aires Quase todos esses negócios apesar do volume crescente de dinheiro eram baseados apenas no costume com o fornecimento de crédito e a liquidação dos débitos sem qualquer contrato escrito o fiado era a forma dominante de investimento de capital no sertão Nos tempos do capitão a única forma de registro de tais empreendimentos eram as menções de dívidas nos inventários e testamentos de pessoas que morriam com os negócios ainda em andamento ou em esporádicas menções de atas das câmaras municipais Já o filho letrado tinha o hábito de registrar as transações que fazia em cadernos e um deles sobreviveu tornandose um dos raríssimos registros escritos dos negócios feitos segundo o costume no sertão Mas que costume Colocadas num banco de dados as referências aos negócios de pai e filho mostram pouca lógica quando cruzadas com uma genealogia elaborada nos moldes ocidentais que é patrifocal Porém quando as referências são cruzadas com uma genealogia Tupi construída com as mesmas categorias que definem a família tanto para o padre como para os Tupi todos os investimentos de capital se encaixam Em outras palavras os investimentos de capital acumulado em padrão ocidental eram alocados segundo a lógica de menor risco de inadimplência na parentela Tupi Por aí se vê que a junção dos conhecimentos antropológicos com as técnicas de pesquisa quantitativa pode revelar algo sobre aquilo que a Apologia dos Paulistas define como viver de acordo com leis da sua conveniência Os costumes Tupi operavam em São Paulo em camadas bem mais fundas que as formas legais das Ordenações até mesmo no que se refere ao enriquecimento aplicação de capitais e financiamento de uma economia cada vez mais mercantil O fato de que o padreempresário respeitado por todos vivesse com uma índia e tivesse um filho com ela era apenas um detalhe nessa estrutura As diferenças entre as esferas da norma escrita portuguesa e do costume fortemente marcado pela cultura TupiGuarani nesse caso operavam num amplo cenário espacial O capitão e o padre eram empresários e acumularam grandes fortunas para o padrão da época Eram também sertanejos vivendo em pequenas vilas do interior o padre instalouse em Araçariguama Negociavam com o sertão financiando caravanas de parentes indianizados e com o exterior a fortuna de ambos era acumulada na forma de prata trazida de Potosí mais de 100 quilos no caso do padre Pensavam com conceitos e categorias de família de fornecimento de crédito em que se mesclavam ambas as esferas Com isso ganharam relevo no governo local Os reis de Portugal escreveram diretamente ao capitão fazendo ofertas de fidalguia que ele aceitou embora não exatamente como inclinação a qualquer pano vermelho Uma dessas cartas reais transformou o primeiro Guilherme Pompeu de Almeida em capitãomor da vila de Santana de Parnaíba outra o levou a investir na Colônia do Sacramento com o devido cuidado O rei lhe prometeu que podia financiar parte do empreendimento com impostos pelo que o capitão resolveu se eleger vereador da vila pela primeira vez na vida coordenando a cobrança O rei entrou com o papel o capitão com a substância política e econômica Assim se aprofunda um grau de fusão entre de um lado a lei escrita portuguesa seguida pelos governos locais e de outro as necessidades e os interesses da acumulação de riqueza garantidos pelas alianças com os nativos na maior parte do território Fusões dessa natureza podiam ser encontradas até mesmo nos maiores centros exportadores da colônia desde que se empreguem métodos capazes de detectálas A historiadora norteamericana Rae Jean Dell Flory foi uma das pioneiras no emprego de banco de dados para cruzar registros documentais Trabalhando na década de 1970 quando a técnica começou a ser aplicada ela juntou num único banco os registros de nomes de pessoas citadas em contratos comerciais documentos de registro civil certidões de batismo e enterro nas igrejas que eram documentos oficiais numa época em que a Igreja fazia parte do governo e documentação oficial de governo na região do Recôncavo baiano no período de 1685 a 1725 Com base nesses dados ela conseguiu traçar um retrato da economia de mercado local Segundo Dell Flory a pesquisa tinha um limite abrangendo apenas o topo da atividade empresarial e deixando de fora uma base de negócios mais ampla além de sociologicamente não incluir as relações produtivas com nativos livres e escravos Desse modo apresenta um viés descrevendo mais o perfil da elite do que o da população como um todo Ainda assim os resultados são relevantes Num tempo em que se estimava a população da região em 100 mil pessoas 30 mil em Salvador os registros informam a existência de uma média de 110 engenhos de açúcar em funcionamento 450 grandes comerciantes em atividade 2 mil plantadores de cana autônomos e 2 mil plantadores de tabaco Com isso o topo empresarial da cidade teria na época cerca de 46 mil responsáveis por empresas maiores ou 46 da população total estimada Descontadas as mortes e somados os casos omissos na documentação o número não deixa de ser significativo Caso a média de pessoas por família fosse de cinco membros uma estimativa muito conservadora para o período o contingente ligado a essa posição produtiva elevada abrangeria uma parcela de pessoas que com as famílias chegava a um mínimo de 225 da população da capital Abaixo desse grupo havia uma larga base de empreendedores de pequenos empresários que se dedicavam a atividades variadas pequenos comerciantes vendeiros do interior quituteiras artesãos independentes transportadores havia algo como 2 mil barcos na região além de muitos estaleiros estivadores etc Todos fazendo seus negócios parte deles eram escravos como muitos artesãos ou quituteiras longe da vista ou do registro na papelada oficial de governo de modo que os historiadores tradicionais não tinham como analisar tal estrutura antes da introdução das novas técnicas As consequências analíticas dessas descobertas são imensas Os historiadores tradicionais com base apenas na leitura da documentação desta extraíram a interpretação sociológica de que a sociedade nordestina da época seria dominada por latifundiários e pela produção escravista com o restante da população nativa ou mista relegado à esfera da economia de subsistência Resultado da análise dos contratos de compra e venda de terras agrícolas uma das conclusões mais salientes de Dell Flory vai no sentido oposto dessa concepção tradicional mostrando uma sociedade de pequenos e grandes produtores e um mercado pujante A formação de lotes pequenos ou de tamanho moderado está presente em 204 das 285 transferências de propriedade registradas no período Aproximadamente dois terços das transações geravam propriedades com menos de mil hectares a maioria tinha entre 100 e 600 2 Essa tendência de divisão da propriedade e aumento do número de produtores independentes fica clara na análise dos dados sobre o tabaco o número de cultivadores quadruplicou no período estudado enquanto a produção média de cada unidade caiu para menos da metade da quantidade um claro processo de desconcentração Outras análises dos dados levaram a notar certas características muito relevantes do topo da sociedade baiana Para começar as medidas de riqueza permitiram afirmar que os mais ricos eram os comerciantes atacadistas e em seguida os senhores de engenho Cruzando esses dados com registros civis ela constatou que nada menos de 87 dos grandes mercadores então atuantes na cidade haviam nascido em Portugal Entre estes nada menos de 88 casavamse com mulheres de famílias abastadas da cidade Como resultado a autora formula a seguinte descrição Caracteristicamente os senhores de engenho casavamse com filhas de outros senhores ou de plantadores de cana enquanto um número considerável de filhas de senhores de engenho casavase com imigrantes O casamento tinha importantes implicações pois permitia consolidar propriedades Em muitos casos especialmente na execução dos inventários o casamento com imigrante com dinheiro era o dado fundamental para essa consolidação3 A historiadora não recorre a conceitos da antropologia em suas análises Mas quando estes são levados em conta é possível acrescentar que no topo econômico da mais rica vila do Brasil quase todos os filhos de senhores de engenho só se casavam ao modo Tupi com as poucas mulheres de fora disponíveis todas elas sem fortuna própria na melhor das hipóteses herdeiras juntamente com os irmãos Enquanto isso as filhas tinham a possibilidade de ser oferecidas para alguém rico noutra aliança típica da cultura Tupi na qual porém não mais contava o domínio dos utensílios de ferro e sim o dinheiro Entre os cadernos de negócio de um padre no interior de São Paulo e os dados estatísticos da documentação do Recôncavo baiano podem ser encontrados traços de costumes Tupi capazes de sugerir explicações para o desenvolvimento de mercados à margem do governogeral e da formalização jurídica ainda que em realidades muito distintas naquela altura A expansão da economia e do domínio territorial do sertão nos séculos XVI e XVII refletiu basicamente a expansão da área de negócios e das guerras entre os Tupi e os demais povos que se governavam pelo costume e os resultados que se acumulavam nas vilas sob a forma de riqueza O processo ampliou o domínio Tupi no território interior levou à destruição de outras populações e gerou um fluxo de excedentes econômicos em torno das trocas por utensílios de ferro As áreas das vilas em que não havia exportação se expandiram atrás dessa onda Nelas se instalaram muitos tipos de produção com destaque para a pecuária no Nordeste e os produtos de abastecimento e artesanato em todo o território A pequena produção era a regra manufaturas como a do capitão Guilherme Pompeu de Almeida ou os engenhos do Nordeste a exceção A busca da riqueza dava sentido à vida O empreendedor era a figura central Os governos locais serviam de apoio a essa tendência Providenciavam força militar para a expansão defesa transporte obediência às leis tolerando os costumes mistos legitimidade pela eleição que era a regra geral de acesso ao poder Tudo por sua conta e ainda pagando impostos gerais para sustentar a metrópole Como resultado permitiam a acumulação de riqueza em todo o território Essa acumulação progressiva explica a multiplicação de vilas e de negócios Eram também as câmaras municipais que organizavam a representação dos interesses dos produtores de mercadorias exportáveis nas áreas em que havia esse tipo de atividade As câmaras de Salvador e Olinda mantinham representação em Lisboa especialmente para defender os interesses dos produtores locais Tanto quanto o governo central as câmaras invadiam esferas de competência Na maior parte dos casos porque eram o único governo existente A câmara de São Paulo não apenas declarou uma guerra internacional contra áreas sob domínio hispânico em 1690 decretou um valor próprio para a moeda algo que era poder privativo do monarca Todos os moradores seguiram o decreto de seus vereadores Com isso o governo central embora cobrando muito e não prestando nenhum serviço relevante acabava sendo aceito em parte pela autonomia de que desfrutavam os governos locais e se impondo aos concorrentes estrangeiros que apareceram Fica então um mistério por que sendo governos da escrita esse papel das instâncias locais não foi reconhecido pelos clásicos CAPÍTULO 14 Política miserável e caranguejo A ESCRITA ASSIM COMO A METALURGIA AO CONTRÁRIO DO CONHECIMENTO DA natureza e dos caminhos na terra era uma importante vantagem tecnológica ocidental com relação à cultura nativa no campo da produção e difusão de conhecimentos Esse era também um setor que conheceu na Europa dos séculos XVI e XVII uma revolução tão importante quanto a ocasionada pela navegação oceânica Tanto a produção de conhecimento por letrados como a leitura do que se produzia eram muito limitadas por um gargalo nos meios de transmissão desses conhecimentos O mais importante deles era o livro cuja reprodução se fazia por cópia manual o que exigia até anos de trabalho paciente de um especialista Alguns desses copistas trabalhavam para ricos interessados mas a maioria vivia em mosteiros que eram os grandes centros bibliográficos Afora a Igreja só em poucas cidades da Europa havia de tempos em tempos condições de juntar todas as peças da engrenagem no mundo laico Na península Ibérica a mais importante foi Toledo na Espanha Entre os séculos XI e XIV o espírito de tolerância e de convivência entre cristãos muçulmanos e judeus permitiu a tradução para o latim de grandes bibliotecas árabes que continham todo o saber da Antiguidade Por essa via por exemplo a obra de Aristóteles foi traduzida para o latim e voltou a fazer parte da cultura ocidental Portugal beneficiouse desses centros a partir do princípio do século XIV neles arregimentando letrados e pesquisadores para suas instituições Em 1290 o rei D Dinis fundou uma das primeiras universidades ocidentais que passou a funcionar entre Coimbra e Lisboa Em 1307 criou a Ordem de Cristo que alistou em torno de seu projeto tecnológico As duas instituições atraíram produtores de conhecimento e leitores que não estavam subordinados à Igreja e propiciaram o salto tecnológico e cultural do Reino No entanto a grande mudança geral na Europa ocorreu em 1450 com a invenção da prensa com tipos móveis de Gutenberg Com ela superouse o grande gargalo da produção de livros e difusão da leitura permitindo a confecção de muitos exemplares de uma obra em muito menos tempo uma enorme redução nos custos e o crescimento monumental na quantidade de leitores Uma das consequências foi a perda da importância da Igreja no processo de transmissão de conhecimentos assim como o aumento de poder dos produtores e leitores laicos Por outro lado a revolução da tipografia também atingiu a Igreja a facilidade de conhecer a palavra sagrada por escrito por meio de Bíblias impressas estava na raiz do protestantismo Publicada em 1503 a obra Novus Mundus em que Américo Vespúcio narrava as suas viagens ao continente recémdescoberto teve treze edições em latim esgotadas em dois anos dez em alemão nos dois anos seguintes além de outras em italiano francês e algumas na Holanda Em pouco mais de uma década estimase que tenham sido vendidos 15 mil exemplares o que fez da obra o primeiro bestseller laico e levou os leitores a identificar o novo continente com o nome de um navegador medíocre que fez poucas descobertas mas era um mestre da narrativa Esse impacto da descoberta refletiuse em Portugal que passou a sofrer um assédio compreensível em todas as nações nas quais se difundia a leitura dos livros impressos os governantes se mobilizaram para atrair navegantes que dominassem a tecnologia da navegação oceânica os comerciantes se interessaram em carregar os navios de mercadorias e os aventureiros prepararamse para sair em busca de tesouros A reação portuguesa foi basicamente de procurar manter em segredo as informações estratégicas Isso se fez em muitas áreas mas sempre com o mesmo sentido de fechamento de inversão do esforço de abertura do período anterior todo ele laico mercantil e universalista A tolerância religiosa e cultural que estava na base do desenvolvimento tecnológico e seu financiamento parcial por mercadores foi substituída pela instalação da Inquisição como órgão da estrutura de governo e a expulsão dos judeus A Ordem de Cristo perdeu autonomia após um acordo com o monarca tornandose parte da burocracia estatal A Universidade de Coimbra teve o mesmo destino e parte dela foi entregue aos jesuítas A mesma diretriz foi adotada no que se referia à tecnologia que desencadeara tantas mudanças no fluxo dos conhecimentos A Inquisição ficou encarregada de controlar o funcionamento de tipografias embora fossem empreendimentos particulares só podiam abrir as portas com autorização desse órgão do governo o comércio e a importação de livros a publicação só podiam ser publicados textos aprovados pelos inquisidores e até mesmo as vendas de livros Ainda que alguns desses controles existissem também em outros países poucos somaram tanta restrição à mudança quanto Portugal O Brasil foi visado de maneira feroz em cada um desses desdobramentos da política reacionária que acompanhou a decadência do império português A política de segredo de tentar impedir o conhecimento da terra e de seus habitantes pelos europeus já facilitada no ponto de partida pela inexistência da escrita ganhou detalhes de crueldade Um deles pode ser notado em um trecho do frei Vicente do Salvador O nome de Brasil lhe ajuntaram ao estado e o chamam Estado do Brasil Disto dão culpa alguns aos reis de Portugal outros aos povoadores aos reis pelo pouco caso que têm de tão grande estado que nem o título dele quiseram preferindo intitularse senhores de Guiné por uma caravelinha que lá vai nem houve um que o curasse senão para colher rendas e direitos1 O trecho critica o fato de que o nome da terra nunca apareceu na fórmula de praxe para identificação dos monarcas em documentos oficiais Fulano de tal rei de Portugal e Algarves senhor das Índias Molucas Goa etc Como bem notou o padre até a Guiné aparecia entre os senhorios citados mas nem Terra de Santa Cruz nem Brasil quando a denominação popular foi oficializada jamais foram mencionados em qualquer bula decreto ou alvará dos reis de Portugal mesmo naqueles que traziam ordens para o Brasil O objetivo do segredo justificava outra política dura A Inquisição permitiu a instalação de uma tipografia em Goa que funcionou a partir de 1556 e concedeu o monopólio de impressão aos jesuítas no Oriente em 1574 Mas jamais permitiu a instalação de uma tipografia no Brasil todos aqueles que tentaram trazer máquinas e tipos foram presos processados e tiveram seu material destruído e isso continuou a ocorrer até o tardio ano de 1808 Para efeito de comparação na América espanhola onde também havia uma política similar de controle inquisitório quase toda a correspondência oficial relevante era impressa em tipografias nos mais diversos pontos do continente A cidade de Lima no Peru tinha um jornal regular impresso em tipografia já no século XVI e até mesmo as reduções jesuíticas no Paraguai receberam autorização para levar o equipamento e imprimir bíblias em guarani para serem lidas pelos que viviam nas reduções Com a proibição total de tipografias os moradores do Brasil só podiam mandar imprimir livros em Lisboa e mesmo assim depois de conseguirem a autorização dos censores Como estes tinham a preocupação de evitar que leitores estrangeiros tivessem acesso a informações consideradas estratégicas as permissões concedidas nos dois séculos inicias da colônia podiam contarse nos dedos das mãos E no caso da leitura dos textos escritos até mesmo a compra de exemplares impressos dependia de outra espécie de censura A Inquisição tinha poderes também para impedir a circulação de livros sobretudo estrangeiros Nos portos havia controles das importações e apreensões sempre com o objetivo de impedir o envio de exemplares à colônia Idêntica atitude de caráter retrógrado impedia a fundação de instituições produtoras de conhecimentos Desde o século XVI havia na colônia moradores ricos o suficiente para investir na formação local de seus filhos e bancar a conta Mas todas as tentativas foram frustradas e negados todos os pedidos para a instalação de faculdades ou universidades Em comparação a primeira universidade da América espanhola a de São Domingos começou a funcionar em 1536 Mais ao sul a pioneira foi a universidade de Lima que passou a oferecer cursos a partir de 1551 apenas dez anos depois de Pizarro ter dominado o império inca Dois anos depois era inaugurada uma universidade no México Nos Estados Unidos onde tudo dependia da iniciativa de colonos enriquecidos as primeiras faculdades começaram a funcionar a partir de 1636 pouco mais de três décadas após o início da ocupação inglesa só no século seguinte houve recursos suficientes para montar universidades Até mesmo a etapa mais elementar de todo o processo o ensino básico da leitura e escrita foi restringida pelo governo metropolitano Apenas os colégios dos jesuítas recebiam estipêndios do Tesouro em troca dos quais ficavam obrigados a manter escolas gratuitas para alunos inclusive do ensino básico Mas os regulamentos também diziam claramente que o objetivo das escolas não era o de prover ensino para quem quisesse e sim o de preparar futuros membros para a ordem religiosa e com isso as vagas eram severamente limitadas Apenas uma das instalações jesuíticas o Colégio de Salvador mantinha um curso superior de teologia com aulas dadas por padres de melhor formação o grande destaque no século XVII foi o padre Antônio Vieira um dos grandes eruditos da época e um dos mestres da língua portuguesa Mas era um curso que formava em média um aluno por ano quase sempre já aceito na ordem Outras ordens de clérigos regulares beneditinos franciscanos e carmelitas mantinham instalações educacionais mas também só para fornecer uma formação intelectual um pouco mais sólida para seus membros Para a imensa maioria dos moradores restava a proximidade caridosa a alguma dessas fontes para aprender a ler e escrever A pequena fração daqueles que conseguiam vencer as barreiras e escapavam da carreira eclesiástica acabava sendo recrutada por uma das poucas oficinas do governogeral ou como autoridade possível nas vilas ocupando cargos administrativos e cuidando da papelada civil do governo atas de câmaras processos judiciais pedidos de favores testamentos etc As consequências de tantas restrições ao acesso à escrita desde esse período foram catastróficas em termos de documentação a respeito da vida e do comportamento das pessoas Hoje tudo precisa ser minerado na rala documentação oficial quase não há depoimentos pessoais comentários cartas particulares ou desenhos Casos como o de São Paulo nos três primeiros séculos não são incomuns nenhum retrato de morador nenhuma carta particular nenhum depoimento pessoal em forma literária A produção de conhecimento formal nessas condições tão inóspitas era a possível exigindo uma retórica tortuosa Fazer história exigia desvios narrativos de monta Vejase por exemplo a frase que ficou para a memória na História do Brasil do frei Vicente do Salvador Da largura que a terra do Brasil tem para o sertão eu não trato porque até agora não houve quem a andasse por negligência dos portugueses que sendo grandes conquistadores de terras não se aproveitam delas mas contentamse em andar arranhando ao longo do mar como caranguejos2 Ele atribui a total falta de conhecimento do interior aos portugueses É um vocábulo ambíguo pois português era tecnicamente o autor da frase e eram então todos os moradores da terra Nesse contexto porém português se confunde com metropolitano e os conhecimentos passíveis de serem divulgados por via escrita seriam apenas aqueles que passassem por seu crivo pois nenhum autor podia ignorar os censores A história escrita tinha de se adequar a tais portugueses num grau muito maior do que a vida política local onde a adaptação entre lei e costume ficava por conta dos moradores Uma série de procedimentos narrativos reforçam a imagem da terra e de seus moradores como gente vil danada pelo amor ao mercado e o dinheiro Essa danação ganha inclusive a forma de um mito de fundação O capitão Pedro Álvares Cabral levantou a cruz no dia 3 de maio quando se celebra a Santa Cruz em que Cristo morreu por nós e por esta causa pôs nome de Terra de Santa Cruz à terra Porém o demônio que com o sinal da Cruz perdeu todo o domínio que tinha sobre os homens receando também perder o muito que tinha nos desta terra trabalhou para que se esquecesse o primeiro nome e lhe ficasse o de Brasil por causa de um pau de cor abrasada que há muito nesta terra e com que se tingem os panos Com o que importava mais o nome de um pau de tingir que aquele do sagrado lenho que deu toda a virtude a todos os sacramentos da Igreja3 Perdidos de Deus e dominados pelo demônio interessados apenas na matéria os que nela ficaram seriam construtores de desastres morais e sociais E de mesmo modo se hão os povoadores os quais por mais arraigados que na terra estejam tudo pretendem levar para Portugal Se as fazendas e bens que possuem soubessem falar diriam como os papagaios para os quais as primeiras palavras que ensinam são papagaio real pera Portugal Ainda os que cá nasceram não são senhores mas usufrutuários que desfrutam e deixam a terra destruída Donde nasce também que nenhum homem nesta terra é repúblico nela zela ou trata do bem comum senão cada um do particular4 As técnicas de pesquisa recentes permitem mostrar que a imensa maioria daqueles que chegavam ao Brasil empreendiam casavam ficavam viviam uma sociabilidade nova incluindo o padre escritor O objetivo de voltar rico para Portugal era buscado por uma minoria mas descrevia com eficácia simbólica o propósito do governogeral arrecadador e dos agentes dele que ficavam na terra provisoriamente Assim a retórica abre um fosso conveniente A diferença entre o que se pode falar de Brasil em palavras escritas e a realidade do tempo é imensa umas encapsuladas na casca de caranguejo outra do tamanho do sertão ignoto Vale notar que na altura em que escrevia o frei o termo sertão já designava toda a porção do território que ia além do litoral que a retórica confunde com área que os portugueses não conhecem Assim se faz a mágica da frase famosa que afirma uma diferença entre o sabido ou aquilo que oficialmente se pode dizer em palavras impressas e o incógnito os costumes pecaminosos onipresentes inclusive o de enriquecer que entretanto não se deve mencionar O conhecimento do interior do sertão não era inexistente e o próprio livro fala dele Entretanto como não é certificado pelos conquistadores portugueses que autorizam a publicar não pode ser afirmado como algo que tenha o valor moral capaz de eleválo a parte da história A gigantesca porção de território existia as pessoas viviam nela mas o historiador se obrigava a calar sobre detalhes da largura para o interior para não ferir a política de segredo não chamar atenção da censura O conhecimento que vinha dos coloniais vulgares não atravessava imune a carapuça do caranguejo ficava de fora da narrativa não era história que se contasse Só era possível narrar ao modo do livro Toda a ocupação do território é contada como emanação de ordens dos governadoresgerais para empregar de novo a metáfora eles acenavam panos vermelhos por carta Tal aceno era descrito pelo narrador como causalidade o governo central ordenou os súditos cumpriram Assim aparecem contados os eventos do Rio de Janeiro a ocupação da Paraíba as entradas no sertão a partir de Salvador Esse milagre da escrita transformando em demiurgo um governo que pouco agia e muito arrecadava passou a ser o ideal de Estado o objetivo perseguido pela miserável política de restrição à escrita e ao conhecimento O analfabetismo foi uma construção rigorosa resultando na falta de expressão dos costumes na consciência no não reconhecimento de uma moralidade própria que pudesse ser lei Assim foi se impondo a narrativa do caranguejo do mito de um governo geral que comandava tudo que enfrentava o comportamento depravado e argentário dos moradores que tentava civilizar Em termos de representação escrita um olhar positivo para aquilo que havia de próprio na vida colonial encontrase apenas de maneira esparsa na documentação produzida pelos outros governos os governos eleitos de vilas únicos com capacidade de transformar os costumes dos moradores em argumentos escritos para defender leis ou interesses Ali se encontram outras constantes como esta formulada pelo historiador Evaldo Cabral de Mello ao analisar a produção da câmara de Olinda depois da expulsão dos holandeses A restauração forjarase sobre a aliança de grupos étnicos que compunham a população local não evidentemente em pé de igualdade mas sob a direção da nobreza da terra e dos reinóis Tratase de uma noção já consagrada pelo imaginário nativista nos começos do século XVIII mediante o simbolismo de uma tetrarquia de heróis a que se devia o culto cívico tributado aos verdadeiros pais da pátria5 A ideia de uma pátria que se forma pela aliança de grupos étnicos na luta contra a dominação estrangeira resultou no culto à tetrarquia formada por João Fernandes Vieira reinol André Vidal de Negreiros nobre da terra Felipe Camarão Tupi e Henrique Dias negro que se juntaram para expulsar o inimigo externo sem qualquer ajuda do governo metropolitano Nesse universo começou a aparecer de maneira incipiente o emprego do gentílico brasileiros uma identidade positiva uma forma geral de consciência uma afirmação de substância da vida ali onde a miserável política metropolitana para a escrita a todo custo tentava evitar CAPÍTULO 15 Brasileiros A POLÍTICA DE RESTRIÇÃO DRACONIANA À PRODUÇÃO E CONSUMO DE MATERIAL ESCRITO na colônia dificultou muito a expressão do território mental próprio para além do litoral e que se espraiava pela imensidão dos sertões Nessa imensidão de ausência de escrita e pensamento os governos locais não só se tornavam os únicos encarregados de prestar serviços e processar interesses muito diversos como faziam isso de modo a conciliar contradições como no caso de João Ramalho e da instalação dos jesuítas em São Paulo Eles tinham de encarar de frente a realidade e os interesses locais o que obrigava uma câmara como a de Olinda por exemplo a recorrer à criação de representações históricas sobre a reconquista a fim de reivindicar o atendimento de interesses dos moradores Nesse ponto a atividade política bordeja as fronteiras do mundo cultural da criação de símbolos e representações Respeitando tal fronteira é possível demarcar um limiar no qual surge uma identificação entre a experiência de vida das pessoas e a terra na qual viviam Da perspectiva da experiência havia já muito material refletindo as características da terra No âmbito econômico uma acumulação de riqueza em volume significativo com as trocas de excedentes se ampliando desde o mais fundo das matas até a capital No âmbito político governos de costumes nativos baseados em alianças interétnicas e governos locais de vilas eleitos como forma dominante em muitos territórios No âmbito social um predomínio de pequenos empreendedores e grandes empresários produtores independentes e com crescente participação de cativos africanos ali onde havia exportação No âmbito cultural tratavase de uma das primeiras sociedades nas quais por livre vontade ou por coerção seres humanos de todo o planeta conviviam nos mesmos espaços Tanta variedade de experiência contrastava com a falta de um sinal de unidade Embora o termo genérico Brasil fosse empregado para designar essa região do planeta o gentílico brasileiro era tão ausente na rala documentação escrita quanto os textos em primeira pessoa Devido à sua excepcionalidade portanto merece comentário um dos mais antigos exemplos do uso desse termo por parte de um pintor excepcional Albert Eckhout nasceu em Groningen na Holanda por volta de 1607 Há poucas informações sobre a infância e o período de formação em sua cidade natal sabese com certeza que no início da década de 1630 estava estabelecido em Amsterdã onde ficou conhecido como retratista e pintor da natureza Por isso foi convidado para fazer parte da comitiva do príncipe Maurício de Nassau que chegou ao Brasil em janeiro de 1637 No princípio Eckhout não se destacou entre os artistas do grupo Seu trabalho consistia sobretudo em acompanhar os naturalistas Piso e Marcgraf desenhando em pequenos cadernos os animais e as plantas que os dois descreviam Mas Eckhout registrava também as pessoas dos índios aos nobres Assim revelouse a sua habilidade que o levou a ser encarregado até mesmo de missões diplomáticas junto ao inimigo português em Salvador chegou a pintar um retrato do governadorgeral do Brasil Embora não haja certeza a respeito estimase que por volta de 1643 ele tenha recebido de Nassau a incumbência de pintar telas monumentais para a decoração de um salão no palácio que o príncipe construía no Recife Com a volta de ambos para a Europa o teor da encomenda muda as telas seriam um presente para o eleitor de Brandemburgo dando ao agraciado uma impressão geral de como era o Brasil As pinturas exibem uma estrutura quadripartida quatro casais em quatro estágios de civilização indo dos povos mais brutos aos mais civilizados Com isso o pintor fez mais do que os primeiros grandes retratos de pessoas vivendo no Brasil criou uma interpretação para ilustrar uma civilização que nasceria do casamento entre pessoas de origem étnica diversa A mesma concepção dos vereadores de Olinda com uma pequena variação Na escala mais baixa de civilização estão os retratos intitulados Homem tapuia e Mulher tapuia O primeiro exibe alguns signos do tempo que designavam a selvageria tem como único adereço de vestuário o estojo peniano usa botoques na face e no queixo porta um tacape empregado nas mortes cerimoniais a seus pés estão animais peçonhentos a cobra e a aranha O retrato da mulher segue o padrão poucos sinais de civilização como folhas cobrindo a região genital ou uma pequena pedra no lábio Em contraste os adereços indicativos de selvageria são dramáticos com as partes amputadas de corpos humanos uma vez que competia às mulheres como únicas detentoras do poder de cozinhar no grupo moquear as vítimas para o banquete ritual da antropofagia A Mulher africana já aparece vestida leva uma cesta com alimentos e está acompanhada de um filho O cenário é claramente brasileiro com uma carnaubeira frutas nativas na cesta a espiga de milho nas mãos do filho que de pele mais clara que a mãe pode ser fruto de miscigenação O Homem africano destoa um pouco não há no fundo nenhum elemento natural exclusivo do Brasil mas antes dois indicativos da África a tamareira e a presa de elefante aos pés do retratado Toda a indumentária é de origem africana e a espada indicativa da nobreza da Guiné Seguemse o Homem brasileiro e a Mulher brasileira O primeiro aparece com vários adereços civilizatórios roupas brancas cobrindo a cintura uma cabaça para carregar água uma cesta com utensílios A pele lisa não apresenta sinais de pintura corporal nem marcas de adornos Ao lado aparece uma bananeira planta introduzida pelos europeus ao fundo um engenho com fileiras de árvores e terras cultivadas Algo semelhante se passa no caso da Mulher brasileira tratase de uma índia Tupinambá de aldeamento acostumada a viver no espaço europeu e a mistura é ressaltada nos elementos do fundo Antes de detalhar o emprego do termo vale a pena conhecer o último casal formado pelo Mulato e pela Mameluca O filho mestiço de negra e europeu aparece num grau de civilização mais alto assemelhado ao europeu É apresentado como um militar com roupas armamentos inclusive a espada de uso então restrito a nobres e gibão Está entre mamoeiros produtos plantados da flora local e a canadeaçúcar a safra europeia de maior significado econômico da nova terra Já a Mameluca mestiça de índia e europeu também é representada como ápice civilizatório Aparece trajada com um vestido longo de corte europeu mas que porta com sensualidade expondo um pedaço da perna e os pés nus Um olhar sorridente e convidativo acentua essa sensualidade No mais tudo em volta são exemplares da beleza da flora local dos cajueiros no alto às flores no cesto Ao fundo veemse campos cultivados de um lado e um casal de porquinhosdaíndia de outro Toda a composição segue o modelo europeu contemporâneo das pinturas da deusa Flora símbolo da primavera e da fertilidade Embora aplicado ao casal de índios de aldeamento o gentílico faz sentido em um contexto no qual se narram como próprios do Brasil os costumes do mundo das relações interraciais de alguma forma focadas no modelo dos índios os sujeitos históricos nessa matéria e do hibridismo que se reflete na escolha de plantas e animais de diversas origens geográficas e nas cenas de fundo Assim o gentílico é aplicado como uma observação afável de quem mostra o que está se passando Não à toa essa impressão teve grande impacto nos observadores dos quadros Estes se tornaram fontes seminais servindo de modelo para centenas de obras de pintores e artesãos europeus nos séculos seguintes Todos os elementos da composição foram reproduzidos em quadros tapeçarias artes decorativas e esse conjunto de elementos firmou a imagem básica de Brasil e brasileiro que se difundiu pelo continente europeu Essa visão positiva da miscigenação assemelhase à dos textos produzidos pela câmara de Olinda Mas vale notar que embora formulassem uma associação entre pátria e união de várias etnias estes evitavam escrupulosamente o emprego de um gentílico capaz de dar unidade a toda a variedade O contraste entre as duas situações podia ser extremo e fazia sentido dada a política de restrição extrema às letras eventualmente facilitadoras da elaboração consciente de uma nova identidade a partir da experiência inédita da vida no Brasil Nesse sentido outro exemplo esclarecedor é o do poeta Gregório de Matos cujo problema não era exatamente a falta de domínio da palavra Nascido em Salvador em 1636 o pai dele era um empreiteiro e senhor de engenhos abastado que mandou o filho estudar em Coimbra uma vez que o governo português não permitia faculdades no Brasil Formado em direito e teologia fez carreira como magistrado de instâncias elevadas no círculo próximo da cabeça mística do reino o pedaço de mundo vedado ao espaço colonial e chegou até mesmo a publicar livros algo reservado para muito poucos A certa altura porém viu barrada a pretensão de ocupar um posto nos tribunais superiores da metrópole Voltou para a cidade natal em 1681 como padre num cargo da administração eclesiástica algo plausível em um governo que controlava a administração da Igreja e dada a sua condição de viúvo Desembarcou portanto como autoridade do governo central e escrevia como tal Empregou a sólida formação literária e retórica para fazer poesia nos moldes da época para pessoas da mesma situação social elevada produziu assim uma espécie de crônica social do poder com elogios a autoridades amigas e poesias religiosas nas quais mostrava o domínio da retórica barroca Mas ao sofrer revezes políticos e perder o emprego a sua vida muda radicalmente José Miguel Wisnick resume Casouse com Maria dos Povos vendeu as terras que recebera como dote jogando dinheiro num saco e gastandoo ao acaso e fartamente Sai pelo Recôncavo povoado de pessoas generosas como cantador itinerante convivendo com todas as camadas da população metendose no meio das festas populares banqueteandose sempre que convidado Do gênio que já tinha tirou a máscara para manusear obscenas e petulantes obras diz Manuel de Castro Rabelo Nessa fase engrossa o volume de sua poesia satírica o barroco popular oposto ao acadêmico e a poesia satírica ao lirismo cortês1 Mas não se tornou um João Ramalho poético As festas populares a variedade de etnias a animação sexual de fato surgem como assuntos da poesia Mas a entrega do poeta a esse mundo tem limites Se antes a obra era marcada pelo apuro técnico da escrita na nova fase aparecem definições de cunho popular que marcam fortemente as diferenças entre a vida local e a metropolitana Esse diferencial é resumido de modo muito direto no mote de um poema De dous efes se compõe esta cidade a meu ver um furtar outro foder Com relação ao furtar o poema descreve com acrimônia o fato de a vida brasileira ser muito mais mercantil do que suportava sua visão de mundo marcada indelevelmente pelos anos de exercício dos poderes do centro pobres se tornam ricos tomam o governo vivem como fidalgos sem ter condições de nascimento para tanto Já quanto ao foder desanca com frequência a realidade dos casamentos de aliança pelos quais um enriquecido se entrelaçava com a família de uma noiva pertencente à nobreza da terra continuando a tradição Tupi na sociedade agora mercantil enquanto descreve a vida sexual muito animada inclusive a própria fora do casamento oficial que gera mestiços de todo tipo O máximo que se permite é dar um tratamento rudemente satírico a tudo aquilo que não se enquadra rigidamente na casca do caranguejo A influência da cultura Tupi na vida brasileira a miscigenação que dava origem ao argumento de que o ato inaugurava uma sociedade própria o mesmo campo tentado pela representação da câmara de Olinda era um dos temas para os quais tal enquadramento normativo chegava a extremos de dureza Tal tratamento aparece em sonetos como este Aos principais da Bahia chamados os Caramurus Há cousa como ver um Paiaiá Mui prezado de ser Caramuru Descendente de sangue de tatu Cujo torpe idioma é cobepá A linha feminina é carimá Moqueca pititinga caruru Mingau de puba e vinho de caju Pisado num pilão de Pirajá A masculina é um Aricobé Cuja filha Cobé cum branco Paí Dormiu no promontório de Passé O branco é um marau que veio aqui Ela é uma índia de Maré Cobépá Aricobé Cobé Paí O branco pai e a matriarca indígena formavam uma referência ancestral que a elite local procurava empregar como marca de dignidade pois não ousavam chamar essa tradição de brasileira transformando o casamento de Guaibimpirá Catarina Paraguaçu e Caramuru Diogo Álvares Correia em fundação simbólica de uma realidade própria de uma nobreza da terra era o máximo de identidade então aceito de gente vivendo segundo os costumes mistos que procurava apresentar a origem local como justificativa das próprias leis de sua conveniência Gregório de Matos podia viver na lei da terra conhecialhe a intimidade e as palavras próprias Mas não era seguido pelo narrador poético que ainda manejava as categorias da conveniência dos governantes centrais e via as boas normas como exteriores à condição colonial Ao mostrar com grande rudeza que os atributos da terra eram apenas os da selvageria inclusive no limitado valor das gírias e nas fortes aliterações e oxítonas e nunca aqueles dos bons costumes da nobreza surge uma questão de monta Mesmo vivendo como um dos Adãos de Massapé que ironizava mesmo adotando os costumes sexuais polígamos e abertos mesmo tocando viola nas festas mesmo empregando a linguagem popular mesmo sendo o poeta que melhor retratou os costumes que marcavam a vida brasileira para além das normas portuguesas Gregório de Matos não conseguia pensar em si mesmo como mais um dos muitos transformados pela experiência local como mais um que abandonava normas legais inadequadas para pensar de maneira mais identitária os próprios costumes ele não empregava o gentílico brasileiro Não podia aplicar ao seu narrador poético o mesmo tipo de desvio que se permitira na vida pessoal Era um narrador normativo tão normativo quanto um juiz que enquadra na lei os desviantes Ainda que numa orgia não perdia a compostura de doutor de desigual àqueles analfabetos ao redor O conteúdo efetivo de sua poesia assim como o conteúdo efetivo da maneira de pensar a família do padre Guilherme Pompeu de Almeida a discrepância entre os costumes que regem a vida e o enquadramento desse modo de viver como norma de conduta apropriada costume que deve ser sancionado como lei gera como limite para a escrita a sanção da norma ainda que inadequada à realidade e a condenação do costume ainda que sadio Com essa fissura que impede pensar a experiência brasileira como totalidade eventualmente expressa por um gentílico vale a pena repassar o modelo simbólico elaborado por frei Vicente do Salvador Primeiro relembrando a referência ao estatuto do mercado na sociedade local definida no texto já mostrado em que reproduziu uma impressão de um empresário que visitou Salvador em 1585 Notava ele que se mandava comprar um frango quatro ovos e um peixe para comer nada lhe traziam porque não se achava na praça nem no açougue Mas se mandava pedir as ditas coisas às casas particulares lhe mandavam2 Onde deveria existir substância no espaço público a área simbólica do governo central havia apenas formalidade e vazio Já na dimensão social que deveria ser limitada aquela dos moradores que desconheciam a nobreza na parte inferior da escala pelo padrão aristotélico a vida seguia e o desenvolvimento da economia se dava Em vez de contar com a proteção da lei o mercado existia substancialmente à margem da lei na esfera dos costumes de moradores e nativos das leis não escritas que eram da conveniência dos moradores Pela conveniência do desenvolvimento dos mercados era preciso passar o mais longe possível das autoridades formais fazer tudo em casa Inversamente esperar algo do governo na esfera da manutenção das estruturas comuns era perda de tempo como também notou o padre Nessa terra andam as coisas trocadas porque toda ela não é república sendoo cada casa Pois o que é fontes pontes caminhos e outras coisas públicas é uma piedade3 Tudo isso evidencia que a crescente riqueza e a acumulação de capital na economia brasileira dos séculos XVI e XVII apontadas com clareza pelos dados estatísticos obtidos nas pesquisas recentes não derivavam da ação econômica do governogeral A pequena incursão no mundo simbólico permite lembrar que essa ausência tinha sentido que a documentação era construída para que a atividade da terra ficasse na margem fosse afirmada como condenação Presos irremediavelmente a esse tipo de texto os historiadores clássicos acabaram reproduzindo conceitualmente o fosso em várias áreas a fissura entre norma na cultura lei escrita na esfera jurídica governo e sociedade na política crescimento e ação central na economia Muito pelo contrário a sugestão mais evidente para entender acumulação de riqueza mercado e governos nos dois primeiros séculos parece ser aquela indicada pelo observador citado por frei Vicente do Salvador deixandose de lado a esfera da lei escrita da ação administrativa do governogeral e buscando as mercadorias e as instituições que sustentam os mercados no âmbito doméstico privado no costume nas leis que eram da conveniência dos moradores e tudo isso apenas com sanção parcial na ação dos governos locais Nos dois primeiros séculos essa realidade foi tornada mentalmente plausível por uma efetiva divisão espacial De fato o governogeral era um caranguejo que arranhava o litoral e quase não perturbava a vida nos vastos sertões Os governos locais eram autoridade no sertão que progredia dos que produziam inclusive domínio e defesa do território além de organizarem os mercados O governogeral tinha presença efetiva apenas na capital e nas alfândegas no carreamento de riqueza fiscal para manter a nobreza rural do Reino Mas tudo iria mudar com a descoberta do ouro CAPÍTULO 16 Governogeral no sertão CORRIA O ANO DE 1697 QUANDO OS MORADORES DE SÃO PAULO ASSISTIRAM A UMA cena inusitada depois de chegar pelo caminho que vinha de Santos um governadorgeral do Brasil subiu a ladeira do Carmo e instalouse na vila Na última ocasião em que isso acontecera viviase o ano de 1560 o governador era Mem de Sá e a sede da vila ainda era o arraial de João Ramalho com o nome de Santo André Ao longo de 137 anos os governadoresgerais comportaramse como caranguejos mal arranhando o litoral Apenas uns poucos funcionários dessa instância central haviam passado alguns dias na vila Na visita de 1560 a vila de João Ramalho era um posto de fronteira Em 1697 a capitania de São Paulo dominava de modo efetivo um território que ia pelo litoral desde o sul de Santa Catarina Laguna fora fundada por paulistas em 1680 até Parati No interior o domínio se estendia por toda a bacia ocidental do rio Paraná grosso modo as áreas dos atuais estados de Santa Catarina Paraná São Paulo Mato Grosso do Sul Mato Grosso Goiás nestes dois últimos avançando na bacia amazônica e Tocantins além das cabeceiras dos rios São Francisco e Doce no sul de Minas Gerais Sem a presença do governogeral nem de qualquer donatário todo o domínio todo o investimento econômico e toda a autoridade de governo nessa vasta região que englobava dezenas de vilas era resultado exclusivo da ação dos moradores e governos locais Foi nessa época que se deu a viagem de Artur de Sá e Menezes Governante e moradores tinham plena consciência do que o levara ali a existência de veios significativos de ouro Por causa dessa descoberta passaria a ser outro o relacionamento consolidado entre a população que vivia por conta própria e a autoridade real que se mantivera distante Por dois séculos apenas os grupos nativos e as incursões de TupiGuarani com seus aliados comerciais os moradores das vilas tiveram a capacidade de moldar a formação do sertão As andanças desses últimos seguiam roteiros determinados pelas possibilidades dos grupos TupiGuarani percorrendo o território dos aliados e evitando entrar em áreas sob o controle de outras etnias Nas andanças a torrente paulista estava se fundindo com outra nesse momento O sertão nordestino havia se forjado com a pecuária uma atividade que permitia tanto a ocupação fixa como o trânsito de gente desvinculada da aliança Nesse final do século XVII a complexidade ali era grande Os maiores criadores pernambucanos passaram a contratar paulistas com seus aliados Tupi para fazer as guerras de extermínio de nativos que resultavam na abertura de novos territórios para a atividade como no caso da chamada guerra dos bárbaros Alguns se fixaram em espaços como o do Piauí mas tinham companhia diversa Entre os vaqueiros viamse as mais variadas etnias havia índios e seus filhos mestiços com portugueses mas também mulatos negros africanos dos quilombos cafusos filhos de negros com índias Desse modo a vida no sertão nordestino apresentava já uma nova forma mais semelhante ao modelo pluriétnico retratado por Eckhout que ao da aliança lusoTupiGuarani do Sul A autoridade do governo também exibia características próprias Havia vilas e vereadores mas sobretudo nos domínios da Casa da Torre o domínio do proprietário na organização política era efetivo Tal domínio passou também a ser exercido por concorrentes que atuavam por meio de procuradores Não se tratava apenas de política Os procuradores reuniam tropas que não eram mais de índios mas de pessoas dependentes que iriam tomar conta dos rebanhos e viver na terra tudo controlado por tropas armadas para cobrar rendas e impor domínio um controle que não mais dependia da aliança por casamento mas antes de subordinação econômica por bens ou dinheiro A notícia da descoberta do ouro atraiu em primeiro lugar a gente da região dos descobridores Paulistas juntaram todos os aliados Tupi e os transformaram em mineradores Logo ganharam companhia Juntando exércitos e boiadas os criadores de gado do vale do São Francisco subiam em direção às nascentes do rio onde ficavam as minas Traficantes de escravos do Rio de Janeiro mandavam navios a Angola e organizavam caravanas para entregar cativos a mineradores em vendas fiadas ficando com parte do ouro encontrado Os traficantes da Bahia não ficaram atrás e passaram a trazer cativos da região da Costa da Mina muito valiosos porque sabiam minerar Moradores do Reino faziam de tudo para embarcar nos navios que vinham para o Brasil A avalanche foi gigantesca criando em poucos anos uma nova realidade de miscigenação descrita por João Ferreira Carrato com o foco nas uniões pessoais O grande resvaladouro da frágil virtude daquelas gentes aventureiras é a geral mancebia em que viviam quase todos os homens e mulheres inclusive sacerdotes A falta de mulheres brancas é aguda os aventureiros acham difícil conjugar a vida andeja com o regime estável do casamento as minas estão cheias de pretas escravas mulatas forras solteiras concorrendo com os homens nas minas com seu convite para a coabitação sem responsabilidades nem consequências1 A aliança entre portugueses e TupiGuarani deixava de ser condição essencial para a vida no sertão A união de pessoas de origens diversas ganhou uma dinâmica própria na área mineradora A miscigenação tornouse o meio generalizado para formação de famílias nucleares com pessoas de origens diversas A lógica de todo o processo passou a ser exclusivamente a riqueza a fortuna em ouro O papel do casamento como instrumento de alianças de grupos perdeu força Quem tinha ouro podia ter tudo A chegada de Artur de Sá e Menezes aconteceu no momento dessa mudança geral Embora com relativo atraso ela marcava o ponto inicial de uma política metropolitana de longo prazo para o sertão até então ignorado Assim que chegou o governadorgeral se reuniu com as autoridades da vila e da capitania Ao fim dos entendimentos enviou uma carta ao rei na qual repassava os objetivos centrais de sua missão e repetia alguns dos argumentos a que recorrera para convencer os moradores É de tão grande utilidade para os vassalos a riqueza que estas minas produzem e Vossa Majestade tão generosamente lhes concede e eles esquecendose das suas obrigações extraviam aquela pequena parte que Vossa Majestade manda reservar para a sua Real Fazenda e é justo que se busque todo o remédio para que a ela se pague o que cada um deve2 O governador vinha para arrecadar impostos em outras palavras aumentar as receitas do governo central A retórica melíflua revelava o essencial como o governador pretendia que as despesas com a arrecadação corressem por conta dos paulistas as palavras sobre eles eram brandas Os moradores foram lembrados de que sangue suor e lágrimas gastos para chegar até o ouro não eram tudo Embora distante por tantos anos o rei era o concessionário generoso daquela riqueza e o governador ali estava para ficar com um modesto quinto de toda ela Para um negócio como esse ser palatável aos moradores ao menos um grupo deles precisava receber o suficiente para fazer o trabalho E isso explica algumas concessões um tanto heterodoxas feitas pelo governador para chegar a um acordo O paulista que melhor conhecia a localização dos veios de ouro chamavase Manuel Borba Gato Era genro de Fernão Dias Paes com quem percorrera os sertões por anos a fio em busca do metal Homem habituado à realidade local ficara inconformado quando um abelhudo a serviço real aparecera para bisbilhotar os trabalhos Não se contivera e assassinara o emissário Certo de que seria preso se aparecesse outra autoridade lançouse num caminho só conhecido daqueles que frequentavam os Tupi embrenhandose nas matas do vale do Rio Doce onde casou com algumas filhas de chefe sinal também de que recebia mercadorias e ferro para garantir a aliança e ficou vivendo nas aldeias Uma década mais tarde sentiuse seguro o suficiente para se instalar na aldeia de Paraitinga atual São Luís do Paraitinga em São Paulo Julgandose protegido pelas dificuldades naturais de acesso mandou um recado aos parentes da vila de São Paulo contando a alguns deles informações como chegar até o ouro Alguns desses parentes participaram da reunião com o governador e ambas as partes acabaram decidindo que Borba Gato era o homem que poderia resolver todos os problemas A primeira parte de todo o combinado ganhou registro escrito num decreto do governador que alterava de modo radical a condição social do agraciado Deixava ser de um criminoso foragido para se tornar guardamor das Minas de Caetés fidalgo a quem todos deveriam mostrar respeito Confiado de sua prudência e de que se haverá muito conforme ao real serviço como dono do posto gozará de todas as honras privilégios liberdades e isenções em razão disso mando a todos os oficiais de guerra e justiça que o honrem estimem e a todos que o acompanharem que o obedeçam3 A transformação formal do assassino procurado em fidalgo honrado permitiu a organização da caravana que levaria o governadorgeral à região das minas Sem isso a elevada autoridade não teria como atravessar os matos E uma vez nas minas revelouse outra parte do acordo referente a atividades em nada relacionadas a seu posto assim descritas por Costa Matoso Na repartição das minas tomou o governador Artur de Sá e Menezes datas para si no lugar que lhe assinalou Borba Gato e nelas dizem que tirou trinta e tantas arrobas de ouro voltando rico para Lisboa4 O historiador não informa mas é possível que o governador enriquecido não tenha se esquecido de entregar a parte do rei Também Borba Gato deve ter mandado um carregamento de ouro a Lisboa pois o fato é que se transformou no fidalgo com mais poder na região mineradora a autoridade mais graduada que atuava diretamente por ordem do monarca Assim se cumpriu o objetivo da visita que era o de criar um fluxo de receitas em ouro para Lisboa sem que igualmente se criassem despesas de arrecadação Havia lucro para a metrópole a princípio suficiente para se fazer vista grossa aos vazamentos mais que evidentes na arrecadação Com vazamentos ou por méritos Borba Gato foi progredindo até o ponto de julgar razoável fazer do cunhado Gaspar Rodrigues Paes sócio de uma empreitada em parceria com o governo metropolitano Por um acordo escrito e firmado pelo governadorgeral Paes se comprometeu a construir com recursos próprios a primeira estrada encomendada pelo governogeral em dois séculos de colonização no território do Brasil ligando a região mineradora ao Rio de Janeiro Em troca recebeu a garantia escrita de que poderia cobrar pedágio de todos que a utilizassem por um período de dois anos Enquanto o cunhado dava início ao projeto Borba Gato recorreu à sua autoridade para aumentar ainda mais o lucro potencial da estrada Havia concorrência na abertura de caminhos sobretudo da parte de Manuel Nunes Viana o procurador da Casa da Ponte uma grande cadeia de criadores de gado comandada desde Salvador Mesmo antes da descoberta do ouro ele vinha se destacando por inovar no método de acumular fortuna formando um exército comandado por um escravo africano conhecido como Bigode Oriundo de uma sociedade hierarquizada Bigode moldou as tropas com disciplina realmente militar com postos hierárquicos e obediência estrita Viana se instalou na região mineradora com as suas tropas que se mostraram muito úteis nos negócios Ele trocava por ouro as reses que mandava vir do Nordeste pouco se importando com o fato de que esse comércio era proibido por lei Em pouco tempo passou a trazer também todo tipo de mercadoria da capital Salvador transformandose em comerciante atacadista Por uma década a operação funcionou sem problemas De olho nos ganhos da sua estrada Borba Gato lembrouse da ilegalidade do caminho empregado por Manuel Viana e expulsou o concorrente da região alegando que se tratava de um contrabandista Viana colocou seu exército para lutar derrotou as tropas menos treinadas dos paulistas e dobrou a aposta nos negócios Mandou um emissário até Lisboa propondo ao rei um aumento das remessas de impostos em troca de apoio No trono desde 1706 D João V ficou encantado com aquela oportunidade de mudar muito gastando pouco Para tanto comprou de volta todos os poderes que seus antepassados haviam cedido de maneira hereditária ao donatário da capitania de São Vicente Com isso recuperou franquias como as de instalar vilas supervisionar a atuação dos vereadores eleitos nomear funcionários administrativos e organizar milícias E usou os novos poderes segundo um plano determinado D João V afastou Borba Gato do cargo e o entregou a um aliado de Manuel Viana Embora a estrada estivesse quase pronta o rei tirou Garcia Paes do comando do empreendimento e apropriouse deste sem nenhuma compensação financeira Além disso dividiu em duas a capitania de São Paulo Enviou um capitão para substituir o representante do donatário na parte antiga com ordens para trocar todos os ocupantes de cargos por pessoas dependentes da nova autoridade e não de acordos com moradores ou da indicação das câmaras Com a estrada pronta agora até as tropas régias podiam circular pelo interior do Brasil Um dos contingentes a percorrer o trajeto foi a comitiva do novo governador protegida pela primeira milícia paga pelo governogeral para atuar no interior Era um investimento para tornar mais rentável a arrecadação da região mineradora que logo se mostrou frutuoso Os carregamentos de ouro para Lisboa subiram em proporção bem maior do que as despesas com o pagamento de tropas e funcionários Depois o rei tratou de evitar possíveis vazamentos de impostos pelos moradores Empregando os poderes de administrador da Igreja criou um regulamento próprio para a nova capitania das Minas Gerais proibindo os jesuítas até então os favoritos para executar as tarefas reais de nela se instalarem Diante de tanto ouro achou melhor manter afastados não só os inacianos mas também outras ordens regulares Tanto os jesuítas como os carmelitas franciscanos e beneditinos recebiam do rei franquias de imunidade tributária e fiscal que costumavam transferir para as Ordens Terceiras Dirigidas por leigos essas ordens acumulavam um capital que ficava fora de alcance dos arrecadadores e era empregado como ativo bancário em empréstimos Em pouco tempo a cadeia de comando que subordinava os súditos ao rei ganhou uma forma bem distinta daquela dos tempos das solicitações de cartas e títulos de fidalguia A máquina arrecadadora era do rei requerendo a obediência de todos os moradores Quando se consolidou a capacidade de ação militar do governo central Manuel Nunes Viana conheceu o mesmo destino daqueles que ajudara a afastar acusado de um crime administrativo foi expulso das Minas Gerais e processado Os passos para a instalação dessa forma de governo repetiramse quase como um roteiro fixo em todos os pontos do interior onde foi achado ouro Num único parágrafo o historiador Affonso Taunay resumiu o que se passou com Bartolomeu Bueno da Silva em Goiás Descobrira o terceiro Eldorado brasileiro Trouxe 25 quilos de ouro de sua viagem Com eles ia instalar os poderes que o governador de São Paulo lhe prometera por escrito domínio sobre 600 mil alqueires de terra pedágios em onze rios guardamoria e superintendência das novas minas Em 1727 assumiu o governo da capitania de São Paulo Antônio da Silva Pimentel obcecado pela ideia de fazer a América esboçou o projeto de espoliar o descobridor de Goiás dos proventos de tão grandes sacrifícios Inventando haver descoberto um plano de insurreição dos paulistas de Goiás maquinado por um de seus sócios Bartolomeu Pais mandouo encerrar coberto de grilhões num calabouço e o manteve um ano e meio encarcerado5 Com base na acusação Bueno da Silva teve seus poderes anulados Enquanto tentava se defender o rei empregando seus poderes sobre o território da capitania de São Paulo adquiridos do donatário criou a capitania de Goiás e instalou um governo com autoridade amparada por tropas O mesmo aconteceu em Mato Grosso também separado da capitania de São Paulo após a descoberta do ouro e com o Distrito Diamantino separado da capitania de Minas Gerais e administrado diretamente pela Coroa O ouro e os diamantes tornaramse fatores de introdução da autoridade do rei do governogeral no sertão sempre com o mesmo objetivo o de recolher impostos O historiador José Francisco da Rocha Pombo descreveu no início do século XX os resultados À medida que iam se descobrindo minas se iam criando estações arrecadadoras bem guarnecidas de força A forma usual de cobrança por meio de rendeiros agravava enormemente os danos provenientes do excesso de contribuições e da dureza do fisco Já nas licitações para a arrecadação davamse fraudes das mais escandalosas ora os provedores faziam vingar suas preferências escolhendo os licitantes que mais lhes convinham ora alteravam as condições do contrato para favorecer os ricos As classes dominantes os ricos e poderosos encontravam sempre meios de fazer recair no trabalho e portanto nos menos favorecidos o peso das imposições Eralhes mais fácil pleitear isenções de impostos e favores excepcionais que só aproveitavam ao alto comércio As populações em geral eram tosquiadas sem dó nem piedade e de todos os modos Mesmo no suntuoso período das minas não se sabe dizer quem mais andaria na terra do ouro ou dos diamantes mais agitado com aquela abundância surpreendente e maravilhosa se a legião de mineiros ou se o exército que os acossa persegue e castiga dos extratores do Real Erário6 Como nota o historiador o papel que coube aos moradores foi o de sócio menor na arrecadação Este sócio fazia um contrato para cobrar impostos com apoio das tropas e recolher a receita eventualmente desviando o que pudesse no caminho nos postos fiscais Como a posição dependia de uma escolha com alto grau de arbitrariedade da parte dos governadores os candidatos tendiam a ser muito respeitosos com estes E como era uma função provisória os escolhidos precisavam ganhar o quanto podiam o mais rápido possível A arrecadação em larga escala levou a passos maiores na reforma da estrutura administrativa da colônia Em 1714 o rei D João V transformou o governogeral em vicereinado A partir de então o posto ficou reservado aos titulares das casas mais altas do Reino com predomínio de condes e marqueses Abriuse espaço para que membros da alta nobreza se tornassem com frequência cada vez maior os escolhidos para governar as capitanias mineradoras Desde a posse em Minas Gerais do conde de Assumar em 1717 esse tipo de escolha tornouse cada vez mais constante O mesmo aconteceu em Mato Grosso ficando apenas Goiás sob o comando de meros fidalgos Com isso completouse o plano iniciado modestamente por Artur de Sá e Menezes o ouro passou a fluir do corpo do Brasil para os cofres reais e dali para caminhos que merecem ser conhecidos CAPÍTULO 17 Os favores da cabeça A MUDANÇA NA FORMA DE GOVERNAR COM O GOVERNO CENTRAL ABSORVENDO OS poderes da instância intermediária das capitanias nas regiões mineradoras logo alcançou seu propósito maior um aumento significativo na arrecadação do império português Melhor ainda criou um fluxo que era basicamente de ouro Acumular no Tesouro uma reserva de metais preciosos era o grande sonho dos reis europeus do século XVIII Para os economistas da era mercantilista o desafio estava em encontrar as melhores receitas para encher os cofres reais de moeda metálica D João V logo se viu na situação de ser pela cartilha econômica da época um dos mais bemsucedidos governantes Ficou rica a cabeça mística do Reino que até há pouco vivia apenas do leite de sua vaquinha O fluxo de ouro provocou uma mudança importante na estrutura das receitas fiscais de Portugal Algo entre dois terços e três quartos do total do que entrava nos cofres passou a vir do Brasil Por outro lado os impostos pagos pelos moradores do Reino tornaramse uma parcela cada vez menor do bolo tributário equivalendo a cerca de um quinto dos tributos recolhidos Ao arrecadar mais o rei ganhava também a possibilidade de gastar mais E fez isso segundo a mais escorreita cartilha da teoria dominante em Portugal o corporativismo Esta pregava que a sociedade se organizava como um corpo cuja cabeça mística era o rei e as demais corporações vinham abaixo cada qual com sua função até a colônia plebeia que ficava nos pés O rei era o único que detinha o conhecimento da dose justa de retribuição que cada órgão desse corpo merecia Numa situação de fartura as figuras mais próximas da cabeça do reino nobreza alto clero burocracia lisboeta começaram a empregar as letras que dominavam para elaborar argumentos ao dar a cada um o seu cabia ao rei lembrarse antes dos maiores Os argumentos foram expostos num livreto intitulado Advertimento dos meios mais eficazes e convenientes que há para desempenho do patrimônio real de autoria de Baltazar de Faria Servetim Ordinariamente fazem uma descrição das grandes virtudes que há de ter o Príncipe como há de ser justo temente a Deus misericordioso liberal afável prudente e valoroso Tratam mui difusamente da conveniência do Rei ter muitas rendas grandes riquezas e tesouros e dizem muitas outras coisas que servem somente para pintar um perfeito Príncipe e uma perfeita República São especulativos não considerando mais que a bondade dos fins1 Não era preciso mais que adular a magnanimidade do soberano e relembrar a sua bondade em atender os fins propostos especulativamente pelos autores Com isso a maior parte que saía do Tesouro abastecido pelos colonos brasileiros seguia para os bolsos dos detentores dos chamados direitos adquiridos ou seja aqueles para os quais as Ordenações determinavam um tratamento preferencial Um rei justo premiava os nobres um rei temente ajudava a Igreja um rei liberal mandava pagar boas tenças e pensões a seus preciosos funcionários um rei afável agradava os fidalgos D João V levou em conta cada um desses pontos das cartilhas que louvavam as virtudes reais na hora de gastar o ouro acumulado de dar a cada um o seu a fim de preservar as diferenças que a natureza marcara entre pessoas desiguais Nesse sentido privilegiou as partes do corpo social mais próximas da cabeça aquelas tidas como as de maior virtude na sociedade José Hermano Saraiva resumiu as despesas em poucos números À Igreja pertenceriam rendimentos de montante semelhante ao Estado à nobreza outro tanto dividindose portanto a renda global em três partes de valor aproximado entre os três setores2 Igreja e nobreza de sangue eram consideradas as partes mais próximas da cabeça mística do Estado na forma de entender vinda da Antiguidade e mantida na Idade Média e ficavam com dois terços do arrecadado em ouro A administração o comércio as formas econômicas de produção de riqueza a fidalguia os vassalos e os escravos formavam indistintamente o todo beneficiado com os gastos pela rubrica que o autor denomina Estado As formas para manter as diferenças da Igreja metropolitana detentora de direitos inexistentes na colônia seguiam diretrizes diversas do rigor visto na implantação de ordens religiosas nos territórios mineradores A maior obra do reinado de D João V foi a construção do gigantesco convento de Mafra que empregou 40 mil homens e consumiu o equivalente a 140 toneladas de ouro ou vinte anos de arrecadação do quinto de ouro no Brasil Essa foi apenas a parte maior mas não a mais conspícua dos gastos Entre os regalos de Sua Majestade aos prelados nenhum causou mais furor que os recebidos pelos cardeais Pereira e Cunha 50 dúzias de pratos de ouro para cada um A mesma atenção recebeu a nobreza como se nota no crescimento do pagamento de pensões que saltou do equivalente a 45 toneladas de ouro anuais em 1681 para 85 toneladas em 1716 e nada menos que 274 toneladas anuais em 1748 Portanto D João V promoveu a montagem de um sistema tributário colonial com ênfase na arrecadação e a associou a uma política de gastos de caráter estamental Retirava o ouro produzido pelos que constituíam as partes mais baixas do corpo social e o entregava aos estratos mais elevados Só no final de seu longo reinado o monarca teve a preocupação em fazer um investimento para melhorar o estatuto do Brasil Em 1743 o rei nomeou seu secretário Alexandre de Gusmão nascido em Santos vila da capitania de São Paulo para o Conselho Ultramarino a mais alta instância de governo do mundo colonial português Ao assumir o cargo Alexandre de Gusmão começou a pesquisar no arquivo da instituição com uma estratégia clara buscar todas as evidências documentais das andanças pelo sertão de todos os grupos resultantes da aliança entre Tupi e portugueses E foi assinalando em mapas os pontos citados nos documentos até vislumbrar uma demarcação contínua do território Depois reuniu argumentos para transformar papéis e mapas em documentos capazes de fundamentar pretensões de domínio territorial reconhecidas pelo direito internacional Completou o trabalho com o envio de espiões para verificar a situação de zonas fronteiriças e fazer relatos e mapas favoráveis para reforçar os argumentos nos casos duvidosos Após quatro anos de trabalho foi encarregado em 1747 de negociar as fronteiras entre os territórios americanos de Espanha e Portugal Apresentou sua tese em vez de discutir o direito ao território com base na documentação tradicional bulas papais e o Tratado de Tordesilhas por que não empregar a posse como critério traçando a linha de fronteira pelos pontos que separavam os territórios ocupados pelos súditos de cada reino Gusmão alcançou seu objetivo no Tratado de Madri firmado em 1750 a posse efetiva do território serviu de critério para a delimitação de fronteiras quase todas delineadas em função de limites físicos rios divisores de água das ocupações e incursões de moradores restando apenas uma linha imaginária ligando o extremo sudoeste do Amazonas ao norte de Mato Grosso A nova configuração das divisas indicada num mapa anexado ao tratado delimitou uma área que coincidia em grande parte com o espaço TupiGuarani ficando entremeados a este os territórios das vilas e também aqueles dominados pelos Caribe Jê e Aruaque a maioria ainda desconhecidos dos TupiGuarani e portugueses Desse modo a área de domínio da aliança lusoTupiGuarani se transformava em unidade reconhecida juridicamente pelo direito internacional e identificada pelo nome de Brasil Os muitos atos de casamento entre mulheres nativas e lusitanos o apoio dos chefes aliados aos genros e viceversa as incursões de guerra escravidão ou negócios a destruição de outras etnias o controle de espaços e a busca de riqueza passavam todos para outro plano Tidos até a véspera como impróprios ou ilegais adquiriram o estatuto de atos fundadores do domínio jurídico do reconhecimento internacional das fronteiras do território e de marcadores de uma unidade soberana portuguesa A morte de D João V no mesmo ano da assinatura do tratado assinalou também o fim da concentração dos gastos na nobreza e no clero Seu sucessor D José preferiu governar por meio de um valido o marquês de Pombal que tinha outra concepção das prioridades do Reino Ele estava convencido de que era melhor dar dinheiro a comerciantes e empresários para que multiplicassem a riqueza econômica por meio de investimentos rentáveis Todavia alterar a destinação dos recursos não era nada simples numa sociedade em que a lei funcionava como instrumento de garantia de privilégios estamentais até mesmo para um homem com os poderes de rei Para dar a quem necessitava seria preciso tirar de quem não queria perder E cada um contemplado pelo monarca anterior tinha tomado bastante cuidado para registrar a benesse como direito adquirido Como notam Manuel Hespanha e Angela Barreto A derrogação de um direito adquirido a propriedade de bens posse de ofícios detenção de um privilégio irrevogável o direito de não pagar certos impostos só era possível em sede judicial Dito isto já se vê como os tribunais como instância de salvaguarda da justiça e da defesa dos direitos adquiridos de cada um ocupam na esfera do Antigo Regime uma função constitucional determinante 3 A palavra constitucional não tem o sentido atual uma vez que as leis maiores do reino as Ordenações eram uma coletânea de normas consuetudinárias daquilo que havia sido adquirido como direito por grupos específicos e não um conjunto de normas gerais Esse modo de governar no qual a lei era talhada na medida de cada favorecido tornouse um obstáculo espinhoso quando Pombal quis mudar o feitio do gasto governamental Só podia dispor de certas partes da receita do Estado pois cada ceitil que não fosse entregue aos detentores de direitos adquiridos quase certamente seria objeto de processos contra o Erário Na busca por um alvo que fosse ao mesmo tempo relacionável aos estratos superiores e com menos direitos adquiridos acabou por se fixar nos jesuítas em especial aqueles a quem os soberanos haviam delegado poderes equiparáveis aos dos funcionários da Coroa o que de fato haviam sido Já em 1751 o marquês tomou uma medida similar à deliberada por D João V transferiu competências de instâncias menores de governo para o poder central subordinando ainda mais o Estado do GrãoPará diretamente à Coroa Em seguida nomeou o próprio irmão Francisco Furtado Mendonça para o seu governo No ano seguinte o governador arrancou assinaturas de comerciantes locais para um pedido de incentivo ao comércio A tal ajuda viria em 1755 na forma de uma companhia monopolista de comércio constituída por capitais particulares mas que também desfrutava de concessões governamentais que iam desde o monopólio comercial em todo o novo estado até um conjunto de isenções de impostos e privilégios alfandegários Evidentemente eclodiram protestos da parte dos negociantes prejudicados pelo privilégio legal mas também houve gritaria da parte dos jesuítas que tinham bons lucros com a venda da produção dos diversos aldeamentos no Maranhão e no Pará Dessa vez os argumentos não foram entendidos como defesa de direitos adquiridos Pombal aproveitou a segurança jurídica oferecida pelo reconhecimento do domínio português no Tratado de Madri e promulgou uma lei que transformava todos os nativos tutelados do território em súditos da Coroa Ao estender a eles a condição de homens efetivamente livres Pombal anulava a política que vinha desde os tempos de Mem de Sá dois séculos antes Para regulamentar a situação promulgou também um Diretório dos Índios detalhando o novo estatuto legal dos nativos no Estado do GrãoPará e não em todo o Brasil Pela nova lei as aldeias onde viviam os nativos transformaramse em vilas Os nativos viraram súditos sujeitos a obrigações que iam desde o modo correto de morar até o serviço militar passando pelas modalidades autorizadas de comércio Antecipando a objeção de que os nativos desconheciam a lei esta previa a nomeação de um diretor para cada aldeia um português encarregado de fazer os moradores se adaptarem ao novo figurino com poderes muito mais amplos que os dos padres que administravam aldeamentos Pombal derrogou todos os fundamentos construídos pelos jesuítas Quando estes reclamaram o marquês os chamou de insubordinados algo possível para quem era administrador de toda a Igreja no reino iniciou um processo em Roma e atacou firme Em 1759 expulsouos de todos os domínios portugueses e transferiu para a Coroa todas as propriedades e bens da Companhia de Jesus em seu território Tomando para a Coroa o governo e a administração em áreas da colônia em que não havia ouro Pombal inaugurou uma fórmula para arrebanhar uma parcela ainda maior da produção brasileira arrochar a riqueza local e encher os bolsos de governantes e comerciantes privilegiados com favores monopolistas do governo A estratégia repetiuse no Sul com a redivisão da capitania de São Paulo e a transformação das novas capitanias de Santa Catarina e São Pedro do Rio Grande em áreas de assentamento de colonos açorianos e sob o controle direto do governo metropolitano O alvo seguinte foi Pernambuco nessa altura o último espaço economicamente relevante do Brasil no qual a instância intermediária de governo a capitania ainda operava com a autonomia derivada da força política dos herdeiros do donatário original Primeiro o marquês concedeu favores aos comerciantes metropolitanos que constituíram a Companhia de Pernambuco e da Paraíba Como esses favores não permitiram afastar a concorrência em área sem monopólio o empreendimento não teve o mesmo sucesso Apesar disso o método voltou a ser aplicado Em 1799 na tentativa de contornar os direitos adquiridos existentes o governo central dividiu o território pernambucano com a criação das capitanias do Ceará e da Paraíba e nesta o comércio foi entregue a uma companhia monopolista formada em Lisboa Assim se completou o chamado Século do Ouro no qual a Coroa foi atribuindo para si poderes crescentes Na área administrativa com a elevação de estatuto do seu maior representante agora um vicerei e o controle direto pelo monarca do governo de quase todas as capitanias e de seus cargos administrativos seja pelo uso de tropas militares em funções de polícia seja pelo privilégio legal concedido a comerciantes próximos ao centro do poder Essa concentração de poder administrativo coincidiu com um grande aumento na receita de impostos originários do Brasil que passou a quase pagar toda a conta de manutenção do império português Esses impostos por sua vez geraram despesas nas quais a metrópole era privilegiada as pessoas próximas ao Rei recebiam benesses seja no caso do clero e da nobreza como nos tempos de D João V seja no dos comerciantes e empresários na época de Pombal Em qualquer dos casos os brasileiros passaram a pagar muito mais impostos do que aquilo que recebiam como serviços ou investimentos do governo metropolitano De modo a atualizar o velho objetivo do governo central de arrecadar muito e gastar pouco no Brasil havia sido montada sobretudo nas regiões mineradoras uma estrutura peculiar Um funcionário temporário vinha na função de governador Sabia que desde que o rei recebesse sua cota de impostos pouco se importaria com o fato de ele mesmo aproveitar a oportunidade para enriquecer também A melhor oportunidade era escolher novos comerciantes com os quais se associar na função de cobradores de impostos Os interessados aprenderam depressa a considerar o convite uma oportunidade de curto prazo de modo que tratavam de agir com os mesmos métodos do governante Para todos os envolvidos no alto escalão rei vicerei governadores e arrecadadores locais o objetivo maior era o já citado de arrecadar muito e gastar o mínimo possível Com a rotatividade nesses cargos o Brasil se tornava um fornecedor de mais dinheiro para a metrópole e no sentido inverso a metrópole se reafirmava como território recebedor de dinheiro arrancado da colônia pelo governo central reforçando a tendência que vinha do século XVI Maior poder político e muito maior disponibilidade de dinheiro para o governo central levam a imaginar que a economia metropolitana para a qual se faziam tantos favores teria colhido os benefícios do governo que a privilegiava em outras palavras que seria bem mais pujante que a do Brasil de onde se arrancavam os tributos e lucros com mercadorias exportadas Durante séculos essa foi a suposição dominante entre os historiadores Lendo os documentos que falavam das violências do governo metropolitano e dos seus prepostos nas capitanias assim como dos gemidos dos moradores tais historiadores escreveram sobre o período como se não tivesse havido ganhos no mercado local Todavia a partir da década de 1970 com os novos métodos estatísticos aplicados à história econômica veio a surpresa ao longo de todo o século XVIII apesar da ação de transferir rendas do governo central o desempenho da economia colonial superou o da economia metropolitana No final do século quando decaiu a produção das minas essa diferença se acentuou ainda mais com a economia brasileira em franco crescimento ao passo que a da metrópole entrava em crise4 Para se entender como ocorreu esse desenvolvimento maior não há como recorrer a velhas hipóteses como a que postula o apoio do governo metropolitano à colônia Em vez disso a resposta está nas estruturas remanescentes dos governos das vilas e dos costumes dos moradores governandose a si mesmos CAPÍTULO 18 Ouro e redistribuição dos governos no território A EXPANSÃO DA ESFERA CENTRAL DE GOVERNO FOI IMENSA NO SÉCULO XVIII COMO um todo Na altura da viagem de Artur de Sá e Menezes em 1697 o governogeral desfrutava de uma margem de manobra quase nula no interior do território Mal e mal tinha atuação regular em Salvador única cidade na qual contava com oficinas Afora isso apenas os jesuítas pagos pelo rei e sem depender de moradores eram agentes regulares da esfera central pois os demais padres embora funcionários públicos dependiam dos moradores para ter rendas Na esfera intermediária o centro comandava apenas as capitanias do Rio de Janeiro e da Bahia A substituição do governogeral pelo vicereinado foi o primeiro passo na organização de uma nova estrutura de comando A arrecadação de impostos nas zonas minerais o pivô das mudanças levou o governo central a se mexer em 1763 a capital foi transferida de Salvador para o Rio de Janeiro refletindo as novas prioridades O reforço da esfera central não se limitou a essa alteração de estatuto O maior avanço ocorreu no domínio da esfera intermediária A recompra da capitania de São Paulo permitiu a criação de novas capitanias no interior subordinadas diretamente à Coroa e desprovidas de autonomia administrativa Essa foi a forma de governo que passou a predominar nos sertões São Paulo Minas Gerais Mato Grosso e Goiás as quatro capitanias que não tinham sede no litoral passaram a ser governadas por delegados temporários vindos de fora sem raízes locais e com objetivos que não coincidiam com aqueles dos moradores Mas esse tipo de ação não se restringiu à zona mineradora O Pará também virou uma zona sob o controle mais direto de Lisboa Santa Catarina e São Pedro do Rio Grande no Sul foram separadas de São Paulo e tornaramse capitanias dependentes da autoridade central Na Bahia as capitanias de Ilhéus e Porto Seguro converteramse em unidades subordinadas a Salvador No final do século XVIII o domínio da Coroa sobre as capitanias era quase total Apenas Pernambuco mantinha umas tantas prerrogativas próprias e por isso mesmo o seu território acabou sendo fatiado com cada nova capitania perdendo a sua autonomia Essa inegável expansão da autoridade do governo central no entanto pode indicar a formação de um governo unificado no Brasil ou que a população tinha um só governo Para comprovar isso o melhor é examinar a situação a partir do território Até nessa área houve uma mudança conceitual importante Na virada para o século XVIII a área abrangida pela aliança lusoTupi era fluida apenas uma parte indeterminada das Terras Baixas na zona tropical do continente A partir de 1750 com o Tratado de Madri a área foi delimitada com fixação dos limites da autoridade metropolitana no espaço territorial E era muito espaço nos termos oficialmente reconhecidos nada menos que cerca de 8 milhões de quilômetros quadrados Tal território em tese marcaria o âmbito da ação de um governo central com controle e comando Na prática porém não era bem assim Havia muita gente no território que jamais vira em vida um europeu ou mesmo um descendente miscigenado deles Essa população nativa continuava governando a si mesma em cada aldeia segundo seus costumes Do mesmo modo esses costumes guiavam o relacionamento com grupos mais próximos em termos culturais povos de mesma etnia ou língua E continuavam travando guerras ou firmando alianças com povos de etnias ou línguas diversas Ainda no final do século XVIII os governos de aldeia continuaram sendo os únicos conhecidos em quase toda a bacia amazônica que ocupava mais da metade do território Imensas porções dos atuais estados de Mato Grosso Mato Grosso do Sul Goiás Tocantins São Paulo Paraná Santa Catarina e Rio Grande do Sul eram controladas por povos que não mantinham relações de aliança com os TupiGuarani Na maior parte dos casos os territórios nos quais viviam eram pouco conhecidos e pouco frequentados pelos TupiGuarani ou por seus aliados das vilas No entanto ao longo do século a pressão vinda da porção que se mercantilizava a área sob o domínio das vilas levou cada vez mais adiante as incursões dos TupiGuarani que ali viviam Os parentes distantes dos aliados por casamento iam na frente abrindo o caminho para cada vez mais caravanas mercantis formadas por europeus nativos e miscigenados No início do século XVIII esses grupos percorriam apenas alguns rios maiores Ao longo do período em especial na Amazônia os vales dos principais afluentes conheceram uma devastação imensa em decorrência dessas incursões Quem tentava resistir o Aruaque Ajuricaba à frente de uma coligação de muitos povos do rio Negro na terceira década desse século é o exemplo mais conhecido era massacrado obrigando os sobreviventes a buscar refúgio em áreas inacessíveis às canoas dos forasteiros Parte dessa pressão deviase ao fato de que o território original dos TupiGuarani também conhecera transformações relevantes A área de influência das vilas era restrita no final do século XVII mal e mal chegando a uns poucos quilômetros além das praças da matriz Além disso quase só existiam vilas na faixa litorânea Qualquer incursão mais distante no interior requeria a organização de caravanas de aliados nativos No final do século XVIII por outro lado havia muitos caminhos no interior do continente pelos quais as caravanas originárias das vilas levavam mercadorias com o auxílio secundário dos aliados vivendo na mata Alguns percursos ainda eram aventurosos como as monções que seguiam de São Paulo ou Belém para em viagens de seis meses levar artigos adquiridos pelos enriquecidos com o ouro de Cuiabá Muitas dificuldades foram vencidas e as antigas trilhas Tupi se tornaram picadas viáveis para imigrantes que afluíam em massa de Portugal ou para as caravanas de escravos africanos que seriam vendidos no interior do continente Antes de examinar esse tipo de negócio no entanto cabe dizer algo sobre a situação dos Tupi e dos outros nativos que tiveram de ser afastados para tornar possível esse tráfego Todos esses grupos indígenas sofreram com o aumento da ocupação A existência anterior sob os governos consuetudinários só continuava possível em franjas marginais Ao longo do século XVIII porém consolidaramse também formas de convivência que permitiam aos TupiGuarani sobreviver em bolsões situados nas áreas sob controle das vilas O projeto original dos jesuítas o de reunir índios aliados no espaço segregado do aldeamento aos poucos tornouse uma instituição corriqueira nas vilas de todo o Brasil Os que ali viviam passaram a ser chamados índios bons numa referência indireta ao estatuto dos homens bons os fidalgos eleitores A ideia da liberdade natural antes tão estranha ganhou uma tradução pela qual a situação do nativo aliado ainda que não fosse de liberdade plena não se confundia com a escravidão O arranjo se fez por meio de regulamentações no instituto da tutela no início reservado apenas para os jesuítas encarregados de assegurar a liberdade dos nativos No decorrer do século o conceito de tutela foi tendo o seu sentido alterado O termo escravidão foi definido como o ato de comprar e vender pessoas como mercadorias em troca de dinheiro e isso continuou sendo proibido Também continuou proibida a transmissão de nativos por herança Todavia por meio da chamada administração a tutela exercida apenas pelos religiosos foi estendida à população civil Agora o indígena recebia um tutor que deveria educálo para a religião católica e representálo perante as autoridades civis e por isso em troca adquiria o direito de ficar com parte do resultado do trabalho do administrado que em teoria era livre para ir e vir além de poder recusar trabalhos O instituto do aldeamento ou seja a terra demarcada que era propriedade dos nativos e onde podiam viver segundo alguns de seus costumes foi reformulado como administração e sobreviveu à transformação do estatuto dos nativos que passaram de tutelados a súditos assim como à expulsão dos jesuítas No final do século XVIII encontravamse aldeamentos até mesmo nas maiores cidades e remontam a essa época os primeiros censos da população Um dos mais detalhados feito na Bahia por José Antônio Caldas em 1759 indicava a população de 29 aldeamentos nas capitanias da Bahia Ilhéus e Porto Seguro 29 mil casais e um total de 102 mil moradores1 Nesse mesmo ano haveria nas vilas 286 mil fogos unidades produtivas familiares e 205 mil moradores2 Com isso as famílias de nativos seriam equivalentes a 103 das unidades produtivas e os moradores de aldeamento equivaleriam a 49 da população total Tais números apresentam discrepâncias e boa dose de imprecisão Ainda assim mostram que os aldeamentos continuavam fazendo parte da realidade social e produtiva até mesmo na área sob controle das vilas Com muitas alterações na sociabilidade e nos costumes ainda era um espaço no qual havia algum grau de autonomia governamental para os aliados históricos que haviam garantido a ocupação e a segurança do território E nunca é demais relembrar parte da sobrevivência dos aldeamentos devese ao fato de que os colonos auferiam lucros monetários nas relações com os nativos Mesmo em áreas remotas estes constituíam um mercado potencial para os utensílios de ferro e eram fornecedores de diversos produtos e de mão de obra Continuaram propiciando oportunidades de acumulação de capital Continuaram sendo essenciais para a segurança Continuaram fornecendo conhecimento da natureza tropical O governo das vilas era exercido num espaço mesclado com a área dos aldeamentos e os territórios não demarcados onde predominavam os aliados nativos A parcela maior de domínio territorial compunhase de pontos descontínuos e dispersos por todo o sertão Muitos não passavam de ranchos a partir dos quais os moradores de vilas organizavam incursões de troca com os aliados Outras áreas descontínuas eram os currais de gado no caso do Nordeste em especial locais de descanso para tropas sobretudo no Sudeste ou as roças que geravam pequenas aglomerações de caboclos que se estabeleciam ao longo dos trajetos das caravanas comerciais Aqui e ali despontavam áreas de produção econômica regular e moradores permanentes produzindo para o mercado e comprandolhe os produtos No século XVIII já estavam espalhadas por todo o território do Rio Grande do Sul ao Amapá da Paraíba ao interior do Amazonas Com frequência a comunicação entre os mercados se fazia por meio de um novo tipo de caravana a tropa de mulas conduzida por um pequeno empresário que cobrava frete para as cargas em função do peso da mercadoria e da distância do trajeto recebendo sempre em dinheiro Mas também reservava parte das bruacas para suas mercadorias negociando ele próprio pelos caminhos À diferença de quase todos os comerciantes estabelecidos os tropeiros não se pautavam pela instituição do fiado Compravam e vendiam à vista acumulando os lucros sob a forma de dinheiro sonante Estabelecidas no decorrer do século XVIII as rotas de tropeiros tornaramse assim indicativos claros da localização e do tamanho dos mercados No final do século nenhum caminho de tropas era mais movimentado do que aquele ligando o Rio de Janeiro às mais importantes cidades mineradoras das Minas Gerais Em seu tronco principal circulavam até 400 tropas por semana transportando mercadorias de todo tipo no final do século voltavam com a produção agrícola e industrial tecidos especialmente que já era relevante na região e tinha mercado na capital Esse contingente de tropeiros respondia por apenas uma fração do abastecimento de Minas Gerais Outra rota importante era a existente entre a região mineira e a vila de São Paulo Neste caso também eram significativos os lucros com a venda das próprias mulas um negócio que ia além das fronteiras geográficas brasileiras Os criadores estavam quase todos no território espanhol da bacia do Prata A descoberta do ouro fez com que em poucos anos tenha surgido um caminho até lá pelo interior do continente Já em 1720 os paulistas compravam regularmente mulas jovens nos domínios espanhóis de onde eram conduzidas até os pastos de recria nas cercanias de Curitiba Adultas eram conduzidas até Sorocaba local de uma grande feira anual Não demorou para que a feira de Sorocaba refletisse o dinamismo da economia no território agora reduzido da capitania de São Paulo e era um indicador sempre positivo Na segunda metade do século XVIII eram ali negociadas mais de 10 mil mulas por ano o suficiente para abastecer no mesmo período 125 mil tropas novas Os compradores adestravam os animais misturandoos com as pachorrentas bestas mais velhas Os carregamentos seguiam sobretudo para a região mineradora mas o plantel era revendido para todo o Brasil Com isso as Minas Gerais passaram a ser outro centro de redistribuição do qual saíam caminhos para todos os pontos do interior No final do século até Goiás e Mato Grosso passaram a receber tropas saídas de Minas Gerais e que levavam mercadorias trazidas do Rio de Janeiro No início os baianos também eram compradores importantes das mulas paulistas empregadas em tropas que abasteciam as regiões mineradoras do estado com produtos de Salvador No retorno para a antiga capital muitas dessas tropas cruzavam com caravanas que levavam outra mercadoria produzida com capitais brasileiros fora do espaço territorial local os escravos africanos A exploração do ouro desencadeou um crescimento vertiginoso do tráfico de escravos o qual se estendeu por toda a costa africana até mesmo em áreas fora do domínio português Assim que viram a escala da demanda os traficantes de Salvador aceleraram ao máximo o envio de navios negreiros ao litoral africano Por volta de 1730 a região começou a receber frotas navais regulares de comerciantes baianos E logo estes abriram uma rota ainda mais lucrativa ao empregar o tabaco como moeda de troca na Costa da Mina Formalmente o território era holandês Na prática como os navios enviados levavam propinas sob a forma de mercadorias destinadas aos oficiais holandeses não havia nenhum empecilho oficial para o tráfico nos centros dedicados a esse negócio no litoral Tamanha era a frequência que se arranjou o estabelecimento de um posto permanente exclusivo dos traficantes baianos a fortaleza de Ajudá onde aportavam a cada ano cerca de duas dúzias de navios vindos da Bahia Assim como no Brasil a economia local era movida por uma combinação de trocas diretas de mercadorias negócios pagos com moeda guerras casamentos e acordos políticos Isso permitia inclusive que mestiços brasileiros cuidassem de negócios numa cultura com que já estavam familiarizados Um deles foi Félix Soares de Souza filho de português com índia que se mudou para Ajudá e lá se estabeleceu Começou a carreira de comerciante em posições inferiores Mas mostrouse muito hábil para tirar proveito de alianças matrimoniais das guerras e dos negócios ganhando fama pelo proverbial cumprimento da palavra empenhada Subiu tanto na vida que acabou virando rei do Benim Morreu já no século XIX deixando 53 viúvas 100 filhos 2 mil escravos para vender e uma fortuna em dinheiro O domínio de brasileiros era igualmente forte nas possessões africanas de Portugal Angola e Moçambique recebiam navios enviados do Rio de Janeiro Salvador e Pernambuco Eles levavam mercadorias diversas e o ouro que financiava os captores africanos e o comércio local e na volta traziam os escravos Na África a administração metropolitana era da mesma natureza que a brasileira limitandose a cobrar impostos O dinamismo econômico e social na colônia durante o século XVIII parece sugerir que havia sentido na intuição exposta por frei Vicente do Salvador havia um mercado em funcionamento fora da esfera governamental desde as ocas dos índios até as casas dos grandes traficantes os homens mais ricos do Brasil mais ricos até do que os mineradores bemsucedidos Mas é essencial notar uma mudança Ao falar de governo o frei referiase a um governogeral que mal passava de um adendo administrativo na capital da colônia Por outro lado no fim do século XVIII havia de fato um governo central operante no Brasil com capacidade para comandar as instâncias intermediárias de poder Mas continuava como dizia o frei só curando para receber suas rendas e seus direitos o que obrigava os colonos a zelar apenas por seus negócios particulares Com isso tal como no caso das alianças de casamento com nativos a era da mistura geral de raças da ampliação da presença do escravo africano num ambiente de desigualdade econômica e social o que movia o século do ouro era a mescla de governo local e costumes ou visto da perspectiva oposta o governo formal ainda que ampliado para as capitanias pouco teria a ver com a dinâmica mercantil da ocupação do território Mas o que era invisível para o frei tornouse evidente para estudiosos de história econômica possibilitando um retrato numérico dessa realidade CAPÍTULO 19 Riqueza e empreendedores UMA DAS ORIENTAÇÕES DO MARQUÊS DE POMBAL QUE CHEFIOU O GOVERNO metropolitano a partir de 1750 foi a de que os funcionários produzissem censos regulares da sociedade e da economia No caso brasileiro as informações censitárias mais amplas foram aquelas registradas pelos funcionários mais conspícuos do governo os padres que passaram receber dados de cada paróquia em cada vila brasileira e com eles puderam compilar os chamados maços de população Esses dados eram arquivados com outros produzidos nas paróquias e depois consolidados na medida do possível a partir de cópias enviadas a Lisboa Num tempo em que os documentos eram manuscritos tinham de ser lidos um a um Como não havia processos mecânicos de cálculo as contas para avaliar os dados eram limitadas Sem imprensa cada cópia de cada página tinha de ser feita manualmente e os envios eram demorados Com tudo isso a consolidação de dados era precária e acabava circulando apenas num circuito muito limitado Para os historiadores que vieram depois as dificuldades se mantiveram a dispersão das informações inviabilizava qualquer tentativa de análises mais generalizantes Liam então os documentos produzidos pelos governantes que em geral realçavam o próprio papel e denegriam a situação local Sem alternativas argumentavam em torno daquilo a que tinham acesso Mas tudo mudou quando esses dados foram digitalizados e organizados permitindo que fossem acessados com maior facilidade e analisados como totalidades Com isso o conjunto passou a fornecer um retrato estatístico de certa coerência e as revelações foram surpreendentes Ainda na década de 1970 o historiador francês Fréderic Mauro recorreu a técnicas quantitativas para examinar as relações entre as economias do Brasil e de Portugal no final do século XVIII Na visão tradicional de história econômica esse seria um período caracterizado por uma produção decrescente de ouro E pensando a economia colonial apenas como um reflexo das suas exportações imaginouse que essa queda nas exportações implicaria uma tendência de empobrecimento do Brasil Todavia o que Mauro constatou com base nos números foi bem o contrário Enquanto a economia brasileira registrava uma curva ascendente de crescimento entre 1787 e 1825 a economia portuguesa vivia um ciclo descendente iniciado em 1770 e que se estenderia até 1790 ano em que teria início uma ascensão até a segunda década do século seguinte Os dados apontavam para um período de progresso na economia brasileira que teria se iniciado numa época de franca decadência da produção de ouro O historiador foi cauteloso na hora de tirar as conclusões Seríamos tentados a falar que após a crise do ouro o Brasil teria mergulhado numa economia estacionária Mas é o período em que se desenvolve a criação poderíamos falar num ciclo do gado e as culturas de substituição cacau no Pará algodão e arroz no Nordeste e no Sul1 Ao estudar as balanças comerciais entre Brasil e Portugal no mesmo período José Jobson Arruda levanta uma hipótese para explicar os fatos revelados em pesquisas quantitativas O que aconteceu no período que vai de 1796 em diante Se o ouro estava em fase de declínio e o açúcar conhecia uma leve ascensão como pôde crescer o movimento das exportações neste período Como se explica o salto de 32 milhões de libras em 1796 para 38 milhões em 1807 Só há uma resposta Uma diversificação2 Pouco depois ao enfocar o mercado do Rio de Janeiro João Luís Fragoso notou uma discrepância ainda maior No período de 1799 a 1811 enquanto as exportações locais registravam uma queda muito forte a uma taxa média de 179 ao ano resultante sobretudo da diminuição dos embarques de ouro as taxas de crescimento dos produtos de mercado interno como a farinha e o charque continuavam positivas Mais ainda as vendas de escravos africanos cresceram a uma elevada taxa de 51 ao ano3 Com a acumulação dos dados ficou cada vez mais evidente que no final do século XVIII a economia colonial brasileira era pujante e pujante em decorrência do crescimento de seu mercado interno Mais ainda era uma economia bem maior que a da metrópole Entre 1796 e 1807 as exportações brasileiras corresponderam a nada menos que 837 do total de todas as exportações coloniais para a metrópole no mesmo período as reexportações dessas mercadorias geraram 566 das receitas do império português colônia e metrópole com o comércio exterior No sentido inverso o Brasil consumia 748 dos produtos enviados da metrópole a todas as colônias e 591 dos produtos importados pelo Reino Em poucas palavras os números revelam o oposto do que pressupunham as interpretações anteriores a economia brasileira tinha dinamismo próprio e a economia da metrópole dependia disso Quando as estimativas chegaram a um resultado consolidado dessa economia interna o percentual da produção voltada para o mercado interno que a interpretação tradicional em decorrência do emprego da noção de economia de subsistência postulava como insignificante gerava nada menos de 85 da riqueza brasileira bem mais do que os 15 assegurados pelas exportações4 Evidenciouse portanto que o mercado interno era o centro dinâmico da economia colonial algo que estudos posteriores confirmaram como regra que valia desde o início da colonização Essa certeza de uma dinâmica interna se firmaria ainda quando já no final do século XX os historiadores econômicos começaram a analisar estatisticamente os dados dos censos do século XVIII inclusive fazendo agregações para todo o Brasil Embora estas ainda contenham alguma imprecisão as tendências parecem claras como se vê por exemplo a partir da análise do censo de 1819 Ainda que referente a um período um pouco posterior ao final do século XVIII mostra um retrato demográfico e sociológico da sociedade brasileira válido para o entendimento de processos de longo prazo Na época a população total brasileira contava cerca de 439 milhões de pessoas Embora estes sejam os números finais uma parcela importante é pura estimativa 800 mil índios Aí estão incluídos os moradores de aldeamentos portanto devidamente contabilizados Todavia aquela que seria a maior fração da rubrica a dos grupos sem contato e que se governavam pelo costume não podia ser recenseada embora as trocas com eles fossem parte da economia Por isso é bem possível que a quantidade de indígenas tenha sido bastante subestimada Mesmo assim levando em conta esses números notase que os índios livres representavam 182 da população Já os 359 milhões de outros habitantes apareciam em grandes grupos separados pela escravidão A população de moradores livres das vilas era de 248 milhões de pessoas 566 do total Foram contados 11 milhão de escravos ou seja 253 da população recenseada No global portanto 748 eram pessoas livres Ainda que ampliando a imprecisão uma maneira possível de mostrar o perfil sociológico dessa população na economia é recorrer a uma estimativa hipotética Os censos da época empregavam a categoria fogos para classificar as unidades produtivas Cada fogo era definido segundo a tradição aristotélica uma família constituída pelo chefe e seus dependentes mulher filhos escravos e agregados livres Um resultado censitário elaborado com tal conceito foi obtido para a população baiana de 1759 Dividindose a população total calculada por José Antônio Caldas 205 mil pessoas pelo número de fogos 286 mil resulta que cada fogo teria uma média de 76 pessoas Supondo hipoteticamente que a proporção fosse a mesma em todo o espaço brasileiro os 359 milhões de pessoas livres do Brasil de 1819 formariam 5013 mil fogos ou unidades produtivas A distribuição dos escravos entre essas unidades já foi calculada com precisão bem maior a partir dos estudos censitários os quais indicam que a média de escravos por proprietário na virada do século XIX era de cinco cativos Aplicado ao dado censitário o número de proprietários de escravos seria de 220 mil Assim 9 do contingente de homens livres ou 44 dos chefes de fogos o que talvez fosse mais razoável como forma de raciocínio seriam proprietários de escravos Essa larga distribuição do trabalho escravo pelas unidades produtivas contrapõese à ideia de latifúndio e da concentração de riqueza numa minoria populacional O que os números revelam isso sim é um gradiente definido uma grande maioria de produtores independentes de unidades familiares sem escravos que são também unidades produtivas de empreendedores Mesclado sociologicamente a elas está um grupo muito grande de pequenos proprietários de escravos sendo a média aritmética de cinco escravos por proprietário fica claro que a imensa maioria dos proprietários tinha menos de cinco em termos estatísticos a mediana é bem inferior à média Ainda que se empregue a média claramente um número menor que a realidade para agregar num único grupo os não proprietários e os pequenos proprietários neste caso cinco escravos ou menos a soma daria 391 mil fogos ou 78 do total Este é o mínimo para um agrupamento que formava o universo central da produção brasileira no período o das pequenas unidades produtivas independentes Tal espécie de unidade produtiva foi objeto de um estudo específico de Iraci Del Nero da Costa intitulado Arraia miúda que compara dados censitários de várias regiões da colônia e em épocas diferentes do século XVIII e início do XIX O trabalho adota um procedimento metodológico essencial separa a população livre em dois grupos um de pequenos proprietários de escravos e outro de não proprietários de escravos Fez isso inclusive nos subgrupos dos dependentes e agregados Em seguida os dois grupos foram contrapostos em função de uma série de variáveis que iam do tipo de produção econômica de que cada qual participava até os dados de renda e família Dessa maneira o autor traçou um retrato de base empírica mostrando que não havia proprietários de escravos ricos num extremo da sociedade e uma massa de não proprietários com pouca ou nenhuma renda no outro Pelo contrário com base na estatística ele conclui Os não proprietários compunham parcela majoritária da população livre ademais os mesmos não perderam tal posto em face a expressivas mudanças econômicas e demográficas observadas no passar do tempo O crescimento econômico mesmo quando orientado pela expansão do comércio exterior vinha acompanhado de oportunidades das quais usufruíam também os não proprietários de sorte que os mesmos não eram excluídos das áreas economicamente mais dinâmicas nem perdiam sua posição numericamente dominante A conclusão maior é que tanto da órbita demográfica como daquela marcada por elementos de natureza socioeconômica não havia hiato absoluto a distinguir proprietários e não detentores de cativos A impressão deixada pela análise era a de que estávamos a tratar de duas amostras da mesma população 5 Mesmo se tratando de um único estudo ele tem bases censitárias bastante sólidas e diversificadas tanto no espaço como no tempo Sendo assim é estatisticamente improvável que esse indicador não tenha relação significativa com a realidade global da economia brasileira do século XVIII ainda que variantes possam surgir após outros estudos Segundo um resumo das pesquisas quantitativas realizado por Francisco Luna e Herbert Klein os estudos recentes indicam uma sociedade mais complexa com um mercado interno ativo no qual gêneros básicos eram comercializados para suprir esse mercado e também identificam um amplo sistema de comércio regional e ofícios artesanais Em todas essas atividades agricultura comércio e artesanato encontramos proprietários e não proprietários de escravos bem como trabalhadores livres e cativos Encontramos inclusive proprietários trabalhando ao lado de seus escravos Por toda parte havia cativos até mesmo nos domicílios caracterizados como pobres Não havia região ou atividade econômica sem escravos Mas é importante enfatizar que em todas as atividades exceto na produção de açúcar também havia trabalhadores livres sem escravos6 Além de indicarem uma produção econômica baseada no mercado interno os estudos quantitativos mostraram com clareza que ainda que houvesse concentração de riqueza a produção econômica se estruturava em torno de muitos produtores independentes ou seja de empreendedores individuais a maioria dos quais trabalhava sem escravos ou com contingentes muito reduzidos de cativos Com tal retrato renovado da produção econômica no final do século XVIII a estatística permitiu comparações de magnitude entre economias diversas Uma dessas comparações é esclarecedora Os Estados Unidos exportavam na virada para o século XIX algo em torno de 4 milhões de libras esterlinas anuais como se viu as exportações brasileiras de 1807 foram de 38 milhões de libras esterlinas A diferença de tamanho entre as duas economias portanto estaria mais relacionada ao mercado interno do que ao externo Uma avaliação dessa diferença poderia começar pelas comparações demográficas Em termos de urbanização as três maiores cidades dos Estados Unidos Nova York Filadélfia e Baltimore tinham por volta de 65 mil habitantes em 1810 uma população equivalente à das três maiores cidades brasileiras Rio de Janeiro Salvador e Recife na mesma época Em 1800 a população dos Estados Unidos era de acordo com os critérios censitários locais de 53 milhões de pessoas sendo 41 milhões registradas como caucasianos 81 e 11 milhão de outros 19 Em termos gerais a população era cerca de 20 maior que a brasileira A proporção entre homens livres e escravos também era semelhante As diferenças maiores estavam nos conceitos O critério de classificação norte americano pressupõe uma identidade completa entre a situação étnica de caucasiano e o estatuto social de pessoa livre Desse modo a classificação étnica funcionava como sinônima da posição social o mesmo valendo para o papel de escravo O emprego do termo outros para se referir a escravos negros era então bastante amplo constando até mesmo do texto da Constituição norteamericana E o corte que fazia coincidir a situação racial com o cativeiro tinha um sentido empírico com baixíssima taxa de alforria e leis locais baseadas na raça por exemplo os negros eram proibidos de votar fossem ou não escravos os negros livres compunham um grupo muito pequeno naquela sociedade Outra diferença radical é a ausência de índios no censo norteamericano Isso acontecia porque estes eram considerados pessoas de outras nações estrangeiros Tal tratamento conceitual refletia uma prática consagrada Desde o início da colonização os protestantes sobretudo os puritanos adotaram a definição adotada por Jean de Léry no Rio de Janeiro em 1553 consideravam os nativos como pessoas desprovidas de razão incapazes de ler a Bíblia e compreender a verdade revelada eram portanto pessoas que não poderiam fazer parte da sociedade Em consequência a política que se adotou em relação a eles foi de extermínio que não deixou rastros nem nas estatísticas Dessa maneira as diferenças de pensamento geraram censos que mostravam diferenças sociológicas imensas assim descritas por Herbert Klein Embora a sociedade escravista brasileira do século XIX diferisse pouco da existente no Sul dos Estados Unidos em termos de tamanho e peso relativo da população cativa e seus senhores houve diferenças significativas entre essas duas sociedades no tamanho de sua população livre Enquanto nos Estados Unidos mais de 95 da população livre era branca na maior parte do Brasil os brancos tendiam a compor menos da metade da população livre No início do século XIX o Brasil possuía a maior população livre de cor de todas as sociedades escravistas da América 7 Vale lembrar que o termo pessoas livres de cor é uma agregação estatística recente Os censos brasileiros do século XVIII adotavam categorias intermediárias para dar conta de mesclas étnicas As categorias mais comuns eram pardo filho de europeu e índia nas áreas de maior influência Tupi multietnia inespecífica na maior parte do território mulato filho de europeu e africano cabra ou cafuso filho de africano e índia Eram categorias fluidas muitas vezes uma pessoa que enriquecia ou tratava com fidalgos recebia uma classificação a cada censo Assim a mulata Francisca Silva de Oliveira a Xica da Silva à medida que ganhava prestígio social foi sucessivamente classificada como Francisca Mulata Francisca da Silva parda forra e Francisca Silva de Oliveira sem qualificativos pelos recenseadores de Diamantina A explicação é simples e reflete a evolução do seu relacionamento estável com João Fernandes de Oliveira o contratador a maior autoridade da vila O sentido é claro embora as economias do Brasil e dos Estados Unidos tivessem exportações população e proporção entre homens livres e escravos comparáveis o que eventualmente pode levar a supor um resultado econômico total comparável dada a grande participação do mercado interno no total da produção brasileira possivelmente da mesma magnitude que na economia norte americana o domínio de empreendedores na estrutura produtiva e a acumulação de capital centrada na produção escravista os processos de formação da cultura eram diferentes Não se tratava apenas de diversidade no tamanho da produção e da estrutura sociológica Talvez a grande diferença estivesse no comércio exterior A independência política em 1776 permitiu que os Estados Unidos diversificassem o destino das suas exportações As colônias sulinas dependentes da produção escravista enviavam a sua produção para a Inglaterra o algodão comandava a pauta que comprava 90 do total as colônias do centro exportavam sobretudo para a Europa continental 55 das vendas lideradas pelo tabaco já as colônias setentrionais especializaramse em exportações de produtos alimentares e de abastecimento para o Caribe 75 do total Marcadas as semelhanças e as diferenças entre as duas maiores economias do continente na virada para o século XIX fica mais claro o que era próprio da formação brasileira a peculiar relação entre um governo que se pautava pela teoria e a lei escrita do Antigo Regime e uma sociedade com estrutura étnica caracterizada pela miscigenação e por costumes que não eram exatamente os previstos nas leis Tal contraste se tornou ainda maior com o controle da escrita forte ao ponto de influenciar historiadores e suas análises sobre o período por vários séculos CAPÍTULO 20 Governos locais e costumes na mineração do ouro O CONDE DE ASSUMAR FOI UM DOS PRIMEIROS NOBRES TITULADOS A GOVERNAR Minas Gerais Tomou posse em 1717 e deixou o governo três anos depois sem descuidar da arrecadação para o rei e da saúde do próprio bolso Deixou impressões contundentes sobre a experiência A terra parece que evapora tumultos a água exala motins o ouro toca desaforos destilam liberdade os ares vomitam insolências as nuvens influem desordem os astros o clima é tumba da paz e berço da rebelião a natureza anda inquieta consigo e amotinada por dentro é como no inferno 1 O texto atualiza para o século XVIII aquilo que se poderia chamar de visão do caranguejo A chave dessas impressões está na atribuição à natureza do sentido que lhe conferia Aristóteles como autora da divisão entre senhores e escravos que fundava toda a ordem política e social Se os atentados contra essa divisão eram motivo de ironia na pena de Gregório de Matos eles despertam o horror em um nobre habituado a palácios e cortesãos O narrador é um governante plenamente identificado com a concepção de mundo do Antigo Regime com uma sociedade dividida pela natureza entre desiguais A partir desse critério tenta explicar uma sociedade constituída por mineradores afanosos na busca de um quinhão de riqueza que se juntam em uniões que não levam em conta raça ou posição social que empreendem como podem que enriquecem em liberdade Para o governante contudo não passam de desclassificados Assim haveria no Brasil uma contradição entre os costumes de baixo e as leis do alto Recorrendo às categorias de um mundo para falar de outro o conde empregava a escrita como típico narradorcaranguejo tendo como critério os fundamentos da desigualdade que supostamente marcaria a civilização coloca no balaio do mal do desvio e da selvageria tudo o que faziam os súditos Tal postura existia já desde um século quando foi expressa pelo conde E não destoava em nada do que dizem os documentos sobre os ocupantes do governo central e até agora havia poucas razões para que historiadores questionassem esse tipo de opinião No entanto como vimos as pesquisas recentes mostram uma realidade distinta na qual as atividades econômicas são regidas pelo mercado a economia apresenta dinamismo próprio a sociedade é constituída de produtores independentes tanto pequenos empreendedores como grandes empresários a escravidão é essencialmente de pequenos proprietários indistintos do grupo dos produtores independentes há um domínio financeiro sobre a África com grandes empresários os mais ricos do Brasil controlando o negócio e com um ritmo de crescimento maior que o da metrópole arrecadadora enfim tudo isso nos obriga a deixar de lado a concepção da colônia como um espaço subalterno Sem alternativa os historiadores tradicionais seguiam o caminho imaginavam uma economia sem dinâmica pessoas incapazes ou revoltadas e o Brasil que explicavam era uma colônia pobre e de gente baixa Nesse sentido as suas narrativas seguiam na mesma direção do conde Mas as novas descobertas requerem uma mudança analítica radical Não se trata mais de dar uma resposta nova à interpretação que dominou por séculos até os clássicos mas de abandonar o caminho e reformular o problema explicar como se deu esse crescimento da economia colonial enquanto o governo central expandia os seus poderes às capitanias extorquia recursos como nunca em proveito da metrópole e tentava enquadrar os moradores numa ordem pouco adequada para sua realidade de produtores capazes de criar uma economia produtiva Para tanto faz pouco sentido apelar para o já conhecido seja o coevo de definições como as do conde de Assumar e tantos outros até mesmo Gregório de Matos ou as interpretações posteriores que empregavam a noção de economia de subsistência Ou descrever o governo central o caranguejo do litoral como sendo a boa norma e o mundo do sertão como desvio Ou ainda a ordem como resultado da aplicação das Ordenações do Reino e os costumes locais como depravação Sem se atentar para a originalidade do que ocorre na colônia para os novos costumes de busca da riqueza e liberdade de comportamento em relação ao padrão europeu os governos locais e as instituições o novo problema ficaria sem resposta Para entender o progresso da economia na formação demográfica e social da colônia é preciso seguir outro caminho Não só explicitar o papel dos governos locais como reavaliar o julgamento negativo dos costumes predominante na documentação e retransmitido por historiadores que não podiam lidar com as descobertas das pesquisas recentes Uma reavaliação desse tipo partiria da própria lei portuguesa vigente na colônia Se as Ordenações do Reino como um todo determinavam juízos como o do conde de Assumar cabe notar que apenas parte desse ordenamento basicamente os livros IV e V era aplicada aos moradores do Brasil o que faz muita diferença na hora de avaliar o lugar do mercado na vida social A diferença na organização começava já nos poderes reservados aos ocupantes dos estratos mais baixos aqueles sem nobreza nem pertencentes ao clero regular que constituíam o governo eleito das autoridades nas vilas Por meio das eleições eram escolhidos representantes isto é pessoas que recebiam delegação para governar segundo as leis E governar para esses vereadores significava exercer ao mesmo tempo três poderes formular por escrito as leis como os atuais membros do poder Legislativo comandar a sua aplicação como os atuais detentores do poder Executivo e chefiar a aplicação da justiça nomeando juízes No Brasil colonial por toda parte onde se implantou uma vila o mecanismo da eleição mostrouse efetivo e regular como um relógio com ou sem autoridade régia presente As condições de vida da grande maioria dessas vilas regidas com alternância de poder ao longo dos três séculos da era colonial foram mais ou menos as mesmas povos miscigenados com raríssimos alfabetizados analfabetos votavam e eram votados vivendo isolados e longe da autoridade central Caberia aqui uma questão até que ponto os governantes locais mandavam Se comparados aos vereadores eleitos nas vilas de Portugal mandavam muito mais No Reino apesar de os moradores das vilas elegerem os seus representantes os poderes destes eram severamente limitados não apenas pelo rei mas pelos direitos hereditários dos nobres dos senhores de terra do clero dos fidalgos de diversas espécies todos definidos nos títulos das Ordenações que não eram aplicados no Brasil Sobrava muito pouco para os vereadores em Portugal Já na maioria das vilas brasileiras os poderes que se contrapunham aos dos mandatários eleitos eram muito menos presentes Apenas donatários e governadoresgerais depois do ouro no geral capitãesmores nomeados pelo governo central se sobrepunham aos vereadores Ainda com a mudança na melhor das hipóteses o poder de interferência dessas autoridades era constante apenas na vila onde moravam e intermitente ali onde enviavam representantes No Brasil colônia o governo local por meio de autoridades eleitas foi uma estrutura de poder permanente geral e homogênea traço cultural essencial numa realidade social Foram governos com uma dose de consenso e consulta popular capazes de operar com legitimidade Havia no Brasil um grau de soberania popular maior do que na metrópole Nesse caso a lei geral que regulava o assunto não era apenas norma exótica Ganhou um conteúdo efetivo ao se tornar costumeira com o hábito de eleger e confiar no governo coletivo E esse foi um costume popular coletivo constante Não veio do alto não dependeu de iluminados metropolitanos basta isto para se entender o século e meio de isolamento da São Paulo de analfabetos e mamelucos de três em três anos essa gente organizou eleições deu posse aos governos seguiulhes as determinações e os governantes entregaram os cargos aos eleitos Essa esfera de governo era simplesmente desprezada em textos de governantes como o conde de Assumar embora fosse a única esfera de governo atuante em grande parte do território Ao final do século XVIII os governos de vila exerciam autoridade sobre um espaço de magnitude comparável aos governos consuetudinários dos diversos povos nativos Constituíamse em padrão regular seguindo fielmente partes determinadas das Ordenações do Reino mas com substância conferida pela herança da autoridade delegada dos chefes Tupi repassada aos mestiços analfabetos As câmaras processavam diferenças culturais imensas abismos de posição social interesses materiais contraditórios Sobre elas recaía o peso da defesa do território ainda que mitigado pelo surgimento de milícias do governo central e do provimento de serviços de toda espécie Elas obtinham legitimidade suficiente para manter algum consenso interno uma vida suportável para todos Além do poder temporal havia um poder espiritual A Igreja era a única parte do governo capaz de atuar em todo o território em conformidade com um ordenamento uniforme mas isso exigiu concessões de monta à realidade local A parte mais conhecida da adaptação foi desenvolvida pelos jesuítas grandes produtores de documentação escrita para os padrões da época e não à toa pois eram subsidiados pelo governo central em função de contratos que traziam objetivos claros de ação O primeiro grande resultado desse trabalho foi a criação do arcabouço legal que permitiu a conversão dos Tupi e o seu emprego pelos inacianos e pelo governo como agentes sociais e políticos relevantes A ação requereu até mesmo mudança em regras gerais da Igreja como por exemplo a licença papal para casar primos cruzados Exigiu inovações conceituais como a afirmação de um direito inato à liberdade Passou pela legislação com a criação dos institutos legais do aldeamento da tutela e da administração Parte desse esforço atendia a interesses próprios do governo geral Os padres envolveram os nativos aldeados em guerras que interessavam mais a Portugal do que aos indígenas como no caso das lutas contra os franceses e os seus aliados Mais tarde o manejo dos índios de aldeamentos tornouse uma forma consensual entre moradores e padres pois garantia a segurança interna da área das vilas contra ataques de grupos não Tupi e os serviços geridos pelos padres Os jesuítas foram a parte mais eficiente do governo central português até a descoberta do ouro quando foram proibidos de se instalar nas minas progressivamente afastados pelas autoridades enviadas de Lisboa vicerei e capitães nas capitanias reais e por fim expulsos enquanto seus bens passaram para o governo central O ato tornou ainda mais relevante a figura que desde o início da aliança era o esteio da Igreja o padre secular Os primeiros chegaram antes mesmo do governo convivendo com os pioneiros europeus que se estabeleceram no território Como eram tempos em que os padres seculares isto é os padres que não eram formados em conventos de ordens religiosas chamados regulares podiam casar viviam como todos os demais inclusive sagrando casamentos poligâmicos com nativas Somente em 1552 o rei empregou seus poderes para organizar administrativamente a Igreja no Brasil criando um bispado em Salvador Deste partiriam as ordens para criar freguesias e paróquias além da nomeação dos responsáveis O primeiro bispo Pero Fernandes Sardinha viveu às turras com os jesuítas Obrigado a organizar a instituição com o material disponível deixou de lado o rigor dando muito pouca importância à decisão do Concílio de Trento que a partir de 1543 impôs o celibato aos padres seculares A tolerância do bispo com os costumes vigentes segundo os inacianos tornava muito largas as portas do céu A divisão se consumou o bispo e todos os padres dependiam de esmolas dos moradores para viver portanto não estavam em posição de impor costumes rigorosos ao rebanho As críticas dos jesuítas aumentaram de tom e o resultado foi a renúncia do bispo em 1556 Partiu para Lisboa mas acabou capturado depois de um naufrágio Mostrouse guerreiro de coragem ao menos no julgamento dos captores que o sacrificaram e deglutiram sua carne e seu sangue Mas a realidade mostrouse inexorável Os bispos não podiam prescindir do clero secular e esse clero formado por conta própria composto de funcionários públicos que passavam em exame pessoas obrigadas a ganhar a própria vida quando não tivessem postos rentáveis tornouse a regra no Brasil Apenas as vilas mais ricas dispunham de recursos para sustentar conventos de beneditinos e carmelitas num primeiro momento e depois de franciscanos E se até José de Anchieta constatou que só haveria conversão com a adesão a costumes rituais como festas e rezas noturnas os padres seculares foram ainda mais longe Organizaram um modo de ser católico cuja base era uma relação entre o sagrado e o cotidiano mediada por rituais adaptados ao modo indígena procissões romarias festas dos santos muitas vezes figurando deuses de outras culturas e quase nada na leitura que a política de segredo tornava inacessível até mesmo aos ricos comuns A mesma política foi adotada quando vieram os africanos Já no início do século XVII surgiram as primeiras irmandades do Rosário dos Pretos nas quais cultos sincréticos tornaramse regra Nem mesmo as ordens regulares escaparam ao sincretismo Bento Teixeira tido como o primeiro poeta brasileiro conseguiu ser ao mesmo tempo rabino respeitado e monge beneditino nada de muito estranho numa terra para a qual vieram muitos conversos os cristãosnovos judeus que adotaram nova fé para fugir da Inquisição e muitas vezes mantiveram duas identidades religiosas Com isso os padres seculares foram ganhando forte penetração social transformando o culto católico com fortes traços rituais e com ligação direta entre o praticante e o mundo espiritual ao modo dos pajés numa religião de caráter universal em meio a uma sociedade formada por gente de muitas crenças e etnias Como eram também funcionários públicos cumpriam funções de agentes em diversos serviços com as igrejas atuando como oficinas governamentais A documentação eclesiástica tinha valor civil as certidões de batismo casamento e óbito eram registros oficiais Nos dois primeiros séculos as igrejas eram também cemitérios Depois do século XVIII os padres com postos na hierarquia passaram a realizar os censos em suas circunscrições Com isso o governo podia contar com uma rede de funcionários para determinadas tarefas Muitas vezes o padre era o único agente do governo com que tinha contato o morador dos rincões competindo apenas com os concessionários da cobrança de impostos Administrações locais e clero secular eram instituições de governo com atuação geral regular e tão universal quanto era possível no Brasil Funcionavam nos moldes da lei desempenhavam papel fundamental com sua atividade eram a rigor as oficinas do governo a parte que atendia a população atendia a suas necessidades organizava a vida Mas não eram exatamente benquistas pelos governantes a serviço da Coroa que tendiam a se identificar com nobres ou fidalgos de alta linhagem Por isso tratavam a parte vulgar da sociedade plebeus ou mercadores como gente cuja única função na vida política era a obediência cujo modelo era aquele do escravo Essa qualidade central do modelo era bem o que faltava nos moradores das Minas Gerais na visão do governante Um modo alternativo de entender a pestilência que ele descreve seria pensar que os mineradores não eram mais pessoas formadas segundo a lógica do Antigo Regime inclusive em parte substancial de seu governo com várias frações dele servindo a outros propósitos validando outros costumes como bons e morais E o que valia para os governos locais e o clero secular valia ainda mais para certos institutos legais das Ordenações do Reino que regiam a vida civil as relações contratuais entre pessoas CAPÍTULO 21 Costumes e lei civil após o ouro A APLICAÇÃO AO BRASIL APENAS DOS LIVROS IV E V DAS ORDENAÇÕES PERMITIU o surgimento de traços institucionais peculiares na colônia alguns até mesmo inusitados no Ocidente como um todo Uma definição legal que concebida unicamente para os mercadores e o povo acabou ganhando maior espaço na colônia foi aquela que enquadrava a terra como mercadoria pura e simples Desde sempre no âmbito português da América a terra podia ser vendida e empenhada Havia poucas exceções na hora de executar as hipotecas rurais entre as quais a existência de um negócio global engenhos por exemplo e umas poucas proteções para organizações eclesiásticas mas nenhum impedimento para que senhores de engenho ou ordens regulares comprassem e vendessem as suas propriedades fundiárias Com isso desde muito cedo foi possível dividir lotes alienar instalações obter empréstimos Embora corriqueira no Brasil colonial essa situação era incomum em outras partes Na metrópole a maior parte da terra estava tão vinculada a direitos da nobreza ou do clero que a tornavam inalienável ou impediam que fosse empenhada Esses direitos incluíam jurisdições sobre pessoas e serviços algo que não ocorria no caso brasileiro A situação era tão incomum que até mesmo o atilado Karl Marx não a imaginou possível Os homens muitas vezes converteram outros homens em mercadorias mas nunca a terra Esta ideia podia apresentarse somente em sociedades burguesas já desenvolvidas que datam do último terço do século XVII e só foi levada à prática um século mais tarde com a revolução burguesa da França1 Algo semelhante acontecia com o sistema de heranças As Ordenações do Reino aplicadas ao Brasil reconheciam apenas um caminho aquele que mandava dividir os bens entre os herdeiros Como mostra Thomas Piketty não era o que se passava no restante do Ocidente Muitas sociedades aristocráticas tradicionais têm como base do sistema de herança o princípio da primogenitura dando ao filho mais velho a totalidade da herança ou ao menos uma parte desproporcional do patrimônio parental de modo a evitar seu esfarelamento e preservar ou fazer crescer a fortuna familiar Em relação à riqueza a Revolução francesa e o Código Civil por ela cunhado fundaramse em dois pilares essenciais a abolição das substituições hereditárias e da primogenitura com a afirmação do princípio da divisão igualitária dos bens entre irmãos e irmãs a Revolução americana não sem certa polêmica chegou às mesmas conclusões e o princípio de divisão igualitária das heranças entre irmãos foi inscrito na lei como regra padrão No Reino Unido a primogenitura continuou como regra padrão até 1925 na Alemanha foi necessário esperar a República de Weimar em 1919 para que se abolisse a primogenitura2 A norma da divisão entre todos os herdeiros desde o início da colonização no Brasil teve consequências importantes no que se refere ao empreendedorismo Nos primeiros dois séculos em boa parte por causa dos costumes TupiGuarani de realizar alianças matrimoniais com o intuito de trazerem homens para a casa permanente das mulheres o costume levou a um emprego da lei que reforçava ainda o incentivo a empreendimentos individuais Embora sem se referir à origem cultural do comportamento a historiadora norte americana Muriel Nazzari não deixou de notar o que acontecia em São Paulo no século XVII Como na São Paulo do século XVII não havia companhias ou sociedades comerciais formais a família proprietária constituía ela mesma a estrutura por meio da qual se efetivava a produção econômica O casamento era o modo como se formava uma nova empresa produtiva em que o dote da esposa proporcionava a maior parte dos meios de produção necessários para dar início à nova unidade Casarse com uma mulher com dote constituía também um dos poucos modos pelo qual um jovem adquiria recursos independentes Consequentemente o dote era uma instituição importante e o casamento não era assunto privado que interessasse apenas aos indivíduos envolvidos3 Além de ser um modo de viabilizar um empreendimento ao modo da cultura Tupi o dote era uma forma de financiar o empreendedorismo dos jovens a partir dos bens acumulados pelo grupo familiar da noiva Esses bens eram convertidos em investimento em vez de permanecerem imobilizados como patrimônio O processo ganhava escala significativa na medida em que todas as herdeiras da casa tendiam a receber dotes e todos os jovens maridos que se punham a empreender ao lado do sogro buscavam o melhor desempenho para o dote recebido Mas a oferta da noiva também se mostrou um instrumento flexível no sentido inverso isto é como forma de atração de capital Isso aconteceu desde cedo no litoral açucareiro onde a acumulação de fortunas por comerciantes virou meio muito favorável para o casamento com uma filha de senhor de engenho ou mesmo de grande plantador Esse processo difundiuse por toda parte onde havia fortunas monetárias e tornouse regra no Brasil a partir da mineração do ouro nem mesmo a São Paulo isolada das minas escapou da mudança Em meados do século XVIII os maridos contribuíam muito mais para os casamentos que as esposas Assim as mulheres dotadas casavamse com homens de grandes fortunas e permaneciam em melhor situação que seus irmãos que só podiam casar com mulheres com dotes muito menores que os de suas irmãs É provável que esta transformação do pacto matrimonial tivesse relação com o surgimento do comércio no século XVIII o qual permitia que os homens com alguma capacidade empresarial acumulassem grandes fortunas que não tinham relação direta com seu capital inicial Assim se vê que um negociante não precisasse tanto da contribuição em bens de sua esposa quanto um fazendeiro ou um criador de gado ainda que se beneficiasse enormemente das relações que adquiria Como um negociante se interessava mais pelas relações com a família da noiva que seu dote podia aceitar um dote com menos bens do que ele levava para o casamento4 O conhecimento da origem antropológica desses costumes permite inclusive conferir lógica à espécie de família nova que se formava assim descrita por Lúcia Azevedo e Martha Azevedo O que mais chama a atenção na estrutura da família no período colonial e do Império é a extrema importância da família extensa Casamentos legítimos ou não chamados concubinatos entre parentes eram extremamente comuns sendo os mais comuns os de tio com sobrinha e entre primos que são os preferenciais indígenas Também são comuns relações de uma pessoa com vários parentes homem que tem relação com a mulher e a irmã a mãe ou a tia desta ou a mulher que tem relação com o irmão ou o pai do marido Outra característica importante é o compadrio através do apadrinhamento de crianças estabeleciase laços de amizade proteção e solidariedade dentro das famílias muitas vezes parentes são chamados de padrinhos e também entre famílias formando uma rede social que estabelece ligações e obrigações recíprocas O batizado era uma festa importante na realidade quotidiana sendo a criança fruto de casamento oficial ou não Isso era muito difícil de entender para os representantes da Igreja a aceitação de um sacramento o batismo sem a aceitação concomitante do casamento É que assim são estabelecidas alianças rituais através da utilização de um ritual católico mas com um sentido bem diferente Em estudos atuais sobre comportamento familiar do brasileiro é evidente a importância tanto das relações de consanguinidade quanto das solidariedades construídas através de vizinhança e compadrio Deste modo essas assim chamadas relações incestuosas na verdade revelam a existência e aceitação coletiva de relacionamentos que se alternam dentro da família legal ou não consanguínea ou espiritual Nesse sentido mais que um indicativo da dissolução de costumes a análise desses envolvimentos dentro dos sistemas de parentescos afirma uma família capaz de gerar laços internos de solidariedade e afeto Mas é no estudo do papel da mulher que vamos encontrar mais dados sobre alguns arranjos típicos do Brasil que discrepam do modelo prescrito de família sobretudo o patriarcal Durante todo o período colonial as mulheres foram muito mais ativas do que era esperado no modelo patriarcal o que espantava muitos viajantes estrangeiros Tinham um papel grande de liderança social eram fundadoras de capelas curadoras mulheres de negócio administradoras de roças e fazendas A mulher na ausência do marido por viuvez ou por migração para outras áreas o que foi e ainda é bastante comum assumia a gestão dos negócios e da família Eram também líderes políticas locais não podiam ocupar cargos públicos mas exerciam de fato poder político as mulheres das classes altas aparecem em inúmeros documentos envolvidas nas intrigas locais fazendo pressão sobre as autoridades para conseguir o que queriam Por exemplo uma senhora de Sorocaba recebeu em 1798 uma carta do bispo de São Paulo pedindo que ela fizesse chegar aos ouvidos do governador o que lhe contava que é exatamente o papel político das mulheres numa maloca Tupi 5 Com isso em mente dá para identificar a origem cultural de certas realidades notadas pelas pesquisas empíricas assim explicitadas por Francisco Vidal Luna e Herbert Klein As novas pesquisas também trouxeram à luz o papel das mulheres como proprietárias de escravos Ainda que os homens predominassem como chefes de domicílio e proprietários de cativos as mulheres foram um elemento importante em ambos os grupos Além disso como proprietárias elas possuíam o mesmo número médio de escravos que os homens A maioria das mulheres porém assumiu a posição de chefe de domicílio ou proprietária de escravos ao enviuvar e tomar posse de metade dos bens da família Mas houve também muitas mulheres especialmente entre as artesãs e as ocupadas no comércio que foram economicamente independentes graças a recursos próprios os quais com frequência incluíam escravos6 Tanto a aplicação da leitura antropológica dos costumes como os resultados da pesquisa mais recente levam a conclusões bastante diversas da interpretação tradicional que postulava uma estrutura familiar de modelo patriarcal e mostrando que as relações de gênero dominantes atribuíam à mulher papéis que iam muito além da submissão algo relativamente simples de entender quando se sabe o papel central da mulher na sociedade TupiGuarani Mesmo com a monetização da economia e o maior poder dos homens que possuíam dinheiro ou bens para casar sendo da classe social que fossem a regra essencial da cultura TupiGuarani continuou sendo observada no Brasil homens vindos de fora tinham pela via do casamento a possibilidade de serem aceitos num grupo estabelecido Assim se formou uma sociedade miscigenada a partir da descoberta do ouro com o costume original se expandindo para culturas que não o conheciam como a portuguesa ou as africanas A invisibilidade que encobria o papel ativo da mulher valia também para outra instituição generalizada A mais importante e conspícua instituição econômica da vida colonial funcionava inteiramente na base do costume e fora do âmbito da lei e dos documentos escritos O fiado esteve presente desde o primeiro momento quando comerciantes embarcados forneciam apetrechos de ferro aos náufragos os quais se comprometiam a organizar o carregamento de retorno O fiado arraigouse no lado europeizado da colônia em negócios de toda espécie e sobreviveu à monetização progressiva da economia Sem sofrer alterações relevantes a prática conviveu com a circulação da prata espanhola que servia de moeda e capital nos primeiros dois séculos e do ouro no século XVIII Adiantadores de mercadorias em contascorrentes bem como tomadores de mercadorias fiadas como adiantamento produtivo eram as figuras quase absolutas nos negócios desde a costa até os grotões Tratase de uma instituição estruturalmente múltipla a começar do termo que a designa De um lado fiar significa um ato de fé confiar afiançar e ser fiador conceder confiança fiar no bom juízo era expressão comum nos testamentos coloniais quando se deixavam as decisões sobre a herança ao arbítrio de alguém e sobretudo vender a crédito ou na definição do dicionário Morais de 1813 fornecer havendo a palavra do comprador por empenho da paga esperar e ter quase certeza de que o sujeito desempenhará o que dele se cuida7 Fiar também se liga ao ato de empreender Entregar com confiança fia o lavrador as sementes à terra confiar não fiaremos as vidas às ondas aventurar arriscar fazer fundamento estribarse fia na justiça de sua causa Nesse conjunto de sentidos fiar é um modo de construir uma relação que é duradoura e ao mesmo tempo vincula os contratantes pois o fiado é um contrato não escrito uma aliança por um laço de reciprocidade e confiança E há um terceiro conjunto de significados reduzir a fio uma matéria filamentosa trançar fios confeccionar tecido trama com fios tramar urdir criar uma rede 8 Todavia embora sempre presente em toda a história brasileira pouco se sabe sobre o fiado nem mesmo os estudos quantitativos revelaram os traços gerais dessa prática A sua invisibilidade é da mesma ordem da relativa ao papel dos costumes para estruturar a ordem e a governabilidade da vida Até hoje o fiado não foi objeto de estudos sistemáticos em forma de livros teses ou modestos artigos Nem mesmo pesquisas nos modernos instrumentos de busca eletrônica alteraram a situação bancos de dados universitários ou bibliotecas nada mencionam do assunto em seus índices Uma notável exceção é um trabalho de Hebe Mattos que analisa a economia de uma pequena vila fluminense no século XIX As descrições são quase exatamente da mesma natureza da rede de contratos do padre Guilherme Pompeu de Almeida no século XVII comentada anteriormente de modo que os textos a seguir são transcritos na suposição de que podem iluminar um pouco mais essa instituição secular ainda hoje em pleno século XXI dominado pelas transações eletrônicas cerca de um quinto de todas as vendas no varejo brasileiro são registradas em carteiras de fiado As listas de contascorrentes encontradas em profusão nos pequenos inventários analisados mostram significativamente este papel de intermediação entre a pequena produção local com os mercados regionais de produtos agrícolas Nessas contascorrentes em nenhum caso se creditava o recebimento de dinheiro dos fregueses endividados pelo contrário dinheiro em espécie era fornecido com uma frequência maior que qualquer outro bem de consumo habitualmente adquirido como sal açúcar etc Ao mesmo tempo essas casas não funcionavam como atacadistas existentes nos centros comerciais da região onde fazendeiros e negociantes mais abastados mantinham relações comerciais Na ponta inversa os donos de venda debitavam pequenas quantidades de café e farinha de mandioca que apenas em seu conjunto formavam apreciáveis estoques provavelmente comercializados à semelhança dos grandes lavradores nos grandes centros comerciais9 No balanço entre créditos e débitos ficava clara a lógica maior do fiado A importância da comercialização dessa pequena produção agrícola se revela especialmente no peso das dívidas a haver nos ativos dos proprietários das casas de negócio jamais totalmente saldadas Mas elas representavam garantia de fornecimento regular de produtos agrícolas de produção local para serem comercializados nos centros especializados10 Assim o fiado sendo aliança simbólica a forma que preside o pensamento material TupiGuarani organizava o mercado interno mesmo com o emprego muito reduzido de dinheiro ou os negócios que envolviam pessoas desacostumadas culturalmente com o dinheiro como os indígenas ou pouco adaptadas a ele Esse mecanismo invisível inexistente na definição da lei permitia o funcionamento de toda a produção e circulação de riqueza entre as casas particulares como dizia frei Vicente do Salvador Uma economia garantida apenas pelo costume pela palavra pelo fio de bigode Ao largo da lei ao largo do registro escrito ao largo dos governos ao largo das análises Escrevendo sobre o grande comércio do Rio de Janeiro em 1779 outro nobre o marquês de Lavradio fez as seguintes observações ao fim de seu período como vicerei Estes homens ainda que tenham fundos e sejam honrados e verdadeiros não posso considerar suas casas como casas de comércio porque eles ignoram o que é essa profissão e nem conhecem os livros que lhe são necessários nem sabem regular sua escrituração11 Em grau diferente do conde de Assumar o marquês associou o conhecimento da escrita à capacidade de ganhar dinheiro no comércio Embora a boa escrituração de livros comerciais e o conhecimento técnico da matéria fossem uma realidade imperiosa no mundo nem por isso a ausência desses sinais indicava falta de capacidade Apenas um desses indivíduos que o vicerei descreveu como ignorantes deixou uma fortuna equivalente a nada menos do que um quarto das exportações anuais brasileiras Agindo com astúcia diante de um governante ávido para arrecadar impostos ele conduzia seu empreendimento recorrendo à informalidade e aos costumes desconhecidos pela autoridade régia Nesse caso a invisibilidade era também interesse o mercado e o lucro que ele gerava permaneciam fora do alcance do governo É certo que essa invisibilidade ficou para a história mas por motivos diferentes Ela pode ser atribuída à continuidade ao longo de todo o século XVIII da lamentável política de segredo A rigorosa proibição tanto de cursos superiores como a de tipografias continuava a produzir os seus estragos Restou apenas a documentação oficial dos governantes cegos em relação a quase tudo que era novidade nos governos locais na religião tolerante e nos costumes As pesquisas mais recentes permitem pensar essa cegueira em outro sentido Os moradores do Brasil governavamse a si mesmos basicamente de duas maneiras Em primeiro lugar pelos costumes gerais como os casamentos de aliança ou o fiado que regiam uma sociedade multiétnica empreendedora e capaz de acumular riqueza A aplicação parcial da lei escrita das Ordenações do Reino assegurou o florescimento de instituições favoráveis ao empreendedorismo Em segundo lugar os governos locais atuavam com grande legitimidade e tinham um nível elevado de adaptação a essa sociedade aberta as câmaras municipais e o clero secular eram as autoridades mais conspícuas e influenciadas pelos costumes O domínio da escrita e dos livros separava nitidamente um grupo que pairava acima dessa realidade Mesmo no final do século XVIII os raros letrados tendiam a se identificar com os nobres e os governantes mandados da metrópole que só viam a realidade local como desvio do modelo teórico do Antigo Regime Agiam muitas vezes como um grupo estamental cuja identidade se delineava na exibição de privilégios comuns que os colocavam acima dos demais Nesse meio vicejava a ação do governo central através do vicerei e dos capitãesmores Em termos políticos tinham autoridade efetiva nomeando agentes e comandando tropas No que se refere à economia cumprialhes basicamente arrecadar o máximo prestar o mínimo de serviços e transferir os saldos para Lisboa algo não muito favorável ao desenvolvimento econômico mas por outro lado um preço tolerável para que a atividade informal continuasse invisível No fim das contas o governogeral não atrapalhava demais o crescimento da economia pelas vias informais Restava apenas o acentuado ranço de Antigo Regime muito abrandado pelos governantes eleitos nas vilas e pelo clero secular que eram também governo Leis civis como as relativas ao estatuto da terra a forma de herança ou os direitos da mulher substancialmente alteradas pelo costume também favoreciam os empreendedores e o mercado na comparação com o ambiente metropolitano ou mesmo europeu Costumes da população como alianças matrimoniais ou o fiado garantiam efetivamente o desenvolvimento diferencial da colônia O discurso de governantes definindo a população como desviante das normas do Antigo Regime fazia sentido nos tempos do conde de Assumar pois afinal se enquadrava num mundo no qual a sociedade era em todo o Ocidente pensada como estruturalmente desigual que tal desigualdade era eterna e natural que a riqueza deveria fluir para senhores e nobres e que tudo isso deveria ser estável e dominado pela tradição Essa visão de mundo não permitia explicações para um fenômeno como o crescimento econômico Por isso os governantes do tempo ignoravam olimpicamente tal hipótese Por isso também a documentação rala e fortemente marcada por tal visão não permitiu durante séculos que historiadores moldassem outra visão dos fatos econômicos brasileiros Ficou a impressão da falta de dinâmica econômica num largo período no qual a autoridade central não se importava com ele mas o crescimento acontecia com apoio de governos locais costumes e aplicação diversa das mesmas leis nas diferentes partes do Reino Mas no que se refere ao governo o Ocidente conheceu ainda no século XVIII uma nova realidade as ideias que vinham desde a Antiguidade começaram a ser violentamente contestadas e os argumentos centrais dessa contestação ajudam no entendimento atual da vida no Brasil colonial 18081889 Coroas e estagnação durante o desenvolvimento do Ocidente O transplante para a América e a nacionalização do governo central como Império mantém a escravidão e freiam o crescimento enquanto o Ocidente revolucionou o papel do governo e conhece o desenvolvimento capitalista du CONTRACT SOCIAL ou PRINCIPES du DROIT POLITIQUE Par J J ROUSSEAU CITOYEN DE GENEVE A AMSTERDAM Chez MARC MICHEL REY MDCCLXII CAPÍTULO 22 Teoria dos governos uma revolução A ESCASSEZ DE LETRADOS RESULTANTE DA POLÍTICA METROPOLITANA DE ASSOCIAR a proibição de impressoras e de escolas superiores a uma feroz censura teve consequências enormes impedindo que os brasileiros conhecessem a si mesmos e avaliassem o seu potencial depois da descoberta do ouro Em sentido oposto nem todos os governantes metropolitanos que conheciam a realidade brasileira limitavamse a escrever documentos criticando o amor à liberdade o enriquecimento e os maus costumes dos moradores da colônia Houve momentos em que se tornavam explícitos certos temores que justificavam essa política draconiana como no caso de um papel sem assinatura anexado a uma deliberação do Conselho Ultramarino em 1732 As riquezas fazem aqueles homens soberbos inquietos mal sofridos e desobedientes e este dano é inevitável A fama dessas riquezas convida vassalos para se passarem ao Brasil a procurálas Em poucos anos virá a ter o Brasil tantos vassalos brancos como tem hoje o reino e bem se deixa ver que posto numa balança o Brasil e na outra o reino há de pesar com grande excesso para mais aquela primeira que esta última e assim a maior e mais rica parte não sofrerá ser dominada pela menor e mais pobre e nem a este inconveniente se lhe poderá achar fácil remédio1 Assim era entendida a finalidade das políticas de segredo e centralização empurrar para diante tanto quanto possível o momento no qual as partes menos fidalgas e mais ricas do Corpo Místico do Reino tomassem consciência de sua efetiva importância No decorrer do tempo o Brasil foi enriquecendo a despeito de toda a drenagem fiscal e bem no alto ao redor do soberano aqueles que dominavam a escrita e as informações mais relevantes do Império começaram a cogitar em alternativas para evitar o risco de uma separação da parte mais rica Já em 1736 D Luís da Cunha o conselheiro mais respeitado de D João V escreveu um texto intitulado Instruções Políticas Supostamente destinado ao rei não se sabe se foi lido por ele O conteúdo do parecer era claro e direto defendia a transferência da Corte de Lisboa para o Rio de Janeiro juntando a parte letrada à parte rica a fim de preservar a união do todo Os principais argumentos eram a localização o potencial econômico a articulação nas rotas marítimas as novas possibilidades diplomáticas abertas com uma sólida monarquia americana e um crescimento ainda maior da riqueza nacional Tudo se resumia na conclusão É mais cômodo e seguro estar onde se tem o que sobeja que onde se espera aquilo do que se carece2 Enquanto isso em Genebra na Suíça um estudioso lia os textos já antigos de Montaigne que falavam das formas de pensar as relações entre corpo e espírito nos rituais antropofágicos Tupinambá O genebrino JeanJacques Rousseau havia sido calvinista ou católico em diferentes momentos da vida compositor de óperas e ensaísta político Além da admiração por Montaigne Rousseau estava convencido da existência de um direito inato à liberdade mas bem mais amplo do que as concepções tanto de jesuítas como o padre Manuel da Nóbrega quanto dos teólogos calvinistas da Companhia das Índias Ocidentais Para Rousseau tal direito inato deveria ser modelo universal Em decorrência dessa universalidade uma de suas consequências implicava considerar como vícios as noções que fundavam os governos ocidentais A maioria de nossos males é obra nossa e teríamos evitado quase todos se tivéssemos conservado a maneira simples uniforme e solitária de viver prescrita pela natureza Se ela nos destinou a sermos sãos ouso quase assegurar que o estado de reflexão é um estado contrário à natureza e que o homem que medita é um animal depravado3 No Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens de 1755 Rousseau situa o momento no qual essa virtude teria sido perdida na época em que se consolidaram os governos com tesouro e a propriedade exatamente o que teriam evitado os Tupi e os Guarani da América na virada do século XVI Desde que um homem sentiu necessidade do socorro do outro desapareceu a igualdade introduziuse a propriedade o trabalho tornouse necessário vastas florestas transformaramse em campos cultivados nos quais logo se viram germinar a escravidão e a miséria crescer com as colheitas4 Uma vez iniciado o processo a desigualdade só faria crescer até o momento terminal de uma era agora mundial na qual escrevia o autor Se seguirmos o processo da desigualdade em suas revoluções verificaremos ter constituído seu primeiro termo o estabelecimento da lei e do direito de propriedade o segundo seria o estabelecimento da magistratura o terceiro e último a transformação do poder legítimo em poder arbitrário Assim o estado de rico e de pobre foi autorizado pela primeira época o de forte e de fraco pela segunda o de senhor e escravo que é o último grau da desigualdade até que novas revoluções destruam completamente o governo ou o aproximem de ser uma instituição legítima5 O predomínio da desigualdade geraria uma realidade funesta Verseia a opressão crescer continuamente sem que os oprimidos antevissem seu fim nem quais os meios legítimos que restariam para sustála verseiam os direitos dos cidadãos e as liberdades nacionais apagaremse pouco a pouco com as reclamações dos fracos sendo interpretadas como murmúrio sedicioso verseia a política restringir a uma porção mercenária do povo a honra de defender a causa comum verseia nascer a necessidade de mais impostos o agricultor desencorajado abandonando seus campos e mesmo na época de paz deixando a charrua para cingir a espada verseiam nascer regras funestas e singulares e os defensores da pátria tornaremse seus inimigos mantendo continuamente um punhal alçado contra os cidadãos6 O governo que poderia repor justiça na vida social seria delineado por Rousseau no livro Do contrato social publicado em 1762 No lugar da desigualdade esse contrato imaginado pelo autor criaria uma força de igualdade substantiva capaz de repor a virtude perdida do estado de natureza uma forma de associação que defenda e proteja com toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado e por meio da qual cada um ao se unir a todos somente obedeça a si mesmo e permaneça tão livre como antes7 No corpo político assim criado uma nova hierarquia seria estabelecida É necessário à força pública um agente que reúna e execute segundo as direções da vontade geral que sirva à comunicação do Estado e do soberano que faça na vida pública o que faz no homem a união da alma e corpo Eis qual é no Estado a razão do governo confundida inadequadamente com o soberano do qual não é senão ministro O que é então o governo Um corpo intermediário estabelecido entre súditos e soberano para mútua correspondência responsável pela execução das leis e manutenção da liberdade8 Assim Rousseau renovou o tema do discurso do canibal que impressionou Montaigne a ponto de este colocálo no centro de seu ensaio corpo e espírito unidos num indivíduo fundando a virtude da vida humana Mas Rousseau em vez de limitálo ao caso excepcional da América apresentao como forma radicalmente nova de pensar as relações entre governantes e governados no Ocidente A virtude de um governo não mais estaria na capacidade dada pela divindade a um rei para determinar aquilo que competia a cada um numa sociedade na qual a natureza produziu e juntou homens desiguais senhores e escravos Estaria isso sim no fato de que a vontade geral soma das vontades de todos os indivíduos nascidos livres e iguais serve para pôr em comunicação muitos homens através do governo que escolhem para si e é exercido por seus representantes Pensando a partir do que lera sobre os índios brasileiros e ampliando a noção de liberdade inata dos seres humanos Rousseau elaborou uma versão radical de um projeto acalentado por alguns pensadores da época o de fundar um novo modo de governo baseado na ideia de que a sociedade se governa a partir de um contrato entre homens livres e iguais e não a partir da simples agregação de pessoas desiguais por natureza O cientista político Norberto Bobbio generalizando a partir da versão contratualista de Hobbes expõe as diferenças radicais entre os modelos O estado natural no modelo aristotélico é um estado no qual as relações fundamentais são relações entre superior e inferior e portanto são relações de desigualdade como é o caso precisamente das relações entre senhores e escravos No modelo jusnaturalista de Hobbes o estado de natureza sendo um estado de indivíduos isolados que vivem fora de qualquer organização social é um estado de liberdade e igualdade ou de independência recíproca É precisamente este estado que constitui a condição preliminar necessária da hipótese contratualista já que o contrato pressupõe em seu surgimento sujeitos livres e iguais9 Portanto a diferença principal não tem a ver com a igualdade entre seres humanos no mundo real mas em algo mais abstrato o ato de pensar a liberdade e a igualdade como fundamentos daquilo que deveria ser um governo virtuoso Esse ato intelectual era o ponto de mudança crucial que exigia uma completa e radical alteração na teoria que presidia a organização dos governos ocidentais desde a Antiguidade Segundo a nova filosofia política a igualdade fundamental entre os seres humanos o fato de serem todos dotados de razão deveria substituir a desigualdade natural entre humanos como princípio lógico organizador das leis As consequências dessa mudança seriam imensas O indivíduo livre que se associa aos demais toma o lugar da natureza criadora de desigualdades como o derradeiro fundamento da vida social A capacidade humana de empregar a razão que se expressa coletivamente no contrato social entraria no lugar da tradição como fundamento da ordem jurídica Dessa radical mudança resulta também uma nova moralidade ou para falar nos termos técnicos da política uma nova definição de legitimidade As únicas leis legítimas seriam as derivadas da razão nunca as legadas pela tradição E há outra decorrência necessária só seriam válidas as leis aplicáveis a todos sem exceções e inválidos todos os privilégios e diferenças as leis feitas para gravar o que o rei deu a cada um reunidas em compilações jurídicas como as Ordenações do Reino Em vez de dar a cada um segundo sua qualidade mantendo as diferenças entre homens o bom governo seria aquele capaz de dar igualmente a todos dentro da lei As virtudes de ontem se tornavam os vícios de hoje A mais relevante inversão de sentido moral estava relacionada à escravidão Para Aristóteles tal instituição era a evidência maior de que a sociedade se fundava na desigualdade de modo que ao bom governante caberia apenas manter tal diferença com seus atos Rousseau o exato contrário de Aristóteles dizia Nulo é o direito da escravidão não só por ser ilegítimo mas por ser absurdo e nada significar As palavras escravidão e direito são contraditórias excluemse mutuamente10 Assim se faz uma sobreposição de dois planos de oposição entre o modo aristotélico e o modo iluminista de conceber o bom governo O princípio lógico da igualdade impede o reconhecimento do direito na escravidão por ser contraditório com este daí a classificação da escravidão como absurda logicamente Mas a igualdade também sustenta o sentido moral da política e das leis pois é a fonte dos direitos do cidadão e nesse sentido é ilegítima perante o direito No rigor do pensamento iluminista portanto uma filosofia política de tipo aristotélico era um contrassenso lógico e o reconhecimento de privilégios de um homem sobre outro não passava de um ato ilegítimo As consequências das ideias iluministas no plano da economia implicaram a mesma revisão radical No terreno da produção o modo natural e virtuoso para Aristóteles era o da aquisição de bens naturais por senhores e escravos que permutavam excedentes A esse modo se contrapunha outro artificial e vicioso o da acumulação de bens adquiridos com dinheiro que seria condenável pelos seguintes motivos As pessoas cujo objetivo é uma vida agradável perseguem na medindoa pelos prazeres do corpo de tal forma que como esses parecem depender da posse de bens todas as suas energias se concentram na atividade de enriquecer Como seus desejos e prazeres são excessivos se não conseguem obtêlos tentam chegar até eles por outros meios quaisquer usando cada uma de suas faculdades de maneira contrária à natureza Tais pessoas transformam todas essas faculdades em meios de proporcionar riqueza na convicção de que a riqueza é o fim a atingir e que tudo mais deve contribuir para a consecução deste fim11 Em 1776 um professor de moral chamado Adam Smith publicou um livro A riqueza das nações no qual os comportamentos econômicos foram submetidos à mesma inversão que haviam sofrido os comportamentos políticos pela pena de Rousseau Além de trazerem riqueza as compras e vendas no mercado em vez de condenáveis eram apresentadas como positivas Quando o mercado é muito reduzido ninguém pode sentirse estimulado a dedicarse inteiramente a uma ocupação porque não poderá permutar toda parcela de excedente que ultrapassa seu consumo pessoal pela parcela de produção do trabalho alheio da qual tem necessidade12 Por meio das trocas efetuadas nos mercados segundo Smith os homens se tornariam iguais independentes de seu trabalho especializado e se relacionariam entre si através de contratos justos pois capazes de atender a seus interesses Assim a ideia central do iluminismo se ampliou da esfera política para a econômica o mercado seria o próprio contrato social em atividade permanente A inversão se estenderia em seguida ao tipo de trabalho virtuoso O trabalho escravo deixava de ser visto como positivo o trabalho caracterizado como mercadoria tomava seu lugar Existe um tipo de trabalho que acrescenta algo ao valor do objeto sobre o qual é aplicado e existe outro tipo que não tem este efeito O primeiro pelo fato de produzir valor pode ser considerado produtivo o segundo trabalho improdutivo Assim o trabalho de um manufaturador geralmente acrescenta algo ao valor dos materiais com os quais trabalha o de sua própria manutenção e o lucro de seu patrão Ao contrário o trabalho de um criado doméstico não acrescenta valor algum a nada Uma pessoa enriquece mantendo muitos operários e empobrece mantendo muitos domésticos13 Se antes o rei e o seu tesouro estavam no ápice da vida econômica agora caberia outro lugar à majestade econômica O soberano com todos os oficiais de justiça e guerra que servem sob suas ordens todo o Exército e Marinha são trabalhadores improdutivos Servem ao Estado sendo mantidos por uma parte da produção anual dos outros cidadãos Seu serviço por mais honroso útil ou necessário que seja não produz nada com que igual quantidade de serviço possa ser obtida14 Por isso o governo e os nobres teriam um lugar menor na produção da riqueza Onde quer que predomine o capital predomina o trabalho e onde quer que predomine a renda predomina a ociosidade Os capitais são aumentados pela parcimônia e diminuídos pelo esbanjamento e pela má administração15 O maior objetivo social em economia passa a ser a criação de grandes mercados que fazem a riqueza das nações a soma das mercadorias acumuladas e não consumidas e do trabalho passado acumulado como riqueza financeira Para tanto no âmbito público o governo improdutivo deveria ser limitado e incentivados os esforços individuais visando a produção para o mercado De ponto mais alto da sociedade o governo caía para uma posição secundária a de uma esfera a ser restrita pelo mercado Outro corolário radical dessa mudança de pensar afetava a noção de natureza Para Aristóteles o mundo natural era o modelo de toda a vida social ainda que na desigualdade A partir de Adam Smith a natureza é apenas o território do qual os homens podem extrair indefinidamente a matéria a ser transformada pelo trabalho produtivo e o resultado é a riqueza humana a ser acumulada pelas trocas no mercado Seja na vertente da organização social e política através da ideia do contrato social e da soberania coletiva seja na vertente econômica com o apelo ao ideal do mercado e da riqueza as ideias iluministas têm muito mais afinidade com a realidade da colônia que o enquadramento dado pelo discurso oficial do caranguejo que condenava como desviante a vida dos brasileiros E o Ocidente no final do século XVIII foi profundamente marcado pelas novas ideias Em pouco tempo o Iluminismo deixou de ser uma teoria Entre os leitores de Rousseau e contemporâneos de Adam Smith estavam aqueles que em 1776 separaram o governo das colônias inglesas na América da sua cabeça real marcando o ato com uma Declaração de Independência cujo texto principiava por uma frase que se tornaria norma legal iluminista É evidente por si mesmo que todos os homens foram criados iguais e dotados por seu Criador de certos direitos inalienáveis entre os quais o da vida liberdade e busca da felicidade Para cruzar a distância entre a norma ideal da igualdade dos homens com os respectivos direitos inalienáveis e a crueza da escravidão condenada por Rousseau bastava ir da pena do autor desse texto fundador até os dedos que impulsionavam a pena sobre o papel Thomas Jefferson tinha 150 escravos no momento em que escrevia inclusive oito que eram filhos seus com uma mucama mulata Mesmo depois da Declaração seu autor jamais viu qualquer contradição entre esses detalhes pessoais e a frase a ponto de continuar fazendo seus negócios de compra e venda de indivíduos em tese dotados pelo Criador de direitos inalienáveis e agora sob o império de sua legislação iluminista Todavia com essa frase Thomas Jefferson abdicava de incluir sua atividade escravista no campo do direito legítimo E com a lei alteravase toda a lógica da organização política até então a ordem divina santificava desigualdade e escravidão nas leis agora as relações desiguais entre senhores e escravos eram relegadas a um território fora do âmbito da lei universal e da moral política Os negócios com escravos passavam a ser nas leis que governavam agora os Estados Unidos apenas negócios empíricos fundados no costume tal como as atividades mercantis dos brasileiros em relação às Ordenações do Reino impostos pela força e sem qualquer guarida na moralidade garantida pela lei universal O esforço dos primeiros legisladores iluministas tinha menos o sentido de provocar mudanças empíricas e de alterar o costume e mais de estabelecer o âmbito legal e moral onde mudanças futuras como a extinção da escravidão pudessem ser enquadradas A atitude se repetiu uma década mais tarde Ao formular a Constituição os representantes dos norteamericanos permitiramse apenas menções muito oblíquas a pessoas de outro tipo pessoas tidas em serviço em outros estados ou outras pessoas para designar os escravos Além disso referiamse aos índios como habitantes de outras nações ao mesmo tempo que distribuíam o território dessas nações por decreto Não se tratava de cinismo mas de evitar que fossem reconhecidos na Constituição preservando assim o valor lógico da aplicação universal e o valor moral da garantia dos direitos Qualquer menção constitucional à escravidão ou ao tratamento desigual dos nativos na lei seria equivalente a reconhecer o direito dos proprietários de escravos fundado na aceitação da desigualdade como princípio lógico organizador de leis virtuosas O mesmo valia para o direito dos nativos a suas terras Assim os constituintes preservaram o espaço da Lei como aquele das afirmações universais da Razão da igualdade e dos direitos ainda que tal universalidade jurídica exigisse escamotear o reconhecimento do direito à liberdade de milhões de pessoas que na prática viviam em cativeiro ou excluídas da nacionalidade O mais relevante contudo foi o fato de a nova ideia de governo ganhar adeptos em toda a Europa Em 1789 uma revolução na França levou à convocação de eleições e à instalação de uma assembleia de representantes para fazer as leis que seriam o contrato social garantidor de um governo fundado na liberdade Com isso logo tornouse crítica a situação do monarca Luís XVI Até a véspera da revolução ele era um representante divino o chefe de um governo legítimo o detentor da sabedoria para dar a cada um o seu conforme as diferenças naturais entre os homens enfim o único ser que simbolizava o Corpo Místico de governantes e governados Já os representantes elaboravam as leis segundo princípios opostos evidenciando que o novo figurino não comportava nem a continuidade da tradição nem a figura simbólica do monarca Em agosto de 1792 o rei foi removido do trono e encarcerado Em setembro foi declarada a república como forma de governo enquanto o monarca aprisionado era destituído de seus poderes e passava a ser oficialmente o cidadão Luís Capeto um homem com os mesmos direitos de todos os outros perante a lei A retirada dos sinais que marcavam a diferença entre um representante divino e os meros humanos não foi suficiente para a nova ordem política e assim foi decidido um destino capaz de ter um efeito simbólico tão poderoso como o da tradição No dia 21 de janeiro de 1793 o carrasco Charles Henri Sanson acionou o mecanismo de uma guilhotina uma pesada lâmina de aço desceu por um trilho e separou definitivamente a cabeça física do monarca de seu corpo um ritual para deixar bem claro que ficava no passado todo um modo de conceber o poder as funções e a moralidade do governo como o Corpo Político do qual o rei era a Cabeça Mística O passo seguinte na direção da igualdade aconteceu na América uma onda revolucionária no Haiti aboliu a escravatura e elegeu um presidente negro O efeito das duas ondas revolucionárias foi impressionante Em pouco mais de uma década monarquias milenares foram depostas em toda a Europa Príncipe regente de uma nação pequena situada num extremo do continente o futuro D João VI sobreviveu em Portugal até 1808 quando ficou claro que as tropas revolucionárias francesas estavam prestes a tomar Lisboa Foi quando recorreu a velhas ideias para realizar uma nova espécie de união entre a Coroa portuguesa e o Brasil CAPÍTULO 23 Reino colonial sonho de reação NA HORA CRUCIAL DE DECIDIR ENTRE A RICA COLÔNIA O BRASIL QUE FORNECIA QUATRO quintos da receita do Tesouro e o Reino que produzia pouco mas recebia três quartos das despesas D João esqueceu os defeitos morais dos moradores coloniais tantas vezes lamentados na documentação e ficou com a realidade Como tantos dos seus súditos plebeus nos séculos anteriores enfrentou o Atlântico para tentar fazer a América Foi acompanhado de 15 mil cortesãos boa parte dos que recebiam dois terços das despesas do Erário Sendo colônia o Brasil remetia quase a totalidade de suas exportações para Lisboa Na prática esse fluxo garantia a vida comercial metropolitana entre 80 e 90 de todo o comércio exterior português resultavam da reexportação de mercadorias brasileiras e da reexportação de mercadorias europeias para a colônia o que torna compreensível tanto o motivo da mudança da Corte como o primeiro ato de D João no Brasil o da abertura dos portos uma vez que a intermediação lisboeta se tornara inviável Em pouco tempo as vendas para o Reino passaram a representar apenas uma fração das exportações brasileiras Os atos seguintes modificaram outras áreas que haviam passado séculos imobilizadas Um deles permitiu a instalação do primeiro curso superior uma escola de medicina em Salvador com dois séculos e meio de atraso em relação à América hispânica onde naquela altura funcionavam 23 universidades e quase dois séculos de atraso com relação às colônias inglesas cuja primeira faculdade surgiu poucos anos após a chegada dos primeiros colonos Sem necessidade de atos oficiais outra mudança secular foi o desembarque da primeira prensa tipográfica que iria funcionar legalmente no Brasil Coube aos reis de Portugal a imorredoura glória de serem responsáveis por um atraso de 358 anos em relação ao invento da tipografia para seu emprego no Brasil A magnitude dessa política de ignorância ressalta numa singela comparação com os Estados Unidos uma economia de tamanho comparável com a brasileira naquele momento Em 1776 as tiragens do livro Common Sense de Tom Payne chegaram a 400 mil exemplares mais de 10 do total da população adulta masculina do país Essa desproporção era reflexo direto das taxas de alfabetização das populações Estudiosos calculam que apenas 1 ou 2 dos brasileiros sabiam ler e escrever em 1800 No mesmo ano a proporção de norteamericanos alfabetizados chegava a nada menos de 70 da população adulta masculina proporção bem mais expressiva inclusive em relação à inglesa que era de 55 naquele momento A miséria cultural educacional e literária produzida pelo governo central português permitiu ao governante coroado que até a véspera impedira tudo apresentarse em terras coloniais como alguém progressista interessado em ilustrar a vida de seus súditos Mas seria uma ilustração seletiva Com a impressora também desembarcaram os censores de modo que o recurso acabaria sendo aproveitado apenas por amigos autorizados No mesmo ano de seu desembarque a prensa foi colocada em funcionamento possibilitando que as ideias de alguns raros alfabetizados brasileiros ganhassem a forma de livro Por isso não admira que esses primeiros livros contivessem rasgados elogios ao governante e a instituição criada para abrigar a máquina foi chamada Impressão Régia atual Imprensa Nacional O bispo inquisidor José Joaquim da Cunha Azeredo Coutinho um dos primeiros contemplados com o favor da publicação conseguiu imprimir um livro intitulado nada menos que Análise da justiça do comércio de escravos com a costa da África A obra se destinava a provar que os termos justiça e escravidão eram sinônimos ao modo de Aristóteles e em contraposição a Rousseau Já na dedicatória o bispo deixa evidente a sua posição A vós todos dedico esta obra filha do meu trabalho e que só teve em vista vosso bem obra por cuja causa tenho sido insultado e perseguido pelos ocultos inimigos de vossa Pátria e pelos desumanos e cruéis agentes de Brissot e Robespierre esses monstros de figura humana que estabeleceram a regra Pereça antes uma colônia do que um princípio princípio destruidor da ordem social e cujo ensaio foi a florescente colônia de São Domingos abrasada em chamas nadando em sangue1 A referência à revolução do Haiti serve de metáfora à argumentação subsequente na qual procura mostrar que só a tradição aristotélica poderia servir de guia para um governo justo A seita dos anabatistas no século XVI e a dos novos filósofos no século XVIII ainda que pareçam diametralmente opostas entre si contudo têm a mesma base fundamental a liberdade a igualdade a comunhão de bens Os anabatistas se diziam rígidos observadores das leis de Jesus Cristo mas não se embaraçavam em examinar o Dogma só diziam que o verdadeiro cristão deveria ser justo e santo a religião deles era arbitrária Os da nova seita filosófica que se dizem rígidos observadores da lei natural e que a lei que é contra o direito natural e a humanidade é injusta e que em consequência não deve ser obedecida não nos dão contudo uma definição clara e distinta dessa sua humanidade desse seu direito natural nem nos dizem como ele deve ser aplicado o seu direito é arbitrário e só de nome2 Para o bispo os princípios da liberdade e da igualdade que segundo os iluministas eram verdades ditadas pela Razão e com validade universal eram no fundo de validade muito restrita a grupos particulares cujos defensores formavam uma seita de fanáticos e por isso jamais teriam capacidade de dizer como deveria ser o governo para todos Uma vez com poder esses grupos produziam arbítrio não justiça A seguir reforçava a lição de Aristóteles segundo a qual a justiça ficava reservada para monarcas que recebem de Deus a chave para observar as leis da natureza capazes de revelar os verdadeiros fundamentos de uma política sábia A natureza que criou os homens para a sociedade foi a mesma que os criou quer eles queiram quer não com diferentes e desiguais dotes 3 Apresentando a desigualdade como princípio moral e lógico universal e não mais como resultado da ação da natureza como em Aristóteles e as leis iluministas como tendo apenas validade restrita o bispo negava a ideia do contrato social metáfora da racionalidade universal como sendo uma impossibilidade empírica Conforme o sistema de pactos sociais que se dizem anteriores e produtores de sociedades é necessário supor muitos absurdos e alguns impossíveis alguns dos quais são primeiro que o homem logo que nasce e se pode arrastar ainda sem se conhecer nem a seus pais foge deles para os matos e para as brenhas e ali se faz silvestre e solitário segundo que ainda antes de ter algumas ideias sobre os males e bens da sociedade já sabe discorrer e fazer pactos e convenções 4 A conclusão era a de que os princípios racionais iluministas produziam regras arbitrárias em vez de direito e justiça e não passavam de coisa de insensatos Por outro lado o reconhecimento tanto da desigualdade natural entre os seres humanos como da justiça na escravidão permitiam a disseminação de sábias legislações e a ação justa do rei Em suma a lição que os brasileiros teriam a tirar da época era a de cuidar para que alguns excessos mais evidentes do modelo aristotélico merecessem mais atenção da justiça do soberano O apelo à justiça tal como definida pela tradição corporativa como sanção dos direitos adquiridos e não a uma mudança de sistema e tampouco à adoção de perigosas e inúteis leis racionais derivadas do princípio da igualdade viria a ser a grande solução a mais adequada para o projeto de futuro para o Brasil Outro agraciado com autorização para imprimir as suas obras José da Silva Lisboa o futuro visconde de Cairu reiterou essa posição no campo da economia e com uma estratégia retórica ainda mais curiosa que a do bispo Embora tenha publicado os Princípios de economia política com a intenção explícita de divulgar a obra de Adam Smith A riqueza das nações ele cumpriu tal objetivo de modo muito peculiar Para começar Cairu não estava convencido de que a produção de mercadorias fosse um ideal adequado para a economia Eximia Adam Smith desse pecado e atribuía tal insensatez a um paroxista de Genebra ou seja o próprio Rousseau que ataca o sistema do regime patriarcal como incompatível com as circunstâncias atuais da sociedade5 Cairu também contrapõe Aristóteles às ideias iluministas e assim explica o processo da divisão do trabalho que estaria descrito na obra de Adam Smith O Soberano deve prover para que se faça o devido trabalho público e particular com o mais breve extenso e lucrativo emprego possível de pessoas e capitais em maneira a que jamais falte ocupação honesta a quem oferecer serviços a fim de que se obtenha periodicamente o Estado o maior e mais valioso fruto da geral indústria6 A bondade do Soberano dando a cada um o seu seria o princípio da divisão do trabalho ao passo que a liberdade de agir dos súditos obedientes seria a filha daquele princípio e a riqueza da nação seria para desfrute do monarca que está muito acima dos particulares como se dizia em termos aristotélicos A retórica de Cairu seguia a mesma estratégia do bispo invertendo os termos da crítica iluminista e apresentando a universalidade da razão como um caso particular a ser incorporado no modelo eterno e com isso comprovando o valor universal do princípio da desigualdade de Aristóteles Os dois primeiros autores a publicar no Brasil projetos para sua terra eram bem claros o futuro estava em se aferrar aos conceitos do passado Em manter a escravidão fonte tanto da riqueza como do ordenamento natural do mundo Em negar a busca da riqueza como finalidade para a vida Em reagir contra os ideais iluministas Sobretudo em apoiar o reforço do governo central representado pela mudança da Corte Em suma eram franca e abertamente reacionários com relação ao Iluminismo Queriam o Brasil fora das mudanças do mundo longe das leis universais longe do incentivo para a produção ampliada para o mercado E reacionários também no modo de ver normativamente a própria formação brasileira anterior negando as possibilidades novas de avaliar costumes que essa filosofia trazia para o entendimento da realidade histórica Mas não eram irrealistas no Brasil havia agora um monarca capaz de trazer progresso relativo apesar de tudo Seus argumentos embasavam o plano monárquico de remodelar o Corpo Místico do Reino fincandoo num Brasil que não conhecia privilégios para a nobreza de sangue nem herança para os primogênitos e tampouco terras cujas populações e rendas estivessem sob domínio de nobres ou mosteiros espaço no qual não eram aplicados os livros das Ordenações que tratavam desse tipo de direitos adquiridos A transferência para a colônia do monarca e dos tribunais superiores que dava sentido material a esse projeto trouxera também as pessoas que eram legalmente enquadradas em todos os livros das Ordenações A começar do próprio rei cujo poder e comandos estavam codificados no livro I e depois os nobres titulados e o alto clero cujos direitos adquiridos vinham relacionados nos livros II e III Mesmo sem a substância da terra feudalizada ou das franquias judiciárias e de governo em suas terras a presença dessa gente tornouse um foco de agitação Todos dispostos a se ajustar ao Brasil em vez de ajustar o Brasil a sua prosápia Até o alto a vida se abriu aos moradores coloniais A Corte virou uma atração irresistível para aqueles poucos brasileiros que se consideravam até a véspera a parte mais elevada da vida colonial os comerciantesfidalgos quase todos cobradores de impostos Logo se viram alçados à condição de frequentadores do Paço Imperial com acesso privilegiado a tribunais superiores aos ministros que punham decretos na mesa do monarca e arrancavam assinaturas e acima de tudo à condição de beneficiários imediatos dos recursos do Real Erário juntamente com os recémchegados O Erário se revelou farto como nunca Para reacomodar no Brasil os 15 mil cortesãos nem sequer foi preciso cobrar mais impostos aqueles já pagos anteriormente na colônia foram mais do que suficientes para financiar tudo Por outro lado a mudança da Corte também implicava concentrar na colônia os gastos públicos Assim o dinheiro de impostos antes remetido à metrópole passou a circular na economia local e a estimular o seu crescimento Essa era uma novidade tão grande quanto a prensa tipográfica e tinha consequências importantes para os grandes comerciantes Até a vinda da Corte os negócios na colônia eram todos informais com base na prática do fiado Essa não era apenas uma opção dos comerciantes mas também consequência da legislação Até 1808 só era autorizada a abertura de empresas na metrópole Da mesma forma a lei não permitia nem garantia as letras comerciais instrumentos que viabilizavam a separação dos fluxos financeiros e materiais na atividade econômica Por esse motivo em termos puramente econômicos havia equivalência no tamanho da produção brasileira e da norteamericana Do ponto de vista financeiro porém o abismo entre as economias era gigantesco No Brasil a circulação de moeda e a concessão de crédito não contavam com nenhuma proteção jurídica e dependiam do fiado e da informalidade Já nos Estados Unidos a circulação financeira desde sempre foi garantida pela lei em 1733 ainda nos tempos coloniais funcionava um banco comercial cuja principal atividade era descontar esses títulos Mesmo no Sul escravista a produção era movida a créditos e depósitos Cada envio de mercadoria gerava um título que era descontado de forma separada da liquidação dos negócios físicos Os títulos de propriedade de escravos eram usados como garantia em negócios financeiros de toda espécie A partir da independência o aumento da proteção legal aos negócios dada pela legislação iluminista ampliou ainda mais o fosso Toda essa diferença nas garantias e nos procedimentos fazia com que as taxas de juro nos Estados Unidos fossem muito mais baixas do que no Brasil A vinda de D João tornou legalmente possíveis os primeiros embriões de empresas no Brasil com a fundação de um banco cujos acionistas eram comerciantes e o Real Erário o principal cliente a tomar empréstimos que passou emitir títulos e pagar juros John Luccock um comerciante inglês que veio com a Corte notou as diferenças nessa área Quando se começou a permitir o comércio livre no Brasil verificamos que os comerciantes ignoravam quase que por completo o que fosse crédito e jamais se colocava dinheiro a juros salvo com o governo e mesmo então em somas que os homens de posse julgavam prudente colocar e mesmo assim com a suspeita de que nunca mais as veriam de volta Tinham pouca ideia do valor e da influência do capital e não possuíam confiança uns nos outros para descontar letras Havia na verdade uma espécie de título a que chamavam de crédito mas que pouco mais representava que a declaração de que o credor haveria de ser pago mais cedo ou mais tarde com os bens do devedor caso falhassem todas as tentativas de solvência7 Cabe certa cautela diante dessa observação Ao contrário de frei Vicente do Salvador o comerciante enxerga a realidade a partir de um mercado financeiro organizado pela lei e nada vislumbra na esfera doméstica O fiado era crédito havia cobrança de juros do devedor as dívidas privadas eram saldadas Por outro lado os empréstimos ao governo de fato apresentavam alto risco de inadimplência pouco antes do desembarque da Corte uma avultada dívida com os comerciantes do Rio de Janeiro havia sido simplesmente repudiada Por isso demorou para o Banco do Brasil recriar a velha modalidade de arrecadação pelo governo central e envio para a Corte Mas como dessa vez a Corte estava no Rio de Janeiro a segurança veio e os títulos do governo foram encontrando tomadores constatandose um efeito econômico distinto em vez de transferir recursos de toda a colônia para Lisboa os captadores de impostos extraíam dinheiro das capitanias e este se acumulava na Corte do Rio de Janeiro criando diferenças regionais de riqueza Diante de tal efeito eclodiram revoltas Em 1817 revolucionários tomaram o poder em Pernambuco e espalharam por Recife um panfleto que começava assim Patriotas pernambucanos A suspeita tem se insinuado nos proprietários rurais eles creem que a benéfica tendência da presente liberal revolução tem por fim a emancipação indistinta dos homens de cor e escravos O governo lhes perdoa uma suspeita que o honra Nutrido em sentimentos generosos não pode jamais acreditar que os homens por mais ou menos tostados degenerassem do original tipo de igualdade mas está totalmente convencido de que a base de toda a sociedade regular é a inviolabilidade de qualquer espécie de propriedade Impelido destas duas forças opostas deseja uma emancipação que não permita lavrar entre eles o cancro da escravidão Mas desejaa lenta regular e legal Eram os primeiros seguidores do Iluminismo a ter poderes de governo no Brasil E viveram os mesmos problemas de todos os outros formulando soluções particulares No texto do manifesto aparece o mesmo dilema de Thomas Jefferson a incongruência entre o princípio da igualdade que deveria presidir a formulação das leis e a desigualdade empírica e fatual da escravidão Tal dilema é analisado com vantagens pelos pernambucanos a começar pela exposição clara do problema da emancipação em vez de o escamotear e terminando pela completa separação conceitual entre a raça e a condição de escravo Mas o que se ganha na exposição se perde na conclusão Na hora de empregar a escrita para fazer uma lei transformando a teoria da igualdade em fórmula jurídica aplicável a uma realidade particular o fracasso é completo Os donos do governo não têm a capacidade de escamotear com palavras de não escrever o termo escravo numa lei porque isso seria reconhecer juridicamente a escravidão Assim não lhes resta outra saída senão a de abandonar a universalidade do princípio da liberdade e reconhecer como universal outro princípio o da inviolabilidade da propriedade tradicional o qual também leva a reconhecer juridicamente a propriedade do escravo Razão e costume ganham assim o mesmo peso como resultado dessas duas forças opostas o governo não tem nada de prático a propor com relação aos escravos e reconhece a posse dos senhores até que uma ação lenta regular e legal disponha de outro modo A solução não estaria no governo nem nos princípios mas antes na justiça vista como instância reguladora da tradição tal como pregava a receita corporativa Esse impasse na posição iluminista era o reflexo invertido do impasse conservador diante das noções de liberdade e igualdade Tanto o panfleto revolucionário como as arengas conservadoras reiteravam cada qual à sua maneira a mesma vacilação e paralisia no emprego de princípios universais da razão como fundamento das leis e do direito Do ponto de vista lógico a figura dominante nas propostas dos dois lados era a mesma uma tentativa de transformar princípios opostos e que moviam lutas políticas sangrentas em paradoxos apresentados retoricamente Com isso abriam caminho para a acomodação seja do Corpo Místico do rei à colônia como flertavam os conservadores seja a um mundo de progressivo domínio da igualdade como asseverava o panfleto revolucionário CAPÍTULO 24 Governo nacional NOS SÉCULOS XVII E XVIII O GOVERNO CENTRAL PORTUGUÊS COLOCOUSE COMO um sólido muro entre o Brasil e o resto do mundo Todos os intercâmbios oficiais exigiam baldeação em Lisboa Antes da mudança da Corte havia apenas um caminho oficial entre o Brasil e o mundo exterior os produtos brasileiros precisavam passar pela alfândega e as pessoas pela burocracia da Corte até mesmo para se educar Os mesmos mecanismos funcionavam na direção inversa Mercadorias de variadas praças chegavam ao Brasil num fluxo sempre controlado de perto pelos agentes metropolitanos Também havia um rígido controle cultural fazendo com que a cultura europeia chegasse a contagotas Diante de tantos empecilhos os contatos com as novidades do mundo exterior tinham de ocorrer à margem da legalidade sob a forma de contrabando Como no interior do continente as fronteiras terrestres eram extensas e escapavam ao controle efetivo das autoridades centrais pelo sertão sempre ocorreram trocas com outros povos de governo consuetudinário e com vizinhos sobretudo os espanhóis da região platina Igualmente permeáveis eram as fronteiras com a África devido ao enorme fluxo humano de escravos de lá importados e aos produtos levados pelos traficantes estabelecidos no Brasil Com a vinda da Corte o muro virou um biombo bem mais permeável Não foi um processo uniforme sendo mais acentuado no Rio de Janeiro e nos maiores núcleos urbanos do litoral No âmbito privado a transformação se fez notar na movimentação dos portos que passaram a receber navios bens e pessoas de todo o mundo numa frequência bem maior Esses navios não traziam e levavam apenas cargas A Corte se tornou sede de embaixadas ponto de residência de comerciantes estrangeiros centro para o qual convergiam viajantes curiosos que antes não recebiam autorização para percorrer o país local de moradia de artistas e escritores que traziam as informações antes escamoteadas No sentido oposto aumentou o fluxo dos brasileiros que viajavam para outros pontos que não Portugal Começou assim a se desfazer aquilo que nos séculos anteriores fora zelosamente construído pela política de segredo Todo o processo social baseado nas alianças Tupi e depois da mineração numa mestiçagem geral e na desigualdade da escravidão também geral tinha como única fonte de expressão o costume a lei social dos analfabetos O costume não incluía apenas as alianças por casamento Praticamente todos os negócios o crédito e a produção estavam fundados em redes de fiado inteiramente reguladas pelo costume e sem proteção legal Todos os muitos empreendimentos que levaram das alianças esporádicas no litoral a uma economia integrada numa área de 82 milhões de quilômetros quadrados se fizeram a partir desse alicerce de normas consuetudinárias A abertura para o mundo e para as letras possibilitou que a existência das pessoas comuns pudesse afinal ser pensada escrita e entendida como resultante dos costumes e não como desvio da velha norma Assim a esfera do costume em vez de ter o seu valor negado na elaboração da lei pela manutenção da ignorância e a restrição da escrita viabilizava no Brasil a alternativa que se espalhava pelo mundo criar um governo adequado aos moradores que refletisse seus interesses que tivesse como fonte de poder a soberania popular no qual as leis sagrassem os costumes em vez de se orientarem para realçar a desigualdade Projetos de independência ligada à adoção dos novos princípios começaram a ser debatidos Por outro lado os nobres e cortesãos instalados no Rio de Janeiro familiarizaramse com os brasileiros e sua cultura o suficiente para que surgissem brechas na antiga carapaça Para começar todos se adaptaram ao fato de que a realidade local continuaria à margem do arcabouço legal dos primeiros livros das Ordenações sem privilégios medievais para a nobreza ou o alto clero nenhuma concessão dessa espécie foi feita de modo que até os titulados mais graduados tiveram de se conformar Nem se importaram pois não demoraram a notar o dinamismo do mercado e logo se tornaram investidores trazendo dinheiro da Europa para financiar empreendimentos no Brasil Em pouco tempo havia produção de charque arroz e trigo no Rio Grande do Sul de café no Rio de Janeiro mais comércio com a África investimentos na área platina que levaram à incorporação do Uruguai todos com a participação dos recém chegados A relativa facilidade com que muitos cortesãos se entenderam com os empresários estabelecidos logo se fez notar na movimentação dos brasileiros na Corte até a rainha Carlota Joaquina que odiava o Brasil manteve um caso extraconjugal com o traficante de escravos Fernando Carneiro Leão Já D João VI deixou de lado seus compositores sacros usuais para admirar a música do mulato José Maurício Nunes Garcia As trocas filtradas pelo biombo do governo central recéminstalado no território geraram frutos miscigenados O Brasil deixou de ser um espaço isolado os brasileiros foram vislumbrando as possibilidades de um governo central capaz de processar os interesses locais O secular fluxo fiscal em benefício dos agentes metropolitanos agora era um fluxo de gastos públicos que eventualmente atendia o interesse dos mais ricos Assim se fez a deglutição rápida do governo central O monarca percebeu que tinha feito um grande negócio estratégico agora que vivia num lugar no qual o fantasma da época a cabeça do governante monárquico sendo separada do corpo pela ação da guilhotina parecia ter sido afastado O problema veio justamente da parte do reino que ficou meio esquecida em meio a tantas oportunidades Invadido o Portugal metropolitano sofreu as consequências da vaga revolucionária europeia Somente com a expulsão dos franceses e a derrota de Napoleão veio o momento de reconstruir e constatar que as coisas estavam difíceis A economia metropolitana se compunha de um setor agrícola marcado pelas limitações da produção feudal e de um setor comercial que exportava uns poucos produtos locais vinho em especial e ganhava como intermediário na reexportação de produtos do Brasil Com a Corte no Rio de Janeiro muitos nobres passaram a investir no Brasil os recursos que recebiam do Tesouro enquanto na metrópole comerciantes estrangeiros tomavam uma fatia cada vez maior dos negócios com a chancela do soberano distante Pouco acostumados com uma posição territorial e fiscal subalterna em relação ao governo os mais afetados se atualizaram politicamente Assim em 1820 eclodiu no Porto uma revolução com um programa igualmente marcado pelas contradições da época propunha a elaboração de uma Constituição por representantes eleitos segundo o princípio da liberdade mas também pregava a volta do monarca a Lisboa Em 1821 organizaramse dois movimentos políticos De um lado apesar das instruções precárias os moradores da maioria das capitanias brasileiras elegeram deputados constituintes A função era nova mas uma vez que todos sabiam como os representantes eleitos se comportavam nas câmaras mostraram uma rapidíssima adaptação ao Parlamento quando tiveram de nele atuar Enquanto isso o monarca fazia o caminho de volta acompanhado de cerca de 2 mil cortesãos Sejam quais forem as margens de erro é bastante provável que pouco mais de 10 mil cortesãos tenham decidido permanecer no Brasil Numa altura em que Portugal contava 750 mil habitantes isso representava 12 da população do reino com alta representatividade de fidalgos Cauteloso o rei levou consigo os depósitos em ouro guardados no Banco do Brasil E deixou como regente o filho Pedro então com 22 anos de idade que numa de suas primeiras decisões convocou José Bonifácio de Andrada e Silva que já estava aposentado Nascido em 1763 em Santos numa abastada família de comerciantes e traficantes de escravos José Bonifácio seguira para Portugal com 20 anos a fim de estudar Em 1787 formouse em direito e filosofia e depois publicou um trabalho calcado em princípios inusitados Avaliando a alteração nas relações do homem com a natureza postulada pelo pensamento iluminista convenceuse da urgência de se impor barreiras e limites à exploração que viria por necessidade Em função disso propôs a criação de leis que regulamentassem a pesca de baleias visando evitar a extinção da espécie A obra rendeulhe uma bolsa de estudos no exterior Chegando a Paris em setembro de 1790 teve a oportunidade de acompanhar os desdobramentos da Revolução francesa e tornouse próximo de vários dirigentes do novo governo Assim matizou a formação iluminista com a comprovação direta das lutas desencadeadas pela implantação da nova filosofia Em 1792 instalouse em Freiberg na Saxônia sede da melhor escola de mineralogia da Alemanha e ali fez amizade com o naturalista e explorador Alexander Humboldt Na época do verão realizava viagens de estudo por regiões mineralógicas Conheceu boa parte do continente europeu onde firmou seu nome como mineralogista entre outras coisas por descobrir uma dúzia de espécies minerais e participar da identificação do lítio Em 1801 José Bonifácio estava de volta a Portugal Falava doze línguas escrevia em seis e era membro das principais academias de ciências Na Universidade de Coimbra foi nomeado para a cátedra de mineralogia especialmente criada para ele Durante as invasões francesas de 1808 destacou se como organizador e comandante no Corpo dos Voluntários Acadêmicos Feita a paz assumiu vários postos diretivos na burocracia metropolitana Aposentado retornou ao Brasil em 1819 com 56 anos de idade Instalou sua biblioteca de 6 mil volumes em Santos apesar de dançar lundus em festas e viajar pelo interior da capitania a vida de intelectual o isolava numa vila dominada por analfabetos Para se distrair escrevia sobre todos os assuntos inclusive governo Os apontamentos que produziu nos primeiros anos no Brasil indicam que considerava boa a situação de momento não vendo motivos para uma separação entre Brasil e Portugal Também indicam que tinha alguma prevenção contra os governos de representantes eleitos e a soberania popular cogitando fórmulas de poder nas quais órgãos burocráticos compostos de altos funcionários substitutos da nobreza togada como ele próprio teriam poderes autônomos Em 1821 depois das mudanças em Portugal esteve entre os que passaram a dirigir São Paulo numa junta de governo Organizou a eleição dos seis deputados paulistas um dos quais era o seu irmão Antônio Carlos de Andrada Nessa condição redigiu no dia 10 de outubro um documento prevendo um corpo de funcionários que chamou de censores que atuaria como elemento moderado nas disputas entre o monarca e os representantes eleitos da Assembleia Apenas dois meses depois em janeiro de 1822 foi nomeado ministro pelo regente D Pedro que acabara de completar 23 anos Na primeira reunião entre os dois houve um acordo formar um centro de poder estável no Brasil que assegurasse a sobrevivência da monarquia e a obediência a uma Constituição a ser elaborada por representantes eleitos Parecia um contrassenso evidente fundir instituições fundadas em princípios opostos De um lado estaria o poder real concebido como tendo origem divina operador de uma régua de justiça cuja medida os homens não conhecem e dando a cada um segundo o seu De outro um poder que se via fundado na razão derivado da soberania popular o maior de todos os poderes formado por pessoas eleitas e promulgando leis a que todos deveriam obediência Mas o momento era de emergência A primeira missão do ministro foi a de costurar apoios para que o regente expulsasse as tropas militares fiéis a Lisboa que estavam aquarteladas no Rio de Janeiro O êxito do ministro permitiu que o regente fosse a Minas Gerais Após treze anos no Brasil essa era a primeira vez que D Pedro saía da Corte Viajando sem séquito descobriu tanto as belezas da terra como os caminhos da política local debateu diretamente com as câmaras municipais as entidades que detinham os poderes efetivos para o apoio político fez reuniões públicas e promessas como qualquer vereador conheceu os canais de poder das capitanias bons para cobrar impostos mas inoperantes para atender os interesses dos moradores Teve sucesso ao passar a imagem de um soberano que prometia obedecer a uma Constituição Na volta alterou o tratamento nas cartas dirigidas ao pai substituindo a fórmula Deus guarde a preciosa saúde de Sua Majestade como todos os portugueses hão mister por os portugueses e nós brasileiros havemos mister Passou também a definirse como regente constitucional do Brasil nos decretos que editava e nas ordens que passava Os resultados políticos foram muito efetivos Em pouco mais de três meses consolidouse o acordo pelo qual o regente aceitaria um poder vindo do povo materializado num Parlamento eleito como Poder Legislativo soberano e encarregado de fazer as leis mais adequadas aos interesses dos cidadãos Na via inversa os principais líderes seguidores dos princípios iluministas do Rio de Janeiro Minas Gerais e São Paulo se comprometeram a aceitar não apenas um monarca hereditário mas também a continuidade de toda a visão de mundo do Antigo Regime o preconceito contra os brasileiros comuns a estrutura administrativa que vinha da colônia com o governo central e o comando das capitanias nas mãos de D Pedro Pelo acordo aquilo que no mundo era luta entre modos contraditórios de conceber a legitimidade do poder e a razão de ser das leis ficava em suspenso pela necessidade de garantir a independência No primeiro momento a união tinha um sentido claro figurado na pressão direta da Assembleia portuguesa para retomar o controle da administração brasileira e por meio deste do fluxo de negócios que havia se esgarçado Também havia um ganho potencial que era a possibilidade de herdar sem grandes problemas as conquistas diplomáticas relativas à delimitação do território quase todas contando com reconhecimento jurídico Acima de tudo a fusão de forças mostrouse eficiente Assim que se consolidou o acordo foi sacramentado na Maçonaria a sociedade secreta que reunia a maior parte dos liberais Com isso se estabeleceu um canal informal de difusão do projeto nas diversas capitanias nas quais tropas fiéis às Cortes de Lisboa e governos pouco fiéis ao projeto ainda dominavam Mesmo nessas circunstâncias foi possível promulgar em 3 de junho de 1822 o decreto de convocação de uma Assembleia Constituinte para fazer leis que valeriam apenas no território Os brasileiros estavam tão familiarizados com o processo eleitoral que agiram da mesma forma que na convocação das Cortes portuguesas escolhendo sem problemas os seus representantes para a formação de um Parlamento Em agosto foi dado outro passo para a organização de um governo próprio com as primeiras indicações de embaixadores brasileiros no exterior Eles partiram levando instruções escritas por José Bonifácio que acumulava o posto de chanceler com o de ministro responsável pelos negócios internos Graças ao domínio do governo central sobre parte do território e ao apoio de correntes de interesse internas havia condições suficientes para o gesto formal da independência no dia 7 de setembro Mas a formalidade era essencial a partir dessa data o território seria de uma nação autônoma e o governo central uma questão interna de seus habitantes Os problemas dessa realidade eram claros a rigor a autoridade do novo governo se exercia apenas numa fração do território declarado independente Da Bahia para o Norte as tropas fiéis a Lisboa ainda sustentavam correligionários no comando das capitanias Já no final de 1822 contudo o número de deputados eleitos reunidos no Rio de Janeiro começava a se aproximar do mínimo necessário para a instalação da Assembleia Constituinte Chegava o momento de repartir efetivamente o poder entre o monarca e os representantes da soberania popular De combinar a função de súdito obediente com a de cidadão De limitar o arbítrio e definir a esfera da igualdade perante a lei De cortar privilégios e limitar os poderes do governo Até a reunião dos deputados constituintes a ideia da fusão equilibrada de duas soberanias parecia atraente e efetiva No entanto a mistura mostrouse explosiva assim que começou a briga pela fatia de poder que teria cada soberania baseada em princípios opostos CAPÍTULO 25 A Constituição de 1824 A MAIOR PARTE DOS DEPUTADOS QUE SE DIRIGIRAM AO RIO DE JANEIRO ERA DE pessoas que até a véspera estavam muito abaixo da fidalguia exigida até mesmo para pleitearem um cargo no governo de capitanias E encontraram uma festa preparada Em outubro de 1822 D Pedro fora sagrado imperador e coroado em dezembro Nesse curto intervalo tratou de resolver a seu modo a primeira tensão das forças opostas que se juntaram no projeto A Maçonaria fez pressão para que a cerimônia da coroação o ato simbólico de instalação do novo poder nacional do monarca incluísse um juramento à futura Constituição o ato de inauguração do poder soberano do povo Ofendido o imperador jurou defender a Constituição mas apenas se fosse digna do Brasil e de mim Começava a disputa entre o espaço de continuidade dos valores do Antigo Regime e aquele dos ideais iluministas Com suas atitudes o imperador alertava os representantes eleitos que chegavam à capital que tomassem cuidado ao limitar pela via constitucional o poder que reservara para sua augusta pessoa Tinha confiança de que aqueles deputados que conhecera da Corte seriam capazes de providenciar o figurino digno da sua alta majestade Entre eles estavam o bispo do Rio de Janeiro o peculiar divulgador de Adam Smith que seria mais tarde visconde de Cairu e acima de todos José Bonifácio ministro com poderes quase de rei Todavia nem todos os recémchegados se importavam com essa parte do espetáculo Entre eles havia 16 padres seculares que não seguiam as posições do superior hierárquico o bispo nem os preceitos da divindade do poder monárquico Assim que começaram as sessões preparatórias um desses padres do interior o mineiro José Custódio Dias tomou posição contrária à proposta de obrigar os parlamentares a jurarem fidelidade ao rei com o seguinte argumento iluminista Nenhum limite deve circunscrever as funções dos membros da Constituinte salvo os ditados pela razão e pela justiça Doze dias mais tarde voltou à carga quando se discutia a posição que o rei deveria ocupar no salão durante a cerimônia de abertura dos trabalhos Pela proposta do palácio o trono seria colocado no alto de uma escadaria aos pés da qual ficaria a cadeira do presidente da Assembleia Custódio Dias argumentou Como o digno representante do poder Executivo tem de respeitar a Nação legitimamente representada da qual só deriva toda a autoridade que pelo pacto social se lhe vai conferir por lei fundamental cabe a colocação das cadeiras no mesmo plano Pareciam detalhes mas eram assuntos de fundo Toda a tradição do já então chamado Antigo Regime o mundo anterior à decapitação de Luís XVI era a de organizar o poder como desigualdade tendo como modelo as relações senhorrei e escravosúdito Já o modelo iluminista era aquele da sociedade de iguais que faz um contrato constitucional por delegação do povo soberano Em sociedades com muitos analfabetos o cerimonial é a organização de um roteiro para ser lido por todos e por isso a localização era importante como símbolo do que viria pela frente Por isso a insistência Muitos dos constituintes viam a si mesmos pelo figurino iluminista como representantes eleitos da população e portanto responsáveis por transformar o governo com monarca e tudo num intermediário entre a soberania geral e a execução de sua vontade Estavam dispostos a tolerar um rei à frente de um dos poderes mas também a redigir uma Constituição na qual teria papel central o Poder Legislativo que inauguravam Perderam o primeiro round mas a luta continuou A disputa simbólica entre um poder que tinha como fonte filosófica o princípio da desigualdade que separa o monarca de seus súditos e outro que se alimentava da igualdade entre os cidadãos logo ganhou uma referência muda nos debates a escravidão Nenhuma nação do Ocidente encontrara ainda uma fórmula para aplicar com êxito o princípio da igualdade na vida civil A abolição da escravatura no Haiti resultara em desastre econômico e todos os iluministas davam tratos a bola para descobrir fórmulas de ajuste entre a realidade do cativeiro os ideais de liberdade e os anseios de progresso No Haiti a total desarticulação da economia ocorrera por causa do duplo caráter da mudança Do lado político aconteceu a garantia da liberdade Do lado econômico tal liberdade implicava o cancelamento dos títulos de propriedade dos donos dos escravos A luta contra o princípio lógico que sustentava o poder real tinha uma tradução prática complicada na economia O custo em dinheiro da abolição também seria imenso na realidade brasileira da época Na época da independência o valor total representado pelos escravos brasileiros era de 688 milhões de libras esterlinas ou 293 milhões de dólares Em base per capita seriam 10446 dólares por homem livre a população livre em 1823 era de 28 milhões de pessoas mais que o PIB per capita estimado para a época Era um valor 637 vezes maior que a receita orçamentária de 1826 que foi de 59 mil contos o que dá uma ideia do problema fiscal que seria criado com a combinação de abolição e pagamentos de indenização aos senhores pela via da emissão de títulos1 Mesmo sem indenização o fim do cativeiro naquele momento era mais um problema de economia do que de direitos e não havia solução disponível O melhor que ingleses e norteamericanos haviam conseguido fora uma solução de compromisso legislar contra o tráfico internacional de escravos sem legislar contra a escravidão E as leis contra o tráfico foram aprovadas quase ao mesmo tempo nos dois países no ano de 1808 Depois desse ato a Inglaterra até então uma das maiores nações traficantes do planeta pôde concentrarse no desenvolvimento capitalista e abandonar as políticas mercantilistas Passou então a pressionar para que a atividade fosse interrompida em todo o mundo e um dos alvos dessa pressão foram os traficantes brasileiros Já nos tempos de D João VI os ingleses tinham arrancado acordos pelos quais o tráfico de escravos passaria a ser ilegal ao norte do Equador a partir de 1815 Era a solução de longo prazo exequível A nação recémindependente poderia ou não reconhecer essa posição e a decisão estava nas mãos de José Bonifácio ministro dos Negócios Exteriores Ele baseou as conversas iniciais com a Inglaterra numa troca Londres reconheceria a independência brasileira e o novo país adotaria uma política de contenção gradual do tráfico Tal opção criava um problema espinhoso Uma vez que quase não havia bancos nem empresas no país a acumulação de capital dependia do fornecimento da mercadoria viva os escravos eram não só uma fonte de trabalho mas também o esteio das cadeias de fiado que ligavam a capital ao mais remoto sertão Não à toa os traficantes eram de longe os mais ricos empresários brasileiros Aceitar o fim do tráfico obrigaria a uma imperiosa mudança em toda a estrutura de subordinação financeira dos produtores do sertão aos comerciantes do interior e destes aos traficantes dos grandes centros Assim além da disputa filosófica a respeito da organização das leis e dos bons governos logo se mostrou um complicado problema prático A posição de José Bonifácio desagradou profundamente os traficantes que ao contrário dos deputados recémchegados mantinham relações de extraordinária proximidade com o Paço Imperial lastreada em anos de bons negócios mútuos os traficantes ofereciam aos nobres e cortesãos uma participação nos lucros dos seus empreendimentos imiscuíamse nos negócios de arrecadação de impostos nas transações com as províncias arrematavam contratos de obras públicas e cargos no governo Então eles se aproveitaram de um momento de alívio das ameaças militares as tropas fiéis a Lisboa que ainda dominavam a Bahia foram cercadas em maio de 1823 e abandonaram Salvador até 2 de julho daquele ano Com isso apenas o Maranhão e o Pará ainda não tinham aderido formalmente à independência Essa drástica redução de riscos permitiu que o imperador assumisse outros demitiu José Bonifácio e seu irmão Martim Francisco ministro da Fazenda colocando no lugar deste o marquês de Baependi cunhado de Fernando Carneiro Leão o traficante que fora amante de Carlota Joaquina José Bonifácio não se abalou deixou o serviço da autoridade coroada e assumiu o posto de deputado constituinte para o qual fora eleito por São Paulo Um de seus primeiros atos foi protocolar uma Representação sobre a escravatura Sendo trabalho de parlamentar representante eleito e não mais de ministro a serviço do poder arbitrário apresentava um novo foco que ecoava a posição anglosaxã da transição lenta mas com foco brasileiro É tempo que vamos acabando gradualmente com os últimos vestígios da escravidão entre nós para que venhamos a formar uma nação homogênea sem o que nunca seremos verdadeiramente respeitáveis e felizes É da maior necessidade ir acabando com tanta heterogeneidade física e civil Cuidemos pois desde já em combinar sabiamente tantos elementos discordes e contrários em amalgamar tantos metais diversos para que saia um todo homogêneo e compacto que não se esfarele ao toque de qualquer convulsão política2 O texto revela domínio da teoria iluminista e dos modos já empregados para transformála em escrita norteadora das leis nacionais Nos Estados Unidos também havia essa ideia de empregar a teoria como guia de uma legislação sábia a ser executada em meio a costumes muitas vezes selvagens Para tanto os legisladores escolheram definir em lei apenas os princípios básicos de tal modo que se reforçasse a igualdade por meio da jurisprudência ao mesmo tempo que desestimulava os costumes que mantinham a desigualdade à margem da letra No Brasil era o contrário José Bonifácio via as virtudes nos costumes via as soluções a partir da essencial mestiçagem capaz de unificar o país a partir da sociedade Sendo os costumes a fonte da igualdade o problema real seria usálos como fundamento para o desaparecimento da heterogeneidade civil eliminando o direito do arbítrio circunscrevendo a autoridade do monarca e dos senhores os esteios da vida nos moldes do Antigo Regime O andar de cima é que precisava de reforma Se embora com diferenças as posições de José Bonifácio e dos norte americanos visavam o mesmo objetivo havia uma radical diferença de visão entre ele e os defensores nacionais da continuidade dos valores do Antigo Regime como norteadores das leis brasileiras Para estes desde sempre a manutenção das diferenças era o mais importante Viamse como os caranguejos e os demais brasileiros como um punhado de mestiços de mau comportamento Para José Bonifácio pelo contrário o futuro seria marcado pela virtude de costumes que ele em escrito anterior definira da seguinte maneira Nós não conhecemos diferenças nem distinções na família humana como brasileiros serão tratados por nós o chinês e o luso o egípcio e o haitiano o adorador do sol e de Maomé3 A cidadania deveria abolir todos os privilégios Diferenças de raça ou diferenças de religião não seriam impeditivos para alguém ser brasileiro Pelo contrário o reconhecimento da liberdade de credo e da igualdade essencial entre os seres de todas as raças seria o fundamento do que define os brasileiros A formulação de José Bonifácio incorpora ao modo iluminista uma concepção universal da capacidade humana de empregar a razão independentemente de raça ou religião Como todos os seres humanos teriam essa capacidade todos teriam direitos como cidadãos Mas há um detalhe importante para ele eram os brasileiros e não os seres humanos em geral que não considerariam diferenças religiosas ou raciais José Bonifácio identificava algo próprio da sociedade brasileira que tornava as ideias de liberdade e igualdade plausíveis para todos num grau inconcebível para outros iluministas Thomas Jefferson era um dos que não acreditava que os negros mesmo livres tivessem a capacidade de usar a razão ao ponto de terem direitos civis isto é serem cidadãos tão capazes de pensar por si mesmos que poderiam votar e ser votados Assim defendeu legislações na Virgínia que negavam o direito de voto aos negros livres Rousseau duvidava que habitantes dos trópicos tivessem capacidade racional plena Essa crença num processo de união nacional constituída por amalgamento a peça central da aliança agora brasileiroTupi distinguia o deputado José Bonifácio Ele argumentou em favor de uma união inicial entre elementos discordes o monarca hereditário e o Parlamento como preço inevitável a pagar O rei deveria aceitar um Parlamento casa adequada para se criar instituições liberais dignas de uma sociedade que vivesse em liberdade E os liberais deveriam aceitar um rei até o momento em que a sociedade civil fosse homogênea Com esse tipo de argumento procurou ajudar na elaboração de um texto constitucional que mantivesse a substância da proposta original fazer conviver duas fontes de poder opostas numa única regra social No início de setembro de 1823 chegouse a um projeto palatável aos constituintes e restava o problema de saber se o monarca o considerava digno de si Nessa altura porém garantido o controle de quase todo o território o monarca tinha outro tipo de aliança em mente Estava governando com o apoio de sempre os comerciantesfidalgos que também pregavam os valores do Antigo Regime Passado o susto da intervenção nos negócios destes e nos poderes daquele as duas partes associadas no alto começavam a se perguntar se seria o caso de partilhar o governo com os recémchegados do Parlamento A resposta veio em novembro com a Assembleia Constituinte sendo fechada por tropas e José Bonifácio forçado a se exilar Para mostrar quem de fato decidia o que seria digno para o Brasil o monarca promulgou uma Constituição feita por ele mesmo na qual aproveitava grande parte do texto elaborado pelos deputados mantendo inclusive umas tantas qualidades Entre elas estavam o reconhecimento como cidadãos de todos os moradores do território nascidos onde fossem fossem índios libertos ou portugueses Não se empregava a palavra escravos mas como definia que todos os libertos eram cidadãos plenos algo que não acontecia nos Estados Unidos de então o ato afirmava direitos plenos para todos que não fossem escravos Mantinha a capacidade de voto para todos incluindo analfabetos e estabelecia como critério de exclusão maior um limite de renda 100 milréis menos que o valor do salário de um carpinteiro Por outro lado o texto do imperador introduzia uma mudança radical no projeto aprovado no Parlamento exatamente nos capítulos que definiam os poderes do soberano As prerrogativas começavam no artigo 98 que criava um poder exclusivo do monarca o Poder Moderador como a chave de toda a organização política delegado privativamente ao imperador como chefe supremo da nação e seu primeiro representante para que incessantemente vele sobre a manutenção da independência equilíbrio e harmonia dos demais poderes As relações entre o soberano de origem divina e a soberania popular representada no Parlamento não seriam relações entre iguais como queria o padre José Custódio Dias Agora havia uma chave para regular os espaços das duas soberanias opostas com dono privativo Para ficar claro que não se tratavam de partes iguais de eventuais ocupantes de um mesmo plano o artigo 99 reiterava A pessoa do imperador é inviolável e sagrada Ele não está sujeito a responsabilidade alguma O termo responsabilidade está empregado em seu sentido jurídico a lei não pode ser aplicada ao detentor do Poder Moderador É igual apenas para os súditos o monarca está acima dela As atribuições do Poder Moderador em relação a muitas instituições eram relacionadas caso a caso O artigo 102 definia as relações com o Executivo O imperador é o chefe do poder executivo e o exercita através de seus ministros O sentido preciso desse através é detalhado no capítulo 6 ministros eram os responsáveis ou seja respondiam juridicamente podendo ser processados por traição abuso do poder transgressão à lei mau uso do dinheiro público Caso ainda restassem dúvidas o artigo 135 esclarecia Não salva aos ministros da responsabilidade a ordem do imperador vocal ou por escrito Nesse caso o imperador mandava o ministro fazia o que não o isentava de um eventual processo O controle do Poder Judiciário também ficava sob o comando direto do imperador que nomeava ou afastava à vontade todos os membros dos tribunais superiores além de manter o antigo poder da graça que lhe permitia alterar sentenças judiciais quando julgasse conveniente A Constituição preservava apenas uma novidade de fundo iluminista a definição do Poder Legislativo como parte do governo da nação dotada de soberania própria derivada da escolha dos eleitores e não da vontade do imperador Também reservava exclusivamente aos parlamentares alguns poderes fazer leis fixar impostos e despesas autorizar empréstimos definir o valor da moeda e os padrões de medida Mas também o definia como poder delegado e portanto produtor de atos que só entrariam em vigor após a sanção do imperador Para que nenhum parlamentar se aventurasse o artigo 65 dizia explicitamente que a ausência de sanção tornava sem efeito as decisões legislativas a menos que o mesmo e exato texto fosse aprovado de novo por uma segunda legislatura Publicada a nova Constituição os exdeputados foram mantidos em casa A convocação de eleições só aconteceria quando assim o decidisse o detentor do Poder Moderador Enquanto a nação ficava sem representantes eleitos muitos iam reinterpretando palavras que recendiam a recados do Paço como essas do então ministro Antônio Carlos Ribeiro de Andrada ao refutar a ideia do padre José Custódio Dias de colocar as cadeiras num mesmo plano Que paridade há entre o representante hereditário da nação inteira e os representantes temporários Que paralelo se pode encontrar entre o monarca que concentra em sua individualidade toda uma delegação soberana e o presidente de uma assembleia que abrange coletivamente outra delegação soberana mas que não pode nem deve abrangêla toda Como se pode nivelar um poder que é fonte de todas as honras com uma assembleia cujo maior ornato é a simplicidade4 Exilado com o irmão José Bonifácio o homem um dia preso por participar de revoluções começou a se dar conta de outro padrão para julgar o quanto essa desigualdade expressa no texto estava longe de seus sonhos nos quais essa dualidade seria favorecida pelos costumes os atos arbitrários do primeiro governante do país independente CAPÍTULO 26 Dando para si mesmo MAIS DO QUE REDIGIR UMA CONSTITUIÇÃO A SEU GOSTO D PEDRO I CONSEGUIU transformar o poder legal concebido para realçar sua pessoa em poder efetivo tendo de superar apenas um obstáculo notável A principal reação veio de Pernambuco que voltou a pegar em armas contra o poder central A Confederação do Equador durou poucos meses e foi debelada por meio da intervenção conjunta dos recém criados Exército e Marinha nacionais o primeiro caso no qual forças organizadas para a defesa externa foram empregadas contra os agora cidadãos segundo ditava a teoria iluminista e súditos como ditava o Poder Moderador Os principais líderes liberais da província frei Caneca à frente foram fuzilados em janeiro de 1825 Em seguida o Exército e a Marinha cumpriram também a última missão de luta contra forças ainda ligadas a Lisboa instalando governos brasileiros no Maranhão e no Pará Assim se completou um ciclo Em pouco mais de dois anos foi criado um governo independente no país capaz de exercer autoridade num território que coincidia com todo o território colonial Além disso a autoridade imperial estabelecida comandara uma centralização de porte ampliando o domínio sobre as demais instâncias de governo se comparado ao monarca anterior Governando do Rio de Janeiro D João VI era obrigado a observar as regras de seu poder fundado na tradição secular do reino multicontinental Não podia derrogar os direitos adquiridos pelos nobres ou pelo clero precisava lidar com um Poder Judiciário que mantinha essas prerrogativas tinha de seguir as rotinas de consultas aos vários conselhos Mesmo estando instalado na face americana de seus domínios na qual os direitos feudais da nobreza e do clero não existiam de fato seus atos seguiam o modelo geral O máximo que fez em termos administrativos foi transformar as capitanias em províncias por um ato de 1821 Essa instância intermediária de governo embora subordinada ao monarca mostrou de imediato um relevante grau de autonomia Com a Revolução do Porto juntas de moradores em diversas províncias haviam tomado para si o poder Organizaram a eleição de deputados constituintes e com elas obtiveram tanto a ampliação da esfera de ação do voto como relações diretas com os representantes eleitos sem que o monarca tivesse determinado nada a respeito Depois comandaram as eleições dos representantes para o Parlamento brasileiro em muitos casos antes mesmo do 7 de setembro A violenta repressão dos pernambucanos foi também um alerta pela nova Constituição a escolha dos governantes nas províncias passava a ser um ato reservado ao Poder Moderador ou seja dependia da vontade arbitrária do imperador Os fuzilamentos no Recife lembraram à última província a manter a já secular tradição de governos regionais autônomos que havia começado uma nova era que não era exatamente a do governo que representava a sociedade A única contestação à autoridade régia manifestouse através de pequenas discordâncias esparsas de câmaras municipais naquele momento as únicas representantes da soberania popular A Câmara de Quixeramobim no Ceará proclamou a república em resposta à Constituição outorgada a de Itu em São Paulo recusou a Carta Era quase nada de modo que o imperador passou a governar quase sem contraste de outras esferas de poder O poder político imposto do centro para as localidades se completava por um fluxo financeiro na direção oposta impostos captados em todo o país afluíam ao Tesouro no Rio de Janeiro Assim se completava a soma do mandar e do receber No momento de o governo dar a cada um o seu a independência também introduziu novidades importantes Na época colonial toda a lógica do governo central baseavase na obtenção de superávits no Brasil os quais compensavam os gastos deficitários com nobres clérigos e fidalgos togados na metrópole Como no Brasil não havia nada disso as despesas do país independente tinham caráter bem mais discricionário ou seja o poder central podia gastar o dinheiro como bem entendesse E o poder central de 1824 em diante era praticamente sinônimo de imperador A Constituição concentrara poderes em torno de uma única figura que derrogara o Parlamento e passara a mandar sozinha Agora o emprego dos recursos da nação era quase uma decisão pessoal do imperador O quase devese ao fato de que a centralização do poder não era apenas um projeto pessoal Havia gente importante em todo o país que apoiava a ideia de um poder arbitrário Por isso ainda que não tivesse obrigações explícitas para com essas pessoas o soberano precisava prestar atenção naqueles súditos que mais o ajudavam a fazer a roda girar nesse sentido D Pedro não descuidou disso desenvolvendo versões nacionais de fórmulas monárquicas muito baratas e de relativo peso social recompensando a obediência com os panos vermelhos de fidalguia Depois de bater nos cidadãos com a Constituição passou a assoprar uns poucos súditos que o sustentavam por meio da distribuição de títulos de nobreza A monarquia portuguesa determinara o hábito da Ordem de Cristo como o maior grau de fidalguia acessível aos brasileiros o que se justificava para evitar as franquias que acompanhavam os títulos de nobreza hereditários No país independente essa vinculação desapareceu com a Constituição de modo que o imperador passou a distribuir títulos que tinham os mesmos nomes daqueles da nobreza de sangue mas nada de seu conteúdo uma vez que a eles não estavam associados direitos adquiridos Um dos primeiros títulos dessa natureza foi concedido à paulista Domitila de Castro Mello amante do imperador desde a Independência que se tornou primeiro viscondessa e logo depois marquesa de Santos uma ironia direta com o santista José Bonifácio que se recusou a ser nobilitado Outro agraciado foi José da Silva Lisboa desde 1808 o economista quase oficial da monarquia joanina Em 1824 com a eclosão da Confederação do Equador ele publicou o Apelo à honra brasileira contra a facção federalista de Pernambuco e no ano seguinte recebeu o título de barão de Cairu A ardorosa defesa do poder central não era obra de ocasião pois há muito fazia parte dos ideais do novo nobre Suas ideias reacionárias tinham apoio social relevante E seus livros eram lidos com grande respeito por aqueles que mais interessavam os grandes comerciantes do Rio de Janeiro as pessoas mais ricas do país e que acumulavam também as funções de traficantes de escravos arrecadadores de impostos e beneficiários dos recursos do governo razões mais que suficientes para apoiarem a centralização do poder todos eles em excelente posição para querer receber o seu junto ao rei Por motivos que a obra de Cairu permite entender consideravamse satisfeitos com a ausência de mudanças econômicas e políticas na Independência e por isso se colocavam ao lado do imperador contra os liberais e a facção federalista O que mais lhes importava era a continuidade do tráfico de escravos e do trabalho escravo Eram contra a indústria No texto Observação sobre a franqueza da indústria e estabelecimento de fábricas no Brasil Cairu não deixou dúvidas a respeito Reintegrandose a paz na monarquia os gêneros coloniais devem ter vastos mercados na Europa e com a franqueza ié liberdade do comércio e indústria provavelmente poderemos vencer aos competidores na venda de iguais produtos e consequentemente não convém com privilégios distrair os fundos de nossa agricultura e menos ainda com a mão do governo levantar fábricas1 Era uma proposta deliberada para manter intocada a estrutura da economia brasileira e se afastar do caminho da produção capitalista uma realidade apresentada como inelutável A nossa população principal é de escravos e a de brancos e gente livre é pequena e avança muito lentamente pela desgraçada lei do cativeiro e comércio da costa da África que dificulta o casamento com pessoas de extração europeia Convém pois ao Brasil pela necessidade das coisas o trabalho dos campos das artes comuns visto que a óbvia e farta colheita dos frutos rudes da terra e o simples fabrico e transporte de obras grosseiras ou ordinárias está mais na possibilidade e esfera da parte principal do povo Não devemos presumir de melhor entendermos nossos interesses para querermos a torto e a direito pretender rivalizar na indústria manufatureira com países que têm redundante população e séculos de exercício fabril2 Essa definição da produção brasileira resulta antes de um modo de ver do Antigo Regime do que aquela atualmente revelada pelos dados estatísticos Mas essa espécie de proposta não chegava a ser exótica na época marcada pelas ideias do famoso economista francês François Quesnay que assim definia a primeira máxima para a ação do governo em economia Os trabalhos da indústria não multiplicam as riquezas Os trabalhos da agricultura compensam os custos pagam a mão de obra do cultivo propiciam ganhos aos lavradores e além disso produzem as rendas dos bens de raiz Os que compram as obras da indústria pagam os custos da mão de obra e o ganho dos mercadores mas essas obras não produzem nenhuma renda a mais3 Se não gerava riqueza a indústria poderia até produzir pobreza sobretudo num caso assim descrito por Quesnay Uma nação que tenha grande território e faça baixar o preço dos gêneros produzidos em suas terras para favorecer a fabricação de obras manufaturadas destróise por todos os lados4 Karl Marx fez o seguinte retrato dos traços essenciais do pensamento fisiocrata como ficou posteriormente conhecida a escola do economista francês Para os fisiocratas o trabalho agrícola é o único trabalho produtivo porque é o único que cria mais valia eles não reconhecem outra forma de maisvalia além da renda da terra Segundo os fisiocratas a agricultura fornece matéria para toda a produção social O operário industrial não acrescenta matéria mas se limita a modificar sua forma acrescenta valor à matéria sem dúvida mas pelo custo da produção de seu trabalho não pelo trabalho acrescenta valor através da soma de meios consumidos durante seu trabalho igual ao subsídio que recebe da agricultura Para os fisiocratas também o lucro não é mais que uma espécie de salário de categoria superior pago pelos proprietários de terra e consumido como renda pelos capitalistas industriais5 Essa espécie de pensamento segundo Marx seria uma forma adaptada do pensamento do Antigo Regime para interpretar a aurora burguesa Nesta concepção o proprietário de terras aparece como verdadeiro capitalista como elemento que se apropria do trabalho excedente Deste modo o sistema feudal se apresenta reproduzido e explicado na descrição da produção burguesa e a agricultura aparece como único setor que realiza produção capitalista ou seja produz maisvalia O feudalismo se aburguesa e a burguesia ganha ares feudais Por isso o pensamento fisiocrata apareceu sobretudo na França país essencialmente agrícola6 Mesmo citando Adam Smith Cairu norteavase pelos valores fisiocratas Mais ainda empregavaos em sentido retrógrado Apostava no potencial da produção escravista porque via na agricultura a principal atividade natural da economia brasileira enquanto as fábricas seriam artificiais O ano de 1825 parecia para quem defendia tal projeto ser de vitória completa Parecia garantido que a desigualdade entre os homens era não apenas um dado da natureza mas também o princípio sobre o qual deveria se assentar a organização do bom governo e da sociedade A autoridade do imperador que garantiria a continuidade do mundo assim organizado se firmara no topo Por isso os defensores de seu poder acreditavam num futuro brilhante e na superação dos concorrentes na produção agrícola que haviam optado pela via iluminista Os maiores defensores internos da visão iluminista e da soberania popular estavam exilados presos ou tinham sido mortos por fuzilamento A possibilidade de produzir bens toscos e afastar a indústria parecia firme agora que o domínio do governo nacional se afirmara em todo o território Mas o poder arbitrário servia para outras coisas além de satisfazer os planos reacionários de traficantes D Pedro I sentiu que o momento era propício em outra frente e o aproveitou ao máximo Por dois anos as negociações em torno do reconhecimento diplomático da independência vinham se arrastando Ao indicar a Inglaterra como sua representante nas negociações Portugal encontrara um intermediário poderoso que não se furtou a avançar os próprios interesses instando para que o novo país adotasse os privilégios alfandegários e comerciais cedidos por Portugal além de proibir o tráfico de escravos Enquanto a situação não se esclarecia o próprio imperador havia sido mantido pelo pai como herdeiro do trono português Dessa forma D Pedro negociava com dois objetivos o poder no Brasil e o futuro poder em Portugal Quando juntou poder pessoal suficiente para resolver as coisas como queria D Pedro solicitou aos ingleses que mandassem ao Rio de Janeiro um emissário com poderes para assinar o tratado Charles Stuart demorou apenas o período de julho e agosto para distinguir a importância relativa dos vários interesses em jogo Definida a ordem o tratado foi assinado em 29 de agosto A solução poderia parecer estranha para um governo que se estabelecera por combates militares vitoriosos pelo acordo Portugal concedia a independência ao Brasil como um favor O Brasil por sua vez recompensava o favor com uma indenização de 2 milhões de libras esterlinas metade de suas exportações anuais ou cerca de 7 do PIB da época Satisfeitos os interesses de Portugal vinha a seguir o reconhecimento pela Inglaterra também retribuído com o atendimento a seus interesses Por 15 anos o novo país comprometiase a manter todas as vantagens que os ingleses haviam arrancado de Portugal impostos de 15 para os produtos ingleses na alfândega enquanto todos os demais países pagavam 24 um juizado especial para os crimes de ingleses no território brasileiro franquias religiosas privilegiadas para seus súditos Além disso o Brasil comprometiase a extinguir o tráfico de escravos no prazo de cinco anos O imperador também conseguiu satisfazer interesses pessoais A forma do tratado o mantinha como herdeiro da Coroa portuguesa e mais que isso colocavalhe à disposição meios financeiros empréstimos ingleses a serem pagos pelo novo país para agir em defesa desse direito presumido Tanto D Pedro como Stuart sabiam perfeitamente o que o pagamento dessa conta significava para os brasileiros Por isso cuidaram de fatiar o acordo em várias partes As mais palatáveis foram apresentadas em público outras foram tidas como sensíveis demais e registradas em acordos secretos assinados à parte Foi preciso algum tempo para que os brasileiros tivessem uma ideia dos custos do acordo Somando tudo o país ficou com uma dívida de 568 milhões de libras esterlinas Um século e meio mais tarde Carlos Pelaez e Wilson Suzigan chegaram ao seguinte cálculo do destino desse dinheiro Somente 600 mil libras foram enviadas para os cofres do Banco do Brasil O restante foi empregado em expedições militares e missões diplomáticas na Europa Sendo assim os objetivos econômicos para a obtenção de empréstimos não foram levados em consideração para a obtenção de recursos A situação monetária do país piorou consideravelmente graças à má administração dos empréstimos7 Em outras palavras algo como 3 milhões de libras esterlinas dois terços das exportações ou quase 10 do PIB brasileiro foi embolsado pelo monarca para seus projetos pessoais ou pagamentos aos ingleses No total um valor que equivalia a algo como 18 do PIB foi dado em pagamento para o exterior seja a Portugal ou ao bolso do monarca Era uma novidade amarga Com o tratado desapareceram de vez as possibilidades de que a independência nacional coincidisse com um período de progresso do país Nem capitalismo nem escravismo ganharam com o acordo Pelo contrário sobrou para todos o ônus a dívida de todos esses gastos improdutivos Mesmo desconhecendo os números por causa do caráter sigiloso do tratado até mesmo os mais radicais defensores do poder arbitrário logo notaram que não estavam do lado dos ganhadores bastava a cláusula que previa o fim do tráfico legal de escravos para indicar que até os interesses dos traficantes que sonhavam com a monarquia haviam sido desconsiderados D Pedro I por sua vez era o único que sabia com exatidão o tamanho do presente que dera a si mesmo aquilo que os analistas posteriores chamam de dinheiro empregado em expedições militares e missões diplomáticas na Europa Essas missões tiveram como objetivo central a montagem de um esquema forte o suficiente para garantir suas pretensões ao trono então ocupado por seu pai Claro que esses gastos bancados por brasileiros poderiam ser objeto de contestação Para evitar o constrangimento D Pedro I tratou de declarar guerra à Argentina em dezembro de 1825 O ato não apenas justificava gastos para contratar mercenários na Europa como apelava para a união dos brasileiros contra um inimigo externo Tudo isso aconteceu no intervalo de apenas dois anos durante o qual o imperador foi o único soberano o representante sem contraste de todos os poderes de governo da nação com exceção da autoridade dos caciques nas selvas e dos governos municipais nas vilas O poder pessoal definido na Constituição como irresponsável agira cabia agora aos súditos responsáveis encontrar um modo de saldar a conta Para essa parte menor do problema fazia sentido a participação do poder soberano dos representantes O Parlamento foi reaberto e fez sua parte CAPÍTULO 27 Poderes em confronto A PRIMEIRA LEGISLATURA REGULAR DO PARLAMENTO BRASILEIRO FOI ABERTA EM 1826 Meio século antes havia sido instaurado o primeiro Parlamento do continente o norte americano o qual continuava sendo o único a funcionar regularmente na América O território do Império espanhol se fragmentara em várias nações de vida política irregular com os parlamentos funcionando de maneira intermitente no Império português fora o Brasil os demais territórios permaneciam como colônias Nem mesmo na Europa havia regularidade Com exceção da Inglaterra onde os poderes monárquicos haviam sido severamente limitados pelo Parlamento no século XVII em quase todo o continente com a derrota de Napoleão Bonaparte em 1815 refluíra a onda revolucionária inspirada na França e os parlamentos remanescentes competiam pelo poder com os reis quase sempre em desvantagem a regra geral era uma restrição dos poderes do Legislativo semelhante à imposta pela Constituição brasileira Nos dois continentes os critérios de habilitação dos eleitores criavam limitações severas a um poder que pretendia representálos Na Europa havia exigências de renda similares às brasileiras e voto qualificado Nos Estados Unidos além delas havia critérios explícitos de raça que excluíam das eleições os negros livres De acordo com estimativas posteriores a proporção de eleitores variava entre 1 e 2 da população nos dois lados do Atlântico No Brasil devido à herança do voto municipal historiadores notam uma situação relativamente favorável à representação popular mesmo com as restrições de renda o total de votantes nas primeiras eleições para o Parlamento nacional era em termos proporcionais possivelmente maior do que na Europa ou nos Estados Unidos Além disso votavam analfabetos e negros livres com poucas restrições Mas as vantagens acabavam aí Do ponto de vista político os parlamentares eleitos tinham de enfrentar uma situação institucional muito desfavorável para o exercício do poder soberano da vontade geral Havia uma lei maior escrita e essa lei colocava os poderes Executivo e Judiciário em completa subordinação ao Poder Moderador eram três poderes coordenados contra um só Mais ainda as Ordenações do Reino mantidas praticamente inalteradas desde o século XV foram herdadas como legislação infraconstitucional em todos os pontos que não colidissem com a Constituição Esse Parlamento começou a funcionar num momento em que uma constatação ficava clara as esperanças na sobrevivência da escravidão que animavam os conservadores se toldavam com as notícias da Europa e dos Estados Unidos A produção capitalista dependente de trabalho assalariado e capital estava se mostrando pujante sobretudo na Inglaterra cujas instituições econômicas estavam se transformando no modelo a ser imitado por todos Ainda que convivendo com a escravidão o forte desenvolvimento do capitalismo nos Estados Unidos puxado pelos estados com menos escravos já era um sinal mais que evidente do rumo da mudança A combinação de indústria com trabalho assalariado trazia uma nova dinâmica para o todo A produção escravista embora produtiva e rentável e ainda capaz de expansão começava a ficar para trás Enfim começava a ficar claro que a escravidão não teria muito futuro exatamente o oposto do que imaginavam os autores que exprimiam os sentimentos da elite traficante na época da mudança da Corte como o bispo Coutinho ou o visconde de Cairu O tratado de reconhecimento da independência fizera somar à má escolha estratégica um elemento estrutural O imperador comprometera o futuro dessa nação que começava a andar na contramão do mundo com o pagamento de uma dívida imensa e improdutiva a que somavamse favores à Inglaterra Condenara seus únicos apoiadores externos a agir brevemente na ilegalidade Tudo isso agiu para arrastar forças políticas em direção à oposição Tudo isso aumentava o potencial do Parlamento mas também tornava ainda mais difícil a tarefa essencial dos parlamentares encontrar meios para levar adiante um país novo que estava em guerra com o principal vizinho e tinha uma economia à beira do caos monetário Mesmo assim os representantes da soberania popular tentaram cumprir sua função A dura experiência da Constituinte fechada fez com que as disputas simbólicas com o trono fossem reduzidas ao mínimo sem eliminar o estranhamento entre os poderes Só que o momento era outro Consciente do dano que causaria à nação o imperador buscava parceiros para convencer os prejudicados a aceitálo Para reunir os poderes que lhe permitiram assinar o acordo D Pedro I concentrara franquias e decidira sozinho agora que precisava dividir a conta por muitos esperava que o Legislativo o ajudasse na tarefa de explicar aos brasileiros que valia a pena tal sacrifício pela pátria Apesar do sigilo relativo à parte mais pesada do acordo já circulavam os rumores de que o tratado fora arranjado para satisfazer os interesses lusitanos do monarca à custa do sangue brasileiro Em 1826 poucas semanas antes da abertura da sessão legislativa ocorreu um evento que potencializou esses comentários a morte de D João VI Ele foi um dos raros monarcas de sua geração na Europa a deixar a vida com a coroa sobre a cabeça e esta ainda sobre o corpo místico de rei D Pedro assumiu o trono como herdeiro promulgou uma Constituição e renunciou em seguida ao trono português em favor da filha mais velha Maria da Glória Ainda assim o interesse dele nos negócios da antiga metrópole ficou claro ajudando a disseminar críticas Em seu discurso na solenidade de abertura do Parlamento brasileiro o imperador empenhouse em justificar suas ações Ressaltou que a renúncia ao trono português era uma grande prova de seu amor pelo Brasil e de que não tinha interesse em Portugal claro deixou de lado a coroa da filha E recorreu a um argumento de força para quem se atrevesse a pensar de outro modo lembrou aos parlamentares que tal como havia fechado uma Assembleia ainda tinha poderes para repetir o ato Para os parlamentares tornouse óbvio que o monarca agora dirigia a política de duas coroas Não passaram recibo da ameaça E muito menos se conformaram com o papel de auxiliares do trono na hora das dificuldades Começaram a buscar formas de exercer o papel de representantes da população descontente mas sem provocar choques diretos com o poder real Não demoraram para achar o caminho da economia O tratado de reconhecimento da independência implicara um imenso dispêndio de recursos do governo central A guerra com a Argentina aumentara ainda mais o volume desses gastos Porém como não houve aumento da riqueza nem dos impostos o governo pagava muito mais do que arrecadava acumulando déficit atrás de déficit O dinheiro dos empréstimos ingleses cobriu uma pequena parte do rombo mas era preciso muito mais para fechar a conta A saída tradicional da época para o governo obter recursos seria aumentar os impostos sobre as importações a sua principal fonte de receita O problema é que como o tratado com a Inglaterra fixara as alíquotas desse país num patamar muito baixo não havia campo para a manobra Por isso o governo começou a cunhar moedas com valor de face muito mais alto que o do metal com que eram feitas Recolhia as moedas antigas recunhava e ficava com a diferença em metal Deu certo por um tempo já que a medida funcionou como convite para falsificadores cunharem eles mesmos as moedas A combinação de moeda de menor valor com moeda falsificada mostrava fisicamente para cada um que tocava nas peças que o governo tornavao possuidor de menos ficando com mais Isso era uma má novidade nos tempos coloniais o governo central arrecadava muitos impostos empregava a violência mas levava apenas de quem supostamente produzira riquezas A recunhagem era imposto sobre todos a pobreza que gerava aparecia de forma gritante e o descontentamento que criava era geral Entre a necessidade imperial de continuar gastando e o sentimento popular de revolta a maioria dos deputados não hesitou Parlamentares começaram a pedir que o governo enviasse um ministro para explicar a situação econômica Tomando o pedido como intervenção em seara indevida o monarca recusouse a atender à convocação Os parlamentares começaram a alegar que precisavam das informações para elaborar o orçamento do ano seguinte uma de suas atribuições Um diplomata austríaco interpretou da seguinte maneira o comportamento do imperador Apesar de suas declarações e suas ideias democráticas pesalhe esta forma de governo parlamentar sente todos os inconvenientes que ela encerra e dos quais bem queria se libertar Seu fito pareceme ser deixar que as Câmaras se debatam sem atingirem resultados positivos até que o povo cansado de uma representação que custa muito caro o suplique para pôla de lado1 Por inconveniência ou propósito o fato é que essa queda de braço consumiu os quatro meses da primeira sessão parlamentar sem que nenhuma decisão fosse tomada Mas o Parlamento sobreviveu e em vez do cansaço da população os representantes foram encontrando aliados no propósito de dobrar a resistência do imperador A existência do Parlamento despertou a atenção de pessoas que antes tinham seus interesses ignorados e as levou a participar da discussão política Com isso surgiu o correlato interesse por informações sobre política e firmou se o negócio de divulgar essas informações com o surgimento dos jornais que eram vendidos aos interessados nos debates Os interesses da maior parte dos jornais eram os mesmos dos parlamentares ecoar o sentimento dos leitores e não reproduzir os argumentos do monarca como fazia a gazeta oficial Assim no intervalo entre uma e outra sessão legislativa os jornais substituíram os deputados na argumentação e foram atrás de informações Acabaram se fixando num tema que permitia criticar fortemente a política de governo sem criticar a pessoa sagrada do imperador pois assim estariam violando explicitamente a Constituição O Banco do Brasil se tornara a peça central para manter um governo que gastava muito e arrecadava pouco empregando um método ainda desconhecido na economia local O governo emitia títulos de dívida e estes eram adquiridos pelo banco com o dinheiro que os depositantes deixavam em seu caixa A posse do título conferia ao banco o poder de emitir notas de papel que tinham circulação oficial como dinheiro Na hora de fazer o balanço o banco contabilizava os títulos como ativos e os juros que eles pagavam como lucro O esquema criava dois fluxos de dinheiro Um carreava os recursos dos depositantes para os cofres do governo outro ia do banco para os seus acionistas Como o governo pagava apenas os juros o banco emitia sempre mais algo que interessava aos acionistas Para todos os demais brasileiros sobrava dinheiro de papel que cumpria a mesma função da moeda falsificada Uma edição de 1827 do jornal Astréa resumiu as relações políticas decorrentes da ligação entre um governo que emitia títulos de dívida um banco que os aceitava e emitia notas de papel que funcionavam como moeda e muita gente que pagava a conta de tudo isso A Nação é devedora ao banco de uma quantia pela qual paga juros de 6 e o banco continua a suprir o Tesouro com notas sem que isso lhe custe um só vintém em dinheiro Isto vem a ser que as notas do banco não representam valor em caixa mas apenas uma dívida do Tesouro para com os particulares que as recebem do banco Mas só os acionistas é que lucram porque só entre eles se divide o juro que a Nação paga sem que o verdadeiro credor do Tesouro isto é o portador da nota receba coisa alguma2 Entre os acionistas do banco estavam em sua parte mais significativa os grandes comerciantesfidalgostraficantes que desde o século XVIII eram os únicos moradores locais com interesses ligados à Coroa Mas exatamente por serem sócios sem poderes constitucionais podiam ser alvos de ataque da imprensa e dos parlamentares Na metade da sessão de 1827 um relatório da Câmara dos Deputados transformou o argumento do jornal em discurso político A administração do banco percebendo nos abusos do governo um escudo para seus próprios abusos e um fundo inesgotável de lucros com que adormecia a vigilância dos interessados marchou ombro a ombro com o governo que apelidava a este ilícito consenso com o nome de patriotismo Desta aberração da honra e da moral provieram os espantosos lucros obtidos à custa da substância nacional3 A campanha contra o banco no Parlamento logo faria deste a voz da substância nacional contra os abusos do governo expressos na administração do banco Em vez de ajudar a pagar a conta o Legislativo tornouse o organizador de uma torrente oposicionista Muita gente começou a ver no Parlamento um instrumento de defesa e na Coroa um poder que custava muito caro e só produzia infelicidades A guerra com a Argentina terminou em 1828 sem vencedores nenhum dos contendores dominou o Uruguai que se tornou independente com ajuda da Inglaterra O exército montado para o conflito com muitos mercenários estrangeiros voltou para o Rio de Janeiro e ali ficou estacionado como apêndice de força do imperador Ainda assim os parlamentares continuaram avançando Em 1829 aprovaram um projeto que fechava o banco A lei prejudicou depositantes e buscadores de crédito privado e não impediu a continuidade da derrama pois o próprio governo passaria a emitir notas Mas cortou a mesada dos acionistas que se beneficiavam do esquema e eram os grandes aliados políticos do imperador Nessa altura ficou claro que dois projetos haviam fracassado Os reacionários que esperavam um futuro brilhante da produção escravista sob as ordens de um monarca fiel aos princípios do Antigo Regime perderam o último fio de esperança de que aumentariam a própria riqueza Os iluministas que escaparam do exílio ou da cadeia também sabiam da conta que vinha pela frente O imperador cada vez se importava mais com o Portugal onde gastava dinheiro do que com o Brasil de onde não havia como arrancar mais recursos Mesmo com todas as limitações constitucionais o Parlamento consolidouse como um poder político relevante para equacionar a crise E o imperador não conseguiu encontrar meios para contraatacar Continuou mantendo um tom sobranceiro no tratamento dos representantes insistindo na fórmula de que o Poder Executivo era apenas uma extensão do Poder Moderador e nomeando ministros com o critério da fidelidade pessoal Assim foram se fechando os caminhos que um dia o ligaram aos brasileiros comuns fossem ricos ou índios Toda a impopularidade gerada pela situação econômica acabou por se concentrar em sua pessoa Nem mesmo os traficantes o apoiaram depois do fechamento do banco pois lembravam que o tratado com os ingleses continha uma cláusula que tornava ilegal o tráfico de escravos a partir do final de 1831 Os últimos aliados que sobravam gente da Corte foram realistas propuseram ao imperador que nomeasse parlamentares para o ministério Assim eles seriam ao mesmo tempo representantes da população e responsáveis pelo pagamento das contas e pelo respeito ao governo Contra o conselho pesava a curta tentativa de 1828 quando um ministério com parlamentares fora despachado após poucos dias no poder Em fevereiro de 1831 quando eclodiram sublevações populares em várias cidades o imperador tentou repetir o procedimento de nove anos antes viajou para Minas buscando o apoio direto da população Dessa vez foi recebido com frieza Na volta para o Rio o sentimento já era de hostilidade Orgulhoso o detentor da chave do sistema político o governante irresponsável o chefe do Poder Executivo o nomeador de juízes não encontrava apoio para governar Uma última tentativa de associar a soberania popular e a cabeça mística foi feita em abril e respondida com a nomeação do chamado ministério dos marqueses todo formado por cortesãos A resposta dessa vez veio das ruas uma multidão reunida na praça aprovou uma proclamação pedindo a nomeação de novo ministério De uma coisa o imperador não cogitava governar segundo a vontade de gente das ruas Na madrugada de 7 de abril renunciou ao trono e buscou refúgio num navio inglês Deixou como herdeiro o filho de 5 anos Sabia que haveria a nomeação de uma regência e que os regentes não poderiam exercer o Poder Moderador pessoal e privativo de um monarca com plenos poderes Tinha noção exata de que apenas o jovem Parlamento concentraria todos os poderes no governo central Numa carta escrita a bordo e destinada ao menino que ficava em terra deixou bem claro o que pensava Espero que a Regência tenha força moral para lhe entregar o cetro e a coroa tão inteiros como estavam no dia que abdiquei Mas onde está o prestígio da Regência Onde está a opinião pública interessada em manter o governo Eu não os vejo4 Os moradores locais a parte cujos interesses eram invisíveis para o alto a parte que ficava fora da carapaça do caranguejo a gente que o centro pensava como incapaz de governar enfim seria todo o poder CAPÍTULO 28 Regências e lideranças ENQUANTO D PEDRO I REDIGIA O BILHETE DE DESPEDIDA OS PARLAMENTARES QUE estavam no Rio de Janeiro para a sessão que começaria em maio faziam uma reunião Até a véspera representavam uma instituição que cinco anos antes fora incrustada na estrutura de governo central arbitrário que se constitucionalizou sob a forma do Poder Moderador Mas no dia seguinte conversavam já como comandantes da nação pela primeira vez os representantes eleitos pelo povo chefiariam o governo e o grupo decidia coletivamente e por consenso o que era comum nas câmaras mas inusitado em instâncias mais altas de governo A própria ideia de uma reunião de iguais como método para assumir a direção do governo era algo inconcebível para quem considerava sagrado e necessário o poder arbitrário de um rei Enquanto corria a reunião uma chusma de nobres e criados do Paço rondava o cais os mais insistentes subiam a bordo da fragata inglesa oferecendose para prestar serviços ou expondo desconsolos ao soberano renunciante partilhando com ele o sentimento de que a terra se perderia sem um rei que a governasse Na cidade a reunião resultou em típica decisão parlamentar Para dar sentido nacional ao governo escolheuse o formato de um triunvirato que abarcasse as várias opiniões O senador Francisco de Lima e Silva era militar conhecido ressaltando o interesse na manutenção da ordem O marquês de Caravelas também senador era um conservador e defensor do imperador renunciante Já o terceiro senador escolhido Nicolau de Campos Vergueiro era conhecido por suas posições liberais O desafio dessa Regência Trina era exercer efetivamente a sua autoridade o que na situação equivalia a reorganizar totalmente o governo nacional em outras bases E nesse esforço numa realidade econômica desesperadora foi se consolidando na prática a estrutura de soberania dúplice sugerida por José Bonifácio mesmo a preço alto a monarquia tinha valor A primeira decisão dos regentes foi promover um ato político simbólico empregando exatamente a espécie de linguagem que a Coroa permitia um desfile pela cidade de uma carruagem levando o menino de 5 anos que herdava o trono para que fosse aclamado pela população como imperador Com essa maneira econômica de tomar para si o prestígio secular da Coroa enquanto os órfãos do imperador estavam ainda desarticulados os regentes apareceram efetivamente como governo Tal ganho simbólico era fundamental pois o grande problema da autoridade assim obtida estava nas parcelas de governo que desapareceram com a partida da fragata o Poder Moderador com toda sua concentração deixava de vigorar enquanto o herdeiro do trono fosse menor de idade Completouse assim a inversão de papéis Os parlamentares assumiram o comando do Executivo até então exclusivo do Poder Moderador Aqueles que viviam basicamente do direito adquirido que recebiam o seu por decisão do imperador entrincheiraramse na Corte embora suspenso o Poder Moderador a Corte continuava a existir bem como toda a estrutura que lhe dava substância Os regentes souberam como exercer o comando do Executivo colocando em prática uma forma de aplicar os recursos que era comum nas câmaras municipais mas inédita no governo central por meio de uma lei do Orçamento que regulamentava os gastos públicos O resultado foi a delimitação de uma zona de conflito entre as duas lógicas que marcavam as soberanias reconhecidas na Constituição Para aqueles que pensavam e agiam segundo a lógica do Antigo Regime o governo arrecadava um máximo de todos e distribuía esse dinheiro fazendo justiça para quem tinha direitos adquiridos Já os novos dirigentes pensavam e agiam segundo a lógica iluminista de que a soberania popular restringia o governo de modo que este arrecadava de todos e distribuía para todos apenas o arrecadado e seguindo uma lei votada pelos representantes eleitos essa era a função do Orçamento Com o controle do Executivo os parlamentares agora tinham poderes para fazer cumprir o determinado na lei de gastos e antes mesmo da aprovação de um orçamento o ministério indicado pelos regentes passou a cortar gastos a fim de equilibrar as finanças Esses cortes atingiram sobretudo os beneficiários de dinheiro público ligados ao imperador A reação dos prejudicados à dura mudança de posição foi proporcional ao prestígio que imaginavam ter A mais aguda veio diretamente das forças armadas O imperador contratara mercenários para montar uma marinha e um exército primeiro para se contrapor às tropas portuguesas depois para lutar na Argentina Com o dinheiro que pelo tratado reservara para si mesmo ainda organizou um exército na Europa A luta com Portugal havia terminado assim como o conflito com a Argentina mas os contratos dos mercenários continuavam vigentes Quando vieram as notícias dos cortes nas tropas eclodiram os motins no Rio de Janeiro A reação do Parlamento não se fez esperar Assim que começaram as sessões regulares a Regência provisória foi transformada em permanente com um triunvirato formado pelo paulista José da Costa Carvalho o maranhense João Bráulio Moniz e o general Francisco de Lima e Silva Em seu primeiro ato o trio de regentes instalou um ministério no qual a pasta da Justiça encarregada de manter a ordem interna foi entregue a um homem que jamais poderia ser suspeito de amor pelos ideais de nobreza Diogo Antônio Feijó ganhou uma marca indelével já em seus primeiros dias de vida foi deixado na Roda dos Expostos traquitana instalada no muro da Santa Casa de São Paulo na qual mães abandonavam filhos ilegítimos Numa sociedade que valorizava sobretudo a condição de nascimento isso equivalia a relegar o bebê ao ponto mais baixo da escala social Feijó cresceu nessa condição ora recolhido por uma alma caridosa ora acompanhando alguém que não se importava com sua presença Acabou seguindo um padre que cuidava do aldeamento indígena de Queluz com quem aprendeu a ler e escrever além dos rudimentos do ofício sacerdotal Tornouse padre secular Fez as provas em 1798 foi aprovado mas não tinha a idade mínima requerida Mudou então para a recémfundada cidade de Campinas onde aparece nos registros como pessoa que vive de esmolas além de ter ganhos irregulares como professor1 A situação perdurou até 1805 Para ser afinal nomeado padre teve de jurar por escrito que não era nem haveria de ser imitador da incontinência de meus pais A boa situação não durou muito uma acusação falsa de incentivo ao adultério no confessionário abalou sua carreira Embora inocentado ficou com o nome maculado Enquanto se aperfeiçoava nos estudos sacros começou a se interessar também pelas ideias revolucionárias dos liberais Em 1821 a vida de Feijó sofreu uma mudança radical Sem jamais ter participação administrativa a condição de abandonado lhe vedava o acesso a cargos de governo mais importantes reservados a fidalgos àqueles que podiam comprovar bom nascimento nem contar com fortuna acabou escolhido como um dos seis deputados enviados por São Paulo às Cortes de Lisboa Ao desembarcar em Portugal em fevereiro de 1822 a Constituição estava pronta e sendo votada Estreou como orador parlamentar fazendo um duro ataque a seu conteúdo A reação foi tão violenta que precisou fugir pra a Inglaterra Voltou à cena política em 1826 dessa vez como deputado no recém inaugurado Parlamento brasileiro Seu primeiro projeto foi polêmico propôs o fim do celibato dos padres com o argumento de que era assunto administrativo e portanto da esfera de competência do regalismo e não um assunto de fé pertinente à esfera de decisão de Roma Teve apoio de deputados como o padre José de Alencar pai de oito filhos entre eles o futuro escritor José de Alencar e Antônio Pereira Rebouças o primeiro negro eleito para o Parlamento meio século antes de fenômeno semelhante acontecer nos Estados Unidos Com tal currículo não é de se estranhar que Feijó fosse identificado com o modo iluminista de conceber o governo e pouco propenso a valorizar tradições ou direitos adquiridos Feijó tomou posse e reagiu aos motins Confirmou que não gastaria um centavo além do que havia sido autorizado pelo Parlamento e a essa altura os parlamentares aprovavam o primeiro Orçamento brasileiro Antes esparsos os motins se transformaram em revoltas permanentes Feijó enfrentou uma revolta atrás da outra sempre com destemor De um lado demitiu incontáveis militares profissionais De outro nacionalizou as forças de segurança nas vilas criando a Guarda Nacional sob comando de cidadãos Em meio a uma série de combates o major do Exército Luís Alves de Lima e Silva filho do marechal regente destacouse como um comandante mais competente que os da hierarquia militar alcançando vitória atrás de vitória para o governo Foram meses duros No pior momento o Parlamento viuse cercado durante seis dias pelos amotinados que exigiam a continuidade de privilégios Em sessão permanente os deputados resistiram negociando ganhando tempo dissolvendo posições irredutíveis buscando apoio armado convencendo a população Juntando forças venceram os amotinados Assim o Parlamento conseguiu manter o poder da Regência e do ministério Até o final de 1832 a nova ordem se impôs Foram dispensados 30 mil soldados e com isso os gastos do governo tiveram uma redução monumental de 36 em relação a 1830 caindo de 198 mil contos para 128 mil contos de réis A amplitude do corte fez mais que resolver o problema da autoridade Ainda restava parte da herança econômica deixada por D Pedro I o tratado que este assinara em segredo e restringia as possibilidades de atuação governamental no campo da economia como um todo O acordo impôs duas condicionantes De um lado a previsão do fim do tráfico legal de escravos implicava perda de receitas os impostos cobrados dos traficantes formavam parte significativa da receita do governo A partir do final de 1831 essa fonte deixou de existir agravando o problema do equilíbrio orçamentário Pior ainda funcionou como incentivo para o tráfico ilegal na medida em que tornava este mais lucrativo pois não pagava impostos De outro lado os favores concedidos à Inglaterra tinham a forma de uma taxa baixa e fixa para as importações vindas desse país Numa época em que a taxação sobre o comércio exterior era a principal fonte de renda de todas as nações o favorecimento a uma delas significava também restringir o crescimento de receitas do governo A única medida compensatória seria aumentar os impostos sobre importações de outros países o que apenas tornaria mais competitivas as mercadorias inglesas A opção foi manter tarifas baixas para todos Com isso as receitas alfandegárias caíram 25 entre 1830 e 1832 Nesse cenário o violento corte de despesas acabou sendo a fórmula para equilibrar a situação do governo central como um todo Graças a ele as emissões que financiavam o déficit foram praticamente eliminadas caindo nada menos de 85 no período A conta recaiu quase toda sobre os antigos beneficiários do imperador E prosseguiu o avanço dos parlamentares para ampliar o espaço das instituições iluministas Uma lei obrigou a que todos os tratados nacionais fossem ratificados pelo Parlamento impedindo surpresas como a de tratados secretos Foi criado um mecanismo pelo qual o Executivo passou a prestar contas ao Parlamento com os ministros sendo convocados a comparecer perante os deputados A execução rigorosa do Orçamento reforçou a disciplina financeira e permitiu o início do recolhimento das moedas de cobre com alta taxa de senhoriagem um primeiro passo na direção do controle financeiro do governo central Os derrotados concentrados ao redor da Corte a parte do Poder Moderador que se mostrou imune ao Parlamento pois nela a maioria dos cargos dependia de nomeação por parte do imperador reagiram como puderam concentrando o ódio em Feijó Tinham prestígio e dinheiro para financiar jornais nos quais o ministro era tratado como alcoviteiro sedutor de donzelas ou homem que veio ao mundo num chiqueiro de porcos A campanha de desmoralização marcou o início de um movimento Ao recorrer à imprensa e buscar resultados no Parlamento os privilegiados de antes reconheciam que o Legislativo agora estava no centro de todas as decisões E foram bemsucedidos na campanha Recuperada a ordem pública e controladas as contas formouse uma maioria parlamentar contrária ao ministro da Justiça que se viu forçado a deixar o cargo De volta ao Parlamento Feijó assumiu a liderança de um grupo de congressistas que pregavam reformas na Constituição de 1824 A mudança da configuração de forças no Parlamento acabou se refletindo no Ato Adicional aprovado em 1834 Por ele as províncias ganhavam o direito de eleger uma assembleia de representantes criando na esfera intermediária de governo uma representação da população No mesmo sentido transferiramse às províncias uma série de poderes antes reservados pela Constituição ao centro como a indicação de juízes locais ou a entrega do poder de polícia a magistrados eleitos A defesa dos antigos privilégios concentrouse então na pressão sobre o Senado vitalício quase todos indicados pelo imperador renunciante e conseguiu impedir algumas mudanças Assim se criou um novo jogo político no qual o Parlamento foi ganhando substância como centro coletivo de representação de posições diversas centro de decisões criador de soluções viáveis respeitador do interesse nacional Se a letra da Constituição continha uma regra de organização que favorecia o poder arbitrário o Poder Moderador em detrimento do Parlamento com a Regência o país contava com um governo fundado na soberania popular configurada nesse poder Legislativo agora prestigioso Já os brasileiros comuns sabiam muito bem como funcionavam os governos representativos e apoiavam a ampliação do espaço da soberania popular A Regência mostrou que controlando o Executivo era possível avançar na direção de um governo voltado para o atendimento de interesses gerais O Legislativo encontrou o caminho das reformas constitucionais que ao menos aparavam os piores excessos da lei maior A luta dos que defendiam o arbítrio era bem mais fácil tentar impedir as mudanças alongar os prazos de sua implementação tergiversar Além disso a certeza de que mais adiante haveria um imperador capaz de empregar o Poder Moderador para limitar o espaço iluminista ajudava a embalar suas expectativas O resultado dos confrontos ia delineando as fronteiras entre as soberanias opostas Em vez de um sistema substituir o seu oposto havia acomodações sucessivas de espaços controlados por um ou por outro Como a iniciativa agora estava com o Parlamento outro passo foi dado Entre os vários dispositivos modificados um previa uma eleição nacional para a escolha de um regente Pela primeira vez na história do Brasil o comando do Executivo ficaria a cargo de uma pessoa escolhida pelos cidadãos E a eleição ocorreu em 1835 Não havia campanha organizada tampouco um homem entretinha dúvidas quanto à conveniência de ser eleito Pouco antes da eleição Diogo Antônio Feijó lançou um jornal O Justiceiro cujo primeiro editorial de 7 de novembro de 1834 fazia uma avaliação do passado Até maio de 1826 o Brasil foi governado por capitãesgenerais nas províncias e pelos capitãesmores nas vilas e seus termos Por abusos há séculos tolerados prendiam arbitrariamente a quem queriam e chamavam a isso prender de potência Muitas vezes deportavam para fora das províncias Se tais arbitrariedades e despotismos fossem praticadas contra as classes pobres nenhum outro recurso restava que o sofrimento2 As mudanças trazidas com a Regência eram assim avaliadas Não sofremos mais as injustiças e violações do despotismo Respiramos desafogados depois da abdicação Porém temos uma legislação má incompleta ineficaz insuficiente o governo fraco sem atribuições sem meios para fazer efetivas aquelas que têm autoridades de eleição popular quase sem ingerência no governo todas destacadas sem centro nem unidade os cidadãos sem estímulo para interessaremse no serviço da pátria o povo sem educação a magistratura como apostada a fazer ainda piores as leis que lhe dão3 Feijó tinha clareza o Parlamento conseguira se firmar no poder conseguira controlar o Executivo e mudar a Constituição Mas quase toda a legislação vigente no país ainda estava baseada nas Ordenações do Reino compiladas para regular as relações entre os súditos e um governante arbitrário E tais relações norteavam as sentenças num Poder Judiciário que além de organizado nos moldes do Antigo Regime era subordinado ao Poder Moderador Feijó tinha um alvo de mudanças As pretensões do Poder Judiciário por independência são traduzidas por eles os juízes dos tribunais superiores em absolutismo e irresponsabilidade Enquanto este poder não se tornar constitucional isto é independente nos seus atos mas responsável juridicamente por eles o arbítrio e o despotismo que pesam sobre os brasileiros devese ao poder judicial4 A ideia de mudar o Judiciário visando a sua integração à esfera do poder responsável aquele que vinha basicamente do eleitor e assim fazêlo agir como um poder que deveria respeitar essa condição era parte de uma definição maior enunciada por ele na sessão de 16 de julho de 1829 A Constituição sem responsabilidade é uma quimera porque o governo faz o que quer à sombra dela enquanto os governados se iludem com belas palavras e promessas5 No dia 7 de abril de 1835 os brasileiros escolheram como governante um padre que defendia abertamente o fim do celibato um bebê abandonado no nascimento um homem que não queria privilégios nem foros especiais de fidalguia um político que pretendia estender a esfera da responsabilidade para exercer as funções de comandante do Executivo como substituto do rei Um novo patamar de acomodação entre soberanias opostas seria tentado CAPÍTULO 29 Executivo eleito A INDICAÇÃO DE UM CHEFE DO EXECUTIVO A PARTIR DA SOBERANIA POPULAR ERA uma aposta promissora haveria até uma década para o eleito mostrar a que viera enquanto o imperador não chegava à maioridade Tempo suficiente tanto para a implantação de novas ideias como para a avaliação de um método de escolha que não constava da Constituição Diogo Antônio Feijó tinha consciência disso Mas também sabia que o escalão de governo sob o seu comando tinha como única proposta econômica aos brasileiros a continuidade da dura digestão do prejuízo legado por D Pedro I O esforço de Feijó no Ministério da Justiça havia evitado a derrocada mas a estabilidade adquirida não configurava de nenhuma perspectiva uma situação favorável aos brasileiros Apenas o pagamento de juros da dívida contraída no tratado de reconhecimento da Independência consumia 300 mil libras anuais 7 das exportações ou por volta de 1 do PIB estimado no período O pagamento dessa conta exigia arrecadação de dinheiro pelo governo e transferência de divisas aos credores E essas divisas não vinham de resultados econômicos da aplicação dos recursos externos na economia interna mas tinha de ser arrancada do suor da produção de cada ano Todos perdiam para compensar o que o imperador renunciante ganhara para si mesmo E perdiam numa situação desfavorável A crise provocada pelos gastos excessivos nos últimos anos do reinado de D Pedro I devastara as ralas poupanças locais consumira as reservas internacionais e a moeda metálica transformara o dinheiro de papel no único meio de circulação existente o que era uma raridade na economia mundial Em meio a tudo isso o governo cobrava impostos saldava as dívidas e em consequência gastava com a população menos do que arrecadava A população até que compreendia o esforço Todos viviam apertados pois os mercados caíam Mas a paciência tinha limites O empobrecimento também reforçava a antiga percepção geral que vinha desde os tempos coloniais a de um governo central que arrecadava muito e quase nada proporcionava de volta em serviços Não era o que se esperava do governo eleito pela nação E aos poucos disseminavase a impressão de que não mais se tratava da metrópole a dissipar e sim da Corte no Rio de Janeiro que agora viveria na fartura à custa da miséria das províncias Tal interpretação pesou muito na argumentação que levou à eclosão de revoltas armadas nas províncias logo em seguida à estabilidade da vida no Rio de Janeiro Em todas ergueuse a bandeira da maior autonomia local marcando a divisão entre os defensores do poder central e os do poder provincial Porém basta o exame dos resultados dos movimentos de maior amplitude para que se note um problema maior A Cabanagem do Pará começou em janeiro de 1835 pouco antes da posse de Feijó como regente único Eclodiu numa província afligida por problemas próprios decorrentes da Independência Ao contrário do restante do país em formação o tráfico e o cativeiro dos africanos eram pouco relevantes na economia paraense por isso nem sempre os potentados locais eram aqueles comerciantes que vendiam escravos e compravam a produção local No Pará quase tudo era produzido por índios Em segundo lugar a produção mais importante antes da Independência era enviada diretamente a Lisboa e vendida no mercado europeu e isso não só por causa das facilidades de comércio Além dos econômicos havia vínculos políticos peculiares a região estava ligada administrativamente a Lisboa e não ao Rio de Janeiro o que se devia em grande medida ao regime de ventos no Atlântico pelo qual a navegação a vela durava 20 dias até a metrópole e 90 dias até o Rio de Janeiro Antes da Independência portanto os governos da província eram dominados por comerciantes ligados à metrópole Embora cara era sustentável tal vinculação da economia local à economia europeia por intermédio do governo e do comércio metropolitanos Com a Independência desapareceram tanto os governadores enviados por Lisboa como os navios que escoavam a produção local e traziam de Lisboa os produtos europeus Essa perda de conexão com o comércio internacional não foi compensada por outras formas de negócios propiciadas pelo governo nacional Os representantes políticos do Rio de Janeiro limitavamse a cumprir as funções de arrecadar impostos e manter a ordem tal como os piores governantes coloniais sem nada fazer em prol da economia local Nessas circunstâncias começou a decadência econômica e eclodiram violentas disputas pelo poder político nas quais sobressaiu o maior líder cabano Eduardo Nogueira Nascido no Ceará em 1814 desde jovem ele mostrou talento para os negócios Tornouse comerciante a profissão dos ricos mas logo desistiu para cultivar roças em terras arrendadas bem na época em que a Independência inviabilizara o comércio com Lisboa Sem comerciantes que pudessem adquirir a produção e colocála no mercado as dissensões descambaram em conflitos abertos entre os defensores do governo central e aqueles de um federalismo maior Em meio à luta Eduardo Nogueira conhecido como Angelim devido às qualidades de dureza e resistência dessa madeira deixa a condição de lavrador e assume a liderança de uma revolta popular À frente de uma tropa de caboclos e índios toma a cidade de Belém em agosto de 1835 Tem apenas 21 anos ao se tornar o chefe de uma revolução que vai se estender a toda a Amazônia Quando tropas e emissários do governo central retomam Belém em abril de 1836 Angelim continua a lutar no interior Preso em outubro e enviado ao Rio de Janeiro ele acaba exilado em Fernando de Noronha enquanto a luta continua por outros cinco anos Ao final dos combates cerca de 30 mil cabanos numa população total de 150 mil pessoas na província haviam sido massacrados A economia foi tão devastada quanto a população mas os impostos para o governo central passam a ser arrecadados com regularidade sobre uma produção local agora reduzida a quase nada Tais eram os azares da era mercantilista do capitalismo comercial que ainda não desaparecera em muitos pontos da América a acumulação de capital dependia mais do capital comercial que organizava trocas do que do capital obtido com a produção a partir do trabalho assalariado a produção capitalista A retirada do primeiro não significava obrigatoriamente o domínio do segundo e o fantasma do Haiti com liberdade mas também com miséria econômica era o símbolo continental do que ocorreu na Amazônia Neste caso a economia andou para trás num momento em que fora do Brasil o capitalismo impunha um novo ritmo de crescimento à economia mundial Em abril de 1835 mal Feijó acabara de ser eleito a mesma pressão do governo central por mais impostos acirrava no Rio Grande do Sul o dilema entre manter ou não os vínculos com o Rio de Janeiro Mas ali as condições de produção eram muito diferentes das do Pará A Independência em nada afetara o funcionamento dos mercados a província continuava a vender sobretudo o charque processado por escravos sendo portanto uma economia dependente da mão de obra cativa e dos traficantes que a forneciam Os maiores consumidores da produção gaúcha estavam na Bahia Pernambuco e Rio de Janeiro ou seja faziam parte do mercado interno Ainda assim os custos da Independência apareceram de maneira inusitada A ínfima margem de manobra permitida pelo tratado de 1825 obrigou o governo brasileiro a reduzir as tarifas alfandegárias a ponto de tornar competitiva a importação de charque do Uruguai e da Argentina Essa concorrência externa restringiu muito os ganhos dos produtores gaúchos além de refrear a disposição deles para pagar impostos nacionais Os dez anos de duração da Revolução Farroupilha proporcionaram o melhor dos mundos aos participantes do conflito os produtores de charque deixaram de pagar impostos para o Rio de Janeiro os vendedores de escravos forneceram africanos traficados ilegalmente ou seja sem pagar impostos e transportaram o charque adquirido também ilegalmente sem pagar impostos Com isso a revolta sequer arranhou as profundas ligações escravistas e mercantis que sustentavam a acumulação de capital tanto no Rio Grande do Sul como no Rio de Janeiro Na maior parte do período os gaúchos foram capazes de organizar e financiar um governo independente proclamar uma república e manter uma autoridade que não mais respondia ao Rio de Janeiro E os números da produção foram positivos apesar de pequenas oscilações iniciais Já a partir de 1839 as vendas de charque atingiram o patamar de 6 mil toneladas em 1843 em pleno litígio alcançaram 163 mil toneladas resultado que com uma única exceção seria repetido apenas na década de 1850 Apesar das diferenças as grandezas e os contratempos da luta revolucionária não propiciaram aos governos locais das províncias oportunidades econômicas de um avanço capitalista como se dava no resto do mundo Enquanto os paraenses viram cair a produção e crescer a tributação os farroupilhas conseguiram produzir mais e pagar menos nem conservadores paraenses nem cabanos puderam aproveitar o poder para articular outro sistema produtivo ao passo que os farroupilhas nunca se propuseram alterar a estrutura produtiva escravista em seus anos de domínio Em seguida revoltas similares eclodiram em outras províncias opondo os que queriam melhores condições locais aos defensores da subordinação ao centro Todos esses conflitos resultaram em fracasso econômico pois cada caso refletia a parcela de perda local do grande desastre nacional E para o governo central cada novo movimento piorava a situação agravando as despesas nacionais com tropas e diminuindo as receitas Houve uma exceção com o fluxo dos tributos desempenhando um papel inverso o Rio de Janeiro Ali o fluxo monetário gerado pelos impostos era positivo com os gastos locais superando as receitas tributárias pois na capital se concentravam as forças armadas e os funcionários nacionais Com isso a região acabou sofrendo menos que o restante do país Melhor ainda esse fluxo de dinheiro se associava a outro Desde os tempos de D João VI os grandes traficantes aplicavam parte de seus lucros em fazendas de café Era um investimento de longo prazo anos derrubando a mata para abrir áreas de plantio outros tantos para as plantas crescerem além da instalação da estrutura de processamento Todo esse investimento começou a retornar com o crescimento das vendas no exterior a preços compensadores o que colocou o café fluminense no topo da pauta de exportações do país substituindo o açúcar cuja proeminência vinha desde o século XVI Diogo Antônio Feijó era federalista defensor intransigente da descentralização de poder da transferência de franquias para as províncias as vilas e a sociedade Tomou ele mesmo várias medidas nessa direção como a transferência das responsabilidades de segurança interna para a população com a criação da Guarda Nacional realizada mais por necessidade do que propriamente como resultado de um plano Mesmo assim sua ação como regente eleito resultou no oposto do que de fato queria pois a centralização revelouse o único modo de fazer avançar o país em condições que tolhiam quase todo o dinamismo da vida local Por outro lado as perdas decorrentes da gestão predadora do primeiro imperador iam relegando a uma posição secundária os planos dos traficantes de escravos no sentido de se manterem no centro da vida nacional A reorganização do projeto ganhou expressão política com a formação de um agrupamento formado por ocasião da posse de Feijó o autointitulado Regresso Seus líderes eram parlamentares que haviam se oposto ao arbítrio do primeiro imperador apoiado a Regência mas continuavam convencidos de que a escravidão era uma instituição capaz de trazer o progresso e construir um futuro Elemento essencial dessa organização era um novo modo de conceber a questão do tráfico durante quase toda a Regência a combinação de ilegalidade e falta de demanda fez com que as compras na África e as vendas no Brasil se reduzissem a cerca de 5 mil cativos anuais Com isso muitos traficantes tradicionais deixaram o mercado alguns deles voltando a Portugal Alguns negociantes fluminenses viram que as oportunidades de compra na África portuguesa ainda existiam assim como compradores interessados Também notaram que a lucratividade seria muito mais alta no esquema de contrabando no qual não havia mais o imposto antes cobrado pelo governo Em vez de fazerem os desembarques de escravos no porto do Rio de Janeiro passaram a descarregálos em pontos pouco acessíveis no litoral fluminense de onde seguiam diretamente para as fazendas de café no vale do Paraíba Além disso esses negociantes entraram na política elegendose nesses locais a fim de defender os seus interesses A continuidade do tráfico de escravos era o mote às vezes explícito do movimento e seria apresentada com orgulho como a solda econômica da nação Não se tratava apenas de propaganda Por esse novo esquema já em 1837 foram trazidos da África 35 mil escravos sete vezes mais do que dois anos antes A tradução política desse crescimento do negócio foi um programa de defesa ostensiva da centralização do governo e do fluxo de recursos que vinculava os privilegiados do comércio de cada província ao centro fiscal da Corte e centro comercial do tráfico Também recobraram força as estruturas de fiado entre os comerciantes de todo o país sustentados pelo fornecimento de escravos Como a proliferação de negócios reforçou o apoio à ideia poucos meses de atuação bastaram para que os regressistas conquistassem a maioria no Parlamento e inviabilizassem as possibilidades de Feijó Sendo além de federalista homem do Parlamento e da busca de maiorias este viuse obrigado a renunciar em 1837 ao constatar que não tinha perspectivas de retomar a maioria Mas deixou herança Sob pressão do regente o Parlamento aprovara duas leis que substituíam partes das Ordenações do Reino o Código Criminal e o Código de Processo ampliavam os poderes dos juízes locais eleitos criavam o tribunal do júri instituíam o instituto do habeas corpus e proibiram as prisões de potência que tanto horrorizavam Feijó Ambos se baseavam nos princípios jurídicos iluministas da presunção de inocência do fim das prisões arbitrárias e numa legislação que previa penas iguais para ricos e pobres além de não supor uma nobreza à parte Mesmo fora do poder Feijó logo recuperou o prestígio político No comando do governo central os regressistas não tinham muito o que oferecer aos brasileiros além de tentarem anular as poucas mudanças legais introduzidas nas Regências Uma frase atribuída ao maior de todos os regressistas o deputado mineiro Bernardo Pereira de Vasconcelos resume o espírito do grupo Fui liberal Então a liberdade era nova no país estava nas aspirações de todos mas não nas leis nas ideias práticas O poder era tudo fui liberal Hoje porém é diverso o espectro da sociedade os princípios democráticos tudo ganharam e muito comprometeram A sociedade que então corria o risco pelo poder agora corre o risco pela desorganização e pela anarquia Como então quis servir à sociedade hoje também quero Por isso sou regressista Não sou trânsfuga não abandonei a causa que defendi Deixoa no dia que é tão seguro seu triunfo que até o excesso a compromete1 A confusão declarada entre ordem poder central e governo discricionário e a confusão inversa entre desordem poder local e democracia seria a grande construção ideológica do grupo a palavra de ordem para manter como nacional a estrutura de poder central arbitrária herdada da colônia e expressa na Constituição pelas duas soberanias Assim o discurso do caranguejo seria atualizado em sua versão nacional Havia claro uma importante diferença Regressistas e federalistas encerrados os confrontos armados começaram a travar duelos de palavras em busca da maioria no Parlamento esta sim a instituição nova a representação coletiva que efetivamente passava a ter papel central na condução da nação Mas antes que assentasse tal percepção o outro lado tratou de conferir mais substância ao mecanismo da dupla soberania Vislumbrando a reconquista do poder sem passar pelas urnas os adeptos das posições descentralizadoras no Legislativo tentaram uma manobra esperta antecipar a maioridade do príncipe D Pedro Isso significava abdicar do projeto do Executivo eleito e submeterse como instrumento do Poder Moderador mas assim foi Em 1840 a coroa foi colocada na cabeça mística do detentor pessoal do Poder Moderador então com 14 anos de idade Uma nova rodada começava com a volta ao cenário do poder irresponsável CAPÍTULO 30 Imperador QUANDO D PEDRO II ASSUMIU O TRONO EM 1840 FAZIA JÁ 32 ANOS QUE A monarquia funcionava de fato no Brasil e 18 anos desde que vigorava o modelo mesclado das duas soberanias constitucionais Era também uma época na qual as tendências da economia e da política se consolidavam em ritmos bastante diversos se comparados ao padrão do resto do Ocidente No lado da economia o ponto de partida em 1808 havia sido o de um crescimento impulsionado pelo mercado interno e de tamanho comparável ao dos Estados Unidos Essa economia conhecera três mudanças relevantes No lado positivo a transferência da Corte redirecionou os gastos do governo central que aumentou de forma significativa por todo o território invertendo a secular rotina de arrecadar muito e gastar pouco na colônia A segunda mudança também começara com sentido positivo Houve maior autorização legal para a circulação de títulos de crédito também incentivada pela fundação do primeiro banco Porém ainda nos tempos de D João VI surgiram os aspectos negativos O campo econômico se convertera em um território de caça para o Erário com as seguidas emissões para financiar o déficit do governo com base na poupança da população um instrumento de coleta até então desconhecido no Brasil Efetuado pelo monarca ao voltar a Portugal em 1821 o saque dos depósitos bancários foi o primeiro sinal de que o governo não estava preocupado com os poupadores que investiam na instituição E a ampliação desmesurada do uso da poupança por meio da emissão de títulos com a finalidade de fechar o caixa de um governo deficitário aumentou muito após 1825 O tratado de reconhecimento da Independência inaugurou outra forma de o governo central arrecadar recursos gastar sem controle e deixar a conta para os brasileiros o que só foi possível graças à Constituição Um empréstimo que não traria dinheiro para o país feito a partir de um tratado secreto seria quase impossível em Portugal onde a nobreza a administração e o Judiciário serviam de contraponto ao poder efetivo do monarca Como no Brasil recémcriado não havia nenhum desses contrapesos o saque foi possível As três mudanças tiveram a mesma consequência criar a partir de formas escrituradas de circulação de moeda uma torrente de gastos por parte do governo central e a transferência direta de riqueza para Portugal no caso do caixa do banco e da indenização pela Independência e para o bolso de D Pedro I para financiar sua política europeia e os mercenários Desse modo em poucos anos o governo central esgotou a poupança nacional As formas de acumulação de riqueza antes existentes eram muito precárias tal como eram primitivos os instrumentos do governo para obter esses recursos pois restritos aos impostos sobre a riqueza já acumulada Com o banco os títulos públicos o tratado de Independência e a emissão de dinheiro de papel a colheita foi muito maior Assim o efeito maior do gasto público sob o governo de dois reis com poderes irresponsáveis foi o de destruir a poupança privada com investimentos improdutivos Diante de tal legado os representantes da soberania popular e responsável das regências aproveitaram na medida do possível o comando do Executivo para impor o Orçamento e o comando do Parlamento para aprovar leis tendentes ao equilíbrio fiscal tentaram atingir esse objetivo na prática cortando gastos e buscando receitas para equilibrar as contas Mesmo com todos esses cuidados ainda sobrou para a economia interna devastada convocada a pagar impostos para a sustentação do governo central A única boa notícia econômica era a de que graças ao constante esforço de todos os governos regenciais no final da década de 1830 alcançouse um equilíbrio nas contas do governo central Com isso tornouse possível vislumbrar uma etapa de crescimento a partir de uma base bem inferior à do início do século se comparada aos outros países do Ocidente A derrocada brasileira coincidiu com uma inversão no movimento multissecular da economia ocidental Apesar de todo o incremento trazido pelas navegações oceânicas o crescimento da renda per capita nas economias europeias mantevese sempre muito baixo entre os séculos XVI e XVIII ao contrário do que ocorria no Brasil ou nos Estados Unidos coloniais onde a população encontrou meios informais de gerar riqueza Entretanto a introdução de legislações iluministas na esfera econômica delineando um quadro legal de apoio ao setor privado ampliou tremendamente as condições institucionais para a circulação de títulos privados e instaurou as condições para a difusão do trabalho assalariado que junto com o capital que o comprava constituíam os elementos essenciais que para Marx caracterizam o capitalismo Essas transformações conferiram um impulso ao andamento da economia com o crescimento da renda per capita tornandose a regra tanto nas partes da Europa Ocidental que adotaram as legislações iluministas como nos Estados Unidos Com isso as quatro primeiras décadas do século XIX foram marcadas pelo distanciamento entre essas economias e a do Brasil Mas nesse cenário econômico que se comparado ao novo padrão o das economias capitalistas do Ocidente era de decadência ocorreram avanços na esfera da política O mais notável foi sem dúvida a consolidação do Parlamento no centro de todo o governo A instituição era alguns meses mais nova que o monarca de 14 anos Começara a funcionar como apêndice em meio a três outros poderes todos submetidos ao Poder Moderador Mas os parlamentares souberam delimitar um espaço político próprio aproveitando tanto o descontentamento com o imperador como a necessidade que este tinha de conter sua impopularidade No quinto ano de funcionamento o Parlamento tornarase a instituição central de comando de todos os poderes assumindo substantivamente o controle do Executivo e confrontandose a um Judiciário e uma Corte que atuavam em defesa do governo irresponsável De vitória em vitória na contenção de gastos à frente do Executivo e de reforma em reforma na legislação à frente do próprio Parlamento os representantes da soberania popular souberam ampliar muito a esfera da responsabilidade na vida brasileira Isso era algo inusitado no Ocidente Com exceção da Inglaterra e dos Estados Unidos países onde o Parlamento era responsável e efetivo a maior parte da Europa só conhecera até então parlamentos marcados pelo radicalismo na operação e pela instabilidade no tempo quase sempre eram efetivos apenas durante uma vaga revolucionária tendo os poderes derrogados em seguida por monarcas arbitrários No caso do Brasil não se tratava de acidente Havia uma base mais que sólida para a eleição de representantes e governantes na sociedade brasileira a tradição herdada dos governos locais Essa base explica tanto a rapidez com que os parlamentares souberam se apropriar do poder quanto a face moderna até em comparação com a Europa do sistema eleitoral Mas apesar do extraordinário avanço e do efetivo apoio do soberano popular que era o eleitor surgiu um impasse que não se devia tanto à falta de empenho dos parlamentares mas a um limite efetivo da Constituição mestiça que começou a ser testado onde passavam na prática as fronteiras criadas com uma Constituição de duas soberanias Tal questão estava sendo resolvida de maneira radical por todo o Ocidente algo previsível quando se pensa em dois modos contrários de fundamentar teoricamente o sentido da ação justa dos governos Apenas nos Estados Unidos se implantara um governo de molde iluminista com base no voto do eleitor e na norma da igualdade perante a lei Em toda a Europa a monarquia e com ela o direito divino dos reis a governar de maneira irresponsável sobrevivia entre ondas revolucionárias ou aceitando um papel muito secundário como na Inglaterra A peculiar forma brasileira da miscigenação da convivência de pessoas formadas em princípios opostos era uma possibilidade numa formação social que fundia culturas diversas A prática revelava que José Bonifácio não havia tido uma ideia utópica Ainda que com acentuados movimentos na direção do arbítrio sobretudo nos anos iniciais de D Pedro I houve também avanço na direção contrária em especial no princípio da Regência Nem um nem outro avanço foram fortes ao ponto de se impor um ao outro Tanto o imperador precisou reabrir o Parlamento como os regentes precisaram do símbolo do imperador menino e preservaram todos os instrumentos de exercício do Poder Moderador a começar da Corte Com o passar do tempo os limites entre as soberanias opostas foram deixando de se tornar uma oposição radical para se transformar em fronteiras negociadas no Parlamento e questão de opinião de expressão pessoal de cidadãos e agrupamentos políticos Assim a Constituição foi também se afastando do rigor da letra para se aproximar do costume a cada ida ou vinda das fronteiras o sistema se tornava operacional na prática O todo era aceito por todos e as disputas se concentravam nas mudanças que o Parlamento conseguia impor ao funcionamento do sistema orçamentos regulagem de tratados internacionais por exemplo e na legislação com os códigos que foram substituindo partes das Ordenações do Reino Esses avanços justificavam expectativas como a de José Bonifácio ao formular o projeto pelo qual a mistura brasileira acabaria por levar ao reconhecimento dos costumes democráticos dos brasileiros e à unidade efetiva na sociedade Já nos momentos de maior avanço dos defensores do Poder Moderador a impressão era contrária a defesa dos negócios com escravos se confundia com a defesa da escravidão como fonte moral das boas leis e da justiça a desigualdade entre os homens era acentuada o ideal da igualdade criticado até com escárnio funcionários subordinados ao poder pessoal recusavamse a obedecer a meros súditos eleitos Isso era assim porque mesmo depois de quase duas décadas de independência o governo central preservava algo da forma colonial muito controle e poucas oficinas A Constituição de 1824 ampliara o escopo de poderes do governo central Na esfera intermediária de governo os comandantes de capitanias nem sempre controláveis deram lugar a presidentes de província que eram meros delegados do Poder Moderador dotados de quase todo o poder uma vez que as assembleias provinciais eram quase um órgão de assessoramento sem poderes específicos Todas as instâncias superiores do Judiciário também eram dependentes do Poder Moderador e atuavam em contraste e confronto com os juízes das vilas os chamados juízes ordinários eleitos pelos moradores A lei manteve ainda outra herança medieval das Ordenações os chamados foros privilegiados e por isso os juízes não podiam ser processados na forma da lei que deveria valer para todos Embora o controle a partir do alto fosse total a sua efetividade nos níveis inferiores era muito pequena Presidentes de província e juízes de altos escalões dependiam em tudo da ação das autoridades municipais uma vez que não contavam com funcionários pagos pela instância intermediária nem meios próprios para agir Afora as alfândegas que recolhiam impostos quase não havia representantes próprios dos poderes do governo imperial no país As raras tropas do Exército sobretudo em zonas de fronteira eram o apoio mais eficaz da autoridade central mas apareciam quase sempre para lutar contra a população A única rede geral de oficinas do governo central eram as igrejas sob o controle direto do Poder Moderador a partir da Independência quando o monarca brasileiro herdou o comando da Ordem de Cristo no território e todos os poderes de nele organizar o catolicismo Embora relativamente uniforme geral e importante para o exercício da autoridade o clero brasileiro sobrevivia de esmolas locais era dotado de grande autonomia econômica e não à toa fornecia alguns dos membros mais radicais do Parlamento na luta por um governo responsável Assim a mescla foi se cristalizando no final da década de 1830 com um equilíbrio difícil de ser rompido não havia maioria no Parlamento para avançar nas reformas nem os defensores do arbítrio tinham meios para voltar tudo para trás embora tivessem maioria Nessa situação os reformistas resolveram testar outro demarcador de fronteiras o menino de 14 anos que vinha sendo preparado para governar Consultado D Pedro II aceitou a antecipação de sua maioridade No trono formou o ministério que agia responsavelmente em seu nome No poder o ministério fez algo que os regentes relutavam em fazer porque agora agiam como representantes do Poder Moderador trocaram os presidentes de província colocando auxiliares políticos nas vagas Esses auxiliares demitiram funcionários e colocaram aliados no lugar Os aliados organizaram as eleições pressionando adversários e ajudando aliados As eleições criaram a maioria parlamentar para o agrupamento que controlava o ministério E essa maioria votou leis reformistas No entanto antes que a vitória se consumasse um ato imperial mostrou quem efetivamente havia conquistado o controle das eleições D Pedro II demitiu o ministério podia fazer isso quando bem entendesse pois pela Constituição o ministério era apenas o agente responsável pelo exercício do Poder Moderador no Executivo e instalou outro formado por derrotados e minoritários Era a segunda eleição ganha pelos indicados do imperador e o reflexo de uma nova relação entre as duas soberanias constitucionais Aquela do povo apesar de geral e costumeira passava a ser inteiramente subordinada aos caprichos do ocupante irresponsável do trono também no que se referia aos resultados das eleições Mesmo com poucas oficinas o governo central dispunha do necessário para transformar o resultado eleitoral em variável dependente da vontade irresponsável do detentor do Poder Moderador O segundo ministério a representar essa vontade anulou as eleições anteriores antes mesmo da posse dos eleitos convocou outras que lhe deram ampla maioria a qual por sua vez promulgou uma legislação centralizadora que anulava as alterações anteriores ampliando ainda mais o escopo de ação do poder central e cancelando franquias das esferas descentralizadas de poder Os prejudicados reagiram com revoltas Entre eles estava Diogo Antônio Feijó que até os 58 anos nunca havia participado de movimentos armados contra o governo Lutou numa cadeira de rodas pois havia sofrido um derrame Sentiu na carne o peso do despotismo que odiava Senador com direito a imunidade foi preso de potência exilado sem sentença degredado sem julgamento A muito custo os senadores conseguiram que fosse instaurado um inquérito e só assim pôde se defender Jamais houve julgamento tudo o que conseguiu foi morrer em casa A rodada de revoluções de 1842 em Minas Gerais e São Paulo marcou o fim de um ciclo Com exceção da Farroupilha foram todas derrotadas pelo governo central Todas as economias acabaram subordinadas em sua pobreza ao Rio de Janeiro sede da Corte e único território onde o governo gastava mais que arrecadava Foi também o momento da organização formal de dois partidos políticos com representação no Parlamento o Conservador e o Liberal Demitindo os conservadores e trazendo os liberais de volta sem anular as mudanças do gabinete anterior o imperador deixava claro que estava no comando do governo do Brasil CAPÍTULO 31 Mauá e a reação A PERCEPÇÃO DE QUE O JOVEM IMPERADOR ESCOLHIA OS MINISTROS APENAS NO ÂMBITO do Parlamento permitiu uma rápida acomodação na disputa entre responsabilidade e irresponsabilidade D Pedro II logo se firmou como um comandante devotado à arte de fazer funcionar os gabinetes de maioria Jamais indicava ministros que não poderia demitir de modo que os amigos permaneciam fora das listas pelo que agradeciam os parlamentares rivais Exercendo uma supervisão fina do Parlamento ele controlava com precisão as trocas de guarda no gabinete Como conhecia ou se mantinha informado sobre todos os congressistas era capaz de fazer bons convites Com isso os membros do Legislativo se aquietaram E passaram a apostar mais nos rapapés ao monarca pois sabiam que dele e só dele vinham agora os convites para o Executivo Empenhados em sugerir ideias capazes de gerar uma convocação da Coroa pensavam um pouco menos nas satisfações que deviam aos eleitores E a conjuntura favoreceu o governo Em 1844 venceu o tratado comercial com a Inglaterra firmado por D Pedro I Embora os ingleses pressionassem pela continuidade dos privilégios estes eram tão escandalosos para a época que só mesmo um imperador com poderes ditatoriais poderia mantêlos Como não era o caso do novo imperador o governo brasileiro com pleno apoio do Parlamento viuse em condições para promover uma guinada a favor do país e o gabinete liderado pelo ministro liberal Alves Branco fez passar uma lei que alterava toda a pauta alfandegária No lugar das alíquotas baseadas no país de origem das mercadorias a taxação passou a incidir sobre categorias de produtos A média passou de 15 para mais de 30 com muitos itens chegando a pagar até 60 As consequências foram imediatas e variadas No caso do Rio Grande do Sul o aumento da cobrança sobre a produção platina devolveu vantagens ao charque local permitindo um acordo que pôs fim a uma década da Revolta Farroupilha Esse foi apenas um exemplo das mudanças A arrecadação de tributos pelo governo central passou de 154 mil contos em 1843 para 348 mil contos em 1845 um incremento de nada menos de 122 nesse curto período Assim desaparecia o equilíbrio precário do Executivo que impedira qualquer ação frente ao quadro econômico crítico da década anterior Embora a política de elevação de alíquotas tenha sido pensada pelo governo como forma de elevar a arrecadação os efeitos colaterais se fizeram sentir na economia como um todo Desde a Independência excetuandose a produção de café fluminense por todo o país eram raros os sinais de recuperação da atividade econômica E um dos sinais dessa decadência é a própria qualidade dos dados hoje disponíveis sobre o período Como os censos deixaram de ser realizados a partir das turbulências pósabdicação de D Pedro I nem mesmo os atuais econometristas conseguem traçar um quadro preciso da situação Ainda assim restam indícios indiretos significativos Na década de 1840 foram fundados os dois primeiros bancos privados do país um na Bahia e outro no Rio de Janeiro Era quase nada numa época em que os bancos se contavam aos milhares na Inglaterra e nos Estados Unidos mas não deixava de ser um sinal de que a elevação das tarifas deu alento aos negócios Para quem sabia fazer contas os impostos maiores sobre importações criavam uma nova moldura para os cálculos de investimento Empreendimentos que antes não tinham sentido passavam a ser viáveis Irineu Evangelista de Sousa um dos mais argutos empresários do tempo soube se antecipar vendeu seus negócios comerciais e investiu o capital na fundição e estaleiro da Ponta da Areia em Niterói A instalação dessa que foi a primeira grande indústria brasileira coincidiu com um período de grandes incertezas a maior das quais advinda da reação inglesa ao fim dos privilégios comerciais Enquanto esses privilégios duraram a reação inglesa ao tráfico feito na ilegalidade era meramente formal Os cônsules ingleses tomavam nota das movimentações de escravos que ignoravam as proibições do tratado enviando relatórios aos ministros que por sua vez os guardavam na gaveta Assim surgiu o ditado que definia a proibição do tráfico como lei para inglês ver Confiando na atitude inerte na segunda metade da década de 1840 houve até certa euforia entre os produtores escravistas que tomaram as discussões na Inglaterra sobre o fim das sanções econômicas ao açúcar produzido por escravos como sinal de que cresceria a demanda pela mercadoria que negociavam Porém bastou a subida de um gabinete conservador em Londres para tudo mudar A primeira medida do conde de Aberdeen foi passar uma lei que levou seu nome autorizando a Marinha britânica a capturar qualquer barco sobre o qual pairasse a suspeita e bastava a suspeita de estar transportando escravos No primeiro ano de vigência da lei a partir de 1847 nada menos de 27 navios mercantes brasileiros foram confiscados juntamente com sua carga e postos à disposição de ingleses Tal medida era um reflexo do quanto a escravidão já criminalizada nas legislações iluministas de muitos países ia deixando de ser também um costume imposto pela força e tolerado pelos legisladores O tráfico internacional de escravos era ilegal desde o início do século XIX tanto nos Estados Unidos único país de toda a América em que as taxas de natalidade de escravos eram positivas dispensando as importações como na Inglaterra para suas colônias Também foram sendo encontradas fórmulas para extinguir a escravidão sem acabar com a acumulação de capital nas economias que a adotavam A primeira a resolver a equação foi a própria Inglaterra em 1833 prevendo a indenização dos proprietários coloniais de modo a que financiassem a transição para o uso do trabalho assalariado Com a Lei Aberdeen a Inglaterra deu mais um passo no cerco ao escravismo criando um problema e tanto para a economia brasileira Desde o século XVII quando Salvador Correia de Sá comandou a tomada de Angola o domínio efetivo de brasileiros sobre vastas porções do espaço africano se tornara uma realidade E o negócio do tráfico africano envolvia muito mais que compras e transporte Parte da produção brasileira cachaça fumo búzios era vendida no mercado africano Os navios negreiros eram de propriedade de brasileiros e constituíam a parte mais sofisticada da marinha mercante Um sistema de seguros e crédito formava a parte financeira do negócio reservada a detentores de muito capital Uma vez desembarcados no território brasileiro os cativos africanos funcionavam como reguladores das trocas internas Normalmente vendidos a crédito obrigavam o comprador por prazos longos com o vendedor vinculando os fazendeiros ao comerciante da cidade que lhes fornecia escravos Os títulos de posse sobre um escravo eram a garantia mais aceita em empréstimos de curto prazo o que tornava o cativo importante patrimônio financeiro Essa longa cadeia fazia com que na economia brasileira os traficantes de escravos fossem de longe e desde sempre os empresários mais bemsucedidos Nos tempos coloniais e da Corte joanina quando o negócio era legal os traficantes também eram os sócios preferenciais da administração central arrecadavam impostos prestavam serviços e recebiam a sua parte do Real Erário A Regência aproveitara a ilegalidade do tráfico para fazer umas tantas mudanças na situação Para começar acabara com a concessão a particulares da cobrança de impostos que se tornou uma incumbência da própria administração Como o tráfico virou contrabando muitos dos antigos traficantesfidalgos preferiram abandonar o negócio e ser apenas cortesãos ou políticos Mas logo ficou claro que se tratava de um negócio sem futuro Em 1848 o imperador apeou os liberais que haviam aumentado as tarifas e convocou conservadores para delinear a saída definitiva do Brasil dos negócios africanos como um todo O resultado foi uma grande reorientação na posição geoestratégica da nação Advertidos os traficantes foram aos poucos liquidando os seus créditos no continente africano acumulando capital em dinheiro Ainda conseguiram desembarcar volumes significativos dos derradeiros cativos transformando os fazendeiros assustados em devedores Com o fim do tráfico havia uma abundância de capital no Rio de Janeiro e apenas um homem foi capaz de vislumbrar fórmulas para que esse dinheiro fosse empregado no sentido de encaminhar o setor privado rumo ao capitalismo Nascido no Rio Grande do Sul em 1813 órfão aos 5 anos de idade Irineu Evangelista de Sousa foi enviado com 9 anos para trabalhar no Rio de Janeiro a princípio como caixeiro tornandose depois gerente e sócio de uma empresa comercial Nesse tempo completou por conta própria uma sólida formação em economia lendo os livros emprestados por seu patrão e depois sócio escocês Consolidou a formação com uma viagem pela Inglaterra onde viu de perto não apenas as fábricas e os operários mas todas as instituições do capitalismo triunfante Ali havia rei mas não havia Poder Moderador Os tratadistas políticos e econômicos distinguiam na esteira do Iluminismo entre a esfera pública onde vigorava a lei e a esfera privada o espaço de liberdade total de empreender parte dos direitos que a lei garantia como inalcançáveis pela ação do governo A primeira era universal valendo para todos a segunda individual com cada um agindo conforme sua consciência A lei tanto regulava os limites do governo como incentivava os empreendedores a organizarem empresas aproveitando o trabalho assalariado e investindo os lucros para ampliar cada vez mais esse setor produtivo na economia Na altura em que decidiu apostar em empreendimentos industriais Irineu Evangelista de Sousa deixou de fazer parte daquele indistinto lugar histórico e social reservado pelo governo brasileiro aos empresários O mundo empresarial ainda era regulado pelo Livro IV das Ordenações do Reino cujo conteúdo guardava influências da realidade mercantil do século XV as últimas alterações relevantes haviam sido introduzidas no século XVI Tão obsoleto era o instituto que nem sequer previa a separação legal e contábil entre a pessoa física do empresário e a pessoa jurídica da empresa Por exemplo por ocasião da morte de um comerciante todas as contas de seu negócio eram incluídas no testamento e às vezes créditos e débitos demoravam anos para ser quitados em meio a disputas de filhos e parentes pelos bens Na via inversa os comerciantes ficavam sem receber de um cliente fazendeiro que morresse O visconde de Souto um dos maiores banqueiros da época lembrou dessa maneira a praça do Rio de Janeiro na segunda metade da década de 1840 Quando entrei na vida comercial estreando na carreira em uma das mais respeitadas casas de comissões nunca soube o que fosse descontar letras dos fazendeiros Nesse tempo a imperfeição da circulação não consentia as letras dos fazendeiros tanto que o Banco Comercial então o maior do país não as conheceu em sua carteira1 Talvez haja quem considere tal situação precária uma consequência da escravidão Nesse caso cabe lembrar que havia bancos de desconto no Sul escravista dos Estados Unidos desde o século XVIII ou que antes disso toda a produção de açúcar no Caribe inglês se fizera com a emissão de títulos O mais característico do modo como se tratava o capital no Brasil ainda refletia a observação feita pelo frei Vicente do Salvador no século XVII o mercado funcionava apenas na esfera particular ou seja fora da proteção legal do Estado Todas as transações relevantes aconteciam entre pessoas e eram fiadas apenas pela palavra por isso o fiado mesmo nas altas esferas de negócio era a única instituição relevante na economia O fiado servira para analfabetos tocarem a economia produtiva até o século XIX mas não para assegurar a competitividade da produção brasileira no mundo capitalista Até o mais importante ciclo produtivo da economia o do café escravista funcionava todo na base do fiado e conhecia apenas uma operação anual de liquidação financeira Com sua formação sofisticada e acesso a capitais com juros baixos na Inglaterra Irineu Evangelista ganhou dinheiro como comerciante sem que ninguém se desse conta Como industrial tentou criar um ambiente institucional menos prejudicial a esse tipo de negócio que exigia liquidações em dinheiro num grande volume Eleito presidente da comissão que dirigia a praça de comércio do Rio de Janeiro acabou sendo convidado a atualizar a legislação comercial Recorrendo a todo o seu conhecimento da situação inglesa ajudou a redigir uma versão do Código de Comércio Aprovada em 1850 a legislação substituiu mais uma parcela das Ordenações Atualizava o possível desde a legalização de sociedades anônimas ainda que sujeitas à aprovação do Poder Moderador até a introdução de regras para emissão desconto e cobrança de títulos comerciais instrumentos inexistentes quando as leis haviam sido escritas Após o encerramento do tráfico essa lei permitiu uma revolução Irineu Evangelista de Sousa comandou a formação do Banco do Brasil um empreendimento privado do qual seria o maior acionista e o primeiro presidente A parte mais fácil foi reunir o capital de 10 mil contos de réis 33 vezes maior que o da fundição e estaleiro da Ponta da Areia e um terço dos 28 mil contos de receita do governo central em 1850 como muitos traficantes tinham dinheiro e não sabiam o que fazer com ele em apenas três semanas o capital foi integralizado Mais complicado foi passar pelo crivo do governo três meses foram consumidos em verificações de toda ordem feitas por representantes do Poder Moderador que examinaram os estatutos e exigiram as alterações que lhes pareceram necessárias para que a sociedade fosse digna do governo Obtida enfim a autorização o Banco do Brasil passou a emitir títulos comerciais para muitas operações fazendo diminuir os prazos de giro e o custo do dinheiro Começou a fornecer crédito a produtores de café com taxas de juros tão melhores que aquelas dos tempos do tráfico que provocaram lembranças marcantes no visconde de Souto Os produtores se livraram de uma situação que a custo do tráfico nefando de escravos e da usura que só os comércios ilícitos permitem sustentar ditava a lei à praça e impunha sua vontade aos governos2 Esse não foi o único emprego dos capitais reunidos no banco Irineu Evangelista de Sousa foi também capaz de empregar parte deles para o financiamento de obras de infraestrutura que ele mesmo fazia e gerenciava a construção da primeira ferrovia brasileira aproveitando os trilhos e equipamentos produzidos em sua fundição a iluminação a gás no Rio de Janeiro com encanamentos produzidos por ele e uma companhia de navegação a vapor no Amazonas com navios saídos do seu estaleiro Não era milagre Os capitais que agora viabilizavam esses projetos existiam antes da fundação do banco O que não havia era uma lei que permitisse o emprego de tais capitais em empresas sob a proteção formal do governo Quando ela veio houve confiança suficiente para trazer o dinheiro à luz aplicálo em negócios transparentes e legais Já o capital destinado a empréstimos era aplicado com as garantias proporcionadas pelos novos títulos de crédito de modo que não era preciso ganhar tanto em cada giro valia a pena emprestar muitas vezes com poucos ganhos em vez de como antes cobrar muito e girar pouco Mas o Brasil era um império que tinha também uma solenidade máxima a abertura da sessão anual do Parlamento o momento no qual se reuniam os dois entes soberanos o momento para o qual o imperador reservava sua veste mais solene a murça de plumas amarelas de tucano que lhe cobria o peito Era a ocasião na qual ele ressaltava aos parlamentares os pontos que em sua visão deveriam merecer exame nas casas legislativas Entre aqueles que enfatizou na sessão de 1853 estava o seguinte Recomendolhes a criação de um banco solidamente constituído que dê atividade e expansão às operações do comércio e da indústria Nas circunstâncias em que felizmente nos achamos semelhante instituição é um elemento indispensável a nossa organização econômica3 O nossa do discurso não se referia à nação mas à parte do governo submetida ao Poder Moderador e o projeto que correu foi o de empregar dinheiro do Tesouro para adquirir o controle do Banco do Brasil A justificativa da compra foi assim apresentada pelo ministro da Fazenda o conservador visconde de Itaboraí A concorrência entre bancos senhores tem sido a causa de quase todas as crises comerciais É a porfia de cada um por fazer mais negócios aliciar mais fregueses por dar maiores dividendos aos acionistas que de ordinário ocasiona a facilidade de se descontarem títulos sem as necessárias garantias que faz baixar demasiadamente os juros que excita empresas aleatórias que faz desaparecer os capitais reais disponíveis para os substituir por capitais fictícios ou de imaginação é a rivalidade entre bancos que concorre poderosamente para produzir as quebras a ruína o desespero das famílias A concorrência entre bancos prepara para os produtores ávidos e imprudentes todas essas elevações de fortuna essas quedas precipitadas que dão ao trabalho e à indústria todos os delírios todas as angústias do jogo4 Apenas um senador Batista de Oliveira reagiu O projeto é um arbítrio espantoso dando ao governo a organização de um banco privilegiado A organização deste projeto é mais uma prova das tendências do atual ministério de implantar neste país um governo absoluto de fato5 A gritaria não teve consequências O Banco do Brasil foi estatizado e Irineu Evangelista recebeu um bom dinheiro por suas ações O governo as revendeu para os novos sócios minoritários de uma instituição que seria dirigida pelo governo numa operação assim descrita pelo Jornal do Commercio A especulação em torno das ações se transformou em verdadeiro jogo que exercia poderosa atração não apenas sobre comerciantes mas sobre militares empregados públicos altos funcionários do Estado sobre pessoas enfim até então estranhas à própria praça6 As primeiras providências dos novos dirigentes foram aumentar o número de diretorias de 3 para 15 e restringir tanto o crédito para as empresas como a emissão de títulos Os juros subiram o financiamento agrícola desapareceu Os privilegiados pelos empréstimos foram sobretudo os antigos traficantes que empregaram o dinheiro para reforçar um negócio prestes a desaparecer Escolhidos a dedo pelos diretores da estatal aqueles que recebiam os créditos se transformaram em comissários de café a forma primitiva de subordinação que os antigos traficantes encontraram para continuar no topo Claro com ela veio também o retrocesso às contascorrentes liquidadas uma vez por ano E logo depois o tráfico interno sobretudo originário do Nordeste que substituiu o comércio atlântico proibido A volta atrás foi concluída em 1860 por outro gabinete conservador O visconde de Itaboraí nomeado presidente do Banco do Brasil justificou desta maneira um projeto de lei do governo destinado a dificultar a atividade de empresas já em tempos de capitalismo avançado Uma larga porção do capital flutuante foi desviada da agricultura para a indústria tendo sido convertida em capital fixo os graves transtornos que esta conversão causam num país de produção acanhada tornam impossível que as empresas agrícolas vão adiante7 Com essa justificativa foi aprovada a lei 2711 que introduzia restrições para a formação de empresas restrições tão severas que acabou sendo conhecida como Lei dos Entraves Com ela se voltava ao tempo anterior ao Código Comercial no qual a informalidade o mercado que funcionava no âmbito privado e à margem das leis passava a ser a única saída Esse era um corolário inevitável do uso do poder legal para restringir a aplicação do capital existente fora de um restrito circuito próximo do governo O julgamento da política adotada pelo ministro Francisco de Sales Torres Homem feito por economistas especializados em econometria do século XX como Carlos Pelaez e Wilson Suzigan é severo As políticas recessivas do governo no mercado monetário foram compensadas pelo aumento do comércio exterior parecendo ter se caracterizado um caso raro de declínio do estoque de moeda com expansão da atividade econômica que se poderia explicar pela natureza do declínio políticas monetárias erradas e as causas da expansão aumento na procura do café8 As políticas erradas remetem ao que seria certo ou seja o governo empregar as políticas monetárias para apoiar o crescimento dos mercados e da riqueza nacional Mas isso para o Poder Moderador era justamente o errado pois considerava as políticas de expansão do crédito e de incremento da atividade econômica como o combustível da jogatina e da indústria artificial Assim do ponto de vista de quem impunha a política o certo era a capacidade de o governo central cercear uma possibilidade real da economia a de transferir via sistema de crédito poupanças antes alocadas no setor escravista para o setor capitalista especialmente o industrial Esse projeto fora acalentado como utopia com a chegada de D João Tornarase inelutável em decorrência da autoridade pessoal e arbitrária de D Pedro I e do desastre que este causou na economia Transfigurada com a reação ao fim do tráfico de escravos consolidavase agora como opção deliberada do poder central Como as duas soberanias se complementavam no projeto os entusiastas do Poder Moderador mostraramse tão confiantes no projeto que criaram uma vasta literatura para justificar o sistema CAPÍTULO 32 O arbítrio ilustrado AS RESTRIÇÕES AO CAPITALISMO NA DÉCADA DE 1850 FORAM POSSÍVEIS POR RAZÕES políticas Mantendo se à frente de seguidos gabinetes ministeriais os conservadores mantinham o total controle das eleições Esse controle chegou a um ponto tal que em 1852 o partido conseguiu eleger todos os deputados da Câmara restando apenas uns poucos liberais no Senado vitalício O imperador vislumbrou aí uma oportunidade única Até então ele se limitara a indicar alternativamente políticos de cada partido Em 1853 resolveu montar um ministério a seu gosto ou seja um ministério que embora formado por parlamentares atuasse plenamente como expressão do Poder Moderador e não como resultado da delegação da soberania popular O anúncio da ideia seguiu uma fórmula aperfeiçoada pelo próprio imperador nos anos anteriores ele mesmo nada falava a respeito deixando a tarefa para ministros e parlamentares Desse modo o plano acabou sendo apresentado num discurso pronunciado pelo senador Nabuco de Araújo no Parlamento Como a base do projeto era a subordinação de ambos os partidos ao trono em torno de uma conciliação com os interesses deste o senador batizou a ideia de Ponte de Ouro e fez questão de deixar claro quem comandaria tudo Entendo ao contrário que a conciliação deve ser a obra do governo e não dos partidos porque no estado atual se os partidos por si mesmo se conciliarem será em ódio e desrespeito ao governo1 O imperador fez questão de escrever pessoalmente o programa do ministério item por item Ao final vinham as Disposições Gerais das quais a primeira era O ministro que se desculpar com meu nome será demitido2 Em seguida vinham as demais limitações todas as decisões seriam tomadas em audiência com o monarca cada nomeação política deveria contar com a sua aprovação até na mais remota província e todos os assuntos importantes deveriam ser apresentados previamente para estudos O documento foi entregue e aceito pelo marquês de Paraná que se encarregou de encontrar pessoas dos dois partidos dispostas a seguir as instruções Com isso o Poder Moderador avançava para um controle da vida nacional como desde muito não se via só fora ultrapassado nos tempos em que D Pedro I governava sem contraste Inversamente a soberania popular se via reduzida ao papel muito secundário de sagrar as indicações do alto Essa peculiar combinação de um monarca irresponsável e um ministério submisso que não podia se eximir da responsabilidade nem mesmo apresentando ordem escrita do imperador estava prevista na Constituição Mas até então nunca chegara a ser prática regular e isso gerou uma compreensível euforia no imperador Não só dirigiu o ministério como recorreu ao mesmo método para criar justificativas escritas de seu comportamento sempre expressas por terceiros responsabilizáveis e não por sua majestade O livro Direito público brasileiro e análise da Constituição do Império foi assinado por José Antônio Pimenta Bueno marquês de São Vicente que o iniciou em 1852 e o publicou em 1857 Um dos motivos alegados para a demora foi o fato de que o autor apresentava o texto a um amigo muito especial que corrigia a lápis as versões o próprio imperador Por isso na conclusão concisa de Eduardo Kugelmas o livro apresenta o trono de São Cristóvão como seu ocupante gostaria de vêlo3 Pimenta Bueno justifica a peculiar afirmação constitucional de duas soberanias com a seguinte análise do artigo 11 da Constituição de 1824 que dizia Os representantes da nação brasileira são o imperador e a Assembleia Geral Para ele tal duplicidade era uma resolução inspirada pela Providência Isso porque de um lado desviou do Brasil a nossa forma de governo os males que resultam das monarquias vitalícias ou eletivas de um lado e muito mais dos governos temporários do outro4 A prova da efetiva sabedoria dessa dupla soberania e de origens opostas aparecia na altura da obra em que Pimenta Bueno trata de um hipotético desacordo entre ambas aquele no qual o Parlamento aprova uma lei cumprindo sua função precípua e o imperador nega sua sanção recorrendo a uma das muitas franquias do Poder Moderador A determinação do poder da sanção exige o estabelecimento de uma hierarquia entre os dois representantes da nação e Pimenta Bueno não hesita em colocar um deles no ponto mais alto A Coroa é o centro da administração do Estado reside na mais elevada eminência da sociedade desta altura vê todas suas relações todos seus serviços todas suas necessidades em contato com a atualidade e o futuro Já os parlamentos se caracterizariam por ter por missão o progresso mais ou menos sôfrego desde que o entendam conveniente5 Entre os dois representantes portanto não deve haver dúvidas sobre qual seria a parte mais importante Colocada a Coroa sem rivais acima de todos os interesses do momento animada por seu princípio de perpetuidade superior a todos os partidos e paixões não podendo ter verdadeira glória e força senão na estabilidade de suas instituições na prosperidade nacional quem deverá temer e desviar mais do que ela qualquer tentativa de lei perigosa6 O argumento de que a soberania arbitrária seria permanente e superior enquanto a soberania popular cuidaria apenas do contingente e dos interesses menores virou um grande bordão Membros diversos do Partido Conservador sentiram que o imperador era sensível a argumentos de desigualdade e não deixaram de perceber que essa apresentação permitia enquadrar os adversários liberais como pouco capacitados para entender os grandes interesses nacionais Melhor ainda adoraram ver o imperante como chefe efetivo da administração miúda o programa do gabinete incluía itens como regulamentação do trabalho dos bombeiros limpeza dos esgotos da cidade do Rio de Janeiro análise das madeiras que poderiam ser cortadas para a construção naval entre outros de modo que passaram a criar textos para justificar também essa ampliação da esfera de atuação do Poder Moderador A argumentação a favor da intervenção seria assim resumida por Oliveira Torres no século XX Ao rei cabe reinar aos ministros do rei responsáveis perante a Câmara dos Deputados compete o governo aos diversos departamentos e repartições assim como às províncias e câmaras municipais a administração pública No Brasil imperial a distinção entre essas três funções seria tema de importantes discussões onde ficou conhecida a célebre máxima do visconde de Itaboraí o rei reina governa e administra7 Nessa definição o monarca era pensado como chefe de Estado chefe de governo e chefe da administração que estenderia seu controle ao das províncias e das câmaras municipais A extensão dos poderes irresponsáveis do imperador de modo a abranger essas esferas que eram fonte histórica da soberania popular foi defendida num tratado de outro conservador o visconde do Uruguai que assim definiu o poder de administrar do monarca em relação aos cidadãos súditos Aplica as leis de ordem administrativa por meio de um complexo de agentes de ordens diferentes disseminados por diversas circunscrições territoriais Aplica o interesse geral a casos especiais pondose em contato com o cidadão individualmente e vêse muitas vezes na necessidade de sacrificar o interesse particular deste ou mesmo o seu direito ao interesse social8 Por essa definição os funcionários e havia muitos funcionários não eleitos se tornavam agentes do Poder Moderador tão cumpridores das ordens de um monarca irresponsável quanto os ministros deste Mais ainda no cumprimento dessas ordens poderiam passar por cima dos interesses particulares e dos direitos dos súditos Assim o teórico conservador reduzia a quase nada os interesses e direitos da soberania popular O princípio iluminista da igualdade perante a lei era ignorado e o soberano irresponsável tinha seus poderes elevados à proximidade da totalidade No entanto para o visconde tal intervenção se justificava por seu caráter civilizatório É certo que o poder central administra melhor as localidades quando estas são ignorantes e semibárbaras e aquele ilustrado quando aquele é ativo e estas inertes e quando estas mesmas localidades se acham divididas por paixões e parcialidades odientas que tornam impossível uma administração regular Então a ação do poder central que está mais alto e mais longe que tem mais pejo e é mais imparcial oferece mais garantias9 A duplicidade constitucional de soberanias ganhava assim um caráter hierárquico na concepção do visconde Mas as interpretações foram além recuperando uma antiga tradição portuguesa No Brasil nunca existiram nobres com direitos jurisdicionais sobre terras e pessoas tampouco o direito da primogenitura Também não havia clero com tais direitos Enfim não existiam as bases reais da teoria de governo do Antigo Regime Todavia os argumentos nesse sentido proliferaram a partir das definições interessadas dos amigos do imperador como indicaria Oliveira Torres no século XX O conceito central em que se fundava o regime imperial era o seguinte a soberania a plenitude dos direitos políticos residia na Nação brasileira uma realidade composta do povo e do Estado o imperador A soberania não residia nem no Estado nem no povo mas na união dos dois No Brasil a função de servir o bem comum como ocupação particular estava a cargo do imperador auxiliado por seus funcionários O Estado no Brasil realizavase num grande corpo cuja cabeça era o imperador10 A aplicação da metáfora corporativa original do século XVI ao caso do país independente na era capitalista permitia recuperar certas glórias para o Poder Moderador O Estado no Brasil realizavase num grande corpo cuja cabeça era o imperador seu chefe hereditário e presidente perpétuo dessa associação política dos cidadãos que constituía o Império Esta ideia central da teoria do Estado Imperial estava expressa na Constituição do seguinte modo Os representantes da Nação Brasileira são o imperador e a Assembleia Geral O imperador como chefe e símbolo do Estado representava a vontade coletiva os membros da Assembleia representavam o povo os interesses divergentes particulares11 A superioridade da cabeça seria total Não haveria perigo de conflito entre essas vontades parcialmente soberanas de cuja fusão nascia a soberania nacional Houve não há dúvida casos de choque mas estes nasceram do desconhecimento de suas atribuições próprias por uma dessas vontades Todos eram representantes da soberania nacional Mas perante quem eram representantes O imperador perante o mundo perante o passado e o futuro Ainda perante o povo representava a força do Estado e da lei representava em resumo os interesses coletivos e permanentes da pátria Os deputados e senadores representavam o povo perante o imperador para que este na sua vontade permanente de conservar a nação não ferisse os interesses populares12 Para explicar a virtude da dupla soberania do Brasil imperial por meio da metáfora corporativista era preciso hierarquizar aquilo que aparecia como duplicidade na lei Rebaixados a representantes do povo perante o imperador os eleitos pela soberania popular ganhavam papel infinitamente mais modesto do que o concebido por Rousseau O argumento concentra exclusivamente na cabeça coroada outra capacidade da totalidade dúplice da nação a função de servir o bem comum que seria realizada apenas pelo imperador e seus funcionários Com isso não só o soberano mas todas as instâncias do governo central são retirados da esfera nacional e incluídos na esfera imperial Esse rebaixamento foi detalhado pelo jurista Braz Florentino Ele não remontou as justificativas até o corporativismo mas voltou bem mais no tempo até a fonte da desigualdade como princípio fundador da vida social na Antiguidade Relativamente ao Poder Moderador não é possível deixar de admitir conforme a expressão de um publicista Aristóteles a ideia natural vulgar e quase inata de que O rei é senhor e o ministro servo que um é feito para mandar e outro para obedecer13 Sem dúvida cabe ao jurista a posição de defensor mais radical da excelência do Poder Moderador inscrito na Constituição Em sua concepção a Constituição sendo monárquica não deixaria nenhum espaço para a soberania popular nem no Estado nem na representação do interesse nacional conforme estava na letra da lei O belo o sublime da forma monárquica consiste na persuasão geral de que não só se tem provido a duração e a segurança do Estado pois que o primeiro posto opõe uma barreira insuperável às paixões individuais mas também que há no Estado uma vontade que se pode sempre aceitar como pura porque identificase e deve necessariamente identificarse com o interesse nacional14 Desse modo as duas soberanias separadas representariam também valores morais opostos Uma representaria o bem e as virtudes outra os malefícios e os vícios Está escrito e ninguém o poderá apagar todo o Império dividido há de perecer e o parlamentarismo divide os ânimos e os inquieta põe em dispersão todas as hierarquias divide a sociedade em cem partidos e não contente com a divisão natural do poder já estabelecida quer ainda levar essa divisão ao seio do poder centralizador e unívoco o poder real ou Moderador o parlamentarismo que é a divisão no todo e em todas as partes nas altas regiões nas regiões médias e nas regiões baixas no poder na sociedade e no homem não pode subtrairse nem se subtrairá jamais ao império dessa lei inexoravelmente soberana15 Assim a mudança que o imperador introduziu no comando da administração e nas justificativas de seu poder ampliado acabou levando a interpretações nas quais as condições econômicas do capitalismo eram vistas como um jogo a ser barrado e a existência da soberania popular um perigo a ser conjurado O êxito nessas duas missões seria a grande virtude da organização constitucional brasileira segundo os defensores da ideia Mas nem todos viam o Poder Moderador como instrumento tão eficaz O próprio visconde do Uruguai embora fosse conservador e notasse a identidade entre a instituição constitucional e as suas ideias não deixava de reconhecer naquela um limite O Poder Moderador pela natureza e alcance de suas atribuições separadas do Executivo não pode ser invasor não pode usurpar Pode embaraçar o movimento não o pode por si só empreender e levar a efeito O mais que pode é efetuar a conservação do que está por algum tempo É poder não de movimento mas essencialmente conservador E o realismo do visconde se comprovou pois viria a hora em que o movimento não pôde mais ser detido nem mesmo pelo Poder Moderador CAPÍTULO 33 Republicanos ENQUANTO O BRASIL SE ORGANIZAVA COM O INTUITO DE CONSERVAR O STATUS QUO adiar o fim da escravidão e preservar a natural desigualdade entre os homens os Estados Unidos viramse diante do esgotamento das possibilidades de evitar o mesmo conflito e de escamoteálo por meio do seu enquadramento num espaço aquém da lei racional e válida para todos num espaço ordenado pelos costumes A forma federativa ampla com grande latitude dos poderes locais permitiu um primeiro arranjo adaptativo alguns estados proibiram a escravidão enquanto outros legalizaram os títulos de propriedade sobre seres humanos A promulgação da Constituição uma década depois da Independência norte americana foi basicamente uma troca Os estados do Norte queriam recursos para financiar um governo central capaz de defender seus interesses comerciais no Caribe Pagaram seu preço Não só aceitaram que novos estados pudessem ter constituições protetoras do escravismo como admitiram o reconhecimento constitucional implícito dos escravos nos estados do Sul pelo mecanismo de incluílos na população para efeito do cálculo do número de deputados A expectativa dos estados do Norte estava no crescimento de sua economia e na estagnação do escravagismo Nas décadas seguintes tal expectativa acabou frustrada pois não só a vida política foi dominada por políticos do Sul como a economia escravista se revelou capaz de se expandir para oeste Na década de 1850 contudo os mecanismos de acomodação começaram a falhar e o primeiro conflito eclodiu por ocasião da transformação em estado do território do Kansas Em 1854 a Suprema Corte determinou que ali poderia haver escravidão Dois anos depois os abolicionistas venceram um plesbicito estadual e proibiram a instituição A violência entre as partes aumentou Enquanto isso os escravagistas faziam contas com a proibição a oeste seriam minoria permanente no Congresso Então sete estados do Sul se declararam fora da federação americana e formaram uma confederação Da secessão para a guerra civil foi um passo E com a guerra vieram os dispositivos legais que promoveriam a maior coincidência entre as ideias iluministas e os costumes todos na direção oposta à das leis conservadoras brasileiras Em 1861 foi promulgado o Homestead Act uma lei pela qual o governo prometia legalizar a propriedade de qualquer posse com menos de 160 hectares em cinco anos enquanto no Brasil a Lei de Terras de 1850 simplesmente anulava o instituto da posse e a imensa maioria dos agricultores do país eram posseiros e criava instrumentos para ratificar legalmente grandes propriedades como parte da política de proteção aos interesses conservadores Ao longo da guerra civil americana o governo da União passou a oferecer cada vez mais a promessa de liberdade para escravos que lutassem em suas fileiras ou abandonassem o território confederado Assim conseguiu atrair nada menos de 120 mil homens para seu exército E a perspectiva de vitória tornou claro que seria possível dar o passo decisivo e sempre temido No dia 31 de janeiro de 1865 o Congresso norteamericano afinal aprovou uma lei tornando ilegal a escravidão em todo o país Três meses depois as últimas tropas confederadas se renderam e uma semana depois o presidente que havia ganho a guerra e forçado a aprovação da abolição Abraham Lincoln foi assassinado Ao todo foram 600 mil mortes até se chegar a uma sociedade na qual era ilegal a posse de escravos Mas nem mesmo esse imenso custo foi capaz de fazer retroagir a acumulação de capital ao contrário do que ocorrera no Haiti após a revolta dos escravos ou no Pará após a Cabanagem A produção capitalista tinha ímpeto suficiente para se expandir sobre os destroços do Sul que fora escravista Enquanto isso o Brasil vivia outra espécie de crise A combinação de restrições a empresas e contenção monetária foi sufocando o otimismo que surgira com o fim do tráfico A necessidade de mudanças alimentou a oposição liberal e matou a política de Conciliação o visconde de Uruguai tinha razão quanto à total incapacidade de empreender e levar a efeito do conservadorismo implícito no Poder Moderador Em 1864 os liberais se firmaram no poder com uma maioria sólida E logo tiveram de lidar com duas crises gigantescas a falência do Banco Souto o preferido dos nobres e do imperador e a invasão pelo Paraguai Para enfrentar ambas foi preciso contrariar os princípios conservadores No campo econômico o ideal monetário de conter as emissões não poderia conviver com as necessidades de financiamento da guerra Foi preciso emitir e boa parte das emissões acabou sendo gasta em São Paulo onde o governo comprava tropas de mulas e produtos para enviar à zona conflagrada no Mato Grosso Um dos indicados pelos liberais para a presidência da província de São Paulo foi Saldanha Marinho que se juntou a empresários enriquecidos pela venda de produtos para a guerra para contrariar outro ideal conservador o da contenção das empresas E fez algo inusitado entre os presidentes de província da época deu todo o apoio pessoal e institucional para que se formassem sociedades anônimas voltadas para a construção de ferrovias Ao garantir o enquadramento legal para tais investimentos surgiram nada menos que 20 mil contos de poupança antes obrigados a circular na informalidade O dinheiro permitiu capitalizar ao mesmo tempo cinco empresas ferroviárias cujo capital equivalia a 11 vezes o orçamento da província ou ao valor de toda a produção cafeeira paulista naquele ano Na época as ferrovias eram empreendimentos baseados em tecnologia de ponta alta capitalização mão de obra assalariada intensiva e em financiamentos volumosos Tudo o que o Brasil parecia não ter Mas na realidade tinha o que se comprovava agora com a eliminação dos empecilhos legais Nenhum daqueles requisitos prejudicou o avanço das empresas numa região em que até a véspera a economia parecia dormente Além de abrir brechas para o avanço da economia formal o desenrolar da guerra começou a exigir mudanças em questões fundamentais Embora em grau bem menor do que nos Estados Unidos a criação de um exército para decidir o conflito implicou a libertação de cativos e a formação de tropas mistas A pressão de baixo acabou provocando um estalo no alto À frente do gabinete liberal que conduzia a guerra estava Zacarias de Góis e Vasconcelos que também era debatedor da filosofia do direito brasileiro o título de sua obra mais conhecida dizia muito a respeito do modo como via as coisas Da natureza e dos limites do Poder Moderador Para ele o fato de o ministério ser responsável era uma barreira para uma série de decisões imperiais Como parte administrativa dessas crenças Zacarias de Góis comandava a política de guerra relegando o principal líder militar conservador o marquês de Caxias a uma posição consultiva Por um tempo o imperador se conteve mas não aguentou e acabou convidando o seu soldado preferido para o comando das tropas Caxias respondeu que só aceitaria se os conservadores comandassem o ministério D Pedro II depôs Zacarias abrindo uma crise política em plena guerra Então um cristal quebrou No dia seguinte à posse do ministério conservador o senador liberal José Tomás Nabuco de Araújo o mesmo que um dia tornara pública a política da conciliação fez um discurso Dessa vez ao invés de falar sobre junção começou pela disjunção Sou chamado à tribuna por um motivo que em minha consciência é muito imperioso Esse motivo senhores é que tenho apreensão de um governo absoluto Não de um governo absoluto de direito porque isso não é possível nesse país que está na América mas governo absoluto de fato1 Referirse ao governo imperial como absoluto era para um senador com posto no Conselho de Estado uma questão complicada Além de representante eleito Nabuco também era membro de um órgão assessor do Poder Moderador Sabia que estava escolhendo entre dois senhores Por isso teve de explicitar a sua posição Peço aos nobres ministros da Coroa que se porventura julgarem inconveniência no que digo em relação à posição que ocupo no Conselho da Coroa eu lhes peço a exoneração do cargo de conselheiro do Estado Porque senhores eu prefiro a tudo a missão que eu recebi de meus concidadãos de acompanhar a opinião que me elegeu e me colocou neste lugar2 A opção de abandonar a Coroa em decorrência de um conflito de interesses e escolher o poder derivado do voto como o maior dos bens era então uma atitude quase inconcebível toda a recente literatura conservadora definia tal atitude como adesão a interesses menores Mas Nabuco voltou as costas para o alto Quero fazer um protesto não sobre a legalidade do ministério atual porque em verdade a Coroa tem o direito de nomear livremente seus ministros mas sobre a legitimidade E vós concebeis a diferença que há entre legalidade e legitimidade A escravidão entre nós é um fato autorizado por lei é um fato legal mas ninguém dirá que é um fato legítimo porque é um fato condenado pela lei divina é um fato condenado pelo mundo inteiro3 E continuou seu argumentação associando legitimidade à maioria no Parlamento Havia no Parlamento uma maioria tão legítima e tão legal como tem sido todas as maiorias que hão de vir enquanto não tivermos liberdade de eleição4 O Brasil só teria uma pessoa com liberdade de escolha O Poder Moderador não tem o direito de despachar ministros como despacha empregados e delegados de polícia Senhores senadores vós não podeis levar a tanto a atribuição que a Constituição confere à Coroa de nomear livremente seus ministros Não podeis ir até ao ponto de querer que nessa faculdade se envolva o direito de fazer política sem a intervenção nacional o direito de substituir situações como lhe aprouver Não é isso uma farsa Não é isso o verdadeiro absolutismo no estado em que se acham as eleições em nosso país5 Veio então a definição que ficou famosa Vede este sorites fatal este sorites que acaba com o sistema representativo o Poder Moderador pode chamar quem quiser para organizar o ministério essa pessoa faz a eleição porque há de fazê la esta eleição faz a maioria Eis aí o sistema representativo de nosso país6 O termo sorites é tanto a palavra grega para monte como o nome de um paradoxo lógico muito antigo da filosofia présocrática embutido na pergunta Em que momento um monte de areia deixa de sêlo quando se vão removendo os grãos Nas contas de Nabuco a remoção de Zacarias de Góis removera também de modo fatal a legitimidade das instituições brasileiras do sistema com duas soberanias e assim ultrapassara o limite em que o monte deixava de sêlo Claro que o discurso não produziu efeitos suficientes para evitar o mal anunciado Pelo contrário aconteceu exatamente o que o senador temia O ministério era o Poder Executivo que na época não era ocupado por pessoas eleitas para os cargos mas indicadas pelo imperador Tomando posse os ministros indicaram novos presidentes de província Estes por sua vez mandaram embora todos os funcionários indicados pelo ministério anterior Os novos indicados controlaram o processo eleitoral Como sempre fora desde a posse do imperador O resultado prático disso tudo foi resumido por George Boherer É difícil saber até que ponto se usou fraude e pressão para determinar os resultados da eleição Contudo é certo que nenhum ministério jamais perdeu uma eleição mesmo quando os membros do Parlamento anterior eram pronunciadamente oposicionistas como se deu em 1868 Antes dessas eleições os liberais controlavam quase unanimemente a Câmara dos Deputados Depois das eleições a Câmara tornouse quase totalmente conservadora7 Essa era a verdade apontada por Nabuco de Araújo a vontade do eleitor não contava para nada O que de fato importava para o resultado de uma eleição era o fato de o Executivo ser entregue a um partido o qual punha em movimento uma máquina eleitoral controlada a partir do Poder Moderador que assegurava votos suficientes para uma maioria parlamentar A liberdade de eleição o papel do eleitor era na verdade irrisório quando a operação vinha de cima para baixo A crítica calou fundo porque invertia a argumentação conservadora da década anterior colocava toda a legitimidade na soberania do eleitor e toda arbitrariedade e paixão no Poder Moderador Mais ainda anunciava um conflito insolúvel entre a opinião nacional a vontade do eleitor e a instituição que permitia ao monarca governar sem levar em conta essa vontade Muita gente começou a pensar no imperador de outro modo em vez da figura que juntava areia no monte da nação poderia ser aquela que espalhava a areia juntada pelos esforços de todos os cidadãos o chefe de um governo que tentando controlar tudo atrapalhava em vez de construir O fim da guerra em vez de afastar a pergunta incômoda trouxe uma resposta ainda mais incômoda Depois de um ano de intensos debates públicos no Rio de Janeiro um grupo de pessoas chegou à conclusão que não havia mais sentido no sistema de poder definido na Constituição Para elas a única solução estava no fim do maior responsável pela tutela de pessoas e negócios o Poder Moderador o que equivalia pura e simplesmente a acabar com a monarquia As razões para tanto vinham detalhadas em um manifesto O poder intruso que se constitui chave do sistema regulador dos outros poderes ponderador do equilíbrio constitucional avocou a si e concentrou em suas mãos toda a ação toda a preponderância Temos representação nacional Não há nem pode haver eleição livre onde a vontade do cidadão e sua liberdade individual estão dependentes dos agentes imediatos do poder que dispõe da força pública Militarizada a nação arregimentada ela no funcionalismo dependente é ilusória a soberania que só pode revelarse sob a condição de ir sempre de acordo com a vontade do poder Um poder soberano privativo perpétuo e irresponsável forma a seu nuto o Poder Executivo escolhendo os ministros o Poder Legislativo escolhendo os senadores e designando os deputados e o Poder Judiciário nomeando os magistrados Deste modo qual é a delegação nacional Que poder a representa Como pode ser a lei representação da vontade do povo Como podem coexistir com o poder absoluto que tudo domina os poderes independentes de que fala a carta8 Só havia uma saída a remoção de uma das partes Atar ao carro do Estado dois locomotores que se dirigem para sentidos opostos é procurar a imobilidade se as duas forças são iguais ou a destruição de uma delas se a outra lhe é superior Para que um governo seja representativo todos os poderes devem ser delegação da nação e não podendo haver um direito contra outro direito a monarquia temperada é uma ficção sem realidade A soberania nacional só pode existir só pode ser reconhecida e praticada em uma nação em que o Parlamento seja eleito pela participação de todos os cidadãos e tenha a suprema direção e pronuncie a última palavras nos negócios públicos Outra condição essencial da soberania nacional é ser inalienável e não poder delegar mais que o seu exercício Dessa verdade resulta que quando o povo cede uma parte de sua soberania não constitui um senhor mas um servidor Em consequência o funcionário tem que ser revocável móvel e eletivo9 O Manifesto do Partido Republicano apontava como solução básica para os problemas brasileiros a eliminação de um dos dois sóis do sistema constitucional aquele do poder irresponsável do monarca da figura que manda de cima e não pode ser responsabilizada Ou seja pregava a extinção da monarquia A primeira das 59 assinaturas no texto era a de Joaquim Saldanha Marinho expresidente da província de São Paulo Ele sabia o que estava fazendo Ao firmar o manifesto declarava que o governo imperial não só devia ser considerado ilegítimo ao modo de liberais monarquistas como Nabuco mas também ilegal usurpador de um poder que pertencia aos cidadãos O programa do Partido Republicano teria sempre um esteio central a ideia iluminista da existência de um único soberano o povo Um partido que tinha esse ponto como base do programa jamais podia esperar ser um dia convocado pelo detentor irresponsável do Poder Moderador para ocupar o ministério que garantia a vitória nas eleições em seu nome Por isso cada assinatura no manifesto implicava uma renúncia ao exercício de poder no regime monárquico Era uma opção por fazer política apenas na sociedade fora da vasta área de domínio da autoridade real contra o governo Rompida a unanimidade em torno da Constituição começava o declínio do império CAPÍTULO 34 Ocaso APESAR DE TODAS AS CRÍTICAS CONSERVADORAS À SOBERANIA POPULAR E APESAR DA imagem negativa de seu papel na representação nacional e na política as estruturas de eleição e representação eleitoral no Brasil mantiveram a sua força original As eleições locais continuaram ocorrendo com regularidade e o mesmo passou a se dar com as eleições dos deputados provinciais e nacionais O quadro geral desse sistema eleitoral era atualizado mesmo com relação às democracias do Ocidente sobretudo no que se refere à grande questão da época como organizar um sistema de poder representativo transformar os cidadãos em eleitores e fazer o sistema funcionar Um estudioso da questão o historiador italiano Raffaele Romanelli descreve sucintamente o problema e seus paradigmas de análise O principal objetivo no estabelecimento de uma representação nacional era o de organizar o país pacificamente como um todo sob as mesmas regras com o poder sujeito ao controle da opinião pública e as lutas políticas reguladas por um conjunto de normas universais Embora conectadas com práticas eleitorais mais antigas essa nova forma de representação permitiu a emergência de uma sociedade de mercado e da opinião pública como no caso das mudanças que tiveram lugar na Inglaterra durante os séculos XVII e XVIII ou por outro lado estiveram associadas ao desenvolvimento do Estado moderno na passagem do absolutismo para a Revolução francesa1 Nesse sentido o Brasil havia dado bons passos iniciais pois contava com o substancial legado de formas mais antigas as eleições locais no momento em que virou nação independente Elas permitiram a consolidação de um Parlamento com poder constante de legislar e uma noção de opinião pública As eleições regulares fizeram o resto apenas a Inglaterra e os Estados Unidos elegiam legisladores há mais tempo do que o Brasil Mesmo a França o paradigma predileto dos teóricos brasileiros não conheceu o funcionamento contínuo de um Parlamento com monopólio de legislar senão em 1875 ao se tornar república A opção brasileira seguiu o caso inglês com a incrustação do sistema representativo numa monarquia Essa foi a regra em toda a Europa nos primeiros três quartos do século XIX mas não produziu êxitos duradouros Com exceção da Inglaterra em todos os demais países do continente aconteceu o mesmo que no Brasil um convívio conflituoso entre um poder monárquico arbitrário e sempre adversário do poder soberano dos eleitores e o Parlamento Nesse conflito na melhor das hipóteses havia alternância de predomínio Nos momentos ruins o Parlamento era fechado nos surtos revolucionários os reis eram derrubados Essa foi a realidade da França mas também da Alemanha Holanda Suécia Itália Espanha e Portugal entre outros Nesse contexto os conflitos brasileiros podem ser tidos como moderados e isso sobretudo porque o Parlamento não demorou para se impor O outro modelo disponível era o republicano No caso europeu esse regime inspiravase nos breves momentos em que até então fora adotado na França Mas na verdade a única república regular do Ocidente no século XIX era a dos Estados Unidos onde os eleitores efetivamente escolhiam com regularidade o chefe do Executivo Não foi apenas na elaboração de regras gerais que o Brasil teve uma experiência histórica positiva As regras nacionais estáveis são uma condição necessária mas não suficiente para o governo de representantes Também cabe levar em conta importantes aspectos internos do processo relacionados aos instrumentos legais para transformar os súditos da era medieval em cidadãos com o poder efetivo de eleger representantes As fórmulas para compatibilizar a regra geral da soberania popular com a realidade generalizada do arbítrio foram mais ou menos as mesmas em todo o Ocidente definir franquias por meio de leis regulamentadoras do direito universal previsto na Constituição Essas franquias limitavam o número dos incluídos no direito Assim por exemplo todas as leis nacionais do século XIX permitiam o exercício do voto apenas para os homens e nunca para as mulheres o que já excluía metade dos seres criados livres As franquias tinham diversas origens legais Constituição legislação civil costume controle do Poder Executivo normas especiais deste emprego de agentes públicos com funções partidárias Essa pletora de possibilidades torna mais difícil a comparação com o modelo geral uma vez que cada país adotava uma fórmula para distribuir as franquias pelas diversas instâncias de governo As definições de quem era eleitor e elegível nos Estados Unidos não estavam na Constituição mas nem por isso os governos locais deixavam de impôlas Além dos escravos não podiam votar os negros livres apenas em 1860 cinco estados pioneiros permitiram esse voto e os imigrantes asiáticos2 Além dessas limitações gerais havia outras específicas em cada estado norte americano o que torna difícil os cálculos dos eleitores em relação à população geral Mas nos poucos casos onde estes existem é evidente a limitação do eleitorado nas eleições para governador da Virgínia em 1851 votaram 112 dos habitantes3 Além disso tal como no Brasil os atos de votar e contar votos não eram caracterizados pela lisura Também os governos norteamericanos trabalhavam ativamente em prol do partido no poder empregando métodos duros assim descritos por Tracy Campbell ao analisar a década anterior a 1876 Foi uma década de culminância de eleições corruptas onde os dois partidos viam o outro como deliberadamente fraudando os resultados Contagens honestas dos resultados não passavam pela cabeça de ninguém4 A própria maneira de criar franquias no Brasil oferecia certas vantagens insuspeitas para a época Embora excluíssem os escravos as franquias brasileiras incluíam índios e negros livres tornando menos rígido o enquadramento racial Um exemplo simbólico desse abrandamento enquanto no Brasil o primeiro deputado negro Antônio Rebouças foi eleito já em 1829 na Bahia os primeiros negros livres norteamericanos somente começariam a votar três décadas depois E nas monarquias da Europa havia muitas limitações semelhantes às brasileiras voto censitário voto qualificado proibição de voto para analfabetos e outras regras restritivas Graças a métodos estatísticos tornouse possível comparar o número de eleitores e sua relação com o total da população para vários países em meados do século XIX Com base nos dados do Censo de 1872 Letícia Bicalho mostra que no Brasil eram 1097 milhão ou 13 da população livre brasileira naquele momento5 Na eleição espanhola de 1865 apenas 26 da população votaram6 Em Portugal no ano de 1878 os eleitores eram 18 da população7 Em 1873 na Áustria votaram apenas 6 da população8 Em 1872 na Suécia a proporção de votantes era de 53 da população urbana e 57 da rural9 Na Holanda até 1870 os eleitores eram 10 da população total10 Na Inglaterra o percentual de eleitores depois da reforma de 1832 era de aproximadamente 20 da população mas na Escócia era de 1211 Para relembrar nas eleições para governador da Virgínia em 1851 votaram 112 dos habitantes Até 1879 portanto o Brasil tinha uma tradição de três séculos e meio de governo local representativo um mecanismo institucional nacional que permitia a eleição de representantes provinciais e nacionais um quadro estável de regras para as disputas políticas e um conjunto de franquias que não destoava do padrão mais avançado do mundo ocidental Mas tal padrão logo se alterou em decorrência da aprovação de normas gerais que se sobrepunham às definições particulares das franquias Em 1870 na esteira da Guerra de Secessão e da abolição da escravatura o Congresso norteamericano aprovou a 15a emenda constitucional que proibia o uso da cor da pele e da condição de escravo como critério para qualificação de eleitores Na Europa uma sequência de mudanças ocorreu na mesma direção Na Alemanha e na Itália deuse o mesmo em consequência dos processos de unificação nacional na França em 1875 com a implantação do regime republicano Em pouco tempo o sufrágio universal masculino se tornou norma Em sentido inverso os ajustes possibilitados pelas franquias acabaram deslocados para espaços secundários sem que isso significasse o seu desaparecimento No Sul escravista dos Estados Unidos por exemplo ainda que proibidas constitucionalmente de recorrer a critérios raciais de qualificação eleitoral as autoridades introduziram outros em especial o da alfabetização para alcançar o mesmo efeito como mostra Arnaldo Testi Nos antigos estados confederados os brancos do Sul retiveram o controle das legislaturas locais introduziram taxas altas de inscrição testes de leitura e outras cláusulas restritivas No Mississsippi ficou famosa a cláusula do entendimento pela qual a qualificação como eleitor dependia de serem capazes de ler e entender partes da constituição estadual12 O mesmo recurso às franquias para evitar a aplicação dos preceitos constitucionais aconteceu de forma variada em todos os países europeus Autoridades municipais incluíam nomes de candidatos aliados e retiravam os de adversários na França na Itália e na Espanha quase um terço dos deputados eleitos tinha seus mandatos contestados através de ações judiciais detentores de prerrogativas como as do voto qualificado encontravam maneiras de manter seus privilégios Seja como for a imposição normativa do sufrágio universal estava feita A partir da década de 1870 a proporção dos eleitores no total da população subiu em todas as democracias ocidentais aproximandose dos 30 da população total perto do máximo possível pela regra que deixava de fora as mulheres e os menores Justamente nesse momento no Brasil começavam as contestações republicanas ao Poder Moderador cuja reação seguiu a praxe Em 1879 houve troca de ministério Cansansão do Sinimbu o novo comandante do gabinete assim explicou a sua nomeação Sua Majestade tendo reconhecido a oportunidade de se fazer a reforma eleitoral direta não vê nisso uma questão de partido mas de interesse nacional13 Aparentemente tratavase de uma proposta para aperfeiçoar o modo de votar Em vez das eleições de delegados das vilas para posterior escolha dos parlamentares numa reunião na capital da província num processo indireto pelo qual até hoje se elege o presidente dos Estados Unidos num colégio eleitoral seria introduzido o pleito num único dia e a escolha dos candidatos com maior número de votos Mas o que de fato interessava ao monarca aflorou nos detalhes da regulamentação da lei Pela regra anterior as vilas cuidavam de tudo na primeira rodada eleitoral reconheciam os eleitores organizavam a votação apuravam o resultado e diplomavam os delegados escolhidos Eram portanto franquias locais Pela nova regra essas franquias foram retiradas da instância local e repassadas aos funcionários do Poder Moderador Primeiro foi a qualificação eleitoral A Constituição trazia poucas limitações para o direito de votar a maior delas era uma renda mínima Como não havia definições legais de como se comprovaria tal renda valia a tradição os juízes das vilas que eram eleitos e membros da Câmara eram os responsáveis pela comprovação de renda Como dependiam de eleitores para se eleger faziam vista grossa na hora de avaliar os rendimentos Já a nova lei trazia uma lista nacional e centralizada de exigências todos que quisessem ser eleitores deveriam apresentar certidão passada pela respectiva repartição fiscal14 como parte de vasta documentação que deveria constar de um processo pelo qual seu direito seria reconhecido A instrução do processo se fazia ainda nas vilas sob supervisão dos juízes locais eleitos Então vinha o pulo do gato O parágrafo 7o do artigo 6o do decreto 3029 de 1881 determinava que os juízes municipais enviarão aos juízes de direito das comarcas todos os requerimentos recebidos de eleitores e respectivos documentos15 Já o 9o parágrafo dispunha que os juízes de direito da comarca julgarão provado ou não o direito de cada cidadão de ser reconhecido como eleitor16 Uma vez que os juízes de comarca agora detentores do poder para decidir qual cidadão teria ou não o direito de votar eram funcionários subordinados ao Poder Moderador mesmo estando alocados nos governos provinciais eram nomeados pelo governo central e estavam sujeitos ao presidente de província delegado do Poder Moderador eles tinham muito mais interesse na própria carreira dependente de nomeações partidárias do que em reconhecer direitos de eleitores A subordinação do direito constitucional às normas dos funcionários do governo central adquiria aspectos caricatos O decreto 7981 de 29 de janeiro de 1881 definia que são eleitores todos os cidadãos brasileiros que se acharem no gozo dos direitos políticos e provarem as condições exigidas para seu direito de votar17 Cabia ao eleitor o ônus da prova e ao funcionário o poder de negar esse direito por qualquer motivo formal As barreiras burocráticas se tornavam especialmente duras para os analfabetos que podiam votar de acordo com a Constituição No entanto para exercer tal direito agora precisavam requerer certidões depois passar pelo seguinte constrangimento Nenhum cidadão será incluído no registro de eleitores sem o ter requerido por escrito e com assinatura ou de seu especial procurador provando que tem o seu direito com os documentos exigidos nesta lei18 Os aprovados receberiam o título de eleitor num ritual assim determinado Os títulos serão entregues aos próprios eleitores os quais os assinarão na margem perante o juiz municipal e o juiz de direito e em livro especial passarão recibo com a sua assinatura sendo admitido assinar pelo eleitor que não souber ler nem escrever outro por ele indicado19 Mas essa possibilidade da assinatura de um terceiro era apenas provisória Segundo a lei a partir do ano seguinte somente seriam alistados eleitores que requererem e provarem as qualidades de eleitor de conformidade com essa lei e souberem ler e escrever20 Assim contra a Constituição mas em benefício do Poder Moderador o eleitorado foi reduzido a um décimo do que era antes nas primeiras eleições com as novas regras os eleitores eram apenas 15 da população Não apenas a economia regrediu no Império também a política foi empurrada na contramão do tempo para tentar brecar Iluminismo e capitalismo E nem assim o Poder Moderador conseguiu evitar sua derrocada CAPÍTULO 35 Fim O BRASIL ENTROU NA DÉCADA DE 1880 COM A ECONOMIA TRAVADA DEVIDO À contenção do crédito decorrente da política do governo com as grandes dificuldades institucionais para a formação de empresas e com toda a vida política efetivamente encalacrada em torno do controle dos funcionários do Poder Moderador sobre os pleitos Mas os interesses de cima refletiam cada vez menos o andamento do país Com o governo nacional atendendo apenas a interesses cada vez mais restritos a sociedade reagiu a seu modo histórico O progresso efetivo continuava a se fazer na informalidade no âmbito secular das relações pessoais O mercado se fazia nas casas pelo fiado pelas relações de confiança pela liquidação de negócios sem moeda porque as leis serviam apenas para umas poucas transações econômicas em um círculo restrito A civilidade política dependia do convívio tolerante entre pessoas dos costumes que sustentavam além das trocas econômicas os intercâmbios sociais e afetivos entre pessoas diferentes festas para socializar misturas étnicas e sincretismos religiosos Nesse ambiente o nó da escravidão acabou sendo desatado basicamente à margem do circuito decisório oficial Na década de 1880 o movimento abolicionista pipocou por todo o país impulsionado quase exclusivamente pela sociedade No Ceará já em 1884 decretouse uma abolição No Rio de Janeiro figuras importantes como Joaquim Nabuco André Rebouças e José do Patrocínio comandavam a pregação com o apoio nem sempre velado da princesa Isabel Em São Paulo Luiz Gama comandou a formação de uma imensa rede abolicionista informal cuja amplitude pôde ser medida no dia do seu enterro quando 3 mil pessoas pararam a cidade em torno do féretro No fechamento do caixão um dos que juraram continuar a luta tinha um perfil aparentemente estranho à causa um exdelegado de polícia perseguidor de cativos católico tradicional e membro do Partido Conservador Mas Antônio Bento mostrouse pouco convencional ao criar uma organização que chamou de Caifazes Criou uma rede de pontos de apoio que funcionavam tanto em sacristias como em prostíbulos Treinou grupos de negros fugidos e ergueu refúgios nos caminhos percorridos por capitães do mato Promoveu a organização do quilombo do Jabaquara em Santos os atos preparatórios incluíram uma declaração municipal de abolição o que mostra o tamanho do apoio à causa Armou e venceu uma guerra Em 1887 o quilombo contava 10 mil habitantes metade da população da cidade e parte significativa dos 150 mil cativos paulistas contados pouco antes do movimento Quem podia se preparar para a libertação dos escravos o fez empregando os meios disponíveis Os empresários cada vez mais ricos de São Paulo ousaram Em julho de 1886 deixaram de lado o partidarismo para formar uma empresa sem fins lucrativos a Sociedade Promotora da Imigração que reunia liberais visconde do Pinhal conde de Três Rios barão de Sousa Queirós conservadores Elias Pacheco Chaves Antônio Prado Júnior e republicanos Jorge Tibiriçá e Martinho Prado Júnior A entidade tinha como objetivo promover por todos os meios a introdução de imigrantes e sua colocação em toda a província mediante auxílios e subsídios que forem determinados nas leis1 Como providência inicial o seu presidente o republicano Martinho Prado Júnior foi enviado para arregimentar imigrantes italianos E ele viajou à Itália como presidente de uma sociedade civil de empresários Nessa condição de simples cidadão negociou acordos com um governo estrangeiro estabeleceu bases contratou o agenciamento de interessados Na volta para São Paulo no início de 1887 o deputado Martinho Prado Júnior preparou um projeto de lei que transformava todos os acordos e contratos privados por ele negociados como empresário em lei provincial na qual o governo assumiria os acordos e sobretudo a conta a pagar Em suma os empresários reunidos na Sociedade Promotora da Imigração detinham poder suficiente para montar projetos por conta própria e impor esses projetos prontos ao governo As decisões nasciam na sociedade a organização era empresarial Já o Parlamento provincial em vez do papel subordinado ao Poder Moderador previsto na Constituição simplesmente legalizava as decisões mesmo que custassem muito caro As despesas do governo provincial com imigração saltaram de 223 contos em 1886 para 25 mil contos no final de 18872 A multiplicação por onze das despesas deu resultados imediatos Em 1886 havia 368 mil imigrantes na província3 e só no ano seguinte chegaram outros 321 mil4 No ano da Abolição 100 mil imigrantes desembarcaram no país quase o mesmo número de escravos libertados em São Paulo A Lei Áurea transformou no dia 13 de maio de 1888 boa parte das relações sociais do Brasil Do ponto de vista mais relevante na época 750 mil pessoas que até a véspera tinham a situação legal de cativos e não desfrutavam de nenhum direito civil passaram a ser cidadãos dotados de todos os direitos e garantias constitucionais Do ponto de vista econômico 750 mil cativos obrigados a entregar o produto de seu trabalho ao senhor tornaramse donos de sua força de trabalho e dos ganhos gerados por este mas também responsáveis pela obtenção daquilo que necessitavam para viver Do ponto de vista financeiro a lei só atingia um dos lados Os libertos não ganharam um único tostão com a alforria já os senhores se tornaram mais pobres porque tiveram cancelados os títulos de propriedade sobre os escravos perdendo o valor total que esses títulos tinham até a véspera No dia seguinte todos os implicados na mudança começaram a reorganizar a vida segundo a nova realidade legal Eventualmente exercendo o recém adquirido direito de ir e vir os novos cidadãos foram tentar ganhar a vida por conta própria Os exsenhores transformados em donos de bens de produção eventualmente sem trabalhadores precisavam encontrar mão de obra e meios para pagar por um trabalho antes realizado sem uso do dinheiro Simbolicamente a derrocada da escravidão significava mais que uma mudança econômica com ela se afirmava na prática o princípio iluminista da igualdade substantiva de todos os homens como fundamento da lei e da moralidade política e se derrogava do âmbito jurídico a instituição que era figura viva do princípio aristotélico pelo qual a moralidade do governo baseavase no reconhecimento das desigualdades naturais entre senhor e escravo O governo preso aos símbolos do Antigo Regime o mais alto dos quais era o próprio Poder Moderador teve grande dificuldade para lidar com a nova realidade de um mercado de trabalho Como não havia mais possibilidade de obter trabalho à força era preciso dinheiro para comprar o que requeria um volume muito maior de moeda na economia do que o existente no dia anterior à Abolição Um indicador dessa necessidade na região escravagista ligada ao Rio de Janeiro revelouse com as remessas de numerário feitas através das ferrovias Na Leopoldina os envios no primeiro semestre de 1888 quando se dava a comercialização da safra foram de 254 contos no segundo semestre mesmo sem colheitas saltaram para mil contos Na ferrovia de Campos que servia uma zona produtora de açúcar as remessas foram de 34 contos no primeiro semestre e 203 no segundo Na Central do Brasil apenas as remessas da capital saltaram de 509 contos para 38 mil contos de um semestre para outro Na média as remessas cresceram 565 entre um período e outro de 18885 Esse dinheiro começou a trafegar nas ferrovias que percorriam o grande bastião conservador do Império cuja produção cafeeira era drenada para o porto do Rio de Janeiro Além da província fluminense essa área englobava parte do vale do Paraíba paulista e boa porção de Minas Gerais e do Espírito Santo Era ali que se concentravam tanto o escravagismo como a exportação de café do país mesmo uma década depois de inauguradas as ferrovias paulistas no período de 1881 a 1883 o porto carioca escoou 729 do total das exportações de café6 Ainda na safra 188889 a situação não havia mudado as exportações de café pelo porto do Rio de Janeiro foram de 232 mil toneladas7 Mesmo com toda a modernização nos meios de financiamento em São Paulo as exportações pelo porto de Santos totalizaram 153 mil toneladas 40 menos que as da capital do país Além de concentrar escravos e produção de café a região acumulava recursos de todo o país ali carreados pelo governo Afora as poucas exceções de fronteira Rio Grande do Sul e Mato Grosso o então chamado Município Neutro a sede da Corte e do Poder Moderador era um centro de receitas e despesas públicas Do lado da receita havia a Alfândega mais importante do país que cobrava tanto direitos de importação como de exportação Seu movimento foi de 667 mil contos em 1887 Só esse dinheiro era mais que o dobro de toda a arrecadação das províncias brasileiras nesse ano que atingiu 32 mil contos Todavia nem mesmo essa vasta soma cobria as despesas do governo no pequeno território da Corte elas chegaram a 825 mil contos Para pagar a conta era necessário trazer de fora outros 16 mil contos de impostos ou o equivalente aos orçamentos provinciais somados de Rio de Janeiro São Paulo Pernambuco e Minas Gerais os quatro maiores da época No final das contas 625 dos 136 mil contos do orçamento nacional eram gastos no Rio de Janeiro Tal concentração ia além do processo de transformar poupanças em impostos O governo central ainda recolhia parte da poupança nacional restante por meio dos títulos de sua dívida Em março de 1889 o valor total captado através desses títulos em todo o país chegava a 381 mil contos8 dos quais nada menos de 324 mil contos ou 85 do total circulavam no Rio de Janeiro9 Desse modo a capital era o destino da maior parte da poupança nacional em decorrência das ações do governo para captar impostos e emitir títulos de dívida Essa concentração do dinheiro dos impostos e poupanças numa única região tinha uma consequência direta notada por Gustavo Franco O sistema bancário àquela época era bastante concentrado na capital onde estavam localizados cerca de 80 dos depósitos bancários10 Também o mercado de títulos de empresas mais importante do país estava na Corte Em maio de 1888 o valor total do capital das empresas com papéis negociados no Rio de Janeiro era de 410 mil contos quase quatro vezes mais que o do mercado de títulos paulista o segundo do país11 Nesse total os bancos tinham capital de 118 mil contos próximo aos 138 mil contos das ferrovias Tudo isso era a grande obra econômica do Império e o predomínio dos conservadores era a sua expressão política Uma vez que por décadas os destinos das duas partes andaram juntos os fazendeiros de café da região voltaram os olhos para o governo imperial no dia seguinte à Abolição em busca de remédio para seus males Tinham esperanças fundadas até porque o ministério estava em mãos do Partido Conservador De tal modo este estava identificado com a região que os deputados conservadores eram conhecidos como saquaremas os líderes do partido se reuniam na fazenda que um deles o visconde de Itaboraí possuía na cidade fluminense com esse nome Ali se produziu o núcleo do projeto de poder do partido assim definido por Ilmar Mattos Um permanente recomeçar e o eterno desfazer quer no que diz respeito ao monopólio da responsabilidade reivindicado pelo soberano quer no que se refere à transformação do proprietário de escravos e demais monopólios em classe senhorial recomeçar que produzia também um tempo particular o tempo saquarema12 A Abolição pôs fim a esse tempo lento recendendo aos valores do Antigo Regime com ares de eternidade fixados nos poderes monopolistas do soberano refletido na economia pelas transações sem dinheiro permitidas pelo monopólio sobre a produção dos escravos Depois da libertação dos escravos os antigos senhores tornaramse sôfregos tão necessitados de dinheiro como seus antigos escravos ou qualquer mercador E sofreram no novo tempo Mesmo com sua maior base política se acabando com a falta de dinheiro os condutores da política econômica do partido relutaram muito Custavam a acreditar que a necessidade de dinheiro estivesse submetida a algo tão prosaico como oferta e procura Temiam que aumentando a quantidade de papelmoeda em circulação estivessem falsificando a promessa real do valor estável da moeda diminuindo o valor em ouro das notas de papel pela inevitável queda do câmbio que se seguiria e destruindo a sacralidade do poder pessoal do monarca O dilema entre atender às necessidades da sociedade ainda que esta fosse a sociedade qualificada dos antigos senhores e a defesa dos monopólios do rei colocou o ministério exatamente na posição descrita pelo Manifesto Republicano de 1870 como um carro atado a dois locomotores cada qual puxando numa direção O resultado foi a imobilidade com longas e estéreis discussões parlamentares sobre a melhor forma de ajudar os fazendeiros sem prejudicar o compromisso régio com o valor da moeda ou sem romper as cadeias mercantilistas que os acorrentavam ao centro do poder Enquanto isso os fazendeiros penavam economicamente em meio à grandeza pois tinham fazendas gigantescas e cafezais semfim Todavia sem os títulos de propriedade de escravos não conseguiam empréstimos para pagar salários as leis a favor dos proprietários tornavam impossível cobrar empréstimos sobre fazendas de modo que não conseguiam crédito nem mesmo oferecendo toda a propriedade como garantia Com isso os grandes barões do Império foram quebrando um após outro Somente no dia 5 de junho de 1889 mais de um ano após a Abolição o imperador defenestrou o gabinete conservador Dois dias depois os liberais voltavam ao poder com um ministério chefiado pelo visconde de Ouro Preto Desde 1840 quando D Pedro II subira ao trono os saquaremas nunca haviam passado pelo dissabor de serem apeados do poder com maioria parlamentar como havia ocorrido com os liberais em 1841 e 1868 O golpe doeu e a primeira reação foi imediata O programa do gabinete liberal era direto fazer as reformas proposta pelos republicanos criando um Império mais federalista antes que derrubassem o regime Enquanto o visconde de Ouro Preto anunciava seu programa ao Parlamento um deputado muito conservador o padre João Manuel gritou no plenário Viva a República Abaixo a Monarquia Sem um único deputado no Parlamento os republicanos estavam no centro do debate O gabinete liberal queria fazer as reformas que eles propunham e os conservadores estavam indo ainda mais longe defendendo a derrubada do monarca que antes defendiam com unhas e dentes Ao longo de oito décadas de Reino e Império a política conservadora de erguer barreiras às mudanças políticas advindas da soberania popular e às mudanças econômicas em prol do trabalho livre ou favoráveis ao fim da cadeia de créditos mercantilista resultara em uma Nação Mercantilista com uma Constituição de duas soberanias Não havendo mais a escravidão para conservar nem o mercantilismo para sustentar os produtores escravistas o velho hábito de resistir a mudanças deu no que deu uma estagnação total com a elite mais relevante do Império se afogando Nos cálculos dos monarquistas restava ainda a simpatia dos brasileiros por seu monarca ilustrado e assim acenderam as esperanças da Coroa a fim de capitalizar em cima de tal simpatia com um baile para celebrar o brilho da monarquia Seis mil alegres aristocratas sacudiram os quadris na noite de sábado 9 de novembro de 1889 Na mesma noite seis modestos conspiradores foram indicados ministros de um governo que tentaria um golpe republicano Na sextafeira seguinte no dia 15 de novembro nenhum aristocrata apareceu para defender o regime e nenhum brasileiro pobre se incomodou minimamente com a sua derrocada Mas havia sido eliminada a peculiar barreira de duas soberanias que havia isolado o Brasil do progresso capitalista no Ocidente CAPÍTULO 36 Balanço do Império A IMPROVÁVEL FÓRMULA DE JOSÉ BONIFÁCIO JUNTANDO NUM ÚNICO PROJETO DE governo a monarquia do Antigo Regime e as forças iluministas locais acabou funcionando apesar de todas as indicações em contrário A Constituição mescla de projeto de parlamentares com um adendo imperial mantevese em vigência por 65 anos O híbrido sincrético e mestiço suportou tensões extremas desde as desastrosas decisões econômicas tomadas pelo primeiro imperador até as medidas de emergência dos homens da Regência Em meio a tudo o sistema foi se mostrando flexível permitindo acomodações entre os extremos do poder pessoal e do governo democrático Parte desse sucesso se deveu ao fato de que a organização geral das diversas formas e níveis constitucionais de governo foi no geral uma continuidade daquilo que a terra conhecia desde 1500 Havia o governo dos muitos povos indígenas os únicos conhecidos e obedecidos por parcela relevante da população Em 1890 o Censo nacional contou 128 milhão de índios ou 9 da população do país Por impreciso que seja esse número mostra que parte expressiva da população governava a si mesma pelo costume Essa população possivelmente controlava ainda a maior parte do território nacional Em 1890 havia apenas 641 municípios assim as vilas passaram a ser chamadas depois de 1889 no país a maior parte nas proximidades do litoral E em muitos municípios a população conhecia apenas a autoridade de governo de seus representantes eleitos regularmente No Império não aconteceu nenhuma ruptura na tradição das eleições locais nem no governo temporário dos eleitos As províncias instância intermediária de governo acabaram conhecendo uma realidade tão mesclada quanto a das soberanias na Constituição Uma vez que desfrutavam de umas tantas rendas próprias tinham condições de promover alguma atividade administrativa Desde a Regência as províncias contavam com uma assembleia de representantes eleitos que em doses variadas influenciavam os destinos locais Mas o poder de fato era exercido por um delegado do Poder Moderador que em geral permanecia poucos meses no cargo fosse para arrumar uma eleição fosse para arrumar a vida pessoal De qualquer modo a soma das partes era pouco maior que o puro arbítrio dos capitães coloniais Como se viu o governo central acabou sendo efetivamente composto pelos representantes dos dois soberanos o imperador e a Assembleia que tanto se digladiavam como se acertavam O Parlamento não demorou a funcionar conquistou poder e sempre soube achar uma maneira de participar da direção geral do país O ajuste promovido por D Pedro II transformando o ministério no ponto de encontro entre as duas soberanias acabou se mostrando efetivo para uma ação coordenada entre as partes Esse sistema teve capacidade para processar conflitos num ambiente de estabilidade jurídica Essa estabilidade foi maior no que se refere aos compromissos internacionais do país Desde a Regência houve consenso não só no que se referia a sua manutenção como ao estabelecimento de regras formais de atuação entre as duas soberanias Com isso os compromissos foram sempre acertados e honrados sobretudo no que se refere a finanças A política externa não conheceu fissura de nenhuma espécie mesmo no caso das guerras Num século de grande instabilidade na América do Sul a monarquia parlamentar brasileira acabou se constituindo em exceção Num ponto crucial também se registrou um desempenho relativamente positivo o da alfabetização O relativamente neste caso tem mais a ver com o ponto de partida do que com a comparação internacional A taxa de alfabetização passou de estimados 2 para 174 no fim do Império Tratase de um avanço mas o fato é que em 1890 vários países estavam próximos da alfabetização de toda a população Do mesmo modo o regime imperial conseguiu criar alguns cursos de ensino superior sobretudo de direito medicina e engenharia Apesar de toda a cultura do imperador não se fundou nenhuma universidade no período prolongando o atraso multissecular do país E a maior parte das grandes cidades contava no final do Império com tipografias nas quais eram impressos livros jornais e revistas O fato de o país ter eleições regulares e alternância partidária no poder ainda que no nível nacional fossem trocas comandadas apenas de cima incentivou o desenvolvimento de uma imprensa que poderia ser comparada aos modelos ocidentais anteriores ao sufrágio universal até meados do século jornais de tiragens baixas dependentes de publicidade oficial e voltados para a arregimentação eleitoral Mesmo na área territorial sujeita à autoridade dos três níveis de governo que seguiam as leis escritas os poderes efetivos eram inversamente proporcionais à dimensão Os governos locais dispunham de poucos recursos mas eram de longe os mais presentes na vida dos cidadãos Os governos provinciais tinham poucos recursos e poucas franquias sobressaindo apenas em situações específicas Já o governo central detinha uma imensa pletora de poderes conferidos pela lei e uma única figura a do imperador concentrava em si mais poderes que as demais instituições somadas Na prática contudo eram poderes que permitiam apenas como dizia o visconde de Uruguai impedir as mudanças e eram muito pouco adequados para ações transformadoras No que se refere aos serviços prestados à população o governo central contava na prática com os mesmos recursos dos vicereis tropas militares para garantir o poder alfândegas para cobrar impostos e transferir rendas para a sede Apenas no Rio de Janeiro o poder central tinha presença efetiva concentrando gastos e incentivando a economia local Assim os grandes processos nacionais dependiam muito pouco do governo como um todo levandose em conta os seus três níveis Em termos sociais frutificara a miscigenação iniciada com a aliança oferecida pelos Tupi Em 1890 o Censo registrou 44 de brancos embora seja difícil dizer o que isso significava 32 de pardos categoria herdada dos tempos coloniais e 14 de pretos agora que não havia mais escravos A composição multiétnica da sociedade guardava certa proporção com aquela de 1819 Outra unidade forte dada pela sociedade era quase milagrosa uma língua falada e entendida em todo o território por uma população fortemente analfabeta Tanto quanto a língua continuavam relevantes as uniões matrimoniais de forasteiros com mulheres locais agora envolvendo os imigrantes europeus que começaram a chegar nas últimas décadas do Império Quase ninguém escapava até mesmo o senador Taunay conservador e amigo pessoal do imperador ofereceu um dote ao pai e casouse com a índia Antônia enquanto lutava na Guerra do Paraguai e encerrou o casamento ao modo indígena quando voltou para casa Também era universal o catolicismo com as igrejas sendo as únicas oficinas de governo presentes em todos os pontos do território Mas era um catolicismo sincrético feito por padres seculares casados e empresários ritualístico e receptivo a influências das religiões indígenas e africanas Em termos populacionais essa sociedade pouco mais que triplicara de tamanho entre 1819 quando existiriam 44 milhões de habitantes e 1890 ano em que foram contados 143 milhões de brasileiros No âmbito da economia um efeito de longo prazo na atividade produtiva do Império foi o surgimento de significativas disparidades regionais de renda sobretudo no Nordeste onde a produção de açúcar continuou sendo a principal atividade Com todos os percalços esta mantevese competitiva internacionalmente até meados do século XIX Mas aí surgiram usinas mais avançadas com capacidade de moagem e produtividade muito superiores às dos engenhos desenvolvidos no século XVI Para se manter competitivos os produtores brasileiros teriam de investir para se modernizar Mas então toparam com uma série de barreiras a começar pela política cambial do governo toda voltada para tornar mais cara a moeda O sonho da circulação metálica a uma taxa de câmbio alta que perseguiam os conservadores gerou as seguintes consequências para o Nordeste segundo Nathaniel Leff Após a década de 1870 as variações da taxa cambial tornaramse as principais determinantes das variações do preço do açúcar em moeda local A situação do algodão foi parecida Neste produto também as variações na taxa cambial tornaramse muito mais importantes do que a mudança do preço em esterlinos na determinação dos preços em milréis Desta maneira parece ter se desenvolvido um processo de realocação de fatores do Nordeste para o Sudeste do açúcar para o café Em consequência as rendas foram empurradas para os níveis que ofereciam as melhores alternativas ou seja a agricultura de subsistência ou baixa produtividade1 A tais fatores somaramse outros assim descritos por Evaldo Cabral de Mello A ação governamental reforçou os mecanismos deflagrados espontaneamente pelo crescimento da produção cafeeira mediante uma política de centralização do crédito com o fito de privilegiar o grande comércio da praça do Rio de Janeiro e os interesses cafeeiros do vale do Paraíba A reforma de Itaboraí em 1853 que deu monopólio de emissão ao Banco do Brasil foi o principal instrumento de uma orientação financeira que terá acarretado a transferência para a praça do Rio de Janeiro de recursos anteriormente empenhados no comércio negreiro das províncias do Norte particularmente na Bahia onde fora mais vivo Daí que a terminação do tráfico não tenha criado na Bahia e em Pernambuco a euforia observada no Rio de Janeiro dos primeiros anos cinquenta e que abortasse o surto bancário que se havia feito sentir nas principais províncias nortistas nos anos quarenta Na transferência de capitais das províncias do Norte para o Rio tiveram importante papel as sucursais do Banco do Brasil denunciadas em 1866 por um conservador baiano Oliveira Júnior como fatalíssimas às províncias em que têm sido estabelecidas aptas apenas a sugar os capitais provinciais e transportálos para o Rio de Janeiro De 1853 a 1866 as sucursais emitiram 384 mil contos Significativamente a emissão do Norte 275 mil contos era quase o triplo da emissão do Sul 109 mil contos Pela mesma época estimava Souza Franco que o banco havia retirado das províncias um montante quase igual ao total das emissões feitas pelas agências aplicando nelas apenas um nono dos capitais recolhidos2 O banco do governo que recolhia poupança numa região para aplicar em outra não era o único instrumento de política pública para a drenagem de capitais numa região que precisava deles A política fiscal atuava na mesma direção e provocava reações como a do deputado paraense Costa Aguiar narrada por Evaldo Cabral de Mello Para resumir as conclusões de Costa Aguiar enquanto o Norte transferia 21 mil contos para os cofres gerais o Sul recebia 13 mil contos dos mesmos cofres A despeito da crise do açúcar e do algodão o Norte efetua remessas mais de quatro vezes superiores às realizadas pelo Sul3 Eram poucos os movimentos regionais que escapavam à estagnação Na Amazônia o crescimento das exportações de borracha imprimia certo dinamismo a uma economia que sofrera violenta depressão após a Cabanagem E em São Paulo acontecia uma curiosa conjunção de empreendimentos ferroviários acumulação de capital e republicanismo A primeira ferrovia construída com capitais locais foi a Companhia Paulista de Estradas de Ferro Ao ser inaugurada em 1872 o convidado de honra foi o expresidente de província Saldanha Marinho o homem que colocara o poder institucional a favor do empreendimento Naquela altura ele também era o principal líder do Partido Republicano condição suficiente para afastar as autoridades monárquicas da festa como queriam os acionistas A segunda a ser inaugurada foi a Companhia Ituana Os festejos foram cuidadosamente preparados para evitar problemas de maior monta O presidente da província João Teodoro participou de uma rápida cerimônia num dia A grande festa aconteceu no dia seguinte com a realização da Convenção de Itu na qual foi fundado o Partido Republicano Paulista Apenas a quarta ferrovia a Companhia Mogiana promoveu um baile pelo compasso imperial O marido da princesa Isabel o conde dEu fez uma visita de inspeção às obras E em 1875 o imperador Pedro II pôde afinal ser a grande estrela da inauguração da linha Mas logo os empresários paulistas deram mostras de que essas diferenças cerimoniais importavam menos que certos objetivos de negócio A institucionalização das ferrovias havia mostrado um caminho que eles souberam aproveitar Assim que o governo provincial começou a receber dividendos das ferrovias um grupo formado por empresários conservadores como Antônio Prado liberais o marquês de Três Rios republicanos Martinho Prado Júnior e até imigrantes Antônio Proost Rodovalho comerciante português conseguiu a aprovação de um projeto de lei provincial que dava garantias públicas para a abertura de um banco que fizesse empréstimos a agricultores com base na hipoteca de terras e benfeitorias Com a lei provincial em vigor os vários grupos conseguiram uma aprovação dos estatutos do banco nos meandros burocráticos do Poder Moderador que além de tudo resultou numa reforma que abriu pequenas brechas na lei de 1860 aquela que limitava a formação de empresas a conhecida Lei dos Entraves Assim foi lançado o Banco de Crédito Real que logo estava emprestando nada menos do que 65 mil contos de réis onze vezes o valor do orçamento da província de São Paulo A soma de todos os movimentos econômicos da nação durante o Império positivos e negativos foi realizada por Angus Maddison que calculou uma média a renda per capita no Brasil em 1820 e 18904 Para o primeiro ano chegou ao resultado de 670 dólares anuais para 1890 a renda foi de 704 dólares anuais Em outras palavras mostra claramente um período de completa estagnação com crescimento residual de 4 num período de 70 anos Com esse dado se pode passar à comparação do Brasil estagnado com o restante do mundo E nesse caso nenhuma comparação é mais significativa do que aquela com os Estados Unidos já realizada no cenário da virada do século XIX Apenas para relembrar em 1800 os Estados Unidos contavam com 5 milhões de habitantes ao passo que o Brasil tinha 44 milhões Nesse momento o porte das duas economias também era semelhante A partir daí no entanto foi se abrindo um fosso tanto no aspecto demográfico como no econômico Nos Estados Unidos a renda per capita mais do que triplicou entre 1820 e 1900 passando de 13 mil para 4 mil dólares 57 vezes a renda per capita brasileira A maior aceleração se deu no período posterior à guerra que pôs fim à escravidão A população de 35 milhões de habitantes em 1865 saltou para 63 milhões em 1890 um crescimento de 80 em apenas uma geração Apesar de tal incremento a população total dos Estados Unidos era então 45 vezes maior que a brasileira nesse momento a renda per capita cresceu 55 no mesmo período Boa parte desse crescimento se explica pela industrialização Em 1840 a agricultura era responsável por 68 do valor total da produção e a indústria por 12 meio século mais tarde em 1890 apenas 22 do valor da produção total vinham da agricultura enquanto 41 eram da indústria Era uma indústria apenas local desvinculada do setor de exportações A estrutura das exportações dos Estados Unidos não mudou quase nada ao longo do século XIX Em 1800 as vendas de produtos agrícolas correspondiam a 75 do total das vendas externas em 1890 a proporção havia aumentado para 78 Isso se devia ao fato de os Estados Unidos estarem se tornando o celeiro da Europa que também vivia transformações importantes Alemanha e Itália se unificaram como países quase simultaneamente no início da década de 1870 Tal processo implicou a derrocada de privilégios feudais e de nobreza o que levou à mercantilização em massa da produção agrícola assim como à expulsão em massa de agricultores Não à toa os dois países se transformaram nos maiores fornecedores de migrantes para a América Muitos iam para os Estados Unidos e passavam a cultivar em propriedades próprias os produtos que depois eram exportados para a Europa Mas outra parcela relevante da população rural mudouse para os centros urbanos e se transformou em proletariado industrial Assim essas nações recémunificadas em países seguiram o caminho aberto pela Inglaterra e a França na direção do capitalismo O crescimento foi rápido e o modo de produção dominou todo o Ocidente Esse domínio ocasionou a miséria do proletariado e o surgimento de alternativas para a organização da vida social Karl Marx analista dessa tendência de concentração de riqueza e destruição humana foi um dos principais formuladores da alternativa socialista A disseminação mundial do capitalismo trouxe além da miséria operária uma espiral de crescimento da renda per capita que foi registrada por especialistas nas mais diversas economias sobretudo a partir da década de 1870 Apenas entre 1870 e 1900 a renda per capita da Argentina mais do que dobrou passando de 13 para 27 mil dólares Em Portugal o crescimento entre 1870 e 1900 foi de 40 com a renda chegando a 14 mil dólares Até mesmo a Indonésia teve desempenho proporcionalmente melhor que a economia brasileira no intervalo entre 1820 e 1890 com a renda per capita passando de 614 dólares para 670 entre 1820 e 1900 Por maiores que sejam as imprecisões e a falta de compatibilidade entre os dados a tendência geral é clara o século XIX como um todo e o período imperial em particular foi um período de estagnação da economia brasileira e por outro lado de aceleração da economia mundial Foi portanto um período de acentuado atraso para o país na comparação com o mundo Esse foi o cenário encontrado pelos republicanos que chegaram ao poder III 18891930 Primeira República explosão de crescimento Descentralização pesada libera o setor privado e destrava os governos locais políticas ousadas transformam em uma década e meia a economia estagnada numa das que mais crescem no mundo com um sistema político regressivo em relação ao Ocidente A era do muro uma centralização dois resultados CAPÍTULO 37 Governo provisório e ditadura A INSTALAÇÃO DO GOVERNO REPUBLICANO FOI MARCADA POR TRÊS AÇÕES DE NATUREZA diversa uma lei um rito e um ato separados por poucas horas a partir da tarde de 15 de novembro A lei foi o decreto número 1 que proclamava a República como forma de governo a transformação das províncias em estados a união desses estados numa federação chamada Brasil E também dispunha que tudo que o governo decidisse seria provisório durando apenas até o momento em que representantes eleitos fizessem as constituições da nação e dos estados O decreto era lei escrita que marcava uma mudança de teoria Reconhecia um soberano único a vontade dos cidadãos expressa por seus representantes E também atendia à reivindicação federalista ampliando a distribuição desse poder no âmbito geográfico As extintas províncias eram inteiramente subordinadas ao centro os novos estados seriam entidades soberanas e dotadas de maior autonomia Como a lei escrita alcançava apenas a minoria de alfabetizados os novos donos do poder realizaram um rito capaz de comunicar a mudança à maioria analfabeta Assim que se confirmou o controle militar os membros do governo provisório apresentaramse à Câmara do Rio de Janeiro Era um procedimento ritual secular Nos tempos coloniais antes de assumirem o cargo os governadoresgerais vicereis ou capitãesmores seguiam até a câmara da capital de sua área de governo apresentavam suas ordens e pediam reconhecimento às autoridades locais eleitas Durante o Império a versão do ritual acontecia a cada abertura da sessão legislativa com a Fala do Trono e sua resposta uma voz para cada representante das soberanias constitucionais A apresentação aos representantes do poder popular era portanto um rito que muita gente entendia naquele tempo Depois da lei e do rito os novos governantes empenharamse num ato que marcasse a ruptura Na própria madrugada do dia 16 de novembro o monarca deposto e todos os seus familiares foram embarcados num navio rumo ao exílio D Pedro II estava prestes a completar 64 anos de vida e meio século de governo Amava o país e o servira E tinha plena consciência de que seu afastamento do território não era uma questão pessoal Havia uma relação definida constitucionalmente como sagrada e inviolável entre sua pessoa física e aquela de seus familiares e herdeiros com o exercício do Poder Moderador Por isso o navio que levava sua pessoa retirava da cena governamental poderes muito importantes A bordo seguia também o chefe da Igreja Católica no Brasil pois D Pedro II detinha privativamente o comando da Ordem de Cristo Desde 1418 o papado concedera a este o estatuto de chefe de cruzada e com ele toda a administração da Igreja no território dessa cruzada do qual o Brasil ainda era parte em 1889 Intitulado de Padroado por esse poder o comandante recolhia os impostos eclesiásticos o dízimo e podia gastar as receitas como quisesse Também incluía o comando administrativo da Igreja desde a criação de bispados até a nomeação de curas em aldeamentos de índios a permissão e o controle do funcionamento das ordens monásticas regulares a manutenção como próprios do governo de todas as propriedades da hierarquia e a supervisão da formação e das condições de trabalho dos padres entre outras competências O detentor do Padroado só não podia se imiscuir nas questões de fé Mesmo nesse campo porém tinha poderes para evitar decisões que não o agradassem pois sancionava a entrada em vigor das bulas papais na área de seu domínio E no sentido inverso a única decisão relevante de Roma era a escolha do bispo primaz mas apenas entre os nomes de uma lista enviada pelo comandante da Ordem de Cristo Para o exílio também seguia o chefe do Poder Moderador até a véspera a cabeça mística do reino a pessoa sagrada e inviolável O único homem com o poder pessoal de representar a nação e vigiar desde o alto o andamento dos demais poderes Aquele que estava acima da lei detentor de um poder que lhe permitia dar ordens e ser obedecido pelos muito subordinados sem poder ser contestado Que por isso mesmo era irresponsável e não podia ser processado Retirado fisicamente o detentor pessoal do Poder Moderador uma série de comandos que apenas ele podia executar deixavam de vigorar Era o imperador o único que podia nomear e demitir a seu inteiro gosto os ministros que exerciam o Poder Executivo Era ele quem convocava o Parlamento abria as sessões dissolvia a legislatura sancionava ou não as leis tendo imensa influência na vida do Legislativo Era ele quem nomeava e suspendia os juízes dos tribunais superiores E sua influência sobre o Judiciário acontecia também pelo poder pessoal da Graça que lhe permitia perdoar condenados ou conceder anistias Era ele quem controlava o Conselho de Estado órgão assessor do Poder Moderador Entre suas muitas capacidades estava a de autorizar ou não o funcionamento de sociedades anônimas no país de modo que a vida empresarial dependia do humor do imperante Era ele quem nomeava todos os presidentes de província os quais nomeavam todos os funcionários nacionais que nelas atuavam Através desse comando o governo central levou à vitória todos os candidatos que se apresentaram com seu apoio ao longo de meio século nunca o grupo posto no ministério pelo imperador havia perdido uma eleição Era ele quem controlava a presidência do Banco do Brasil por sua vez o grande controlador da poupança nacional e da política de crédito Todos esses poderes mudavam de dono com a partida do navio que conduzia D Pedro II ao exílio Mas ao contrário do que aconteceu quando seu pai renunciou e deixou o Brasil as franquias do Poder Moderador não ficaram apenas suspensas enquanto a direção da nação era entregue a regentes Todos os poderes que deixavam de atuar se concentraram no Governo Provisório com a partida e não apenas eles Como o Parlamento estava em recesso e o Legislativo só voltaria a funcionar na forma da prometida Assembleia Constituinte toda a capacidade de legislar no plano agora federal e não mais central também ficava concentrada nele Não bastasse isso o Governo Provisório comandava o Judiciário E claro exercia sozinho o Executivo Não era todo o governo no país Continuavam a funcionar no território os governos de costume dos povos nativos e os governos eleitos dos municípios como vinha ocorrendo desde séculos Essa era a base sobre a qual os novos donos do poder se propunham a instalar um novo formato de governo Como a promessa era de um governo concebido em conformidade com a soberania popular que elegia o governo das vilas o contraste era levemente amenizado Mas entre a promessa solene e o funcionamento efetivo do governo representativo havia um gigantesco caminho a ser percorrido A rigor desde o início da colonização essa era a primeira vez que ocorria tamanha concentração de poder num grupo tão pequeno de pessoas e sem leis para limitar sua autoridade Mas exatamente por se tratar de um grupo restrito de indivíduos havia um hiato entre as ordens que poderiam dar e sua pronta execução em todo o território a nova cabeça tinha ligações muito precárias com o gigantesco corpo da nação O chefe do governo marechal Deodoro da Fonseca tinha experiência como militar mas na política fora apenas presidente de província por indicação do Partido Conservador O ministro da Guerra Benjamin Constant fora apenas professor da Escola Militar um republicano inexperiente até mesmo no trato com a tropa Somente o ministro da Fazenda Rui Barbosa tinha experiência política fora deputado pelo Partido Liberal e ministro o único em todo o grupo a conhecer a direção do Executivo Esse grupo prometeu no primeiro dia que seria temporária a concentração de poder e que este seria repartido no futuro de acordo com a vontade dos agora cidadãos pois deixava de haver a condição de súdito os quais constituíam a única soberania da nação A diferença entre a promessa e o exercício do poder logo se manifestou Para começar era preciso tempo até que os cidadãos elegessem os representantes que fariam as leis e estas fossem colocadas em execução Na prática em todo esse intervalo deveria funcionar alguma espécie de governo o que requeria muito mais gente do que todos os militantes republicanos e todo o contingente militar Tal dificuldade inicial muito depressa foi percebida como oportunidade O golpe foi numa sextafeira e o imperador exilado no dia seguinte No domingo à tarde uma parte dos 53 fiéis pagantes de uma igreja que se intitulava Apostolado Positivista saiu em passeata pela cidade até a sede do governo onde teriam audiência com um membro expulso da congregação Benjamin Constant agora nomeado ministro da Guerra1 O motivo da expulsão fora a discordância de Benjamin Constant com a maior proposta política do Apostolado nos tempos da monarquia que o imperador ou sua herdeira reconhecendo as verdades científicas pregadas por Augusto Comte renunciassem ao trono em favor de um sucessor que governaria como ditador Este reuniria ainda mais poderes do que o imperador além de todos que lhe estavam reservados pelo exercício do Poder Moderador seria ainda um substituto do Legislativo baixando leis por decreto Além dessa concentração de poder os membros do Apostolado só admitiam algumas pouca restrições ao ditador Primeiro este deveria designar um herdeiro político evitando assim uma sucessão hereditária Segundo a cada três anos uma assembleia eleita se reuniria com a única finalidade de examinar as contas do governo Por fim o ditador seria responsável isto é poderia ser processado pelo Judiciário que ele mesmo nomeava e removia livremente Como nunca surgiu nenhum sinal de que D Pedro II fosse renunciar em favor de um ditador comtiano os membros do Apostolado continuaram fazendo seus encontros regulares nos quais se prestava um culto ao seu ídolo intelectual o filósofo francês Auguste Comte O advento do novo regime fez com que deixassem de lado a contenção anterior e se lançassem na lide política Desfilaram pelas ruas sob um estandarte que iriam entregar ao ministro com uma proposta estabelecer um regime no qual em vez da remoção do poder arbitrário do imperante caído conforme o programa de 1870 e a propaganda de quase todos os partidos republicanos cada antiga província tinha o seu fosse desconectado do carro do Estado o locomotor da soberania popular o poder do cidadão de escolher seu representante e se implantasse uma ditadura Justificavam isso com um manifesto Para nós é fora de dúvida que a monarquia seria eliminada porque a fraqueza dessa instituição proveio de antecedentes históricos como indicamos Vimos aproximarse este desfecho fatal com a segurança de quem espera a realização de um fenômeno astronômico cientificamente previsto menos a determinação do instante em que terá lugar porque os acontecimentos sociais não comportam a precisão matemática Mas a certeza é a mesma Apenas lamentamos que a mesma convicção não exista da parte do Chefe de Estado visto que muitos males seriam poupados à nossa Pátria e à Humanidade se ele nos isentasse do republicanismo democrático Qualquer que seja porém sua conduta estamos certos de que este republicanismo há de ser varrido da cena política para dar lugar à ditadura republicana e isso em futuro tanto mais próximo quanto mais cedo igual transformação operarse em França A sorte do mundo está em Paris2 Essa proposta mostrouse muito atrativa para aqueles que vinham de ser alçados ao poder sem jamais terem tido qualquer espécie de compromisso com a vontade popular Assim foi que o ministro da Guerra fez mais que receber os fiéis e relevar o fato de ter sido expulso do Apostolado Aceitou entusiasmado a sugestão que se seguia ao parágrafo da carta citado acima e que tinha a seguinte redação O governo da República que se inicia deve consubstanciar a nova fase em que entra a nossa Pátria adotando para a sua divisa a fórmula de Augusto Comte Ordem e Progresso Como era tempo de revolução o decreto que transformava o estandarte de um grupo obscuro em bandeira nacional foi publicado já na terçafeira dia 19 sem consulta de nenhuma espécie mesmo entre os republicanos que também tinham um projeto de bandeira Esse é o tipo de sinal que qualquer candidato ao poder é capaz de ler como Eis um governo que aceita sugestões Um dos primeiros a vislumbrar possibilidades com a apresentação de ideias ao gosto dos militares foi o ministro do Interior Aristides Lobo um conhecido jornalista republicano que a vida inteira defendera a soberania popular Mas antes de escrever a última crônica para o jornal ele mudou de ideia sobre o papel do povo no governo para o qual acabara de ser indicado como civil e representante republicano A cor do governo é puramente militar e deverá ser assim O fato foi deles deles só porque a colaboração do elemento civil foi quase nula O povo assistiu àquilo bestializado atônito surpreso sem conhecer o que significava3 Com isso o marechal Deodoro da Fonseca lembrouse que de fato chefiava o governo como ditador e permitiu que o ministro também arrancasse maiores quinhões de poder Em dois dias Aristides Lobo saiu de uma audiência com um decreto assinado pelo qual o marechal subordinava todos os governos estaduais ditos soberanos ao ministro como se este fosse um chefe de gabinete imperial que controlava as nomeações para as províncias E o ministro estreou os novos poderes mandando trocar nada menos que o governo de São Paulo o mais forte dos recéminstalados Assim a promessa da lei decretada no primeiro dia passou a correr riscos sob a investida de aventureiros Mas logo veio a reação dos defensores da soberania popular No dia 3 de dezembro um ministério inteiramente dividido tomou por 3 votos a 2 uma decisão importante nomeando a comissão preparatória do projeto de Constituição o primeiro passo para o cumprimento da promessa de transferir o poder do Governo Provisório na forma determinada pelos representantes eleitos O fiel da balança acabou sendo o ministro Benjamin Constant o mais conspícuo positivista do ministério Militar isento da obrigação de ganhar votos para chegar ao poder era a pessoa com quem os positivistas ortodoxos contavam para sagrar a almejada ditadura No entanto agora estava fazendo um percurso inverso ao do ministro do Interior Líder dos republicanos fardados Constant defendeu contra a pressão de muitos as eleições e a representação do povo pelo voto como mais adequados às peculiaridades brasileiras Mais do que aprovar o projeto ainda apoiou a nomeação para a comissão de dois autores do Manifesto Republicano de 1870 Joaquim Saldanha Marinho e Francisco Rangel Pestana que se juntaram ao republicano Américo Brasiliense e aos liberais Magalhães Castro e Santos Werneck E a decisão foi confirmada por um decreto do marechal Deodoro Os defensores da soberania popular tiveram muita sorte Quatro dias depois no dia 7 de dezembro aconteceu a posse do ministro da Agricultura Demétrio Ribeiro Ela demorou por um motivo político como muitos republicanos não confiavam nos partidários gaúchos simplesmente os deixaram de fora das articulações revolucionárias O maior líder local Júlio de Castilhos recebeu a notícia da vitória pelo telégrafo depois do fato consumado Mas deixaram um ministério reservado a um correligionário dele quando este chegasse à capital de navio Com apenas 26 anos Demétrio Ribeiro revelouse o homem dos sonhos dos apóstolos positivistas Sua posse foi recheada de discursos cuja ênfase era uma só a defesa explícita da transformação da ditadura provisória numa ditadura positivista real e permanente E tal proposta recebeu apoio numa série encadeada de discursos Saudando o ministro em nome da Armada o capitão Nelson de Vasconcelos e Almeida disparou a primeira salva A massa da nação já deu seu apoio à nova ordem Esse apoio só provém da confiança que inspirou o governo provisório por ter sido capaz de assegurar a ordem e progresso da pátria Nós agora fazemos os mais ardentes votos a fim de que concorrais com as vossas luzes para o estabelecimento de um governo definitivo governo que se resuma na concentração de todo o poder político nas mãos de um só homem de Estado Para termos uma República estável feliz e próspera é necessário que o governo seja ditatorial e não parlamentar4 Em seguida foi a vez de Tasso Fragoso representante do Exército Firmado nas lições dessa filosofia que estou certo vos inspiram vos recordamos o pensamento do Egrégio Filósofo quando sintetizou as qualidades características do verdadeiro governo força e responsabilidade5 O próprio ministro empossado encarregouse da carga final Se presentemente a opinião está em atividade se ela todos os dias tem ocasião de pronunciarse sobre os atos do governo parece que não deve haver ansiedade de consultarmos as urnas Senhores consideremos que as urnas se pronunciaram contra a República e a República se fez Um dos defeitos do regime eletivo está justamente nisso cada cidadão no momento em que leva seu voto às urnas supõe por este modo ter dado todas as manifestações de sua opinião Eu não teria tomado a posição que assumi de colaborador do governo se não fora a certeza de que o meu país se acha em condições de se adaptar também a um regime especial Se nós queremos construir a República devemos apoiarnos numa doutrina verdadeiramente orgânica conforme revela esta filosofia a que aludiram os cidadãos representantes do Exército e da Armada6 O aparecimento desse novo defensor da ditadura positivista tornou a divisão de objetivos do governo ainda mais acentuada No entanto apesar da pressão e com o apoio do elogiado Benjamin Constant o marechal Deodoro não sucumbiu ao canto que o tentava como ditador permanente No dia 21 de dezembro de 1889 publicou um decreto que marcava as eleições dos constituintes para setembro do ano seguinte A decisão de convocar eleições foi um divisor de águas Ela comprometia o Governo Provisório com o voto popular e um regime no qual o poder derivava dos eleitores soberanos como haviam pregado quase todos os republicanos ao longo do Império Os positivistas sem qualquer base social relevante para além do estrito círculo do governo provisório e da minguada seção republicana gaúcha engoliram a decisão Para evitar que eles tentassem reagir os republicanos indicados para a comissão constitucional trataram de iniciar o quanto antes os trabalhos E tomaram a decisão de se mudar todos com armas e bagagens para Petrópolis de modo a acelerar o projeto e criar visibilidade durante o longo período em que as eleições seriam preparadas e a ditadura do Governo Provisório fosse a única forma de poder Enquanto isso os ministros republicanos mais comprometidos com a propaganda decidiram reagir Mal eliminavam um poder arbitrário emergia um grupo no interior do governo para trazêlo de volta Para afastar o perigo empregaram a seu favor o fato de estarem trabalhando com um ditador suscetível para também arrancar dele alguns decretos Começaram a apresentar propostas de decisões que iam na direção contrária à da concentração ditatorial transferindo poderes do Estado para a sociedade CAPÍTULO 38 Reformas fundamentais COUBE AO MINISTRO CAMPOS SALES LEVAR PROPOSTAS INOVADORAS AO CHEFE DO Governo Provisório E a inovação nesse caso tinha a ver com uma alternativa iluminista jamais tentada no Brasil empregar a lei para restringir o poder do governo e ampliar o da sociedade Era um conceito quase impossível de ser entendido nos moldes do pensamento corporativo equivalia nos termos deste a fazer o governo cortar uma parte da cabeça para deixar as coisas a cargo do corpo social Ainda que com restrita capacidade de ação efetiva a soma de Constituição códigos partes das Ordenações do Reino que continuavam vigorando e decretos que formavam o conjunto das leis no regime imperial previa que a cabeça tivesse poder para velar com cuidado cada parte da vida de cada súdito pois essa supervisão constituía a essência da ação do monarca com poder uno e divino cuidando do bem comum O máximo de abandono desse poder conhecido pelo país independente haviam sido as transferências de poder para o Parlamento as esferas mais baixas de governo ou no período da Regência entre esferas de governo Campos Sales agiu com rapidez e de forma abrangente No dia 7 de janeiro de 1890 um mês e meio após a mudança de regime o governo publicou um decreto elaborado pelo ministro regulamentando a liberdade de culto no Brasil Com apenas seis artigos ele liquidou cinco séculos de tradição Os primeiros artigos delimitavam barreiras pétreas para a ação estatal proibia qualquer instância de governo de legislar ou regulamentar cultos religiosos permitia a qualquer pessoa ou grupo organizar cultos na esfera privada mas abertos ao público vedava o poder público de intervir nas formas escolhidas pelos cidadãos para organizar cultos Desse modo o Estado era retirado da esfera da religião E no breve artigo 4 determinava que fica extinto o Padroado com todas suas instituições recursos e prerrogativas Em uma linha acabava uma ligação entre a Igreja católica e o governo que vinha ininterruptamente desde 1418 As enormes consequências práticas dessa passagem do controle da Igreja do governo brasileiro para o Vaticano foram processadas em pouquíssimo tempo O governo transferiu para a administração privada do Vaticano não só o comando sobre o clero e a cobrança do dízimo mas também todos os aparatos de culto que faziam parte do patrimônio do Estado uma grande quantidade de propriedades conventos igrejas fazendas imóveis urbanos etc com todas as suas alfaias Além disso também se transferiu para o comando do Vaticano um grupo muito relevante de funcionários públicos os padres Estes formavam a rigor o único conjunto de funcionários efetivamente em ação por todo o país atuando em todos os setores da sociedade A privatização foi rápida e geral E Campos Sales ainda decidiu sobre uma série de atos antes comuns à Igreja e ao governo as certidões emitidas pelos padres eram documentos públicos e os registros clericais tinham validade civil Após ter cedido na esfera do culto o Estado reservou para si as uniões civis instituindo por decreto o casamento civil desvinculado do religioso Dessa vez porém houve reação Os padres passaram a pedir aos fiéis que casassem apenas na igreja evitando o pecado da cerimônia civil Em meio à polêmica Campos Sales apelou para a força publicando um decreto pelo qual o casamento civil deveria preceder o religioso sob pena de invalidação do último Em seguida vieram a secularização dos cemitérios e a instituição do registro civil de pessoas A aceitação também foi rápida geral e completa O Vaticano mandou pencas de padres estrangeiros treinados na obediência ao papa para assumir postoschave os padres brasileiros logo se acostumaram com a ideia de viver longe do governo os fiéis católicos continuaram indo à missa e às procissões os adeptos de outros cultos passaram a organizar suas comunidades e abrir seus templos A sociedade tolerante estava mais do que preparada para a nova realidade A reação à retirada dessa supervisão e controle governamentais foi bem mais amena do que na onda subsequente de decretos Nos primórdios do novo regime Rui Barbosa agiu como se fosse um ministro sem grandes ambições Discutia pouco e empregava seus conhecimentos de redator de leis apenas a pedido do marechal Deodoro Mas a modéstia era aparente Entre todos os ministros foi o que melhor soube cultivar as relações com o chefe do governo que com poderes ditatoriais podia fazer o que bem entendesse com seus auxiliares O valor desse relacionamento ficou claro no final de novembro de 1889 quando Deodoro teve mais uma crise de asma Achando que poderia morrer baixou um decreto definindo uma linha de sucessão O primeiro a assumir o poder seria Rui Barbosa seguido pelo militar Benjamin Constant No dia 17 de janeiro de 1890 os demais ministros se deram conta de quanto valia tal intimidade com o centro do poder Nessa data conheceram o teor de quatro decretos redigidos pelo colega lendo o Diário Oficial pois não haviam sido consultados Em tempos de ditadura tanto os membros de um pequeno clube podiam tornar sua bandeira aquela da nação como um ministro convincente podia introduzir alterações radicais nas relações entre governo e sociedade no campo da economia tendo como base apenas a sua boa relação com o general no comando Cada decreto mudava um mundo O primeiro tratava do lugar dos empresários na sociedade e foi promulgado com o número 164 Seu artigo primeiro tinha uma redação simples e direta As companhias ou sociedades anônimas seja civil ou comercial o seu objetivo podem estabelecerse sem autorização do governo Com essa única frase uma secular prerrogativa do governo central a de autorizar e regulamentar o funcionamento das empresas era declarada como algo fora do controle estatal e dependente apenas do livre arbítrio de cada cidadão Até a véspera uma sociedade anônima só podia começar a funcionar depois de redigir estatutos arranjar dinheiro para compor o capital deixar tudo isso esperando enquanto a papelada era mandada para a capital do país à espera da aprovação do Conselho de Estado e da permissão do governo tutelador para o início do seu funcionamento Com o decreto a decisão de transformar a poupança pessoal em investimento por meio de aplicação numa empresa tornavase o exercício livre de um direito do cidadão e ao governo cabia apenas registrar a papelada e verificar se estava de acordo com a lei O Estado deixava de considerar uma ameaça o detentor de poupança que tinha a intenção de investir Também deixava de supor que a decisão de investir era uma arte que estava além da capacidade dos súditos e portanto exigia supervisão da Coroa Só esse parágrafo já era uma espécie de Lei Áurea para os empresários mas havia mais Um dos artigos alterava a natureza da responsabilidade do empresário em relação ao modo como poderia ser processado A responsabilidade dos acionistas de empresas tornouse restrita ao capital aplicado nas ações Desse modo introduziase uma separação entre os investimentos numa empresa e a pessoa física do empresário algo que a legislação imperial vedava e com isso mantinha a dependência pessoal no centro da atividade econômica Essa separação fundamental foi estendida a todo tipo de empresa Valia também para as chamadas sociedades em comandita a forma de organização das pequenas empresas da época quase um pequeno fundo de investimentos Dessa maneira foi possível dissociar por inteiro o tratamento da pessoa jurídica do empresário e o da sua pessoa física ou em outro sentido isso colocava a empresa privada sob proteção da lei o que tornou possível aos pequenos empreendedores saírem da informalidade para fazer negócios em público Na mesma velocidade da privatização da Igreja católica o decreto acabava com um enquadramento secular A supervisão do governo sobre a atividade empresarial seguindo os princípios corporativistas vindos do Antigo Regime mantivera o mercado nas casas e o afastara da proteção pública A expressão particulares para se referir aos negócios oposta ao bem comum da supervisão imperial deixava de ter sentido Em seu lugar aparecia na lei a distinção entre a esfera privada a da livre ação empresarial e a pública a da lei que protege os negócios lícitos O segundo decreto do dia de número 165A incidia sobre o estatuto jurídico da propriedade agrária Desde o século XVI embora a terra fosse mercadoria vigorava a fórmula medieval segundo a qual não podiam ser executadas propriedades com atividades complexas engenhos ou grandes fazendas de café por exemplo Por causa disso havia grande dificuldade para aceitar essas propriedades como garantia de crédito O decreto de Rui Barbosa abria o caminho para que os proprietários agrários emitissem eles mesmos um título de penhor sobre a propriedade ou parte desta Tornavase possível assim que o penhor agrícola se realizasse num contrato direto entre o proprietário e o fornecedor de crédito e obrigatoriamente deveria ganhar registro público Assim o papel do Estado se resumia a garantir em público os negócios privados permitindo que qualquer pessoa pudesse ter acesso aos registros Agora os interessados em conceder empréstimos podiam tanto conhecer a situação creditícia de cada propriedade como executar os títulos em caso de inadimplência Rui Barbosa tinha clareza quanto ao objetivo do decreto Na essência a questão não é a da liberdade contra o privilégio mas da Lei de Torens contra as Ordenações do Reino1 Os resquícios do direito feudal sobre a propriedade de terra que o Brasil aplicava começavam a ser substituídos pelo direito comercial capitalista O terceiro decreto de número 169A regulamentava todas as hipotecas e as formas de sua cobrança Criava para vários títulos de propriedade a mesma situação legal dos bens agrícolas a possibilidade de que o proprietário emitisse um título de crédito sobre essas propriedades entregandoo em garantia de um empréstimo Casas joias bens móveis ou qualquer propriedade tornavamse assim instrumentos para a obtenção de crédito e objetos seguros para serem tomados como garantia pelos emprestadores Essa lei alterava os direitos sobre outras propriedades na mesma direção promovendo uma radical modificação do papel do Estado na área As Ordenações do Reino mantidas pelo Império como direito civil regiam os direitos de propriedade sobre objetos ao modo medieval lidavam com eles como se fossem posse assunto para chefes de unidades econômicas particulares cujo domínio sobre elas estava assentado na tradição Agora a propriedade das coisas adquiria caráter mercantil era definida em legislação claramente burguesa a propriedade passava a ser delimitada pela lei e a lei que garantia a propriedade era a mesma que a transformava em mercadoria plenamente alienável Mas o quarto decreto era ainda mais importante afrontava radicalmente fundamentos tidos como sagrados pelos pensadores do Partido Conservador da monarquia decaída Fazia isso ao regular o lugar legal do dinheiro na vida da sociedade brasileira Ao longo do Império as relações entre Estado e sociedade no que se refere ao dinheiro eram alocadas à esfera do poder pessoal do monarca que determinava como sagrado o valor da moeda na qual não cabia interferência dos súditos Rui Barbosa consciente da importância da mudança justificaria mais tarde o ato começando pelas emissões de dinheiro que ordenou Os auxílios em papelmoeda caíram sobre o mercado ávido como gota dágua indiferente Foi entre essas perplexidades e sob o aguilhão desses perigos que recorri à salvação possível em semelhante conjuntura assentar como os Estados Unidos tinham feito em circunstâncias análogas e sob a força de iguais necessidades a garantia do meio circulante sob os títulos da dívida nacional Essa instituição não tardou em se recomendar pela experiência imediata de seus efeitos às simpatias de todas as classes laboriosas como o maior acelerador que já se concebeu neste país da prosperidade do trabalho como o maior difusor do crédito o mais enérgico propulsor de nosso movimento industrial2 A legislação norteamericana a que ele se referia era o National Banking Act de 1863 A opção era justificada no mesmo texto pela análise que Mauá fizera da moeda de papel brasileira em sua época e que terminava propondo uma alternativa semelhante Essa legislação norteamericana criou uma moeda de dupla face o comércio exterior e as transações internacionais do governo impostos de importação e pagamentos de juros por exemplo passaram a ser realizados com um câmbio fixo em ouro Nas transações internas a moeda de papel não tinha lastro metálico e seu preço era flutuante Embora as duas moedas se chamassem dólar havia deságio ou ágio entre ouro e papel com o valor do último quase sempre flutuando abaixo do par As receitas alfandegárias do governo eram pagas pelos importadores em ouro O modelo aceitava a regulagem do volume de papelmoeda segundo os ritmos diferentes da oferta e demanda nos mercados interno e externo Admitia flutuações e distribuía seus riscos de maneira diversa Acentuava aqueles de importadores ao mesmo tempo que protegia as receitas governamentais advindas do comércio exterior assim como os produtores do mercado interno cujos preços mantinhamse estáveis na moeda de papel interna Rui Barbosa portanto queria retirar o governo da disputa por divisas no mercado como dizia o texto a medida desembaraçava o Tesouro das flutuações da praça e desembaraçava o movimento da praça das oscilações do Tesouro3 e obter recursos externos para o governo pagar suas dívidas diretamente na alfândega ao mesmo tempo que aumentava o fornecimento de dinheiro de papel para a economia pósescravidão O quarto decreto portanto foi inteiramente pensado como uma forma de transferir poderes antes exclusivos do Poder Moderador no caso a determinação da quantidade de moeda para o âmbito do mercado que a fixaria através de compras e vendas E fazia isso alterando a ordem de prioridades no lugar da estabilidade dos valores que interessava aos atacadistas importadores e financiadores externos do governo os melhores amigos do Poder Moderador o objetivo econômico central do governo passava a ser o de incentivar a produção capitalista no setor privado interno que ganhava margem monetária para correr riscos e moeda para liquidar as transações antes encerradas em cadeias de fiado dependência e lentidão Steven Topik resumiu a mudança de prioridades da política governamental começando por uma descrição dos grandes interesses em jogo Agricultores de produtos de exportação ou para o mercado interno tanto quanto industriais locais e banqueiros geralmente apoiam políticas monetárias que facilitem a obtenção do dinheiro e o crédito Uma queda do milréis protegia fazendeiros e industriais que vendiam no mercado interno na competição com os produtos importados4 Mas havia também representantes dos interesses exatamente contrários No outro lado da política monetária estavam importadores consumidores urbanos de produtos importados investidores estrangeiros e defensores dos tesouros imperial e provinciais Esses grupos pressionavam pela restrição do suprimento de dinheiro e preços estáveis A moeda valorizada significava que o governo tinha de pagar menos milréis por suas dívidas externas No balanço entre as pressões opostas os pratos da política imperial penderam para um lado A política monetária do Império dominada pela visão do Partido Conservador de dinheiro apertado e taxas altas de câmbio exceto nos poucos intervalos liberais favorecia pessoas ligadas aos produtos e capitais europeus5 Em termos políticos tratavase de uma aliança entre o governo central e os importadores em prejuízo dos produtores nacionais Uma aliança dessa espécie onde o governo atua contra os produtores do país só pode prosperar numa situação na qual o governo concebe a si mesmo como estando acima da sociedade e assim era o Poder Moderador como um dia havia sido o poder metropolitano A política de Rui Barbosa tinha o objetivo oposto daquele que até então dominara a esfera maior de governo no território E tal objetivo vinha a ser o mesmo do governo de qualquer outro país na era capitalista fomentar a riqueza da nação favorecer os produtores ligados ao mercado interno e transferir os riscos das oscilações cambiais para os importadores garantindo a renda dos produtores nacionais Seria na visão de Topik uma política monetária muito mais beneficiadora da produção interna que a do Império6 Por isso somando tudo que havia nos quatro decretos o dia 17 de janeiro de 1890 assinalou uma revolução no campo da economia Não ficou pedra sobre pedra da antiga política econômica imperial E a maior parte das mudanças consistiu em retirar o Estado da função de protetor de grupos amigos contra os riscos do mercado e na via inversa proteger pela lei a ação dos empresários atuando em ambiente competitivo antes relegados ao plano secundário da informalidade O choque foi imediato A reação da imprensa carioca foi violenta o ministério se dividiu a crise se instalou Acabou resolvida numa reunião que durou a noite inteira com o pedido de demissão dos civis que haviam defendido a ditadura positivista Demétrio Ribeiro e Aristides Lobo Demétrio Ribeiro foi substituído por Francisco Glicério e a paralisia no ministério foi substituída por uma atividade frenética O novo ministro inverteu o ritmo de uma decisão crucial tomada em sua pasta aquela de regulação legal e autorização de concessões para investimentos privados de infraestrutura Enquanto o Conselho de Estado era lento ele foi rápido limpou as gavetas e aprovou os projetos existentes O sentido de suas decisões foi o mesmo transferir atividades antes reservadas ao escrutínio do governo para a esfera privada Já Aristides Lobo foi substituído por Cesário Alvim tão prudente quanto os mais prudentes conservadores A primeira decisão importante de sua pasta foi o decreto que regulamentou a eleição dos constituintes E Alvim em vez de reformar e ampliar os poderes dos eleitores estreitou ainda mais as franquias e ampliou o controle de funcionários do governo sobre o pleito Todas as proibições imperiais inclusive a do voto dos analfabetos foram mantidas Com isso se criaram ritmos muito diferentes de mudança Enquanto as esferas da vida civil e da atividades econômica eram objetos de mudança radical na esfera da vida política foi mantida a tutela vinda do último período imperial restrição às franquias que as tornavam regressivas em relação ao Ocidente e manutenção da tutela dos funcionários sobre o eleitor Mas no geral o período de transição até a convocação da Assembleia Constituinte foi marcado por medidas legislativas que traziam mudanças substanciais em relação às Ordenações todas no sentido de aumentar os poderes da sociedade e diminuir a ingerência do governo na vida dos cidadãos Quando a Assembleia Constituinte começou a funcionar ficou clara uma nova divisão nas concepções de mundo Não havia nela ninguém que defendesse a monarquia nem a dupla soberania Mas também logo ficou evidente que nem todos os republicanos defendiam a soberania popular e o governo baseado em autoridades eleitas e responsáveis O incipiente conflito político entre positivistas e republicanos históricos transferiuse para o ambiente parlamentar embora este próprio ambiente já criasse uma situação difícil para os defensores de uma ditadura Ainda assim eles lutaram tentando fazer voltar para trás as mudanças econômicas de Rui Barbosa O presidente da Constituinte o senador paulista Prudente de Morais percebeu o perigo e impôs um ritmo de marcha forçada em dois meses entre novembro de 1890 e janeiro de 1891 a Constituição estava aprovada Trazia novidades importantes A maior delas era o reconhecimento de uma soberania única da qual derivam todos os poderes do governo divididos pela Carta segundo dois critérios De um lado havia os três poderes de outro as três instâncias de governo O reconhecimento de um único poder soberano derrogava o Poder Moderador na esfera da lei escrita e a desigualdade na esfera da teoria como valores aceitos para se fazer leis Já a redivisão territorial do poder soberano único aumentava muito a independência dos estados transformados em entes de governo com muito mais autonomia do que as províncias imperiais incluindo receitas tributárias a eleição dos governadores e de seus parlamentares Assim o Brasil ganhava uma Constituição que impunha o corolário maior do pensamento iluminista a soberania popular como fonte única de poder legítimo e a igualdade e universalidade como princípios lógicos para a criação de leis Assim em tese toda lei deveria ter abrangência universal todo poder legítimo derivaria do voto até a autoridade maior do Executivo o presidente da República deveria ser eleita pelos cidadãos A regra geral se invertia até a véspera a desigualdade expressa nas duas soberanias e o modelo moral da natureza que criava senhores e escravos era fundamento lógico do sistema legal e os hábitos igualitários que deram sentido à formação do Brasil ficavam relegados à esfera do costume desalinhados em relação à lei Agora as concepções de bons governos fundados na desigualdade eram postas fora da lei ainda que estivessem longe de desaparecer A própria existência de defensores da ditadura na Assembleia Constituinte era uma mostra clara de que por baixo da nova lei havia gente que defendia algo que agora estava fora da lei e restava apenas como costume informal a crença na superioridade de uns sobre outros na desigualdade nos arbítrios Mesmo deixando de ser regra constitucional esses valores continuavam sendo importantes e validados por leis menores A Constituição não derrogou leis que não a contrariassem desse modo ficaram valendo ainda partes relevantes das Ordenações do Reino e muita jurisprudência anterior Mas as prioridades foram invertidas Com teoria do bom governo e símbolos trocados para as fórmulas iluministas começava uma nova era de mudanças e resistências CAPÍTULO 39 Nova lei velhos costumes O MARECHAL DEODORO DA FONSECA ESTAVA COM 63 ANOS DE IDADE QUANDO assumiu a presidência da República Seu renome se devia a vitórias em combates na Guerra do Paraguai nos quais sobressaíra em bravura Como o grande líder do Exército após o conflito essa condição foi muito importante ao comandar a derrubada do Império Não era um neófito em política Militante do Partido Conservador fora indicado para a presidência da província do Rio Grande do Sul na qual a presença do Exército era a mais significativa no país um quarto de todas as tropas ali ficavam aquarteladas Enquanto chefe do Governo Provisório com todo o poder de governo reunido em suas mãos uno e indivisível como o do imperador deposto revelouse competente para regular a diversidade de opiniões dos ministros delegar poderes quando necessário arbitrar conflitos manter a autoridade Assim ganhou respeito e força no comando político Mas seria impróprio afirmar que conhecia a teoria da divisão de poderes que sustentava a mudança de regime Desde que passou a funcionar a primeira instituição com poder derivado da soberania popular a Assembleia Constituinte ou seja desde que efetivamente começou a valer a divisão de poderes clássica da organização iluminista o ditador passou a demonstrar um desconforto crescente Começou dando ordens verbais aos ministros que tinham relações com o Parlamento determinando orientações para os congressistas Estes continuaram a fazer o que queriam fazer exasperando ainda mais o marechal que passou das ordens verbais às escritas e registradas nas atas das sessões ministeriais mas nada mudou Deodoro aguentou o desgaste e soube empregar o melhor de seu aprendizado militar para ganhar força na disputa pelo cargo de presidente Como detinha o controle das forças armadas ele o usou como ameaça em várias ocasiões instilando um sentimento de temor na maioria do Parlamento onde conquistou o apoio dos congressistas conservadores No processo foi perdendo o apoio dos ministros civis Enquanto a Constituinte corria esses profissionais do poder acabaram criando uma imagem para cada ato que faziam por vontade do ditador e a contragosto Engolir a espada Porém quando a Constituição ficou pronta e a sua aprovação garantida pedirem demissão coletiva No dia da promulgação da Constituição o marechal Deodoro da Fonseca deixaria de ser ditador O comando do Executivo passaria a um presidente da República Para evitar o vazio de poder criouse um dispositivo legal determinando uma exceção o primeiro presidente seria eleito de modo indireto pelo Parlamento E nessa eleição o ditador Deodoro da Fonseca derrotou o parlamentar Prudente de Morais Desde o primeiro dia o governo do presidente Deodoro aquele que inauguraria a função de velar pelas instituições republicanas da soberania única e dos poderes divididos foi marcado por decisões que ao contrário do que acontecera no período de ditadura não eram exatamente inovadoras A interpretação do presidente sobre seu papel foi a de que afinal chegara a hora de deixar de lado a conciliação das divergências para agir de acordo com sua vontade pessoal como se imperador fosse Montou um ministério só com amigos obedientes O único com experiência política era o barão de Lucena uma espécie de tutor colocado pelo Partido Conservador para guiálo quando fora nomeado para os primeiros cargos políticos ainda no Império Saquarema empedernido o barão governava para sua facção e não ligou muito para a nova Carta reiterando o que lhe ditava o costume Sugeriu ao presidente que impusesse sua autoridade à nação como faziam os ministérios no regime decaído começando pela derrubada dos opositores nos estados e neles colocando aliados Para fazer funcionar o antigo mecanismo num molde legal que definia o governador como chefe de um poder soberano em sua área territorial aproveitouse uma brecha legal um artigo das disposições transitórias da Constituição mantinha o poder de nomear delegados do governo central no comando dos estados até que estes tivessem Constituição própria Ideia aceita pelo chefe o barão agiu Para mostrar quem mandava começou por São Paulo terra com mais republicanos no país mas também do candidato ao cargo que fora derrotado Na primeira semana no posto como delegado do presidente o barão de Lucena nomeou Américo Brasiliense para governador por carta Nela constava o seguinte trecho Fiquei convencido que a política exclusivista que em São Paulo se procurava fortalecer não era coisa agradável para a grande maioria dos paulistas convencido disso entendi que prestaria um serviço a essa bela terra pela qual sempre tive profunda simpatia proporcionandolhe ensejo de se habilitar convenientemente para a nova organização política que terá de firmar O vosso nome me foi citado como o mais idôneo para desempenhar a difícil tarefa de constituir a pátria paulista1 Na concepção do barão de Lucena a vontade do ministro substituiria com vantagem a escolha do povo paulista na determinação do que seria o bom governo mais que os eleitores ele sabia aquilo que seria agradável à maioria e por isso prestava o serviço essa era a linguagem dos atos decisórios do imperador de nomear o delegado que desempenharia a tarefa de constituir as leis em substituição aos representantes dos eleitores A primeira medida do novo governador foi a de montar ele mesmo a chapa dos candidatos à Constituinte Embora insuspeito de monarquismo Brasiliense agiu como faziam os antigos presidentes de província no Império para fabricar eleitos a seu gosto partidário Decidiu sobre candidaturas oficiais no palácio como se a indicação dos candidatos e o controle das urnas não tivesse nada a ver com partidos nem com a vontade dos cidadãos no novo regime Mesmo sendo republicano histórico o governador atentou mais do que contra a teoria Ignorou um costume democrático da agremiação que criara e que ele mesmo seguira enquanto esteve fora do poder Como nos tempos imperiais o Partido Republicano Paulista existia apenas na sociedade e o governo nada tinha a ver com suas decisões Os dirigentes eram eleitos em assembleias os candidatos eram indicados em convenções No ideal da propaganda e na letra da lei republicana essa deveria ser a regra nacional quando estivessem no poder O governador decidiu outra coisa em palácio ao modo imperial formou uma comissão de 20 membros para indicar os candidatos que apoiaria Dessa comissão faziam parte os dirigentes do antigo Partido Conservador como o barão de Jaguara e também do extinto Partido Liberal como o conde do Pinhal Entre os republicanos históricos apenas José Alves Cerqueira César Júlio Mesquita Luís Pereira Barreto e Martinho Prado Júnior A chapa palaciana venceu a eleição também no velho molde imperial O instrumento foi o de sempre prosseguindo na mesma toada agora nos municípios A perseguição que incluiu republicanos foi comandada por Martinho Prado Júnior Todos os candidatos oficiais foram eleitos nenhum dos líderes do partido que protestaram conseguiu algo Enquanto os costumes antigos ressuscitavam até mesmo entre os republicanos paulistas as intervenções de Rui Barbosa na economia abriam caminhos para os empresários e empreendedores locais Nesse caso a lei que conferiu aos cidadãos o poder de formar empresas sem autorização do governo somada às garantias de crédito e à maior oferta monetária provocaram uma mudança radical na dinâmica do setor privado Atualmente essa explosão ainda está sendo avaliada pelos econometristas E o motivo de ainda haver divergências sobre os números é que na época do Império a desconsideração do desempenho do setor privado pelos dirigentes das políticas públicas era absoluta Tanto quanto os costumes dos súditos analfabetos tudo que se referia aos interesses do mercado interno era invisível para o governo imperial Também por isso os dados apresentados em seguida são construções recentes mostrando tendências que foram por muito tempo ignoradas pelos historiadores habituados a lidar apenas com a documentação tradicional Esses números revelam uma tendência clara no mercado interno Depois de um século de imobilidade tudo começava a se mexer depressa Para começar apareceu dinheiro Em setembro de 1890 o papelmoeda em circulação crescera 35 em relação ao estoque de 17 de janeiro passando de 212 mil para 285 mil contos nesse período de apenas nove meses de vigência da nova lei O volume maior de dinheiro ajudou muitas pessoas com recursos a se enquadrarem como empresários formais Assim o mercado escondido nas casas particulares observado pelo frei Vicente do Salvador em 1625 encontrou afinal um caminho para funcionar sob a égide da autoridade pública Em São Paulo o número de bancos saltou de 5 para 22 entre 1889 e 1890 Os maiores destaques foram o Banco do Comércio e Indústria para o qual a família Prado a mais rica da cidade transferiu parte de seu patrimônio e de seus negócios ao ajudar a formar o capital de 34 mil contos o Banco de São Paulo onde sobressaíam os antigos membros do Partido Liberal como o conde do Pinhal e cujo capital inicial era de 29 mil contos e sobretudo o Banco União uma instituição emissora nos moldes republicanos e controlada pelos Morais Barros com capital de 112 mil contos No interior o Banco dos Lavradores de Campinas reuniu um capital de 39 mil contos Para efeito de comparação em relação aos recursos antes condenados à informalidade e que agora eram transferidos para empresas na forma da lei o orçamento do estado de São Paulo previa gastos de 4 mil contos em 1889 Com dinheiro na praça e bancos em funcionamento o crédito formal se multiplicou numa velocidade ainda maior Em São Paulo apenas no ano de 1890 os contratos de empréstimo dos bancos registrados em cartório cresceram de 317 mil contos de réis em 1889 para 773 mil contos de réis no ano seguinte ou seja um crescimento de 145 em um ano um ritmo sete vezes maior que o crescimento da moeda em circulação2 Quem pegou o dinheiro nos bancos Quase sempre empresários que resolveram ao mesmo tempo registrar suas empresas e usar o crédito tanto para aumentar o capital como para investir A fatia do leão dos novos créditos em São Paulo foi absorvida por indústrias organizadas como sociedades anônimas que saltaram de 4 para nada menos de 64 nesse ano3 E a multiplicação das ações encontrou tomadores mesmo num ambiente em que as maiores sociedades anônimas locais as ferrovias aproveitavam a oportunidade para lançar grandes lotes de novas ações para assim financiarem a rápida ampliação da malha viária E tudo isso não foi nada diante do que ocorreu em seguida Em 1890 e 1891 foram lançadas nada menos que 210 grandes sociedades anônimas de capital aberto em São Paulo Desse total 89 correspondendo a 424 dos lançamentos eram resultado da reorganização formal de negócios que não encontravam guarida legal sob a legislação imperial aquela que se orgulhava de proibir empresas e autorizar apenas uma dúzia de sociedades anônimas em todo o país Mas havia capital para lançar e colocar em funcionamento nada menos de 73 empresas novas a maior parte delas no setor industrial E não se tratava de um movimento apenas local No Rio Grande do Sul os bancos passaram de dois para dez ao longo do ano No Rio de Janeiro apesar da crise do café também havia movimento Em novembro de 1889 a capitalização total das sociedades anônimas era de 813 mil contos nos primeiros meses da República até outubro de 1890 chegou a 198 milhão de contos Parte do incremento era riqueza nova mas o grosso era efeito apenas da mudança de estatuto jurídico que incentivava a passagem da fortuna pessoal para a formal4 Mais crédito não significa mais produção o indicativo monetário poderia ser apenas de aumento de preços com os mesmos volumes de produção Entretanto a movimentação de mercadorias também indicava uma direção positiva Nas duas principais ferrovias de São Paulo a tonelagem do café transportado entre 1885 e 1890 registrou um crescimento de 30 na maior linha do estado a SantosJundiaí Mas esse grande crescimento nem se comparava ao das mercadorias transportadas para o mercado interno que aumentou nada menos de 99 em tonelagem portanto volume físico não financeiro no mesmo período Como resultado do aumento do transporte interno a fatia do café no movimento total da ferrovia caiu de 37 para 24 Na Companhia Paulista que cortava a maior região produtora do estado o crescimento do transporte de café foi de 36 ótimo resultado mas nada comparável ao aumento de 105 nos demais produtos Assim a porcentagem do café no movimento total caiu de 44 para 29 A importância do mercado interno revelouse ainda mais crucial no Rio de Janeiro Ali nem toda a montanha de crédito foi suficiente para evitar uma rápida queda da produção cafeeira que desaguava no porto carioca Em 1885 a Central do Brasil era a maior mas não a única transportadora do produto conduziu 172 mil toneladas de café volume 53 maior do que as 112 mil toneladas transportadas pela SantosJundiaí única ferrovia que levava cargas ao porto de Santos Cinco anos depois em 1890 os carrregamentos de café da Central do Brasil cairiam para 82 mil toneladas apenas 47 do volume registrado no período anterior Apesar dessa queda dramática o movimento total de cargas na Central do Brasil cresceu 13 de 429 mil para 483 mil toneladas o que foi possível apenas porque o volume das demais mercadorias saltou de 258 mil toneladas para 411 mil um crescimento de 60 no mesmo período No cômputo global o café representava 40 das cargas da ferrovia em 1885 e apenas 17 cinco anos depois Embora com menos detalhamento o mesmo crescimento pode ser entrevisto no restante do país O total das mercadorias transportadas pelas ferrovias brasileiras como um todo cresceu 25 apenas nos dois anos entre 1888 e 1890 passando de 163 para 203 milhões de toneladas5 Nada disso se deve ao mercado externo uma vez que entre 1889 e 1890 as exportações totais do Brasil decresceram passando de 1388 milhões de dólares para 1282 milhões6 Como nos tempos do marechal Deodoro esses dados estatísticos nunca chegavam aos homens que decidiam depois de promulgada a Constituição os atos de governo ainda levaram muito em conta velhos costumes agora à margem da lei e não o nítido progresso interno e tampouco uma inesperada crise externa No dia 19 de novembro de 1890 o banco Barings anunciou em Londres que estava suspendendo pagamentos devido a um problema com seus investimentos em títulos argentinos A notícia desencadeou uma crise no mercado de capitais inglês que afetou o valor dos títulos não só da Argentina mas de todos os países da região Mitchener e Weidenmier explicaram o processo de contágio Os investidores europeus venderam ou reduziram suas posições para todos os governos da América Latina como forma de diversificar seu risco regional o que provocou quedas dramáticas nos títulos7 Junto com a queda no valor dos títulos ocorreu uma drástica inversão nos fluxos internacionais de dinheiro na economia brasileira Em 1889 no auge das entradas o país absorveu 124 milhões de libras só de investimentos Com a crise ao longo de todo o ano de 1891 viriam apenas 540 mil libras8 Essa redução violenta tinha pouca relação com a situação interna da economia Deu se em toda a América Latina e teve proporções semelhantes em todos os países A razão era uma só o dinheiro deixava de vir porque os investidores ingleses precisavam dele em casa Em vez de emprestar os bancos estavam executando seus credores que se viram obrigados a repatriar os recursos A avalanche teve início ainda na gestão do ministro Rui Barbosa Ele tinha consciência do ponto onde o impacto seria mais forte com oferta drasticamente reduzida era mais que razoável imaginar um aumento de preço da libra esterlina para os detentores de milréis Sabia também quais eram os maiores candidatos a ficar com a conta os importadores Obrigados pelas novas leis a pagar impostos em ouro eles arcariam com toda a variação cambial para baixo sendo forçados a despender mais moeda nacional a fim de pagar a taxa alfandegária pelo valor da mercadoria em moeda estrangeira Essa penalização por outro lado seria um alívio para o próprio governo que receberia a moeda estrangeira comprada mais cara pelos importadores sem correr riscos e assim saldaria suas dívidas A rápida reação do ministro preparou um caminho para enfrentar a tempestade Restringiu as autorizações para as emissões dos bancos além de determinar um aumento na margem de segurança dos empréstimos bancários de olho nas taxas de juros Mas sobretudo o ministro provocou a fusão dos dois maiores bancos do país de modo a que formassem o Banco da República dos Estados Unidos do Brasil Foi nesse momento delicado que aconteceu a eleição do marechal Rui Barbosa foi demitido e um amigo do barão de Lucena acabou indicado para o cargo Tristão de Alencar Araripe era advogado civil e embora muito fiel e obediente não estava à altura das novas funções Mal e mal sabia imitar as atitudes dos ministros conservadores do Império diante das crises externas aumentar o impacto delas restringindo o crédito Nos tempos em que o Banco do Brasil dominava o circuito de crédito interno isso era feito com um simples aumento das taxas de desconto Como agora havia muitos circuitos de crédito privado em novos setores o ministro resolveu começar proibindo a venda de ações que considerava pura agiotagem como o visconde de Itaboraí meio século antes Forçado a voltar atrás depois de lhe explicarem que agora tal prática estava dentro da lei ele propôs ao presidente outra manobra da velha escola assim registrada em ata de reunião ministerial Conquanto entenda que o governo não deve cruzar os braços convém providenciar contra a agiotagem Sugere a propósito a ideia da nomeação de uma comissão de inquérito composta de pessoas competentes a fim de dar seu parecer sobre a matéria para que o governo providencie com segurança e eficácia9 Quando as pessoas competentes do mercado organizado segundo a lógica capitalista viram que lidavam com um amador atabalhoado foram arrancando favor atrás de favor sempre às custas do Tesouro e da ignorância do ministro Os importadores conseguiram se livrar dos pagamentos de taxas alfandegárias em ouro e assim o governo abriu mão do principal meio para acumular divisas ficando obrigado a pagar mais milréis por cada libra de sua dívida externa numa situação em que o câmbio caía Os donos de vários bancos conseguiram acesso a 26 milhões de libras esterlinas das reservas nacionais prometendo fazer bons negócios e devolver em seguida O ministro nem exigiu boas garantias de modo que o destino das reservas foi assim descrito num relatório oficial posterior A quantia segundo parece foi empregada no jogo da praça ou em negócios aleatórios10 Quando até mesmo o barão de Lucena percebeu o tamanho do desastre que estava sendo provocado por seu ministro assumiu ele mesmo o ministério Nessa altura contudo o Tesouro dilapidado tinha apenas um instrumento para cobrir os rombos as emissões diretas que saltaram de 298 mil contos no último dia da gestão de Rui Barbosa para 511 mil contos em junho de 1891 um aumento de 71 em seis meses Nos moldes da lei tais emissões se faziam em títulos que precisavam ser tomados por bancos emissores os quais emitiam a moeda que entrava em circulação O principal agente nesse circuito era o Banco da República dos Estados Unidos do Brasil sediado no Rio de Janeiro Como a economia cafeeira local estava em crise logo se esgotou a capacidade do comércio e da indústria locais de absorver dinheiro Com isso o único modo de o banco emitir mais passou a ser por meio da aquisição ou do lançamento de empresas fora da capital capitalizandoas em parte em seguida podia realizar grandes empréstimos para elas com o dinheiro que emitia na expectativa de que o mercado em rápido crescimento absorvesse tudo como acontecia sobretudo em São Paulo Como o mercado não absorveu a papelada sobrou uma saída para espertos vender todas as empresas inviáveis para o governo pelo valor de face Tanto o ministro quanto o presidente compraram a ideia Como era preciso dinheiro público para pagar a conta aventouse a solução de um empréstimo externo cuja garantia seriam as rentáveis ferrovias de propriedade do governo em especial a Central do Brasil que acabara de incorporar uma ferrovia privada paulista e ganhar o monopólio do transporte entre Rio de Janeiro e São Paulo O argumento era o de que o empréstimo estabilizaria o câmbio algo que ignorava as raízes mundiais do desaparecimento das libras esterlinas no mercado brasileiro Havia apenas um pequeno detalhe formal a nova Constituição exigia aprovação parlamentar para uma operação dessa espécie O marechal Deodoro mandou a papelada para o Congresso e aconteceu o inevitável algum deputado fez objeções no plenário outros resolveram estudar melhor o caso O marechal tomou a decisão como afronta a seu poder pessoal e agiu como achava que deveria fechou o Congresso no dia 3 de novembro de 1891 tornandose novamente ditador Tentou salvar o banco Mas como os tempos eram outros uma alteração pouco notada por ele no mecanismo constitucional entrou em ação No dia 23 de novembro o vicepresidente da República o também marechal Floriano Peixoto derrubou o presidente e tomou legalmente o poder CAPÍTULO 40 A esfinge FLORIANO PEIXOTO O SEGUNDO HOMEM A COMANDAR O PAÍS NOS MOLDES DA estrutura institucional que previa um presidente da República à frente do Executivo tinha como principais ativos para o exercício do poder uma longa carreira e uma grande habilidade Nascido em família modesta alistouse como soldado chegou a tenente e estava no Rio Grande do Sul quando se deu a invasão paraguaia de modo que participou dos primeiros combates da Guerra do Paraguai Lutou durante cinco anos e por seus atos de bravura acabou alcançando o posto de coronel Nesse posto teve participação no último ato do conflito comandando o grupo que abateu o líder paraguaio Solano Lopez Como outros comandantes militares mesclou as carreiras de soldado e político nos anos seguintes Militante do Partido Liberal foi indicado para a presidência da província de Mato Grosso Em função de seu vínculo partidário assumiu a chefia do Exército no gabinete do visconde de Ouro Preto em 1889 Era um posto de total confiança do ministério e Ouro Preto não teve nada do que reclamar do seu ministro até o dia 15 de novembro de 1889 quando afinal os atos do marechal lhe revelaram que aderira aos revolucionários republicanos empenhados em derrubar a monarquia Desse dia em diante tornouse homem de confiança do marechal Deodoro e o primeiro ocupante do cargo de vicepresidente da República Manteve essa confiança quando o presidente fechou o Congresso e se tornou ditador Porém com imensa discrição não apenas fez contato com republicanos atarantados com o ato como também teve acesso a informações sigilosas relevantes Com o Parlamento fechado a papelada que regularizava o emprego de dinheiro público e empréstimos externos para comprar o banco à beira da falência ficou pronta em apenas duas semanas Porém no dia em que enviou o decreto à gráfica Deodoro teve a mesma surpresa do visconde de Ouro Preto foi apeado do poder por seu vice com o apoio do Exército da Marinha e dos republicanos Nem o visconde imperial nem o marechal presidente revelaram qualquer decepção pelo fato de terem apostado num traidor Antes colocaram suas frustrações na conta de uma grande capacidade de Floriano para criar confiança com palavras e por meio dos atos explicitar outra interpretação para as mesmas palavras Assim que tomou posse da presidência da República no entanto Floriano lançou um manifesto pelo qual se comprometia com dois objetivos O primeiro Manter a inviolabilidade da lei que é ainda mais necessária em sociedades democráticas como um freio às paixões do que é necessária nos governos absolutos com tradição de obediência pessoal será para mim e meu governo sacratíssimo empenho como também sêloá respeitar a vontade nacional e dos estados em suas livres manifestações sob o regime federal1 O segundo objetivo foi assim expresso A administração da Fazenda com a mais severa economia e a maior fiscalização da renda do Estado será uma das minhas maiores preocupações Povos novos e onerados de dívidas nunca foram felizes e nada aumenta mais as dívidas do Estado que as despesas sem proporção com os recursos econômicos da nação2 Pelas palavras portanto Floriano Peixoto se mostrava conhecedor dos princípios iluministas e se propunha a agir como um governante dessa espécie Também se afirmava como seguidor da doutrina das despesas controladas do governo um princípio que servia tanto para o regime antigo como para o novo Depois da deposição do companheiro de farda um segundo ato deu sentido às palavras Floriano suspendeu a impressão do decreto pelo qual o governo comprava os ativos do banco e evitou os empréstimos externos e um aumento ainda maior da dívida do governo em moeda estrangeira Como defensor das novas regras que separavam público e privado deixou que o banco que embora agente do governo era privado entrasse em liquidação O ato tinha relação muito direta com a segunda grande promessa de seu governo O processo de falência colocou em risco as fortunas imperiais aplicadas no banco que até então resistiam à debacle da produção cafeeira fluminense entre os acionistas contavamse 21 barões 18 viscondes e 3 condes Embora a derrocada do banco estivesse de acordo com as novas instituições republicanas não deixou de ser uma notícia trágica para gente acostumada a ter a saúde de suas finanças favorecida pela ação governamental e se tornou fonte de um rancor mudo contra o regime O que perdeu de um lado o presidente ganhou de outro A pronta ação no caso do banco fez com que os republicanos que apoiaram o novo presidente dessem em seguida um passo importante o Parlamento aprovou o mandato do marechal embora a Constituição indicasse expressamente a necessidade de convocar novas eleições e em seguida entrou em recesso por cinco meses deixando a direção do país em crise inteiramente nas mãos do empossado Estava passando um cheque em branco para o presidente agir sem o freio às paixões dos governos absolutos mas os atos seguintes de Floriano Peixoto mostraram que os parlamentares delegavam e sumiam de cena de modo consciente Assim como o marechal Deodoro o novo presidente do país resolveu consolidar a sua autoridade pelo método da derrubada dos governos estaduais Os alvos eram nada menos que 19 dos 20 governadores ficaria de fora o governador do Pará Lauro Sodré único que não apoiara o golpe de Deodoro Dessa vez como não havia a brecha legal a derrubada seria frontalmente contrária à inviolabilidade da lei que o presidente jurara defender com sacratíssimo empenho O conflito entre a letra da lei e o costume imperial da derrubada de presidentes de província foi assim descrito por Francolino Cameu e Artur Vieira Peixoto biógrafos do presidente Proclamada a República colocado em pleno vigor o regime presidencial federativo autônomos os Estados era de se esperar que aqueles que tomassem para si governar as unidades da federação fossem um pouco mais independentes tanto mais quanto não eram nomeados pelo centro mas eleitos pelo voto popular ou pelos congressos legislativos Mas o hábito estava feito e o hábito forma uma espécie de segunda natureza Com pequenas e honrosas exceções o costume de achar bom todo ato praticado pelo governo central continuava a produzir seus maléficos efeitos3 A frágil soberania dos eleitores de cada estado e o modesto poder dos governadores recémempossados foram triturados por atos que afrontavam a letra da lei O presidente da República agiu como os ministros imperiais derrubando os 19 governadores E foi apoiado em cada ato pelos republicanos que escreveram a lei inclusive os de São Paulo que ainda por cima pegaram em armas para afastar Américo Brasiliense que fora nomeado por Deodoro A derrubada permitiu a Floriano Peixoto colher outros frutos de poder Em março de 1892 13 generais e almirantes assinaram um manifesto contra as deposições de governadores O presidente decretou estado de sítio demitiu todos e aproveitou para prender e deportar sem julgamento um magote de civis entre os quais o jornalista José do Patrocínio e o poeta Olavo Bilac Estes encontraram um defensor em Rui Barbosa que entrou no recémcriado Superior Tribunal Federal com um pedido de habeas corpus para soltar quem havia sido preso ilegalmente O órgão máximo do Judiciário também mudara de estatuto com a nova Constituição deixara de ser subordinado ao Poder Moderador para se transformar em poder independente com juízes dotados de mandatos invioláveis Mas a mudança formal não eliminou o costume da secular dependência ao rei no Judiciário de modo que também ali o hábito persistiu sobre a letra da Constituição em vez de dar sentença os juízes pediram audiência a Floriano tentando saber o que pensava o governante do alto O presidente emitiu uma frase enigmática Não sei amanhã quem poderá dar habeas corpus aos ministros do tribunal No fim apenas um juiz foi favorável ao pedido enquanto os demais declararam o tribunal incompetente para julgar atos do presidente da República A persistência do costume imperial ajudou muito a que se consumassem as derrubadas de presidentes estaduais à margem da legalidade Com isso a impressão geral dos brasileiros passou a ser a de que o novo regime era apenas uma roupa nova para ideias muito antigas Por outro lado isso também fez com que pouca gente notasse a evolução da economia onde os acontecimentos obrigavam o presidente da República a contrariar sua promessa de contenção de despesas Os anos de Floriano Peixoto como presidente de novembro de 1891 a novembro de 1894 testemunharam o acirramento das diferenças entre o crescimento do setor privado brasileiro e a situação das finanças do governo federal o termo pelo qual a instância central de poder passou a ser designada na República A monetização da economia estava de fato servindo de instrumento para um aumento acelerado da produção e por causa dela até das receitas do governo Mesmo com a transferência da cobrança de alguns tributos para os estados determinada pela Constituição as receitas federais cresceram de 153 mil contos no último ano do Império para 345 mil contos ao longo de 1893 um aumento de 120 Da mesma forma as contas comerciais externas iam bem As exportações subiram de 285 milhões de libras esterlinas em 1889 para 31 milhões na média do período 189294 Como as importações se mantiveram relativamente estáveis por todo o período registraramse saldos comerciais Já as contas de capital foram muito afetadas pela crise mundial Os investimentos de capital foram de 54 milhões em 1890 a crise eclodiu bem no final do ano caíram para 600 mil libras em 1891 e se mantiveram nesse patamar daí por diante Somando comércio e capital o fluxo geral das transações externas se inverteu o superávit médio de 2 milhões de libras anuais dos últimos anos do Império se transformou num déficit de 760 mil libras anuais no período seguinte A consequência inevitável era a desvalorização da moeda Cada mil réis comprava 226 pence em 1890 no ano seguinte passou a comprar apenas 144 e o poder de compra flutuou em torno de 11 pence em 1892 e 1893 Como o governo ficara sem reservas ainda na gestão de Deodoro que forneceu libras baratas para os estrangeiros que tiravam o dinheiro do país o marechal Floriano foi obrigado a adquirir libras caras para saldar as dívidas externas Assim a situação de desvalorização cambial atingia negativamente as contas do governo federal Todavia essa mesma desvalorização tinha dois efeitos Ao encarecer as importações conferia uma proteção competitiva aos produtores nacionais que foram abrindo brechas no mercado Quanto aos exportadores era ainda maior o efeito positivo da desvalorização quanto maior esta mais eles ganhavam em moeda nacional Na média os cafeicultores de São Paulo receberam 37 milréis por saca em 1890 e 532 milréis no ano seguinte com acréscimo de 432 Como a produção também aumentou a renda total do setor cresceu nada menos de 71 Nos anos seguintes os aumentos de renda foram proporcionais à desvalorização Assim as tendências opostas das contas do governo e das contas do setor privado se ampliavam E não havia lugar em que os sofrimentos para alcançar o equilíbrio fossem maiores que no Rio de Janeiro Ali o mercado privado de títulos financeiros havia na prática desaparecido caindo 91 entre 1890 e 1892 Mas era ali também que estava o centro do movimento financeiro do governo carente de instrumentos para reagir emitindo títulos a fim de cobrir as maiores necessidades de caixa para saldar os débitos externos que cresciam em proporção maior que as receitas Floriano enfrentou o problema afastandose da sua política de austeridade com os recursos públicos Estatizou o banco privado que estava na lona e o fundiu ao Banco do Brasil O novo banco se tornou ao mesmo tempo dono de muitos ativos sobretudo ferrovias e empresas de navegação e instrumento dócil para a emissão de dinheiro não mais para monetizar a economia em favor do setor privado o objetivo de Rui Barbosa mas para cobrir os rombos do orçamento Essa situação de sinais opostos entre o desempenho do setor privado e o do setor público chegou quase ao paroxismo num estado brasileiro o Rio Grande do Sul Do ponto de vista da economia era um dos estados que mais vinham crescendo após a mudança de regime As vendas do charque o principal produto gaúcho saltaram de 256 mil para 357 mil toneladas entre 1889 e 1892 um crescimento de 48 Banha e couros tiveram desempenho ainda melhor A valorização da atividade empresarial permitiu a fundação de 30 sociedades anônimas num prazo muito curto O setor mais beneficiado foi a produção de tecidos com a criação de indústrias capitalizadas Já no ano da sua fundação 1891 as três maiores empregavam 2 mil operários sendo também mais importantes usuárias de trabalho livre na economia local Mas o estado estava dividido por conflitos políticos Em 1891 o maior líder republicano local Júlio de Castilhos forçara a aprovação de uma Constituição estadual de forte cunho positivista concentrando muitos poderes no Executivo o Legislativo estadual tinha apenas a função de verificar contas e as leis eram decretadas pelo governador permitindo a reeleição permanente do governador e restringindo o poder dos governantes municipais Como Júlio de Castilhos apoiara explicitamente a ditadura de Deodoro acabou apeado do poder pelos militares que estavam com Floriano Isso o levou a desencadear uma campanha efetiva de oposição aos indicados do Rio de Janeiro A instabilidade se acentuou muito com governadores subindo e caindo em ritmo frenético Em meio ao turbilhão emissários do presidente da República começaram a ter encontros discretíssimos com Castilhos Ao mesmo tempo nem mesmo os militares colocados no governo estadual pelos ministros militares que não eram positivistas nem defensores de uma ditadura conseguiam ser obedecidos pelos militares positivistas aquartelados no estado Numa tentativa de restabelecer o comando os ministros militares nomearam o visconde de Pelotas para governar o estado Ele fora o chefe de Floriano durante toda a Guerra do Paraguai seu padrinho político no Partido Liberal depois dela e contava com o respeito de muita gente Mas assim que tomou posse passou a ser hostilizado por militares que deviam os seus postos de comando ao presidente da República e que o instavam a renunciar em favor de Júlio de Castilhos inimigo aberto e declarado das posições liberais Pelotas preferiu renunciar em favor de Joca Tavares também veterano do Paraguai Já o comandante militar do estado nomeou Júlio de Castilhos que no mesmo dia renunciou e indicou Vitorino Monteiro para o cargo O estado ficou com dois governadores mas só o castilhista recebeu um telegrama de apoio e promessas de ajuda do presidente da República Júlio de Castilhos foi ao Rio de Janeiro acertouse com Floriano e retornou ao governo em janeiro de 1893 e as escaramuças violentas entre os partidários de cada governador se transformaram em guerra civil aberta a partir de março Por mais que fosse perito na dissimulação dos seus objetivos Floriano Peixoto não era o único militar capaz de interpretar sinais de guerra O almirante Custódio de Melo saído do Ministério da Marinha começou a ler documentos secretos e chegou a conclusões semelhantes às do visconde de Ouro Preto e do marechal Deodoro da Fonseca sem trair explicitamente sua palavra o presidente havia de fato derrubado o visconde de Pelotas cuja indicação contara com o apoio de Custódio de Melo Como ainda era almirante este reagiu com atos militares desencadeou uma revolta da Armada e colocou uma frota a serviço dos adversários de Júlio de Castilhos Floriano Peixoto também sabia lutar Mandou para o desterro Rui Barbosa quando este tentou defender os revoltosos comandou pessoalmente a defesa armada os canhoneios entre fortes do Exército leais a Floriano e os navios comandados por Custódio de Melo se tornaram diários no Rio de Janeiro expulsou a esquadra para o mar arrancou dinheiro dos paulistas para comprar outra esquadra Para pagar tudo isso emitiu como nunca Tornouse autoridade sem contraste um ditador de fato Era além de comandante o propagandista do figurino do sonho positivista de um ditador Fornecia uma imagem para todos os brasileiros pensarem soluções fortes para problemas agudos Mas não era ditador e sim um presidente da República com mandato Navegando na fronteira desses papéis opostos cumpriu seu melhor papel esfinge CAPÍTULO 41 Presidente eleito EM MAIO DE 1893 POUCO ANTES DA REVOLTA DA ARMADA OS PARLAMENTARES elegeram pela terceira vez o senador Prudente de Morais para o comando do Senado Seu discurso de agradecimento foi bastante direto Republicano dos tempos de propaganda dos tempos em que neste país era crime dizerse republicano naquela época a minha grande ambição o meu sonho de patriota era ver proclamada a República na minha pátria Vi o meu sonho ser realizado vi a minha ambição ser satisfeita Mas digoo com mágoa tenho ainda uma ambição maior que aquela ver o regime republicano traçado pela Constituição de 1891 realizado ver a República elevarse pelo estabelecimento da paz da ordem da garantia de todos os interesses e todos os direitos do cidadão Minha maior ambição na atualidade permitamme a expressão é tornar a República Federativa do Brasil numa realidade real1 Naquela altura haviam se passado 58 anos desde a eleição de Diogo Antônio Feijó até então a única ocasião em que o chefe do Executivo fora escolhido através do voto pelos cidadãos brasileiros Agora havia algo em favor do pretendente o suporte de toda a estrutura jurídica da nação Por outro lado havia também uma constante histórica tal estrutura era recente e abstrata e ainda não se convertera em costume para o cidadão Pior ainda a intenção de fazer coincidir as instituições republicanas e a realidade nacional competia diretamente com outro projeto o de Floriano Peixoto A competição começou em 3 de junho quando o líder do governo na Câmara Francisco Glicério enviou ao presidente um bilhete no qual dizia que talvez Prudente fosse candidato Recebeu a resposta de que embora ele não se opusesse ao indicado talvez Júlio de Castilhos fosse um nome melhor O ruído aumentou no dia 8 de julho de 1893 quando uma centena de parlamentares fundou o Partido Republicano Constitucional e marcou uma convenção para indicar Prudente de Morais como candidato à presidência da República No dia 6 de setembro eclodiu a revolta da Armada menos de um mês antes da convenção marcada para o dia 23 Assim o embate de ideias na convenção se fez ao som dos bombardeios na cidade Os dois projetos opostos para o comando do país foram expostos com toda a crueza Aristides Lobo o ministro que havia considerado o povo bestializado no momento da Proclamação da República era agora senador e florianista Elaborou uma pesada argumentação contra a eleição assim registrada na ata O senador diz que a falta de delegados na convenção e sua oportunidade são questões conexas A falta de delegados é por demais sensível e grave porque nas condições atuais a convenção é inoportuna O presidente da República carece de toda a força para sem tardanças sufocar a revolta contra o governo legal A apresentação de candidatos ao cargo que ocupa vem enfraquecêlo pois parecerá à opinião tão perversamente trabalhada e tanta vez facilmente desviável que não se confia nele em absoluto e que seus amigos desejam substituílo Julga que provocar ou dar volume a tal suposição é quase um atentado contra a República cuja defesa está confiada a seu braço É patente que haja conveniência para adiar a eleição e pasma que haja quem o ponha em dúvida Pretenderse marcar dia fixo para que um homem que se haja investido pela situação de todo o prestígio é incompreensível da parte dos homens públicos Se o movimento perdurar nem as eleições para os cargos supremos da nação talvez se possam realizar Adiese a convenção É a salvação pública que o exige2 Assim o movimento militar se transformava em programa político a favor da continuidade permanente do poder ditatorial A força para sufocar pelas armas seria razão muito maior do que a regra legal que fixava uma data para o término do mandato do governante Os eleitores antes definidos pelo orador como bestializados seriam agora pessoas facilmente desviáveis pouco confiáveis e a quem não se deveria pedir opinião O contraargumento veio do senador baiano Manuel Vitorino A convenção é oportuna e reclamada pelo estado revolucionário A luta entre a autoridade legal e a revolta gira em torno deste eixo o poder a 15 de fevereiro de 1894 Constituído um novo poder nesta data cai a luta A designação de um candidato a presidente da República não desprestigia o atual chefe da nação Pela Constituição ele deve deixar o cargo e as altas funções no ano vindouro Se testemunharmos que há um homem honesto respeitador da lei que ocupou o posto em que foi colocado até o último dia do seu mandato tendo presenciado a eleição de seu sucessor e cercado de todas as garantias a expressão da vontade popular teremos dado a este homem o maior prestígio perante o país inteiro Que querem todos Que em vez de se dizer Às armas se diga Às urnas Há na convenção muitos amigos que devem contribuir para que os homens do mar não continuem a enganar a boafé de alguns afirmando que o presidente da República quer perpetuarse no poder e que o veto à eleição é um sinal franco de semelhante aspiração Entremos na vida normal A escolha de candidatos é uma bandeira de paz com que se acena à revolução3 Depois de ardorosas discussões no dia 25 de setembro Prudente de Morais acabou sendo indicado como candidato a presidente da República e Manuel Vitorino como candidato a vicepresidente A candidatura marcou o início de outro enfrentamento agora político um candidato em disputa pela regra constitucional e um presidente com adeptos que apelavam para a união em torno do chefe o qual necessitaria de poderes excepcionais para vencer numa situação excepcional Uma luta entre um candidato à presidência nos moldes da Constituição e um candidatomarechal revestido de poderes de exceção Floriano Peixoto governava sem Parlamento com estado de sítio censura à imprensa nomeação de governadores e o controle do sistema financeiro Essa concentração constituía a base tanto do comando prático como da argumentação de Aristides Lobo e o presidente se esmerou para produzir fatos nesse sentido Entre esses fatos estava o abandono de sua promessa de austeridade com os recursos públicos Floriano Peixoto imprimiu um dinheiro que o governo não tinha para financiar a guerra interna nos meses seguintes à revolta da Armada as emissões sem lastro chegaram a 151 mil contos de réis ampliando em 27 o total de dinheiro em circulação Ao longo de 1894 o déficit do governo federal saltou de 95 no período 189192 para monumentais 292 do orçamento Mas os efeitos dessa emissão e desses gastos não foram totalmente desastrosos porque o emprego de dinheiro na economia havia mudado com o fim da escravidão e a implantação das instituições republicanas Entre estas uma se tornava realidade efetiva a soberania dos estados O ano de 1893 foi também aquele em que os governos estaduais passaram a contar com um reforço em suas receitas próprias transformandose em administrações de fato capazes de gestão econômica Era uma novidade secular Desde os tempos da tomada pelo governo central das capitanias hereditárias no início do século XVIII esse nível de governo se tornara quase um apêndice do centro A situação que durou dois séculos só mudou quando com o dinheiro de impostos vários governadores mostraram alternativas regionais inovadoras de gestão Em Minas Gerais o governo estadual conseguiu ao mesmo tempo triplicar o investimento em ferrovias e preparar o projeto para a construção de uma nova capital Belo Horizonte que seria a primeira cidade planejada do país Na Bahia o governo incentivou a cultura do cacau ao mesmo tempo que fortalecia a rede bancária estadual Em Pernambuco o governador empregou a arrecadação para reforçar um esquema de financiamento que afinal permitiu a introdução de usinas para substituir os engenhos Na região amazônica havia um crescimento exponencial das exportações de borracha a uma média de 205 anuais desde a proclamação da República A taxação sobre as exportações permitiu que o governo paraense implantasse uma rede pública de ensino um instituto para distribuir terras a pequenos lavradores um programa de atração de imigrantes subsídios para transformar a região bragantina em zona produtora de alimentos o que incluía a construção de uma ferrovia local Em São Paulo os maiores investimentos do governo foram nas áreas da educação e do saneamento A Escola Normal que formava professores fora instalada na gestão de Prudente de Morais logo após a mudança de regime Todos os sucessores investiram no projeto possibilitando a instalação de uma rede escolar com ensino gratuito e de qualidade As despesas com educação saltaram de 400 contos de réis em 1889 para 29 mil contos em 1893 Em cinco anos foram construídos 25 grupos escolares o número de vagas quadruplicou em relação ao Império e as mulheres encontraram um posto de trabalho bem pago não apenas como professoras mas na própria direção da rede Além disso o governo investiu nas primeiras instituições de saúde pública do estado e no saneamento das maiores cidades além de criar empresas públicas de abastecimento de água Na direção inversa da atuação dos governos estaduais que acentuava as mudanças econômicas e prestava serviços públicos à população havia dois casos Primeiro o do estado do Rio de Janeiro onde os primeiros governadores republicanos enfrentaram a queda de receita decorrente das perdas na produção de café por meio da distribuição de cargos públicos para os aliados em dificuldades O resultado foi a falência do governo estadual traduzida nos desastres de sempre salários atrasados dívidas repudiadas inexistência de apoio político A situação se tornou tão caótica que nem foi preciso fazer derrubada após a deposição de Deodoro O indicado por este deixou o governo por conta própria e os três sucessores legais simplesmente recusaram o cargo Floriano precisou catar à força alguém para cumprir a missão e que sobreviveu poucos meses na função O segundo estado com problemas era o Rio Grande do Sul A luta sangrenta pelo poder teve reflexos diretos na produção privada As fábricas de tecidos tiveram de suspender a produção incontáveis vezes tanto por combates como por falta de matériaprima As vendas de charque caíram pela metade As exportações de banha baixaram de 69 mil toneladas em 1892 para 44 mil toneladas em 1894 A produção de couro entrou em declínio do qual nunca se recuperaria Ainda assim a lista de projetos dinâmicos e próprios de cada região superava em muito a dos problemas e contrastava com a situação do governo federal Neste a única novidade advinda da mudança de regime fora a passagem dos funcionários mais conspícuos dessa esfera os padres para a administração do Vaticano Todo o mais permaneceu como dantes sem modernização das atividades nem atualização dos procedimentos As emissões sem lastro para financiar as despesas da guerra levaram a uma tensão ainda maior entre a situação do governo federal e aquela do restante do país setor privado mais governos estaduais e locais dessa vez envolvendo os próprios setores públicos federal e estaduais Floriano Peixoto foi atrás de libras esterlinas emprestadas para comprar navios de guerra capazes de enfrentar aqueles que o almirante Custódio de Melo levara para os federalistas Não conseguiu porque o governo era cliente de risco devia muito e gastava mais que arrecadava Então um representante do governo de São Paulo que apoiava o presidente apesar de tudo ouviu a história Passou adiante o recado e o governador paulista que dispunha de um orçamento com muitas receitas num estado repleto de vendedores de café que recebiam em libras esterlinas e melhor de um governo sem qualquer endividamento externo Por isso o governador não encontrou dificuldade para adquirir uma frota no exterior Sem alternativas o presidente aceitou passando assim a depender dos republicanos que também apoiavam Prudente de Morais Com isso as tensões inerentes à mudança da lei e ao enquadramento dos costumes atingiam o grau do paroxismo E começaram também a ganhar expressão simbólica de outra maneira aqueles que até a véspera eram tidos como os mais virtuosos da sociedade os nobres brasileiros próximos ao imperador viramse perdidos numa realidade na qual o objetivo explícito da política econômica era permitir o desenvolvimento do capitalismo e da indústria Se não tinham mais lugar como representantes do bem alguns monarquistas souberam se adaptar à realidade vazando suas perdas em forma estética Em outubro de 1893 enquanto os canhões troavam na capital leitores da Gazeta de Notícias começavam a desfrutar da obra de um legítimo monarquista saquarema O visconde de Taunay após renegar o casamento com a índia Antônia nos tempos da Guerra do Paraguai e retornado à Corte havia sido senador do Império pelo Partido Conservador Com o advento da República continuou monarquista defendendo os interesses da família imperial junto ao governo republicano Como tantos de sua classe se vira na contingência de aplicar seu dinheiro de acordo com os conselhos dos banqueiros do novo regime e perdera parte significativa de sua fortuna Escrevendo para ganhar dinheiro começou a publicar sob pseudônimo um folhetim intitulado O Encilhamento O romance tinha um herói para o qual quase ninguém ligava e um bandido satânico que embora exilado continuava sendo vilipendiado Ah o Rui Que homem que cabeça Estava assentando os alicerces de assombrosa e inabalável prosperidade O que cumpria era não lhe perturbarem os planos Acompanhálo cegamente de olhos cerrados Tomara de repente lugar entre os mais abalizados financeiros do globo coisa de meter inveja à própria Inglaterra4 Esse agente maléfico havia introduzido no Brasil o inferno da sociedade capitalista republicana descrito da seguinte forma pelo narrador Papel bancário era a verdadeira carta do baralho Não se o atirava fora porque o povo bestializado ali estava para pagar dócil ou inconsciente 100 ou 200 de taxa alfandegária Ninguém queria ficar igual ao vizinho A questão era alcançar cabedais os meios de ostentar luxo andar em belas carruagens fazer praça de gozo e dissipação vencer triunfar5 Feito o mal o castigo era inevitável Essa cruel e asquerosa época do encilhamento terá dilatada repercussão na vida brasileira derivando de hábitos e aspirações de todo modo contrários às inflexíveis leis econômicas que dificilmente hão de ser desarraigadas de nosso organismo moral Donde provém senão desse centro miasmático a absorção do indecorosíssimo e frenético jogo que se implantou penetrando no seio das melhores famílias como uma nojenta lepra que ameaça tudo contaminar e destruir Só muita energia muita consciência do dever muita força de vontade e valente patriotismo por parte daqueles que dirigem este pobre Brasil poderão nos atalhar de tantos males6 Não faltavam disjuntivas radicais Império e República escravidão e igualdade como princípio organizador das leis estabilidade ou progresso como objetivo da nação mercantilismo ou capitalismo eram as que mais ressaltavam na comparação entre os dois regimes Mas também havia aquelas próprias da República ditadura ou eleição governo pelo hábito ou pela lei ampliação ou limitação dos poderes do Estado crise do setor público federal e progresso do setor privado Com tudo isso não era de estranhar que os cidadãos fossem sensíveis às ideias do visconde perdidos entre o que seria moralidade separação do bem e do mal do vício e da virtude no novo regime Um mundo ruía depressa o outro ainda não estava firme Floriano Peixoto conseguiu o milagre de não ser decifrado em meio a esse conflito Era apoiado pelos republicanos paulistas e usava as armas financiadas por eles para implantar um regime ditatorial no Rio Grande do Sul aproveitando tudo isso para solapar ao máximo as eleições que se avizinhavam Nesse intuito valia tudo até o emprego de um instrumento autoritário inaugurado na ditadura do marechal Deodoro a censura férrea à imprensa Todos os telegramas enviados do Rio de Janeiro eram controlados por militares e os governadores estaduais inclusive o de São Paulo se encarregavam de providenciar que fossem publicadas como verdade factual as versões oficiais sobre todos os assuntos gaúchos Só se admitiam coberturas em branco e preto com os federalistas sendo enquadrados como revoltosos monarquistas e os positivistas como republicanos progressistas Não foi difícil portanto para o governo federal incluir o noticiário sobre a eleição e os candidatos no rol dos assuntos proibidos Restava aos cidadãos apenas a opção de se informarem por vias informais pelas conversas de políticos que iam e vinham da capital pelas palavras de prefeitos agora o chefe do executivo municipal começava a ser separado da delegação dos vereadores eleitos e vereadores O candidato Prudente de Morais se manteve firme assim como os seus apoiadores Dispunham de uma única arma o calendário fixado na legislação Bem no fim do prazo previsto em fevereiro de 1894 a censura foi levemente abrandada o suficiente para se informar de modo eufemístico que haveria uma eleição para presidente esta foi realizada em 1o de março e apuradas as urnas Prudente de Morais foi eleito com 291 mil votos Até a posse foram mais seis meses de tensão nos quais nem mesmo as vitórias do governo federal e de seus aliados gaúchos nos combates amainaram a censura da imprensa ou a pressão dos partidários do marechal Prudente de Morais continuou mantendo a confiança no calendário No dia 3 de novembro tomou o trem para o Rio de Janeiro Na estação da Central do Brasil só o esperava um político Francisco Glicério o construtor de sua candidatura Pegaram uma carruagem de aluguel foram almoçar no hotel Nos dias seguintes Floriano Peixoto recusou todo e qualquer pedido de audiência Por fim no dia 15 de novembro a esfinge desvela o segredo a seu modo Um representante secundário entrega o cargo ao sucessor O Marechal de Ferro achara demais afrontar o calendário mas jamais pensou em apoiar o sucessor O novo presidente inicia o mandato com as seguintes palavras Assumindo hoje a presidência da República obedeço à resolução da soberania nacional solenemente enunciada no escrutínio de 1o de março A cadeira republicana seria afinal ocupada por um republicano plenamente consciente da teoria por trás da organização do regime Um republicano que visava a coincidência entre a lei escrita ele mesmo liderara a transformação dessa teoria no conjunto de leis que se chamava Constituição e o coração pois tinha o costume da democracia CAPÍTULO 42 A arte de ensacar demônios NO DIA 15 DE NOVEMBRO DE 1894 O JORNAL O Estado de S Paulo publicou um editorial que partia da seguinte constatação É hoje o quinto aniversário da República É hoje também o dia em que o marechal Floriano Peixoto passa o governo do Brasil às mãos do Sr Prudente de Morais Seria impossível comemoração mais solene para a data Porque uma substituição regular tranquila perfeitamente constitucional do primeiro magistrado da nação é coisa que pela primeira vez se vê na história do Brasil D Pedro I foi forçado a abdicar D Pedro II banido O marechal Deodoro deposto O princípio da autoridade estava atacado de uma enfermidade que parecia incurável O marechal Floriano Peixoto quebra o encanto e chega triunfalmente ao termo legal de seu governo Caso se considere ainda que desde 1549 o ocupante do cargo executivo mais alto na administração do território era designado o ato daquele dia representava uma novidade multissecular mas não uma novidade absoluta na vida política brasileira Desde 1532 os vereadores eram eleitos e entregavam seus cargos ao final do mandato e essa regra imperava em todos os agora municípios A prática local enfim se espraiava para o todo As sucessões regulares nas vilas permitem entender as razões do sucesso da aposta de Prudente de Morais no sentido de que o marechal que deixava o cargo iria obedecer ao calendário constitucional embora tivesse poderes acumulados admiradores que o queriam ditador e até uma eventual vontade de ficar Floriano não se julgou capaz de vencer a luta caso rompesse com o estabelecido na lei O máximo que se permitiu foi extravasar com deselegância a frustração Segundo Luiz Felipe DÁvila Floriano preparou para seu sucessor um último constrangimento público O marechal não compareceu à cerimônia enviando seu ministro da Justiça Cassiano do Nascimento para representálo Constrangido ele transmitiu o cargo e saiu às pressas do palácio Prudente então deuse conta de que ele estava abandonado parecia uma casa malassombrada poeira nos móveis lixo nos cantos papéis rasgados no chão Pior que isso os estofos dos móveis do salão foram rasgados a baioneta O novo presidente transformou o descalabro de Floriano em ato público Mandou abrir as portas do palácio à multidão Em poucos momentos os salões fervilhavam de gente e fervilhavam também os comentários1 Em meio à multidão e ao alvoroço daqueles que nunca tinham visitado o prédio do governo Prudente de Morais comandou a primeira reunião do ministério E depois relatou todos os sentimentos numa carta ao amigo Bernardino de Campos A nova situação inaugurase sob bons auspícios Recebi adesões de todas as partes de todos os estados inclusive militares As nuvens vão desaparecendo e tornando claro o horizonte Você não imagina o que fizeram o major e sua gente até a última hora2Abrir portas chamar gente ganhar adesões fazer desaparecer nuvens clarear o horizonte para o futuro Prudente via tudo isso como parte de sua missão que sintetizou para o amigo Soltar o demônio da revolução é fácil Difícil é recolhêlo É o que fazemos agora cumprindo nosso dever cívico Em vez de concentrar poder Prudente de Morais abriu mão dele Suspendeu o estado de sítio em todo o país menos na região dos combates e a vida da maioria dos cidadãos voltou ao normal Mandou soltar todos os prisioneiros sem processo trouxe de volta os exilados como Rui Barbosa A política adquiriu certa normalidade Acabou com a censura à imprensa e apareceram nos jornais as grandes barbaridades da guerra civil e seus milhares de degolados Até quando não fazia nada ensacava demônios Desde o século XVIII o ato inaugural de um ocupante da instância executiva central era a troca em massa dos comandos da instância intermediária Tratavase de um hábito tão arraigado que os dois primeiros ocupantes da presidência não hesitaram em efetuar as derrubadas de governadores Prudente de Morais fez simplesmente o que a Constituição determinava deixou no governo quem estava e deu um sinal claro de que as regras do mandato e da eleição valeriam também para os estados conforme o desenho da federação republicana Com isso afastou muitos demônios para longe da capital e ajudou na implantação efetiva da autonomia nessa esfera intermediária de governo Esse princípio valeu até mesmo para o Rio Grande do Sul cuja Constituição tinha princípios opostos aos das crenças do presidente e da Constituição federal Ao negociar a pacificação do estado Prudente de Morais aceitou a Carta positivista e o papel ditatorial reservado a Júlio de Castilhos obtendo com isso um acordo rápido Este coincidiu com a morte de Floriano Peixoto em junho de 1895 Com o marechal desapareceu a grande esperança dos positivistas numa ditadura nacional e as diferenças de concepção entre estes e os demais republicanos adquiriram uma dimensão mais de âmbito regional A rápida estabilização política permitiu abrir muitas janelas na administração do governo federal Prudente de Morais mandou vender parte da frota naval aumentada pelo conflito cortou despesas de forma cautelosa e conseguiu que o déficit do governo central voltasse ao que era no início da crise internacional em 1891 Isso lhe permitiu conter as emissões Sem estas estabilizou o câmbio no patamar baixo em que estava mas acumulou divisas para o pagamento da dívida externa ainda que isso custasse muito em moeda nacional Em decorrência dessas medidas as últimas economias regionais ainda em crise se recuperaram Após anos de perdas a produção do Rio Grande do Sul passou a se expandir Santa Catarina e o Paraná menos afetados retomaram a produção industrial em ritmo mais forte No Rio de Janeiro a produção de café se estabilizou e novas atividades econômicas possibilitaram um início de regularização das finanças estaduais A situação do setor privado na capital do país começou a melhorar com o avanço da indústria especialmente no setor têxtil Como sabia que precisava além de governar conquistar corações Prudente de Morais aproveitou o momento para lidar com símbolos pois sabia falar nessa linguagem que os analfabetos que embora não pudessem votar eram cidadãos soberanos podiam entender Até então a linguagem ritual do poder girava toda ao redor do costume imperial da sacralidade decorrente da colocação no ápice do poder da pessoa coroada a cabeça do corpo místico Para realçar tal crença havia todo um cerimonial cujo palco era o palácio imperial Embora situado num lugar visível era inacessível a quase todos Só entravam nele seres especiais os homens da Corte Mesmo estes tinham acessos diferenciados estar com o monarca que transitava em ambientes muito fechados dentro do palácio fechado era como estar com um deus O imperador quando precisava encontrar mais gente no geral o fazia fora do palácio Prudente de Morais criou rituais que iam no sentido oposto o de transformar as cerimônias públicas em prestação de contas aos cidadãos na qual o governante se explicava ao soberano popular Assim em agosto de 1895 anunciou o término do conflito gaúcho num discurso para milhares de pessoas feito da sacada do palácio Com isso mudou o sentido do ato de governar transferindoo das esferas elevadas para aquela dos cidadãos que o haviam elegido Foi o primeiro governante republicano a ganhar alguma popularidade Essa alteração do ritual afetou até mesmo o exercício do poder privativo que lhe era reservado constitucionalmente a chefia do Executivo Pela regra ministros eram subordinados e podiam ser demitidos a qualquer momento Mesmo assim tratou de criar com seus subordinados uma relação diferente da tradicional obediência cega e leal que antes caracterizava o poder pessoal Prudente de Morais encorajava os ministros a exporem pontos de vista opostos ao seu buscando consenso Ficou conhecido o caso do ministro do Exterior Carlos de Carvalho que contrariou lealmente na frente de todos os colegas uma determinação presidencial para que se resolvesse por arbitragem a invasão inglesa da ilha de Trindade Em vez de se sentir diminuído em sua autoridade o presidente aceitou o caminho proposto pelo ministro com uma frase que ficaria famosa Curvome às suas razões que talvez estejam com a verdadeira razão E de fato estavam já que o ministro resolveu o caso bem depressa por meio de uma mediação Todavia um assunto pessoal alterou as circunstâncias do seu governo No dia 10 de novembro de 1896 Prudente de Morais foi submetido a uma delicada operação na bexiga procedimento então de altíssimo risco Transmitiu o governo temporariamente ao vice Manuel Vitorino Este defendera a candidatura de Prudente num momento difícil em pleno governo Floriano Mas se elegeu para um cargo que embora sem substância própria atraía os descontentes com o poder Dando ouvido a estes Manuel Vitorino viu no afastamento do presidente uma chance de mostrar suas qualidades pessoais de governante Em vez de continuar a linha de atuação do titular afastado temporariamente trocou quase todo o ministério deixando nele apenas um homem fiel ao titular Bernardino de Campos o ministro da Fazenda E em busca de uma oportunidade resolveu aproveitar um pedido de intervenção num conflito local em Canudos feito pelo governador do seu estado a Bahia para reanimar fantasmas Antônio Moreira César fizera carreira no governo Floriano Peixoto Primeiro foi encarregado de comandar as derrubadas dos governadores de Sergipe e da Bahia missões que cumpriu abrindo fogo contra a população Na revolução federalista como governador militar de Santa Catarina ganhou fama assim descrita por seu biógrafo A bestialidade humana não ficará circunscrita aos fuzilamentos no quilômetro 65 da ferrovia CuritibaParanaguá nas fortalezas de Santa Cruz de Anhatomirim e Araçatuba ambas em Santa Catarina A bestialidade humana que existe no cérebro de certos caudilhos e seus comandados fez com que chafurdassem no gozo da prática do hediondo espetáculo de expor carótidas e vísceras humanas ao ar livre3 Os 185 fuzilamentos ordenados por ele geraram a alcunha de TremeTerra Após a pacificação Prudente de Morais não removeu o coronel do estado deixouo ali para ser cobrado pelos parentes das vítimas para olhar de frente os fantasmas dos mortos que produzira Respondeu com silêncio sempre se recusando a dar explicações Quando afinal recebeu ordens para voltar os fantasmas estavam em sua cabeça como conta Euclides da Cunha Embarca com seu batalhão num navio mercante em pleno mar com surpresa de seus próprios companheiros prende o comandante Assaltarao sem que houvesse o mínimo pretexto a suspeita de uma traição um desvio de rota adrede disposto para o perder e a seus soldados O ato seria absolutamente inexplicável se não o caracterizássemos como aspecto particular da desorganização psíquica em que se encontrava4 Ficou remoendo seus fantasmas interiores até ser convocado por Manuel Vitorino para quem fora indicado pelos florianistas que frequentavam os grupos que se aliaram ao vicepresidente Assim a intervenção em Canudos foi revestida pela imprensa do grupo como parte de um enredo o heroico coronel estaria sendo enviado para combater um perigoso bastião monarquista estabelecido nos sertões da Bahia Em ação Moreira César era um comandante militar assombrosamente ágil Levou apenas cinco dias entre 3 e 8 de fevereiro de 1897 para embarcar o 7o Batalhão de Infantaria num navio no Rio de Janeiro desembarcar em Salvador colocar todo o material num trem e levar os 1300 homens e todos os apetrechos até Queimadas a estação ferroviária mais próxima de Canudos Dali mandou engenheiros para estudarem os caminhos e condições No dia 17 entrou na vilasantuário de Monte Santo e cinco dias depois partiu rumo a Canudos A despeito de toda essa eficiência não estava bem de saúde Na saída de Monte Santo sofreu uma crise de epilepsia Outras foram se sucedendo pelo caminho Assim a autoridade encarregada de tratar com um sertanejo apresentado pela imprensa como louco monarquista aproximavase de seu alvo já lutando duramente com fantasmas interiores e acessos epiléticos No dia 3 de março avistou Canudos e ordenou um ataque imediato sem reconhecimento No meio da luta foi alvejado Enquanto agonizava à noite suas tropas se dispersaram Mil e quinhentos homens bem armados foram dizimados por sertanejos mal armados Na manhã do dia 4 de março momento da morte do coronel Prudente de Morais reassumiu a presidência da República Desembarcou sozinho diante do Palácio do Catete a sede recémadquirida pelo vice Por dois dias governou sob pesadas críticas daqueles que sonhavam com fantasmas e ainda com o ministério herdado do vice Então chegou por telégrafo a notícia de que o Treme Terra estava morto A reação foi violenta No Rio de Janeiro foram empastelados três jornais pouco depois num atentado contra o visconde de Ouro Preto último chefe do gabinete da monarquia um grupo liderado pelo filho de Benjamin Constant assassinou o jornalista Gentil de Castro Até parlamentares florianistas foram às ruas Brígido Tinoco biógrafo de Nilo Peçanha descreve Nilo Peçanha num comício imputa ao presidente o erro de mancomunarse com a caudilhagem monárquica Volta a falar na sacada de O País onde faz a apologia de Moreira César vítima do fanatismo aliado à politicagem de brasileiros desnaturados Alcindo Guanabara é aclamado pelo populacho em frente à redação da República José do Patrocínio e Paula Nei incitam as massas das janelas de A Cidade do Rio Francisco Glicério acusa Prudente de encastelarse no silêncio ante o sacrifício de Moreira César e outros bravos5 Foram necessários quatro dias para controlar a fúria popular no Rio de Janeiro E a paz só veio depois que o presidente recebeu uma comissão de manifestantes que vinha lhe pedir a implantação do estado de sítio pela primeira vez em seu governo Antônio Barreto do Amaral registrou a resposta Respondeu Prudente de Morais não ser necessária a providência pois sentiase forte e prestigiado pela opinião pública o que era suficiente para a defesa da pátria6 Mas não se esqueceu de cuidar da defesa armada O envio da expedição havia sido um ato de Estado O Exército conhecera uma derrota e não havia como evitar uma retaliação A única coisa que Prudente de Morais podia escolher era o modo de fazer isso E ele conduziu a situação sem o apelo à suspensão dos direitos constitucionais Para isso teve de enfrentar muitos que se consideravam seus aliados O primeiro deles foi o ministro da Guerra Francisco Argolo indicado pelo vice na interinidade e muito ligado aos jacobinos Cabia a ele comandar a reação armada mas incluía nesse comando atos como mandar cartas assinadas a jornais com críticas aos procedimentos do governo Foi removido e o presidente providenciou a organização de uma expedição militar com 7 mil homens comandada pessoalmente pelo novo ministro da Guerra Carlos Machado Bittencourt com o objetivo de aniquilar Canudos Seria no entanto uma ação militar bem diferente daquelas efetuadas no governo Floriano por causa de um importante detalhe Sem estado de sítio nem derrubada de governadores o campo de batalha tornouse um espaço aberto para a imprensa o que fez toda a diferença A campanha foi coberta por repórteres de modo que as notícias iniciais fundadas na hipótese de um poderoso bastião monarquista foram ganhando outro caráter o noticiário do massacre de uma população civil pobre sem nenhum vezo ideológico pelas armas da nação Tal mudança ocorreu por exemplo com Euclides da Cunha Quando morreu Moreira César ele era um dos jacobinos que escrevia editoriais virulentos em defesa da tese do bastião monárquico No dia da morte de Antônio Conselheiro que cobriu como testemunha e repórter escreveu Sejamos justos há alguma coisa de grande e solene nessa coragem estoica e incoercível no heroísmo soberano e forte dos nossos rudes patrícios transviados e cada vez mais acredito que a mais bela vitória a conquista real consistirá em incorporálos amanhã em breve definitivamente à nossa existência política7 A janela da imprensa mantida aberta por Prudente de Morais produziu também efeitos políticos À medida que reportagens como essa foram publicadas outros fantasmas desapareceram e positivistas perderam poder Parlamentares que antes iam às ruas contra o presidente pediram desculpas e aderiram a ele Retomando o controle do Parlamento o presidente conseguiu fazer o sucessor Os poucos positivistas restantes se reagruparam em torno de Júlio de Castilhos que rompe com o governo federal No Exército porém a oposição ainda se manteve forte No dia 5 de novembro de 1897 Prudente de Morais foi ao Arsenal de Marinha receber o marechal Carlos Machado de Bittencourt o ministro do Exército que comandara as ações em Canudos e retornava vitorioso O presidente enfrentou uma situação já conhecida nenhuma autoridade para o receber na hora de subir a bordo Na saída apenas o ministro e um oficial acompanhavam Prudente de Morais O trio atravessa uma multidão de militares e populares que gritam vivas ao marechal Floriano A banda ataca o Hino Nacional para encobrir a manifestação De repente um homem se destaca pula na frente do presidente e saca uma garrucha Com a arma quase encostada no coração do presidente pressiona o gatilho A arma falha Tenta de novo Nova falha O ministro se atira no agressor e recebe uma facada mortal Outros presentes o dominam enquanto o presidente é arrastado para longe A cidade fervilha em boatos acerca de um golpe de Estado em andamento Prudente de Morais toma uma decisão faz questão de ir ao velório e de carregar o caixão do homem que salvara sua vida desfilando diante de uma multidão calculada em 30 mil pessoas reunida no cemitério Até a viúva do marechal pedelhe que desista O representante eleito pela soberania popular acredita na força da opinião para se defender A essa altura o boato que se espalha é outro Pelo velório circula a versão de um milagre assim narrada por Silveira Peixoto De que lado o soldado apontou a pistola pergunta Adelaide a mulher de Prudente Aqui do lado direito Você viu o que há ali no bolso Prudente leva a mão ao bolso indicado Retiraa Vem com a mão uma imagem de Nossa Senhora da Aparecida Olhaa comovido Fui eu que a pus aí diz Adelaide8 A versão do milagre se torna popular e funda um mito de santidade e coragem que transporta Prudente de Morais para o mundo da veneração popular Até mesmo historiadores insuspeitos de adesão a crendices como Edgar Carone descrevem a mudança como quase sobrenatural Na saída do cemitério o presidente é aclamado sua carruagem é acompanhada pelo povo a imagem de ódio e repúdio contra Prudente de Morais desaparece tornandose ele um ídolo É essa multidão que à noite dirigese para os jornais jacobinos empastelando as redações9 Prudente de Morais soube capitalizar o sentimento para sua crença Saiu do velório e divulgou um manifesto para a nação que terminava assim A nobre indignação popular manifestada naquele trágico momento as inequívocas provas de apoio e solidariedade dadas ao presidente da República fortalecemme a convicção de que posso contar com o povo brasileiro para manter com dignidade e desassombro a autoridade de que estou investido pelo seu voto espontâneo e soberano10 E pôde A popularidade de Prudente de Morais tornouse um sustentáculo perceptível de um projeto distinto da luta contra fantasmas transformar o brasileiro pobre no dono do país incluílo na existência política da nação republicana na posição de locomotor único que pregavam a propaganda e as palavras do presidente agora inteligíveis para muitas pessoas Os últimos demônios são postos no saco Com eles recolhidos Prudente de Morais efetivamente chegou ao ponto que desejou um republicano com lugar no coração dos brasileiros Depois do atentado passou a ser aplaudido por uma multidão onde quer que andasse Como sentia esse contato como obrigação como parte da prestação de contas que um detentor de mandato deve aos cidadãos que lhe conferiram o mandato respondia com simpatia e sua popularidade aumentou ainda mais E assim o ano de 1898 caracterizouse por ser um momento de transição com três tempos tempo passado para o sonho nacional de uma ditadura positivista tempo presente para uma concepção da presidência da República derivada da vontade popular e tempo de futuro para um candidato peculiar à sucessão CAPÍTULO 43 Primeira década alternância e mercado COM A ESCOLHA DE CAMPOS SALES PARA SUCEDER PRUDENTE DE MORAIS firmavase o princípio da alternância no comando do Executivo central Tal como vereadores e autoridades municipais vinham fazendo por séculos o exercício do poder seria exercido por um período limitado findo o qual o governante transmitia o cargo a um sucessor eleito Além disso começava a se consolidar também a divisão de poderes O modelo do governo federal com a separação entre Executivo com mandato único e sem reeleição e Legislativo eleitos mais um Judiciário com nomeações técnicas e mandatos invioláveis acabou se reproduzindo em muitas constituições estaduais De acordo com o mesmo princípio começou a se disseminar uma separação na esfera municipal com a criação de um cargo de prefeito eleito Ainda que restrita ao Rio Grande do Sul havia também a constitucionalização da tendência oposta Ali a Constituição reunia poderes imensos nas mãos de uma pessoa que podia ser reeleita quantas vezes conseguisse Além de comandar o Executivo o autocrata governava por decretos indicava os parlamentares e comandantes dos executivos municipais controlava as nomeações para o Judiciário e dirigia o partido que sustentava tudo isso Uma vez que a Constituição federal exigia a realização de eleições estas tinham como única função sagrar a sabedoria do ditador No entanto descontada a exceção a regra geral se fixava depressa pois mais do que a letra de uma lei a alternância tinha relação com o costume secular dos governos locais E a realidade da primeira década republicana mostrou razoável substância do princípio permitindo alternância real de projetos dos presidentes da República Deodoro governou como um presidente que ouvia o gabinete mas viveu às turras com o Parlamento Floriano Peixoto fora o mais próximo do que poderia ser um ditador positivista nos moldes da nova Constituição Governara o tempo todo com estado de sítio censura à imprensa nenhuma oposição no Parlamento intervenção nos governos estaduais tropas na rua Mas não julgou possível ultrapassar o limite de seu mandato de modo que tudo pôde ser revertido no dia seguinte comprovandose a flexibilidade do sistema Prudente de Morais norteavase por um ideal que reafirmou em momentos simbólicos como o anúncio da candidatura o discurso da posse as falas na administração durante as crises e os discursos populares quando enfim teve amplo público afirmava ser alguém que governa a nação como representante eleito dos cidadãos Convicto disso media seu poder como sendo derivado da força da opinião em outras palavras teria tanto mais poder quanto mais tivesse apoio da sociedade No momento da posse tal convicção era pouco mais que uma idiossincrasia pessoal Poucos acreditavam naquele momento que resultaria em poder efetivo de mando convergência de pontos de vista apoio para as medidas do governo e sobretudo vitórias reais contra adversários políticos Ao longo do caminho a crença do presidente foi deixando de ser apenas dele desembocando no movimento praticamente inédito na vida brasileira em que as multidões se identificavam com o governantecidadão em manifestações públicas e na repercussão pela imprensa Todo esse conjunto de vitórias políticas era construído com os valores opostos aos predominantes no Império Para os teóricos brasileiros do regime monárquico o rei representava a nação por contraste em relação aos súditos Quanto maior a distância entre a Coroa civilizada o rei vestido de cetro coroa e murça de penas de papo de tucano e a sociedade bárbara maior o esplendor maior a qualidade do rei como representante da nação Prudente de Morais recolocou a questão da identidade entre o representante e os membros da nação entre governante e governados A ligação de ambos pela força da opinião igualava as partes e o apoio popular aparecia para ele como a prova de que tinha razão contra todas as evidências em favor da desigualdade como fundamento da atividade de governar Aproximandose do povo Prudente de Morais arrastou uma fronteira No tempo do Império a lei definia os modos opostos da igualdade e desigualdade como soberanias distintas e as escaramuças fronteiriças entre ambos os modos se expressavam na política oficial hierarquizadora Com a República porém veio um novo enquadramento colocando a igualdade como norma legal e relegando o princípio da desigualdade à esfera do costume com a exceção gaúcha que não deixava de ser muito relevante Assim como três séculos de legislação feita para manter a desigualdade não eliminaram os costumes brasileiros uma década de legislação iluminista nem sequer arranhou o fato de que as teorias de governo fundadas na desigualdade estavam entranhadas não só nos conceitos mas nas práticas cotidianas de governantes e agentes sociais Tal como o Império a República não fora exatamente uma revolução um movimento no qual um princípio se impõe a outro por meio da força Comandada por pessoas que até a véspera eram quase marginais na vida política regular conseguiu impor sua autoridade ampliando fronteiras dominando em parte alguns espaços dividindo outros com aliados que propunham ditaduras dependendo ainda de conservadores ou dos raros liberais que haviam exercido poder no regime decaído Com tudo isso também a República ia na prática levando adiante o princípio formador da nação proposto por José Bonifácio colaborando em prol de um amálgama de materiais diversos transformando paulatinamente o heterogêneo em homogêneo Assim como os presidentes tinham interpretações variadas de seus cargos também os efeitos das mudanças republicanas concentradas sobretudo num novo modo de fazer a lei escrita e cuidar de sua execução revelaramse muito diversos nos vários setores da vida social A área que estava conhecendo maiores mudanças era a produção econômica e esta salientavase pelas disparidades regionais Na primeira década republicana o maior crescimento ocorreu na Amazônia entre 1890 e 1900 a população do Amazonas cresceu 70 e no Pará 371 O valor das exportações de borracha sextuplicou entre o final da década de 1880 e o final do século ainda que o dado seja impressionante cabe lembrar que no período ocorreu uma grande desvalorização cambial de modo que as vendas quase não cresceram quando expressas em libras esterlinas Mas a sextuplicação da renda em milréis teve efeitos imensos no crescimento do mercado interno Em 1897 o Amazonas exportou 37 mil contos e importou 15 mil No Pará as exportações foram de 116 mil contos e as importações não chegaram a um terço desse valor 33 mil contos2 O movimento permitiu a acumulação de capitais internos traduzida na instalação de um sistema bancário sólido com capital realizado de 22 mil contos3 Do lado material Belém e Manaus ganharam casas e equipamentos urbanos à altura da riqueza de alguns de seus habitantes Parte das rendas internas foi apropriada pelos governos estaduais O orçamento do Pará de 32 mil contos em 1888 saltou para 25 mil contos uma década depois Com esses recursos os governos criaram uma rede pública de ensino e financiaram a distribuição de terras a produtores por meio de um programa destinado a atrair migrantes e imigrantes São Paulo foi outra região de grande progresso com uma característica peculiar embora houvesse crescimento de exportações este acontecia em ritmo menor do que o aumento do mercado interno local Um indicador simbólico é a distribuição demográfica A capital do estado onde não se plantava café tinha 47 mil habitantes em 1887 e contava 240 mil em 1900 ou seja quintuplicou no breve intervalo de 13 anos Apenas para abrigar esses novos moradores foram criadas 26 sociedades anônimas no setor da construção civil mais uma dezena de empresas ligadas a grandes empreendimentos imobiliários Ao lado da explosão na construção civil registrouse forte aumento de toda a indústria na primeira década republicana Como notou Flávio Saes a indústria da cidade de São Paulo ganhou nova dimensão nos anos 1890 O setor têxtil era o mais expressivo e as maiores indústrias da capital eram a Anhaia com 620 operários no Bom Retiro a Industrial de São Paulo com 320 operários na rua Florêncio de Abreu e a fábrica de Jutas Santana de Álvares Penteado com 920 operários no Brás4 Outro ramo industrial importante foi assim descrito por Wilson Suzigan A maioria das grandes fábricas que estavam funcionando em São Paulo no ano de 1907 eram as mesmas que haviam sido fundadas nos anos 1890 Grande Fundição do Brás 1892 Companhia Mecânica e Importadora de São Paulo 1890 Lingerwood Manufacturing 1868 em Campinas e 1889 em São Paulo Craig Martins 1895 e Arens Irmãos 1890 Essas empresas empregavam entre 100 e 353 operários e produziam principalmente máquinas agrícolas ferramentas e implementos agrícolas pequenos motores a vapor equipamentos de transporte e peças e estruturas de ferro para construções5 Com isso a cidade se tornou basicamente um centro industrial com 30 mil operários fabris na virada do século E a capital servia de base para uma acelerada expansão de mercados Os dados do setor de transportes são claríssimos a respeito do maior crescimento do mercado interno As cargas de outras mercadorias que não o café pelas principais ferrovias do estado conheceram enorme incremento em tonelagem na primeira década republicana 140 na SantosJundiaí 471 na Companhia Paulista 19 ao ano Todas essas expansões eram bem mais aceleradas que a da produção de café que também era acentuada Apenas entre 1890 e 1898 esta cresceu 78 Era um ritmo de expansão semelhante ao da população do interior do estado que aumentou 65 entre 1890 e 1900 E no caso do café a produção final nem era o mais importante Ao longo da década de 1890 o número de cafeeiros plantados em São Paulo saltou de 106 milhões em 1890 para 220 milhões em 1900 um crescimento de 108 superior ao da produção6 O crescimento da produção cafeeira paulista foi de tal monta que alterou a divisão do mercado mundial do produto Em 1890 todos os demais países além do Brasil produziram 41 milhões de sacas de café7 em 1898 a produção desses países foi de 44 milhões com aumento de 75 na década um décimo do ritmo paulista Como resultado o café produzido em São Paulo que representava 34 da produção mundial em 1890 passou a ocupar 41 do mercado Para completar o balanço da economia paulista na década inicial da República resta o setor público no qual se destacava o governo estadual Após o aumento advindo das novas normas constitucionais em 1893 as receitas foram ano a ano acompanhando a produção de café até alcançar cerca de 42 mil contos em 1898 Como proporção da receita federal os impostos arrecadados em São Paulo representavam por volta de 3 na época do Império e passaram para algo em torno de 12 a partir de 18938 Esse crescimento não foi suficiente para inverter a tendência global e São Paulo continuou exportando dinheiro de impostos para a federação ao longo de toda a década Mas as receitas estaduais tiveram um efeito importante permitiram um emprego novo do dinheiro público com alta concentração de investimentos em capital humano As despesas com educação saúde imigração e segurança quase sempre visando a melhoria das condições de formação da população representaram em 1896 62 dos gastos totais do estado As obras públicas investimento em infraestrutura totalizaram 35 dos gastos no mesmo ano9 Era uma diferença radical com relação ao papel do Estado nos tempos do Império A implantação de uma política pública de educação fez com que finalmente o número de crianças na escola crescesse em proporção bem maior que a população infantil Do mesmo modo os investimentos em hospitais e saneamento tornaram viável o início do controle das epidemias Em suma a economia de São Paulo passou por um crescimento extraordinário ao longo da primeira década republicana É nesse cenário que cabe analisar o comportamento do setor financeiro Em 1898 os depósitos totais nos bancos do estado eram de 188 mil contos dez anos depois atingiram 581 mil contos um aumento de 209 número menor do que os melhores indicadores de produção física10 E os bancos conseguiram empregar esses depósitos com uma produtividade crescente no mesmo período o total dos créditos de curto prazo saltou de 223 mil para 107 mil contos multiplicandose por cinco Esse melhor emprego dos recursos deveuse especialmente aos bancos brasileiros a fatia deles no mercado de crédito passou de 422 em 1889 para 874 em 1895 deixando apenas 126 para as filiais de instituições estrangeiras Além da maior eficiência os bancos nacionais também criaram novos mecanismos de crédito de longo prazo algo em torno de 17 mil contos em 1897 e continuaram a investir em ações de empresas os investimentos representavam entre 97 e 14 mil contos das carteiras de aplicações entre 1892 e 1898 Com isso o crédito total em São Paulo cresceu de 223 mil para 1184 mil contos entre 1889 e 189811 um crescimento de 54 vezes ao longo da década ou uma média de expressivos 19 a cada ano igual à do transporte de mercadorias despachadas pela Companhia Paulista de Estradas de Ferro Os indícios em todo o país apontavam na mesma direção Em Minas Gerais apesar do ritmo lento de crescimento demográfico no setor têxtil foram criadas cinco grandes indústrias na primeira década republicana A Cedro Cachoeira maior indústria do estado produziu 435 mil metros de tecidos em 1882 e 3 milhões de metros em 189812 Foram instaladas as primeiras siderúrgicas e a malha ferroviária triplicou nessa década13 Concluída em 1897 a construção de Belo Horizonte a cidade contava 12 mil habitantes no dia da inauguração Na Bahia começava a exportação do cacau que ajudou a impulsionar a economia ao mesmo tempo que as usinas de açúcar pernambucanas traziam a maior produção local a um novo nível de competitividade No Paraná e em Santa Catarina apesar dos problemas durante a luta federalista o nível da produção local também registrou uma alta marcada No CentroOeste tiveram início os investimentos na melhoria do rebanho com as primeiras importações de gado zebu da Índia Em apenas dois espaços brasileiros os sinais não eram totalmente positivos No Rio Grande do Sul a recuperação econômica após o conflito foi rápida A produção de charque saltou de 18 mil toneladas em 1896 para 285 mil em 1898 As vendas de banha praticamente dobraram entre 1894 e 189614 Mas esse crescimento não veio acompanhado de igual incremento na infraestrutura a malha ferroviária teve crescimento zero durante a década além de ter sido bastante prejudicada pelos combates Já o estado do Rio de Janeiro foi aos poucos se recuperando da depressão causada pela adaptação dos cafeicultores ao trabalho livre em 1899 a safra chegou ao mesmo patamar de 1889 mas a essa altura o estado começava a receber as primeiras grandes indústrias sobretudo no setor têxtil As novas fontes de receita permitiram um início de estabilização na crise crônica da administração estadual Por fim na economia do Distrito Federal o setor privado se reorganizara inteiramente na década Com 500 mil habitantes na virada do século tinha o dobro da população de São Paulo Era de muito longe o maior centro industrial do Brasil além de ser o mais variado em produção e o mais avançado em tecnologia Com a passagem do Império para a República houve uma grande mudança na composição das relações de financiamento da economia e o comissário de café desapareceu como figura central da burguesia comercial Porém como a capital continuava sendo o grande porto importador do país surgiram fortunas ligadas a uma mescla de comércio de importação transporte e distribuição cuja figura símbolo eram os Guinle oriundos das empreitadas de obras ferroviárias para a indústria de base e a administração do porto de Santos O mais amplo indicador da atividade econômica no mercado interno é o movimento das principais ferrovias que partiam do Rio de Janeiro um crescimento de 82 anuais nas cargas excluído o café da Central do Brasil entre 1890 e 1895 no auge da crise Já na Leopoldina os dados referemse a um período maior entre 1885 e 1899 as cargas totais foram multiplicadas por 42 Os produtos distribuídos pelas ferrovias tomavam o lugar do café como centro dos negócios da capital Levandose em conta as economias das regiões ressalta o desenvolvimento do mercado no país A consolidação dos dados quantitativos em âmbito nacional ainda está por se fazer mas os poucos e precários dados existentes apontam na direção de um crescimento forte da produção interna durante a década inicial do regime republicano O único indicativo nacional da produção têxtil refere um aumento no número de fusos instalados que passaram de 79 mil em 1883 para 280 mil em 1898 Além disso apenas 31 dos fusos contabilizados em 1883 pertenciam a empresas organizadas como sociedades anônimas contra 61 da segunda contagem Bem mais consistentes são os dados do setor de transporte A malha ferroviária brasileira passou de 95 mil para 147 mil quilômetros uma expansão física de 54715 algo só possível com grandes investimentos de capital Já as cargas transportadas tiveram crescimento ainda maior de 19 milhão para 39 milhões de toneladas um incremento de 10516 Quaisquer que sejam as limitações desses dados para sustentar generalizações de argumentos não há como negar que o quadro era de crescimento muito acentuado em algumas regiões e menos forte em outras a paralisia imperial fora rompida depressa Vale ainda notar que a grande maioria dos dados apresentados aqui referese ao crescimento da produção física e não ao valor da produção e tem ainda outra característica foram quase todos produzidos a partir do último quarto do século passado quando a história econômica baseada em estatísticas começou a se difundir muito no mundo e um pouco no Brasil A agregação de dados como esses leva a conclusões como a de Stephen Haber que atribuiu a mudança no padrão de crescimento às mudanças legais implantadas por Rui Barbosa As mudanças de regulamentação nos mercados de capital permitiram que eles funcionassem melhor As reformas diminuíram os custos de monitoramento permitiram a empresários mobilizar capital em grupos muito maiores que os de suas relações pessoais17 CAPÍTULO 44 Primeira década sertão e capitalismo OS DADOS REFERENTES À PRODUÇÃO NO MERCADO INTERNO MOSTRAM NO LADO DO capital a presença de uma espiral de acumulação Tal indicação também poderia levar a uma suposição bastante razoável os capitalistas estariam acumulando porque agora podiam explorar os trabalhadores livres E isso remete a questão a um ato ocorrido antes do advento da República ou seja ao fim da escravatura A Abolição foi radical Os 750 mil cativos libertados em 1888 representavam 5 da população do país naquele momento Porém mesmo sendo uma mudança de grande magnitude ela não implicou necessariamente a conversão do liberto em trabalhador assalariado Não há nenhum indício numérico relevante de que os exescravos viraram assalariados passando a contribuir como mão de obra para a acumulação capitalista Um número intuitivo diz tudo os 750 mil escravos de 1888 formavam um contingente 25 vezes maior que o dos 30 mil operários industriais de São Paulo em 1901 No sentido inverso o da concepção de que os exescravos viramse condenados ao desemprego e à incapacidade de se enquadrarem na produção econômica ainda que fora do regime de trabalho assalariado também não há indício relevante de que os recémlibertos tenham encontrado obstáculos insuperáveis para sobreviver mesmo que relegados à pobreza muitas vezes extrema Como não viraram assalariados nem desapareceram como produtores econômicos aptos a prover sua subsistência resta então a pergunta que espécie de trabalho encontraram para sobreviver O predomínio do uso da noção de economia de subsistência levou muitos estudiosos a supor que a abolição apenas ampliou o fosso entre o setor que produzia riquezas e uma massa condenada à subsistência sem acumulação Mas o abandono dessa noção permite uma nova mirada que pode começar com a análise das condições de trabalho na agricultura cafeeira aquela que concentrou o maior contingente de cativos libertados Um dos pioneiros em analisar tal situação empregando novos conceitos foi Delfim Netto que notou duas modalidades contrastantes de organização laboral Há uma profunda diferença econômica entre colonato e parceria No colonato o empresário executa de fato seu papel assumindo os riscos do negócio Tratase de exploração tipicamente industrial em que o empresário recebe remuneração residual e o trabalhador recebe a paga por seu trabalho quer a colheita corra bem quer não quer o preço do café esteja alto quer esteja baixo Na parceria o empresário transformase em simples rendeiro e procura dividir o trabalho de direção e planejamento com o trabalhador rural que assume de fato a categoria de empresário Nessa qualidade ele recebe mais se a colheita for bem ou se os preços forem bons ou recebe mal em caso contrário mas não há garantia de remuneração para nenhuma das partes1 Empregando a linguagem da economia clássica ele distingue aquilo que na linguagem marxista marca duas eras a da agricultura capitalista na qual o proprietário compra trabalho e se apossa do resultado deste sob a forma de mais valia e outra a agricultura précapitalista onde o empresário atua como rentista e o trabalhador é um empreendedor associado nos riscos e nos resultados Em cada era o trabalho se coloca de maneira distinta Na agricultura capitalista impera o trabalhador assalariado na forma anterior proprietário e trabalhador dividem os riscos e os ganhos segundo convenção contratual entre as partes Existem muitos estudos posteriores a respeito da convivência produtiva dessas duas formas historicamente diversas de organizar a produção no início da república Entre eles destacamse as análises de Hebe Mattos que ajudam a entender o processo num dos grandes centros do cativeiro a economia do estado do Rio de Janeiro Segundo essa autora a substituição do trabalho escravo acabou sendo resolvida da seguinte forma Apesar da propriedade da terra aparecer como fundamento básico das novas relações de trabalho surgidas após a escravidão apareceram novas relações de trabalho especialmente o aforamento e a meação ao lado da generalização do trabalho familiar inclusive pela maioria dos proprietários2 Essas formas não monetárias de trabalho foram combinadas com uns poucos pagamentos em espécie O pagamento em dinheiro a trabalhadores diaristas não era uma forma estranha tendo se difundido na última década do século XIX como uma solução de expediente diante da realidade da extinção do trabalho escravo que se combinou com a parceria para garantir a continuidade da exploração agrícola3 Outros estudos agora sobre a economia cafeeira de Minas Gerais revelam a mesma espécie de integração entre salários e parceria mas de modo ainda mais complementar como notou João Heraldo Lima Com duas carpas anuais o lucro do fazendeiro seria superior àquele que se obteria por meação Se ele pretendesse fazer em lugar de duas três carpas anuais seu lucro por arroba não seria maior que aquele obtido na parceria onde em geral o número de carpas não passava de duas por ano Dada a baixa produtividade tudo passava a depender dos salários e do número de carpas O ajuste dessas duas variáveis é que determinaria qual dos dois sistemas seria o mais rentável4 A linguagem econômica do ajuste entre variáveis coloca com a naturalidade de uma decisão de simples escolha algo que não é nada simples Em primeiro lugar racionaliza uma possibilidade de escolha também para o outro lado da equação o do trabalho nesse caso a descrição só é simples quando há abundância de trabalhadores que também optavam entre uma e outra espécie de oferta Assim supõese que no lado do trabalho também havia grande flexibilidade É uma verdade de grandes consequências históricas e culturais Mostra que os sertanejos não só estavam aptos para lidar com o mercado como também transitavam sem dificuldade cultural da situação de pessoas ligadas a estruturas de fiado e contratos de risco para o mundo da moeda salário e capitalismo Em termos históricos por trás da naturalidade da linguagem econômica se mostram duas eras econômicas convivendo sem grandes problemas de fronteira O mais esclarecedor aqui seria o recurso à noção de amalgamento Nessa altura a coexistência de uma organização do trabalho baseada em acordos entre empreendedores de um lado e em trabalho assalariado de outro estava presente em diversos espaços brasileiros E tal convivência muitas vezes levava os empresários a tomar decisões racionais que nem sempre requeriam a forma historicamente mais recente do trabalho assalariado Se é certo que a combinação de trabalho assalariado e capital aquela que caracteriza o capitalismo ia predominando tanto na indústria como no setor do transporte ferroviário e em muitos serviços não é tão evidente que o arranjo tradicional tenha deixado de se mostrar competitivo em outras áreas da economia Para entender o motivo disso é necessário relembrar que arranjos como a parceria eram basicamente sociedades de negócio entre produtores independentes A figura do empreendedor era a base da produção no mercado interno do Brasil Figura que perseguia o lucro num mercado quase sem moeda Figura presente em um vasto espaço intermediário chamado sertão tão próprio do Brasil como o termo terra de lei especial não escrita como a lei dos nativos lei do sertão5 Tal combinação de papéis na produção mercantil chegava a extremos de aparência até mesmo paradoxal Barbara Weinstein encontrou já no século XX o seguinte arranjo entre índios Tupi do povo Mundurucu e comerciantes de borracha A ignorância dos Mundurucu em relação ao mercado permitia que o comerciante comprasse a borracha a preços muito inferiores a seu valor comercial Não obstante os Mundurucu conseguiam restringir suas relações com os comerciantes a maior parte dos membros da tribo que participavam da extração da borracha o fazia em apenas parte do tempo três meses o que lhes permitia manter o vínculo com a comunidade tribal6 O caso é bastante ilustrativo Do ponto de vista formal as trocas entre comerciantes e indígenas resultam da alienação mutuamente aprovada de excedentes a troca contratual Caso sejam aplicadas a esse exemplo as normas do costume Tupi é evidente que se trata de uma decisão de produzir excedentes e nesse caso não há dúvida especificamente para a troca O fato de não haver dinheiro é apenas um detalhe cultural no caso Os nativos preferiam produzir a borracha em seus domínios e manter esses domínios era um objetivo racional maior até mesmo do que obter em quantidade algo que não lhes interessava o dinheiro O exemplo mostra também até onde ia a capacidade dos Tupi de produzirem excedentes para a troca para muito além da subsistência Nesse caso eram capazes de competir vantajosamente com seringueiros alocando mercadorias produzidas nas formas de seu governo tradicional para mercado no qual havia abundância de capital A lógica dessa troca entre formações sociais e de governo muito diversas fica mais clara quando essas relações de produção e troca são pensadas com auxílio do conceito de capital comercial assim definido por Karl Marx Qualquer que seja o regime de produção que sirva de base para produzir os produtos lançados na circulação como mercadorias seja o comunismo primitivo a produção escravista a produção pequenocampesina ou pequeno burguesa o caráter dos produtos como mercadoria é sempre o mesmo Os extremos entre os quais o capital comercial serve de mediador constituem para ele fatos dados A única necessidade é que nos extremos existam mercadorias e tanto faz se a produção é mercantil em toda sua extensão ou lança raros excedentes7 A eficiência nesse tipo de arranjo de produção sustentado pelo capital comercial depende fundamentalmente do cumprimento da palavra empenhada entre o detentor de capital comercial e o produtor seja qual for o modo de produção E isso acontecia nos arranjos entre os comerciantes e os Mundurucu de tal modo que o negócio era racional para ambos cada qual segundo seus pressupostos culturais O exemplo amazônico pode ser ainda mais ilustrativo Não apenas era mais racional para detentores de capital comercial trocar com os Mundurucu para ter mais lucro como muitas e muitas vezes a produção nos moldes sertanejos tradicionais do aviamento do fornecimento fiado de meios e compra da produção feita pelos empreendedores sertanejos que arcavam com o risco era muito mais eficiente que o uso de capital para adquirir trabalho assalariado Na imensa maioria das tentativas analisadas por Barbara Weinstein de produção de borracha com base no trabalho assalariado esta mostrouse bem menos rentável até mesmo num caso extremo de emprego intensivo de capital em 1898 a companhia inglesa Rubber Estates of Pará comprou uma propriedade com 13 milhão de seringueiras 25 mil rotas de coleta abertas e produção de 293 toneladas de borracha no ano anterior Segundo a estudiosa seus planos básicos eram Já na primeira reunião de acionistas anunciaram seu plano de reformar inteiramente o sistema de extração e de comercialização da borracha nos seringais da companhia através da simplificação das relações de produção Em primeiro lugar a empresa iria dispensar a presença do intermediário que habitualmente recolhia a produção dos seringueiros e a entregava no depósito central visando uma maior porcentagem de lucros Em segundo lugar e mais importante pretendia transformar os seringueiros em trabalhadores assalariados que deixariam de ter direito sobre a borracha que extraíam Segundo os diretores a vantagem dessa inovação era irrefutável uma vez que o seringueiro era por demais independente e absorvia parcela muito grande dos lucros8 Em tese isto seria a passagem para o capitalismo clássico um novo arranjo dos meios de produção eliminando a precariedade do capital comercial e a independência dos produtores impondo o trabalho assalariado e criando receita em decorrência da extração de maisvalia sobre esse salário O problema foram os resultados A produção despencou para menos de 60 toneladas um quinto do que se obtinha com o método antiquado dos brasileiros e empacou nesse patamar baixo O caso se repetiu com muitos outros estrangeiros A sequência de fracassos levou a reflexões e apenas uns poucos reconheceram a superioridade competitiva do sistema tradicional como neste caso narrado por Weinstein Um magnata norteamericano da borracha escreveu que o obstáculo principal parece ser determinadas condições existentes em áreas enormes fracamente povoadas e negligentemente administradas as quais são extremamente desfavoráveis para estrangeiros que ali invistam seu dinheiro Concluía relutantemente o autor que o aviador por mais que seus métodos pareçam primitivos e devastadores estava mais bem preparado para lidar com as condições que o estrangeiro ainda que provido do mais abundante capital9 Todavia esse reconhecimento de que o emprego do capital para comprar trabalho assalariado era pouco competitivo com os empreendedores independentes na organização da produção e a compreensão da racionalidade dos arranjos do aviamento foram mais a exceção do que a regra Bárbara Weinstein apresenta duas outras explicações para fracassos Ashmore Russan gerente da Brazilian Rubber Trust resumiu sua longa lamentação a respeito do colapso da firma com uma recomendação Temo que não há mais nada a fazer senão utilizar chineses ou malaios que trabalham por salário em qualquer situação em que sejam postos Já um investidor de Denver com todo sarcasmo declarava haver descoberto a situação ideal para os problemas de mão de obra na Amazônia uma força de trabalho de macacos treinados10 Como naquela realidade os macacos saíamse melhor do que os homens ideais o amálgama amazônico ganhou para sempre uma face cabocla baseada em decisões racionais sobre a lucratividade dos empresários num ambiente de competição As relações entre a acumulação capitalista acelerada ou desenvolvimento dos mercados e a produção tradicional de empreendedores deixaram uma marca peculiar no cenário econômico da primeira década de regime republicano A fronteira do capital mudou radicalmente com seu avanço mas aquilo que parecia ser uma formação socioeconômica tradicional e inerte dos sertões se vista a partir da noção de economia de subsistência mostrou na óptica de estudos que dispensaram a noção quase de imediato a sua capacidade vinda desde os tempos coloniais de reagir aos estímulos de mercado mesmo mantendo a forma tradicional das relações entre empreendedores Tal ajuste se deu tanto no sentido positivo nas regiões em que havia abundância de capital como no sentido negativo naquelas em que prevalecia a escassez de capital No Nordeste os investimentos em usinas coincidiram com os períodos de seca A realidade do trabalho ali não conheceu as oportunidades da convivência com maiores capitais como notou Robert Levine Quando depois da Abolição os preços do açúcar continuaram a cair a vida do trabalhador tornouse ainda mais precária Para os diaristas cujas fileiras haviam engrossado desmedidamente com a entrada de exescravos recentemente libertados o salário real caiu quase à metade se comparado com a média de meados do século11 Mas no período houve uma consolidação daquele amalgamento que virou a regra em todo o Brasil Os elos básicos da nova cadeia ganharam vários nomes regionais Na Amazônia os empreendedores eram chamados aviados os comerciantes aviadores No interior do Nordeste proprietários e vaqueiros ou agregados no litoral plantadores ou donos de usinas e diaristas No sertão pecuário do CentroOeste e parte de Minas Gerais fazendeiros e boiadeiros No Brasil todo havia parceiros meeiros camaradas uma leva de nomes para uma mesma função sócio na empreitada agrícola dividindo riscos e lucros com um adiantador de meios Com três quartos da população morando no campo todas essas relações econômicas se resolviam ainda ao largo dos governos ou dito de outro modo apenas entre pessoas na sociedade O costume revitalizouse agora que a lei não proibia mais os arranjos formais necessários para o capitalismo Esse gigantesco conjunto de relações produtivas era tido pelos teóricos do governo imperial nos tempos da escravidão como anárquico improdutivo e incapaz de reagir ao mercado e de progresso A retirada da trava da escravidão permitiu o contato dos arranjos consuetudinários com relações mais próximas da produção capitalista e aquilo que os dados econômicos quantitativos revelam sobre o comportamento do capital e do trabalho na primeira década republicana não cessa de surpreender mas as surpresas ajudam a entender a amplitude da aceitação de Prudente de Morais CAPÍTULO 45 Primeira década amálgamas e incrustações O REORDENAMENTO LEGAL ESCRITO PROMOVIDO PELA REPÚBLICA PERMITIU UMA rápida expansão das empresas Alterouse o patamar da produção assim como o do trabalho assalariado Ambas as mudanças contudo não eliminaram os seculares arranjos informais que se tornaram mais produtivos em contato com o dinheiro Esse processo de mútua influência positiva ocorreu em escala menor em outras áreas Uma delas foi na esfera da palavra escrita que foi deixando de ser um privilégio de agentes do governo ou de seu entorno A alfabetização em massa logo passou a ser promovida nos estados que tiveram maiores aumentos de receita Começou a se tornar cada vez mais comum a cena de crianças uniformizadas a caminho das escolas públicas Tal fenômeno coincidia com o fato de que muitos imigrantes vinham alfabetizados ou pelo menos conheciam a importância da educação para os filhos dada a realidade de seus países de origem E alguns fundaram escolas particulares em suas comunidades ampliando ainda mais o emprego da escrita sobretudo no Sul O Rio Grande do Sul logo se tornou o estado com as maiores taxas de alfabetização do país e isso num contexto em que por motivos ideológicos o governo estadual não investia no ensino superior A existência de um público leitor levou ao crescimento de outro negócio o da imprensa Até a República a regra do jornalismo brasileiro foi a mesma do Ocidente até meados do século XIX assim descrita por Michael Schudson O jornal político era a regra prática e o padrão comum Os jornais partidários dependiam de políticos não apenas para ter capital mas para a manutenção obtida via publicidade oficial quando o partido estava no poder1 Tudo isso levava conforme o autor a um circuito econômico modesto Os jornais eram caros Cada exemplar custava seis centavos quando a diária de um trabalhador valia oitenta Além disso exemplares avulsos só podiam ser comprados na redação A assinatura era a forma usual de venda e custava entre oito e dez dólares por ano Não é de se estranhar que a circulação fosse limitada usualmente entre 1 mil e 2 mil exemplares mesmo nos maiores jornais metropolitanos A leitura ficava confinada à elite e o conteúdo do jornal ao comércio e à política2 Nesse contexto do jornalismo partidário e do jornalista faztudo o prelo era a tecnologia dominante em todo o Ocidente e a imprensa do Brasil Imperial não destoava muito do padrão mundial No país havia eleições e troca de partidos no poder Da mesma forma que nos Estados Unidos ou na Europa só votava uma minoria de eleitores homens o que explicava a limitação elitista dos jornais partidários Desse modo havia no país as condições básicas para a sobrevivência dos jornais partidários Com sorte arrancavase dinheiro suficiente do governo durante a maré no poder para sobreviver na oposição ainda que em condições precárias Muitas cidades no Brasil tinham jornais e as tiragens eram semelhantes às dos jornais partidários nos Estados Unidos Mas essas tiragens deixaram de ser semelhantes desde o surgimento quase ao mesmo tempo de um conjunto de avanços em meados do século XIX a impressora rotativa o telégrafo as ondas imigratórias e as comunicações rápidas por ferrovia O jornalista Benjamin Henry Day combinou tudo isso numa fórmula inaugurada em 1833 um jornal para ser vendido nas ruas por apenas um centavo Além de custar um sexto do preço dos concorrentes não era feito para ser comprado na redação Lotes de cem exemplares eram vendidos por 67 centavos para aqueles que se dispusessem a pagar adiantado e tentar ganhar 33 centavos revendendo o jornal na rua ou por 75 centavos para aqueles que levassem o maço a crédito Em poucos dias as ruas estavam lotadas de vendedores de jornais Foi um choque notado por Henry B Turner Nenhum jornalista de publicação de elite imaginavase descendo tão baixo a ponto de ter vendedores apregoando manchetes na rua3 Não bastasse isso o jornal ainda trazia anúncios de si mesmo convidando pessoas a anunciar nele Quando os concorrentes acordaram tiveram de correr atrás do sucesso instantâneo do jornal The Sun logo conhecido como penny paper jornal de um centavo E estavam muito atrasados as vendas do líder logo chegaram a 19 mil exemplares diários Estava iniciada a revolução assim descrita por Michael Schudson Estamos tão completamente acostumados à ideia de notícia ou ao próprio jornal que se torna difícil perceber quão dramática foi a mudança trazida pelos penny papers Até então um jornal trazia informações para partidos políticos e homens de negócio a nova imprensa vendia o jornal como produto destinado a um público amplo e também vendia o acesso a esse público leitor para anunciantes Já o produto vendido para os leitores eram as notícias um produto original em muitos aspectos Em primeiro lugar a ideia era apresentar de maneira agradável e sem partidarismo eventos importantes do mundo As notícias de um jornal podiam ser diretamente comparadas às de seus concorrentes o que obrigava a descrições acuradas4 Essa transformação aconteceu no Brasil com o advento da República muito especialmente no Rio de Janeiro Para começar havia uma concorrência forte duas dezenas de títulos de jornais diários Os maiores impressionaram até mesmo o jornalista francês Marc Leclerc que esteve na cidade na época São providos de uma organização material poderosa e aperfeiçoada vivendo principalmente de publicidade organizados acima de tudo como uma empresa comercial e visando penetrar em todos os meios e estender o círculo de seus leitores para aumentar o valor de sua publicidade Em torno deles está a multidão multicolor de jornais de partidos que longe de serem bons negócios vivem de subvenções e só são lidos se o homem que os apoia está em evidência ou é temível5 Os dois maiores jornais eram o Jornal do Commercio e a Gazeta de Notícias além deles O País o Diário de Notícias e o Jornal do Brasil também podiam ser enquadrados na mesma categoria Os quatro primeiros passaram incólumes pela mudança de regime graças à estrutura econômica o Jornal do Brasil fundado em 1891 já nasceu com grande capitalização Essa era a elite sobrevivente O restante da imprensa da cidade padeceu com a mudança de regime pelo simples motivo de que o grande fornecedor de meios o governo retirouse do mercado O fim das trocas partidárias do Império significou também o término das subvenções que mantinham os pequenos jornais Para sobreviver estes foram buscar recursos com métodos não exatamente castiços Leclerc os descreveu Consistiam na publicação nas colunas ineditoriais sob o título de A Pedidos de libelos infames de ataques anônimos contra figuras públicas ou privadas e instituições publicações essas pagas pelos interessados entre os quais não raro se encontra a polícia Este recanto malafamado dos jornais onde o leitor levado por uma curiosidade malsã deita o olhar em primeiro lugar é um ponto gangrenado do corpo social6 Em São Paulo o líder de mercado era O Estado de S Paulo cuja circulação vinha conhecendo um aumento significativo Em 1888 quando Júlio Mesquita passou a trabalhar na publicação a tiragem girava em torno de 2 mil exemplares e havia 902 assinantes Em 1893 as tiragens já eram de 7 mil exemplares e a rentabilidade de 203 a participação nos lucros paga ao jornalista permitiu lhe começar a adquirir o controle do jornal Na virada do século a tiragem alcançou 14 mil exemplares O número de páginas de publicidade saltou de 1190 em 1894 para 1634 em 1898 um aumento de 38 em apenas quatro anos A mudança da escala do jornalismo partidário para aquela do jornalismo de massa trouxe para o Brasil a mesma espécie de noticiário que se tornava comum no Ocidente Em vez de escrever para adeptos os jornalistas passaram a escrever para pessoas dispostas a se informar muito pagando pouco E nesse tipo de jornal da primeira década republicana a figura que marcou a passagem de um modelo a outro foi a do cronista que anda pela cidade observa o comportamento de indivíduos ou grupos e relata o que lhe chama a atenção Logo um tipo específico de cronista ganhou a simpatia do público o do profissional assalariado capaz de descrever com simpatia as figuras populares a narrar por escrito culturas tradicionais que até então não haviam merecido registro escrito no Brasil Lima Barreto no Rio de Janeiro Valdomiro Silveira em São Paulo com seus casos caipiras Simões Lopes Neto no Rio Grande do Sul foram alguns deles Assim começava o processo de amalgamento de culturas antes inteiramente separadas nas letras Começava pelos jornais modernos que circulavam no mercado mas esses registros eram quase nada se comparados à maciça literatura feita ao modo tradicional em geral por funcionários públicos ou eruditos amadores A marca de estilo era tão secular quanto os arranjos produtivos informais afirmarse como pessoa elevada e descrever os demais brasileiros quase todos como um rebotalho em termos morais e físicos Desde o final do Império essa literatura ganhou um verniz científico conferido não só pelos adeptos da ditadura positivista Eruditos de toda espécie importaram textos correntes na Europa que definiam o progresso da civilização como indo do homem primitivo para o homem ocidental Adaptavam essa ideia com grande facilidade identificando o narrador como o desenvolvido o brasileiro como o primitivo e a miscigenação como produtora de decadência Isso marcou também as grandes interpretações sobre o período Monarquistas como o visconde de Taunay apresentaram as mudanças institucionais e a política monetária expansionista da República como um truque financeiro uma jogatina bolada pelo cérebro maquiavélico de Rui Barbosa que só causava misérias e não gerava riqueza E o título do seu folhetim acabou ganhando um grande fôlego histórico Até hoje continua vivo toda vez que se emprega a expressão encilhamento para resumir o período Nesse caso não se trata apenas de uma visão tornada obsoleta com o desenvolvimento das técnicas econométricas A interpretação continua viva porque no caso da primeira década republicana ainda subsistem dificuldades para avaliar com clareza o quanto foi crescimento real da produção inclusive no sertão e o quanto se devia apenas a um efeito inflacionário A expansão monetária foi real no período A quantidade de moeda era de 211 mil contos em 1889 e girava em torno dos 600 mil contos durante a administração de Prudente de Morais tendo praticamente triplicado em uma década Não bastasse a maior quantidade de moeda também aumentou a velocidade de seu emprego O fornecimento de crédito pelos bancos paulistas no mesmo período foi multiplicado por 53 passando de 223 mil contos em 1889 para 1184 mil em 1898 Mas também não resta dúvida de que a produção real aumentou no período assim como o registro formal de produções já existentes por meio dos mecanismos legais criados pelo novo regime Para complicar ainda mais as contas atuais ocorreu outro fenômeno econômico de grande amplitude Milréis compravam 27 pence em 1889 e apenas 6 em 1898 Com isso as importações se tornaram quatro vezes e meia mais caras no período Essa mudança significava tanto proteção para a indústria local como eventualmente inflação derivada da impossibilidade de evitar certas compras no exterior No comércio exterior parece pouco razoável atribuir o crescimento no mercado interno a um aumento no valor das exportações em 1889 foram de 285 milhões de libras esterlinas em 1897 de apenas 259 milhões Embora favoráveis ao Brasil os saldos comerciais foram pouco relevantes Como desde a crise de 1890 os fluxos de capital eram negativos em escala maior que os saldos comerciais a balança com o exterior também era negativa o que exclui a hipótese de crescimento derivado de investimentos estrangeiros Com tantos dados para avaliar ainda falta chegar a uma conta aceitável que separe crescimento da produção e simples elevação nominal de preços por um motivo substantivo até hoje não se conseguiu calcular com precisão suficiente um índice nacional de inflação isto é crescimento nominal de preços menos crescimento real da produção Por outro lado também remonta ao período a percepção da necessidade desse tipo de supervisão pelo governo Bernardino de Campos ministro da Fazenda de Prudente de Morais tinha aguda consciência da precariedade dos instrumentos aferidores do governo brasileiro sobretudo no campo da estatística No Brasil os poderes públicos o comércio e a indústria sentem a cada passo embaraços e prejuízos por falta de estatística que é o fundamento seguro sobre o qual deve repousar a administração econômica e meio mais profícuo para atingir maior prosperidade Os trabalhos de estatística que aparecem no país são organizados nas praças estrangeiras que utilizamse desses instrumentos em proveito próprio por conseguinte em prejuízo dos produtores nacionais É lamentável não se conhecer nem mesmo as riquezas das propriedades rurais de todo o país7 Sem contar com tais instrumentos Prudente de Morais teve de seguir o seu instinto de governar para a maioria Fez isso diminuindo os próprios poderes a fim de ampliar os da sociedade em que confiava suspendeu o estado de sítio a censura as intervenções nos estados a intromissão em disputas locais e as restrições que tolhiam os cidadãos Assim construiu sua imensa popularidade mais fácil de entender na linha do progresso real da economia do que pensando com os argumentos de seus contrários monarquistas O fato é que partindo de uma situação crítica no primeiro dia de governo ganhou apoio maciço Ao longo de 1898 por onde andava era aplaudido No dia 15 de novembro o homem que tomara posse sozinho passou a faixa presidencial diante de uma multidão aglomerada na porta do palácio Sua primeira caminhada ao retomar o papel de cidadão comum entre o palácio e a pensão onde agora se hospedaria a poucos quarteirões da sede do poder consumiu horas de cumprimentos de brasileiros entusiasmados Antes de entrar no quarto foi chamado para a sacada onde oradores se revezaram em mais umas tantas horas de discursos todos aplaudidos pela multidão nas calçadas Os banquetes de homenagens ocuparam mais três dias O percurso entre a pensão e a estação ferroviária de onde partiria para São Paulo levou duas horas entre aplausos A viagem durou um dia e meio pois havia multidões em todas as estações no caminho Havia 10 mil pessoas na estação em São Paulo com 240 mil habitantes participou de um banquete com dezenas de brindes O último foi de Júlio Mesquita diretor de O Estado de S Paulo Prudente de Morais transformou uma república de ódios numa república de progresso e justiça Eis aí seu serviço Em resposta Prudente de Morais reafirmou as suas convicções Esforceime sempre por cumprir meu dever no honroso mandato que me confiou o sufrágio da nação Estou satisfeito porque as manifestações populares e provas de apreço corroboram aquela afirmação da própria consciência nacional De parte a generosidade de que se revestem tais manifestações estas constituem a melhor recompensa aos esforços que empreguei até o sacrifício para servir à República Na impossibilidade de agradecer pessoalmente aos meus concidadãos recorro a vosso jornal para apresentar a todos os protestos de um sincero reconhecimento e profunda gratidão8 Dito isso voltou para Piracicaba e reassumiu a banca de advogado Dali como tantos outros cidadãos brasileiros começou a acompanhar um presidente que se revelava para a maioria dos cidadãos apenas no momento da posse algo só possível porque a República também legislou para trás Embora o hábito trouxesse a alternância no poder a letra da Constituição sagrara o atraso em relação ao Ocidente construído no final do Império o voto do analfabeto tradição secular foi proibido e o atraso seria necessariamente cada vez maior Era uma tentação e tanto voltar atrás CAPÍTULO 46 Campos Sales e o plano regressivo ENQUANTO PRUDENTE DE MORAIS RECEBIA APLAUSOS E OS INTERPRETAVA COMO reconhecimento de que o cidadão e o presidente da República representados e representantes se irmanavam na soberania popular e o capitalismo se expandia mesclandose ao sertão o seu sucessor Campos Sales tomava posse publicando um manifesto no qual se lia o seguinte trecho Elevado a este posto de honrosa confiança e incomensurável responsabilidade aprazme acreditar que o que pretendeu o voto popular foi colocar no governo da República o espírito republicano na sua acentuada significação E esse intuito é naturalmente presumível dada a índole de nosso regime que com a responsabilidade unipessoal preferiu eliminar a política de uma coletividade para concentrála na pessoa da suprema autoridade em quem reside constitucionalmente o critério que dirige delibera e aplica1 Era uma interpretação radicalmente diferente tanto do papel do eleitor soberano como daquele do presidente eleito Em vez de delegar poder a um presidente que governa como representante como pregava a teoria iluminista e acreditava Prudente de Morais o novo presidente concebia o processo eleitoral como aquele pelo qual o eleitor renuncia à política e concentra poderes numa autoridade elevada ao grau de suprema autoridade Nada disso estava na letra da lei nem no costume republicano Tratavase claramente de uma interpretação do emprego da escrita para criar um significado próprio e interessado para um modo de exercer o cargo de presidente da República Mais ainda era uma interpretação que fora apresentada ao eleitorado por um caminho tão sutil que merece ser refeito em detalhes A interpretação de Campos Sales começou a ser elaborada em junho de 1897 quase dois anos antes da posse Nesse momento o então governador de São Paulo recebeu uma carta de Bernardino de Campos o ministro da Fazenda do presidente Prudente de Morais Ele detalhava o modo pelo qual o governador havia se transformado em sucessor escolhido por um grupo Seu nome surgiu das esperanças dos políticos que rodeiam o governo como centro de aspirações pela ordem constitucional sustentada por um republicano histórico de nome feito e capacidade comprovada Nenhum dos senões opostos aos outros nenhuma suspeição possível nenhuma contestação a não ser de ordem geográfica A Prudente dirigime francamente por não dever agir sem ele e tive calorosa aprovação Lembrou o nome de Rosa e Silva para a vice presidência como boa aliança2 A lista de argumentos favoráveis começa pela biografia política Campos Sales havia sido até então bem mais que um simples militante formal da causa republicana Filho de um tropeiro metido com a Revolução de 1842 fora ele mesmo tropeiro quando jovem e republicano de primeira hora Arranjou dinheiro e ajudou a manter o jornal do partido A Província de S Paulo Foi deputado provincial e nacional pelo partido ministro da Justiça do primeiro governo provisório senador e governador de São Paulo Além de apresentar a biografia como ativo político o ministro detalha como este foi convertido em algo maior pela ação do presidente da República e do Parlamento tal histórico havia gerado a candidatura para o cargo de presidente aceita pela maioria dos detentores de mandato E Prudente de Morais se encarregara ainda da articulação para encontrar um vicepresidente capaz de arregimentar votos em todo o Norte e Nordeste do país Assim Prudente de Morais fazia o contrário de seu antecessor buscava consenso no Congresso casa maior dos representantes eleitos apoiava o mecanismo de transformar o consenso em unidade aplainava o terreno para que houvesse uma boa dose de firmeza entre os políticos e apoio dos eleitores para que funcionasse o mecanismo da troca de mandatário pela via do sufrágio ainda incerto como hábito Tudo isso feito o escolhido teria uma estrada mais do que tranquila para percorrer caso aceitasse a indicação Campos Sales claro não pronunciou uma palavra contra o presidente nem contra as forças políticas que o apoiariam Tampouco disse algo em público que levasse alguém a suspeitar que pudesse ter outras ideias para o governo que não aquelas que Bernardino de Campos mencionava como sendo as que moviam aqueles que o apoiavam Ao receber a carta do ministro fazia menos de um mês que Campos Sales enviara uma outra privada a uma pessoa que não era exatamente bemvista por Prudente de Morais Joaquim Murtinho que por indicação do vice interino Manuel Vitorino havia ocupado o Ministério da Viação e escrevera um relatório publicado em 1897 criticando a condução da economia cujo ministro era exatamente Bernardino de Campos Na carta Campos Sales dizia nada menos que o relatório era um verdadeiro plano de governo Como um mês depois essa afirmação iria adquirir outro peso vale a pena examinar o argumento do relatório que se baseava numa premissa fundamental Não podemos como muitos aspiram tomar os Estados Unidos como tipo para o nosso desenvolvimento industrial porque não temos as aptidões superiores de sua raça força que representa o principal papel no progresso industrial deste país3 Para o Brasil o ideal econômico deveria ser outro A supremacia do industrialismo poderá trazernos grandes males sociais deixandonos talvez a forma mas fazendo com certeza perder a substância da nossa liberdade4 A insistência na indústria seria prejudicial A nossa organização industrial tem seguido nestes últimos tempos uma marcha anômala irregular e profundamente viciosa A ideia errônea e antissocial de que da grandeza industrial de nossa pátria depende sobretudo nossa libertação cada vez mais completa dos produtos da indústria estrangeira foi provocando a aspiração de estabelecer empresas industriais de todos os gêneros para realizar aquele desideratum pseudopatriótico5 Em vez disso uma política econômica sadia deveria se voltar para preservar a verdadeira fonte da riqueza brasileira A febre industrial acarreta para a agricultura perturbações de tal ordem que esta principal fonte de nossa riqueza está sob a ação de uma crise profunda e de difícil solução A atração que a vida da cidade exerce sobre os operários a ação que os lucros grandes e rápidos das indústrias exercem sobre os capitais e sobre os braços são outras tantas causas da drenagem que sofre a agricultura de seus elementos mais importantes de produção Acrescentese a isso a elevação dos salários produzida entre outras coisas pela carestia de vida e o hábito de uma existência mais confortável e por isso mesmo mais dispendiosa por parte dos operários6 O trabalho assalariado e o capital a vida urbana e a riqueza na visão de Murtinho deveriam ser combatidos pela seguinte razão A agricultura a indústria e os serviços custeados pela União deveriam ser as três árvores produtoras de nossa riqueza Só a agricultura porém produz na realidade Os serviços custeados pela União de um lado e a indústria do outro lado transformaramse em parasitas7 Para resumir no lugar de industrializar aumentar o mercado enriquecer a nação o objetivo da ação econômica do governo deveria ser o de evitar os males do capitalismo a atração da vida urbana os lucros da indústria a elevação dos salários uma existência mais confortável Tudo isso para que a marcha da agricultura não fosse perturbada uma vez que aí estava a verdadeira fonte da riqueza Essa era uma noção com história como se nota pela comparação com as palavras de François Quesnay escritas no século XVIII Os trabalhos da indústria não multiplicam as riquezas Os trabalhos da agricultura compensam os custos pagam a mão de obra do cultivo propiciam ganhos aos lavradores e além disso produzem as rendas dos bens de raiz Os que compram as obras da indústria pagam os custos da mão de obra e o ganho dos mercadores mas essas obras não produzem nenhuma renda a mais8 Já no século XIX nunca é demais repetir essa era uma posição obsoleta em economia a se julgar pela análise de Karl Marx Para os fisiocratas o trabalho agrícola é o único trabalho produtivo porque é o único que cria maisvalia eles não reconhecem outra forma de maisvalia além da renda da terra Segundo os fisiocratas a agricultura fornece matéria para toda a produção social O operário industrial não acrescenta matéria mas se limita a modificar sua forma por isso não acrescenta valor à matéria Para os fisiocratas também o lucro não é mais que uma espécie de salário de categoria superior pago pelos proprietários de terra Nesta concepção o proprietário de terras aparece como verdadeiro capitalista como elemento que se apropria do trabalho excedente Deste modo o sistema feudal se apresenta reproduzido e explicado na descrição da produção burguesa e a agricultura aparece como único setor que realiza produção capitalista9 Joaquim Murtinho era um fisiocrata com pedigree descendente do bispo Coutinho do visconde de Cairu do visconde de Itaboraí Renovava a ideia de que o governo deveria agir contra o capitalismo montante Não mais em nome da escravidão mas contra a indústria e o trabalho assalariado Para tanto seu projeto tinha como ponto básico a contenção da moeda emitida nos primeiros anos do regime que via como criadora das indústrias que não deveriam existir A emissão forçada se faz às cegas impelida pela especulação pelo jogo e por todas as loucuras da bolsa Daí a massa de papelmoeda inconversível ligando a indústria ao crédito não sendo mais a necessidade de uma indústria que provoca a emissão mas a emissão que solicita a criação de indústrias sem razão de ser10 Os males se multiplicariam até a danação Organizaramse empresas de todas as espécies na esperança de que imediatamente o Brasil se tornaria um grande país industrial Em breve tempo a ilusão dissipouse deixando ver bem claro que os capitais não se haviam multiplicado que o crédito havia caído e que os recursos distribuídos para cada empresa eram absolutamente insuficientes para seu desenvolvimento11 Assim o que parecia riqueza se revelaria como pobreza Uma grande soma de capital circulante havia se transformado em capital fixo imobilizandose em máquinas e edifícios e ficando assim improdutivo durante muito tempo ou inutilizandose para sempre Essa imobilização improdutiva e essa inutilização definitiva de capitais acarretaram como consequência o empobrecimento do país e perturbações graves de nossas condições financeiras12 A confusão entre indústria capitalismo jogo e loucura falsa riqueza enfim era outra noção com história Mas história caipira de seus chefes de escola Como o visconde de Cairu no início do século XIX como o visconde de Itaboraí em meados desse século e como o visconde de Taunay de sua época Joaquim Murtinho entendia o investimento em fábricas e bens de capital não como incremento para a produção mas como imobilização improdutiva e por isso identificava a acumulação capitalista o progresso industrial e do trabalho assalariado com pura ficção numérica falso desenvolvimento Em plena virada da produção brasileira para o capitalismo ele queria colocar a força do governo central a serviço da reação da volta ao passado para satisfazer o conceito aristotélico de que a natureza era a única produtora de valor e a desigualdade o fundamento da moral Assim até mesmo as precárias condições do nascente proletariado urbano lhe pareciam hábito de uma existência mais confortável e por isso mesmo mais dispendiosa por parte dos operários Depois de receber a notícia de sua escolha para a presidência Campos Sales guardou total sigilo de sua admiração por esse tipo de pensamento pelo simples e razoável motivo de que as ideias contra o progresso capitalista não faziam parte da propaganda republicana nem passavam pela cabeça da imensa maioria daqueles que construíam e levavam adiante sua candidatura a começar do seu grande eleitor o presidente da República O apoio obtido por meio da articulação nacional capitaneada por Prudente de Morais era de tal ordem que não restava a menor dúvida sobre quem seria o vencedor da eleição Por todo o país deputados escreviam cartas a seus apoiadores locais que iam convencendo vereadores a convencer eleitores a votar no candidato A imprensa noticiava tudo isso e era o que bastava Com tanta gente apoiando Campos Sales nem precisava se mexer Seu único ato para se mostrar como candidato ao eleitorado foi o de participar de um banquete no teatro São José em São Paulo no dia 31 de outubro de 1897 Ali leu um discurso com alguns pontos que eram típicos de republicanos históricos Ele defendeu por exemplo o sistema federativo O sistema federativo caracterizase pela existência de dupla soberania na tríplice esfera do poder público Suprimir um só dos órgãos dessa soberania equivale a destruir o próprio sistema13 Logo a seguir porém vinha uma frase que trazia uma alusão significativa Em todos os regimes representativos seja uma monarquia ou uma república seja presidencialismo ou parlamentarismo nenhum governo pode dispensar uma maioria no corpo legislativo por meio da qual se estabeleçam relações de harmonia entre os poderes A diferença quanto à forma consiste em que no governo de gabinete o Parlamento exerce uma influência direta e preponderante sobre o Executivo e isso conferelhe até certo ponto a partilha da função governamental No regime presidencial porém o Executivo atua com completa independência de tal sorte que o Legislativo igualmente soberano no exercício de suas funções não governa nem administra14 O destaque na versão impressa do discurso foi colocado pelo próprio Campos Sales que sabia exatamente o que estava realçando a máxima dos conservadores dos tempos do Império que vale a pena relembrar A citação era parte do lema do Partido Conservador em defesa dos poderes pessoais e arbitrários de D Pedro II a célebre máxima do visconde de Itaboraí O rei reina governa e administra Campos Sales não era imperador por isso dizia querer apenas governar e administrar Sabia que deposto o monarca havia cessado o reinar Por isso não tocou no assunto Mas no que de fato interessava empregou a citação para definindo sua visão de presidência buscar aquilo que buscavam os conservadores do regime que depusera limitar o poder derivado da soberania popular e de seus representantes no Parlamento e ampliar o espaço de atuação do ungido republicano Essa ideia de uma hierarquia entre poderes com um governante posto no alto e os representantes populares bem abaixo era clara Declaro que não sou daqueles que entendem que o depositário unipessoal do poder seja propriamente um chefe de partido Qualquer que tenha sido a sua posição anterior nas lutas políticas o cidadão uma vez eleito passa a ser o chefe do Estado Ele deixa a superintendência dos interesses exclusivos do partido para assumir as altas gestões dos negócios gerais da comunidade Aquele que é elevado ao governo pelo voto popular deixa na arena ardente das lutas e das paixões o incessante conflito dos interesses e das opiniões para levar para as regiões serenas da aplicação só os grandes ideais15 A Constituição republicana não falava em nada disso contendo apenas a fórmula corrente de afirmar o povo como soberano e o voto como instrumento dessa soberania Falava em três poderes iguais e independentes mas o futuro ocupante da cadeira pretendia recriar a hierarquia da dupla soberania do Império com a cadeira presidencial fazendo as vezes de trono O Congresso como todos os corpos legislativos tem necessidade de que sua iniciativa seja esclarecida e mesmo a certos respeitos dirigida O poder que pela natureza de suas prerrogativas se acha em condições de esclarecer e dirigir é o Executivo16 Esse era o cerne do discurso no qual só havia umas poucas platitudes sobre finanças O restabelecimento do equilíbrio financeiro depende antes de tudo do civismo e clarividência daqueles que têm a responsabilidade da direção dos destinos da nação Assegure o Executivo a ordem e a paz e dêlhe o Legislativo o seu apoio com austera firmeza na execução de um plano que deve começar com a mais severa economia e estará feito um caminho para o crédito nacional17 O candidato nada disse contra a indústria a riqueza o conforto dos assalariados o desvio de capitais da agricultura Também não fez a menor crítica a Prudente de Morais e a todos que o apoiavam Ninguém ligou muito para as afirmações até porque o atentado contra Prudente de Morais cinco dias depois era o tema preferencial das conversas Coube ao próprio Campos Sales mostrar que o discurso era importante e parte de um plano uma década mais tarde quando já deixara a presidência da República O agrupamento político que levantava minha candidatura era o mesmo que apoiava o governo do senhor Prudente de Morais com quem me achava em desacordo em questões de princípio e de forma Era um dever de lealdade portanto falar diretamente ao eleitorado para definir com clareza minhas ideias e denunciar com sinceridade minhas intenções Eu previa também que desse procedimento resultariam consideráveis vantagens para a ação governativa Foi assim que elaborei meu manifesto Ninguém teve dele conhecimento antes de sua leitura Quem se propõe a consultar opiniões alheias sujeitase sempre a modificar as suas e era isso que eu queria evitar18 As opiniões alheias não eram apenas de pessoas que poderiam sugerir mudanças no texto Eram também as do eleitorado que teria sido diretamente informado sobre as posições do candidato Assim os vagos trechos do discurso foram reinterpretados pelo autor como sendo a apresentação de uma plataforma eleitoral aprovada pelos votos da soberania popular Para Campos Sales os eleitores foram às urnas não para eleger um representante a quem delegavam o exercício do poder para defender seus interesses mas para renunciar a esses interesses alienar todo o poder político e elevar o eleito a culminâncias de onde poderia governar e administrar acima da vontade dos eleitores dos grupos que o elegeram e do Congresso Como previsto ele se elegeu no dia 1o de março de 1898 E com o apoio de Prudente de Morais governou muito antes mesmo de reafirmar sua crença como ungido no discurso de posse CAPÍTULO 47 O caranguejo e a ostra DEPOIS DO BANQUETE CAMPOS SALES FICOU MUDO DEIXANDO O PRIMEIRO PASSO efetivo de seu plano para duas semanas antes das eleições no dia 14 de fevereiro de 1898 quando escreveu a seguinte carta pessoal e reservada ao presidente Prudente de Morais Confirmo o que já pensava sobre o crédito estrangeiro Aí está toda a agravação de nosso mal financeiro Nosso ponto de partida o único com resultados definitivos será ou seria uma vasta operação no estrangeiro Não julgue entretanto desesperadora ainda que opressiva a nossa situação Em conversa com o Rodrigues Alves disselhe que veleidades à parte devemos tentar o empréstimo no estrangeiro dando como garantias as rendas de nossas alfândegas Não sei se na lei do orçamento existe autorização para o empréstimo com garantia se não existir seria preciso pedila e obtêla do Congresso custe o que custar Julgo indispensável adotar as bases de um plano nesse sentido para oferecer aos banqueiros londrinos e provocar seu pronunciamento Se V entender que é necessária a ida de alguém à Europa para tomar informações estudar as oportunidades e aplicar os meios para uma informação que resolva o problema eu desde já me proponho a fazer a viagem a título de passeio sem caráter oficial e guardada com a mais completa reserva sobre seu fim oculto1 Segundo o diagnóstico de Campos Sales o problema central da economia brasileira seria a falta de crédito externo para o governo federal Deixava bem claro que não era uma situação fatal apenas opressiva Propunha uma solução curiosa ao presidente que este adotasse o projeto do candidato como se fosse seu ou seja que mudasse o rumo da própria gestão em benefício do sucessor Era um pedido e tanto ao seu grande eleitor Prudente de Morais ainda com nove meses de mandato escrever aos banqueiros para que considerassem o empréstimo aprovar custe o que custar uma lei autorizando o governo a oferecer as rendas da alfândega como garantia algo que nunca havia sido necessário nos empréstimos externos brasileiros nem mesmo nos piores momentos da Regência Por fim ofereciase para negociar ele mesmo o empréstimo para a nação como um emissário sem caráter oficial e deliberadamente com um fim oculto Em suma Campos Sales se propunha a governar sem ser governo ganhar algo politicamente e deixar a conta para o presidente do qual discordava totalmente no modo de conduzir a nação Se fosse pensar como o marechal Floriano que o antecedeu Prudente de Morais poderia muito bem deixar a carta sem resposta fazer o que bem entendesse até o último dia Teria bons motivos para negar até porque era uma proposta dura de engolir O presidente seguia uma política econômica oposta à solução oferecida pelo sucessor Era contrário a resolver os problemas de caixa do governo com base em créditos externos Fazia questão de deixar isso sempre claro Sua mensagem presidencial de 1897 definia assim a política financeira de seu governo As dificuldades financeiras do país quando provêm como entre nós de uma crise que surgiu depois de uma transformação política radical não podem ser removidas de chofre mas devem ser combatidas por um trabalho demorado e incessante2 Sendo interna a causa maior do problema assim também seria a solução O Tesouro tem solvido os maiores compromissos que sobre ele pesavam de sorte que tendem a desaparecer os encargos de caráter extraordinário que até agora tem sido o maior embaraço para o equilíbrio3 Podia perfeitamente fazer mais do mesmo suportar a tempestade até desaparecerem progressivamente as ondas de pressão sobre o Tesouro sem recorrer a empréstimos externos como vinha conseguindo fazer até mesmo nos momentos de maiores dificuldades que ultrapassara Era uma política viável que vinha sendo cumprida sem maiores sobressaltos Porém como não via a presidência como cargo para desempenho da vontade unipessoal do presidente da República e sim como delegação provisória de um soberano permanente o cidadão cujo interesse deveria ser sempre consultado em primeiro lugar avaliou o pedido do sucessor com outros olhos Considerando legítimo que um presidente eleito tivesse opções próprias para administrar e cabia a ele levar isso em conta pelo bem da nação Prudente de Morais deixou de lado as próprias razões em benefício da razão maior Concordou em preparar o caminho para a administração do sucessor em tudo aquilo que pudesse Por isso decidiu apoiar as propostas de Campos Sales com plena consciência do preço que pagava E determinou ao ministro da Fazenda Bernardino de Campos que atendesse à sugestão do candidato enviando cartas aos banqueiros indicando o interesse no empréstimo Dois dias depois de receber o pedido de Campos Sales para viajar como negociador apoiouo em nome da continuidade Porém em vez de mandar um presidente eleito como negociador secreto tornou oficial a viagem só não pagaria a conta da negociação oculta proposta pelo sucessor Bernardino e eu aceitamos com a melhor vontade a vossa sugestão não poderemos ter agente melhor e mais autorizado que o futuro presidente que agirá em nome e no interesse do atual governo do seu governo e da República4 Dessa maneira o eleito que não falou o que pensava para eleitores e apoiadores com apoio de seu grande eleitor e ainda guardando reserva sobre o que pensava do modo com que este governava empenhou sua palavra de governante em Londres numa sala revestida de mogno do banco Rothschild Com isso tomou afinal partido a favor de interesses bastante claros Pelo acordo conhecido como funding loan o presidente eleito conseguiu consolidar a dívida externa brasileira e receber dinheiro suficiente para não ter de pagar prestações nos três anos seguintes Em troca obrigavase a muita coisa comprometiase por escrito a fazer com que o governo atuasse de modo a que a taxa de câmbio passasse de 6 para 12 pence Em outras palavras prometia que o governo agiria para fazer uma libra investida no Brasil no dia do acordo se transformar em duas libras por ação da política do governo brasileiro afora o lucro que o investimento pudesse colher no caminho Era promessa suficiente para inverter a tendência de uma década de divisas escassas Ainda em 1898 ano em que Campos Sales firmou o acordo e governou por apenas 45 dias os investimentos diretos e os empréstimos estrangeiros para agentes privados aumentaram 801 passando de 43 milhões de libras para 776 milhões5 Só esse movimento permitiu um saldo nas contas brasileiras com o exterior de 23 milhões de libras algo que não acontecia desde 1889 Também premiou o banqueiro que lhe dava dinheiro Deulhe garantias reservadas a falidos o governo empenharia a sua principal receita as rendas da alfândega do Rio de Janeiro que podiam ser sequestradas em caso de inadimplência Para que esses escolhidos ganhassem outros tinham de ser punidos O presidente eleito comprometeuse a aumentar durante seu governo os impostos cobrados dos cidadãos fazer cessar os contratos de emissão de moeda ainda existentes conseguir saldos orçamentários em milréis e incinerar toda a moeda representante desses saldos Em suma o governo com folga de caixa iria arrancar mais dinheiro real sob a forma de impostos arrecadados de cidadãos e empresas ao mesmo tempo que reduzia a quantidade de dinheiro para esses cidadãos produzirem e pagarem esses impostos Num discurso pronunciado em Londres após assinar o acordo o futuro presidente fez questão de deixar claro o modo como via as posições relativas dos cidadãos que representava e dos ingleses nas palavras de seu portavoz oficial Disse que nosso patriotismo é em geral de vaidade somos o primeiro povo do universo não precisamos do concurso do mundo Mas não há povo com espírito de ordem para formar a solidariedade nacional e nós vivemos em revoluções com sacrifício de nossa coesão Os povos modernos que têm o bom senso de aprender não devem se envergonhar de pedir para a cultura europeia os mestres que lhes ensinam ciência transformam os métodos de trabalho organizam as instituições mais profundamente nacionais6 Fazia assim eco às ideias de seu futuro ministro da Fazenda sobre a fraqueza do povo brasileiro chamado a pagar a conta Armado do dinheiro que não teve vergonha de pedir voltou ao Brasil e escreveu um manifesto de posse no qual se despedia da condição de cidadão e se apresentava como um presidente dotado de todos os atributos do antigo Poder Moderador como o homem que reina governa e administra a pessoa de suprema autoridade Elevado a este posto de honrosa confiança e incomensurável responsabilidade aprazme acreditar que o que pretendeu o voto popular foi colocar no governo da República o espírito republicano na sua acentuada significação E esse intuito é naturalmente presumível dada a índole de nosso regime que com a responsabilidade unipessoal preferiu eliminar a política de uma coletividade para concentrála na pessoa da suprema autoridade em quem reside constitucionalmente o critério que dirige delibera e aplica7 Se o candidato relutava com o reinar não se pode dizer o mesmo do presidente Campos Sales fez questão de deixar claro que a tal elevação pelo voto só valia para o presidente e que os demais representantes eleitos da nação deveriam se portar apenas como auxiliares menores no cumprimento da palavra nacional empenhada em Londres ato sobre o qual jamais dissera uma palavra a parlamentares apoiadores ou eleitores O atual momento assinalase pela imprescindível necessidade de franca e resoluta cooperação do Legislativo para que seja adotada e posta em execução uma política financeira rigorosamente adequada às necessidades do Tesouro Aí está o ponto culminante da administração Espero muito do patriotismo do Congresso federal e da austeridade do caráter brasileiro para tornar efetivas as providências reclamadas por nossa situação Empenhei a responsabilidade do meu governo na fiel execução do acordo financeiro celebrado em Londres Mais do que minha responsabilidade está empenhada nisso a própria honra nacional8 Disso decorria uma série de prioridades listadas com grande clareza Em primeiro lugar vinha a política financeira rigorosamente adequada às necessidades do Tesouro e não da nação O ponto culminante da administração seria arrumar as contas do governo A parte que ficara com a conta o setor privado entrava no discurso não como sendo constituída de eleitores soberanos e seus representantes mas como objeto do arranjo feito Por isso agora só valiam para ajudar o Tesouro Os cidadãos que alienaram o poder na eleição deveriam na gestão entrar com austeridade do caráter ou seja pagar a conta Já os representantes eleitos deveriam esquecer os eleitores e fazer leis para tornar adequada a situação do Tesouro Na mensagem ao Congresso enviada dois meses depois da posse Campos Sales ecoou a ideia de que a administração era uma esfera reservada privadamente ao presidente como representante do bem comum tal como o Poder Moderador havia conferido ao monarca e que tal poder não deveria ser perturbado pelos parlamentares definidos como na teoria conservadora imperial como representantes apenas dos interesses menores dos particulares A presente sessão legislativa se instala sob os favoráveis auspícios de uma época de completa tranquilidade que assegura preciosa calma de espírito àqueles a cujo patriotismo cabe promover o bemestar e o progresso da nação brasileira aplicando sobretudo a sua sábia solicitude ao estudo dos graves problemas da administração que devem constituir a suprema preocupação do atual momento9 Um parlamentar reagiu Rui Barbosa que lutara para destruir as prerrogativas do Poder Moderador passou a escrever uma série de artigos intitulada Resposta à Fala do Trono a fórmula pela qual os parlamentares do Império respondiam ao discurso de abertura da sessão pelo imperador Ele atacou de frente a concepção de uma presidência com poderes imperiais pregada por Campos Sales Se este se definia como pessoa da suprema autoridade o jornalista o definia como aquele a quem entre todos os compatriotas a competência divina conferiu o benefício da primogenitura na geração dos ungidos do povo permitindolhe o cimo dessa dignidade que ombreia com os tronos10 E descrevia deste modo a forma como exercia o poder Suas convicções não ousaríamos dizer suas prevenções formamlhe em torno do espírito uma esfera impenetrável cuja ressonância interior o preserva dos rumores externos Como a pérola na estreita avareza de sua concha insensível à pressão do elemento azulado que o circunda impermeável às correntes da vida submarina que a envolve seu ideal definitivo vive ali em introspecção desafiando as mutações exteriores11 Rui Barbosa aludia diretamente ao lugar neutro definido na teoria conservadora para o Poder Moderador assim resumido por Camilo Torres Todas suas atribuições giram em torno da necessidade de um poder neutro que mantivesse em equilíbrio a máquina do Estado12 Para tanto ocuparia um lugar especial O rei era a chave da abóboda a pedra de fecho sustentando o edifício13 Rui Barbosa também não perdoou a concepção conservadora formulada pelo visconde do Uruguai segundo a qual o aparato do Estado deveria servir aos interesses próprios da administração algo possível com a concepção do corporativismo e a prevalência do Poder Moderador em detrimento da nação Administração nada mais Madrasta ingrata e seca a política inimiga dos espíritos construtores não competirá jamais com a administração mãe inesgotável de seios generosos e opulentos a cujo leite se nutrem os povos grandes e os grandes condutores de povos Nossos antecessores não sabiam aritmética e queriam governar com o ritmo dessa harmonia que embala os intelectuais O que nos faltava era aprender a contar Se a Monarquia tivesse estudado tabuada não teria caído Ainda bem que a República despertou em tempo e foi bater na porta da escola onde ensinam compridamente as quatro operações aos povos endividados Deramnos ali a cheirar libras esterlinas e saímos guardalivros provectos Verdade é que ficaram no prego as alfândegas Mas em compensação os nossos credores estão garantidos e o Tesouro nacional conhece hoje correntemente as quatro regras essenciais Chegou ao poder a vez de experimentar a ataraxia dos filósofos a perfeita quietude da alma Não lhe venham turvar as agitações da imprensa e da tribuna14 O governo colonial insensível ao sertão dava lugar ao governo federal infenso aos interesses da sociedade vistos como menores ou particulares ao modo imperial E Rui Barbosa não parou por aí Sobre a política econômica que o próprio presidente via como destinada a colocar os brasileiros em posição subordinada com relação ao gênio inglês foi mais direto ainda O termômetro exclusivo da política de uma nacionalidade não pode ser o contentamento de seus credores Atualmente o governo brasileiro está hipnotizado por seus credores londrinos Quando eles batem palmas o Catete põese em festa e todos nos derretemos em gáudio porque meia dúzia de folhas europeias refletindo a satisfação de seus credores mimoseiam o presidente atual com alguns cumprimentos Um tal espetáculo humilha e revolta Esqueçamse os credores internos Reduzamse à miséria e à esterilidade os serviços mais essenciais Tanto melhor Na razão direta desses golpes contra os interesses mais vitais do país terá crescido a margem para a dívida externa A respeito de alguns dos supremos interesses da Nação a mensagem se ressente de uma indiferença de uma sovinaria de uma glacialidade que não seriam talvez tamanhas na boca do estrangeiro se já corresse por suas mãos o governo desta terra15 A prática no entanto comprovaria a relativa inutilidade do Parlamento diante dos planos de isolar o governo central das pressões dos interesses brasileiros numa ostra e estabelecer a partir daí uma política que combinava recessão favorecimento dos interesses estrangeiros e um sistema eleitoral à prova do povo teoricamente soberano Contrariando a letrada lei o costume de um governo central que agia contra os interesses dos locais o caranguejo da metáfora do frei Vicente do Salvador era renomeado ostra e logo ganharia estatuto de teoria política CAPÍTULO 48 A pérola hereditária JOAQUIM MURTINHO FOI CONVIDADO POR CAMPOS SALES PARA IMPLANTAR O programa que delineara em 1897 Logo no primeiro relatório como ministro da Fazenda vangloriouse de estar atingindo vários objetivos patrióticos Em primeiro lugar acabar com o esbanjamento A pseudoabundância de capitais produzidos pelo papelmoeda promoveu a criação de um semnúmero de indústrias e desenvolveu de modo extraordinário a atividade agrícola Daí o estabelecimento de indústrias artificiais e a organização agrícola para a produção exagerada de café dois fatores da desvalorização de nossa produção O emprego de capitais e operários em indústrias artificiais representa um verdadeiro esbanjamento da fortuna nacional1 O meio de evitar tal esbanjamento era a sua política de restringir o volume de dinheiro em circulação na economia As grandes emissões que excitaram a febre dos negócios desenvolvendo os canais da circulação monetária invadiram os campos destruindo a calma a prudência e a sabedoria no espírito dos agricultores infiltrandolhes a ambição das grandes fortunas realizadas com rapidez2 Tal afã febricitante que geraria produção excessiva até na ponderada agricultura contaminavaa com produção improdutiva A emissão de curso forçado alargando de modo brusco a circulação e gerando prontamente grandes lucros pela especulação que desenvolve gera um estado especial de espírito uma verdadeira nevrose caracterizada pela mania de grandezas por um otimismo exagerado por um arrojo invencível que suprime toda a prudência e todo o critério Nessas condições a emissão de curso forçado traz em sua própria natureza os elementos de sua ruína Os negócios inventados por ela são em geral improdutivos não criam nenhum valor novo3 Se na agricultura a situação era de nevrose a ser curada na indústria seria de vício a ser escarmentado Enquanto se opera lenta e gradualmente a metamorfose industrial em nosso país não temos outro recurso senão pedir a nosso vicioso sistema industrial uma compensação dos prejuízos que ele causa às rendas da União4 O adjetivo vicioso remete a Aristóteles para quem a economia que lida com dinheiro era além de artificial imoral Tal como Aristóteles e apesar da extinção do trabalho escravo o único virtuoso para o filósofo Joaquim Murtinho tinha como virtuosa a economia que não pagava salários não era capitalista e além disso deveria ser brasileira O que caracteriza uma indústria natural não é o fato de ter sua matériaprima importada ou não Uma indústria onde a mão de obra representa o papel principal no custo de produção deve ser considerada atualmente artificial no Brasil mesmo que toda a matériaprima exista entre nós A indústria de artefatos de borracha estaria evidentemente neste caso5 A volta ao patamar anterior ao salário seria a forma de reconstruir a verdadeira riqueza nacional O método para chegar lá seria a destruição da indústria artificial que apenas retiraria riqueza natural da agricultura prudente Uma vez destruída tal aberração aumentariam as exportações dos produtos dos setores naturais que produziram mais riqueza que o esbanjamento com produção local Os capitais empregados nas indústrias artificiais que contribuem para redução da nossa importação se fossem empregados em indústrias naturais deveriam produzir na exportação renda suficiente para cobrir essa diferença na importação e ir além A produção nas indústrias artificiais não representa um resultado econômico os seus lucros exprimem apenas impostos sobre as outras produções os capitais nelas empregados não são fatores mas antes agentes parasitários da riqueza pública Eis como as emissões criando indústrias artificiais contribuem para a diminuição da riqueza nacional6 Atualmente é muito difícil entender uma política econômica feita com tais conceitos vindos da Antiguidade e apenas atualizados pelas crenças mercantilistas de que a riqueza se obtém por meio do acúmulo de saldos comerciais Mas Joaquim Murtinho seguia uma tradição brasileira da qual se orgulhava Nos relatórios jamais deixava de louvar seus inspiradores Naquele de 1900 depois de citar profusamente o visconde de Itaboraí escreveu O programa de valorização foi sustentado com calor e convicção pelos estadistas mais notáveis do Império7 E o ministro fez realmente aquilo que se propunha inspirado nessa tradição Entre 1889 e 1897 o transporte de cargas nas principais ferrovias brasileiras crescera a uma média anual de 11 passando de 189 para 429 milhões de toneladas A inversão de tendência foi violenta Em 1900 o total das cargas movimentadas no conjunto das ferrovias do país havia caído para 387 milhões de toneladas uma diminuição de 103 em três anos voltando ao patamar de 18958 Há indícios claros de que foi uma queda seletiva atingindo mais a produção interna do que a exportável Isso se vê no volume das cargas de café em comparação com o restante da produção transportada nas ferrovias paulistas Embora a proporção do café no total declinasse progressivamente desde o início da década de 1880 a tendência se inverteu nos últimos anos da década seguinte passando de 19 em 1895 para 34 em 1900 concentrandose nos dois últimos anos do período nos quais a queda no transporte de produtos para o mercado interno rondou os 30 Enquanto a produção privada interna apanhava o governo passou a viver na bonança Por conta do empréstimo as despesas caíram de 889 mil contos em 1898 para 330 mil contos em 1901 uma queda de monumentais 63 As receitas do governo federal tiveram um comportamento oposto apesar da grande recessão Foram de 425 mil contos em 1898 e passaram para 468 mil contos em 1901 com um crescimento de 10 no período E o crescimento das receitas se fez ainda com uma distinção clara O governo abaixou a alíquota de muitos impostos de importação sua principal fonte de receita Com isso os produtos estrangeiros geraram 181 mil contos em 1899 valor que representava 48 do total das importações e apenas 137 mil no ano seguinte apenas 36 do valor das importações O favor aos estrangeiros custou caro aos brasileiros Toda a folga financeira do governo foi empregada para queimar moeda de papel O total de moeda em circulação no país caiu de 780 mil contos em 1898 para 699 mil em 1900 uma queda de 104 em dois anos Com tanta pressão sobre a produção nacional eclodiu uma crise no ponto óbvio os bancos que tinham menos dinheiro para trabalhar e muito mais demanda de crédito por parte de clientes em dificuldades A crise estourou em 1900 e teve dois efeitos relevantes No Rio de Janeiro mercado dominado pela circulação de recursos públicos acabou levando à estatização do Banco do Brasil Vitória do governo Em São Paulo o maior mercado privado de crédito brasileiro o resultado foi assim descrito por Anne Hanley A política econômica do ministro da Fazenda Joaquim Murtinho provocou uma forte recessão que gerou uma crise bancária em setembro de 1900 O resultado mais conspícuo do pânico foi uma acentuada reversão na posição relativa dos bancos domésticos e estrangeiros na economia paulista Antes da crise os bancos nacionais tinham a parte do leão do mercado depois dela os bancos estrangeiros começaram a dominar Acusações da época sugerem que os bancos estrangeiros provocaram a crise para se beneficiar dela afinal o momento de pânico beneficia os sobreviventes que ficam em posição mais forte para absorver a clientela prejudicada9 O ministro considerou a ajuda do gênio inglês para punir os negócios artificiais do crédito e da indústria paulistas como uma vitória em seu plano expondo o seguinte argumento contra os queixosos no relatório de 1900 As leis naturais se executam apesar dos clamores dos que não as conhecem À medida que a massa de papel foi se reduzindo seu valor foi se elevando e o câmbio foi o termômetro dessa elevação Ao câmbio de 7 nossa circulação de 788 mil contos valia 197 milhões de libras ao câmbio de 10 os 703 mil atuais já valiam 289 milhões o que quer dizer 92 milhões a mais na circulação nacional Esses milhões de esterlinos com que enriquecemos a circulação no país são os que os nossos críticos não veem ou fingem não ver através das cinzas dos bilhetes destruídos nas fornalhas O que eles não viram é o que todos sentem comparando o valor da fortuna de cada um agora com o que ele representava no ano passado10 Um exemplo muito simples ajuda a entender melhor o argumento Imagine se um brasileiro que aceitou por uma libra esterlina em 1898 os 334 milréis que ela valia no câmbio baixo então vigente Teria trocado papel sem valor intrínseco pelo ouro mais puro Depois ele teria deixado bem guardada sua preciosa libraouro enquanto o ministro agia Três anos depois em 1901 com a moeda valorizada trocou a libra novamente por moeda nacional recebendo 211 milréis ou 33 menos moeda de papel do que três anos antes Enquanto a posse do ouro o deixou mais pobre um evento extraordinário se dava na via inversa Imaginese o sujeito que vendeu uma libra de ouro em 1898 recebendo 334 milréis Suponhase que ele também deixou guardado o dinheiro de papel Três anos depois ao trocar suas notas por ouro os mesmos 334 milréis compravam 157 libra esterlina Teria então um lucro em ouro de 57 nesse intervalo de três anos Graças à política do ministro os bancos estrangeiros de São Paulo como todos os aplicadores externos não precisariam fazer mais do que isso para enriquecer Mas aproveitaram também para comprar muitos negócios de brasileiros que ardiam nas fogueiras purificadoras ateadas pelo ministro Por todo o período a brutal recessão provocou gritos e gemidos entre os brasileiros Houve protestos formaramse partidos as falências se sucederam a vida piorou Mas a casca que protegia o elemento azulado no centro do poder não foi sequer abalada enquanto a recessão prosseguia uma grande pérola se produzia O programa econômico era preâmbulo de um plano maior Campos Sales concebera seu modelo de governo com base no antigo trono imperial Fundarao no dinheiro de Londres e escutava apenas a opinião de Londres porque só dali poderia receber apoio para governar contra os interesses dos produtores e do progresso brasileiro que ele e seu ministro consideravam falso e perigoso A sobrevivência relativamente pacífica do presidente no poder era também a prova de que o governo federal podia naquele momento agir contra o interesse econômico da sociedade ou em termos políticos que o governo federal não representava a sociedade não governava em nome do eleitor soberano seguia as normas do tal depositário unipessoal de todo o poder representante apenas de si próprio mas amigo do gênio inglês que ganhava com isso No entanto Campos Sales queria ir muito além do próprio mandato Precisava transformar o controle em sistema Na monarquia o sistema que garantia o controle pelo centro era legal o rito de sagração pelas urnas do ministério escolhido se fazia de modo aberto seguindo os passos descritos por Nabuco de Araújo o imperador detentor do Poder Moderador escolhia os ministros que nomeavam delegados partidários como presidentes de província Estes faziam as derrubadas e assim controlavam o resultado da eleição Nada disso afetava o rei nem seu trono pois todos os males eram praticados por súditos e todas as vitórias eram da Coroa tuteladas pelo partido que fosse A vontade popular aparecia como algo ruim a tutela como estabilidade A pérola saída da ostra foi a recriação conceitual desse modelo para o regime republicano e deixou a casca em 1900 A doutrina foi claramente expressa por Campos Sales e baseada em sua política econômica Entendi dever consagrar meu governo à obra puramente de administração separandoa dos interesses e das paixões partidárias para só cuidar da solução de um problema que constituía o oneroso legado de um longo passado11 O acordo da dívida visto como dever de honra e solução fundava mais um passo na tentativa de imitar o Império agora para recriar o papel estatal de agente eleitoral máximo Para fazer isso nos moldes da federação Campos Sales adotou o seguinte argumento Julgo azado o momento para se tomar a Constituição da futura Câmara como ponto de partida para a agremiação de forças úteis que constituam um grande partido de governo exclusivamente voltado para as questões de administração12 A inversão era completa no lugar de representantes eleitos pelos cidadãos soberanos para defender seus interesses o Parlamento deveria ser dominado por uma agremiação de forças comandadas pelo presidente da República visto como detentor pessoal e soberano de todos os poderes políticos da nação com a tarefa de apoiarem tudo aquilo que este mesmo presidente via como útil Em benefício dessa utilidade os representantes eleitos do povo teriam o dever de agir até mesmo contra os interesses dos cidadãos ao modo dos funcionários do Império Campos Sales considerava essa obediência como ordem e a representação de interesses da sociedade contrários ao Estado feitas por parlamentares como assédio às eminências do poder público13 Para colocar isso em prática adotou uma interpretação específica do federalismo republicano Nos tempos do Império unitário decaído o poder dos delegados do poder central que fabricavam vitórias eleitorais era considerado opressivo pelos propagandistas da mudança de regime Na República do depositário unipessoal o mesmo controle do resultado das eleições poderia ser obtido num regime que ele considerava de plena liberdade graças a uma nova combinação A verdadeira força política que no apertado unitarismo do Império residia no poder central deslocouse para os estados A política dos estados isto é a política que fortifica os vínculos entre os estados e a união é pois na essência a política nacional É lá na soma dessas unidades autônomas que se encontra a verdadeira soberania de opinião O que pensam os estados pensa a união14 Essa interpretação produz uma ausência muito significativa Segundo ela a verdadeira soberania antes concentrada no trono estaria agora nas unidades autônomas que pensam e transmitem esse pensamento para a união Nesse esquema há um locomotor que é desatado do carro do Estado a soberania do cidadão eleitor Para o presidente que concentrava poderes esse era o gesto que faltava para completar o plano de recriar o Império pelo costume e destruir o capitalismo advindo com a República um acordo entre o presidente da República e os governadores dos estados para construir a maioria do Congresso maioria esta dedicada a servir como partido da administração Em vez de representar a sociedade e trazer sua voz para o governo os eleitos deveriam funcionar como instrumento de difusão do detentor unipessoal da vontade soberana preocupados unicamente com os elevados interesses da administração comunicando tal sabedoria para a sociedade inerte O sistema conhecido até hoje como política dos governadores exigia mais que nos tempos imperiais Para ser colocado em prática necessitava a subordinação ao poder central dos governadores agora supostamente soberanos e eleitos pelo voto e que os parlamentares igualmente eleitos fossem reduzidos ao papel de correia de transmissão entre um e outros Assim como na Constituição imperial não constava o parlamentarismo que a prática acabou impondo a Constituição republicana fundavase no pressuposto de uma única soberania a do povo que escolhe os seus representantes Mas o escolhido pelo soberano empregando habilmente a escrita tentaria agora recriar o domínio do centro como um costume João de Scantimburgo pensador monarquista contemporâneo não deixou de comentar a situação com fina ironia Palpita é inegável no fundo das instituições políticas brasileiras republicanas uma nostalgia do Poder Moderador15 A prática mostraria o quão reveladora pode ser uma ironia CAPÍTULO 49 Governo central reacionário NO DIA 20 DE JULHO DE 1901 O EXPRESIDENTE PRUDENTE DE MORAIS TEVE UM encontro com seu ex ministro da Fazenda Rodrigues Alves agora governador de São Paulo Este anunciou que seria o sucessor de Campos Sales na presidência o primeiro escolhido nos moldes da política dos governadores E foi além O resultado da segunda parte da conversa foi narrado desta maneira por Afonso Arinos O governador paulista recebeu amistosamente seu antigo chefe e dele soube que dissentindo dos processos políticos do presidente da República iria oporse às candidaturas oficiais Depois de ouvilo com toda a deferência Rodrigues Alves observou sorrindo Agradeçolhe o aviso mas você vai perder Por que tem tanta certeza indagoulhe Prudente Em resposta sempre sorrindo bateu com a palma da mão na poltrona em que estava sentado e disse Por causa dessa cadeira Eu estou sentado nessa cadeira Quem nela se senta não pode ser vencido dentro do estado1 A frase tinha um significado histórico profundo assinalando um significativo retrocesso no tempo político Para que tal dimensão reacionária seja entendida na íntegra é preciso examinar o conteúdo da conversa sobretudo a parte das candidaturas oficiais Eram uma referência às candidaturas do Partido Republicano Paulista aos parlamentos e cargos executivos O governador comunicava ao expresidente que a decisão sobre quem controlaria os nomes nessas chapas seria o dono da cadeira em que estava sentado e essa era a novidade da conversa Até ali a elaboração das chapas de candidatos acontecera por uma via bem diferente Formados na oposição ao regime monárquico os vários partidos republicanos não tinham como prometer cargos de governo para os seus militantes nos anos iniciais Atuando apenas na sociedade eles adaptaram os seus métodos a essa situação A democracia interna estava presente em todas as esferas de organização diretórios locais elegiam seus dirigentes os quais elegiam as direções provinciais que elegiam os membros da Comissão Permanente depois denominada Comissão Central órgão máximo da direção Com a proclamação da República houve um aumento explosivo na oferta de postos estatais para militantes desde a presidência da República até os pequenos cargos em cidades do interior e aí passaram a valer as indicações partidárias Tal realidade provocou modificações profundas na estrutura dos diversos agrupamentos republicanos estaduais A mudança mais radical aconteceu no Partido Republicano Riograndense como notou José Ênio Casalecchi O Partido Republicano RioGrandense abandonou a partir de 1889 o comportamento democrático de encaminhar decisões através de assembleias Entre 1889 e 1923 dois próceres dominaram o partido e nesse período o PRR jamais se reuniu As grandes e pequenas decisões da política local estiveram nas mãos de Júlio de Castilhos 18891897 e Borges de Medeiros 18971923 que acumularam em todo o período o governo do Estado e a chefia do partido Nesse período a fraude foi costumeira no alistamento eleitoral na apuração dos votos no uso dos dinheiros públicos nas campanhas políticas na ação de capangas e da Brigada Militar acrescida do controle do eleitor pela inexistência de voto secreto2 Essa conjunção de controle pessoal e simultâneo do partido e do governo de fim da democracia interna no partido e de fraude nas eleições não havia acontecido em São Paulo como argumenta Joseph Lowe Dentro do PRP as disputas entre facções eram em grande parte neutralizadas pela continuidade assegurada pela Comissão Permanente órgão intermediário entre o governador e os coronéis A comissão também representava os diferentes interesses regionais dentro do estado provendo a intermediação necessária na distribuição de empregos e recursos necessários a obras públicas Além do mais legitimava a transferência de poder de um governador para o seguinte Pelo menos nos primeiros anos do regime podia também interceder junto à câmara estadual em defesa de políticas específicas além de em comum acordo com o governador proceder à indicação de nomes para o preenchimento de cargos3 Em vez de uma burocracia partidária incrustada no Estado como ocorria no Rio Grande do Sul a Comissão Permanente que dirigia o Partido Republicano Paulista continuava sendo eleita e operando fora do governo e as instâncias partidárias surgidas no período da propaganda mantiveramse inclusive com a proibição de acúmulo de cargos no Executivo e na direção partidária Portanto Rodrigues Alves comunicou a Prudente de Morais que chegava ao fim essa era da separação entre direção do partido e governo assim como a independência da direção partidária o governador faria ele mesmo as indicações para a Comissão Permanente A vida do partido seria controlada desde o comando do estado o lugar da militância e da sociedade na instituição seriam agora subalternos e o resultado das eleições uma decorrência do domínio do cargo de governador Mais ainda o governador relatou a Prudente de Morais que fazia isso por orientação de Campos Sales Este na presidência estava executando no plano nacional o mesmo processo Mais tarde Campos Sales justificaria o passo com todas as letras Em regra sou infenso às grandes reuniões para deliberar sobre assuntos que pela sua natureza se relacionem com a direção ou orientação que se deve imprimir a um determinado momento político Esta é uma função que pertence a poucos e não a uma coletividade4 A mudança ia na mesma direção daquela dos republicanos gaúchos Embora nos tempos de juventude e oposição Campos Sales tenha tido comportamento de democrata partidário quando no poder passou a considerar como anarquia até mesmo as tentativas de políticos eleitos para traduzir os interesses da coletividade em decisões políticas E o afirmava com todas as letras não há perigo maior do que a violência brutal do voto para ameaçar os interesses da administração5 Daí a decisão de transferir ao governo o controle do resultado eleitoral Explicitado o teor da decisão que o presidente espraiava do nível federal para o estadual extinção dos resquícios de democracia partidária e submissão do partido ao dono do governo é esclarecedor acompanhar a evolução do mesmo tema o das relações entre governos e partidos políticos numa realidade mais ampla a da vida política ocidental Nesse escopo mais geral o cientista político Isidro Molas traça um quadro histórico dessa relação que começa na Inglaterra do final do século XVIII A sociedade ficava representada por certos cidadãos eleitos através de sufrágios restritos Isso limitava a escolha entre aqueles que possuíam grande fortuna pessoal ou maior formação intelectual de modo que ficava afastada a possível ingerência dos setores econômica e culturalmente mais débeis ou menos racionais Tais representantes sem nenhuma sujeição que não fosse à sua razão individual eram portavozes não de seus eleitores mas da totalidade ou seja da nação Eram deputados que logo constituíam frações políticas no seio dos parlamentos ao agruparemse ao redor de certos líderes Suas diferenças eram fluidas ideologicamente pouco consolidadas e socialmente pouco acentuadas6 Uma importante mudança inicial teria ocorrido com as ampliações do direito de voto com pioneirismo dos Estados Unidos Cronologicamente o aparecimento dos partidos políticos como organizações extraparlamentares aconteceu a partir da terceira década do século XIX Nos Estados Unidos os partidos começaram a se estruturar durante o governo de Andrew Jackson entre 1829 e 1837 A necessidade de canalizar os sufrágios populares num momento de aumento da imigração e alargamento do censo eleitoral está na base da formação dos partidos norteamericanos Andrew Jackson elevou a princípio sistemático o spoil system dando ao candidato vitorioso a possibilidade de distribuir grande número de cargos públicos entre os componentes de suas hostes7 Essa mescla de eleições e distribuição de cargos governamentais se difundiu para a GrãBretanha A divisão parlamentar entre tories conservadores e whigs liberais iniciada no século XVII não existia na sociedade nem gerara uma estrutura partidária Os grupos contavam com as clientelas pessoais que os whips chefes de cada facção arregimentavam com recursos que iam da corrupção à promessa de cargos Mas a partir da reforma eleitoral de 1832 os partidos se desenvolveram Por iniciativa dos whigs criaramse sociedades destinadas a inscrever eleitores nos partidos8 A ampliação do eleitorado na década de 1870 trouxe uma nova organização para a vida partidária nas democracias ocidentais Com o sufrágio universal os núcleos parlamentares tiveram de readaptar suas organizações para manter em novas condições a direção política da sociedade O voto universal dava aos setores até então excluídos a possibilidade de organizaremse para se contrapor à força econômica e social dos demais setores Então competindo com os antigos grupos políticos surgirão novos partidos Não serão mais partidos criados no seio do Estado mas fora dele animados pelo propósito de chegar a governar para realizar seu programa Nesse caso o peso dos parlamentares ainda que importante será menor em contrapartida aumentará o poder do pessoal permanente seja da burocracia ou dos filiados9 Assim na virada para o século XX se completaria o processo O sufrágio universal combinado com a liberdade de associação alterarão fundamentalmente os regimes liberais e os converterão em democracias políticas transformando os partidos políticos num novo sistema Sufrágio universal democracia e partidos se vinculam em sua origem histórica10 A comparação entre o caso brasileiro e esse sumário evolutivo geral explica o adjetivo reacionário aposto ao funcionamento do governo com a adoção da política dos governadores ela foi um passo decisivo para voltar a reduzir o espaço da soberania popular do poder dos cidadãos de controlar os destinos dos partidos políticos e dos governos recolocando tudo sob o domínio do governo como deixara de ser nas democracias mais avançadas A marcha a ré que começara com a exclusão imperial do voto dos analfabetos ampliavase com o recuo no controle dos partidos políticos pela sociedade Não se tratava apenas disso Outro cientista político Robert Michels traça uma distinção importante entre a primeira fase do processo do voto limitado e da representação diluída no Parlamento e a última da sociedade controlando o Estado pelo voto A burguesia vitoriosa dos Direitos do Homem realizou a República mas não a democracia As palavras Liberdade Igualdade e Fraternidade podiam ser lidas nos portais de todas as prisões francesas Houve revolução mas foi preciso esperar pelo estabelecimento de uma democracia11 Esse tempo de espera duraria até a implantação do voto universal Michels nota que a passagem da República para a democracia vinda na esteira dessa mudança trouxe um dilema essencial para os conservadores Um conservador não obtém representação pela divulgação de suas verdadeiras crenças ou buscando aqueles que pensam como ele Um partido de aristocratas que apelasse apenas para os membros de sua classe ou às pessoas com interesses econômicos idênticos não elegeria um único membro para o Parlamento Um candidato conservador que se apresentasse declarando aos eleitores que não os julga capazes de tomar parte ativa na definição dos destinos do país e que por isso deveriam ser privados de seu direito ao sufrágio seria um homem de sinceridade incomparável mas politicamente insano Se quiserem encontrar um caminho para o Parlamento só dispõem de um método descer à arena eleitoral com democrática humildade e tentar convencer os eleitores de que têm os mesmos interesses que eles Assim um aristocrata é obrigado a assegurar sua eleição em virtude de um princípio que abjura Todo seu ser exige autoridade a manutenção de sufrágios restritos a supressão do direito universal de votar vistos como ameaças a seus privilégios12 No Brasil a política dos governadores foi moldada segundo os princípios aristocráticos dos conservadores que não julgavam os eleitores capazes de tomar parte ativa na definição dos destinos do país Destinavase a reservar tal domínio para quem se pensava como aristocrata encastelado no comando Essa ação conservadora baseada numa interpretação republicana da teoria política que justificava o Poder Moderador transformouse na arma com a qual os conservadores que em economia combatiam o capitalismo tentavam evitar o movimento histórico ocidental da democracia desfavorável aos ideais de superioridade que fundam a consciência conservadora Embora reacionária a política foi implantada na conversa entre os dois políticos Rodrigues Alves encerrou o assunto mostrando os nomes que como governador iria impor ao partido Prudente de Morais saiu da audiência com o governador e seguiu direto para uma reunião com os políticos de seu grupo agora alijado da direção do partido Rodrigues Alves mandou nomear os membros da Comissão Central como ficou conhecido o organismo reformado Prudente de Morais ajudou a redigir o manifesto do Partido Republicano Dissidente Além dele oito dos 22 deputados federais paulistas 21 deputados estaduais dois senadores estaduais e representantes em 80 dos 172 municípios do estado assinaram o texto onde se lia Nós dissentimos da orientação do presidente da República do governador do estado e da maioria da Comissão Central Eles dissentem das crenças do partido e de suas tradições E explicava a razão central da ruptura O brasileiro é de índole fundamentalmente democrática Suas tradições o demonstram os fatos de sua vida social o confirmam Todos os movimentos políticos verdadeiramente populares que se deram nos tempos coloniais bem como em sua vida de nação independente tiveram um caráter acentuadamente democrático A monarquia jamais pode lançar fundas raízes na alma nacional13 Por isso apresentava a mudança de regime como vinda da sociedade para o governo Em várias províncias organizouse o Partido Republicano Em todas o espírito popular esclarecido e emancipado cada vez mais afastavase da Monarquia e evocando as tradições democráticas voltavase cada vez mais para a República Por isso quando o Exército e a Armada obedecendo as sugestões de seu patriotismo fizeram a revolução de 15 de Novembro a alma nacional sentiu fortes vibrações de espontâneo entusiasmo As novas instituições foram em toda a parte acolhidas pelo povo com francas manifestações de entusiasmo O poder teria trazido problemas à democracia partidária Aumentado de elementos novos embora republicanos sinceros o partido foi aos poucos se desorganizando Afastouse das normas partidárias profundamente democráticas que faziam repousar a autoridade de sua direção sempre acatada jamais desobedecida na vontade da coletividade e não no querer pessoal de alguém14 Campos Sales indicado pelos republicanos teria chegado ao poder num momento em que havia dois partidos nacionais e prometera fortalecer esse sistema no dia de sua posse No lugar de cumprir a promessa teria feito outra coisa A existência de dois partidos contrariava suas aspirações de mando incontrastável sua ambição de se tornar árbitro supremo da política nacional aspirações e ambições que seu comportamento claramente denunciava Sob o pretexto de congraçar todos os republicanos de fazer uma política de largos horizontes procurou afastar todos os homens do partido que o elegeu capazes no seu conceito de se oporem a suas tendências absorventes e chamou aqueles do partido adversário que acreditou poderem prestarlhe apoio incondicional A partir daí teria empregado o Estado para eliminar a democracia Interferiu diretamente na constituição do Congresso Nacional Influiu de modo ostensivo na verificação de poderes de deputados e senadores Essa conduta significava o mais evidente atentado contra a soberania nacional a nulificação completa das eleições a negação absoluta do regime democrático cuja base é o sufrágio popular15 E isso tudo com apoio dos republicanos paulistas O Partido Republicano de São Paulo dolorosamente sentia as acusações provocadas pelo desvio político de seu antigo chefe Não alimentava mais ilusões a respeito as alturas do poder haviam conturbado a alma do propagandista republicano Entretanto o partido calava generoso a sua condenação e procurava com cautela evitar que de seus representantes partisse a oposição no Congresso Federal Extintas as razões de cautela nasceria o partido com um ponto central no programa A verdade do regime republicano repousa na pureza da representação popular E como esta só pode se realizar pelo voto depende do livre pronunciamento das opiniões por meio de eleições legítimas16 Mas o próprio ato de nascimento do partido já marcava seu dilema A partir daquele momento havia uma ruptura radical entre República e Democracia O governo agia para manter a vida política na forma primeva da República sem controle do voto pela sociedade a fim de impedir a evolução rumo à democracia Eduardo Kugelmas analisou da seguinte forma o resultado do passo atrás em relação ao Ocidente O mais grave era a extraordinária rigidez do sistema e seu caráter excludente Para os marginalizados do clube oligárquico só havia a alternativa da submissão ou da explosão Fazendo da letra liberal democrática da ordenação legal uma farsa e do sufrágio uma pantomima o sistema era refratário a qualquer aumento de participação política e a uma verdadeira expansão da cidadania17 Como o sistema era rígido e refratário todos os que acreditavam na sinonímia entre República e Democracia tiveram sua carreira política interrompida justamente no único estado que conseguira avançar na organização de partidos políticos que fossem mais que uma extensão do Estado uma força da sociedade Excluídos da política formal encontraram os meios possíveis de reagir na sociedade CAPÍTULO 50 Fosso ATÉ A VÉSPERA DA SAÍDA DO PARTIDO REPUBLICANO PAULISTA O GRUPO DISSIDENTE poderia ser considerado uma força política relevante um expresidente da República dois exgovernadores senadores deputados prefeitos vereadores Mas no dia seguinte como logo eles se deram conta eram políticos sem nenhum futuro eleitoral Ainda assim tentaram Primeiro retomando um espaço que conheciam desde os tempos da propaganda a imprensa canal de comunicação que só ficava fechado nos tempos excepcionais de estado de sítio e censura e que serviu para mostrar o tamanho da cisão política Com os dissidentes ficaram José Alves Cerqueira César exgovernador e casado com uma irmã do presidente Júlio Mesquita já dono de O Estado de S Paulo deputado estadual e casado com uma sobrinha de Campos Sales Além disso os primeiros ataques diretos pela imprensa foram assinados por Alberto Sales irmão do presidente militante histórico do partido e empresário que jamais aceitara cargos no governo após a mudança de regime Com tal história seus artigos revelavam certo pessimismo Nossos antecedentes históricos são conhecidos e não precisam ser aqui amplamente narrados Todos sabem o que foi o regime colonial em que por alguns séculos vivemos Todos se recordam ainda dos ouvidores dos capitãesmores dos governadoresgerais dos vicereis do absolutismo desbragado das autoridades das impertinências da administração das exigências do fisco e da tutela grosseira e feroz com que vivemos durante todo aquele longo e penoso período que foi um verdadeiro cativeiro e que matou em nós todo o sentimento de independência todo o espírito de iniciativa toda a coragem cívica1 Nem mesmo os momentos da independência eram vistos com melhores perspectivas Entramos no Império com o regime parlamentar de importação que funcionou aqui por mais de sessenta anos Por fim descrentes com um regime que nada fazia e que ia pouco a pouco depauperando a nação corrompendo os costumes e cavando cada vez mais o abismo de nossa miséria moral fizemos a revolução de 15 de novembro que derrubou o Império e proclamou a República recebendo igualmente de importação o regime presidencial Assim teria ocorrido o inevitável Tanto um como outro estão em completo desacordo com o caráter nacional Nós todos sabemos melhor do que ninguém o que somos Não temos força de vontade firmeza de resolução coragem individual confiança em nós mesmos e em nossos próprios esforços Não empreendemos nem perseveramos em coisa alguma Faltanos em absoluto crença em nossa própria força somos excessivamente tímidos fracos e medrosos Temos é verdade umas poucas qualidades morais que nos elevam frente a outros povos Somos muito comunicativos muito expansivos e afáveis A nossa casa é a casa de todos e a nossa hospitalidade é proverbial2 Tanto num regime como no outro haveria uma sociedade fraca e um Estado forte Assim chegava ao cenário atual e sua proposta de mudança O que é preciso fazer em um país como o nosso onde o Estado é tudo e o indivíduo é nada Enfraquecer de certo modo o Executivo e fortalecer o indivíduo Se o indivíduo fosse forte a federação por si bastaria para resolver o problema garantindo o equilíbrio do sistema Dadas porém as condições de nosso caráter nacional e tendo em vista nossos antecedentes históricos é bem de verse que o desequilíbrio há de ser fatal e o aparelho há de viver das oscilações do indivíduo que ocupe a cadeira de presidente da República Não fizemos a revolução de 15 de novembro para sair da ditadura imperial e cair na ditadura presidencial3 Essa forma de apresentar a questão com uma separação completa entre o indivíduo e o Estado sem instâncias intermediárias era bastante recente e fazia grande sucesso entre os conservadores desde que Gustave Le Bon publicara A psicologia das massas em 1895 O livro era a tentativa de reagir a uma mudança que aterrorizava o autor O direito divino das massas está em via de substituir o direito divino dos reis4 Essa era então uma ameaça muito real à concepção conservadora segundo a qual uma minoria graças à superioridade intrínseca de seus componentes deve exercer a dominação sobre a maioria O modo que o escritor francês encontrou para atualizar essa crença foi assim descrito por Gabriel Cohn Toda a análise de Le Bon está construída no sentido de demonstrar o caráter irracional impulsivo e mesmo regressivo da ação das massas Pelo mero fato de tomar parte numa multidão organizada isto é de uma associação de indivíduos com vista a alguma ação um homem desce vários graus na escala da civilização Isolado ele poderia ser um indivíduo cultivado na multidão é um bárbaro ou seja uma criatura que age por instinto5 Assim embora muito mais ligado à sociedade que seu irmão presidente Alberto Sales tinha pouca confiança no futuro pois temia tal como o irmão a barbárie das multidões Esse dilema também estava claramente presente no artigo de Júlio Mesquita publicado no dia 27 Não há liberdades populares no regime presidencial A opinião pública está como que metida num túnel ao qual se tivessem fechado as duas saídas Faltalhe o ar faltalhe a luz vai morrendo aos poucos numa asfixia dolorosa que punge e revolta todas as consciências Ou a revisão se faz ou a República desaparece Custe o que custar precisamos sair disso6 Aqui há uma diferença um termo que chama a atenção na frase opinião pública Esse termo tem uma história política assim descrita por Gabriel Cohn A noção original de público poderia ser entendida como congruente com uma contraelite de uma minoria seleta contestadora do Antigo Regime em nome de sua reivindicação de portadora legítima da opinião pública Em consonância com as transformações provocadas pela plena emergência da sociedade capitalista de mercado operase uma mudança importante Consiste na interpenetração crescente das noções anteriormente opostas de público e massa com a redefinição correspondente da noção de opinião Nesse ponto a noção de elite passa a ser entendida como parcela minoritária da categoria híbrida público de massa7 O termo estava adquirindo novo significado histórico porque ajudava a fundar outro modo de pensar o equilíbrio na relação entre o indivíduo e o Estado que Alberto Sales entende como estruturalmente desequilibrada com predomínio absoluto do Estado A formulação oposta a Le Bon foi proposta quase no mesmo momento por Émile Durkheim que em 1893 publicara A divisão do trabalho social Novamente Gabriel Cohn explica a diferença Durkheim formula uma complexa dinâmica entre o Estado o indivíduo particular e os grupos secundários que devem se intercalar entre ambos se o equilíbrio social deve ser alcançado Dados apenas o homem privado e o Estado este absorve a individualidade daquele esta última por sua vez também corre perigo quando exposta sem controle à ação dos agrupamentos menores de que o cidadão faz parte Por outro lado o Estado não pode ser oriundo imediatamente da multidão desorganizada dos particulares sob pena de perder sua autonomia e sua condição de área privilegiada da consciência coletiva aquela onde se pode formular ideias claras dos interesses coletivos É apenas pela articulação harmoniosa da tríade Estado grupos intermediários indivíduo privado que se atinge um salutar equilíbrio8 Refletindo a importância dessa diferença na época no dia 2 de janeiro de 1902 o articulista Paulo Egydio publicou em O Estado de S Paulo um artigo cujo argumento se baseava na diferença entre o conceito de multidão ao modo de Le Bon e a noção durkheimiana de opinião O que é público O sentido deste vocábulo não deve ser confundido com a palavra multidão O público é uma coletividade puramente espiritual uma disseminação de indivíduos fisicamente separados de uma coesão toda mental Na multidão operase um feixe de contágios psíquicos promovidos por contatos físicos e por isso ela tem alguma coisa de animal Quando em nossas sociedades civilizadas se desenham correntes de opinião pelas quais os homens firmes e tenazes irresistivelmente impelidos arrancam dos parlamentares e governos a consagração de leis e decretos esses fortes movimentos sugestivos não se produzem em praça pública Os indivíduos sugestionados não se acotovelam não se veem não se ouvem mas leem cada qual o mesmo jornal9 Como bemsucedido dono de jornal Júlio Mesquita também foi encontrando os pontos positivos de sua nova situação através dessa diferença Em artigo publicado no dia 29 de julho de 1901 ele anunciava um caminho Por hoje preciso apenas afirmar que os recentes e sabidos acontecimentos da política do estado não influíram para que eu tomasse essa posição pela revisão Eles foram quando muito a oportunidade que se me ofereceu e que mais dia menos dia teria de oferecerse para que eu pudesse dizer com franqueza e em público aos meus chefes e a meus correligionários o que há muito em particular lhes tenho dito as apreensões que me torturam e as esperanças que me animam e me obrigam a não desertar A minha atitude não é uma surpresa para os companheiros nem o Custe o que custar temos de sair disto um grito de rebeldia É pura e simplesmente o desabafo natural de quem já não pode e acha que não deve ouvir e murmurar baixinho Isso não pode isso não deve ficar assim10 Era um primeiro passo Visando expulsar da vida política um grupo Campo Sales conseguira também libertar um dono de jornal para fazer aquilo que era imperativo numa publicação moderna organizar ideias e informações dividir esperanças e angústias em público Pensar para os leitores não para o governo Mas não era exatamente um caminho fácil pois Campos Sales fundador e diretor do jornal que agora era do contraparente também tinha planos claros com relação à imprensa Tão claros que não se envergonhou ele mesmo de contar um dia Ao assumir o governo da República faltava ao governo um órgão de vasta circulação em que pudesse apoiar sua política descortinar os seus intuitos preparar a opinião e defender seus atos Nesta situação só restava recorrer às colunas das gazetas industriais abertas à concorrência O meu governo ia ser necessariamente um governo de combate teria de se empenhar em lutas tremendas destruir vícios que levavam à paralisia da administração afrontar a coligação de interesses feridos impor severas restrições à despesa pública dar novo rigor ao regime tributário Era inevitável e fatal o recurso à imprensa industrial11 O emprego sistemático de recursos públicos para comprar e controlar a opinião teria uma finalidade precisa Os governos veemse forçados a agir para evitar a ação funesta dos que tentam criar falsas correntes de opinião O ataque ao poder é o mais estimulante atrativo à simpatia pública Ao encetar minha administração não era a deplorável situação em que se encontrava o país que teria de indicar aos escritores desta escola a atitude a tomar O que ia sim dar estímulo e vibração à sua atuação de jornalistas despertarlhes arrebatamentos de patriotismo era simplesmente a auri sacra fames Não corrompi a imprensa Acatei sempre a que merecia respeito do público Tive porém a mágoa profunda de encontrar jornais e jornalistas desviados de sua grandiosíssima missão e que pareciam menos dispostos a ser instrumentos benéficos de opinião12 É curioso o julgamento embutido nesse argumento A opinião pública quando não nasce do Estado é falsa Esse juízo acarreta outro para o presidente era inclusive de boa moral o emprego ilegal de recursos públicos Mantenho ainda agora a convicção de legitimidade do ato perante a moral social Debaixo de instituições que tiram da opinião a origem de todo poder e que com ela devem viver só resta fatalmente ao governo o recurso ao jornalismo industrial13 As matérias prógoverno não eram as únicas pagas na imprensa brasileira Também havia aquelas que anunciavam outros tempos outros grandes desafios para a democracia que começava a se difundir pelo mundo ocidental em lugar da República e que o presidente queria desinstalar da República que comandava No dia 28 de agosto de 1902 o mesmo O Estado de S Paulo publicou o manifesto de lançamento do Partido Socialista Brasileiro que principiava com as seguintes palavras A história das sociedades humanas é a história da luta de classes Tomando o partido de uma dessas classes o programa tinha um ponto central Contra a exploração dos patrões a exigência dos assalariados Depois de notar que a tendência ao socialismo era avassaladora o manifesto pedia mudanças na atitude dos patrões burgueses Melhor serlhesia não se contraporem à massa que é irreprimível no seu atuar crescente14 O manifesto terminava com um programa com os seguintes pontos principais criação de um imposto sobre a renda o fim dos impostos indiretos sufrágio universal para homens e mulheres maiores de 18 anos jornada de trabalho de oito horas cidadania para os imigrantes ensino fundamental obrigatório igualdade de ganhos para homens e mulheres adoção do divórcio neutralidade do Estado nos conflitos entre capital e trabalho liberdade efetiva de reunião e imposto progressivo sobre heranças Era enfim a pauta dos partidos socialdemocratas dos países de capitalismo avançado numa altura em que esses partidos eram mais influentes que os comunistas O líder do partido Everardo Dias lembra das dificuldades de militar em torno dessa ideia no Brasil da época Era preciso agir com muita precaução e prudência para não incorrer em perseguições policiais e prisões Basta lembrar que tendose reunido um grupo de antigos militantes socialistas em meados de abril de 1893 para estudar a maneira de comemorar o Primeiro de Maio em São Paulo foram denunciados e presos sendo os estrangeiros transferidos para o Rio onde penaram nove meses de detenção enquanto os nacionais além de presos foram espancados15 No campo eleitoral onde de fato se obtinha poder a partir da sociedade os dissidentes conheceram diretamente essa espécie de tratamento já na primeira eleição disputada como lembra o próprio Dias As leis eleitorais não facilitavam a entrada de qualquer militante proletário tanto no Congresso Nacional como nas câmaras municipais Estavam feitas de tal forma que nem mesmo possantes agrupações oposicionistas mal podiam obter alguma representação Isto tornava muito precária a atuação partidária16 Desse modo a ação do governo federal centrada na ostra do poder arbitrário foi chegando até a base da sociedade em vez de juntar o governo agia para separar No lugar do capitalismo pelejava para a volta da produção natural e seu domínio na agricultura Mas fazia isso numa sociedade que apesar da recessão tornavase cada vez mais complexa e era capaz de produzir uma voz inteiramente nova Um livro marcaria esse salto Os sertões de Euclides da Cunha Em resenha publicada originalmente no Correio da Manhã do Rio de Janeiro no dia 3 de dezembro de 1902 o crítico literário José Veríssimo concluía com palavras que se tornariam famosas A guerra de Canudos é para o senhor Euclides da Cunha um crime A campanha em si pareceme pareceume desde o primeiro dia mais do que um crime um erro crasso imperdoável Não faltam na nossa história sinais de ininteligência nenhum porém tamanho Crime ou crimes haverá apenas no cerco final conforme os conhecíamos pela divulgação oral ou por algum escrito de pouco valor e os narra agora com vingadora veracidade o autor de Os sertões17 Atingindo um ponto nevrálgico a obra trazia uma mudança nos padrões de julgamento Cinco anos antes da sua publicação no calor dos combates o arraial e seus habitantes haviam sido apresentados ao público como revoltosos no livro apareciam como vítimas de um massacre Essa mudança de avaliação tocava planos profundos da vida do país no intervalo entre fato e romance era parte do drama histórico central do tempo oscilante entre duas ordens divergentes de valores produtoras dos julgamentos opostos Para entender esse drama podese partir de uma formulação jurídica da própria época elaborada pelo deputado Artur Orlando Na Roma dos imperadores o direito público existe fora e acima do indivíduo este não tem meio legal algum para se pôr ao abrigo contra o que for decidido e ordenado na esfera do direito público Ora suponhamos que o imperador que encarna em si a soberania ordena em virtude desta soberania tal ato que violará os direitos de um cidadão romano segundo o direito que rege o Império não há nem poderia haver remédio legal e a soberania representada pelo imperador não poderá encontrar obstáculo No direito anglosaxônico pelo contrário o cidadão tem direitos imprescritíveis inalienáveis que a autoridade não pode infringir que devem ser salvaguardados ao mesmo tempo dos ataques dos particulares e das violências dos poderes públicos Perante os princípios do direito romano o soberano não encontra obstáculos à sua vontade perante os princípios do direito americano os direitos do cidadão estão ao abrigo da ação da soberania mesmo coletiva A nossa Constituição marca o meiotermo entre esses princípios opostos de um lado o ideal de um direito superior à vontade dos indivíduos do outro a supremacia do maior número Assim é preciso evitar que com uma Constituição vazada no direito anglosaxônico estejamos a legislar como se ainda vivêssemos sob o império da legislação romana Em matéria de direitos e liberdades costumase discorrer como se aos poderes políticos coubesse regular de um modo absoluto as relações entre os particulares e a autoridade pública18 Do ponto de vista do direito romano Antonio Conselheiro e seus seguidores seriam rebeldes e o Estado teria o direito de violar todos os seus direitos inclusive o direito à vida sem que pudessem opor qualquer forma legal de obstrução Esse era o quadro legal do Império traduzido na legislação civil das Ordenações herdada da época medieval E ela ainda não havia sido revogada no Brasil naquilo que havia de mais essencial a definição dos direitos do cidadão e a formulação de um código civil que regulasse o exercício desses direitos como leis escritas Esse o fosso Em vez de narrar a partir dele como um caranguejo ou uma ostra Euclides da Cunha julgava os fatos interpretandoos pelos conceitos do direito americano o Estado teria invadido a esfera dos direitos inalienáveis do cidadão Antonio Conselheiro e dos membros do seu grupo cometendo um crime ainda que tal definição de crime não constasse da lei Essa era a nova régua apresentada por Euclides da Cunha esse o ideal de uma democracia em contraste com a República regressiva da política dos governadores Daí o grande salto da narrativa os analfabetos de Canudos eram tratados como sujeitos na luta como cidadãos vítimas do Estado e não como súditos sem capacidade de discernir nem direito de se defender contra os atos do Império E daí o espanto seria essa massa pensada por escritores desde a colônia como composta de súditos sem palavras e sem direitos os cidadãos da República com todos seus direitos inalienáveis Nesse momento Campos Sales foi julgado pela opinião pública na medida do possível José Maria Bello narrou seus últimos momentos na presidência Imensa vaia acompanhoulhe o trajeto à estação da estrada de ferro onde embarcaria para São Paulo A sua vaidade muito teria sofrido com a ruidosa manifestação de hostilidade pública tão em contraste com as aclamações que quatro anos antes recebera Prudente de Morais Mas devia estar tranquila sua consciência de administrador Depois do longo e penoso sacrifício exigido da comunidade brasileira transmitia uma casa em ordem com a escrita equilibrada Degradarase ainda mais a política republicana com a política dos governadores aviltarase a significação democrática do Parlamento diluíramse as derradeiras esperanças no livre jogo das instituições representativas seu confessado suborno à imprensa como que oficializara a corrupção jornalística à sombra de seu plano de extrema deflação monetária tinham feito excelentes negócios banqueiros estrangeiros e especuladores nacionais19 Fez um sucessor Rodrigues Alves E indicou um ministro da Fazenda Leopoldo de Bulhões cujas crenças econômicas não haviam mudado um milímetro desde os tempos em que era deputado florianista A política financeira que devemos seguir é a que inspirou sempre os estadistas da monarquia reduzir o quanto possível a massa de papelmoeda fazer economias a fim de equilibrar o orçamento estudar os meios de voltarmos à circulação metálica20 Assim pensava o ministro e assim fez o governo Para entender como o fosso foi rompido só resta um caminho acompanhar o surgimento de uma alternativa desde o nascimento na opinião da sociedade passando pelas instâncias inferiores de governo e desaguando no cenário nacional CAPÍTULO 51 O plano do café sociedade e legislativo estadual AUGUSTO FERREIRA RAMOS NASCEU EM CANTAGALO NO RIO DE JANEIRO EM 1860 Era engenheiro de formação e professor desde 1894 da Escola Politécnica onde começou como lente da cátedra de mecânica geral e máquinas A partir de 1897 passou para as cátedras de mecânica elementar e tecnologia rural1 Enquanto desenvolvia projetos e dava aulas aprimorouse muito em estatística num tempo em que esta era uma ferramenta de análise corriqueira no exterior mas quase desconhecida no Brasil mesmo no Ministério da Fazenda Com o tempo foi abordando um desafio nada fácil naquele tempo determinar o preço do café Muitos abordavam a questão por métodos empíricos e havia poucos aptos a discutir o assunto Entre estes estava seu irmão Francisco Ferreira Ramos também engenheiro e colega da Politécnica que um dia rememorou os companheiros de conversa Tínhamos por companheiros um grupo de apóstolos do roteamento de terra que discutiam calorosamente a questão Deste grupo faziam parte Alexandre Siciliano Olavo Egydio de Souza Aranha Siqueira Campos Veiga Filho e Arnaldo Vieira de Carvalho Foi dali que surgiu a ideia da limitação de novas plantações pelo doutor Augusto Ramos e de consultas aos municípios sugeridas por mim2 Todos os membros do grupo tinham uma biografia interessante O líder era Carlos Botelho filho mais velho do conde do Pinhal Nascido em Piracicaba em 1855 formouse em medicina em Montpelier voltou para o Rio de Janeiro em 1880 casouse com Constança Filgueiras contra a vontade do pai com quem rompeu e mudou para São Paulo no ano seguinte3 Militante republicano tinha ideias próprias a respeito do exercício da medicina Instalouse num grande casarão na rua do Gasômetro ponto de ligação entre o centro e o bairro popular do Brás Morava no andar de cima e no térreo mantinha uma movimentada clínica equipada para grandes cirurgias onde atendia gratuitamente Vindo o novo regime mesmo sem deixar o republicanismo mantevese afastado dos governos Em 1892 na esteira do crescimento da cidade realizou um empreendimento urbano inovador comprou uma chácara com vários alqueires na beira do antigo caminho das tropas para Santos Ali criou um jardim zoológico com animais brasileiros enviados do sertão por seu amigo Cândido Rondon e espécimes estrangeiros obtidos em troca de animais brasileiros remetidos a vários zoológicos europeus E abriu uma empresa dedicada ao lazer de massa com entrada paga e muita propaganda tendo como principal atração o zoológico Cada animal que chegava merecia divulgação em anúncios de jornais os quais ressaltavam também as demais atrações do parque banda de música barcos para remar no lago restaurantes acessíveis Casais de namorados alugavam barcos e podiam ao menos conversar a sós sem controle das famílias já o parque tornouse um dos locais preferidos para as fotos de noivos no dia do casamento O segundo nomeado do grupo Alexandre Siciliano nascera em San Nicola Arcella na Calábria em 1860 com 9 anos veio para Piracicaba onde um tio se estabelecera como comerciante e já tinha trazido seu irmão mais velho4 Em 1881 casouse com Laura Augusta de Melo Coelho uma das treze filhas do fazendeiro Frutuoso Coelho Dotado para a mecânica associouse ao irmão e a Evaristo Conrado Engelberg Juntos projetaram uma máquina de beneficiar café que foi um sucesso de mercado ao ponto de a patente ter sido vendida nos Estados Unidos A essa altura sua fama de fabricante tinha se espalhado por entre a parentela da mulher Uma das irmãs de Laura Maria Melo Coelho era casada com João Paulino de Arruda Botelho sobrinho do conde do Pinhal Dessa forma a fama empresarial de Alexandre Siciliano chegou a investidores de calibre Em 1890 com o crédito dos tempos de Rui Barbosa ele vendeu ações de uma empresa que pretendia criar para vários investidores Juntou 5 mil contos de reis5 e montou a Companhia Mecânica Importadora de São Paulo Warren Dean descreveu a empresa Foi construída em grande escala a maior que São Paulo já vira incluía uma fundição uma seção de máquinas uma serraria uma carpintaria e uma olaria Produzia vagões de estradas de ferro máquinas agrícolas pontes para ferrovias e postes6 Além de produzir a empresa importava equipamentos mantendo um escritório em Londres7 Wilson Suzigan anotou as atividades de comércio exterior Importava carvão coque ferrogusa ferro fundido barras e chapas de aço canos cimento arame comum e farpado ladrilhos e tijolos refratários8 A combinação de capacidade local de produção com os negócios de importação fez a empresa crescer depressa tornandose um dos pontos vitais da industrialização de São Paulo Antonio Francisco Bandeira Júnior que publicou um livro sobre a indústria paulista em 1901 classificou a empresa como um dos mais importantes estabelecimentos da América do Sul por causa dos mais de 600 operários todos de sexo masculino que produziam os mais aperfeiçoados e modernos maquinismos inclusive quaisquer máquinas para a lavoura9 Já Olavo Egydio de Sousa Aranha nascera em 1862 e era casado com Vicentina de Souza Queirós10 uma das filhas do barão de Souza Queirós um dos grandes empresários paulistas na época do Império Ele mesmo era campineiro e os negócios da família incluíam importantes participações acionárias com direito a cargos de direção na Companhia Paulista de Estradas de Ferro Banco do Comércio e Indústria Banco de São Paulo e Companhia Mogiana Manuel Pessoa de Siqueira Campos era banqueiro e um dos acionistas do Banco de Crédito Real11 O quinto da lista Arnaldo Vieira de Carvalho nascera em Campinas no ano de 1867 era um dos médicos mais conhecidos da cidade e professor na escola de medicina Veiga Filho era advogado professor da faculdade de direito e um dos primeiros defensores das ideias socialdemocratas no Brasil12 Além disso também gostava de estatística tendo escrito vários artigos pelos quais tentava estimar o total da riqueza paulista e brasileira naquele tempo não existia sequer a noção de PIB De todos era o único que fazia política partidária sendo deputado estadual do PRP O ambiente no qual o grupo desenvolveu suas ideias foi o da grande recessão do governo Campos Sales Desde que a política econômica começou a fazer efeito vieram reações na forma de mobilização Em 1898 pulularam os clubes da lavoura para canalizar os protestos dos cafeicultores e logo surgiu o Partido da Lavoura para expressar os protestos em voz mais alta As reações dos produtores de café também foram muitas congressos encontros debates e propostas buscando fórmulas para sair da crise foram surgindo umas atrás das outras O grupo manteve uma existência informal nesse ambiente de debate até que em janeiro de 1902 resolveram se transformar na Sociedade Paulista de Agricultura pedindo registro de seus estatutos numa audiência na Secretaria da Agricultura13 Não se tratava de uma formalização inocente Como relembrou Francisco Ramos a sociedade tinha uma ideia para defender o plano para limitar a produção de café e um foco para atuar a consulta aos fazendeiros nos municípios começando pela base social mais ampla Os métodos empregados também eram claros trabalhar no universo da opinião pública incentivando o debate de ideias por meio da imprensa Enquanto Augusto Ramos escreveria para O Estado de S Paulo e para o Jornal do Commercio do Rio de Janeiro Francisco Ramos concentraria as publicações no Correio Paulistano focando na organização de encontros nos municípios e debates iniciais da proposta No dia 8 de maio de 1902 Augusto Ramos estreou como colunista em O Estado de S Paulo Mereceu um tratamento reservado para poucos publicar uma série de artigos sobre um único tema em vários dias consecutivos Já no primeiro artigo revelaria uma convicção muito grande no uso da estatística como ferramenta capaz de proporcionar novo enquadramento a todo o drama vivido pelos cafeicultores Não mais se enxergarão nuvens no horizonte hoje tão sombrio de nosso futuro econômico Sobre a larga estrada comercial que se rasgará entre o produtor e o intermediário brilhará em todo seu esplendor o sol da estabilidade estatística e o cimento impecável da reciprocidade de interesses como um selo sagrado vinculará por um acordo tácito os esforços de ambas as partes no levantamento gradual das cotações14 O drama que o sol da estabilidade estatística transformaria em glória era nada menos do que o equilíbrio entre a oferta e a demanda do café e sua expressão brasileira de disputa de preço entre cafeicultores e importadores A série de artigos tinha um título único que enfatizava o resultado esperado Valorização do café E o artigo inicial trazia um resumo dos passos para tal transformação começando pelo enfoque no mercado mundial e no longo prazo É necessário o exame da situação mundial do café em toda sua complexidade e latitude seja no tocante à produção seja quanto ao consumo ou quanto a preços não somente no passado e no presente como no terreno de fundadas e positivas previsões nos dez anos que hão por vir15 Em seguida vinha a novidade conceitual oferta e procura eram definidas como tendências matemáticas que apenas se equilibravam estatisticamente no longo prazo e no contexto do mercado mundial O Brasil deveria se aproveitar desse conhecimento para planejar o volume de produção e ganhar o máximo possível com a produção de café Eram duas premissas incomuns no debate corrente No entendimento de então oferta e procura eram o resultado de um embate momento a momento cujo resultado seria o preço em Santos em consequência a média estatística não passaria de uma abstração Planejar a produção no longo prazo e pensando no mercado mundial era algo que não fazia sentido com esse conceito pontual de preço Dessas premissas inovadoras resultava uma proposta de solução que começava com um passo simples e de fácil compreensão uma lei que proibisse por algum tempo o plantio de novos cafezais através da suspensão compulsória ou da cobrança de impostos Essa lei segundo Augusto Ramos seria um primeiro sinal para o mercado mundial do predomínio da nova realidade do equilíbrio estatístico e da produção controlada A suspensão das plantações não produziria um efeito puramente moral significaria positivamente um efeito estatístico Poderseia dizer em tal ano a colheita não será maior do que tanto com a mesma segurança com que hoje dizemos que em 1901 entraram em Santos 8 milhões de sacas Eis o remédio que eu indico à lavoura remédio suave natural reparador lógico infalível É indispensável e urgente adotá lo16 Para Augusto Ramos o efeito estatístico positivo seria imediatamente entendido por agentes internacionais importantes que mudariam de atitude É preciso que nos convençamos os importadores diretos de nosso café as grandes casas de Nova York de Londres e do continente europeu têm tanto interesse como nós em que se elevem os preços do artigo Confiados em que teriam curta duração as baixas de 189697 realizaram grandes compras Mas nos anos seguintes a produção aumentou e a necessidade de amparar os preços foi determinando novas aquisições Hoje os estoques são de 11 milhões de sacas Além de não desejarem negociar hoje por 35 francos o café que lhes custou mais que isso os importadores precisam sustentar os preços e por isso compram em Santos17 Portanto estariam prontos para ler positivamente o sinal Não basta que não se plante um cafeeiro durante cinco anos é necessário é indispensável que os possuidores do estoque tenham absoluta certeza de que assim se fará É indispensável que assim se convençam a fim de perderem quaisquer receios sobre o futuro de suas reservas a fim de poderem operar com inteira segurança cobertos de surpresas administrativas Conquistada a confiança deles em nossa deliberação o grande estoque perderá quase imediatamente sua catadura agressiva Era uma ameaça passará a ser uma reserva Perderá seu caráter de volume volverá a ser um valor Ninguém mais terá pressa de alienar e o recolhido no interior dos armazéns transformase em depósito precioso frente à carestia inevitável num futuro matematicamente projetado18 A questão central era inteiramente de confiança em dois sentidos Para os leitores visados a confiança de que o conhecimento estatístico traria uma nova aliança política na qual passariam da posição de explorados para a de exploradores Para os atacadistas a confiança na atitude de longo prazo do Brasil pois o artigo não especificava quem seria o agente produtor dessa confiança Pelo contrário dizia com todas as letras que espécie de conhecimento já não produzia a mínima confiança A universalidade moderna já não comporta Aristóteles E a arte de governar só pode ter possibilidade de êxito na escolha judiciosa por parte de governantes de auxiliares de provada competência nos departamentos que lhes são confiados19 Fundado no contraponto entre uma política feita com conhecimentos ultrapassados colocavase a si mesmo como um técnico da sociedade capaz de formular políticas muito melhores que as do ministro no poder Essa ideia foi recolocada de maneira ainda mais acentuada no terceiro artigo da série quando analisou os métodos de controlar o mercado que presidiam as políticas de Joaquim Murtinho Alguns argumentam que a superprodução acabará por si mesma sem necessidade de nenhuma intervenção restritiva Mas acaba como Não podendo ser pelo aumento repentino do consumo será pela diminuição da produção A superprodução cessaria mas conservando as cotações num nível sempre baixo A carência de outro derivativo para nosso trabalho obrigaria a acompanhar as necessidades do mundo com a cotação indefinidamente baixa Quando mais tarde São Paulo exausto de trabalho esgotadas suas terras modificado talvez seu clima desse balanço a meio século de esforços e lutas veria coberto seu território de pequenos lavradores empobrecidos sem recursos para instruir seus filhos Teríamos sacrificado o privilégio de nosso solo um privilégio que deveria nos dar uma fortuna para na melhor das hipóteses oferecer ao mundo por alguns cêntimos a menos um café que sem o menor sacrifício e com plena indiferença nos pagaria melhor20 Enquanto atacava a política do governo em São Paulo Augusto Ramos encontrou fôlego para contestar também uma alternativa defendida pelo republicano histórico exflorianista e senador fluminense Quintino Bocaiúva uma intervenção no mercado de café na qual o governo compraria toda a produção incentivando o crescimento desta e empregando a posição dominante do Brasil para derrubar os exportadores e depois para aumentar os preços no mercado internacional Como tal posição era mais corrente no Rio de Janeiro foi tratada nos artigos escritos para o Jornal do Commerrcio com forte sarcasmo E hoje levantamse vozes que nos vêm a gritar Devemos produzir mais É preciso esmagar nossos concorrentes Mas então nosso fim é produzir dinheiro com o café ou simplesmente produzir mais café Não queiramos fazer de nossos cafezais de nosso campo de trabalho um truste exclusivamente destinado a quem nos quer fazer mal Seria além de odioso um truste de imbecis um truste capaz somente de perder dinheiro21 Esses dois contrapontos tornam muito claro que Augusto Ramos pensava a produção econômica com o sentido capitalista de criação de um máximo de Riqueza das Nações conforme sua paráfrase de Adam Smith e criticava com veemência o viés fisiocrata a visão da produção econômica como máximo aproveitamento da riqueza produzida pela natureza seja pelo laissez faire termo fisiocrata em farta voga na época seja pelo monopólio mercantilista como preferia o senador Quintino Bocaiúva Os artigos de Augusto Ramos despertaram certo interesse e sua proposta de criação de um novo imposto chegou até a ser debatida em comissões da Assembleia estadual sem grande sucesso fraqueza que tinha a ver com uma situação que parecia de desespero infinito na altura dos debates estava terminando a colheita de uma safra de 11 milhões de sacas de café que obrigaria a um aumento ainda maior dos estoques mundiais Então no dia 24 de agosto de 1902 aconteceu uma grande geada que destruiu cerca de um terço das plantas do estado além de prejudicar seriamente a produção dos cafeeiros no ano seguinte Numa única manhã todos os cálculos sobre uma superprodução foram revirados e o assunto do imposto foi inteiramente deixado de lado Mas os dias de setembro foram passando e um novo incômodo foi se revelando Pela teoria dominante sobre oferta e procura a do ministro Murtinho e de muitos outros a patente redução da oferta deveria se refletir de imediato em aumento nos preços Não foi preciso muito tempo para que os vendedores descobrissem que a teoria não estava sendo comprovada na prática Pelo contrário mesmo com a queda na produção futura os preços continuavam a cair Com isso muita gente coçou a orelha será que os preços do café não seriam determinados pelo equilíbrio a longo prazo do mercado Será que o nível de estoques mundiais tinha relação com os preços no mercado à vista Será que oferta e demanda teriam de ser definidas de outra forma Será que não estava na hora de adotar outra abordagem Assim o que parecia ser uma posição diletante de repente ganhou importância As discussões pelo interior acabavam quase sempre angariando o apoio de fazendeiros e comerciantes para a ideia e estes iam pressionar os vereadores a base democrática do sistema político Os vereadores faziam o pouco que podiam enviavam moções de apoio para a Assembleia E assim o projeto abandonado ressuscitou em boa hora No dia 30 de outubro de 1902 em meio às discussões na Assembleia Legislativa sobre o orçamento do estado o deputado Rubião Júnior líder do PRP apresentou a proposta de implantar o imposto sobre novos cafeeiros plantados em São Paulo como emenda pessoal sem apoio oficial do partido nem respaldo das comissões parlamentares A grande vantagem dessa apresentação que parecia modesta estava no fato de entrar imediatamente em votação sem passar pelos ritos e trâmites obrigatórios das leis ordinárias O deputado Rubião Júnior argumentou que os deputados deveriam ser sensíveis à lógica que impulsionava a ideia O projeto é indicado pela opinião geral tanto dos interessados no país como fora dele No inquérito que se procedeu neste estado por iniciativa da Sociedade dos Agricultores em que todos os municípios foram consultados por intermédio de seus representantes mais autorizados as câmaras municipais e chegouse ao resultado que a quase totalidade dos municípios cafeeiros era por este alvitre Além disso há a opinião manifestada por revistas e jornais sobre este assunto22 O projeto saído do grupo pequeno e multiplicado pelos jornais chegara aos eleitos de governos municipais e agora ganhava amplitude estadual ao ser aprovado A ideia se transformava em prática e se multiplicava CAPÍTULO 52 O plano do café os estados OS PRIMEIROS MESES DE VIGÊNCIA DA NOVA LEI EM 1903 COINCIDIRAM COM A revisão de todos os dados estatísticos por Augusto Ramos que concluiu ter subestimado o volume dos estoques Sendo homem fiel a seus dados não teve pejo em voltar ao debate com uma revisão de suas propostas Antes afirmara convicto que a limitação das plantações seria sinal suficiente para equilibrar o mercado Agora sem abandonar a fé no equilíbrio estatístico apresentava uma situação mundial muito mais negativa do que aquela anterior à lei É impossível conseguirmos nos próximos cinco ou seis anos um equilíbrio entre oferta e procura pelo aumento do consumo1 Ainda assim considerava possível manter o objetivo inicial de organizar o mercado e fazia questão de mostrar o quanto isso se distinguia dos processos mercantilistas que vicejavam na economia e no pensamento brasileiros Não se trata de concentrar todo o produto em uma só mão e imporse o preço que se entender Esse meio tem sido empregado muitas vezes na história dos povos mas de modo irregular e em prazos curtos recebeu o nome de açambarcamento e funciona somente em privilégio de um indivíduo ou grupo A concentração comercial tem outra estrutura e é de molde permanente É sempre o remate de uma competição encarniçada é mais que um tratado de paz é um acordo entre os competidores da véspera os quais reconhecendo o quão ruinosa era a luta dos que vendiam com prejuízo acabam por entenderse para auferir lucros2 Para obter o mesmo efeito de controle do mercado nessas condições seria preciso muito mais ajuda e vinda de fora já que os produtores brasileiros não teriam força Não permitem as condições atuais dos lavradores que eles se abstenham de vender seus produtos e portanto o único meio de resolvermos satisfatoriamente o problema consiste em arranjarmos um capitalista que de acordo conosco vá comprando e retendo toda a produção até que desapareça o estoque estrangeiro e fiquemos nós e o capitalista senhores do mercado Haveria vários modos de associar as partes Este capitalista pode ser um banqueiro um sindicato estrangeiro ou pode ser constituído pelos estados cafeeiros chefiados pelo governo da União E era assim porque a operação deveria ter a finalidade essencial do lucro ainda que ele agora admitisse o governo como parte do negócio entre capitalistas algo que não fazia parte das ideias apresentadas no ano anterior Qualquer que seja a forma adotada é essencial para que a operação seja exequível que os cafés acumulados pelo sindicato ou pelos estados coligados possam ser vendidos dentro de um prazo determinado quando se equilibrem a oferta e a procura3 Para acelerar esse prazo e diminuir os riscos da operação o sindicato ou o capitalista deveria ter uma garantia É indispensável que durante um prazo conveniente conservemos limitada a nossa produção Desse modo o futuro possuidor dos estoques acumulados seja o sindicato sejam os estados ficará garantido de reaver o capital que no mesmo café houver empatado e portanto não relutará hoje em empenharse no negócio A garantia funcionaria contra um risco essencial Se organizada a resistência deixarmos livre a produção é claro que estimulados pelos altos preços do café os produtores ampliarão suas lavouras e de tal modo aumentarão as colheitas e com elas o estoque da resistência de tal modo que não haverá no mundo dinheiro para as compras e a combinação desmoronará causando a ruína geral Sem garantir a moderação nas colheitas a resistência será irrealizável e inútil o esforço para agremiar capitais4 Havendo a garantia da moderação na produção como premissa para a operação Augusto Ramos imaginava que esta poderia funcionar sem modificar os mecanismos de mercado Ao sindicato que se propuser a pagar por nossa produção preços determinados concederemos uma certa quantia por saca durante o prazo do contrato O comércio continuará livre como agora operando como bem entender Ninguém será obrigado a vender ao sindicato o café que possuir ou de cuja colocação estiver encarregado Poderá vender a quem quer que seja sendo certo que se não encontrar comprador o sindicato por este preço o comprará se lhe for oferecido5 O artigo seguinte começava com uma simulação estatística do mercado nos primeiros anos de ação do sindicato Aplicada convenientemente a lei paulista e com a adoção dela por outros estados poderemos contar que a média da produção será de 135 milhões de sacas nos próximos anos Organizada a resistência nessas bases poderíamos contar que teríamos um aumento de estoque nos dois ou três primeiros anos depois dos quais somente estacionada a produção começaria ele a decrescer Serão necessários oito anos até que o reequilíbrio se restabeleça6 O artigo ainda trazia o projeto de um contrato capaz de atuar nessas condições abrangendo partes como o governo federal como representante de um acordo entre os estados produtores de café e um grupo de investidores privados Estabelecido o acordo com as premissas expostas nos artigos anteriores os produtores não teriam nenhuma obrigação de vender mantendose o mercado livre Mas como o esboço de contrato previa a entrada do governo essa presença exigia cuidados jurídicos Para evitar que o sindicato corresse o risco da superprodução interna o governo se obrigava a impedir que as exportações excedessem as 125 milhões de sacas Para que não houvesse o risco de o sindicato manipular preços o governo teria o direito de nomear fiscais e intervir nas operações de venda Os artigos de Augusto Ramos coincidiram com a realização em Minas Gerais de um congresso sobre a produção brasileira Seria mais um dos muitos conclaves realizados por empresários não fosse um fato importante a ação de um governador para reunir as ideias dispersas que circulavam no país como alternativa à política do governo federal Francisco Sales nascera em Lavras no ano de 1863 começou a cursar direito em São Paulo em 1881 e a militar no Clube Republicano da faculdade Formado tornouse um conferencista famoso na região natal o que se revelou mais do que suficiente para o lançar na carreira política após a mudança de regime Faltavam republicanos para tudo de modo que Sales virou deputado estadual com 28 anos secretário no governo mineiro com 32 prefeito de Belo Horizonte com 36 deputado federal com 37 e governador de Minas no ano em que completou 40 anos Comandava o estado a partir da recéminaugurada capital Belo Horizonte construída a partir de um plano urbanístico inovador com ruas largas e avenidas mais largas ainda rede sanitária espaços abertos Uma de suas primeiras atitudes como governador foi a de organizar um Congresso Comercial Industrial e Agrícola ainda em 1903 E fez questão de dar um sinal relevante entregando a presidência a João Pinheiro uma figura peculiar Filho do imigrante italiano Giuseppe Pignataro funileiro e de Carolina Augusta de Morais filha de um professor em Caeté ele nasceu na cidade do Serro em 1860 Perdeu o pai aos 10 anos mudouse para a cidade da mãe foi adotado e educado por padres juntamente com o irmão José que se tornou sacerdote Descobriu cedo que não tinha vocação para a batina e tratou de ganhar a vida dando aulas para sobreviver e juntar dinheiro a fim de estudar direito em São Paulo para onde se mudou em 1883 Pagou os estudos primeiro com o salário de zelador da Escola Normal depois como professor de história da mesma7 Como Francisco Sales João Pinheiro retornou a Minas depois de formado para fazer propaganda republicana Mas trabalhou nesta a seu modo nos intervalos dos empreendimentos que fazia para sobreviver Tanto quanto as ideias republicanas esses empreendimentos serviam para que João Pinheiro formulasse propostas políticas A vida empresarial fornecialhe lições que fazia questão de repetir a amigos como Pandiá Calógeras Ah meu caro amigo nunca plantastes batatas Caí nessa asneira uma vez cultivei uma quarta de chão obtive uma colheita estupenda remetia nuns balaios e fui pessoalmente ao Rio de Janeiro vender meus formosos tubérculos salvo seja É ainda com ódio que me lembro da peregrinação humilhante de português em português batateiros de profissão Como tinham o cérebro também estufado de batatas me disseram desaforos e não me quiseram comprar a linda mercadoria Ofereceram preço vil e afinal me obrigaram a entregar a colheita quase dada8 Essas lembranças não tornaram o descapitalizado batateiro um admirador das cadeias de endividamento mercantilistas a forma de capital comercial que dominava a economia brasileira a partir dos atacadistas do Rio de Janeiro Mas também não chegaram ao ponto de apagar a chama empresarial Quando veio a República ia completar 29 anos e estava de casamento marcado em São Paulo com Helena de Barros sua exaluna Em 21 de janeiro de 1890 quatro dias antes do casamento foi nomeado vicegovernador de Minas vinte dias depois da nomeação e duas semanas após o casamento em 11 de fevereiro tornouse governador do estado pois o titular Cesário Alvim renunciou para ser ministro de Deodoro Ficou no cargo até junho ao ser eleito para a Constituinte Teve o primeiro filho em dezembro quando participava da comissão de 21 deputados que permitiu a rápida elaboração da Carta Com o golpe de Deodoro e a tomada do poder por Floriano afastouse da política Enquanto os filhos nasciam com regularidade João Pinheiro tornouse industrial Aproveitando as possibilidades de crédito da política de Rui Barbosa abriu uma empresa de cerâmica em Caeté que logo ganhou nome no mercado de materiais sanitários enquanto o proprietário arranjava tempo para ser vereador na cidade As manilhas para esgoto que fabricava passaram a ser vendidas em várias partes do país e a lhe dar ideias sobre o sentido da atividade política vislumbrando um outro modo de encarar a atividade Há a política estéril e a política fecunda Substituamos a política das competições sem objetivo pela emulação fecunda do trabalho Cumpre que o criador e o industrial mais inteligentes possam ver seus méritos reconhecidos e proclamados9 Assim João Pinheiro era uma raridade num país onde o pensamento conservador condenava a atividade empresarial e industrial como fruto da ambição ele via nela com base em sua experiência como empresário uma fonte capaz de conferir sentido ético à atividade política A formulação peculiar encontrou eco João Pinheiro tornouse um político influente no estado mesmo sendo apenas um vereador de cidade do interior Dessa condição o retirou Francisco Sales ao convidálo para presidir o Congresso O governador tinha um projeto assim descrito por Claudia Viscardi Francisco Sales queria contemplar a tese da limitação das plantações em prol da qual havia organizado o referido evento10 Os artigos de Augusto Ramos foram publicados na semana anterior ao Congresso Comercial Industrial e Agrícola que teve lugar na semana de 13 a 19 de maio de 1903 Mas nem o apoio do governador nem os artigos foram suficientes para impedir que o conclave sagrasse outras teses nascidas no Rio de Janeiro mas muito capazes de conquistar a simpatia de um industrial mineiro A capital federal continuava sendo o maior centro industrial do país E ali a reação à política de Campos Sales foi liderada pelos empresários industriais Um dos maiores Jorge Street já em 1900 tornouse diretor da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional No início era uma entidade com muita história e pouca capacidade de ação Fundada em 1827 para divulgar ideias e técnicas produtivas ganhou algum brilho no segundo reinado quando D Pedro II reforçou o aspecto literário da instituição dando palpites em sua revista Com o advento da República e o fim do patronato da entidade sobrara pouco mais que o nome Street fez as coisas mudarem depressa Em 1902 conseguiu a adesão de Inocêncio Serzedelo Correia militar e exministro da Fazenda Os dois haviam articulado uma fusão da entidade com o Centro Industrial de Fiação e Tecelagem de Algodão e estavam organizando o Centro Industrial do Rio de Janeiro no momento em que se deu o Congresso mineiro Levaram para este ideias que exporiam logo em seguida com clareza num manifesto escrito em 1904 e cujo argumento central era a formação de um mercado interno Se cada indústria sob o ponto de vista técnico tem seus interesses particulares há em todas um interesse comum que cada vez mais se avoluma e que consiste em garantir o consumo interior das especialidades que são e devem ser produzidas no país Nessa pugna colossal estão empenhadas todas as nações e nela carecemos também nós industriais brasileiros empenharnos11 O manifesto também deixava claro o método para garantir essa finalidade Para reagir é necessário que o Brasil faça como fizeram os Estados Unidos a Rússia e recentemente a França o abandono cada vez mais completo do livre câmbio pelo entusiasmo cada vez mais apaixonado em favor da proteção do trabalho nacional12 Além de saber o que desejavam os empresários sabiam quais eram os defensores da política que estavam combatendo O comércio sim este se aproxima mais do socialismo de estado quando pede ao governo câmbio alto para baratear os produtos estrangeiros importados13 A pauta marcava claramente uma disputa No setor privado entre os interesses dos comerciantes importadores que visavam produtos estrangeiros baratos e os dos industriais interessados em produzir esses bens no país Do ponto de vista histórico era uma disputa entre o capital industrial emergente e o capital comercial declinante em suma entre capitalismo e mercantilismo João Pinheiro pensava como o grupo do Rio de Janeiro Não se fez de rogado e derrotou a principal tese do governador que o convidara Porém como bom mineiro sem criar a menor animosidade John Wirth assim resumiu o percurso da tese vencedora A discussão estendeuse a muitos assuntos mas o propósito inicial deste esmerado encontro era chegar a um consenso sobre o café O Comitê Preparatório selecionou proposições que diversos comitês de estudos elaboraram antes da abertura das discussões O grupo de Pinheiro trabalhava pela disciplina do mercado por impostos e fretes diferenciais O Comitê de Café aceitou essa proposição mas sugeriu também que a valorização uma política de comercialização baseada em apoio a preços mínimos fosse utilizada juntamente com outros estados produtores e a união Esta teoria se coadunava com o pensamento paulista mas não foi adotada pelos delegados14 A capacidade de convencimento tinha a ver com uma atitude revelada no discurso de encerramento João Pinheiro fez nele outra profissão de fé relativa às relações entre governantes e governados A visão da grandeza e riqueza da terra de Minas Gerais se faz ao mesmo tempo em que a das altas qualidades morais de seus filhos aconselhando e sendo aconselhados governando e sendo governados ensinando e ao mesmo tempo aprendendo governo que se quer dirigir pela opinião opinião que deseja ser útil ao governo tal é o espetáculo novo que os mais natos representantes de um povo inteiro oferecem ao discutir os mais graves interesses como se fora em íntima discussão de família15 Lembrava Prudente de Morais mas também servia como uma luva para a situação A frase foi proferida por um político acostumado a governar segundo esse princípio e ouvida por um governador de estado que vira sua proposta mais importante ser derrotada Francisco Sales não tomou a decisão pública como ofensa pessoal Continuou tratando João Pinheiro com a maior atenção Os paulistas saíram felizes sabiam que havia um governador simpático a suas teses e também aprenderam a encontrar aliados no Rio de Janeiro E trataram de acelerar a marcha de seu projeto Poucos dias depois do congresso mineiro Alexandre Siciliano apresentou numa reunião da Sociedade Paulista de Agricultura um esboço de contrato entre o governo federal e um eventual sindicato de investidores Dentre as novidades as maiores eram o aumento da obrigatoriedade de compra de café para 16 milhões de sacas anuais e sobretudo uma cláusula pela qual o governo remuneraria o sindicato com uma comissão por saca vendida Dessa forma atingido um preço de mercado que fosse a soma do preço mínimo com a comissão o café teria de ser vendido por esse preço Essa cláusula era fundamental para evitar a retenção excessiva de café e a manipulação dos mercados externos pelo sindicato O projeto foi aprovado e o autor saiu dando entrevistas para divulgálo ao longo das quais o projeto de Augusto Ramos acabou também ficando conhecido como Plano Siciliano Em 24 de agosto de 1903 o industrial publicou um artigo em O Estado de S Paulo realçando a vantagem de sua proposta O sindicato terá maiores vantagens comprando o mínimo de café possível pois quanto menor o capital imobilizado maior será seu lucro por consistir este unicamente no prêmio que lhe será pago por cada saca exportada16 O projeto o parecer da Sociedade o artigo do jornal e as entrevistas foram reunidos num livro de divulgação Depois do livro vieram os debates grupos de cafeicultores de todo o estado eram convidados a fazer reuniões locais nas quais ratificavam a ideia Assim o plano que começara em um artigo passara por debates municipais tornarase lei estadual estivera em debate num congresso em outro estado ganhara a simpatia de um governador ia se ampliando até conquistar outro apoio fundamental CAPÍTULO 53 O plano do café o mercado internacional EM 1904 O PARTIDO REPUBLICANO PAULISTA INDICOU JORGE TIBIRIÇÁ PIRATININGA como candidato a governador Fundador do partido mantiverase fiel à direção o tempo todo de modo que não apresentava nenhuma rusga aos olhos dos conservadores Mas não era um político tradicional Para começar tinha formação acadêmica era doutor em agronomia com título obtido em Genebra era também empresário rural e casado com a herdeira de um quinhão importante de uma ferrovia Além disso era monarquista Tudo isso compôs um governador peculiar cuja rotina foi assim descrita por Rodrigo Soares Júnior Jorge Tibiriçá avesso a cerimoniais continua a vida da família no palácio De dia executa sua tarefa metodicamente atento ao encaminhamento dos papéis e às conferências que precisa entreter com deputados senadores altos funcionários e políticos Terminado o horário do expediente consagrase exclusivamente à família preocupado com a educação dos filhos A administração do palácio pertence exclusivamente a dona Ana Tibiriçá A velha dama paulista que não perdeu os sentimentos monárquicos e reverencia as velhas praxes imperiais exige ordem Na hora que terminava o despacho do dia o governador tratava de fazer um passeio a pé pela cidade em companhia do ajudante de ordens Usualmente de fraque bengala e chapéu perambulava lentamente respondendo ao cumprimento dos transeuntes De volta ao palácio esperava o jantar e depois retiravase para seus aposentos para se entreter com dona Ana Entre os tópicos que alimentavam a conversa estavam os comentários que ela sempre interessada pelos assuntos políticos fazia dos jornais do dia Aconselhava o marido a responder trechos que considerava injustos pelas colunas dos jornais amigos Jorge lia e quase sempre respondia Isso não merece resposta Terminada a sessão de palestra o governador se preparava para seu infalível passeio noturno a ida a uma confeitaria onde tomava alguns copos de chope Dava uma boa gorjeta para o garçom não deixar pires acumulados na mesa Às nove horas no mais tardar retornava ao palácio De manhã estava de volta ao gabinete em cuja entrada viase um desenho intitulado A eloquência oficial que mostrava um personagem lendo longas tiras de papel para uma audiência bocejante e enfadada1 Se a candidatura dele resultou da larga capacidade de suportar a eloquência oficial o período de governo foi marcado por aquilo que o interessava e que pode ser medido pela escolha dos principais auxiliares Para a secretaria da Agricultura que cuidava dos assuntos relacionados ao café escolheu Carlos Botelho o decidido apoiador de todo o plano de valorização do café para a secretaria da Fazenda convidou Albuquerque Lins concunhado de Olavo Egydio outro membro do grupo reunido em torno da ideia para a pasta da Justiça chamou Washington Luís casado com uma parente de Prudente de Morais Cada um deles encarregouse a seu modo de preparar o estado para uma mudança Carlos Botelho reestruturou a política de imigração cuidando de oferecer pequenas propriedades a imigrantes e assim atraiu os primeiros japoneses Washington Luís trouxe instrutores franceses para treinar a polícia ao lidar com cidadãos tornou estáveis os cargos de delegado de polícia e dos juízes estaduais Albuquerque Lins foi atrás de contatos financeiros no exterior Mas o que de fato interessava mal passou pelos jornais Ainda em 1904 Augusto Ramos foi dispensado de dar aulas na Escola Politécnica Recebeu do governador a missão de estudar melhor suas propostas fazendo uma viagem às zonas produtoras concorrentes do Brasil Assim que começou a preparar a viagem Augusto Ramos percebeu que os seus artigos de jornal tiveram o condão de arregimentar apoios importantes Ao contrário da maioria dos estudiosos brasileiros da época que protestavam contra a exploração dos produtores nacionais pelos compradores estrangeiros ele dizia que uma aliança com estes deveria ser a base da política de valorização Bastou informar discretamente que estaria viajando a fim de desenvolver tal aliança para que aparecessem compradores estrangeiros dispostos a ajudar A maior empresa alemã do mercado era a Theodor Wille Os sócios brasileiros escreveram cartas para a matriz e de lá saíram outras recomendando Augusto Ramos a produtores e correspondentes de todo o Caribe Uma das grandes compradoras norte americanas era a Marcus Mason de Nova York os gerentes brasileiros escreveram para lá e a resposta foi a melhor possível assim expressa pelo próprio Augusto Ramos O próprio presidente E O Shernikov abriume como só se faz a um amigo as portas de entrada de fazendas e engenhos em todos os países visitados2 Com esse apoio entre o final de 1904 e o primeiro semestre de 1905 Augusto Ramos visitou os principais compradores de café nos Estados Unidos junto aos quais colheu dados estatísticos preciosos Depois atravessou o México de trem e a cavalo percorreu a Guatemala El Salvador Nicarágua Costa Rica Venezuela e Porto Rico Foi às fazendas anotou meticulosamente todos os dados sobre custos de produção métodos de preparo preços de venda nas várias etapas do processo situação das políticas econômicas qualidade da mão de obra a exceção foi a Colômbia que não percorreu por causa dos movimentos revolucionários que perturbavam o país Na volta preparou um relatório secreto para o governador Publicado apenas em 1907 com o título A indústria cafeeira na América espanhola fora redigido para responder uma pergunta caso o Brasil fizesse uma política de valorização do café haveria o risco de os demais produtores elevarem a produção de modo a se aproveitar da situação ganhando às custas do esforço brasileiro e tornando inútil o projeto A resposta era detalhada pela análise caso a caso das condições locais de produção nos países concorrentes Depois disso vinham as conclusões gerais que começavam com a comparação entre uma estrutura de trabalho arcaica e métodos tecnológicos modernos A indústria cafeeira da América espanhola seguiu o mesmo caminho percorrido pela indústria cafeeira do Rio de Janeiro Há de chegar ao mesmo fim A crise a teria de pronto aniquilado se não fosse a admirável evolução industrial do beneficiamento pela via úmida despolpando a massa toda de café e obtendo um gênero sem rival A produção cafeeira dos nossos concorrentes está pois votada ao estacionamento na melhor das hipóteses3 A capacidade trazida pelo capital não compensava os problemas com o trabalho e a política O que ainda mantém a indústria cafeeira hispano americana é o salário baixo permitindo um custo de produção igualmente baixo embora mais elevado em geral que o do café brasileiro Elevese o salário e desaparecerão as fazendas Quando esta limitação para a produção não bastasse haveria para completar a obra um fator de poderosa influência a situação social e política de quase todos aqueles povos Onde campeia o abuso o despotismo interesseiro e o desprezo pela propriedade as humilhações e vexames a que todos são voltados a sujeitarse a outros é baixa a capacidade de atração de capitais4 Somados os fatores a vantagem final da produção brasileira era clara O Brasil está colocado na vanguarda de todos os países produtores tanto no que concerne à quantidade como em relação à organização da indústria e seu aparelhamento A indústria cafeeira em nosso país especialmente em São Paulo é uma verdadeira maravilha sem rival no mundo5 Além do relatório secreto Augusto Ramos produziu um livro publicado ainda em 1905 sob o título de Valorização do café Estudo sobre o projeto de Alexandre Siciliano Apesar da homenagem pública ao companheiro de ideias a obra trazia uma portentosa atualização do pensamento do próprio autor viabilizada pela qualidade dos dados estatísticos que recolhera na viagem O norte conceitual de todo o projeto continuava sendo o mesmo da primeira apresentação em O Estado de S Paulo dois anos antes a consideração de que o equilíbrio entre oferta e procura de café só podia ser determinado pelo conhecimento de um equilíbrio estatístico em prazos longos Mas aquilo que era um argumento acima de tudo conceitual se transformara depois da viagem numa sequência de argumentos ancorados em dados reais O primeiro deles era a estrutura de longo prazo do comportamento do mercado Tratandose de colheitas anuais como as de trigo milho arroz fumo e algodão o remédio seria moderar as plantações durante um ano para que se estabelecesse um equilíbrio entre estoque e consumo O café no entanto é uma planta que requer de cinco a seis anos para se formar determinando o emprego de considerável capital que deve ser empregado não somente no cuidado das plantas mas também nas instalações necessárias tais como edifícios maquinismos mecanismos de transporte etc Não é possível portanto solver uma crise originada por excesso de produção de café de um ano para outro nem também é possível aumentar sensivelmente o suprimento de café em tempo menor que sete ou oito anos6 Também continuava de pé o pressuposto de que esse equilíbrio não era apenas uma questão regional mas mundial Os dados relevantes para a análise desse equilíbrio vinham no livro sob a forma de tabelas estatísticas elaboradas a partir dos dados obtidos durante a viagem Para expurgar as variações sazonais dos cálculos de produção e consumo Augusto Ramos empregou médias móveis de cinco anos uma sofisticação muito incomum na época A primeira dessas tabelas apresentava a produção mundial além da participação do Brasil nesse cenário no período de 1870 a 1905 Os números mostravam dois processos claros Nesse intervalo a produção havia mais que dobrado passando de 73 para 164 milhões de sacas Mas esse crescimento era desproporcionalmente distribuído entre os países A produção de todos os demais países mantinhase estacionária em torno de 4 milhões de sacas ao passo que a produção brasileira saltara de 55 para 124 milhões de sacas Como resultado dos dois processos combinados a participação brasileira aumentara de 45 para 76 de todo o mercado mundial Mais ainda o grosso desse salto acontecera na década anterior entre 1895 e 1905 a participação brasileira passara de 59 para 76 do mercado mundial A segunda tabela montada por Augusto Ramos mostrava que o aumento da produção vinha acompanhado de um crescimento do consumo em todo o mundo no período 18801905 Mais ainda permitia entrever uma constância no incremento do consumo num período que conhecera duas tendências opostas de preços forte alta entre 1885 e 1896 e fortes baixas daí até o momento do estudo Os números sustentavam uma afirmação Por essa tabela se vê que no meio de todas as vicissitudes atravessadas e não obstante os altos preços mantidos durante longo período o consumo de café esteve sujeito a um constante aumento garantindo um certo acréscimo na produção7 Se a primeira tabela mostrava a construção de uma posição dominante do Brasil e a segunda uma tendência positiva para o mercado a terceira relacionava a produção e o consumo com estoques e preços conduzindo diretamente ao dado fundamental havia necessidade imperiosa de um estoque para manter o equilíbrio entre oferta e procura A razão para a estocagem vinha dos próprios ciclos da produção as safras do café são irregulares variando de acordo com o clima e a produção anterior Esse fato era demonstrado em números A tabela mostrava que os estoques mundiais se mantiveram elevados mesmo no período de preços altos anteriores a 1897 E cresceram violentamente quando começara a baixa passando de 4 milhões de sacas em 1897 para 123 milhões em 1904 caindo pela primeira vez no ano seguinte para 113 milhões Como proporção do consumo mundial nos mesmos períodos os estoques subiram de 32 em 1897 para 78 em 1904 e desceram para 71 em 1905 Depois de considerar produção consumo e estoques Augusto Ramos entrava na análise dos preços Essa análise considerava a existência de um nível obrigatório de estoque por ele estimado em 50 do consumo mundial Tal obrigatoriedade fundava uma suposição importante quando os estoques atingiam esse patamar seus detentores o mantinham mesmo em caso de forte alta de preços como ocorrera no período 18851887 pois seria mais lucrativo reter que vender Inversamente o café comprado na baixa era estocado para garantir a continuidade do preço no varejo A combinação das duas tendências resultava na estabilidade desses preços ao longo do ciclo de alta e baixa o preço no varejo permanecera quase constante tanto na Europa como nos Estados Unidos Assim o estoque servia para equilibrar oferta e procura no longo prazo equilíbrio esse expresso pela estabilidade do preço no varejo Toda essa análise era quase inteiramente estranha aos formuladores das políticas brasileiras Eles empregavam conceitos de ajuste entre produção e consumo que perto do refinamento do método de Augusto Ramos eram extremamente toscos A teoria de Joaquim Murtinho e Leopoldo Bulhões supunha ajustes automáticos entre oferta e procura pelo preço à vista praticado nos portos brasileiros ignorando as tendências de longo prazo e o papel dos estoques para regular a combinação de oferta instável com demanda ascendente Todo o projeto de Augusto Ramos com base em novos conceitos estatísticos os mesmos empregados pelos investidores que detinham o estoque trazia também novas soluções igualmente baseadas em projeções estatísticas dessa vez relacionando o futuro do mercado com as tendências históricas mostradas pela análise do passado E começava esse passo com uma avaliação da produção futura brasileira Com referência à produção brasileira foram taxadas proibitivamente as novas plantações em São Paulo há mais de dois anos tendo de continuar em vigor a mesma lei até 1907 Consequentemente a produção brasileira não pode aumentar nos próximos nove anos8 O texto escrito para publicação imediata mantinha em reserva a conclusão do relatório da viagem pela qual também os concorrentes não teriam capacidade de aumento rápido da produção Dessa forma o raciocínio previa uma produção mundial estável Por isso todas as projeções para o futuro se faziam com uma combinação de produção média estável de 16 milhões de sacas anuais e aumento de 25 anuais no consumo taxa menor que a tendência histórica nas duas décadas anteriores Tais pressupostos embasavam as projeções futuras o estoque mundial de café aumentaria em 1906 caindo lentamente nos anos seguintes Seguindo a proporção os estoques chegariam a 50 do consumo em 1910 quando então os preços deveriam sofrer um aumento acentuado Ao fim da safra de 191011 30 de junho de 1911 o consumo total terá atingido 18 milhões de sacas e os estoques estariam reduzidos a 6 milhões isto é um terço do consumo Os preços se elevariam a mais de 100 francos9 Mas essa alta não era a que interessava ao estudo Pelo contrário o objetivo do projeto era a estabilidade Por isso o preço que se queria era outro Também foi calculado estatisticamente com base no custo médio do café ao longo dos vinte anos anteriores para um comprador francês o que mostra que ele também recebera estatísticas de outros mercados Tomemos a média e vejamos o justo preço do artigo 81 francos por 50 quilos O Brasil no entanto se contentaria com menos 70 a 75 francos10 Essa seria a renda dos produtores brasileiros caso o café fosse comprado por capitalistas estrangeiros e transformado em estoque regulador a ser colocado no mercado nas condições estabelecidas pelo projeto de Alexandre Siciliano liberação automática das vendas quando o preço fosse atingido Assim ficava acabado um plano concebido e forjado na sociedade brasileira e que ganhara consistência à medida que passava por críticas que resultavam em aperfeiçoamentos e no apoio de produtores dispersos autoridades municipais congressos nacionais Daí se institucionalizara um pouco através do Legislativo paulista Agora recebia forma acabada graças ao apoio de um governador Mas o que de fato interessava não era o conhecimento do passado mas a viabilidade para o futuro No trabalho essa viabilidade aparecia apenas como projeções estatísticas supondo o mercado controlado pelos detentores do estoque A primeira e mais atraente suposição era a da compra do café por um preço 50 maior do que o praticado no mercado à vista em Santos naquele momento que era de 50 francos e passaria a 75 Mas havia duas condições hipotéticas essenciais para a operação ser bem sucedida um comprador com dinheiro para pagar e um governo capaz de garantir o controle da oferta pelo prazo mínimo de seis anos Naquele momento havia apenas uma regulamentação punitiva de aumento da produção em um estado Todo o mais era pura esperança A realização do negócio representado pelo projeto oferecerá incalculáveis vantagens para ambas as partes interessadas11 No momento em que o relatório foi redigido a maior dificuldade era a de encontrar alguma relação entre o emprego da palavra governo na proposta e a realidade brasileira No papel era fácil aplicála com o sentido de um sócio essencial do negócio que daria a segurança necessária para a operação ao entrar com as garantias de contenção da produção durante um período mínimo de seis anos Lendo o relatório o mais plausível ator nesse papel o governador Jorge Tibiriçá sabia muito bem que nenhum investidor estrangeiro de porte chegaria ao ponto de confiar seriamente nessa definição Mas então os fados da política operaram milagres CAPÍTULO 54 O plano do café oportunidade quase milagrosa AINDA ENQUANTO AUGUSTO RAMOS SE PREPARAVA PARA PARTIR EM VIAGEM NO final de 1904 o senador José Gomes Pinheiro Machado solicitou uma audiência ao presidente Rodrigues Alves Filho de um sorocabano que fugira para o Rio Grande do Sul na revolução de 1842 ele ganhara muito dinheiro comprando mulas na campanha gaúcha e revendendoas na feira de Sorocaba Assim mantinha fortes ligações com os negócios paulistas Já os laços políticos eram mais tênues Depois de formado voltou para casa e foi um fiel militante do Partido Republicano Riograndense Seguia todas as orientações do ditador Júlio de Castilhos incluindo a de se tornar senador Depois da morte de Castilhos passou a seguir as ordens do ditador herdeiro Borges de Medeiros mas agora com luzes próprias Como o novo ditador era um político local e o senador tinha bastante experiência na política da capital Borges de Medeiros delegoulhe ampla autonomia no cenário nacional Pinheiro Machado soube aproveitar Por seu mérito havia se tornado vice presidente do Senado cargo que implicava outras fidelidades Jamais afrontou o presidente da República como faziam outros políticos positivistas Desenvolveu com isso um estilo muito próprio Morava numa mansão no morro da Graça1 Saía de manhã e durante o dia andava pela cidade com trajes peculiares casaca durante a semana ou bombachas nos finais de semana invariavelmente acompanhadas de botas de montar de salto alto chapéudechile gravata bem laçada presa por uma pérola colarinho engomado e lustroso cabelos longos soltos na nuca a bengala com uma figura de unicórnio engastada em marfim Enquanto perambulava ia convidando quem achava interessante no caminho para jantar em sua casa Quando chegava lá no começo da noite a sala estava cheia Mandava botar a mesa serviase em primeiro lugar Às vezes não havia comida para todos e então se providenciavam porções extras de farofa Depois do jantar ia para a sala de visitas e conversava até a chegada do fiel Jouvin seu parceiro diário de bilhar Enquanto os dois taqueavam reinava o silêncio só interrompido por aplausos ao anfitrião invariável vencedor das partidas Ali gestara uma ideia adequada a seus modos finórios que foi testar na audiência presidencial O registro da conversa de raposas foi detalhado por Rodrigues Alves em seu diário íntimo Apareceume em uma manhã o general Pinheiro Machado que deume conhecimento de suas intenções Achava bom o Campos Sales já tinha sido presidente precisava de uma reparação pelo modo como saiu era paulista mas indicado por um amigo de outro estado por certo a indicação não me molestaria2 Em seguida vinha o essencial o não dito Não acreditei na sinceridade do Pinheiro Machado e a minha primeira impressão foi que ele queria inutilizar São Paulo ou os candidatos paulistas seja para favorecer o Rui Barbosa de quem se mostrava íntimo ou ao menos para dividirnos no estado porque ele conhecia a sua política e sabia muito bem das tendências contrárias a Campos Sales vindas do seu seio3 Mesmo vislumbrando a manobra o presidente da República não teve como evitála Pinheiro Machado saiu da conversa com o presidente para as entrevistas com jornalistas e logo havia uma candidatura na praça Melhor ainda o candidato lançado não hesitou em vestir a carapuça Ao ler o seu nome nos jornais lembrado por alguém desvinculado do presidente Campos Sales mostrouse nas nuvens em carta a um amigo Só num caso serme ia permitido aceitar uma segunda eleição o de que minha indicação viesse a ser o resultado inequívoco de um movimento espontâneo e generalizado da opinião do país fora da esfera de influência oficial ou dos intuitos das facções A não ser isto nada Ora uma intervenção embora velada do presidente seria bastante para fazer suspeitar da espontaneidade deste movimento Ao Rodrigues Alves só cabe uma atitude se porventura for lançar minha candidatura a mais completa e escrupulosa abstenção4 Campos Sales ignorava em nome da esperança no movimento espontâneo a regra que ele mesmo lançara a sucessão era assunto de exclusiva competência do dono da cadeira presidencial após consultas aos donos de algumas cadeiras de governador Deixandose embalar pelo sonho da volta colaborou para diminuir muito a margem de manobra do depositário unipessoal na sucessão O expresidente era vaidoso mas não cego Na total ausência do movimento generalizado de opinião a seu favor em 5 de março de 1905 escreveu a Pinheiro Machado A questão das candidaturas presidenciais segundo penso já está bastante clara para que possamos tomar resoluções definitivas É fato agora conhecido que Jorge Tibiriçá em decidida solidariedade com o grupo oficial que o rodeia manifestou por carta a Rodrigues Alves suas simpatias pela candidatura Bernardino de Campos Agora sabese que Rodrigues Alves é hostil à minha candidatura está claro que não indago os motivos e que se nesse sentido não age a descoberto vai entretanto autorizando calculadas indiscrições Diante dessa fase imprevista ao menos para mim temo que meu nome possa servir para agitações Não procurei afastar meu nome desde o primeiro momento porque como os amigos me indicaram cheguei a crer talvez por demais confiadamente que ia no movimento iniciado por V Exa uma manifestação real e espontânea da opinião nacional Confesso que não deixava de encherme de grato desvanecimento por ver aí a consagração de minha conduta no governo Uma vez sob o estímulo de interesses de outra ordem se abre o litígio e aprazme darme por vencido sem combate Ponhome fora da liça5 O atilado Pinheiro Machado alegando estar perdido nalguma coxilha comprando animais levou mais de um mês para responder e retrucou pedindo que seu candidato não desistisse oficialmente pelo menos até quando voltasse da viagem Ainda no interior conseguiu organizar manifestações de apoio ao candidato em vários estados Uma delas essencial foi a dos acadêmicos de direito em São Paulo As palmas e vivas dos estudantes tiveram o efeito desejado Campos Sales não tornou pública a renúncia e continuou no papel de candidato não oficial já sabendo que jogava contra o presidente magoado pela hostilidade dele à candidatura Pinheiro Machado foi às nuvens No dia 6 de maio foi entrevistado em Santos a bordo do navio que o levava de Porto Alegre ao Rio de Janeiro Toda a entrevista foi uma defesa da candidatura de Campos Sales sem deixar de criticar o presidente Sou absolutamente contrário à escolha do presidente da República feita pelo seu antecessor Este deve manter a mais completa e estrita neutralidade e deixar que o país se manifeste livremente6 Todos os atores importantes no cenário Rodrigues Alves Jorge Tibiriçá Campos Sales e Pinheiro Machado sabiam perfeitamente que a candidatura Campos Sales era inviável Mas não puderam evitar o efeito temido pelo presidente Rodrigues Alves desde o dia em que conversara com Pinheiro Machado havia de fato uma divisão em São Paulo Mas também eram matreiros de modo que Jorge Tibiriçá resolveu dar o troco para Pinheiro Machado na mesma moeda indicou ele mesmo outro paulista para a presidência Bernardino de Campos E este estreou como candidato também pela imprensa No dia 26 de junho de 1905 uma entrevista sua virou manchete de O País jornal carioca que apoiava o governo Apresentou seu programa com as seguintes palavras A situação do Estado é boa urge atender o povo É evidente que o ideal republicano não é chegarmos à situação de termos o Estado próspero e uma população miserável é obtermos uma situação onde a prosperidade do Estado seja o expoente da prosperidade da população O que é preciso para isso Ora que na indústria pastoral na indústria fabril e nas extrativas que o resultado do trabalho reverta para elas permitindo uma vida melhor e a acumulação de reservas7 Com relação ao câmbio Bernardino propunha uma medida imitativa Poderíamos admitir talvez um mecanismo semelhante à Caixa de Conversão argentina8 Essa caixa comprava moeda estrangeira a preço fixo emitindo títulos de papel para a circulação interna algo que soava como música para os defensores da valorização do café Para completar Bernardino propunha que a ação do Estado na esfera federal se deslocasse para as áreas da educação e da infraestrutura inclusive sugerindo formas de reforma agrária para alcançar as novas metas de desenvolvimento nacional Como notou Américo Lacombe Dizia simplesmente que no Brasil tudo estava errado estava tudo torto necessitando de completa e urgente reorganização Uma refusão tão profunda nas bases econômicas do país uma reforma tributária e administrativa tão ampla que sem o dizer indicava uma próxima reforma constitucional O exame foi feito de uma maneira tão áspera que assustou ao mundo político9 A existência de duas candidaturas paulistas era um sinal claro não haveria presidente da República saído de um estado dividido Pinheiro Machado leu o sinal e tomou o trem para Minas Gerais onde conversou com o vicepresidente Afonso Pena pensando em apoiálo como candidato Ainda segundo Américo Lacombe Pena objetou ao general Pinheiro que o modo por que compreendia os deveres do cargo além de antigas relações pessoais com o presidente da República não permitiam que ele se tornasse um centro de oposição10 Apesar do recado claro da lealdade ao presidente Pinheiro Machado começou a trabalhar quase abertamente pela candidatura de Afonso Pena como se ela fosse de oposição Em 27 de julho de 1905 Pinheiro Machado anunciou em público a candidatura Mas Afonso Pena na carta em que comunicou o fato ao governador mineiro Francisco Sales avisou Pinheiro Machado quer evitar a conflagração que virá fatalmente se o Dr Bernardino de Campos for eleito presidente11 Pensando como se a candidatura de Bernardino de Campos fosse séria Pinheiro Machado tratou de preparar as maiores adesões que conseguisse entre elas a indicação de Nilo Peçanha governador do Rio de Janeiro e conhecido florianista para a vicepresidência Mas era também vaidoso de seu papel como construtor de uma presidência de modo que não percebeu certos detalhes fundamentais nem mesmo quando Afonso Pena falava em lealdade ao presidente frase cujos fundamentos eram desconhecidos pelo senador O presidente Rodrigues Alves deixou Pinheiro Machado aparecer à vontade com as apresentações públicas de candidaturas e os palpites sobre o que deveria fazer um presidente Mas fez o que devia conhecendo as pretensões do senador Já em fevereiro de 1905 ainda quando o arauto visitava as coxilhas Campos Sales nem havia escrito a carta de renúncia e Bernardino de Campos não era candidato mandou um emissário de confiança a Barbacena para uma conversa reservada com Bias Fortes um dos líderes do Partido Republicano Mineiro Após a reunião este escreveu a Afonso Pena O doutor Lamounier aqui esteve ontem e afirmoume que o Dr Rodrigues Alves não cansa de falar na sua candidatura Entende o Dr Rodrigues Alves que o Lauro Muller era um bom candidato mas que é moço ainda Diz o Lamounier estar o presidente aflito que se aclare a situação a favor de sua candidatura por ficarem afastadas as de Campos Sales e Bernardino com as quais se conformaria só por imposição da maioria que julga difícil ou senão impossível12 Duas semanas depois em 15 de março o próprio Rodrigues Alves escrevia a Afonso Pena Tinha conseguido que meu estado não se adiantasse de modo que eu pudesse na ocasião própria conhecendo as correntes animar a que fosse mais indicada A atitude do Pinheiro Machado fazendo uma agitação intempestiva perturbou essa expectativa O seu fim era evidentemente contrariar a corrente que ele supunha estabelecida para o estado de Minas e direi melhor em torno de seu nome É provável pois que haja muitas dificuldades a vencer e daí a necessidade de procurarmos guardar uma certa conformidade de vistas evitando divergências e acalmando ressentimentos13 Cinco meses depois o presidente e o candidato mineiro continuavam mantendo conformidade de vistas Ao receber todo o apoio de Pinheiro Machado comunicou o sucesso ao presidente da República a quem tinha sido fiel o tempo todo Quando soube que a isca tinha sido mordida o presidente teve o prazer de dar a fisgada No dia 13 de agosto de 1905 o presidente Rodrigues Alves escreveu a Bernardino de Campos Há dois dias dãome conhecimento da adesão definitiva de Minas à candidatura do Dr Afonso Pena Parece agora que o melhor será o Sr fazer pronunciamento pelo Dr Pena com a promessa de interessar os seus amigos no mesmo sentido Poderá fazer diretamente esta comunicação dando conhecimento à imprensa do que houver decidido Penso que este arbítrio não lhe causará muito pelo que me recordo que quando o ouvi sobre a candidatura Pena à vicepresidência referiuse a ele em termos muito lisonjeiros Assim terá a vantagem de concorrer para que se dê em favor da referida candidatura uma unanimidade que afastará o caráter que querem lhe dar de oposicionista ao atual governo Peçolhe que converse a respeito com o Dr Tibiriçá14 Em apenas dois dias o pescador virou pesca No dia 16 de agosto o governador Jorge Tibiriçá declarou seu apoio a Afonso Pena Quase na mesma hora a Comissão Central do Partido Republicano Paulista informava que daria total apoio à decisão de seu indicado à presidência Todos pensavam que era Bernardino de Campos Mas nesse mesmo dia ele fez vazar para O Jornal de São Paulo os termos de uma carta enviada ao presidente da República pela qual enaltecia seu papel na candidatura vencedora Nela tece o Sr Bernardino de Campos os maiores elogios à correção do Sr conselheiro Rodrigues Alves neste delicado assunto salientando sua imparcialidade face aos dois candidatos ele e o Sr Campos Sales apresentado pelo senador Pinheiro Machado quando de toda gente eram conhecidas suas simpatias pessoais pelo Sr Afonso Pena15 De repente o candidato de oposição ganha todo o apoio da situação e Pinheiro Machado se vê na gaiola Até mesmo jornais informados como O Estado de S Paulo passaram recibo da desinformação atarantada Mas surpresa Quando a coligação formada pelo Sr Pinheiro Machado se tornara poderosa invencível como procederam o Sr Rodrigues Alves o Sr Tibiriçá a Comissão Central Procuraram conquistar a opinião nacional Tiveram a hombridade de provar o quanto eram sinceros Deviam sustentar seu candidato até o fim É o que lhes sugeria a honra Mas não Preferiram abandonálo ferido em sua honra maltratado perdido Digam o quanto disserem que ele renunciou A verdade não pode ser encoberta16 A verdade no caso é que num único golpe derase o milagre havia um candidato a presidente da República sagrado e quase eleito que também sabia tirar proveito do que não falou como Campos Sales havia feito com suas ideias econômicas Afonso Pena não tinha falado uma palavra sobre o Plano de Valorização do Café Sagrado candidato continuou mudo a respeito Mas a candidatura era o sinal estava na hora de colocar em prática o plano CAPÍTULO 55 O Convênio de Taubaté A PRIMEIRA INFORMAÇÃO DE QUE A VALORIZAÇÃO DO CAFÉ ESTAVA PASSANDO DA fase das teses e conceitos para a luta real veio em 16 de agosto de 1905 o mesmo dia em que o governador Jorge Tibiriçá anunciou em público a adesão à candidatura de Afonso Pena O autor do aviso foi o senador estadual Siqueira Campos membro da Sociedade Paulista de Agricultura São Paulo por si só não pode resolver o problema da valorização do café Precisa recorrer à ajuda de outros estados para poder enfrentar aqueles que especulam sobre o café Nesse sentido o governo no estado está mandando emissários aos governos do Rio de Janeiro e de Minas para se entenderem sobre um modo de estabelecer uma ação conjunta1 Oito dias depois um jornal da cidade de Juiz de Fora O Farol inadvertidamente dava um furo Na edição do dia 24 de agosto anunciava a partida de José Monteiro Ribeiro Junqueira deputado federal e presidente da companhia de eletricidade CataguasesLeopoldina rumo à cidade de Taubaté a fim de trabalhar no plano de valorização do café com delegados de São Paulo e Rio de Janeiro2 Afora esse pequeno vazamento a reunião prévia dos emissários aconteceu em total segredo mas suas deliberações repercutiram em vários pontos Logo após a conversa os parlamentos estaduais passaram a aprovar leis Em Minas Gerais o governador Francisco Sales conseguiu passar uma delas em apenas duas semanas como mostrou Marcos Martins de Oliveira Foi aprovado o projeto que autorizava o governador a entrar em acordo com o governo federal e outros estados cafeeiros para adoção de medidas que tivessem por fim elevar o valor do produto regularizar sua exportação e normalizar o seu comércio Além disso houve a disposição que lançava um imposto proibitivo sobre as novas culturas transformada na lei número 400 de 13 de setembro de 19053 Rodrigues Alves sabia que leis não dão em árvores e entendeu o sinal mineiro a implantação do programa de valorização do café estava em curso Era uma descoberta amarga Repetiase com sinal trocado a ingrata surpresa que o presidenteeleitor Prudente de Morais tivera com o programa do presidente eleito Campos Sales Com pouco mais da metade do mandato cumprida Rodrigues Alves estava vendo se armar uma manobra para lhe impor à vista de todos uma política econômica oposta à que defendia em público Não fez como Prudente de Morais que engoliu o sapo para que o governo da nação tivesse continuidade Mandou a banda tocar na rua pediu ao amigo e companheiro no antigo Partido Conservador imperial Antônio Prado para atacar o projeto de valorização do café pela imprensa O mais rico empresário de São Paulo se entendeu com o maior jornal do país o Jornal do Commercio do Rio de Janeiro Assim o anúncio da resistência foi um verdadeiro petardo No dia 23 de setembro de 1905 O Estado de S Paulo reproduziu a reportagem publicada no dia anterior na capital do país A primeira pergunta era um pedido de opinião sobre o projeto de valorização do café que o governo de São Paulo adotou e que está servindo de base para acordos iniciados com os governos de Minas e do Rio de Janeiro4 A resposta de Antônio Prado foi direta Penso que estão completamente iludidos os que julgam ter encontrado remédio para a crise da lavoura cafeeira com esses processos Sobre a proposta correlata de desvalorização cambial foi igualmente duro Pode parecer que o produtor vendendo sua mercadoria em ouro lucra mais com a baixa do câmbio Porém são tais as oscilações cambiais que o lucro quase sempre desaparece A interpretação foi inequívoca essa seria a posição do governo e do presidente da República Até então um tiro como esse sempre fora fatal em toda a República ninguém ousara desafiar a autoridade do dono da cadeira ainda mais em guerra aberta Mas dessa vez seria diferente No mesmo dia da entrevista com Antônio Prado o jornal publicava um sinal de que o plano de valorização continuava valendo um artigo do industrial Alexandre Siciliano discutindo a estrutura do contrato a ser firmado e que permitiria a compra do café Era uma discussão importante porque faltava ainda um detalhe essencial saber quem seria o governo sempre citado nos planos mas nunca especificado No dia 25 de setembro de 1905 os senadores estaduais paulistas começaram a discutir um projeto autorizando o poder executivo do estado a entrar em entendimento com os governos dos estados interessados na cultura de café para a adoção de medidas que assegurem a valorização do produto5 E já na segunda sessão apareceu o desenho completo de uma medida que fazia parte do projeto mas também não fora especificada uma mudança na política cambial brasileira O encarregado de apresentar a medida foi o senador Luiz de Toledo Piza e Almeida Nascido em Capivari Luiz de Toledo Piza era advogado e dividia o tempo entre os negócios da Companhia Antarctica Paulista a direção do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo em cuja revista publicava trabalhos sobre os primeiros anos da vila a cátedra de economia política da Escola Normal6 e a direção do Correio Paulistano o principal concorrente de O Estado de S Paulo7 Por conta própria ele aproveitou as discussões da autorização para negociar a questão do café e introduziu nela um adendo na sessão de 26 de setembro de 1905 Devo remeter ao Senado nos próximos dias uma indicação para que se dirija ao Congresso Nacional uma representação no sentido de se adotar na legislação financeira do país uma medida idêntica à que a Argentina adotou em 1891 e cujos resultados têm sido os mais eficazes8 Na Argentina a medida fora adotada em meio a um turbilhão ocasião em que o país se tornara o centro da crise mundial ao não honrar o pagamento de suas dívidas Era uma ideia simples o governo criou uma instituição que comprava e vendia moeda estrangeira e títulos cambiais pelo preço de mercado do dia então apenas 42 da cotação oficial do peso A compra era paga com notas de papel que podiam ser trocadas de volta pela mesma cotação Além de simples o mecanismo revelouse muito eficiente Como a Argentina mantinha saldos comerciais positivos havia moeda estrangeira disponível para ser comprada E como não havia limite para as compras que eram pagas com mero papel impresso pelo governo ninguém apareceu para especular contra o mecanismo vendendo ouro O êxito do esquema permitiu que a Argentina saísse depressa da crise combinando emissão de papelmoeda e estabilidade cambial pois não faltaram portadores de moeda lastreada em ouro para vender A taxa de juro baixou o crédito se ampliou e o crescimento econômico voltou a ser explosivo como antes O senador Toledo Piza registrou as diferenças com admiração Hoje a República Argentina está inteiramente na comunhão econômica de todos os países adiantados do mundo ao passo que nós estamos no mais absoluto isolamento A Argentina goza de uma folga extraordinária ao passo que nós somos oprimidos por uma insuportável deficiência de capital9 Também não deixou de notar de onde viria a resistência para sua sugestão Desde já responderei à primeira objeção que se oferecerá e que é a mais grave é aquela que se contém no parecer de todos os nossos economistas e financeiros e se repete ultimamente nos relatórios do ministro da Fazenda que sendo tal processo uma quebra de padrão monetário ele representa uma falência interna uma falta de fé nos contratos Este argumento nada prova uma vez que o resgate gradual do papel não é outra coisa senão uma quebra parcializada do padrão monetário Quando o governo contrai um empréstimo para resgatar parte do papel ele resgata pelo preço corrente na praça não pelo estalão monetário Nessas condições dáse a falência parcial a falsa fé com relação àquela parcela por pequena que ela seja subtraída à circulação10 Toledo Piza tinha portanto uma noção bastante exata das resistências à sua proposta que ia no sentido oposto ao dos principais ensinamentos de toda a vasta escola derivada da tradição conservadora do Império guia de todos os ministros do partido e lei pétrea das duas últimas administrações republicanas no poder a correspondência entre determinada quantidade de ouro e outra de milréis expressa numa lei de 1846 era a promessa sagrada do soberano a base da credibilidade de todos os contratos o objetivo final de toda a política econômica Tudo o que acontecia na realidade no dia a dia dos mercados nas trocas efetivas entre os agentes deveria ser subordinado a esse norte único fixo invariável o governo estava empenhado em garantir a promessa da troca da moeda nacional por ouro na quantidade prometida Esse objetivo não significava apenas adesão ao padrãoouro Era uma adesão numa proporção determinada no valor fixo de 27 pence por milréis Como essa possibilidade não se realizava na prática do mercado a culpa era jogada sobre a moeda de papel fonte de todos os erros morais e não apenas monetários O mecanismo argentino chamado de caixa de conversão dividia o problema em duas metades De um lado o país mantinha a paridade legal Porém em vez de um norte absoluto passou a tratála como questão de conveniência Acima da cotação legal foi posto o objetivo da estabilidade a caixa comprava e vendia pelo valor de mercado abaixo do oficial Quando julgasse oportuno o governo poderia dar passos na direção da coincidência entre o valor de mercado e o valor legal da moeda A criação de um padrão estável ainda que não o da lei funcionando sem que a paridade legal tivesse sido abolida gerava uma diferença fundamental Havia a vantagem da taxa relativamente fixa e previsível mesmo numa moeda inconversível Mas sendo uma taxa mais baixa do que a prevista em lei permitia o estudo de cada um dos fatores paridade e câmbio estável de maneira isolada Assim se descortinava um mundo novo inclusive para o Brasil anunciado pelo senador Se fizéssemos uma operação desta natureza teríamos a possibilidade de avaliar nosso café aqui internamente avaliar nosso trabalho avaliar as remunerações sem as possibilidades das oscilações que têm ocorrido Nós produtores de café não estaríamos isolados do esforço conjunto de toda a nação O produtor de borracha teria as mesmas vantagens que nós bem como os produtores de outras matérias exportáveis Nessas condições não é possível que por preocupações meramente teóricas deixemos de realizar um passo que não nos traz risco nenhum11 As vantagens da caixa de conversão não seriam apenas setoriais uma vez que não tinham a mesma natureza da compra de estoques de café Elas serviriam para aumentar a renda de todos os exportadores brasileiros Seria um caminho nacional não um trabalho regional E também um caminho para alianças políticas Lançada numa casa de políticos a ideia em poucos dias foi vista como o ovo de Colombo empolgando o Senado paulista Toledo Piza transformou a empolgação numa curta emenda que previa representar ao Congresso Nacional sobre a conveniência e oportunidade de serem adotadas medidas tendentes à fixação definitiva do câmbio a exemplo do que se fez na República Argentina12 Com a aprovação da emenda dois instrumentos concorreriam para mudar a situação a compra do estoque de café visando aumentar a renda dos produtores e um mecanismo cambial capaz de manter essa renda no Brasil e em moeda nacional impedindo a alta das taxas de câmbio No entanto ainda restava um problema Se o investimento em estoque desse certo e a renda dos produtores de café e de todos os exportadores nacionais crescesse haveria mais riqueza nacional Mas para onde iria essa riqueza Uma das aplicações mais óbvias para ela seria no próprio setor cafeeiro mas isso ficava explicitamente de fora das cogitações pois continuaria valendo a proibição de plantar O senador Toledo Piza tinha uma resposta Devemos cogitar de fazer do paulista além de um povo laborioso agrícola um povo comercial um povo industrial porque a indústria não é mais que a aplicação do comércio à produção a indústria é a transformação dos produtos naturais a elaboração exigida sobre os requintes de consumo além daquilo que a natureza oferece13 Mas a natureza estava trazendo requintes inesperados para a batalha como notou Thomas Halloway Excluídos acidentes como geadas o tamanho de cada safra pode ser aferido oito a nove meses antes observando em setembrooutubro a abundância relativa da floração Assim os paulistas tiveram aviso prévio de que a nova safra seria muito grande as estimativas preliminares para a safra 19061907 foram em torno de 12 milhões de sacas Mas ao longo dos meses seguintes uma combinação incomum de condições climáticas e fatores biológicos foi elevando as previsões14 As estimativas só tornavam mais agudas as incertezas e patético o ritual político oficial que se cumpria com sua coreografia lenta No dia 13 de outubro de 1905 no Cassino Fluminense teve lugar o banquete político para a apresentação pública do ungido Afonso Pena A mesa principal era um prodígio de união Pinheiro Machado no centro o vicepresidente e futuro presidente à sua direita o governador Nilo Peçanha à esquerda e todos os ministros do presidente Rodrigues Alves na mesa principal O encarregado do discurso de apresentação era ninguém menos que o exministro Joaquim Murtinho que propagou a seguinte versão do programa econômico do candidato A coligação republicana não é papelista pensa que o programa econômico e financeiro tem como ponto fundamental de sua solução a fixidez de nossa moeda Sem fixidez da moeda não há cálculo nem previdência possível A indústria o comércio todo o trabalho nacional ficam sujeitos à incerteza A transformação do papelmoeda em papel conversível eis o primeiro dever da República na esfera financeira e econômica Problema de solução lenta e difícil para aqueles que o encaram pelo prisma da realidade problema de solução rápida e fácil para aqueles que o enxergam pelo prisma da fantasia os que pregam a conversão imediata e fixam o câmbio para esta conversão e assentam assim esta operação em uma desonestidade por parte do Estado Assim meus senhores se esta fantasia pudesse se realizar ela modificaria de tal forma os contratos que ninguém poderia calcular a grandeza da catástrofe que pesaria sobre o comércio e sobretudo sobre a produção nacional15 Afonso Pena que sabia muito bem por que Toledo Piza dizia exatamente o contrário de tudo isso fez o que devia no ritual falar muito e não dizer nada A transcrição da infinidade de platitudes consumiu cinco colunas maciças nos jornais Sobre economia falou pouco Para a solução do importante e complexo problema monetário estão estabelecidas bases seguras nas leis Em tais reformas a sabedoria do homem de Estado consiste em deixar de lado as quimeras e contar exclusivamente com os fatos reais De uma boa situação financeira decorrem corolários práticos da maior importância para o progresso nacional Nos tempos modernos essa é a questão por excelência que preocupa a atuação dos governos e estadistas16 Depois disso como notou a edição do dia 27 de outubro de O Estado de S Paulo o Sr Afonso Pena recolheuse aos bastidores Foi a Minas esperar a eleição do dia 1o de março e meditar acerca do que terá de fazer17 Enquanto o candidato fechavase em copas Jorge Tibiriçá ganhava novos motivos para rir cada vez que contemplava a sua caricatura predileta aquela da Eloquência Oficial Sem fazer discursos estava pronto para desencadear novos atos Depois da aprovação das medidas legislativas prévias em São Paulo Minas Gerais e no Rio de Janeiro veio a avalanche federal No Congresso o deputado federal Cândido Rodrigues articulador político do governador paulista realizou uma manobra reservada para veteranos na Câmara dos Deputados aproveitou a discussão do orçamento para introduzir uma emenda que como disse Afonso Arinos autorizava o presidente da República a entrar em acordo com os estados cafeeiros a fim de regular o comércio de café e diziase expressamente promover a sua valorização dando garantias às operações de crédito realizadas para tal fim18 A emenda foi aprovada tornando legais os gastos que o futuro presidente fosse fazer em nome do plano no ano vindouro Findos os preparativos veio a chamada de Jorge Tibiriçá para o ato inaugural da guerra CAPÍTULO 56 A guerra o front parlamentar DOMINGO 25 DE FEVEREIRO DE 1906 DEZ DA MANHÃ O TREM LEVANDO O governador Jorge Tibiriçá encosta na estação de Taubaté Recebido com foguetes e bandas de música o governador e a sua comitiva embarcam em carruagens e cruzam a cidade embandeirada e enfeitada Param todos na casa do coronel Marcondes de Matos onde às onze da manhã é servido o primeiro banquete do dia Em seguida as autoridades visitam um asilo o hospital e a sociedade de apoio às artes Às seis da tarde voltam à estação para receber os governadores de Minas Gerais e do Rio de Janeiro que chegam num trem especial Às sete horas começa o segundo banquete do dia na casa do coronel Leite Findos os discursos e brindes os governadores e os negociadores se acomodam num salão fechado às nove da noite Apenas na segundafeira os jornalistas conheceriam o resultado da reunião que se estendeu até as três e meia da madrugada No comunicado à imprensa com o texto do acordo além das assinaturas dos governadores havia as dos técnicos que o elaboraram entre eles Augusto Ramos criador do plano que depois de circular na sociedade nos municípios e nos legislativos estaduais agora se tornava compromisso oficial de três governos estaduais Pelo Convênio de Taubaté esses governos anunciavam que tomariam para si três responsabilidades básicas comprar café por um preço entre 55 e 65 francos por saca de café tipo 7 naquele momento antes da colheita da safra o preço estava em 38 francos cobrar um imposto de 3 francos por saca para cobrir as despesas do programa criar um serviço de propaganda do café brasileiro no exterior Para levar adiante o programa os signatários autorizavam o governo paulista a contratar um empréstimo de até 15 milhões de libras dando como garantia a arrecadação dos três impostos estaduais a serem criados Até aí assuntos de competência de governos estaduais Mas o texto ia além O artigo oitavo previa a razoável hipótese de que os eventuais fornecedores do dinheiro não se contentassem com a garantia dos impostos estaduais e exigissem o aval da União caso se torne necessário o endosso ou fiança da União para as operações de crédito serão observadas as disposições do art 2o parágrafo 10 da lei 1452 de 30 de dezembro de 1905 Era a emenda atiladamente introduzida no orçamento pelo deputado Cândido Rodrigues criando o caminho legal para a hipótese aventada no texto O mesmo artigo dizia mais sobre o eventual empréstimo Se contratado deveria ter um emprego exclusivo Será aplicado como lastro para a Caixa de Emissão Ouro e Conversão criada pelo Congresso Nacional para a fixação do valor da moeda Essa era uma flagrante invasão de competência Os governadores presentes eram todos políticos experientes Sabiam perfeitamente que não podiam dizer ao Congresso Nacional que fizesse essa ou aquela lei Mas também sabiam que sem pressão o Parlamento manteria a política econômica tal e qual vinha sendo executada Daí a eloquência oficial mas havia um sentido O Convênio de Taubaté não visava apenas comprometer os governos estaduais com a compra de café a determinado preço Era também uma demonstração explícita de que os governadores se reuniam para lutar contra a política econômica existente no Congresso Nacional A reunião aparatosa com bandas banquetes discussões e tratado tinha a finalidade de apresentar essa pauta ao público De apelar para a opinião pública no sentido de forçar os parlamentares na direção almejada pelos governadores A reunião pública mostrava também que a união não era pontual o texto do acordo era de adesão a um programa claro e concatenado discutido por vários anos e aceito politicamente Enfim reunia hostes importantes de um lado e a presidência reuniu as do outro No dia seguinte ao evento o presidente indicou o ministro Leopoldo de Bulhões como interlocutor para tratar com o futuro presidente Afonso Pena A primeira carta de Bulhões ao presidente de 27 de fevereiro de 1906 foi logo ao ponto Em Taubaté discutese a valorização do café O movimento paulista é um protesto contra tudo que se tem feito para melhorar a situação financeira e condenar a alta do câmbio Agora querse a estabilização da taxa e um grande empréstimo para lastro da emissão conversível dois coelhos mortos conversão do papelmoeda e ao mesmo tempo valorização do café Quebra de padrão é falência já dizia Robert Peel em 1819 A grande diferença que ele notava entre a Inglaterra e os outros estados é que esta nunca havia violado seus compromissos sua honestidade1 Achou pouco e voltou à carga no dia seguinte cobrando posição do eleito O futuro presidente da República em sua plataforma sobre a política financeira afirma sua continuidade Pois bem Três governadores de estado reúnemse em Taubaté e decretam um empréstimo de 15 milhões alteração do padrão monetário emissão Os telegramas de apoio chovem uma convocação do Congresso é anunciada o apoio das bancadas prometido Estaremos no mundo da lua2 Mais um dia na quintafeira seguinte ao Convênio com Afonso Pena significativamente mudo enquanto os governadores faziam barulho os brasileiros foram as urnas para eleger um presidente da República Como na época demorava a contagem de votos a confirmação do resultado somente veio mais de uma semana depois Só aí o presidente agiu Em 14 de março Rodrigues Alves negou o pedido de convocação extraordinária do Congresso para debater os projetos apoiados pelos governadores As discussões só começariam em maio data próxima demais ao início da colheita da monumental safra já estimada em 20 milhões de sacas muito além de qualquer outra jamais colhida E na data da abertura do Parlamento o presidente foi claro em sua mensagem Não é fenômeno econômico singular o da baixa do preço do café por excesso de produção Nunca providência legislativa alguma foi considerada eficaz para levantar de pronto o preço das mercadorias Medidas provisórias de caráter comercial ou especulativo podem agitar por um tempo o mercado e produzir um movimento animador nos preços mas a situação assim criada não subsistirá3 O Convênio pretendia regular a oferta sem alterar os preços nos mercados de consumo O presidente considerava a hipótese fantasiosa e o desastre certo Não há quem não tenha pela lavoura a cuja classe pertenço o mais decidido interesse Devese atender a seus reclamos com critério sem a preocupação de lisonjeála afagando esperanças exageradas e irrealizáveis Medidas imprudentes poderão produzir o efeito negativo de restringir o consumo de café provocar reações hostis dos países que o recebem e levar os nossos mercados à ameaça de agitações4 Outro objetivo do Convênio também era uma taxa de câmbio baixa O presidente defendia o contrário como verdade única em teoria econômica É um desacerto pensar que a lavoura do país não pode prosperar sem câmbio baixo e uma corrente tem se formado em favor da ideia de uma taxa que a beneficie As estatísticas demonstram ao contrário que com taxas melhores que as atuais a lavoura tem vivido e prosperado O bom câmbio é sinal de crédito de bemestar e prosperidade e todo o esforço do governo tem consistido em eleválo Não será prudente abandonar essa tendência nem perturbar um trabalho que se firma em métodos financeiros já consagrados5 Declarada a guerra os parlamentares seriam juízes não apenas de concepções opostas expressas por escrito o que era novidade na vida brasileira mas também de atos econômicos fundamentais que ocorreriam em seguida assim que a safra chegasse aos portos Como o tempo era curto os defensores do projeto foram rápidos para avaliar a situação com pouco mais de um mês de conversas no plenário e nos bastidores perceberam diferenças na avaliação de cada parte do projeto havia uma tendência a aprovar antes como lei nacional a parte do texto do convênio que autorizava os governos estaduais a comprar café cobrar impostos e pedir empréstimos Nada disso tinha qualquer implicação federal até porque um aval da União teria de ser aprovado de forma separada Já a aprovação da Caixa de Conversão seria bem mais complicada O projeto foi dividido segundo essa tendência Em apenas dois dias Senado e Câmara aprovaram as leis que tornavam nacional o apoio à intervenção no mercado de café Além dos efeitos práticos de dar maior sustentação legal às compras a vitória parlamentar mostrava depois de muitos anos que a teoria do Legislativo submisso aos interesses da administração era mais uma afirmação sobre um momento do que uma verdade de longo prazo O round seguinte da luta tornou ainda mais evidente a distância Os debates em torno da aprovação da Caixa de Conversão foram de fato discussões em torno de visões de mundo opostas Houve várias expressões destas mas uma mostrouse significativa Até por motivos familiares por ser um conservador com real tradição bisneto do visconde do Uruguai um dos maiores teóricos conservadores do Império e neto de Paulino de Souza que fora presidente do Senado o deputado Paulino de Souza era adversário exemplar do projeto O discurso pelo qual justificou seu voto contrário contém um resumo essencial do modo como um conservador via a economia naquele momento Na base do raciocínio estava o conhecido dogma O padrão é uma medida em ouro pela qual os particulares estão obrigados a receber o papel em suas transações Se diminuirmos essa medida indiscutivelmente há quebra no padrão quebra da equação estabelecida entre o numerário ouro e o papel emitido pelo governo6 E a quebra desse padrão equivalia a fazer desabar o mundo A alteração do padrão é a alteração de todos os preços é o amanhã incerto é a desordem permanente A moeda não cumpre mais seu papel essencial não garante mais a transformação de bens presentes em bens futuros equivalentes O padrão que é a medida em ouro de todos os valores inclusive do próprio papelmoeda tem como primeira condição e condição essencial a invariabilidade em todas as épocas A unidade da moeda deve ser absoluta no tempo e no espaço sob pena de não haver certeza nas transações7 Essa relação fixa esse pilar do mundo deveria ser também a base única do conhecimento teórico sobre economia e o norte moral dos governantes Dizer que se pode ao talante do legislador alterar a taxa legal isto é o valor da moeda conforme as condições do país aconselharem é avançar uma proposição prática e cientificamente inadmissível8 O abandono desse norte era visto como atentado à razão e à justiça O bom governo jamais poderia agir assim e daí o discurso passava da teoria para a história defendendo os últimos bons governos Se houvesse força maior isto é impossibilidade absoluta de o governo manter os compromissos assumidos seria necessário afrontar com coragem uma situação tão dolorosa Mas estamos nesta situação Olhemos para 1897 e para a situação atual situação cheia de esperanças à qual chegamos pelos sacrifícios que foram solicitados da nação e que esta tem suportado tão nobremente9 Mas dos sacrifícios teria resultado a bonança econômica O valor da exportação tem aumentado o comércio reanimase a situação bancária é muito mais sólida os negócios incontestavelmente renascem Nós tivemos a coragem de afrontar a situação em que o país se viu naqueles dias de incerteza aceitamos o funding loan e o cumprimos rigorosamente10 Depois de tudo isso a proposta da Caixa de Conversão só podia ser vista como flerte com o caos Podemos comprometer com fantasias arriscadas uma situação cheia de esperanças faltar aos compromissos mais solenes que uma nação pode assumir Alegase conveniência ou interesse público Não conheço interesse público maior que o da justiça segundo o qual o credor não pode repudiar suas dívidas Não conheço interesse maior para um país que sustentar seu crédito ainda que à custa dos maiores sacrifícios11 Depois de mostrar a teoria e defender o bom governo o deputado passou a argumentar sobre o atendimento dos interesses da sociedade Começava pela indústria A nossa indústria não produz para o mercado estrangeiro não lucra portanto com a moeda depreciada Em geral são indústrias de transformação Têm portanto de importar as matériasprimas além das máquinas de que carecem as quais são todas fabricadas no estrangeiro além do carvão que no dizer de um escritor é a segunda matériaprima de todas as indústrias Tudo tem pois a lucrar com a apreciação do câmbio que além disso determina uma diminuição do custo de produção12 Os assalariados também ganhariam A alta do câmbio favoreceu também os operários uma das classes mais dignas de interesse do legislador A carestia da vida consequente à elevação de todos os preços determinada pela desvalorização da moeda mais do que qualquer outro é sentida pelo operário que vive de jour en jour ganhando cada dia apenas o suficiente para ter o teto e a alimentação A lentidão com que os salários acompanham os preços faz com que as classes laboriosas sofram com a depreciação da moeda13 A política de elevar o câmbio também beneficiaria os compradores de produtos importados o governo federal os estados e os municípios Também desejam a subida no câmbio todos os que têm pagamentos no exterior Achase em primeiro lugar o Tesouro federal Foi a extraordinária depreciação da taxa cambial fazendose sentir nas grandes remessas do Tesouro que tornou em 1898 tão grave e insustentável a situação orçamentária À medida que o câmbio melhora mais fáceis tornamse os nossos pagamentos no exterior O mesmo acontece com os demais estados e algumas municipalidades14 Os próximos na lista de beneficiados vinham de fora É igual o benefício para todas as empresas constituídas com capitais estrangeiros Entre essas avultamse as estradas de ferro Ao lado desses interessados achamse aqueles que importam ou compram gêneros no exterior15 Somando tudo a valorização era o melhor Ela atende à maioria da nação Ponderemos o seguinte o valor da importação em 1904 foi desprezando as frações de 500 mil contos Ao câmbio de 16 compramos com essa soma produtos equivalentes a 334 milhões de libras esterlinas Se subisse a 27 teríamos mercadorias equivalentes a 56 milhões E como esses produtos importados são em grande parte gêneros de primeira necessidade que interessam à alimentação e ao vestuário bem se pode compreender quanto interessa à vida e ao conforto de todas as classes sociais a valorização da moeda16 Entre os beneficiados estariam também todos os produtores do mercado interno É preciso desfazer um equívoco A produção nacional não se limita ao que se exporta nem é essa a produção mais importante É preciso distinguir a produção para o consumo interno e para o consumo externo O primeiro que não lucra com a depreciação da moeda mas com a valorização apresenta proporções muito maiores17 Contra todos esses interesses beneficiados com a política existente apenas um pequeno grupo lucraria com a Caixa de Conversão Apenas desejam a depreciação da moeda nacional os que produzindo para o mercado externo recebem em ouro as suas mercadorias Estes querem o papel depreciado porque pela mesma quantidade de ouro recebem uma quantidade muito maior de papel18 Além de pequeno estaria também iludido A valorização da moeda diminui o custo da produção para o fazendeiro e a proteção que lhe dá o câmbio baixo é passageira pois só pode durar enquanto todos os outros preços especialmente os salários não se levantam no mesmo nível Assim pois o câmbio baixo a todos prejudica ao passo que uma ascensão lenta e moderada a todos aproveita19 Por tudo isso valia a pena pensar num futuro baseado na reiteração do passado Os defensores do novo projeto e das quimeras perigosas e funestas que o constituem acoimam de obsoletas essas opiniões Atribuem ao espírito atrasado e à rotina aquilo que é fruto do saber da experiência e do bom senso Por minha parte foram esses os princípios que aprendi na história financeira de meu país Sempre os defendi com a mais firme convicção de meu espírito Hei de sempre pugnar por eles enquanto tiver voz na representação nacional20 A defesa da lei levou à expressão de posições simetricamente contrárias como a defendida por outro deputado fluminense José de Barros Franco Júnior representante do estado nas negociações que levaram ao Convênio de Taubaté A oposição começava já no modo de se definir Em vez de se apresentar em nome da ciência e da moral Franco Júnior se colocava no papel de empresário e de observador empírico Não encaro este assunto do ponto de vista doutrinário Homem prático lavrador representante nesta casa de um estado que quase exclusivamente vive do seu trabalho rural pergunto como simples observador completamente alheio aos princípios científicos de qualquer ordem mesmo porque não me sobra tempo para me dedicar a esses estudos esses trabalhos pergunto é ou não imprescindível fixar o câmbio tendo em vista os fenômenos que têm se dado desde longa data21 Ao modo de Augusto Ramos em vez das verdades científicas o deputado preferia se guiar pelas observações estatísticas Se observarmos os dados estatísticos veremos que nos últimos 40 anos a taxa de 27 pence só foi atingida cinco vezes e dessas cinco vezes apenas num ano foi a taxa média o que quer dizer que ela nunca foi a taxa permanente22 Para Franco Júnior os fatos tinham valor muito maior que a paridade legal Essa é a taxa real Não quebra o padrão a lei quem quebra são os acontecimentos Quem faz o valor da moeda é a riqueza do país quem faz o valor da moeda é a diferença na troca dos valores internacionais A lei não eleva nem abaixa o câmbio essa é a verdade23 A Caixa de Conversão e não a lei da paridade seria o instrumento adequado para lidar com a realidade E seria uma instituição justa por sua finalidade impedir a continuidade das altas cambiais e assim garantir renda aos produtores que também não estariam interessados em receber em moeda estrangeira Os três governadores ao firmar o convênio tiveram o intuito de defender o principal produto de nosso país dar remuneração ao trabalho do proprietário agrícola de modo a não desanimálo e enriquecer o país Mas de que isso valeria a nós outros lavradores se houvesse uma elevação do câmbio Nada pois todas as nossas relações são satisfeitas em papel24 Da mesma forma que seu oponente Franco Júnior listou os interesses que deixariam de ser prejudicados pelo câmbio alto É um fato que não se pode negar todos os lavradores são prejudicados É o Pará o Amazonas com a borracha São as terras de cana de Pernambuco Alagoas Sergipe São o fumo e o cacau da Bahia O café do Espírito Santo Minas Gerais Rio de Janeiro e São Paulo O mate do Paraná e do Mato Grosso Os couros do Rio Grande do Sul E o Brasil todo com a indústria pecuária pois esta é nacional25 Os interesses amplos beneficiados pelo câmbio baixo iriam muito além da agricultura Quando digo produtores sintetizo todos quantos neste país trabalham desde as classes liberais até as classes que vivem lavrando os campos Todos precisam de uma medida cambial que signifique a verdade do momento26 Para o deputado todos esses amplos interesses seriam satisfeitos com o câmbio proposto e eventualmente um câmbio mais baixo poderia significar mais progresso Foi com o câmbio de 6 que se plantaram 500 milhões de pés de café que dão hoje ao Brasil incontestável predominância no mundo inteiro Foi com este câmbio que se criou a maior parte das fábricas no território nacional E tanto elas dependem dele que quando o câmbio ultrapassou a taxa de 15 vieram os fabricantes pedir ao Congresso um aumento nas taxas alfandegárias27 Somando tudo Franco Júnior chegava a uma conclusão pesada capaz de gerar um tumulto devidamente registrado nos anais Nós produtores somos no Brasil 19 milhões contra 1 milhão na capital da República o Sr Barbosa Lima e outros Srs deputados dão apartes O Sr presidente faz soar os tímpanos28 Acalmados os ânimos o deputado prosseguiu Peço a atenção dos senhores deputados para o seguinte cálculo do prejuízo que teve a classe agrícola do país que tiveram os 19 milhões em 20 milhões e as vantagens que teve o Tesouro Nacional com a subida do câmbio Para este remeter à Europa 75 milhões de libras teve a lavoura um prejuízo de 12 milhões de libras29 Apesar dos exageros retóricos o ponto era claro o câmbio elevado seria de interesse do Tesouro e de interesse dos importadores localizados na capital Por causa disso o projeto teria um significado histórico Senhores em 1888 o Brasil conseguiu sua emancipação social Em 1889 conseguiu sua emancipação política Em 1906 vai conseguir sua emancipação econômica30 Seria a vitória da opinião da sociedade contra a opinião do governo A opinião brasileira está representada por 19 milhões de brasileiros Não está somente na raiz do cafeeiro pois está também no algodoeiro no cacaueiro está em todas as manifestações do trabalho nacional Como isso interessa a todos os estados da República estou convencido de que todos almejam que este projeto se converta em lei para a felicidade de todo o país31 Os deputados e senadores foram se agrupando e foi ficando claro que a maioria estava mudando de lado passando a apoiar a Caixa de Conversão de fato aprovada por 115 votos a 25 no dia 8 de outubro de 1906 CAPÍTULO 57 A guerra o quebrador de ossos DUAS SEMANAS ANTES DA ASSINATURA DO CONVÊNIO DE TAUBATÉ NO DIA 9 DE fevereiro de 1906 o secretário da Agricultura de São Paulo Carlos Botelho requisitou um funcionário da Escola Politécnica para desempenharse de comissão a lhe ser confiada como dizia a pequena nota de O Estado de S Paulo que registrou o fato1 A secretaria da escola anotou no seu prontuário a natureza oficial da missão Designado comissáriogeral substituto do governo do estado de São Paulo na Bélgica2 Uma semana mais tarde o jornal adiantaria outro ponto Foi nomeado comissáriogeral para imigração no norte da Europa o Sr Francisco Ferreira Ramos lente da Escola Politécnica3 Pouca gente estranhou o fato de a Bélgica não vir a ser exatamente um centro de fornecimento de imigrantes para o Brasil de modo que os registros continuaram sendo telegráficos O do dia 22 dizia A bordo do vapor alemão Prinz Waldemar seguiu ontem para a Europa o Sr Dr Francisco Ferreira Ramos comissário de imigração em Antuérpia4 A julgar pela nota seguinte ele já estaria no destino em abril O Sr secretário da Agricultura solicitou ao da Fazenda a remessa de 500 libras esterlinas em favor do Dr Francisco Ferreira Ramos para despesas com os serviços de seu cargo5 O primeiro contato de Ferreira Ramos parece ter sido com o estatístico M Laneuville no Havre na França6 Juntamente com ele fez as necessárias atualizações de seus dados e as notícias do que trazia eventualmente chegaram ao conhecimento de atacadistas de café na cidade Da França o brasileiro seguiu para a Bélgica onde encontrou um importante interlocutor Nascido em 1851 Edouard Bunge era filho de um comerciante de Antuérpia Começou a carreira como vendedor percorrendo os Estados Unidos por seis anos antes de entrar como sócio da empresa familiar aos 24 anos Decidiu então arriscar a sorte na Argentina onde abriu uma filial da companhia em 1884 O grande sucesso do negócio na América o levou a um patamar elevado em seu país de origem Estimulado pelo rei Leopoldo II criou a Companhia Real BelgoArgentina para fazer uma ligação regular entre a Argentina o Brasil e Antuérpia7 Na virada do século Bunge organizou praticamente toda a exploração imperialista do Congo Belga transformado numa fonte de matériasprimas Isso não o impediu de expandir os negócios no Brasil entrou no mercado de café em 1905 comprando uma empresa de armazenagem em Santos Por força de tudo isso tinha ótimos contatos no mundo financeiro europeu Francisco Ferreira Ramos encontrou nele um dos primeiros interlocutores capazes de eventualmente financiar a operação de valorização Iniciaram juntos as prospecções encontrando ressonância na França mas não demorou para que chegassem à conclusão de que se tratava de uma operação em escala mundial que exigiria articular os maiores atacadistas do planeta Por mais que tentassem sozinhos não iriam a lugar algum Só havia uma pessoa capaz de comandar a façanha mas o problema era a fama dessa pessoa Herman Sielcken nascera em Hamburgo na Alemanha em 1847 filho de um pequeno padeiro Com 21 anos empregouse numa empresa que o enviou à Costa Rica em menos de um ano estava em São Francisco na Califórnia trabalhando como comprador de lã Passou a maior parte dos seis anos seguintes percorrendo os amplos espaços entre as Montanhas Rochosas e o Pacífico visitando sitiantes e criadores Numa dessas viagens a diligência capotou Sielcken quase morreu ficou com sequelas permanentes nas costas e decidiu mudar de vida Em Nova York virou caixeiro de uma loja de cristais e porcelanas e casouse com Josephine Chabert filha do dono de um pequeno restaurante Mas a regularidade da loja e da vida de casado logo aborreceu Sielcken de modo que acabou se empregando como vendedor na empresa Crossman Brothers que vendia de tudo Ali conseguiu ser nomeado comissário para a América do Sul e logo nos primeiros meses de viagens arranjou ótimos pedidos que cessaram de repente levando os donos do negócio à conclusão de que o viajante havia morrido em algum lugar inóspito Então num belo dia Sielcken apareceu na loja como se nada tivesse acontecido Colocou sobre a mesa um grande pacote e disse São encomendas muito maiores que as esperadas como resultado de minha viagem E acho que uma pessoa que trabalha tão duro e tão bem como eu merece ser sócio da empresa8 Seu patrão George Crossman ficou lívido Era um homem muito austero embora dono de uma firma de certo porte vivia modestamente Segundo o New York Times a simplicidade de sua vida se refletia nos bens pessoais uma casa modesta e móveis ordinários9 Mas Crossman cedeu ao pacote do vendedor ambicioso e não se arrependeu Sielcken tornouse sócio em 1881 multiplicou os negócios na América do Sul e transformou a empresa correta num leão do mercado que quebrava os ossos e arrancava a carne de concorrentes mesmo à custa de condenações em processos judiciais movidos pelos derrotados Com esses métodos obteve o controle de siderúrgicas e de uma ferrovia do Kansas disputandoas na justiça com os proprietários Sielcken nunca desistiu do café Era um dos maiores importadores e atacadistas trabalhando sobretudo com a mercadoria do Brasil onde tinha contatos desde os tempos de viajante Queria dominar o mercado mesmo sendo um mercado no qual o líder era um gigante A Arbuckles vendia café desde 1859 e não ganhara a posição à toa John Arbuckle filho de escoceses inventou o empacotamento e a venda no varejo de café torrado e moído além de investir obsessivamente em inovações A empresa atuava tanto no atacado como no varejo vendia doces para acompanhar o café e em 1896 resolveu acrescentar o açúcar a seus produtos Com essa última estratégia John Arbuckle arranjou um inimigo feroz Henry Havemeyer que dominava a venda de açúcar no varejo Este reagiu e proporcionou a Sielcken a tão sonhada oportunidade de tentar reinar O anúncio da sociedade entre os dois mereceu uma reportagem do jornal New York Times Os homens do açúcar retaliam na qual se dizia A American Sugar Refining contratou os serviços de Herman Sielcken como executivo e diretor de seus negócios de café10 O novo executivo comprou uma empresa em Ohio que distribuía o café Lion e começou a vender em todos os lugares em que atuava a Arbuckles mas com preços menores Nos anos seguintes os dois grupos travaram uma luta sem tréguas que só acabou quando os reis do açúcar admitiram a derrota e venderam a empresa para Sielcken por uma pequena fração do que valia Então como por mágica a companhia passou a dar polpudos lucros Sentindose logrado Havemeyer iniciou um processo contra o novo dono e os seus métodos Mas além do dinheiro acabou perdendo o processo e a essa altura Sielcken já era chamado de o rei do café Na virada do século o padrão de vida de Sielcken era outro Em Nova York morava no luxuoso hotel Waldorf Astoria onde volta e meia sua mulher reunia amigas e fechava o salão de baile para festas de caridade Mas sua disposição de jogar duro nos negócios permanecia imensa Continuou empenhado em manobras para controlar o mercado norteamericano de café especulando com notícias e estoques Nessas manobras não economizava adjetivos Segundo Thomas Holloway distribuiu em 1903 uma circular que negava a capacidade intelectual dos brasileiros E ficaria conhecido pelo tratamento desumano que dispensava aos empregados por suas manipulações no mercado e pelo desrespeito aos brasileiros11 A fama gerada por esse comportamento fazia de Sielcken alguém perfeito para ser atacado como bandido em especial no Brasil onde tantos criticavam a violenta exploração dos produtores locais pelos tubarões do mercado internacional Todavia ao contrário desses críticos Francisco Ferreira Ramos procurou essa gente até por motivos filosóficos Como seu irmão estava convencido de que os atacadistas existentes e o maior deles era Sielcken seriam os principais aliados do plano brasileiro Havia um sólido motivo para isso a dor no bolso Caso o preço do café caísse muito com a gigantesca safra algo mais que previsível seria quase certa a entrada de novos atacadistas no mercado Quem tivesse dinheiro poderia comprar café a preços menores que os das sacas estocadas e revender com lucro por preços que levariam à falência os atacadistas existentes Assim o apoio ao projeto brasileiro seria eventualmente a opção menos pior para Sielcken Ferreira Ramos conseguiu marcar um encontro com Sielcken na Alemanha em sua residência de verão na estação termal de BadenBaden Era uma casa à altura de um rei num parque de 80 mil metros quadrados a mansão principal de Mariahalden tinha 27 mil metros quadrados e havia ainda mais quatro vilas para visitantes além de um balneário privativo ao lado da casa principal num jardim onde se cultivavam 170 espécies diferentes de roseira Tanta opulência clamava por admiração de modo que o número de convidados girava em torno dos vinte todos os dias Nas noites de lua o jantar era servido ao ar livre ao som de uma orquestra completa especialmente formada para entreter os comensais com boa música Durante o dia a programação incluía passeios pelo parque com destaque para conversas à sombra dos pinheiros especialmente importados do Oregon para dar magnificência à paisagem Nesse ambiente o rude rei do café praticamente desaparecia Surgia em seu lugar um cavalheiro de bons modos que apreciava contar sobre suas aventuras nas pradarias norteamericanas ou os naufrágios nas costas da América do Sul O único e discreto sinal de negócios no local eram os mensageiros que iam e vinham da agência local do correio Como Sielcken dormia apenas cinco horas por noite da uma às seis da manhã fazia o trabalho sozinho longe das vistas dos hóspedes sem secretárias nem ajudantes Com a chegada de Ferreira Ramos o tempo de trabalho aumentou Embora os diálogos entre os dois nunca tenham vindo à tona o jornal New York Times resumiu os conceitos das conversas e do acordo de Mariahalden Os produtores brasileiros argumentavam que a safra era produto de condições climáticas excepcionais e que nos próximos anos elas seriam menores seriam necessários pelo menos doze anos até que as plantas se recuperassem do esforço Herman Sielcken comerciante financista e acima de tudo identificado há 35 anos com o comércio brasileiro era um dos poucos que acreditava que o café era o único produto agrícola cujo mercado poderia ser estabilizado que a produção excedente poderia ser mantida fora do mercado sem desastres e gradualmente vendida quando a demanda requeresse A história do acordo ficou famosa em Wall Street Ele ouviu a teoria dos produtores de São Paulo e só não concordou com o preço pelo qual os estoques deveriam ser comprados12 Antes de falar do pouco com o que Sielcken não concordou é preciso saber do muito com o que ele concordou ao ouvir o plano brasileiro de controle do mercado A ideia elaborada por Augusto Ramos afinal encontrava um interlocutor à altura Sielcken aceitou de imediato o enfoque estatístico o enquadramento geral da compra de excedentes a formação de um grande estoque central pelo Brasil a regulagem do mercado por um longo prazo a partir desse estoque nos preços atuais do varejo a sindicalização para atrair vários atacadistas ideia de Alexandre Siciliano a fixação antecipada dos objetivos e dos parâmetros de preços Tudo isso literalmente caía dos céus para Sielcken realizar seus desejos Por isso as discussões se restringiram às diferenças relevantes O dono do roseiral queria lucros máximos e por isso não via o menor sentido em pagar pela safra mais do que conseguiria obter explorando a superprodução Ele insistia em comprar barato para vender caro Já para os brasileiros a posição era clara só valia a pena correr riscos se os produtores ganhassem mais Mas havia território para aplainar as divergências Existiam grandes vantagens na proposição feita por um governo interessado em seus governados os quais eram donos de mais da metade do café produzido no mundo não era um concorrente direto não envolvia disputas entre atacadistas e isso valia muito Todas as tentativas anteriores de regular o mercado haviam fracassado porque nenhum comprador isolado era capaz de controlar os estoques mundiais Essa era a solução que vinha com a contrapartida de um risco governos mudam e uma mudança de posição do governo poderia transformar o ganho certo em prejuízo monstruoso o que ocorreria por exemplo se o governo saísse vendendo na hora errada ou para as pessoas erradas Demorou muito pouco tempo para que os dois acertassem o compasso Sielcken se comprometeu a arranjar o dinheiro necessário para o governo paulista comprar todo o excedente Mas pelo seu preço estimado para baixo com a safra gigantesca em torno de 55 centavos de dólar por librapeso ou 80 do que o governo paulista prometera pagar pelo Convênio de Taubaté A diferença um presente para os agricultores que ficasse por conta dos paulistas Para quem não tinha nenhum centavo nas mãos isso era muito mais do que Ferreira Ramos poderia desejar Além de acertar a compra os dois acertaram as vendas O negociador brasileiro reafirmou que o estoque financiado pelos atacadistas não poderia ser empregado contra os cafeicultores o que requeria um mecanismo de supervisão do estoque Como os brasileiros também não queriam que os atacadistas retivessem café além do limite do preço estatístico era preciso controlar também esse ponto Para satisfação de ambos acordouse que a supervisão caberia a um comitê de sete membros dos quais apenas um indicado pelo governo paulista que se incumbiria das regras para a venda assim que o mercado atingisse patamares de preço considerados razoáveis Acordo firmado Sielcken passou a mandar telegramas freneticamente Relatando as condições conseguiu dinheiro de atacadistas amigos e inimigos ao redor do mundo entre os quais Bunge o alemão Theodor Wille e os irmãos Arbuckle Cada um que entrava no negócio procurava seus banqueiros e pedia um empréstimo com o próprio aval em condições boas o suficiente para esses banqueiros nem olharem direito o nome do comprador do café o governo paulista para quem o empréstimo era transferido Herman Sielcken tinha assim como Jorge Tibiriçá a noção exata de timing a oportunidade de controlar o mercado por muitos anos seria um prêmio apenas no caso de um único comprador reter todo o estoque da safra gigantesca que começava a chegar ao porto de Santos Também sabia que esse prêmio cobiçado não seria deixado por aí de graça E enquanto fazia sondagens e organizava o grupo percebeu que as adesões e as promessas de dinheiro vinham de várias partes do mundo menos dos banqueiros dos atacadistas ingleses Arguto como era Sielcken não demorou para perceber que ali estava a concorrência que em torno deles se juntavam os interessados na baixa na oportunidade de comprar muito barato a safra para concorrer com os atacadistas estabelecidos Resolveu então atacar primeiro Na página 2 da edição do dia 27 de julho de 1906 de O Estado de S Paulo três dias após a aprovação do Convênio de Taubaté no Parlamento com um título muito discreto aparecia um comunicado com a seguinte apresentação O Sr H Seilckmen sic da firma Crowsman sic Seilckmen sic de Nova York dirigiunos a seguinte circular sobre a momentosa questão do café13 Seu nome era tão pouco conhecido que saiu grafado errado Mas o texto atirava pesado A propósito da valorização do café e da projetada defesa no Brasil de seu principal produto agrícola tem surgido por toda parte largas discussões e entre outros argumentos se tem alegado que os srs Rothschild os banqueiros do governo brasileiro são inteiramente contra este plano que consideram contrário a todo método financeiro da época Sem perder tempo argumentava É realmente admirável que sejam tão numerosos os ataques ao plano brasileiro sobretudo partindo das rodas financeiras quando os esforços de todos os estados nada mais representam senão obter do governo proteção eficaz para interesses reais em um momento em que ela se torna necessária para seu principal produto Esta ação do Brasil em prol de seus produtores não significa um simples auxílio à sua agricultura mas uma proteção necessária à sua própria vitalidade O quebrador de ossos dizia com todas as letras que estava pronto para esmagar a tradição secular que prendia as finanças internacionais do Brasil a seu barão banqueiro Iria montar um monopólio de mercadorias para romper a cadeia financeira inglesa Estava se juntando ao governo paulista para arrancar esse intermediário do mercado e tomar sua parte no butim E ainda dizia que depois do banquete ambos iriam palitar os dentes com os ossos da presa A passagem das palavras aos atos não levou nem uma semana No dia 1o de agosto de 1906 uma quartafeira um representante do Brasilianische Bank für Deutschland apresentou ao governador paulista um contrato enviado da matriz por ação de Sielcken Por meio dele abria um crédito de 1 milhão de libras esterlinas pelo prazo de um ano Para as práticas bancárias do tempo as garantias eram mínimas o governo paulista emitiria bônus em valor igual ao do empréstimo para serem vendidos pelo banco Com o dinheiro em caixa o governo paulista assinou o primeiro cheque comprou a primeira saca de café pelo preço prometido no Convênio Era o primeiro tiro de uma guerra total como bem lembrou Thomas Holloway Os planejadores da valorização sabiam que uma vez consumada a operação o estado ficava comprometido a levála adiante por todo o anosafra Se houvesse falta de fundos que obrigasse o estado a paralisar as compras antes do tempo previsto tudo estaria perdido tanto as reservas de café que já houvessem sido adquiridas quanto o dinheiro investido14 Era tudo ou nada Jorge Tibiriçá sabia o que estava deflagrando ao assinar o primeiro cheque mas não tinha a menor noção de como a guerra iria acabar Ele só possuía 15 do dinheiro de que precisava e emprestados por um ano quando seus planos de batalha indicavam um mínimo de seis anos de combate Mas a luta global já estava aberta CAPÍTULO 58 A guerra a batalha dos cheques A PARTIR DO PRIMEIRO CHEQUE ASSINADO O PROBLEMA PARA A ASSOCIAÇÃO ENTRE os produtores de café o governo paulista e os especuladores que apostaram na ideia passou a ser um só conseguir dinheiro A solução também era uma só apresentar um plano e obter empréstimos junto aos donos do dinheiro Este começou a aparecer em contagotas nem sempre nas melhores condições Delfim Netto mostrou as condições de uma das primeiras remessas Sobre o adiantamento fornecido pelos grandes torradores norteamericanos o estado de São Paulo pagaria 6 de juros e 3 de comissões anuais Sobre este custo incidia ainda o juro do capital levantado pelo próprio estado de São Paulo Vemos assim que o café deveria ser recolocado no mercado com a maior brevidade para impedir a realização de prejuízos1 Eram condições para negócios de grande risco e era disso mesmo que se tratava Francisco Ferreira Ramos o comissário do Convênio de Taubaté na Europa e portanto o encarregado de arranjar dinheiro em nome do governo paulista lembra as dificuldades que passou Ainda em 1906 tive de tratar da warrantagem de 1 milhão de sacas de café em Anvers com um grupo de capitalistas apoiados pelo Banco Nacional da Bélgica e com Edouard Bunge Fui obrigado a defender o crédito do estado contra os ataques a ele dirigidos por uma formidável campanha organizada pela especulação baixista na imprensa na tribuna e pelo telégrafo na Europa e na América do Norte Tão bem dirigida era essa campanha que vários capitalistas e banqueiros do consórcio de Anvers começaram a hesitar para fornecer capital a São Paulo2 A discussão foi tensa O mais receoso de todos o barão de Ampin fez bruscamente uma pergunta Se o café nada valer amanhã São Paulo por si só é capaz de garantir a nossa dívida Então o Sr Wegimont antes que eu pudesse usar a palavra respondeu Senhores um povo com 3 milhões de habitantes produz 16 milhões de sacas de café em um ano Tal povo merece não apenas nossa confiança mas nossa admiração Essas palavras foram saudadas com aplausos e a questão se resolveu3 Resolveuse mas não acabou Logo em seguida os argumentos baixistas ressoaram no Parlamento do país O governo belga foi interpelado por deputados para explicar o concurso do Banco Nacional da Bélgica o primeiro banco de um país a prestar o seu apoio ao governo do estado de São Paulo nesta operação Graças à simpatia do governo belga a questão foi resolvida a nosso favor Então o ministro De Capelli me disse O plano concebido pelo governo paulista é inteligente e novo Os senhores estão nos dando lições de como proteger nossa produção4 Num cenário muito mais decisivo o ministro reproduziu uma constatação que começara a surgir em artigos de jornal e conversas entre empresários em 1902 o plano concebido por Augusto Ramos era muito convincente a ponto de levar à assinatura de cheque ou concessão de avais para empréstimos Por outro lado não só os conservadores brasileiros tinham restrições ao plano argumentos semelhantes eram brandidos no mercado financeiro internacional Como resumiu o New York Times os banqueiros viam o plano para controlar a oferta como um despropósito econômico5 Como raros eram os banqueiros influentes que pensavam de outro modo apenas uma porta se manteve aberta para Francisco Ramos Apesar das garantias que o governo paulista oferecia os banqueiros europeus menos o barão Schroeder exigiam o endosso da União como uma garantia6 Quando afinal começaram as compras não só tal garantia inexistia como o banqueiro do governo brasileiro estava em campanha aberta contra o projeto como assinalou Pierre Denis A valorização tinha inimigos poderosos que não eram apoiados apenas pelo Jornal do Commercio Havia a imensa autoridade de lorde Rothschild que censurava severamente o esquema paulista seja por considerar a valorização um experimento perigoso seja por ser hostil à Caixa de Conversão7 A disputa no Parlamento brasileiro reproduziuse em âmbito global os principais fornecedores de dinheiro do mundo incluindo o maior deles e banqueiro do Brasil desaconselhavam os investidores a apostarem na ideia Em consequência no início o dinheiro apenas pingava Na hora decisiva o governador Jorge Tibiriçá contava com pouco mais do que a fé assim expressa em carta ao senador Pinheiro Machado Nós vamos ter uma safra abundante cuja colheita está em andamento É pois o momento oportuno para nossa intervenção Se não aproveitarmos a circunstância excepcional para organizarmos nossa resistência teremos perdido uma ótima oportunidade Os exportadores apoderarseão dessa grande safra por preço mínimo refarão seus estoques e nos colocarão na impossibilidade de valorização no próximo ano Por isso é absolutamente necessário que a valorização aproveite a safra atual8 O governador agiu de acordo Na falta de dinheiro e como parte do absolutamente necessário fez um acordo com os donos das ferrovias quase todos interessados no sucesso do plano convencendoos a restringir o transporte de café para Santos e com isso ia ganhando tempo Mas não fazia milagres Ao longo de 1906 conseguiu recursos para comprar apenas 25 milhões de sacas ou 15 da safra Concentrava as compras em Santos e nos cafés superiores o que provocou considerações ponderáveis de seus aliados Os governadores de Minas Gerais e do Rio de Janeiro eram sócios do negócio respondendo a apelos dos cafeicultores e empresários do estado Quando perceberam que não estavam acontecendo compras dos cafés de seus estados deixaram de cobrar os impostos que pagariam as despesas pelas compras Os cafeicultores também notaram um problema Minas Gerais e o Rio de Janeiro produziam sobretudo cafés de tipos inferiores que não estavam sendo comprados e protestaram com razão Já os cafeicultores de São Paulo perceberam que podiam vender no Rio de Janeiro e deixar de pagar impostos aumentando seu lucro A falta de recursos fazia o primeiro grande estrago Para sorte de Jorge Tibiriçá desde 15 de novembro o presidente da República era Afonso Pena e no Ministério da Fazenda estava Davi Campista o deputado que liderara a defesa do projeto no Parlamento Campista chefiou as tensas negociações que levaram a um aditamento no Convênio Minas Gerais e o Rio de Janeiro deixaram de se comprometer com empréstimos e pagamentos da dívida mas passaram a cobrar os impostos O governo de São Paulo arcaria sozinho com as compras e os riscos Em janeiro de 1907 como havia entrado algum dinheiro as compras passaram a ser feitas no Rio de Janeiro com os preços equalizados A pressão aumentou mas o mesmo não se deu com o fluxo de cheques Em 13 de maio de 1907 com o cofre quase vazio e ainda muito café para comprar Jorge Tibiriçá anunciou à boca pequena que ia arrendar a Estrada de Ferro Sorocabana para quem desse mais dinheiro No dia seguinte de manhã um telegrama com a notícia foi aberto em Londres por um elegante senhor que tomava o café em seu hotel Seu nome era Percival Farquhar e seu currículo incluía uma variedade notável de atividades vereador em Nova York com acusações constantes de compra de votos e violência na campanha especulador ferroviário em Cuba onde desembarcou na esteira das tropas norteamericanas que invadiram a ilha dono de ferrovias na América Central proprietário da empresa que explorava eletricidade no Rio de Janeiro cuja concessão obteve em meio a violentas disputas com o grupo Guinle graças ao apoio de ministros amigos Farquhar agia com a rapidez crucial para os grandes especuladores No mesmo dia arrancou 200 mil libras do Bank of Scotland e levantar dinheiro britânico para apostar contra os Rothschild não era algo simples O diretor do banco que arranjou o dinheiro o conselheiro Balfour também era diretor da ferrovia inglesa que operava em São Paulo além de aliado dos Rothschild Mas aceitou por se tratar do pedido de um escocês e os dois ainda comemoraram com um jantar na Saint Andrews Society Segundo Charles Gauld a explicação do banqueiro foi tipicamente britânica Como presidente do conselho do banco não me permiti lembrar que era também presidente do conselho da ferrovia9 Depois de obter recursos nas hostes adversárias do governo paulista Farquhar convocou os seus dois secretários atravessou o canal da Mancha e foi buscar o resto do montante em Paris O último banco que visitou foi a Société Générale que tinha coberto alguns investidores franceses na valorização Ali o diretor Louis Dorizon gostou da ideia mas alegou que a agenda de emissões do banco estava sobrecarregada O caso parecia perdido até que ocorreu um evento assim narrado por Charles Gauld Farquhar passou dias ansiosos Seu tempo estava se esgotando De repente num sábado de manhã Dorizon telefonou e pediulhe que fosse imediatamente ao banco Explicou que havia sido agendada uma emissão de ações da Westinghouse para segundafeira mas coisa incrível os banqueiros de Pittsburgh forçaram a falência da empresa na sextafeira para se apoderar dela No mesmo dia Dorizon substituiu o lançamento pelo da Sorocabana Graças a esse inacreditável golpe de sorte Farquhar ganhou a corrida Triunfante telegrafou para seu procurador em São Paulo na quarta feira 22 de maio este se encontrou com o governador e assinou o contrato10 Era um alívio que permitiu atingir 7 milhões de sacas adquiridas Mas como ainda faltava café para comprar a saída foi pedir ajuda ao governo federal um empréstimo de 3 milhões de libras esterlinas para adquirir o que faltava e rolar as dívidas mais incômodas da manutenção do estoque O presidente acedeu e enviou o pedido ao Parlamento lembrando que estava de acordo com a lei aprovada em 1905 O Parlamento aceitou mas os debates foram violentos Até aquele momento o governo federal não havia gasto nem um centavo com tudo o que estava acontecendo O pedido de São Paulo era de um dinheiro emprestado de todos os brasileiros com garantias de pagamento Assim havia dois problemas a serem discutidos a natureza do pedido e as garantias de pagamento O senador Barata Ribeiro representante do Distrito Federal embora industrial e com posições econômicas que não eram conservadoras analisou a questão da seguinte forma A situação lisonjeira e feliz à qual São Paulo deve pela maior parte suas forças é devida principalmente ao concurso eficaz que lhe prestou sempre o governo da nação desde o Império concurso que o representa nos orçamentos nacionais com muitos milhares de contos de réis quando os demais estados cafeeiros e a generalidade daqueles do Norte figuram apenas pelas sombras da miséria em que se debatem11 A afirmação sobre os favores fiscais do Império contrariava fatos mas o empréstimo para uma unidade da federação ajudava a tornar o argumento verossímil A apresentação da situação de um favor inconfessável sustentava outra parte do argumento esta relacionada ao futuro Basta lerse a mensagem do governo daquele estado para se verificar que este empréstimo não será pago12 Outro caminho a seu ver seria mais realista Só obrigaria a União a acorrer favoravelmente à solicitação de São Paulo dando em vez de emprestar o dinheiro E dando para que não se iludisse a nação com a falsa promessa de que tal dinheiro voltaria a seus cofres e porque tal doação ao menos lisonjearia nossa vaidade indígena pela certeza de que com ela resgataríamos o estado da crise agônica em que está sua lavoura13 Dar seria melhor porque o dinheiro contribuiria para um desastre inevitável O senhor governador de São Paulo removeu do país produtor para os países mercadores de café o que a seu juízo representava superprodução para que esses países soubessem que temos muito café para vender E feito isso em sua cadeira governamental ouviu o longo ruído da corte que festejava o aparecimento do Messias econômico deleitandose com a ideia de ter retirado 8 milhões de sacas de café quando não fez mais que antecipar a remessa de café para vender para colocálo nas mãos da especulação bolsista nas praças comerciais14 O discurso do senador lidava com expectativas mas relacionadas a uma questão real Com o empréstimo o governo paulista concluiu a compra da safra de 1906 e o café foi enviado ou para a Europa ou para os Estados Unidos de acordo com a origem do dinheiro emprestado Ainda assim não estava tudo acabado como estabelecia o plano era preciso manter esse café armazenado até que se manifestasse uma alta nos preços prevista para 1909 para só então ele começar a ser vendido com lucro Entretanto o governo paulista precisava ir pagando os juros dos empréstimos ou esta era a aposta jogar o café no mercado com grandes prejuízos Sendo um governo que vivia da mão para a boca a suspeita do senador corria também no mercado europeu A tradução de um artigo de um analista francês publicada por O Estado de S Paulo dá conta da situação No mercado quase que só há baixistas uns poucos por interesse e muitos por um sentimento de amorpróprio que nos surpreende Ambos procuram forçar a baixa porque pretendem havendo as grandes liquidações do governo adquirir o gênero por um bom preço É uma esperança muito legítima mas é sempre perigoso falar de herança no leito do enfermo que muitas vezes desilude aqueles que contavam com a sua morte Não querem ver que nem mesmo para o consumo não há mais o necessário mas que há mesmo tendência para vender o que não existe nos negócios a termo15 As expectativas nas quais o senador fundava suas opiniões e os baixistas os seus cheques eram as mesmas Mas os fatos sobre os quais as expectativas se aplicavam já perceptíveis em 1907 eram outros A safra desse ano foi de apenas 8 milhões de sacas metade do consumo mundial justificando o uso dos estoques e com os especuladores da alta vendendo o café que não existe no mercado real em mercados a termo Mas o preço continuou baixo e assim permaneceu até 1908 Em maio desse ano o governador Jorge Tibiriçá entregou o governo do estado de São Paulo ao sucessor o secretário da Fazenda Albuquerque Lins que comandara as operações Apostara muito no projeto de Augusto Ramos e dos empresários que trouxera para o governo Na saída do cargo deixava muitas fichas em jogo O novo governador começou fazendo um balanço de tudo para os cidadãos outro sinal de que o tempo era mais de contas e reavaliações do que de enfrentamentos Na abertura dos trabalhos da Assembleia entregou aos parlamentares um relatório no qual em vez de discorrer sobre um orçamento falava sobre um balanço a forma de contabilidade das empresas não dos governos Mas havia sentido nisso16 No balanço eram apresentados os ativos do estado propriedades imobiliárias avaliadas em 113 mil contos dívidas a receber 227 mil contos dinheiro em caixa e outros valores Somando tudo os ativos do governo paulista chegavam a 562 mil contos de réis O mais importante dos bens aparecia na rubrica Valor dos cafés armazenados com um montante de 271 mil contos de réis ou nada menos que 495 do total dos ativos No entanto para manter estocado o café foi obter recursos emprestados gerando um passivo Este era contabilizado na rubrica Dívida proveniente de adiantamentos e saques feitos contra remessas de café e empréstimos contraídos para o serviço de defesa do café no valor de 291 mil contos ou 53 do total do passivo A diferença entre o valor do café lançado como ativo e o das despesas para manter esse café expressas no passivo mostrava um prejuízo contábil de 20 mil contos de réis Ou seja caso o estoque fosse vendido pelo preço indicado no balanço o governo estadual teria um prejuízo nesse valor com a guerra em que se metera Esses números podem ser comparados a um terceiro para dar uma dimensão do que significavam A arrecadação tributária de São Paulo fora de 42 mil contos Sendo assim o café estocado custara o equivalente a 69 anos de receitas estaduais Já o prejuízo contábil se fosse realizado equivaleria a 49 dos recebimentos anuais Pouco depois o governador enviou outro relatório destinado ao presidente Afonso Pena Junto ia um pedido dessa vez para que a União avalizasse um empréstimo destinado a consolidar todas as dívidas do estado num novo empréstimo de modo que ele foi enviado para o Congresso17 Era um retrato ainda mais completo da situação O governador informava o tamanho exato do estoque paulista naquele momento 6994920 sacas distribuídas por vários portos na Europa e na América do Norte Do total de 84 milhões de sacas compradas haviam sido vendidas 14 milhão Como se constata no confronto com o balanço mesmo depois das vendas as dívidas superavam o valor do estoque O relatório também indicava algo sobre as proporções dos investimentos de cada participante no plano A operação acumulara uma dívida de 1278 milhões de libras das quais apenas 233 milhões vinham de empréstimos concedidos ao governo paulista Nada menos que 1045 milhões de libras esterlinas ou 82 do total haviam sido levantadas pelos especuladores reunidos por Francisco Ramos e Herman Sielcken nas condições em que puderam nem sempre as mais favoráveis O passo à frente não mudou os argumentos do debate parlamentar sobre o pedido de aval Os positivistas gaúchos e muitos parlamentares do Distrito Federal lideraram as críticas dessa vez com um novo aliado o deputado mineiro Pandiá Calógeras Ele exprimia uma expectativa sobre o futuro como se fosse certa A crise é fatal A próxima colheita avultada como vai ser vai formar além do estoque do governo de São Paulo um novo estoque este quase igual ao que determinou a política intervencionista o que dará lugar a uma crise inevitável em dois anos Não sei com que direito se pode exigir que o Brasil inteiro se torne responsável pelos erros da lavoura paulista porque em São Paulo e só em São Paulo se desenvolveram de forma tão inconsiderada as plantações18 Para Calógeras a crise seria também decorrente do esquecimento de verdades seculares Uma vez abandonados os princípios sãos da verdadeira doutrina econômica nada pode entravar o desdobramento sucessivo deste fenômeno de alucinação coletiva19 Mas o aval foi aprovado e com ele foi possível realizar o empréstimo que consolidava não só as dívidas mas também a associação profunda entre o governo do estado brasileiro que produzia mais da metade do café do mundo e era agora dono de um estoque equivalente a pouco menos da metade do consumo mundial e banqueiros assim detalhados por Thomas Holloway No empréstimo de 15 milhões de libras para a consolidação da dívida a J Henry Schroeder de Londres entrou com 10 milhões dos quais 2 milhões foram fornecidos pelo National City Bank de Nova York A Société Générale de Paris e o Banque de Paris et Pays Bas emprestaram os cinco restantes20 A lista traz o nome daqueles que apostaram no projeto e deixa entrever um grande perdedor Desde o empréstimo para o reconhecimento da Independência brasileira em 1825 até esse momento haviam se passado 83 anos Por todo esse longo período o Banco Rothschild teve o monopólio do financiamento do governo central brasileiro Os negócios ingleses se beneficiaram muito dessa situação os brasileiros nem tanto Mas agora chegara a concorrência nesse restrito mercado e vinha com novidades A principal garantia do empréstimo para o governo paulista não foram as suas limitadas receitas e sim o estoque de 7 milhões de sacas com o qual literalmente o café se transformava em reserva internacional em valor muito acima daqueles conseguidos pela suada política de restrição monetária nacional do funding loan Como parte do acordo foi nomeado um comitê para gerir o estoque assim descrito por Thomas Holloway A composição do comitê de sete membros mostra que as maiores empresas ainda estavam envolvidas no negócio Francisco Ferreira Ramos foi nomeado representante do governo de São Paulo com poder de veto Os outros membros do comitê eram o visconde de Touches de Havre Edouard Bunge de Antuérpia um representante da Société Générale de Paris o barão Bruno Schroeder um representante da Theodor Wille de Hamburgo e Herman Sielcken de Nova York21 Os bancos eram os novos quartéis da guerra e o comitê gestor o EstadoMaior Chegara a hora da batalha final CAPÍTULO 59 A guerra brasileiros contra brasileiros PARA UMA PESSOA O ACORDO DE CONSOLIDAÇÃO DA DÍVIDA JÁ ERA UMA VITÓRIA IMENSA Augusto Ramos no primeiro artigo intitulado Valorização do café escrito seis anos e meio antes do acordo no dia 8 de maio de 1902 fizera um vaticínio Não mais se enxergarão nuvens no horizonte hoje tão sombrio de nosso futuro econômico Sobre a larga estrada comercial que se rasgará entre o produtor e o intermediário brilhará em todo seu esplendor o sol da estabilidade estatística e o cimento impecável da reciprocidade de interesses como um selo sagrado vinculará por um acordo tácito os esforços de ambas as partes no levantamento gradual das cotações1 Entre a concepção inicial e o resultado do acordo aconteceu muita coisa tanto no Brasil como no mundo Mas quase tudo o que ele previra se realizou Havia um acordo entre o maior produtor de café e os maiores atacadistas mundiais com o objetivo de usar os estoques controladores e uniformizar os preços O sol da estabilidade estatística brilhara os preços se comportaram tal como previsto As cotações subiram e o selo sagrado do lucro dividido unia as partes Os empresários que se juntaram em torno da ideia entraram cada qual com sua parte os produtores com o estoque os atacadistas com o dinheiro e o governo de São Paulo atuou como o armazenador fiel e controlador dos preços Estes eram os ganhadores os premiados pelos novos conceitos pelos riscos de negócios e pelos projetos de desenvolvimento a eles associados E ganhavam dinheiro à custa dos que apostaram contra uma parte dos atacadistas internacionais os financiadores de apostas na baixa os analistas de mercado e os governos que duvidaram do plano Encerrada a fase das apostas e iniciado o ciclo de alta e estabilização do mercado faltava apenas que os perdedores adaptassem suas antigas concepções à nova realidade No grupo dos que antes duvidavam os primeiros a se adaptar foram os investidores e especuladores do mercado financeiro Concluído o empréstimo de consolidação os bancos participantes lançaram títulos lastreados nele A lista dos bancos credores deixava claro que havia capacidade financeira para sustentar a manutenção do estoque no longo prazo e portanto a compra desses títulos seria agora um negócio seguro e lucrativo E como foi acentuada a procura pelos títulos o mercado financeiro passou a reforçar ainda mais a situação dos valorizadores Outros que reviram as suas convicções foram os atacadistas que nas palavras do cronista francês apostaram na morte do moribundo na liberação dos estoques retidos a preço baixo pelo governo paulista Quando se deram conta de que não haveria venda descontrolada de café por um governo paulista falido foram obrigados a repassar os números e viramse numa situação muito desagradável Ao longo de 1908 o consumo superara a produção em mais de 1 milhão de sacas provocando uma redução dos estoques no mundo para 13 milhões de sacas das quais sete milhões eram de propriedade do governo paulista e estavam sob controle do comitê o que era um problema para quem agora precisava comprar café Sabiam que não adiantava esperar bondades de um grupo onde estava Herman Sielcken E tinham certeza de que ninguém plantara café nos últimos tempos de modo que haveria um mínimo de quatro anos até que novos cafezais começassem a produzir Como as opções ficaram escassas só restava pensar seriamente em comprar um pouco do café estocado pelo governo paulista pagando em dinheiro o preço da aposta errada Como notou Delfim Netto a equação entre oferta e procura obedecia a novas regras e gerava novos preços no atacado mundial Ficou evidente que o estado de São Paulo poderia manter por muito tempo fora do mercado o estoque de café adquirido enquanto a situação melhorava pois o suprimento anual era inferior à procura Esses fatos provocaram uma inversão das expectativas e o preço do café passou de uma média de 628 cents por librapeso no segundo semestre de 1908 para 797 cents por librapeso no primeiro semestre de 19092 Era a última previsão estatística de Augusto Ramos que se realizava a reversão do mercado aconteceria três anos depois da compra O efeito dessa mudança de expectativas gerou também uma reversão na situação daquele que até a véspera era visto como insano por muitos críticos o governo paulista O aumento nos primeiros meses de 1909 foi de 26 Aplicado ao valor de balanço do estoque paulista de 1908 o café comprado por São Paulo valia agora 341 mil contos de réis 50 mil contos a mais que as despesas declaradas no mesmo balanço A transformação da posição contábil era radical Antes do empréstimo o prejuízo contábil equivalia a 49 do orçamento estadual com a alta o lucro contábil passou a equivaler a 785 das receitas totais do estado ou 119 das receitas ordinárias A continuação do ciclo de alta e a sequência de vendas foram confirmando que a operação seria altamente lucrativa Em 1918 ao ser paga a última parcela da dívida e governadores ainda levantaram dinheiro sobre ela no meio do caminho o governo paulista era dono de 3 milhões de sacas livres de ônus nada menos de 29 do total de sacas compradas em 1906 ou 43 das estocadas em 1908 Essa mudança radical no mercado mostrouse inexorável na distribuição de prêmios sob a forma de lucros para quem acreditou na valorização e punições sob a forma de prejuízos para os que duvidaram dela Algo semelhante poderia se passar na esfera da política com os defensores da ideia sendo premiados com poder e os que apostaram contra ela sendo punidos com a perda dele caso o sistema fosse tão competitivo como o mercado Mas o Brasil era um país no qual ainda persistia um hábito encarar as eleições nacionais como um ritual comandado desde o centro Nos tempos do Império para sagrar com a maioria o partido escolhido para comandar o ministério nos tempos da República sobretudo após a política dos governadores para sagrar o indicado pelo presidente da República Também Afonso Pena pensava dessa forma e tinha já um sucessor aprovado pelo governo de São Paulo João Pinheiro o governador de Minas Gerais Mas o acaso interveio com a morte de Pinheiro em outubro de 1908 Afonso Pena voltouse então para um amigo de toda a vida Rui Barbosa Acontece que esse amigo também julgava que uma eleição presidencial não deveria ser um simples ritual de unção Por isso em vez de aceitar um encontro no qual seria convidado preferiu escrever uma carta explicando por que não cabia ao presidente a função de ungidor Um candidato à Presidência deve ser proposto por um movimento de opinião pública por um partido político ou por um estado da União O atual presidente da República ocupa a cadeira não tanto por expressão de seu valor pessoal aliás indiscutível quanto como encarnação do princípio que recusa ao chefe do Estado o direito de iniciativa ou deliberação na escolha de seu sucessor Nós o negamos ao Dr Rodrigues Alves e não podemos deixar de negálo hoje3 E arrematava com uma mescla de conselho e alerta de problemas Reflita meu caro amigo entre no íntimo de si mesmo e aconselhado por este fundo resistente de bom senso honra e patriotismo que a política o mais das vezes não consegue extinguir nos homens substancialmente honestos como você exonerará o seu governo a sua carreira pública a sua consciência de uma responsabilidade inútil e funesta Ela lhe amargurará os dois últimos anos de administração4 O presidente preferiu não seguir o conselho Tentou indicar um sucessor para João Pinheiro no governo de seu estado mas foi derrotado pela ala conservadora do partido que emplacou Venceslau Brás filho de um chefe local conservador no Império e seguidor das ideias do pai Com isso um governo estadual caiu nas mãos de críticos da política do presidente da República Afonso Pena tinha esperanças fundadas na visão tradicional da unção de que poderia passar por cima da diferença e indicar um continuador da vitória econômica que ajudara a construir E isso porque o governador de São Paulo Albuquerque Lins lhe dera carta branca para lidar com a sucessão Aproveitando o apoio o presidente o consultou sobre o nome do ministro da Fazenda o mineiro Davi Campista que foi aprovado Com isso pelo figurino tradicional tinha nas mãos grandes trunfos o apoio de São Paulo para um político mineiro Em janeiro de 1909 comunicou isso ao novo governador de Minas Gerais pedindo que cumprisse seu papel de acordo com o figurino tradicional anunciar o nome que receberia o apoio de São Paulo e com tudo isso permitiria que o próprio presidente colhesse o apoio dos demais estados Mas o anúncio não veio e o presidente interpretou mal o silêncio Tanto Venceslau Brás como os conservadores mineiros tinham sido postos na posição de optar por um mineiro com apoio de São Paulo e dentro das regras da sucessão ritual Mas isso significaria sacrificar as convicções conservadoras abaladas com a implantação de um novo modelo de desenvolvimento econômico por mecanismos contra os quais todos haviam lutado Dessa vez quem interpretou corretamente o silêncio foi Pinheiro Machado que passou a misturar demonstrações de lisonja ao presidente com insinuações sobre a candidatura do ministro da Guerra o marechal Hermes da Fonseca gaúcho e amigo dos positivistas No dia 14 de maio de 1909 ao ler uma entrevista do líder conservador Bias Fortes o presidente ficou sabendo que os conservadores mineiros haviam decidido rifar a candidatura de seu compatriota progressista para apoiar o marechal com total apoio de Pinheiro Machado Em apenas três dias a articulação apareceu por inteiro com um grupo parlamentar apoiando o nome do marechal Hermes Nesse mesmo dia 17 Afonso Pena cumpriu dolorosamente o seu dever Convocou o ministro da Guerra que sempre jurara lealdade e que jamais iria ser candidato a eloquência oficial A conversa segundo Américo Lacombe foi penosa Afonso Pena estranhamente revestido de nobre serenidade disse que saberia cumprir seu dever até o fim que jamais negara aos militares o direito de serem candidatos mas negavalhes o direito de empregar a força para obterem esses cargos ou impor candidatos Nesse momento o presidente empalidecendo terrivelmente sentiuse mal O ex ministro da Guerra de pé reverente esperou que o presidente se refizesse e saísse amparado5 Dali o presidente iria para a cama sofrendo muito mais que as dores vaticinadas por Rui Barbosa Este reagiu a seu modo publicando um artigo no qual descrevia a situação como resultado de um método ritual anacrônico e propunha outro modo de encarar uma eleição Vivemos habituados os políticos dessa terra a supor que o Brasil se resume ao círculo estreito onde nos movemos São efeitos de um costume vicioso Seria mister começarmos a contar com a opinião pública o povo a vontade nacional Déssemos nós o rebate de uma campanha que teria o intuito de manter ao país o direito de eleger o chefe do Estado e ainda que todos os governadores se achassem contra nós uma candidatura verdadeiramente popular verdadeiramente nacional a candidatura de um homem sério digno e benquisto reunindo nos estados todos os elementos dissidentes e no país todos os homens de opinião havia de se impor e prevalecer6 Reaparecia em sua integridade o desafio dos não conservadores na República não mais havia o amparo da lei para o uso do poder pessoal da Coroa para se colocar acima do soberano direito do cidadão de eleger o representante que o governava Mas a praxe sobrevivera como hábito inveterado dos políticos todos acostumados a se considerar no alto pairando num círculo acima dos demais cidadãos E esse costume ritual serviria aos positivistas e conservadores para conquistar poder político depois de se engajarem contra as instituições econômicas que estavam se mostrando vencedoras no mercado Tentando se contrapor a isso Rui Barbosa propunha uma campanha política que falasse diretamente com o eleitor que apelasse à sua vontade soberana ao seu direito de escolher Vinte anos de República não haviam sido suficientes para fazer isso de modo que a proposta era apresentada como novidade Teríamos então pela primeira vez o espetáculo do povo brasileiro concorrendo efetivamente às urnas para nomear seu primeiro mandatário Mas quando não o tivéssemos ao menos vencidos o seríamos com honra que é melhor que vencer sem honra e salvar princípios que se devem salvar sempre ainda quando se perca tudo o mais A eles se acha ligada a minha consciência a minha tradição São compromissos que representam a minha vida inteira Se eu os quebrasse reduzir meia a meus olhos próprios a um trapo7 Enquanto isso a candidatura de Hermes da Fonseca recebia adesões de peso o vicepresidente indicado foi Venceslau Brás Para Afonso Pena era outro ato de traição Sua doença foi piorando e morreu em menos de um mês no dia 14 de junho de 1909 Assumiu o vice Nilo Peçanha cujo primeiro ato foi mostrar o que pensava de economia para o Ministério da Fazenda indicou Leopoldo de Bulhões o mesmo que atacara o plano de valorização do café quando ministro de Rodrigues Alves A campanha de Rui Barbosa foi a primeira a ser organizada no Brasil com o intuito de convencer os eleitores Foi lançada em convenção realizada num teatro com grande plateia e sagrada por delegados eleitos nos municípios Prosseguiu com comícios de rua promovidos por defensores da ideia e explorados pela imprensa Foi arrematada por uma viagem que reuniu multidões em torno do candidato e plateias que assistiam a conferências que expunham o programa de governo A grande bandeira era a defesa do voto secreto A exigência de nossa moralização eleitoral consiste em extinguir radicalmente a publicidade no voto No dia em que tivermos estabelecido o recato impenetrável da cédula eleitoral teremos escoimado a eleição das suas duas grandes chagas a intimidação e o suborno A publicidade é a intimidação do votante O segredo sua independência Para a conquistarmos cumpre tornar obrigatório absoluto indevassável o sigilo do voto8 Era a forma possível de apresentar a defesa da soberania popular sem defender a ampliação do voto para todos os homens o padrão da época e fez imenso sucesso Por todo lado apareceram cidadãos dispostos a apostar na ideia de que eles deveriam escolher o presidente da República Já a campanha do marechal Hermes foi concebida segundo o molde ritual republicano um banquete para a leitura da plataforma em recinto fechado lido para os apoiadores da unção As posições conservadoras ficaram mais que claras Não sou dos que aplaudem movimentos prematuros de opinião nem poderia sêlo porque pertenço à escola conservadora Em matéria financeira julgo perigosas quaisquer inovações precipitadas Os últimos governos mesmo em luta com as consequências de erros de natureza política e administrativa que perturbaram a marcha normal dos negócios públicos têm se preocupado sempre com a valorização do meio circulante O regime metálico é a nossa maior aspiração9 Os programas de uma e outra campanha eram o de menos Rui Barbosa conseguiu levantar a torcida O eleitor soberano compareceu para votar Sua vontade foi processada com os muitos instrumentos que o governo tinha para controlar eleições todos velhos conhecidos derrubadas força bruta pressão direta na escolha de quem podia votar falsificação de atas etc Rui Barbosa perdeu mas aproveitou para denunciar as violências deixando claro que a vontade do eleitor fora falseada e declarando ilegítimo o vencedor Dois padrões se estabeleciam Do lado conservador a clara noção de que os erros de fato nas previsões catastróficas feitas a partir de seu dogma metálico não significariam necessariamente a perda de poder político do lado dos derrotados na eleição ficava claro que haveria um longo caminho para transformar as eleições presidenciais em expressão da vontade do eleitor Mas ao menos houve uma vitória parcial dali em diante os eleitores passaram a considerar a hipótese de escolherem eles mesmos o vencedor Assim que passaram no teste político ainda no governo Nilo Peçanha os conservadores resolveram fazer o de sempre tentar anular as mudanças na economia e fazer voltar atrás o capitalismo As bases para o ataque foram cuidadosamente preparadas por Leopoldo de Bulhões Logo depois da posse mandou uma mensagem ao presidente propondo um novo destino para as reservas brasileiras acumuladas no Fundo de Garantia da Caixa de Conversão Sugeria que em vez de sustentar o câmbio baixo estável de 15 pence fossem empregadas com outra finalidade aquela prevista na lei de 1846 que marcava o padrão metálico brasileiro em 27 pence O Fundo de Garantia realizava este efeito tonificador acumulava ouro em depósito e à medida que o depósito ia aumentando transformava em aproximações progressivas a data do troco por ouro ou da reabilitação completa do meio circulante10 Julgando que essa interpretação anulava a necessidade de manter a estabilidade cambial passou a acumular dinheiro na Caixa de Conversão Os depósitos eram de 56 milhões de libras no final de 1908 o movimento cambial total de operações com moeda estrangeira no Brasil fora de 59 milhões de libras nesse mesmo ano Bulhões fez chover dinheiro contábil na base de acertos de contas com o Banco do Brasil e o Tesouro transferiu 94 milhões de libras dessas fontes para a Caixa de Conversão entre setembro e dezembro de 1909 elevando seus depósitos a 143 milhões de libras Pelas regras da Caixa o equivalente em milréis foi entregue aos fornecedores das libras Com isso o Banco do Brasil ficou com uma montanha de milréis em depósito e a necessidade de comprar libras no mercado para honrar seus compromissos nessa moeda Adiado para depois da vitória eleitoral o grande ato foi assim descrito no Parlamento pelo deputado Josino de Araújo O Banco do Brasil não empregou seus recursos para comprar ouro permitindo que o fizessem os bancos estrangeiros E era natural que os bancos estrangeiros tendo conhecimento de que a opinião do ministro da Fazenda era favorável à alta e o deputado Calógeras admite com sinceridade que essa razão psicológica pode ter contribuído em favor da alta levando em conta esta opinião publicamente revelada do ministro dizendo que as condições do Brasil autorizavam maior taxa fizeram muito legitimamente seu negócio isto é trataram de comprar ouro por menor preço para vendêlo para a Caixa de Conversão por preço certo Era uma operação que podiam tentar com total segurança graças à posição inerte do banco oficial11 Em bom português o governo brasileiro preparou o terreno para uma manobra especulativa explicitamente para que lucrassem os bancos estrangeiros que haviam perdido com a valorização do café e tivessem prejuízos os produtores brasileiros que ganharam com ela Em abril de 1910 no momento em que o Banco do Brasil mais precisava de divisas e a Caixa de Conversão estava abarrotada daquelas que lhe foram tiradas entraram libras esterlinas no país como há muito não se via Em apenas 45 dias entre o início do mês e 13 de maio investidores estrangeiros depositaram 6 milhões de libras mais que o movimento de todo o ano de 1908 e receberam os milréis equivalentes pela taxa de 15 pence Assim o total dos depósitos ultrapassou 20 milhões de libras Pela lei o câmbio podia então flutuar Só então o Banco do Brasil entrou no mercado e fez o possível para elevar a cotação comprou um quarto da produção de borracha da Amazônia em milréis para tornar ainda mais abundante a oferta de libras Depois foi comprando libras com cotações cada vez mais altas que chegaram a 18 pence em novembro A essa altura aqueles investidores estrangeiros que receberam 16 milréis por cada libra que depositaram em abril podiam comprar 1203 libras O banco oficial trabalhava para esse sucesso Mas a grande guerra era para arrancar o dinheiro que iria pagar essa conta e o alvo central eram os produtores de café de São Paulo Eles deveriam desovar o grosso da safra bem na época em que a pressão chegava ao auge Se vendessem como sempre em libras receberiam apenas 133 milréis por cada uma 27 milréis a menos que a cotação de abril Pagariam a conta da manobra especulativa ganhariam menos do que os fornecedores de libras teriam de lucro Mas então os cafeicultores receberam uma providencial ajuda O governo paulista tinha agora reservas de café e graças a elas acesso a créditos no exterior Não se sabe exatamente o que foi acertado entre o governo paulista e seus banqueiros internacionais mas o fato é que no momento em que os cafeicultores paulistas mais precisavam de empréstimos em moeda nacional para resistir ao cerco e deixar suas letras de câmbio tão guardadas como os milréis entesourados pelos bancos federais o socorro chegou Veio de uma fonte assim descrita por Cincinato Braga O Banco Agrícola Francês com sede em São Paulo e com ligações legais com o governo do estado ofereceu seus recursos para atenuar a situação da praça12 Os investidores estrangeiros vendo que não estava sendo possível comprar café com seus lucros preferiram ir comprando as libras baratas que estavam disponíveis no mercado graças à manobra altista do governo federal Como o café não ajudou na manobra a especulação se esgotou e a conta em vez de recair sobre os produtores de café como previa o plano original ficou para o maior especulador como mostra Winston Fritsch Em 22 de setembro de 1910 o ministério completamente desligado da opinião geral decidiu não alterar a taxa do Banco do Brasil Apesar das extraordinárias perdas de reservas que a posição gerou foi teimosamente mantida até o dia 15 de novembro A esta altura a sustentação da taxa superestimada custou quase todos os créditos em moeda forte do banco e algo em torno de três quartos das reservas londrinas do Tesouro13 Ao contrário do teste político o teste econômico da política conservadora levou a uma derrota acachapante que doeu apenas em suas teorias O dinheiro jogado fora era do governo do qual eles continuariam donos e a conta ficava para os contribuintes federais que não apitavam na hora de pagar Dessa forma os testes brasileiros se acabaram havia uma nova realidade econômica positiva de longo prazo fundada em conceitos novos e visando o desenvolvimento do capitalismo com medidas consensuais CAPÍTULO 60 Capitalismo no topo da velocidade do mundo A RESISTÊNCIA DO PLANO DE VALORIZAÇÃO DO CAFÉ AOS ATAQUES VINDOS DE dentro e de fora do Brasil fez com que se tornasse um ponto de referência assinalando um antes e um depois na história econômica do país como se vê nesta análise de Carlos Peláez e Wilson Suzigan Durante a valorização do café a economia brasileira experimentou pela primeira vez uma taxa de crescimento real per capita superior à dos Estados Unidos A taxa foi provavelmente maior que 2 ao ano Com base em qualquer dos indicadores de preços podese concluir que a economia cresceu rapidamente1 Afirmações como essa mostram o momento a partir do qual volta a existir certo consenso entre os econometristas A unanimidade anterior para recordar era aquela referente aos 70 anos do Império como sendo um período de total estagnação da economia no qual a renda per capita permanecera inalterada Agora a unanimidade se dá nas circunstâncias de uma economia em crescimento com taxas superiores às dos Estados Unidos o que merece outro tipo de comparação Em seu livro O capital no século XXI o econometrista Thomas Piketty distingue períodos uniformes na evolução econômica dos países do Ocidente como um todo2 Um desses períodos de 1820 a 1913 tem como característica principal o fato de que a economia teria passado por uma profunda transformação decorrente da disseminação do capitalismo As revoluções burguesas teriam rompido os limites da aristocracia e dos impedimentos estamentais para a acumulação do capital Com o domínio deste sobre o trabalho assalariado desencadeouse uma espiral de crescimento cujo resultado aparece com toda a sua potência nos números apresentados no livro O ritmo de crescimento da produção econômica passou de 05 para 15 ao ano enquanto o crescimento demográfico subiu de 04 para 06 Em consequência dessas duas tendências o crescimento da renda per capita ganha uma velocidade exponencialmente maior do que o conhecido desde a préhistória de 01 ao ano no período denominado por Piketty de o longo século XIX o crescimento das economias capitalistas salta para 09 anuais Esses números relativos às economias do Ocidente como um todo dão uma dimensão comparativa para a análise do caso brasileiro Sair de um patamar de crescimento da renda per capita próximo a zero e alcançar em apenas 16 anos um ritmo de crescimento muito superior ao da média do crescimento mundial e até mesmo da nação ocidental mais bemsucedida naquele período histórico não era um evento trivial Tal ruptura significava uma mudança de eras uma passagem acelerada do mercantilismo para o capitalismo do Antigo Regime dos monopólios da era do capital comercial e dos governos que os mantinham para a acumulação de riqueza nos mercados O comparativo mundial também evidencia outro ponto A alteração radical de comportamento da economia brasileira ocorreu num mesmo período evolutivo da economia ocidental como um todo Mas não foi uma revolução trazida de fora e sim uma revolução construída aqui dentro No plano mais básico o papel mundial do Brasil continuou o mesmo nesse período exportador de café e outras matériasprimas agrícolas No que se refere à inserção global da economia brasileira não se deu nenhuma mudança estrutural entre o período de estagnação e o de crescimento acelerado O marco da mudança de padrão é claro o Plano de Valorização do Café Não é um marco da exportação mas do desenvolvimento interno do país Mesmo continuando a ser um produtor cafeeiro o Plano de Valorização colocou o Brasil em outra posição no mundo a começar pela autoria Era um plano inteiramente elaborado no Brasil e por brasileiros Mas foi capaz de despertar a atenção de investidores mundiais Mais que isso foi considerado tão bom que um governo sem recursos conseguiu captar no exterior os recursos para pagar a conta Mas sobretudo conseguiu mudar radicalmente as relações financeiras e econômicas da economia brasileira Desde a Independência o Brasil era fundamentalmente um devedor de recursos Mais precisamente uma nação cujo governo central vivia preso à sua dívida externa e fazia isso até mesmo com consciência pedindo ajuda ao gênio inglês para permanecer atado a seu banqueiro e para manter desatados do capitalismo os seus cidadãos Jamais acumulara reservas significativas isto é reservas não atreladas às dívidas O Plano de Valorização do Café mudou a situação O governo de São Paulo tornouse senhor de um estoque de mercadorias no exterior a contrapartida da dívida para com aqueles que haviam fornecido o dinheiro para as compras Logo ficou claro que o estoque valia muito mais do que a dívida Com isso o estoque passou a ser um passe para levantar dinheiro quase uma reserva internacional líquida Essa passagem da posição de devedor temeroso para a de dono do próprio nariz financeiro foi uma decorrência do Plano a despeito de todo o esforço do Banco Rothschild detentor do monopólio sobre as dívidas do governo federal do Brasil A derrota foi tripla para o banco perda da ascendência sobre a política econômica brasileira perda dos ganhos de monopólio sobre o financiamento dos entes públicos e perda de oportunidades no financiamento do comércio exterior Essa última pode ser medida de maneira muito direta Os financiadores do Plano de Valorização do Café eram originários sobretudo de quatro países Bélgica França Alemanha e Estados Unidos Em 1905 esses quatro países adquiriram 65 dos produtos exportados pelo Brasil e venderam 24 dos produtos importados pelo país3 Em 1913 vitorioso o investimento compraram 61 dos produtos uma proporção menor que antes do Plano mas venderam 46 dos produtos importados pelo Brasil quase o dobro da proporção anterior à associação Isso ocorreu em parte à custa da GrãBretanha Antes do Plano de Valorização em 1905 esse país fornecia 272 das importações brasileiras em 1913 a proporção havia decrescido para 23 Mas a grande queda registrouse nas compras dos produtos brasileiros pelos ingleses em 1905 estes adquiriram 18 das exportações brasileiras em 1913 essa proporção havia caído para apenas 12 um terço a menos que no período anterior A transformação das posições de mercado e das finanças permitiu outra mudança interna de longo prazo O Plano de Valorização do Café não foi feito para produzir mais café e continuou em vigor a proibição de novas plantações mas como bem colocou Augusto Ramos visava produzir mais riqueza no Brasil a partir do café Todo o forte crescimento nacional não em um estado mas em toda a economia brasileira que se seguiu ao êxito do plano era basicamente um crescimento do setor industrial em ritmo muito maior que o da agricultura Uma tradução direta dessa prioridade republicana de duas fases uma por ocasião das medidas tomadas por Rui Barbosa outra depois do Plano é visível na proporção de equipamentos importados para a produção industrial no total das importações brasileiras Um indício de que o crescimento industrial teve início antes da mudança de regime é o aumento dessa proporção da compra de equipamentos nos últimos anos do Império de apenas 1 em 1880 ela mais que dobrou até 1889 quando atingiu 264 A mudança de regime ocasionou imediata acentuação da tendência com as importações de equipamentos para a indústria subindo para 55 do total das importações A partir daí registrouse um lento declínio com queda para 34 em 1897 A recessão provocada por Campos Sales golpeou com força essa espécie de investimento em 1901 apenas 17 das compras no exterior foram de equipamentos industriais menos do que nos últimos anos do regime monárquico Ao longo do governo Rodrigues Alves o patamar foi se recuperando e chegou a 3 em 1905 ainda bastante inferior ao da primeira década republicana A Política de Valorização do Café permitiu não só retomar o crescimento mas estabilizálo num nível elevado até 1913 último ano antes da Primeira Guerra Mundial o evento que encerraria o longo século XIX quando as importações de equipamentos foram de 28 milhões de libras esterlinas um recorde histórico de volume representando 42 do total das importações Desse modo tornase compreensível o modo pelo qual o regime republicano como um todo foi encontrando o caminho para o desenvolvimento A passagem da estagnação secular da monarquia para a dinâmica republicana acelerada num ritmo de crescimento superior ao das economias ocidentais está muito mais relacionada às mudanças internas do que ao cenário externo Essas transformações podem ser entendidas por meio de uma exposição de Augusto Ramos redigida em 1910 com outros colaboradores do plano em especial o ex deputado José de Barros Franco Enquanto buscava capitais e supervisionava a implantação de um novo empreendimento a construção do bondinho do Pão de Açúcar obra tida como visionária e sem sentido econômico na época Augusto Ramos voltou ao combate contrapondose à política do ministro Leopoldo de Bulhões Seu argumento começava com a observação de que no mais fundo dos sertões havia unidades produtivas uniformes O Brasil é um vastíssimo campo de trabalho dividido em regiões constituídas por núcleos economicamente autônomos mas entre si ligados por indissolúvel solidariedade Essa solidariedade prende entre si as várias regiões constituindo uma dilatada federação econômica5 Além da uniformidade nos laços internamente se organizavam segundo várias modalidades de associação de trabalho e capital Nas regiões genuinamente agrícolas qualquer de seus núcleos é constituído em geral por uma propriedade central seja simples sítio fazenda ou usina rodeada de operários assalariados ou de empreiteiros ou ainda de arrendatários que mediante um acordo com o proprietário lhe cultivam a terra em troca de uma remuneração6 Dada a concordância entre as partes havia produção com receitas variadas Sempre que se tornou possível um contrato capaz de vincular os riscos e proventos das duas partes interessadas esse contrato foi aceito de comum acordo por ambas Assim a cana produzida é paga por um preço frequentemente ligado à produção do açúcar o café é cultivado a meias em vários estados o milho à terça etc7 Na época Augusto Ramos era o único a reconhecer a produção do sertão secularmente organizada por acordos entre produtores independentes firmados entre empreendedores e empresários como uma formação essencialmente ligada ao mercado visando enriquecimento e acumulação sem a qual tudo definhava Cada vez que por inviável ou por um acidente qualquer fechava a porta um destes estabelecimentos os operários viamse atirados à miséria como imediatos participantes da sorte de seus patrões8 Além de responderem a estímulos de mercado e não por serem produtores restritos ao mínimo de subsistência esses conjuntos se constituíam eles mesmos em peças importantes para outros mercados O conjunto dessas grandes figuras de nossos campos patrões e operários constitui também a grande classe dos consumidores9 Essa estrutura que produz e consome constituía a base do mercado interno brasileiro numa cadeia de trocas Cada região no limite de sua importância fornecese do produto das outras e nelas encontra outros tantos consumidores O charque do Rio Grande caminha semanalmente até o extremo Norte semeando seus contingentes de porto em porto e de lá enviando de retorno as mercadorias de que carecem os rio grandenses Pernambuco e outros estados do Norte despejam em Santos três quartas partes do açúcar que ali se consome maior contingente fornecendo ainda ao Rio de Janeiro e tanto Santos como o Rio de Janeiro retrucam com o que sabem produzir as regiões ao redor10 Dessas trocas internas da produção rural resultaria a prosperidade nas grandes cidades As cidades do litoral arvoradas naturalmente em entrepostos do interior recebem produtos exportáveis e para o interior enviam os que das outras regiões lhes são destinados sendo tributárias das lavouras cuja boa ou má sorte partilham como membros da mesma família e construtores do mesmo edifício Perguntese ao negociante do Rio Grande do Paraná de São Paulo por que prospera ou definha e ele invariavelmente responderá porque estão em alta ou em baixa o café o charque o mate o fumo ou o açúcar11 Esse conjunto comandado desde os sertões era o centro da vida econômica nacional com o comércio externo absorvendo apenas as sobras O centro de todo o sistema ninguém o contestará é a lavoura este formigueiro de gente que em todos os sentidos revolve os vargedos e as encostas de nosso território e do seio arranca produtos de toda sorte que movimentando os entrepostos derramamse cruzando em viagem pelo país inteiro e indo transbordar sobre o exterior e ali motivando a importação12 Também diferentemente da imensa maioria de seus contemporâneos ele via nesse complexo produtivo interno de trocas com o sertão o âmago de todos os interesses econômicos relevantes do país São produtores todos e todos consumidores Sendo avaliada em 90 a nossa população agrícola em relação à nacional é evidente e absolutamente incontestável que prejudicar a produção agrícola do Brasil igualmente prejudicará a pelo menos 85 dos brasileiros13 A partir dessas considerações ele criticava violentamente as justificativas do ministro Bulhões para especular com a alta do câmbio centradas no barateamento do custo de vida nas grandes cidades pela facilidade de importar alimentos Um economista sensato jamais se lembraria de lançar mão da valorização do câmbio para baratear a vida da população Revolver os cantos todos do país ferir suas classes fundamentais levar a perturbação a milhares de famílias indo sacudilas e despojálas até o mais remoto dos sertões sob pretexto de baratear a vida das populações do litoral seria positivamente uma obra de insensatos não fora o resultado de um enorme erro de apreciação O artifício deve ser condenado in limine por ser monstruosamente iníquo14 Com todas as letras ele deixava claro que o objetivo do ministro vinha a ser o mesmo de todos os pensadores conservadores desde o início do século anterior combater a indústria A causa do mal se houvesse nisso um mal é o nosso desenvolvimento industrial Será um mal necessário A não ser nas classes abastadas não se consomem no Brasil senão produtos de fabricação nacional15 O mesmo processo tem uma interpretação mais recente proposta por Wilson Cano Há uma crescente integração do mercado nacional com predominância cada vez maior da economia paulista Essa integração é ao mesmo tempo reveladora de um específico sistema de trocas interregionais de São Paulo para o resto do país aumentam continuamente as exportações de produtos industriais ao passo que as importações paulistas vão cada vez mais se constituindo de matériasprimas e de gêneros alimentícios demonstrando claramente uma relação estrutural de comércio típica de centroperiferia As importações provenientes de outras regiões supriam parcialmente a economia de São Paulo com alimentos e outros bens de consumo industrializados ou não passavam agora gradativamente a abastecer a economia paulista de gêneros alimentícios que eram escassamente ou dificilmente produzíveis em São Paulo açúcar minérios madeiras animais de corte etc16 Embora apresente o mesmo mecanismo de formação do mercado as trocas entre regiões essa explicação tem um foco diverso concentrase na indústria paulista afinal o tema do seu trabalho Isso é bem mais palatável ao entendimento por não se afastar da secular tradição de concentrar as significações no caranguejo Nesse caso com ferramentas atuais separar a formação da indústria da formação de um mercado interno o moderno do arcaico inclusive do ponto de vista geográfico Wilson Cano tem total razão sobre a natureza do crescimento trazido após 1906 com a industrialização acelerada sobretudo em São Paulo resultando de aumento das trocas com o restante do país Mas antes de entrar de vez nesse período vale a pena tentar responder à pergunta central deste livro com apoio tanto das suas ideias como das ideias de Augusto Ramos que relação há entre o surto de desenvolvimento econômico e os governos O plural aqui é mais necessário do que nunca começa na própria esfera mais alta de governo A passagem da Monarquia para a República se fez com uma reforma muito profunda nessa esfera o Poder Moderador foi eliminado e suas franquias distribuídas tanto para outras esferas de governo como para a sociedade Com isso a estrutura do governo federal era uma versão bastante desidratada da pletora de poderes imperiais Os governos estaduais ganharam parte do que foi retirado do centro porém o mais significativo foi o fim da intervenção do governo nas decisões econômicas dos cidadãos O governo central teve seu papel reduzido a uma entidade de registro legal e supervisão Isso terminou com a restrição do mercado às casas particulares como vinha ocorrendo desde os tempos de frei Vicente do Salvador e permitiu que compradores e vendedores atuassem em mercados públicos Impuseramse assim as formas capitalistas uma esfera privada de produtores e outra pública de um governo que dá suporte aos negócios privados É essa a rede de conceitos que Augusto Ramos aplica à formação brasileira e com ela mostra o capitalismo surgindo nas relações entre de um lado industriais e operários urbanos e de outro produtores independentes do sertão ligados ao capital comercial Não como relações mediadas pelo governo mas antes mediadas pelo interesse na riqueza Sociologicamente falando mostra duas estruturas que embora de composição diversa conseguiam se entender em prol de um objetivo comum apesar das diferenças sociais inerentes à acumulação de riqueza Nesse sentido o desenvolvimento que se registrou após o plano de sua autoria é apresentado como uma realidade favorável às duas partes mas que precisa ser defendida da ação do governo central no sentido contrário ao desenvolvimento É apresentado também num jornal como havia sido apresentado o seu projeto A despeito de todos os problemas o regime republicano trouxera alternância no poder As sucessões aconteceram pela regra marcada na Constituição impondose o cumprimento dos mandatos É certo que tais sucessões obedeciam mais ao ritual de sagração de um ungido pelo alto em conformidade com as noções de República da maioria conservadora do que por decisão do eleitor soberano o que estaria mais de acordo com o conceito de democracia Mas também é igualmente certo que apesar da tentativa por parte de Campos Sales de reforçar o modelo da sagração os primeiros mandatários adotaram abordagens muito diferentes no poder Houve variedade tanto do papel de presidente em relação aos outros poderes e à sociedade quanto dos objetivos de política econômica Com isso as gestões presidenciais apresentaram grau muito maior de alternância real na condução do país do que os antigos ministérios imperiais Também houve efetiva redistribuição de poderes entre a esfera federal e a estadual Mesmo com as imensas diferenças de recursos até mesmo o estado mais pobre contava com capacidade orçamentária bem maior do que nos tempos em que era província Em nível estadual também se registrou essa variedade de opções no poder desde a ditadura quase explícita no Rio Grande do Sul até a ousadia dos estados aliados em torno do Plano de Valorização do Café Tal variedade se refletia no leque de serviços públicos oferecidos com o dinheiro arrecadado Com raras exceções a prestação regular de serviços de educação segurança pública saneamento e suporte a investimentos produtivos acabou sendo na prática reservada aos estados limitandose a federação àquilo que fazia nos tempos do Império inclusive no que se refere ao funcionalismo Nos municípios porém é que a variedade mostrouse muito maior Começaram a se destacar os mais ricos os centros do comércio eou da indústria capazes de prover infraestrutura urbana e até de lazer Mas em todos mantevese a tradição secular das eleições e dos governos eleitos assim como da solução de todo tipo de problemas e isso ainda era quase toda a atividade de governo na maior parte do território brasileiro onde havia mercado e as tais unidades agrícolas descritas por Augusto Ramos Enfim em relação aos tempos coloniais quando predominou a aliança entre TupiGuarani e portugueses num primeiro momento e a miscigenação geral depois do ouro o Plano de Valorização do Café trouxe uma mudança radical tornando a relação entre o industrial que produzia e o sertanejo que consumia esses produtos o elemento crucial para o crescimento da economia brasileira agora sob a forma de um mercado interno capaz de por si mesmo alimentar a espiral de acumulação Augusto Ramos o homem que formulou essa visão era um empresário privado interessado na riqueza da nação autor de um plano que resultara de fato em produção de riqueza comandada pelo setor privado e arrancada em momentos favoráveis de diversas instâncias de governo mas também em luta direta com o governo central na maior parte dos oito anos decorridos entre a concepção inicial e a concretização bemsucedida do plano O sucesso não se media pelo governo mas pelo fato de o setor privado ter colhido efetivamente os frutos do crescimento Cálculos de econometristas indicam que a soma dos tributos recolhidos por todas as instâncias de governo nessa época giravam em torno de 6 do PIB ou inversamente que o setor privado ficava com 94 do valor da produção nacional Os parcos 6 do setor público tinham de ser divididos Em termos de distribuição dos recursos entre as esferas de governo a União ficava com cerca de 35 do PIB os estados com 2 e os municípios com 05 Eram governos pequenos no tamanho modestos nas oficinas que se distribuíam inversamente à riqueza os municípios prestavam muitos serviços para muita gente os estados concentravam um pouco mais a clientela e o governo federal servia a uns poucos Mas essa composição também era um indicativo de problema Assim como o derrotado ministro não conseguiu fazer o crescimento voltar atrás o setor privado não teve forças para fazer o governo andar para a frente CAPÍTULO 61 19101918 tempos excruciantes I HERMES DA FONSECA FOI O PRIMEIRO POSITIVISTA A CHEGAR À PRESIDÊNCIA DA República por meio de eleições Resolveu passar os seis meses entre o pleito e a posse na Europa acompanhando manobras militares na Alemanha Planejou uma volta com estilo no início de outubro de 1910 embarcou no encouraçado São Paulo que fazia sua viagem inaugural A embarcação representava um grande salto tecnológico era o navio de guerra mais avançado da época com uma dúzia de canhões de 10 polegadas o navio mais poderoso da frota inglesa possuía apenas dez couraça de 24 centímetros de espessura no mais poderoso encouraçado inglês eram 18 centímetros Tanto poder de fogo contudo requeria destreza o coice dos canhões era tão violento que exigia ordem precisa de disparos havia comportas a serem manobradas de modo coordenado as quatro turbinas deviam ser controladas com cuidado As novas tecnologias influenciavam até o relacionamento entre os tripulantes todos marujos especializados e obrigados a conviver em espaços apertados Em vez da secular tradição de alojamentos e refeitórios separados para oficiais e marinheiros todos partilhavam um único ambiente No dia 25 de outubro o encouraçado aportou no Rio de Janeiro ao lado de seu gêmeo o Minas Gerais Cada um deles custara o equivalente a 1 milhão de sacas de café A manobra de atracagem foi acompanhada pelos apitos e tiros de saudações de uma verdadeira frota de belonaves estrangeiras ali presentes para abrilhantar a festa de posse de alguém que apreciava as demonstrações militares O navio projetava uma imagem de orgulho poderio modernidade à altura de uma elite que se pensava como civilizada Depois de desembarcar o marechal foi conhecer a máquina de governo que comandaria Em sua ausência coubera ao senador Pinheiro Machado formar o ministério Ele ainda providenciara a criação de um partido de apoio o Partido Republicano Conservador O senador também conheceu o primeiro problema de governo derivado do entusiasmo por afinal exercer o poder que tanto almejara Pelas regras da política dos governadores o governador do Amazonas Antônio Bitencourt amigo pessoal do presidente Nilo Peçanha arranjara votos para o futuro presidente Mas o senador Pinheiro Machado tinha outros planos Conseguiu que o Exército substituísse o comandante militar da região trocando um general pelo coronel Pantaleão Telles que foi encarregado de dar um ultimato ao governador para que deixasse o cargo Era uma retomada da velha praxe das derrubadas agora com um novo agente a força militar nacional à qual pertencia o presidente Várias reações foram aumentando o custo da manobra Pela imprensa o general deposto protestou contra o uso político do Exército Ao receber o ultimato o governador telegrafou ao presidente Nilo Peçanha que sem saber de nada garantiu que o governador estava seguro Bittencourt negou se a deixar o cargo O coronel mandou bombardear a cidade atingindo entre outros edifícios a Santa Casa e a igreja dos Remédios Nas ruas as tropas investiram contra os soldados da polícia estadual Cônsules estrangeiros negociaram a entrega do poder Assim que soube de tudo Nilo Peçanha denunciou a manobra no Parlamento e exigiu que os ministros militares depusessem o coronel e voltassem tudo atrás A sangrenta e desastrada intervenção foi uma má notícia temporária para o marechal prestes a tomar posse mas reveladora de que a derrubada imperial estava de volta duas décadas após a extinção do regime monárquico continuava sendo uma prática muito cara aos positivistas Já outra má notícia era de longo prazo o fracasso da manobra especulativa contra o plano do café tinha custado não apenas as reservas mas toda a capacidade do governo federal para influir na economia Nos próximos anos mal e mal pagaria as contas Bastou uma semana de governo do marechal para explodir o conflito Na noite de 22 de novembro após sessão de açoite de um marinheiro num dos encouraçados o radiotelegrafista João Cândido desencadeia o motim Os marinheiros assumem o controle dos dois encouraçados e do cruzador Bahia A frota comandada pelo novo almirante manobra com grande precisão Pelo rádio é transmitida a única exigência dos amotinados o fim dos castigos físicos na Marinha A notícia corre na capital e como se trata de uma cidade com meios modernos de comunicação um jornalista consegue subir a bordo Colhe declarações do líder da revolta já alcunhado de Almirante Negro Isso de almirante é uma miséria Nunca despi minha blusa de marinheiro Sou marinheiro e hei de morrer marinheiro dentro deste ou de outro navio E me orgulho de dizer tal coisa Luto apenas para que as carnes de um servidor da pátria só sejam cortadas pelas armas dos inimigos nunca pela chibata de seus irmãos Não nos queixamos de trabalho que tanto fatiga nem da miséria que ganhamos pois aqui não se vem para encher o bolso A chibata avilta É castigo para animais ou escravos O soldado é um pouco mais que isso1 A cidade aplaude o marinheiro negro que falava como cidadão de uma República onde todos tinham direitos O Parlamento também aprova uma anistia solene aos marinheiros e João Cândido se torna herói popular Vencedor João Cândido devolve o comando dos navios intactos Enquanto isso oficiais das marinhas de todo o mundo presentes na baía avaliam o desempenho da Armada brasileira impotente para reagir às manobras dos amotinados Essa visão de fora torna ainda mais duro o problema de dentro o convívio entre cidadãos estava entranhado tanto no projeto dos navios modernos como na mente do simples marinheiro que sabia comandar tudo mas não na mente dos oficiais formada na lógica do Antigo Regime na separação radical entre senhor e escravo que justificava o uso da chibata Essa lógica antiquada emergia agora num cenário novo e cruel para o governo federal Com o capitalismo e a igualdade formal entre os cidadãos a ação governamental teria de dar conta de uma nova configuração social na qual não bastava mais reafirmar uma velha ordem aquela que separaria um governo no alto e uma sociedade muito abaixo A estreia do marechal nessa seara não se limitou a obedecer a lei no caso a da anistia A maior parte dos oficiais e muitos políticos conservadores reagiram na forma da lei civil vigente que trazia resquícios das seculares Ordenações as quais não reconheciam cidadania nem direitos de nenhuma espécie dos súditos contra o Estado Com apoio superior os oficiais atacaram Marinheiros foram submetidos a maustratos em massa Diante de um protesto na ilha das Cobras os navios iniciaram o bombardeio enquanto o presidente decretava estado de sítio Morreram 550 dos 600 marinheiros que estavam na ilha 22 líderes da revolta mesmo anistiados foram presos numa cela sem janelas na qual os oficiais jogaram cal depois de trancarem a porta Dois dias depois quando foi aberta só restava um vivo João Cândido Levado para um hospital escapou de ser embarcado com outros 200 marinheiros num navio civil que zarpou rumo ao Norte Durante a viagem muitos acabam fuzilados outros jogados ao mar Os sobreviventes foram despejados nus nas barrancas do rio Amazonas Tudo isso só foi possível mantendo censura à imprensa o que impediu por meses a discussão do caso João Cândido foi processado e expulso da Marinha2 Era um sinal dos tempos Depurada das exigências de cidadania a força militar tornouse o principal instrumento dos positivistas no governo federal O figurino repetiuse em muitos estados candidatos derrotados em eleições estaduais alegavam fraudes solicitavam a intervenção federal que vinha sob a bandeira do salvacionismo sempre resgatando militares e massacrando civis Em Pernambuco para impor como governador o ministro da Guerra general Dantas Barreto foi preciso transformar Recife em praça de guerra o Exército o conduziu ao palácio em meio a tiroteios e morticínios malgrado o irrelevante fato de ele ter perdido a eleição Na Bahia foi pior ainda o general comandante da praça enviou um ultimato ao governador para que renunciasse em uma hora Diante da recusa repetiuse em escala ampliada a tática inaugurada em Manaus pelos indicados de Pinheiro Machado A cidade foi bombardeada e centenas de pessoas morreram em meio a grandes incêndios O Supremo Tribunal Federal garantiu a volta do governador ao palácio o que só provocou a continuidade do massacre até que o escolhido do governo o ministro do Interior tomasse posse Em Alagoas os mesmos métodos colocaram no governo Clodoaldo da Fonseca militar e primo do presidente e as vítimas chegaram ao milhar No Ceará a mesma coisa o governador foi deposto a bala pelo Exército registrandose centenas de mortes Como o empossado não conseguiu estabilidade cinco governadores se revezaram no posto nos cinco anos seguintes durante os quais em meio às guerras se percebeu o sinal oposto o crescimento econômico chegava ao mais fundo do sertão Cícero Romão Batista era o típico padre secular dos tempos do Império filho de família pobre e empreendedor Em 1873 tornouse pároco no arraial de Juazeiro que nem sequer era vila Em março de 1889 começou a se espalhar a notícia de um milagre feito pelo padre uma hóstia transformada em sangue Embora atraísse fiéis a história não caiu bem entre os seus superiores No Brasil a Igreja Católica havia passado da alçada do governo para a do Vaticano e os novos responsáveis não apreciavam santos de casa fazendo milagre após um inquérito o milagre foi negado e o padre proibido de administrar sacramentos Este voltase então para aquilo que lhe é permitido fazer negócios e política Do lado econômico a força de seu prestígio é suficiente para fixar pequenos produtores ao redor do vilarejo que vira um centro de abastecimento regional e núcleo de produção de algodão Como político ele se envolveu na guerra civil iniciada pela intervenção no estado a mando do marechal Hermes e obteve vitórias locais sendo nomeado prefeito do recémcriado município de Juazeiro do Norte Como administrador acelerou o progresso capitalista na região que se refletia na movimentação em sua casa uma fila permanente na porta sempre aberta na qual se viam candidatos em busca de voto ingleses compradores de algodão comerciantes atacadistas do Recife pedintes de favores políticos e romeiros que afluíam de todos os lados para conhecer o santo milagreiro O progresso veio tão depressa que nem a hierarquia da Igreja podia mais ignorar tanto movimento Em 1916 o bispo do Ceará recebeu ordem para excomungar o padre Cícero em vez disso preferiu criar uma paróquia restaurar em parte as ordens do padre e obter o controle financeiro do santuário A partir daí o padre voltou a rezar missas e pregar do púlpito Além da indústria o turismo religioso tornouse fonte de renda da cidade que progredia depressa Esse progresso fundado na ação e na autoridade locais em meio a uma incerteza quase completa sobre aquilo que seria governo nas situações estaduais criadas pelo salvacionismo aconteceu também em outras localidades como por exemplo Campina Grande na Paraíba Caruaru e Petrolina em Pernambuco e Juazeiro e Feira de Santana na Bahia Também em São Paulo uma derrubada começou a ser armada Havia um candidato hermista o senador Rodolfo Miranda Havia uma desculpa oficial a necessidade de empregar o Exército para colaborar no massacre dos índios Caingangue Havia a possibilidade de que a eleição fosse de fato conflituosa o governador Albuquerque Lins aliado de Rui Barbosa a ponto de ser o vice em sua chapa tinha o controle do partido e até um sucessor de coração Olavo Egydio colaborador no Plano de Valorização do Café desde o primeiro minuto depois senador Mas em São Paulo o peso de certos fatos econômicos influía na política Em 1911 a cotação do café era 53 superior à de 1907 Com isso o estoque de café do governo ficava avaliado em 216 milhões de libras esterlinas e a dívida sobre ele era bem menor que os 15 milhões de libras iniciais o que proporcionava larga margem de crédito para o governo Além disso como não se plantava café em São Paulo o imenso lucro dos cafeicultores não retornava à produção agrícola e em sua maior parte acabava aplicado em bancos que se viram cheios de dinheiro para emprestar aos empresários e os industriais eram aqueles que mais tomavam empréstimos para ampliar os negócios Desse modo a indústria vinha crescendo de forma explosiva e não apenas aquela para o mercado local Nos 10 anos entre 1897 e 1907 a venda de tecidos das indústrias paulistas para outros estados brasileiros saltou de 274 contos para 15 mil contos as vendas de chapéus foram de mil contos para 24 mil contos as de solas de 164 contos para 17 mil contos O restante das exportações industriais de 1897 estava agrupado numa única rubrica alfandegária com valor de 234 contos Em 1907 vários itens já haviam sido discriminados desse grupo calçados com vendas no valor de 54 mil contos aniagem 27 mil contos cerveja 12 mil contos3 O indicador mais claro da mudança eram os depósitos bancários que dobraram entre 1906 e 1910 passando de 918 mil contos para 1846 mil contos Esse incremento quantitativo provocou uma mudança qualitativa assim descrita por Anne Hanley Após 1906 os bancos domésticos se transformaram em verdadeiros intermediários institucionais Essa mudança é crítica para o desenvolvimento econômico porque reduz a importância dos laços pessoais na obtenção de capital Com a intermediação impessoal um empreendedor precisava agora muito mais de uma boa ideia e um sólido plano de negócios que de conexões pessoais para obter dinheiro4 Tudo isso eram interesses do setor privado motor do desenvolvimento que os políticos levaram em conta O próprio Olavo Egydio achava má estratégia abrir espaço para uma disputa e se dispôs a abrir mão do governo seu grupo resolveu ressuscitar o expresidente Rodrigues Alves convidandoo para ser governador numa chapa única Ele convenceu os conservadores que convenceram Rodolfo Miranda a desistir em troca da indicação de um terço dos deputados Com o apoio nas mãos o expresidente foi ao Rio de Janeiro e negociou um acordo de não intervenção com os hermistas e o presidente afinal acertado em 8 de janeiro de 1912 Uma semana depois aconteceu o tradicional banquete de sagração do candidato que dessa vez sagrava um acordo de substância Nele o expresidente Rodrigues Alves agora falando como futuro governador fazia um mea culpa sobre o Plano de Valorização do Café Deve ser considerada como um dos maiores acontecimentos dos últimos tempos a solução dada neste estado ao problema da valorização do café não só pela audácia do empreendimento como pelo volume considerável dos valores envolvidos no conjunto da operação Não tive a fortuna de estar de acordo com algumas das ideias que se entrelaçaram no encaminhamento daquela solução sem que esta divergência pudesse significar desapreço aos que a promoveram5 Depois mostrou a grande vantagem de ser um conservador aderiu por completo à mudança já efetuada e aos homens que tiveram de lutar contra ele para realizar a mudança pois tudo agora seria irreversível e digno de conservação Tão digno que agora os reconhecia como aliados enquanto os defensores da política conservadora anterior eram convidados a rever também suas posições Os que assim raciocinam estão persuadidos que as opiniões por mim manifestadas sobre a Caixa de Conversão e a valorização do café não podem explicar a minha convivência política com os homens públicos que tiveram a responsabilidade por essas grandes providências e as executaram É um desacerto de apreciação Instituições fundadas em lei à sombra delas foram criadas numerosas relações de direito fizeramse contratos levantaramse empresas industriais foram contraídos compromissos de várias espécies como sem grave ofensa ao critério dos que dissentiram com mágoa de algumas das indicações formuladas recear que ação deles possa no governo exercerse no sentido de não acatar uma situação geral daquela natureza6 Com isso tornouse líder nacional da adesão dos conservadores às novas realidades da regulação do mercado de café do câmbio baixo e da emissão de moeda em níveis que levassem em conta a expansão do mercado interno e testemunha do crescimento da indústria Em torno desse novo programa conservador formouse a chapa para a sucessão presidencial Dessa vez o mesmo Venceslau Brás que abandonara Afonso Pena abandonou o marechal Hermes e Pinheiro Machado Como estava se tornando tradição na República na forma de uma surpresa o vicepresidente ganhou o apoio do presidente por sua fidelidade que acabou no dia da sagração Venceslau Brás descartou os positivistas que ajudara a colocar no governo prometendo aos governadores que não haveria derrubadas nem apoio a intervenções ditatoriais nos estados A paz conservadora permitiu inclusive um progresso real inusitado no dia 1o de janeiro de 1916 foi promulgado o primeiro Código Civil brasileiro a lei destinada a marcar a regulação estatal das relações entre as pessoas e destas com o Estado Ele começaria a valer um ano depois tempo necessário para que juízes estudassem a nova lei e jogassem fora as centenárias versões das Ordenações do Reino e dos alvarás régios dos tempos coloniais que ainda funcionavam como leis válidas no Brasil Mas a mudança coincidiu com a total erradicação das forças políticas sensíveis a mudanças no papel do governo como aquelas trazidas pelo Programa de Valorização do Café O massacre pelos conservadores foi impiedoso Os jovens colaboradores de Afonso Pena tiveram suas carreiras cortadas Davi Campista foi mandado para a Noruega como embaixador o presidente da Câmara Carlos Peixoto e o líder parlamentar do governo James Darci foram excluídos da política ainda no governo Hermes da Fonseca A partir da exclusão de Francisco de Sales o governador que assinara o Convênio de Taubaté o Partido Republicano Mineiro passou a ser controlado com mão de ferro a partir do palácio de governo Em São Paulo Rodrigues Alves mostrou que o convívio com os criadores do Plano de Valorização não incluía sua transformação em autoridades na esteira da escolha de Venceslau Brás expulsouos do Partido Republicano Paulista interveio para transformar a Comissão Permanente em extensão do palácio e fez um sucessor pensando na própria candidatura a presidente Assim enquanto perdiam a capacidade de intervir na economia os conservadores usaram o monopólio político para se perpetuarem no governo central e se consolidarem nos governos estaduais a ditadura positivista gaúcha passava a ser a única nota destoante Com cada locomotor puxando de novo para um lado como nos tempos da decadência imperial os choques entre uma sociedade cada vez mais moderna e um governo aferrado ao arcaísmo foram se repetindo em escala ampliada Em 1917 eclodiu em São Paulo uma greve geral que mobilizou centenas de milhares de operários de milhares de empresas em torno de um conflito trabalhista e o governo paulista comportouse como agente conservador atarantado Os operários queriam mais salários os patrões queriam mais trabalho Começaram a aplainar suas diferenças com uma pauta de negociação Já o governo queria ordem e agiu com violência com a polícia matando um operário no Brás e prendendo lideranças que eram importantes para negociar A greve se expandiu e os tumultos aumentaram até que as partes privadas encontraram um caminho fazer as rodadas de negociação na sede de O Estado de S Paulo jornal cujas posições eram favoráveis aos grevistas e deixar o governo de fora da conversa Sem a presença do intermediário incômodo as diferenças se acertaram em um dia Mas o acordo foi muito difícil de ser implementado na parte que envolvia o governo As razões mais diretas podem ser encontradas no diário íntimo do governador Altino Arantes no qual ele registrou as seguintes definições Minhas impressões sobre o movimento grevista que acabáramos de assistir do manifesto mentiroso e francamente ameaçador que os jornais da manhã ou melhor que O Estado de S Paulo divulgara assinado por uma intragável Liga de Defesa Operária e de outros indivíduos veementes a conclusão a se tirar era que no fundo de toda essa injustificável agitação o que havia era nada mais nada menos que uma clamorosa exploração política contra o governo do Estado e contra a ordem Os inimigos eram aliás bem conhecidos e nesse caso não se ocultaram convenientemente O seu reduto estava no Estado de S Paulo e os seus antecedentes parlamentaristas monarquistas ou militaristas autorizam plenamente a convicção de se terem convertido à causa socialista ou mesmo anarquista7 Vendo as complexidades da sociedade capitalista pela óptica de uma antiquada noção de ordem o governador Altino Arantes misturou todos os agentes sociais capitalistas no mesmo balaio e deu ordens processar o jornal e os jornalistas prender ilegalmente operários e expulsar os estrangeiros do país aumentar o gasto de dinheiro público no jornal oficial do governo para fazer campanha contra os desordeiros Tinha a mesma visão das relações entre governantes e governados herdada das Ordenações e empregada no tratamento cruel dos marinheiros da Revolta da Chibata com leves nuances de atualização Na via inversa o mundo privado continuou se relacionando entre suas partes para transformar a sociedade a despeito do governo CAPÍTULO 62 19171930 tempos excruciantes II NO DIA 12 DE NOVEMBRO DE 1917 O ARGUTO JORNALISTA JÚLIO MESQUITA ESCOLHEU para tratar em sua coluna Boletim Semanal da Guerra um tema que parecia marginal a tomada do poder pelos bolcheviques na Rússia Mais que isso atribuiu importância decisiva ao evento Se o mundo atual fosse o mesmo de pouco antes da guerra diríamos sem hesitar que a Rússia caminha a passos gigantes para uma ditadura para o mando severo e merecido de um general ousado e feliz Mas como não podemos sondar os mistérios do vastíssimo tumulto em que se forja a transição para um mundo novo e diferente não dizemos nada Suceda o que suceder tanto na Rússia como em toda parte existe latente o que na Rússia explodiu o mundo que há de vir por mais imperfeito que seja há de ser melhor que este que arde e se consome ao fogo inextinguível da própria maldade que o criou1 A oscilação entre passado e futuro valia também para a avaliação do papel do líder da revolução Lênin Suponhamos que o caso de Lênin é o de uma infâmia comum Perderá ele sem demora todo o prestígio perante os fanáticos que até este trecho da jornada cegamente o seguiram Mas se este agitador a soldo do inimigo de repente se emancipa e se nos revela um sincero impulsionado por uma paixão alta e nobre Nesta hipótese que não é nenhum sonho o leitor percebe facilmente que de todas as nações em guerra a Alemanha há de ser a primeira vítima da arma de dois gumes que imprudentemente manejou2 É muito raro um jornalista se debruçar sobre um evento lateral de um conflito mundial e nele vislumbrar uma era nascendo in fieri mas foi o que ocorreu nesse caso a revolução de massas de fato se tornou parte crucial do mundo que resultou das fornalhas da guerra Chegara ao fim o longo século XIX durante o qual o Iluminismo havia sido a teoria mais prestigiosa de organização dos governos Desde meados do século XIX desenharase a alternativa socialista que fundada na constatação do custo humano do capitalismo exigia outra espécie de governo Nos esboços iniciais de Karl Marx a estatização dos meios de produção e uma ditadura comandada pelo proletariado seriam o caminho para melhorar radicalmente a vida social O herdeiro por ele designado e editor dos volumes finais de O capital publicados após a morte de Marx Karl Kautsky juntamente com Edward Bernstein conheceram os efeitos do sufrágio universal e dos partidos de massa e conceberam a alternativa socialdemocrata na qual caberia ao Parlamento colocar o Estado no papel de regulador das relações entre capital e trabalho mantendo mercado e democracia Essa opção vinha se tornando dominante em vários países da Europa sobretudo na Alemanha e nos países nórdicos A vitória de Lênin revirou o jogo A alternativa revolucionária atraiu a atenção da Europa pósconflito e passou a ser defendida por novos teóricos num momento em que os sobreviventes do prolongado conflito mundial tentavam encontrar caminhos para um futuro menos tétrico No Brasil do governo federal e dos governos estaduais apesar da sua participação no conflito ao lado dos vencedores a discussão teórica sobre novas formas de organizar o governo foi vista como algo remoto confuso e desprovido de sentido Os consolidados rituais de sagração eleitoral se mantiveram inalterados com Rodrigues Alves sendo eleito presidente em 1918 Mas ele faleceu antes de tomar posse e Rui Barbosa foi lançado como candidato Aceitou desde que não fosse candidato oficial de governos Como tal hipótese era inconcebível para a elite política uma candidatura foi providenciada a de Epitácio Pessoa Embora estivesse na Europa discutindo o tratado de paz em nome do país obteve apoio de todos os governadores e da quase totalidade do Parlamento Rui Barbosa lançouse então em sua segunda campanha civilista Dessa vez seria uma campanha exclusiva da sociedade contra as candidaturas gestadas e paridas no interior dos palácios de governo Marcou a sua posição a partir de duas conferências de relevância simbólica uma para o capital na Associação Comercial do Rio de Janeiro outra para o trabalho dirigindose a uma plateia de operários no Teatro Lírico O tema de ambas era comum o lugar do governo na sociedade Para os empresários Rui Barbosa propunha uma nova era nas relações deles com o governo No lugar daquelas vigentes marcadas pelos pressupostos muito arcaicos de tutela estatal ele pregava o fim da fusão perversa de negócios particulares não privados mas particulares mesmo como eram considerados no Antigo Regime e pelos conservadores com o dinheiro público nos moldes mercantilistas do favor As belezas do presidencialismo brasileiro escorraçaram dos augustos laboratórios da legislação republicana o talento a eloquência a verdade Baixaram de legislatura em legislatura naqueles recintos consagrados à caricatura da soberania nacional o nível da capacidade e do decoro da independência e da respeitabilidade poluíram a vida parlamentar de chagas inconfessáveis de segredos tenebrosos de máculas sem nome Na publicidade lado a lado com os grandes órgãos onde se guarda a herança do pudor abriamse as casas de mancebia política teúda e manteúda com o dinheiro público donde saem à praça tais quais messalinas transfiguradas no Carnaval em gênios anjos e deidades as mais feias culpas do governo engalanadas como as mais finas joias da palavra É a corrupção das consciências exercida não à penumbra das alcovas como os vícios pudendos pelos libertinos mas à luz da publicidade Todo mundo conhece nomeia e censura todos os que compram e os que vendem3 E foi claro não haveria virtude porque os votos não falariam a verdade da soberania do eleitor A convenção de fevereiro venceu e vencerá Vencerá e venceu como vence o mal quando o bem capitula Venceu e vencerá como vencendo estava a barbárie alemã Venceu e vencerá como não teria vencido e não haveria de vencer se o nojo contra ela na sociedade brasileira pudesse reanimar de repente as urnas eleitorais e arrancar delas o sentimento nacional num voto onde pela primeira vez nesse regime se reconhecesse a expressão da verdade4 As relações com o Estado também foram o foco da conferência feita para os operários Mas nesse caso tratavase em vez de diminuir de aumentar a área de atuação governamental o que exigia daquele senhor às vésperas de completar 70 anos uma revisão das próprias crenças a começar da noção de direitos individuais A concepção individualista dos direitos humanos tem evolvido rapidamente com os tremendos sucessos deste século para uma transformação incomensurável nas noções jurídicas do individualismo restringidas agora por uma extensão cada vez maior dos direitos sociais Já não se vê na sociedade um mero agregado ou justaposição de unidades individuais mas uma esfera orgânica em que a esfera do indivíduo tem por limites inevitáveis de todos os lados a coletividade5 Essa mudança o levava a mudar de campo Estou senhores com a democracia social Quando trabalha para distribuir com mais equanimidade a riqueza pública em obstar a que se concentrem nas mãos de poucos somas tão enormes de capitais que praticamente acabam por se tornar inutilizáveis e inversamente quando se ocupa em desenvolver o bemestar dos deserdados da fortuna os socialistas têm razão E não têm menos razão quando se trata de imprimir à distribuição de riquezas normas menos cruéis e lança os alicerces deste direito operário onde a liberdade absoluta dos contratos se atenua quando necessário seja para amparar a fraqueza dos necessitados contra a ganância dos opulentos6 E dizia com toda a franqueza como isso se faria Não há neste mundo quem embrulhe a questão social com a observância dos contratos livremente celebrados entre capital e trabalho Quando se fala em medidas reclamadas pela questão social o que se cogita não é em cumprir tais contratos mas em dar fora desses contratos acima deles sem embargo deles por intervenção da lei garantias direitos remédios que contratualmente o trabalho não conseguiria do capital7 Em seguida relacionava os pontos nos quais se daria a intervenção do Estado acima dos contratos casas de operários trabalho de menores jornada de trabalho previdência social higiene no trabalho licençamaternidade acidentes de trabalho situação especial do trabalho agrícola seguro de vida trabalho noturno Essa pauta teria futuro formando o núcleo da intervenção estatal nas relações de trabalho nas décadas seguintes Ao mesmo tempo ele criava um curioso argumento para não tomar o caminho do comunismo Nomes há que atuam como espantalhos Capitalismo é um deles Não acrediteis que todos os males do sistema econômico predominante no mundo venham de que os meios de produção estejam com detentores de capitais Os operários não melhorariam se em vez de obedecer a capitalistas obedecessem aos funcionários do Estado socializado8 Também nessa conferência Rui Barbosa analisou posições dos políticos adversários como fora o caso dos conservadores criticados na conferência para os empresários Dessa vez os adversários escolhidos foram os positivistas Quereis ver o que são meus acusadores Assombraivos em o apreciar no discurso do senador riograndense que tomou a si na baixa comédia da Convenção a tarefa de reduzir a pó a minha entrevista com o Correio do Povo de Porto Alegre sobre a revisão constitucional Nessa oração em que o espírito reacionário corre parelho com a insensibilidade à vida contemporânea nos declara peremptoriamente o situacionismo borgista que o Estado não pode intervir com suas leis nas discórdias entre o capital e o trabalho senão como garantia da ordem9 Empregando como critério a realidade do mundo transformado pela guerra que colocara no centro do pensamento sobre governos a questão das relações entre capital e trabalho Rui Barbosa fez uma campanha clara para a sociedade mas incompreensível para os conservadores e positivistas que monopolizavam o controle do governo federal Para ambos a atividade de governar equivalia essencialmente a manter a ordem pensada esta como o reconhecimento de uma hierarquia na qual o governo estivesse acima dos interesses e inversamente a sociedade abaixo do Estado Essa concepção vinda do Antigo Regime que mal e mal propiciara brechas para o desenvolvimento do capitalismo na sociedade agora se via às voltas com um mundo que pensava na regulação da riqueza Uma rápida mirada sobre a ação administrativa de Epitácio Pessoa ajuda a entender a combinação Desde o primeiro momento havia problemas que ele mesmo narrou Quando assumi o governo em 1919 era tal o estado do Tesouro que ao aproximarse o fim do primeiro mês verifiquei que não tínhamos com que pagar a tropa e o funcionalismo público Preso da maior angústia enviei um emissário ao governador de São Paulo Pedilhe 8 mil contos que ele enviou prontamente Foi o que nos valeu10 Em meio a esta penúria para realizar sua maior ideia a participação do governo federal em obras contra as secas nordestinas o ministro da Viação José Pires do Rio teve de ser criativo Embora seu ministério gastasse 53 do orçamento a margem de manobra era mínima quase tudo estava comprometido com a infraestrutura que sustentava a posição econômica do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul No primeiro caso o governo geria a Central do Brasil maior ferrovia do país a Estrada de Ferro de Teresópolis a Estrada de Ferro de Maricá a Estrada de Ferro Vitória a Minas cuja inauguração nas palavras do próprio ministro teve como resultado abrir à economia do maciço central de Minas as possibilidades decorrentes de um melhor escoadouro de suas produções para o porto do Rio de Janeiro cujo centro comercial muito mais que Vitória facilita a exportação da produção11 o próprio porto do Rio de Janeiro o canal de Macaé a Campos o Loide Brasileiro empresa de navegação com sede na capital e até serviços locais como as autarquias que cuidavam do abastecimento de água da capital12 No caso do Rio Grande do Sul estavam as ferrovias e o porto de Rio Grande Não se tratava de acidente pois a mesma concentração de gastos se repetia em outros ministérios especialmente os militares No todo a ação efetiva do governo federal era ainda a mesma dos tempos imperiais captar impostos no país e gastar de maneira concentrada em duas unidades da federação não à toa aquelas nas quais predominava o positivismo acentuadamente influente entre funcionários federais O ministro só obteve condições para os gastos no Nordeste quando transferiu ao governo estadual gaúcho o controle das ferrovias e dos portos E foi tudo o que o governo federal conseguiu fazer o que era nada perante as mudanças que aconteciam na sociedade Uma dessas mudanças torna ainda mais claro o contraste Na noite de 15 de fevereiro de 1922 abrindo a Semana de Arte Moderna Menotti Del Picchia leu o seguinte trecho Este é o estilo que esperam de nós os passadistas para enforcarnos um a um nos finos baraços dos assobios de suas vaias Para eles somos um bando de bolcheviques da estética correndo a 80 por hora no rumo da paranoia Somos o escândalo com duas pernas o cabotinismo organizado em escola Julgamnos uns cangaceiros da prosa do verso da escultura da pintura da música amotinados na jagunçada do Canudos literário da Pauliceia Desvairada Aos nossos olhos riscados pela velocidade dos bondes elétricos e dos aviões choca a visão das múmias eternizadas pela arte dos embalsamadores Cultivar o helenismo como força dinâmica de uma poética do século é como colocar o corpo seco embalsamado em bandas de um Ramsés ou de Amnésis para governar uma república democrática onde há fraudes eleitorais e greves anarquistas Aos discóbolos de Esparta opomos Friedenreich13 Essa imagem rompia com outra secular Canudos anarquistas e o craque do futebol Friedenreich faziam parte ao mesmo tempo do fundo do sertão e do mais moderno do mundo É desse ponto de vista que se avalia o modelo secular o modelo do Antigo Regime da Ordem como era vista pelos conservadores Até aquele momento essa era a visão da norma do caranguejo pela qual os moradores do Brasil apareciam como desviantes seja na versão acolhedora de Gregório de Matos seja no horror do conde de Assumar ou na ostra de Campos Sales No discurso modernista pelo contrário a autoridade do alto é definida pela presença de figuras mumificadas o governo central de corte colonial que não se liga com a sociedade vibrante nem ajuda a produzir riqueza As virtudes são fruto da metrópole onde signos europeus celestes e sertanejos se misturam na modernidade como misturada era a população brasileira há séculos esperando por esse momento Assim o modernismo criava a primeira imagem estética da nação como era vista a partir da sociedade Vinha daí o projeto de transformar a fala popular em norte da língua a arte popular em padrão da arte erudita o brasileiro em centro da nação derrubando o modelo secular que o enquadrava como desvio do padrão europeu de nobreza Para além das representações o mundo econômico moderno o mundo saído da Primeira Guerra Mundial continuava a existir no país ao largo do governo federal Na esfera estadual marcou presença em duas unidades da federação Uma delas foi São Paulo onde os conservadores deram início a uma versão própria de política estatal para o café A guerra dispersou em campos opostos os financiadores do estoque regulador A alta após o programa havia gerado um novo ciclo de produção inclusive no Brasil a partir de 1915 surgiram novas plantações e em 1918 a produção superava o consumo mundial O governo de São Paulo comprou o excedente por sua conta No ano seguinte uma geada monumental provocou a quebra na produção e um aumento de preços tão grande que todos os estoques inclusive o restante do café comprado em 1906 foram vendidos com altos lucros A euforia levou a mais plantações Logo ficou claro que havia mais capacidade de produzir que o consumo mundial a mesma situação da virada do século Pensando nos lucros de antes os governantes estaduais resolveram que era hora de comprar e estocar café eles mesmos eliminando do negócio o sócio atacadista Conseguiram dinheiro emprestado no exterior criaram um banco estatal para operar as finanças da operação e foram às compras com seus funcionários Parecia o mesmo negócio mas a nova posição do governo mudava muita coisa Na estrutura que antes havia se mostrado eficaz todo o café fora comprado estocado e vendido sem a intervenção direta do governo no mercado ou nas vendas quem comprava distribuía pelo mundo e estocava eram os agentes privados pois se tratava de uma aliança entre produtores e distribuidores limitandose o governo a atuar como intermediário aliado Agora se tratava de uma operação governamental para subordinar uns e outros ao dono estatal do estoque o que gerava um perfil estratégico bem diverso Já nas compras iniciais o governo privilegiou aliados políticos deixando claro aos produtores que o mercado nem sempre seria o critério para as aquisições Diante disso os atacadistas internacionais reconheceram que havia um novo e forte concorrente no mercado e em vez de confiar nele saíram atrás de outros fornecedores Os produtores estrangeiros por sua vez sentiramse tentados a plantar também uma vez que alguém lá fora sustentaria preços com dinheiro público Ao longo da década de 1920 essa atitude manteve o crescimento da economia local mas não a unanimidade política Em 1926 os dissidentes expulsos duas vezes do Partido Republicano Paulista por Rodrigues Alves formaram o Partido Democrático cujo programa era uma versão mais amena daquele proposto por Rui Barbosa O que o caracterizava porém era a qualidade da propaganda cartazes anúncios em jornais eventos e comícios pediam o voto secreto e mudanças na forma de administrar Encontraram aliados O Rio Grande do Sul foi a segunda unidade da federação a sofrer mudanças no governo estadual Até o início da década de 1920 a ditadura positivista fora uma mistura similar ao governo federal monopólio político violento e timidez administrativa Com resultados modestos na economia local cujo principal produto era a carne que vinha fazendo fortunas na Argentina e no Uruguai desde a virada do século quando houve o processo de industrialização passando da charqueada de mercado local e baixa qualidade para os frigoríficos A mistura de ditadura infraestrutura precária não houve melhoria da rede ferroviária local e predomínio dos charqueadores atrasou a mudança gaúcha até 1917 Enquanto ela não veio os pecuaristas vendiam as melhores reses e faziam as maiores compras nos países vizinhos deixando o gado de baixa qualidade para os charqueadores locais enquanto os ditadores positivistas reafirmavam a posição de que o governo não deveria intervir na economia Em consequência o estado registrou crescimento abaixo da média nacional inclusive na indústria A arrecadação do governo era relativamente pequena 20 mil contos anuais no período da Primeira Guerra contra 80 mil contos em São Paulo A administração das ferrovias e do porto a partir do início da década de 1920 melhorou drasticamente a posição do governo gaúcho A arrecadação sextuplicou até 1925 chegando a 120 mil contos Na esteira disso os positivistas acusaram o influxo de uma nova alternativa para o problema da realocação do papel do Estado Em 1922 Benito Mussolini deu um golpe e tomou o poder na Itália à frente do Partido Fascista cuja ideologia central pregava o Estado nacional como fonte do progresso e da superioridade do país lutando em meio a um cenário internacional marcado por disputas selvagens Desse modo a ação política visava a união nacional assim como a administração da luta de classes por meio da intervenção do Estado a fim de aumentar a produção capitalista O cimento da união seria a força e o próprio partido adquiria acentuadas características militares Influenciados por tais ideias os positivistas gaúchos sobretudo no Exército iniciaram seguidas tentativas de assalto armado ao poder Embora alegassem na propaganda que eram democratas diziam que as eleições falseavam a vontade do eleitor os métodos de administração eram obsoletos e havia incapacidade técnica nos governos eleitos queriam na verdade atualizar o velho ideal da ditadura positivista pregando agora um governo revolucionário no sentido que lhe dava Mussolini Socialista de origem o ditador italiano empregou o termo da linguagem bolchevique para justificar o projeto de substituir o sistema democráticorepresentativo por uma ditadura Tal versão caiu como uma luva para dar um novo sentido às ideias comtianas de afastar do poder os políticos substituindoos por técnicos como queriam os defensores da ditadura positivista O aumento da importância dos governos estaduais na economia local desse modo aconteceu apesar das crenças diversas Enquanto essas duas alternativas se desenvolviam com bases políticas e administrativas próprias em estados importantes o governo federal continuava na mesma toada administrativamente uma versão desidratada do que fora no Império politicamente um monopólio conservador garantido pela manipulação cada vez mais violenta das eleições A despeito disso a vida nacional seguia adiante a economia continuava avançando Ao longo da década de 1920 o crescimento manteve o mesmo ritmo elevado desde o Plano de Valorização do Café acima dos 7 anuais com a indústria crescendo a um ritmo de dois dígitos Mas em 1929 o impasse ganhou outra ordem O crescimento do comércio internacional que fazia girar a roda da dinâmica econômica transformouse em seu oposto de um momento para outro A crise foi violenta e rápida As exportações brasileiras desabaram de 94 milhões de libras esterlinas em 1929 para 65 milhões no ano seguinte Nesse período os conservadores no governo federal fizeram o que estavam acostumados a fazer ou seja tentaram evitar qualquer mudança o que acentuou ainda mais a crise Os positivistas do Rio Grande do Sul conseguiram o apoio dos democratas de São Paulo e até dos conservadores mineiros para remover o governo federal paralisado há décadas Uma nova era começava o que torna oportuno um balanço da era que se encerrava CAPÍTULO 63 18891930 um balanço PARA SE AQUILATAR AS TRANSFORMAÇÕES OCORRIDAS NO BRASIL ENTRE A PROCLAMAÇÃO da República e o momento em que Getúlio Vargas tomou o poder o melhor é recorrer aos números disponíveis apesar de toda a imprecisão que ainda guardam Para começar os relativos à população De 143 milhões de pessoas em 1890 passou a 305 milhões em 1920 crescendo 113 nessas três décadas1 Não houve Censo em 1930 o de 1940 apontou uma população de 41 milhões de pessoas com crescimento de 36 no intervalo de 20 anos bem menos acentuado que no primeiro intervalo Não é fácil calcular a distribuição dessa população entre a cidade e o campo Um modo mais intuitivo de avaliar essa distribuição é o exame da relação entre a população das 10 maiores cidades do país e a população total Em 1890 essa proporção era de 74 da população total Em 1920 chegava a 10 Em 1940 estava na casa de 11 Tanto quanto se pode inferir de dados tão precários o período entre 1889 e 1920 foi de considerável aumento da população das grandes cidades em relação ao restante do país e essa mudança evoluiu de maneira bem menos atenuada nas duas décadas seguintes Outra maneira de entender as mudanças é examinar a relação entre o número de operários e o de trabalhadores agrícolas Em 1900 o contingente dos primeiros representava 64 dos trabalhadores no campo em 1920 essa proporção havia dobrado chegando a 1282 Embora os dados não sejam comparáveis por virem de fontes diferentes os diversos censos industriais revelam clara tendência de crescimento da indústria O primeiro desses censos em 1907 listou 325 mil fábricas no país Aquele de 1912 relacionou nada menos de 94 mil estabelecimentos industriais O Censo oficial de 1920 registrou 133 mil indústrias No primeiro censo industrial o cálculo era de 151 mil operários em 1920 foram contabilizados 275 mil operários3 A tendência de crescimento fica clara E os dados relativos a setores ligados à indústria podem fornecer indicativos indiretos do crescimento Um deles é o do consumo de energia elétrica Em 1900 ainda nos primórdios do emprego dessa fonte de energia ele foi de 16 Gwh4 Dez anos depois em 1910 atingiu 245 Gwh Em 1920 saltou para 775 Gwh e o crescimento continuou no mesmo ritmo ascendente chegando a 1367 Gwh em 19305 Outro dado nacional é o da quantidade de objetos postados anualmente pelos Correios6 De 50 milhões de itens em 1890 passou para 278 milhões em 1900 depois atingiu 543 milhões em 1910 e 642 milhões em 1920 Chegou a 21 bilhões em 1929 volume que só seria superado em 1935 No período o maior investimento em infraestrutura ocorreu no setor ferroviário Em 1890 havia 99 mil quilômetros de linhas férreas no Brasil7 Em 1900 as linhas estendiamse por 153 mil quilômetros Em 1910 chegaram a 213 mil quilômetros em 1920 a 285 mil quilômetros Em 1930 atingiram 32 mil quilômetros mais do que o triplo do momento da mudança de regime Outro indicador de desempenho é a tonelagem das mercadorias transportadas pelas estradas de ferro Em 1904 foram 43 milhões de toneladas8 Em 1910 69 milhões Em 1920 165 milhões Em 1929 25 milhões seis vezes mais que no momento inicial mostrando que as cargas de mercadorias cresceram em volume bastante superior à quilometragem das linhas Por fim uma série importante para avaliar o crescimento da indústria é a importação de equipamentos industriais Nesse caso notamse oscilações de acordo com as conjunturas que não deixam de ser significativas Em 1889 ano da mudança de regime essas importações alcançaram o valor de 631 mil libras esterlinas9 Com a política de Rui Barbosa a elevação foi muito forte atingindo 138 milhão de libras em 1891 A partir do ano seguinte e até 1896 oscilaram em torno de 900 mil libras anuais Caíram para o patamar de 600 mil libras até 1899 Nos dois anos de maior recessão no governo Campos Sales as importações recuaram a 410 mil libras abaixo do nível de 1883 A retomada ocorreu no governo de Rodrigues Alves em 1905 atingiram 891 mil libras o mesmo nível de 1895 Em 1907 primeiro ano do Programa de Valorização do Café chegaram a 16 milhão de libras esterlinas e foram subindo até chegar a 29 milhões de libras esterlinas em 1913 A guerra afetou duramente as importações que retrocederam aos níveis do Império E mesmo após o fim do conflito os investimentos foram limitados girando em torno de 11 milhão de libras esterlinas até 1923 A partir daí cresceram com força atingindo de novo o patamar de 28 milhões de libras em 1929 Para efeito de comparação vale a pena registrar o desempenho do principal produto de exportação o café Em 1890 foram vendidas 51 milhões de sacas10 que renderam 178 milhões de libras esterlinas em 1900 as vendas atingiram 98 milhões de sacas enquanto a receita caiu para 144 milhões de libras Em 1910 o volume foi menor que aquele de dez anos atrás 97 milhões de sacas mas as receitas aumentaram para 267 milhões de libras Em 1920 foram exportadas 115 milhões de sacas no valor de 404 milhões de libras Em 1930 o país vendeu 15 milhões de sacas e obteve 414 milhões de libras Houve crescimento mas em ritmo bem menor que a indústria ou os transportes Para além da economia outro dado é relevante a alfabetização Os cálculos foram feitos por Alberto Carlos Almeida a partir dos dados oficiais em 1890 apenas 174 da população brasileira eram alfabetizados11 Em 1920 a taxa subiu para 288 alcançando 398 em 1940 E nesse caso devese levar em consideração que o crescimento da população em idade escolar atingiu nada menos que 315 ao ano no primeiro intervalo caindo para 15 ao ano no segundo o que torna ainda mais relevante o esforço realizado pelo regime republicano em seus anos iniciais Em termos absolutos o número de alfabetizados passou de 24 milhões em 1890 para 16 milhões em 1940 multiplicandose por 67 A escolha de dados mostrando volumes físicos ou valores em moeda forte todos retirados das estatísticas oficiais do país não é casual propiciando um vislumbre do aumento da produção e dos pontos de mudança social Isso é muito importante no caso da economia pois permite um entendimento sem que se recorra a valores em moeda nacional e sem o emprego dos índices de preços reajustados cuja imprecisão sustenta interpretações disparatadas sobre o período mesmo entre econometristas Assim se pode focar melhor naquilo que muitos estudos econométricos começam a revelar com clareza cada vez maior sobre o período e que as interpretações clássicas não permitiam alcançar o padrão de crescimento da economia brasileira mudou com a República Comparada com o passado imperial a economia deixou para trás a estagnação ao iniciar o desenvolvimento capitalista E comparado com o mundo o Brasil deixou a posição de atraso crônico mostrando uma economia não só vigorosa mas das que mais cresceu no período Os números assinalam a combinação de duas tendências dinâmicas Uma era a do comércio internacional perceptível no desempenho positivo do principal produto de exportação Outra e em ritmo ainda mais forte era a do crescimento do mercado interno sobretudo nos setores da indústria e de serviços como os transportes Ou seja as oportunidades oferecidas pelo crescimento do comércio internacional foram aproveitadas e desencadearam um surto de crescimento do mercado interno A indústria vendia para o sertão o sertão vendia para a cidade e essas trocas iam constituindo esse mercado interno impulsionadas pela capacidade de explorando o cenário internacional exportar café e importar equipamentos industriais Certamente ainda resta muito para tornar mais consistentes os números que poderiam detalhar melhor o processo em especial na primeira década republicana As discussões ainda estão longe de terminar Tal como os hábitos as visões ideológicas continuam arraigadas e sempre haverá quem não acredite nos indicativos numéricos preferindo se aferrar a crenças tradicionais e explicações prestigiosas A confusão pode durar sobretudo quando se entra na seara central deste livro o papel dos governos nesses resultados econômicos E a carência de dados tem um significado muito relevante no entendimento do papel dos governos no período A influência da noção de economia de subsistência adotada por todos os clássicos gerou uma interpretação que enfatizava demais o quadro externo do comércio internacional crescente como fonte única do dinamismo econômico E a isso se juntavam as afirmações sobre a inércia das relações produtivas internas pois afinal esse é o corolário da noção de economia de subsistência A partir daí se constrói uma interpretação na qual se concebe a ação governamental como incapaz de vencer a estagnação pressuposta na definição de subsistência e toda a política é vista pelo aspecto da persistência de grupos no poder A comprovação numérica de uma dinâmica interna ainda mais acelerada que a externa tem para a análise desse período uma decorrência similar à da época colonial mais do que buscar novas explicações tratase de recolocar o problema Em vez de ser uma continuidade do atraso cabe explicar a ruptura e o desenvolvimento capitalista que marcam o período associados à exportação agrícola O novo enfoque do problema muda também a forma de se entender o papel dos governos e nesse sentido é essencial o plural governos Tanto quanto a noção de economia de subsistência impede a visão da dinâmica efetiva do desenvolvimento no sertão uma secular elaboração imagética mostra a realidade brasileira como decorrente de uma dupla formação o governo central como parte ativa centro do dinamismo econômico da política civilizada e da esfera letrada e o sertão imobilizado na economia de subsistência bárbaro em política e analfabeto portanto incapaz de articular formalmente o seu lugar no mundo Em termos simbólicos essa imagem de Brasil é herança direta da visão de mundo corporativista portuguesa que mostrava o governo central como cabeça pensante e o restante da sociedade como corpo obediente com funções especializadas Até o Império essa grande metáfora derivada também das imagens de senhor e escravo fulcro da concepção de governo aristotélica inspirou a organização do sistema governamental e das instituições civis das leis que regiam as relações entre governados Toda a ação do governo central na colônia e no Império pautouse pela reiteração dessa distância O grande empenho nesse sentido foi a manutenção seja do analfabetismo generalizado seja do mercado como instituição marginal que relembrando a definição de frei Vicente do Salvador no século XVII acontecia nas casas mas não nas ruas A principal diferença na passagem para a vida de país independente fora de nuance Enquanto os governos coloniais fundavamse na crença de uma soberania monárquica única o governo imperial sustentouse admitindo a fórmula das duas soberanias mas forcejando o tempo todo para subordinar a soberania do eleitor Na via inversa o espaço da soberania popular aumentou em relação ao da colônia mas não o suficiente para impelir as instituições centrais da economia na direção do capitalismo ou da democracia se pensada a partir da progressiva implantação do voto universal e de eleições que obrigassem o governo à vontade do eleitor soberano O emprego da noção de economia de subsistência permitiu que essa grande imagem corporativadualista fosse aplicada também ao período republicano A falta de dados numéricos no campo da economia nesse momento ajudou a manter a essencial impressão de uma falta de dinamismo no sertão Havia base real a regressão no sistema eleitoral reforçava a continuidade do papel apenas ritual das eleições comandadas pelo governo central e a soma gerava o foco interpretativo da continuidade do atraso Mas a realidade numérica agora visível é de ruptura do padrão de desenvolvimento o que leva a buscar fatores de ruptura também no lugar do governo como promotor de desenvolvimento A primeira e mais evidente ruptura promovida pelo regime republicano foi a abolição do Poder Moderador a autoridade central arbitrária e irresponsável Com isso se promoveu muito rapidamente uma inversão fundamental entre costume e lei no que se refere à economia Durante a colônia e o Império o viver pelo mercado e o empreendedorismo foram costumes gerais mas praticados num ambiente legal que relegava tudo isso a um plano marginal Em parte o governo central governo federal no período republicano mudou radicalmente esse cenário já em seus primeiros dias Depois dos decretos de Rui Barbosa em 1890 o governo renunciou ao papel de interventor vigilante na vida econômica e criou as condições legais para que empresários pudessem atuar com liberdade No lugar de desviantes que fugiam da tutela da autoridade puderam agir sob a égide da lei Bastou esse ato para que os empresários se libertassem do confinamento de sua atividade à casa isto é a seus negócios pessoais e oferecessem os produtos de suas empresas agora pessoas jurídicas legalizadas no mercado agora uma instituição capaz de funcionar com apoio da lei A mudança fez toda a diferença para os industriais e financiadores do sistema de crédito que atuavam na direção do capitalismo A organização formal de uma empresa era necessária para juntar capital próprio ou por meio de crédito agora legal com os bancos privados se multiplicando tanto em empresas pessoais quanto em sociedades anônimas antes o capital de risco só podia ser reunido com autorização do governo Portanto a legislação que retirava o governo de seu papel tutelar ajudou muita gente a ir para o mercado legal Essa nova realidade explica as empresas os produtores mas fica ainda uma pergunta quem eram os novos compradores os consumidores Uma figura simbólica criada por Monteiro Lobato serve de exemplo Quando o Jeca Tatu piraquara do Paraíba e maravilhoso epítome de carne onde se resumem todos os característicos típicos da raça vem a falar com o fazendeiro cujas terras anda parasitando seu primeiro movimento após prender nos lábios um palhão de milho sacar o rolete de fumo e dar uma cusparada é sentarse jeitosamente sobre os calcanhares Nos mercados para onde leva a quitanda domingueira é de cócoras como um faquir de Brahmaputra que vigia o feixinho de palmito e o cacho de brejaúva O que ali costuma mercar vale todo um tratado Vive num corrupio de barganhas nas quais exercita uma astúcia nativa Pesa nos destinos econômicos do país com o polvilho azedo de que é fabricante tendo amealhado mais de 200 milréis em prata no fundo da arca12 A crônica define muita coisa sobre o sertanejo e seu duplo papel na economia do período De um lado vai ao mercado como consumidor maior da produção industrial de outro como empreendedor e também produtor independente que pesa nos destinos econômicos do país como fabricante Tudo isso sem deixar de ser um epítome da raça um sertanejo acabado Jeca Tatu é a versão da Primeira República dos milhões de sertanejos que eram produtores independentes donos dos meios de produção e das mercadorias responsáveis eles mesmos pela comercialização Essa imagem microscópica de um tipo geral facilita o entendimento de uma diferença Nos termos das análises fundadas na noção de economia de subsistência Jeca Tatu poderia ser visto como mais uma prova da falta de dinâmica da vida sertaneja mais um exemplo de analfabeto que tem a astúcia nativa como única arma de sobrevivência Monteiro Lobato no entanto cria um personagem que apesar de sertanejo é não apenas fabricante como também pessoa capaz de acumular dinheiro depois das trocas no mercado ou seja como empresário que lucra com sua produção Enfim o mercado não lhe era estranho Novidade republicana se há na descrição é que não era mais um mercado que corria apenas nas casas Jeca Tatu já vende no mercado público não entrega polvilho na venda e recebe produtos fiados como fora obrigatório por séculos Nesses tempos anteriores por mais que barganhasse seria difícil para Jeca Tatu terminar o domingo levando milréis para acumular no fundo da arca Aí está a segunda mudança promovida pelo governo federal republicano imprimir dinheiro de papel em quantidade suficiente para que até as trocas no sertão se servissem dele para acumular saldos Jeca Tatu tinha astúcia nativa suficiente para guardar o resultado de seu trabalho em dinheiro em vez de se manter como cliente cativo de um comerciante capaz de fazer fiado Assim se percebe que industriais e sertanejos melhoravam ambos de vida quando o mercado se desenvolvia e que ambos apoiassem o progresso republicano Também se deduz disso que os intermediários comerciantes talvez não apreciassem tanto essas mudanças trazidas pela indústria e pelo dinheiro já que perdiam o controle de clientes pelas cadeias de fiado e com elas boas oportunidades de lucros Por aí se vê também que o motor do crescimento da economia foram as trocas no setor privado entre industriais e produtores independentes muito mais relevantes para o crescimento nesse período que os trabalhadores assalariados ainda que estes tivessem um peso crescente Esse simples exemplo torna compreensível a maioria dos números gerais do período sem apelar para a noção de economia de subsistência Industriais levavam produtos ao mercado assim como os Jecas Tatu Ambos realizavam trocas com resultados satisfatórios que se refletiam em crescimento Enfim eles compunham agora que a lei incentivava empresas um setor privado pujante Eram complementares no desenvolvimento agora que as instituições criadas com o afastamento da tutela permitiam essa relação Industriais queriam mercado e o encontraram em Jecas Tatu que há séculos sabiam lidar com os estímulos do mercado para conduzir suas vidas Mas restava uma diferença relevante entre as partes os industriais ganhavam com a formalidade e a possibilidade de trabalhar dentro da lei o Jeca Tatu dependia ainda da astúcia nativa daquilo que aprendera no costume da palavra falada A igualdade real só era possível com algo que apenas quem estava fora do sertão podia fornecer letras e direitos Um século e meio de governos iluministas no Ocidente havia mostrado que o princípio da igualdade perante a lei que começara como ideia constitucional acarretava necessidades que iam além da formalidade Foi parte da política desses governos de um lado a universalização da escrita por meio de escolas e de outro a dos direitos políticos com avanço progressivo rumo ao sufrágio universal que em alguns países ia se completando com o voto feminino Tais políticas permitiam que o Estado processasse os interesses da sociedade como um todo o que exigia que se organizasse para atuar em realidades cada vez mais complexas E no período do pósguerra a oferta dessa capacidade operacional se convertera na principal fonte de disputas políticas no Ocidente Essa decorrência institucional do capitalismo que os sertanejos estavam impedidos de construir por si mesmos não aconteceu pela ação dos governos republicanos O país manteve o retrocesso eleitoral do Império com a exclusão do voto dos analfabetos e foi lentíssimo na criação de leis civis adequadas à realidade contratual da ação econômica da população sertaneja Apenas na escolarização houve avanços que não se deram por causa do governo federal Ainda que dentro desses limites ocorreram outras mudanças A ruptura republicana gerou mais do que uma nova institucionalização econômica favorável ao desenvolvimento Houve também ainda nos tempos do Governo Provisório reformas que reduziram outros poderes de intervenção a mais importante das quais foi a privatização na esfera religiosa com o fim do Padroado Com isso diminuiu muito a capacidade de intervenção administrativa da esfera governamental A Constituição de 1891 fez o resto nos moldes iluministas inverteu as posições entre lei e costume retirando do cenário legal o soberano arbitrário e relegando ao costume a ação de seus muitos defensores que passaram a ir infiltrando seu modo de ver no cenário institucional Outra ruptura se deu na amplitude da esfera intermediária de governo Desde a época colonial as capitanias perderam poderes e o Império preservou a subordinação das províncias A transformação dos estados em governos formalmente soberanos apesar de todas as idas e vindas logo ganhou substância própria Todas as funções modernas de Estado presentes no período vieram dos governos locais Foram estes os únicos a criar redes de prestação de serviços para os cidadãos escolas segurança pública saneamento saúde Essas redes de serviços em grau variado permitiram uma nova forma de diálogo entre governantes e governados Os governos estaduais passaram a funcionar como processadores dos interesses internos e como prestadores de serviços com pretensão universal Com isso afinal os moradores do sertão passaram a contar com o apoio de algo mais do que a autoridade local democrática que eles mesmos compunham No sentido inverso houve o processamento da pressão vinda da sociedade ainda que dentro dos estreitos moldes políticos das franquias eleitorais e das eleições rituais Talvez o mais conspícuo exemplo de mudança construída nesse formato seja aquele mostrado na implantação do Plano de Valorização do Café Vale notar que toda a sofisticada tentativa de uma política governamental visando acelerar o crescimento econômico foi concebida no âmbito privado e elaborada inicialmente na sociedade Passou a interessar os governos de baixo para cima câmaras municipais assembleias estaduais governos estaduais e começou a ser implantada na esfera federal por intermédio do Parlamento Em todo o processo o governo federal fez oposição cerrada enquanto pôde Mesmo depois de tudo aprovado seus únicos atos efetivos foram um aval e um empréstimo logo liquidado ou seja pouco mais do que apoio institucional Em 1910 o ministro fiel ao anticapitalismo dos conservadores imperiais ainda gastou todas as reservas internacionais do país para tentar reverter as mudanças O Plano de Valorização do Café sobreviveu apesar de tudo O Parlamento foi o centro da articulação do acordo nacional que permitiu a sua implementação centrado menos no apoio aos exportadores de café do que no aumento das rendas trazido pelo câmbio baixo algo que também interessava aos industriais como proteção do mercado e aos sertanejos como atividade econômica Os governos dos estados nos quais se plantava café contribuíram ainda para o enquadramento legal além de cobrarem impostos No final a operação acabou recaindo sobre o governo de São Paulo que não só auferiu lucros extraordinários como soube apoiar a transferência dos ganhos dos cafeicultores para o financiamento por meio do setor privado de crédito de uma forte expansão do setor industrial Dali a lição se espraiou aos governos estaduais que passaram a ver com outros olhos seu papel na sociedade exatamente a exigência do pósguerra Falta muito para ir além de sugestões como essas e se chegar a explicações mas os indícios apontam para a natureza do fenômeno desse período a ser explicado muito mais desenvolvimento com menos poder central Para concluir com números vale notar que o tamanho do setor público em relação ao total da economia não mudou com as novas funções das esferas descentralizadas A proporção calculada por econometristas para a primeira década do século se manteve a soma dos tributos recolhidos por todas as instâncias de governo no final da década de 1920 girava em torno dos mesmos 6 do PIB ou inversamente o setor privado ficava com 94 do valor da produção nacional Em termos de distribuição dos recursos entre as esferas de governo para relembrar a União ficava com cerca de 35 do PIB os estados com 2 e os municípios com 05 Sendo assim parece pouco razoável pensar na radical transformação republicana a partir da secular imagem do caranguejo ou de suas atualizações dualistas Mas o mesmo não vale para o período seguinte no qual estas ganharam nova substância PETROBRÁS PETRÓLEO BRASILEIRO SA 100000 CR OBRIGAÇÃO AO PORTADOR IV 19302017 A era do muro uma centralização dois resultados O emprego do governo central como diane nas transacções externas permite um crescimento maior que a mídia internacional em tempos de economia fechada mas sua manutenção leva a resultados pífios na era global ORDEM E PROGRESSO CAPÍTULO 64 Centralização com sentido O DECRETO INICIAL DAQUELES QUE CHEGARAM AO PODER EM 1930 TRAZIA diferenças e continuidades importantes em relação ao primeiro decreto republicano de 1889 A principal diferença estava na reorganização dos poderes a começar da assinatura Quem decretava era o chefe do governo provisório portanto o depositário unipessoal do poder na terminologia de Campos Sales As instituições políticas foram organizadas em torno desse comando pessoal O decreto abolia os poderes legislativos em todas as instâncias desde as câmaras municipais até o Congresso nacional Também abolia toda a autonomia local os estados passariam a ser dirigidos por interventores nomeados pelo chefe do governo provisório e os municípios por interventores designados pelos interventores estaduais A única obrigação desses governantes com a sociedade seria a de dar publicidade na amplitude que as condições locais permitam de seus gastos O único direito da sociedade para limitar atos do governo seria através de recurso para o chefe do governo provisório Era o figurino de sonhos da ditadura positivista com todo o poder de executar e legislar concentrado na figura do ditador que iria reinar governar e administrar Nem mesmo o imperador que acumulara maiores poderes discricionários D Pedro I antes da abertura do Parlamento se comparava com isso afinal ele governou com câmaras e poderes municipais autônomos No capítulo das continuidades a lista era extensa O decreto reconhecia a validade da Constituição de 1891 em todos os pontos que não contrastassem com o decreto continuavam a valer a forma federativa de organização do país todas as leis estaduais e municipais toda a dívida pública inclusive de estados e municípios todos os direitos civis e todos os contratos privados Além disso o decreto mencionava explicitamente que os poderes concentrados no chefe do governo provisório só seriam válidos até que fosse instalada uma Assembleia Constituinte embora não marcasse data para sua convocação O chefe do governo provisório chamavase Getúlio Dorneles Vargas e tinha 48 anos de idade no momento em que se revestiu de todos esses poderes Filho de um militante positivista e agente político do governo castilhista na cidade gaúcha de São Borja toda sua formação foi marcada por essa filosofia Estreou na vida pública como redator de O Debate órgão financiado montado e mantido pela ditadura local segundo o seu biógrafo Lira Neto Teve oficinas compradas e reativadas para rodar o novo jornal com apoio financeiro de dirigentes do Partido Republicano e chancela política de Borges de Medeiros e Pinheiro Machado O próprio Borges costumava descer pessoalmente à redação de O Debate situada a poucas centenas de metros do palácio para conferir os artigos de fundo e certificarse que as diatribes seriam publicadas com a virulência desejada1A filosofia necessária para sustentar as diatribes era simples e assim resumida num editorial do jornal Para manter o equilíbrio na sociedade assegurandolhe a tranquilidade a paz e harmonia tornase necessário o estabelecimento de um poder superior que lhe dite normas e as faça seguir Daí a indispensável existência do Estado conduzido por governos fortes e capazes que guiem os destinos coletivos2 Tais ideias estavam de acordo com a crença comtiana do grupo positivista segundo a qual a democracia fundavase na ideia metafísica de representação a ser superada pela ciência Por isso a ditadura baseada na ciência seria uma forma de governo na qual a técnica tomaria o lugar da política com os positivistas monopolizando o exercício do poder Mas a carreira política de Vargas começou numa época de mudança do governo construído segundo tal ideal uma de suas primeiras tarefas como adestrado servidor do regime foi defender na Assembleia estadual a reviravolta econômica pela qual passava a ditadura local depois de três décadas pregando a limitação do governo estadual gaúcho a umas poucas funções além da reserva de máximo espaço para a iniciativa privada Como parte dessa filosofia Borges de Medeiros sempre dizia que os investimentos em infraestrutura deveriam ser feitos pela União o conceito que era repetido por todos os partidários Mudou de ideia quando o governo gaúcho passou a cuidar de portos e ferrovias e o líder na Assembleia não demorou a difundir a nova diretriz Encarregado de criar a argumentação para renegar o passado Getúlio Vargas acabou se transformando em defensor efetivo de que o governo desempenhasse outro papel na economia Embora formado nos rigores do autoritarismo positivista Getúlio Vargas foi bem além da escola Eleito deputado federal em 1923 apanhou bastante quando tentou defender em plenário o regime ditatorial de seu estado mas compensou a desvantagem com a atuação nos bastidores a favor do regime e com a atenção que dedicou à imprensa escrita e aos novos meios de comunicação Alcançou destaque suficiente para ser escolhido para o cargo de ministro da Fazenda de Washington Luís se tornando um dos raríssimos gaúchos a chegar a esse nível de mando Deixou o posto para substituir Borges de Medeiros que deixava o poder após duas décadas à frente do governo estadual Aproveitou a posse para marcar um novo estilo convidou centenas de políticos de todo o país montou uma grande festa pública e mandou filmar tudo e exibir as cenas para as multidões que frequentavam as sessões de cinema No governo do estado tratou com civilidade as oposições deixando de lado o tradicional método da bala A contratação de um grande empréstimo externo numa ditadura que quase não prestava conta de seus gastos permitiulhe acumular muitos meios partidários que incluíam armas jornais favoráveis e agentes políticos E empregou esses meios para se tornar candidato de uma coligação que tinha o apoio dos governos de Minas Gerais e da Paraíba competindo contra a chapa indicada pelo presidente da República e por todos os demais estados Deulhe o nome de Aliança Liberal e um programa de três pontos anistia aos perseguidos políticos voto secreto e mudança nos métodos políticos Era quase o mesmo programa de Rui Barbosa em 1908 mas agora endossado por uma pessoa que nunca acreditara nele O resultado eleitoral foi igual ao de todas as campanhas disputadas desde os tempos do Império perdeu o candidato sem apoio do alto Vargas reagiu como todos os perdedores desde a primeira campanha de Rui Barbosa queixandose da falsificação da vontade popular pela compressão vinda do governo Mas a campanha coincidiu com um imenso abalo na economia mundial A crise financeira eclodira no final de outubro de 1929 quando se formavam as chapas para a disputa presidencial Acelerouse no primeiro trimestre do ano seguinte época em que se realizaram as eleições Depois destas o governo federal continuou ignorando solenemente o problema E ignorou porque seu programa tinha como foco o secular objetivo econômico conservador garantir um valor fixo da moeda com base no padrãoouro Por conta disso recusouse a mexer na política de câmbio e a lidar com a política do café Enquanto isso o mundo desabava As exportações brasileiras caíram de 948 para 366 milhões de libras entre 1928 e o final de 1932 A principal fonte de receita do governo o imposto de exportação teve uma queda de 56 entre 1929 e 1931 O comércio internacional que sustentava o crescimento de todas as economias do mundo desde o início do século XIX sofreu derrocada ainda maior caindo a um quarto do que era em 1929 em apenas quatro anos Levou apenas sete meses para que a inércia danosa do governo federal em meio a toda essa devastação transformasse o candidato derrotado no ditador que acumulava todo o poder Explorando a paralisia do presidente Getúlio Vargas reuniu apoio para um golpe Ele veio do Partido Democrático de São Paulo de políticos tradicionais de vários matizes e de um grupo de exmilitares conhecidos como tenentes Definiamse como revolucionários mas pelo termo entendiam apenas o apreço a métodos técnicos de comando e ao afastamento dos políticos tradicionais a receita tradicional positivista revisada após o êxito dos fascistas italianos Com apoio de tais grupos Getúlio Vargas chegou ao poder Seu primeiro foco não foi ideológico mas pragmático de alguém muito preocupado com a crise Depois de fracassos iniciais escolheu para o Ministério da Fazenda um advogado que praticamente nada sabia de economia mas que tinha qualidades muito apreciadas até mesmo por um economista de forte viés teórico como Mario Henrique Simonsen Oswaldo Aranha percebeu em 1931 que cabe ao governo articular os mercados em época de crise Se isso é intervenção danese o laissez faire Pôs em prática entre 1931 e 1934 uma política econômica altamente intervencionista e nacionalista mas que era recomendável no quadro da Grande Depressão3 Essa política teve dois pilares fundamentais um relacionado aos fluxos financeiros e o outro aos fluxos comerciais da economia Na primeira vertente não havia muita opção as reservas brasileiras caíram de 31 milhões de libras esterlinas a quase zero em apenas dois anos durante os quais o país tentou manter a condição de pagador sempre adimplente dos débitos externos Dada a realidade Oswaldo Aranha fez o que podia estatizou as operações de câmbio tornando o Banco do Brasil o único agente autorizado a comprar e vender divisas Com isso transferiu ao governo federal poderes secularmente exercidos por agentes privados O Estado se tornava o único agente e portanto capaz de controlar os fluxos financeiros externos da nação Esse poder foi empregado segundo critérios que não eram os do mercado pagava o que podia com o dinheiro de que dispunha inclusive no que se refere a mercadorias Armado de tais poderes o ministro passou a lidar com segunda vertente de intervenção relativa aos fluxos comerciais E os grandes atos nessa seara se fizeram no mercado de café O problema não era de quantidade o volume das exportações do produto pouco caiu entre 1928 e 1932 de 138 milhões de sacas para 119 milhões Mas o preço despencou arrastando consigo as divisas recebidas 679 milhões de libras esterlinas em 1928 e apenas 262 milhões quatro anos depois A queda no mercado presente deuse em circunstâncias delicadas para o mercado futuro mais precisamente na política de estoques A crise aconteceu num momento de transição de ciclos do mercado semelhante ao da primeira década do século quando se fez o Plano de Valorização do Café Em 1906 o Brasil produzira 133 mais café do que o consumo mundial excedente usado para formar o estoque regulador que estabilizaria o mercado nos anos seguintes4 A partir da compra do Plano de Valorização a proporção entre oferta brasileira e consumo foi caindo devido à proibição de novas plantações chegando a um mínimo de 915 em 1916 Essa relação caiu porque o número de cafeeiros em produção cresceu apenas 5 entre 1900 e 1915 com a produção se tornando insuficiente para acompanhar o crescimento do consumo5 Após o final da Primeira Guerra com a previsão de um novo ciclo de crescimento foram sendo autorizadas novas plantações Assim o número de cafeeiros cresceu 56 entre 1915 e 1929 e quase 30 desse crescimento deviase a plantações posteriores a 1923 quando ficou claro que a produção instalada seria insuficiente para abastecer um mercado em expansão Apenas em 1927 quando os novos pés entraram em produção a oferta brasileira passou a superar o consumo mundial Justamente em 1929 a proporção entre oferta brasileira e o consumo mundial voltou a um nível semelhante ao de 1906 ou seja a 151 do consumo Era hora de formar o estoque para garantir a estabilização do mercado nas décadas seguintes nas quais os novos cafeeiros produziriam Mas dessa vez seria diferente Houve uma violenta queda do consumo contrariando a tendência de crescimento lento e constante Essa tendência mesclada com aumento aos saltos da produção sustentava todas as hipóteses de estabilização a longo prazo do mercado por meio de estoques reguladores Todavia devido à queda no consumo já em 1930 os estoques passaram a representar mais de dois anos da demanda global Criouse assim um problema triplo excesso de produção queda de preços e do consumo desequilíbrio completo na gestão a longo prazo dos estoques Oswaldo Aranha atacou os três problemas de uma vez colocou o governo como comprador da produção presente comprador dos estoques físicos passados de posse do governo paulista arcando com as dívidas e vendedor de café para o exterior Depois de séculos de inação o governo central entrava diretamente no apoio à produção nacional Para todos os envolvidos era pegar ou largar arcando com prejuízos Todos pegaram Os cafeicultores passaram a receber menos pelo produto e a pagar mais impostos ao governo mas tinham para quem vender O detentor do estoque o governo paulista teve de entregar o produto por menos que lhe custara mas entregou junto os títulos de dívida Os compradores estrangeiros tiveram de comprar do único vendedor que restara no mercado o governo federal Controlando os movimentos de divisas e do mercado físico de café Oswaldo Aranha soube aproveitar a passagem para suas mãos das dívidas com a formação do estoque de café Como se tornou o único devedor relevante do país o governo federal podia jogar com a situação Em meio a moratórias no mundo inteiro Aranha conseguiu reescalonar com desconto toda a dívida externa brasileira pagando apenas 33 do valor dos débitos anteriores6 Desse modo converteu um desequilíbrio de 28 milhões de libras esterlinas nas contas externas brasileiras comércio mais capital em equilíbrio já no ano de 1932 Graças às medidas extremas de intervenção do governo federal o Brasil conseguiu equilibrar sua situação externa num período muito curto bem antes de muitos países inclusive os Estados Unidos Na frente interna a disposição para comprar café com moeda nacional permitiu que a renda dos produtores em moeda nacional caísse bem menos do que aconteceria se a solução se desse a preço de mercado E a compra foi possível porque se fez apenas com moeda nacional Além do equilíbrio a política de intervenção teve outro poderoso efeito interno O Produto Interno Bruto caíra 21 em 1930 no ano seguinte enquanto se operavam as primeiras intervenções a queda foi de 33 A partir de 1932 antes ainda do total equacionamento das intervenções a economia retomou o crescimento puxado pelo mercado interno uma vez que esse foi o ano de maior queda na receita de exportações E como a redução fora maior na agricultura que na indústria em 1933 este setor superou a produção rural e se tornou o mais importante da economia Mas vale notar que isso aconteceu num ano em que a produção industrial atingiu um nível levemente superior ao de 1928 ou seja antes da crise o setor industrial já era muito relevante na economia A partir de 1933 o crescimento industrial manteve um ritmo de incremento mais forte que os outros setores retomando o padrão que com exceção da recessão conservadora da virada do século vinha desde a proclamação da República As intervenções do governo federal foram fundamentais para manter o modelo de industrialização anterior fundado na troca de produtos agrícolas no mercado externo por equipamentos industriais e nas trocas internas entre o sertão e as cidades que formavam o mercado interno O processo antes realizado como aproveitamento de oportunidades no comércio internacional e políticas cambiais ganhou outra forma Controlando com mão de ferro o destino das divisas o governo federal conseguiu fazer com que as compras de equipamentos industriais crescessem a partir de 1933 mesmo em circunstâncias de importações restritas O ritmo desse crescimento foi o possível o valor dos equipamentos industriais importados em 1939 ainda era inferior ao dos anos posteriores ao Plano de Valorização do Café e o recorde de 1913 não chegou a ser quebrado em todo o período7 Mas a obra estava feita o governo central passara a desempenhar um papel completamente distinto Durante séculos fora pouco mais que um posto aduaneiro mais preocupado com as próprias receitas do que com qualquer outra coisa Nesse figurino houve longos períodos de progresso tanto nos tempos coloniais como nas primeiras décadas republicanas Tais surtos ocorreram basicamente por causa da inação da incapacidade do governo central de isolar as relações entre o Brasil e o mundo de modo que empresários podiam se aproveitar das brechas para crescer Nos primeiros séculos governando a si mesmos e estabelecendo alianças além de realizar negócios com os vizinhos ou a África na República encontrando parceiros no exterior para sustentar o mercado de café Apenas no período do Império graças à confluência de concentração de poder dívida externa e contração monetária o governo central funcionara efetivamente como um muro um isolante entre o mercado interno e a situação internacional uma barreira aos avanços da época que impedia a chegada do capitalismo e o crescimento da economia No quadro criado com a crise de 1929 a pronta resposta do governo provisório recriou o muro Só que dessa vez era um muro muito eficaz em meio à devastação do comércio internacional ele impediu que a queda geral se transferisse para o mercado interno criando as condições para que o governo federal logo retomasse a política ativa de desenvolvimento industrial baseada no controle do câmbio e das licenças de importação Tal mudança fez diferença no cenário interno Com ela o governo federal tornouse uma instância capaz de influenciar positivamente o desenvolvimento da economia E também um governo atento a outras mudanças A Grande Depressão alterou a dinâmica social do trabalho como na prática haviam se interrompido os fluxos migratórios toda a mão de obra para a indústria e os serviços passou a ser buscada no mercado interno Começou então a fase de migração maciça de nordestinos para o Sudeste em especial para São Paulo estado que continuou aumentando sua participação na economia nacional no mesmo ritmo de antes pois ali seguia vigorando a lógica de crescimento iniciada com o Plano de Valorização do Café e fundada na possibilidade de importar máquinas industriais a partir dos saldos do café Desse modo o crescimento da economia começou a acontecer numa combinação até então inédita na história brasileira um cenário internacional de retração do comércio e um cenário local de dinamismo Dessa vez o muro entre o país e o mundo assegurava taxas de crescimento do mercado interno bem maiores que as do mercado mundial Apesar da boa relação com as demais economias essas taxas de crescimento eram inferiores às do período anterior e se tornaram ainda menores a partir do início da Segunda Guerra em 1939 CAPÍTULO 65 A sonhada ditadura AO REDOR DO MUNDO A ADAPTAÇÃO DAS ECONOMIAS À DESAGREGAÇÃO DO COMÉRCIO internacional se fez com base na ação dos Estados nacionais e deu origem a uma série de nacionalismos Na União Soviética a ditadura de Stálin foi justificada com a tese do socialismo num só país a revolução mundial deixava de ser o principal objetivo dos socialistas que se concentrariam na manutenção do governo nacional já instalado Como a influência de Moscou era grande os partidos comunistas de todo o mundo acabaram por se tornar agências de relações exteriores desse governo nacional cujo inimigo maior seriam os adeptos do socialfascismo assim definido por Stálin O fascismo é a organização de combate da burguesia que se apoia no auxílio ativo da socialdemocracia A socialdemocracia é objetivamente a ala moderada do fascismo1 Disso decorreu todo um conjunto de ataques à democracia assim como o fortalecimento do fascismo Sob influência de Moscou o Partido Comunista alemão adotou como prioridade a denúncia da socialdemocracia e a pregação da iminência da revolução Um dos líderes da Revolução russa Trótski expulso do partido e exilado por se opor à ideia do socialismo num só país era um dos poucos que via as coisas de modo diferente Passou a defender uma frente única de comunistas e socialdemocratas na Alemanha com o seguinte argumento expresso em novembro de 1931 No fundo da situação mundial que está longe de ser pacífica a situação da Alemanha se destaca com nitidez Os antagonismos políticos atingiram neste país uma gravidade inaudita Está chegando o momento em que a situação tem que se transformar em revolucionária ou contrarrevolucionária A tomada do poder pelos nacionalsocialistas significará a exterminação da elite do proletariado alemão A obra infernal do fascismo italiano parecerá quase uma experiência humanitária em comparação do que poderia fazer o nacionalsocialismo alemão2 O assalto à democracia a partir de dois extremos que se definiam como revolucionários de um lado os comunistas soviéticos e de outro os fascistas italianos e os nacionalsocialistas alemães marcou profundamente a situação mundial especialmente a partir da tomada do poder na Alemanha pelos nacionalsocialistas Nesse período mesmo os países que preservaram a democracia como sistema de governo viram tolhidas as possibilidades de tal sistema enfrentar com êxito a crise econômica Foi o que ocorreu nos Estados Unidos e na Inglaterra as economias ficaram em recessão até que acabaram encontrando um caminho nas ideias de Keynes que defendia o aumento dos gastos públicos para compensar em parte os efeitos da depressão econômica No entanto tais ideias só se tornaram a base da política dos Estados Unidos com o New Deal do presidente Roosevelt a partir de 1933 A recuperação foi lenta o que foi interpretado muitas vezes como falência do modelo político democrático Getúlio Vargas estava entre aqueles que nesses tempos turbulentos pensavam estar inaugurando uma nova era pósdemocrática com seu regime e o rápido êxito de sua política de intervenção na economia contribuiu para reforçar suas concepções autocráticas herdadas da formação positivista O sucesso econômico o levou a ampliar o escopo das ideias positivistas Para tanto fez largo uso da obra de Oliveira Viana na qual encontrou os argumentos que permitiram recriar no ambiente republicano positivista no qual se formara uma vertente que se somava aos ideais monárquicos de centralização por meio de um Estado interventor e dominado por uma elite que contrastaria com a sociedade O cerne do argumento fora explicitado por Oliveira Viana na obra Evolução do povo brasileiro publicada em 1923 A obra que os nossos estadistas da Independência e do Império empreendem é verdadeiramente ciclópica Eles são forçados a renovar tudo tanto os métodos da política como o aparelho de governo do período colonial e o fazem com capacidade admirável E a sua atuação durante os quase setenta anos do Império pode ser resumida numa frase sintética uma luta heroica e contínua em prol da unidade nacional contra a formidável ação dispersiva dos fatores geográficos O mecanismo centralizador que constroem encheria de surpresa os velhos políticos coloniais É uma edificação possante sólida maciça magnificamente estruturada constringindo rijamente nas suas malhas resistentes todos os centros provinciais e todos os nódulos de atividade política do país nada escapa nem o mais remoto povoado do interior à sua compressão poderosa3 O autor tornouse ídolo de Vargas e foi convidado para o governo para transformar a ideia em objetivo Porém sendo Vargas um político bastante realista no princípio não deixou que as convicções autoritárias turvassem a sua capacidade de tomar decisões Embora fosse de fato um ditador nem por isso a concentração de poderes lhe permitia agir tão bem e tão depressa em política como agira na área econômica onde praticamente não houve oposição aos atos de Oswaldo Aranha Na área política a organização institucional do governo provisório havia de um lado ampliado a margem de ação discricionária do Executivo mas de outro reduzira de maneira drástica os instrumentos para equilibrar a diversidade de posições na sociedade Fechado o Parlamento canceladas as eleições anulados os poderes locais num país de extensão gigantesca a margem para acomodações de posições diversas ainda que não divergentes se tornara mínima O único meio que restara para essa finalidade eram as nomeações para os cargos ministeriais no nível federal e dos interventores no âmbito estadual Esse era o recurso mais relevante para a operação cotidiana de acomodação da sociedade ao governo e Vargas dele lançou mão com frequência no princípio alternando bastante as indicações Na maioria das vezes contentava políticos tradicionais que iam fazendo as composições necessárias para manter o apoio Outras vezes recorreu aos tenentes que sendo neófitos logo tratavam de empregar o cargo para formar uma base de apoio político em geral juntando os interessados que aparecessem vindos de fora dos círculos tradicionais de poder Aqueles que demonstravam mais aptidão reuniam forças suficientes para governar os mais desastrados acabavam se tornando um problema Também se abriam novos caminhos como a tentativa de recriar as estruturas clientelistas na realidade do capitalismo A primeira ação efetiva nesse sentido foi a promulgação de um decreto que organizava sindicatos patronais e de trabalhadores para defender perante o Governo da República e por intermédio do Ministério do Trabalho Indústria e Comércio os seus interesses de ordem econômica jurídica higiênica e cultural4 Assim começava a ação para retirar as relações entre capital e trabalho do âmbito privado subordinandoas ao arbítrio do Executivo ditatorial e não à lei Esse primeiro esboço teve efeito quase nulo na dinâmica política de modo que as tensões com os tenentes acabaram levando os muitos políticos eleitos que apoiaram Getúlio Vargas no que se referia à reforma dos processos políticos a interpretar a frase como sinônima de realizar eleições para a Assembleia Constituinte prevista no decreto inicial do governo Os primeiros comícios em prol da ideia tiveram lugar em São Paulo Em seguida políticos da capital federal resolveram organizar um comício no Rio de Janeiro para o qual receberam autorização do ministro da Justiça Todavia os tenentes cariocas reunidos no Clube Três de Outubro mandaram avisar que impediriam o ato ainda que tivessem de usar a força Então o ministro da Marinha proibiu o comício O jornalista José Eduardo Macedo Soares dono do Diário Carioca expressou sua opinião num editorial A rapaziada do Clube Três de Outubro está querendo construir um arranhacéu com palitos A finalidade do clube é sustentar pela violência um regime de poderes discricionários que o Sr Getúlio Vargas planeja prolongar no país Para organizar a ditadura não podia contar com os democratas Tenta por isso um sistema militarista que se aproveita da legenda de heroísmo e abnegação dos antigos revolucionários e do interesse e ambição dos novos5 A resposta não tardou a redação em pleno centro da cidade foi atacada por tropas do Exército que vararam a fachada a tiros e destroçaram metodicamente todos os móveis menos um a cadeira do diretor na qual cravaram uma bala de fuzil Dias depois o presidente recebeu uma comissão de tenentes chefiada por Pedro Ernesto nomeado interventor no Distrito Federal e em cujo gabinete estava lotada parte dos soldados atacantes Ele foi direto ao assunto Chegado o momento em que Vossa Excelência sente a necessidade de atos de força como nos parece ter chegado tem o apoio de todos nós Apoiaremos de modo absoluto o governo de vossa excelência como ditador A resposta também foi direta Sois a vibrante mocidade civil e militar que não quer ver a revolução se afundar no atoleiro das transigências dos acordos entre os falsos pregoeiros da democracia6 Os pregoeiros da democracia que não queriam se atolar numa ditadura agiram Os ministros gaúchos ligados ao federalismo e os mineiros com maiores pudores eleitorais pediram demissão Pior foi em São Paulo onde o interventor nomeado o tenente João Alberto conseguiu a proeza de juntar politicamente os membros do Partido Democrático que apoiara a revolução com seus adversários do Partido Republicano Paulista O governo federal conseguiu evitar rupturas radicais no Rio Grande do Sul e em Minas Gerais mas perdeu o controle em São Paulo Em maio substituiu João Alberto por Pedro de Toledo há anos afastado da política O cálculo por trás da nomeação seria típico de Getúlio Vargas escolher alguém que deve o cargo ao nomeante e que lhe seria grato e fiel A hipótese falhou o interventor nomeou um secretariado formado por defensores da Constituinte e estes foram à luta A derrota militar desse movimento em 1932 não impediu que o ditador visse o essencial naquele momento os tenentes de fato não podiam construir um arranhacéu com palitos de modo que ele mesmo se transformou num pregoeiro da democracia Para começar entregou o governo de São Paulo de porteira fechada aos vencidos Armando Sales de Oliveira do Partido Democrático implementou um programa que começava por ampla reforma fiscal Os impostos sobre produção e consumo típicos do capitalismo passaram a formar a base da receita substituindo o precário imposto de exportação que sustentara o governo paulista no período anterior Mas outro ato de seu governo teve um papel histórico em 1933 fundou a Universidade de São Paulo a primeira a funcionar efetivamente no Brasil quase quatro séculos depois da primeira universidade instalada no continente Até então nenhum governo central regional ou local conseguira fundar uma nem a iniciativa privada reunira recursos para tanto Assim voltava a existir competição entre regimes de governo no interior do país Getúlio Vargas sabia o que isso significava conviver de novo com as formalidades do regime eleitoral que ele desprezava mas que também sabia manobrar Por isso reforçou os poderes em outras searas Sempre atento aos novos meios de comunicação em 1932 promulgou um decreto que permitia a veiculação de publicidade no rádio Ela não era proibida por isso o decreto funcionou como um avanço do governo ditatorial sobre uma área antes inteiramente privada Decretos seguidos foram estendendo os poderes de intervenção até que o Executivo passou a ter um programa diário em rede nacional arrebanhando a maior audiência do país Ao mesmo tempo reforçando velhos métodos forneceu meios para que Assis Chateaubriand fosse comprando jornais país afora os quais formariam a primeira rede de comunicação de abrangência nacional sempre muito atenta às indicações do Catete Em 1934 a Constituinte foi eleita e elaborou uma Carta no figurino tradicional da soberania popular e com uma série de inovações importantes O capítulo tributário uma versão ampliada da reforma fiscal paulista criava novas fontes de receitas para os governos quase todas baseadas em atividades do mercado interno A medida acabava com a secular dependência do Tesouro em relação às receitas do comércio exterior e abria espaço para a continuidade do crescimento do mercado interno A Carta também formalizava os direitos de trabalhadores quase todo o programa de Rui Barbosa em 1919 estava lá A novidade era acompanhada da constitucionalização do papel do Estado como intermediário entre patrões e trabalhadores Com isso um setor antes privado passava a ser tutelado pelo governo como nos tempos imperiais Nesse mesmo ano Getúlio Vargas tornouse presidente de uma República na qual o governo federal contava com poderes bastante ampliados para enfrentar a crise tudo dentro dos princípios seculares de representação nacional e do princípio quase cinquentenário de soberania única do eleitor De uma República na qual havia indícios da retomada de um crescimento econômico baseado na indústria com os empresários investindo em novos setores como a metalurgia crescimento anual de 24 a partir de 1933 química 299 anuais material de transporte 39 anuais e cimento 16 anuais As primeiras siderúrgicas estavam sendo construídas contribuindo para a formação de uma indústria de base local capaz de substituir a importação de bens de produção O presidente podia se limitar a colher os frutos da situação favorável mas era adepto de ideias específicas sobre seu tempo E mais uma vez foi encontrar justificativas nos argumentos de Oliveira Viana Em 1930 este publicou o livro Problemas de política objetiva todo baseado na convicção de que a democracia representativa estava em extinção no mundo O mais grave o mais absurdo o mais anacrônico preconceito de nosso tempo é a crença na competência onisciente dos parlamentos na sabedoria infusa dos homens que em virtude do mecanismo do nosso sistema representativo acontecem chegar ao poder Esse estado de espírito é já evanescente nos centros parlamentares e governamentais do velho mundo O traço mais distintivo que o observador recolhe ao estudar os processos de elaboração legislativa modernamente adotada pela quase unanimidade das democracias contemporâneas é que nenhuma lei é hoje obra exclusiva dos parlamentos Por toda parte a competência técnica vai substituindo a competência parlamentar Essa evolução tão sensível em toda a Europa é assinalada mesmo na Inglaterra a Inglaterra dos parlamentos onipotentes Hoje o centro da gravidade da vida política não é mais o Parlamento e sim o gabinete7 Essa mirada peculiar para o trabalho do Parlamento liberal inglês indicaria um caminho para o Brasil mas distinto da subordinação das comissões técnicas ao poder dos parlamentares britânicos a assessoria técnica deveria substituir o mecanismo da representação abrindo caminho para a extinção do Parlamento E a supressão das eleições seria necessária para criar governos populares capazes de alcançar um objetivo maior Dar às nossas instituições legislativas e administrativas uma feição pragmática que torne possível o estabelecimento de um verdadeiro regime de opinião de um sistema de governo realmente popular intérprete real dos interesses do povo e infinitamente muito mais democrático do que aquele que há cem anos estamos procurando realizar pelo sistema representativo pela prática da soberania das urnas pelo sufrágio universal pela eleição direta pela representação das minorias pela atividade legislativa das assembleias parlamentares8 Com isso os brasileiros iriam superar os velhos liberais ingleses e buscar um objetivo mais elevado e mais adequado ao país equiparandose aos alemães A liberdade e a democracia não são os únicos bens do mundo há muitas coisas a serem defendidas em política além da liberdade como sejam a civilização e a nacionalidade que muitas vezes acontece que um governo nem liberal nem democrático pode ser não obstante muito mais favorável ao progresso de um povo na direção daqueles dois objetivos Em nenhum povo o sentimento dessa verdade tem sido mais vivo do que no povo alemão O alemão divinizou o Estado Este é para ele a expressão suprema da nação organizada O alemão tem a religião do Estado o culto da autoridade obedeceo e obedecendoo fálo com um sentimento equivalente ao que ele põe na obediência aos dogmas de sua religião9 A reforma centralizadora dos primeiros anos de governo fora importante mas continuava aquém do ideal de estimação de Getúlio Vargas Para chegar aos níveis de poder central que desejava era preciso uma situação como a que levara Hitler ao poder a ação de comunistas O Brasil conhecera lutas operárias um partido socialista e até mesmo um pequeno partido comunista fundado em 1922 Todos atuavam no movimento operário mas sem subordinação direta a Moscou e às teses estalinistas A situação mudou quando Luís Carlos Prestes um dos líderes tenentistas mudouse para a União Soviética em 1931 Três anos depois por pressão da Internacional Comunista foi aceito no Partido Comunista brasileiro Tinha alguma popularidade suficiente para que fosse criada a Aliança Nacional Libertadora uma frente que reunia uns poucos extenentes descontentes com o domínio dos políticos após a volta das eleições e o fim das vias de acesso direto ao poder A ALN apresentou um programa fundado na ideia de um governo popular elegeu Prestes presidente de honra e começou a organizar comícios Em julho de 1935 o presidente ouviu do embaixador inglês que Prestes entrara ilegalmente no país acompanhado de militantes enviados de Moscou com o objetivo de tentar um golpe de Estado e que um espião inglês infiltrado fornecia informações regulares sobre o grupo10 Em vez de usar as informações para prender os líderes Getúlio Vargas vislumbrou uma oportunidade para aumentar os próprios poderes Decretou o fim da ANL com estardalhaço mostrando que esta era parte do perigo comunista Na ilegalidade Prestes continuou com o plano de tentar um golpe confiando em seu prestígio A tentativa dos comunistas de tomar o poder em novembro de 1935 resumiuse a dois episódios dominados em um dia Mas forneceu o combustível político de que Vargas necessitava para fundar um governo autoritário Decretou estado de sítio censurou a imprensa prendeu sem processo Em menos de duas semanas conseguiu do Parlamento uma ampliação de poderes que o tornava ditador quase sem contraste Misturando discursos em cadeia nacional de rádio difusão controlada de informações pela imprensa e prisões sem processo em massa foram 7056 em seis meses11 criouse o caldo de cultura necessário para que se disseminasse a ideia de uma ameaça incontrolável Torturas violentas e mortes nos cárceres forneciam o material para novas versões pelo tempo que foi possível O tempo do mandato estava se esgotando as campanhas eleitorais para a sucessão foram para as ruas Tudo isso ia tornando mais complicada a renovação regular dos poderes excepcionais do presidente Para contornar a situação foi preciso recorrer a um falso plano comunista escrito por um militar amigo mas apresentado ao país como prova última de que só uma ditadura resolveria a situação Em 10 de novembro de 1937 o próprio Getúlio Vargas desencadeou o golpe No mesmo dia promulgou uma Constituição cujo primeiro artigo dizia que Todo poder emana do povo e é exercido em nome dele e no interesse em seu bemestar O exercício cabia ao ditador o maior direito do cidadão era o de representar a ele pedindo clemência O mecanismo da representação era substituído pelo da competência técnica fundada na dependência do Executivo Todos os cargos eletivos passavam a ser ocupados por gente nomeada pelo ditador menos o de vereador eleito por pequenos colegiados Voltava aos tempos de ditador e da maior concentração de poder arbitrário acontecida até então no Brasil Pela primeira vez o mecanismo da eleição de representantes funcionando desde 1532 nas cidades era quase todo eliminado na lei permanente O projetado Legislativo nunca foram convocadas eleições seria formado por representantes na Câmara e por técnicos indicados no que seria um Conselho Federal ambos subordinados a um Conselho de Economia Nacional constituído por técnicos incumbidos pelo ditador de fazer o orçamento E tudo isso apresentado pelo regime por meio de uma onda avassaladora de propaganda oficial produzida com métodos modernos Destinada a funcionar num ambiente de rígida censura e total compressão política divulgava a imagem de Getúlio Vargas como um pai benéfico de um povo desamparado a versão renovada da Cabeça Mística do corporativismo Em termos administrativos a grande alteração foi o aumento da intervenção estatal nas relações entre capital e trabalho Entidades de patrões e empregados foram classificadas como órgãos técnicos com a finalidade de colaborar com os poderes públicos no desenvolvimento da solidariedade entre classes A ideia de que era impossível o entendimento entre as partes e que apenas o ditador paternalista resolvia o problema resultou nos mais de 900 artigos da Consolidação das Leis do Trabalho Mal teve início a sonhada ditadura o cenário na qual se baseava o do declínio inevitável da democracia representativa foi se mostrando pouco adequado aos fatos Aos poucos os Estados Unidos e a Inglaterra foram enquadrando o fascismo e o nazismo como inimigos piores que a União Soviética Moscou por sua vez assinou em 1939 um tratado com a Alemanha nazista permitindo que esta invadisse a Polônia aliada da Inglaterra Era uma nova guerra mundial que somente começaria a se definir em 1941 quando os alemães atacaram a União Soviética levandoa para o lado dos aliados Assim se confirmou de maneira ampliada a aliança pregada por Trótski no início da guerra uma união mundial contra os regimes autoritários de direita Diante disso Getúlio Vargas deixou as afinidades ideológicas de lado e retomou o pragmatismo negociando a entrada do Brasil na guerra ao lado dos aliados Até mesmo Francisco Campos o autor do texto da Constituição de 1937 soube avaliar as consequências antes mesmo do fim do conflito A Constituição de 1937 caducou Nossa organização política foi montada em torno de ideias que não resistiram ao teste da luta O Sr Getúlio Vargas já pensou demais em si mesmo É tempo de ele pensar um pouco no Brasil12 Dessa vez contudo não havia margem de manobra Em outubro de 1945 o ditador foi deposto pelas próprias forças armadas pois até estas haviam se convencido da impossibilidade de manter uma ditadura num cenário mundial em que as democracias com apoio do Brasil haviam se mostrado vitoriosas CAPÍTULO 66 Democracia populista O MUNDO QUE EMERGIU DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL FOI CONCEBIDO PELO presidente norte americano Franklin Roosevelt e por seus auxiliares de modo a que estivesse baseado em instituições reguladoras da política e da economia internacionais A Organização das Nações Unidas cuidaria dos aspectos gerais cada nação entraria com um representante e um voto numa assembleia uma fórmula defendida em vão por Rui Barbosa em Haia no ano de 1907 mas um núcleo formado pelos vencedores da guerra o Conselho de Segurança teria poder de veto sobre as decisões No campo econômico a instituição central seria o Fundo Monetário Internacional responsável pelo fornecimento de créditos para manter em equilíbrio o sistema Tendo lutado na guerra ao lado dos vencedores o Brasil tinha o direito de participar desse processo O candidato nato a representar o país nessas conversas era o chanceler Oswaldo Aranha que tinha acesso direto aos teóricos ao redor do presidente norteamericano Mas Aranha foi demitido por Vargas em 1944 justamente quando a vitória aliada estava à vista e começavam as discussões para o pósguerra Mesmo afastado o prestígio do exchanceler foi suficiente para que presidisse as primeiras assembleias da ONU tendo papel ativo na primeira grande decisão da instituição a criação do Estado de Israel Ao afastar o leal colaborador Getúlio Vargas sabia que retirava de cena um concorrente com potencial para o suplantar Em seguida manobrou para se manter vivo em maré adversa Também sabia que seu investimento na ditadura não seria bemvisto no novo contexto mundial Ao negociar a participação brasileira na guerra Vargas havia obtido recursos para a instalação de uma grande siderúrgica que virou o símbolo da opção que passara a orientar o governo a aposta na ampliação do muro estatal erguido na década de 1930 incrementando a participação direta do governo na economia por intermédio do setor industrial Por isso antes mesmo do final da guerra além da siderurgia foram criadas empresas estatais nas áreas de mineração química e transportes O desenho do muro construído após 1930 foi reavaliado no contexto de instituições democráticas mas sua restauração acabou facilitada pelo sucessor do ditador deposto o presidente José Linhares Este recorreu a seus conhecimentos jurídicos para graças a emendas na Constituição de 1937 nomear interventores nos estados convocar eleições simultâneas para a presidência da República e uma Assembleia Constituinte Com isso o país ganhou tempo não foi necessário esperar o Parlamento aprovar a nova Carta para depois escolher um presidente mas acabou premiando aqueles que haviam ocupado cargos governamentais durante a ditadura E estes logo mostraram que o muro estatal não servia apenas para controlar a economia de forma ditatorial como acontecera em meados da década de 1930 Muitas mudanças faziam sentido mesmo após a guerra Eurico Gaspar Dutra o candidato à presidência favorecido pelo exditador e os partidos que este organizara fizeram maioria no Parlamento Todos ganharam passagem privilegiada para a nova realidade Haviam começado como agentes do governo discricionário e contrário ao sistema representativo mas se tornaram políticos com potencial de voto e aprenderam a viver sem os cacoetes positivistas tal como fizera Vargas O cinismo da autoridade técnica deu lugar ao bom comportamento dos ungidos em eleições de sagração surgindo um conservadorismo efetivamente capaz de ir além das atas falsificadas da época da ditadura positivista gaúcha ou dos banquetes conservadores anteriores a 1930 Em 1945 votaram 6 milhões de eleitores Como a população brasileira em 1940 era de 41 milhões de habitantes o contingente eleitoral girava em torno de 14 da população total Essa proporção era próxima à da última eleição imperial na qual votaram analfabetos a de 1879 Bem menor do que nas democracias em que o sufrágio era universal mas o suficiente para legitimar o pleito As novidades do voto feminino e do voto secreto ajudavam nesse sentido impedindo as falsificações grosseiras da soberania popular A adaptação de conservadores e positivistas ao secular modelo representativo nascido dos governos locais era um progresso ainda que relativo pois a exclusão dos direitos políticos dos analfabetos refletiuse diretamente no desenho institucional que veio em seguida às eleições A Constituição de 1946 tinha nove títulos contra cinco da Carta de 1891 Quase todo o acréscimo estava em novas atribuições do Estado em relação com a sociedade Pela organização e minudência do tratamento a descrição dessas atribuições feita caso a caso lembrava mais as antigas Ordenações do Reino com suas ordens desiguais tão a gosto de conservadores e positivistas do que as cartas iluministas fundadas no princípio da igualdade No que se refere à organização começava tratando do alto o poder federal passava pelas instâncias intermediárias dos estados e municípios e trazia um rápido capítulo com os direitos do cidadão mantendo a proibição de voto dos analfabetos Até aí tudo semelhante à Constituição de 1891 Em seguida vinha um título dedicado à ordem econômica definindo poderes amplos para o governo federal a começar pela possibilidade de ação nos mercados A União poderá mediante lei especial intervir no domínio econômico e monopolizar determinada indústria ou atividade A intervenção terá por base o interesse público e por limite os direitos fundamentais assegurados nesta Constituição O governo federal também ficava com o monopólio das riquezas do subsolo e da concessão de licenças de exploração além da capacidade de distribuir concessões em especial na área de comunicações A Carta também consagrava o papel do governo como intermediário obrigatório nas relações entre trabalhadores e patrões por meio da Justiça do Trabalho instância que tornava quase sem valor os acordos diretos entre os agentes privados que produziam Por isso havia uma lista minuciosa de direitos constitucionais a serem tutelados pelo governo desde a duração da jornada de trabalho até a participação nos lucros das empresas Esse detalhamento prolixo poderia levar a supor que o governo federal agora desfrutava de uma situação inversa à do período anterior passando a ter autoridade efetiva sobre todo o território do país e todas as classes da sociedade Basta uma rápida mirada para pontos pouco detalhados da Carta para se perceber certas nuances Pelo artigo 156 a lei facilitará a fixação do homem no campo estabelecendo planos de colonização e de aproveitamento das terras públicas Para esse fim serão preferidos os nacionais e dentre eles os habitantes das zonas empobrecidas e os desempregados Os estados assegurarão aos posseiros de terras devolutas que tenham morada habitual preferência para aquisição até 100 hectares A Carta afirmava portanto que as posses seculares não valiam nada e que as terras eram públicas ou seja do governo Não bastasse os direitos trabalhistas detalhados para a população urbana eram negados aos sertanejos O mesmo se dava com os direitos políticos Assim a maioria da população era excluída Tudo isso dava novo sentido à antiga metáfora do corporativismo ou à sua versão dual do caranguejo litorâneo e do sertão ignoto e fora do mundo do conhecimento O progresso capitalista e o mundo urbano eram enquadrados como filhos da tutela governamental e cercados de privilégios ao passo que o sertão se mantinha separado e inferiorizado Essa recriação modelava o momento populista Antes de lidar com o tema populista vale a pena mostrar algo das relações entre sertão e cidade naquilo que interessa ou seja nas relações entre os seculares produtores independentes e o capitalismo do pós guerra Há um estudo de Antonio Candido intitulado Parceiros do Rio Bonito feito no período imediatamente posterior à aprovação da nova Constituição Ele revela a permeabilidade entre a cultura caipira como então era chamada a cultura sertaneja em São Paulo e o capitalismo A relativa indiferenciação social no período anterior ao capitalismo é substituída pela estrutura mais complexa sobrepondo o fazendeiro que emprega trabalho assalariado a seu parente sitiante muitas vezes com tantas terras quanto ele mas trabalhandoas pessoalmente que por sua vez se sobrepunha aos agregados sem estabilidade Nas três camadas encontramos a presença da cultura caipira mas na intermediária se localizaram suas manifestações mais típicas visto como a superior tende com o tempo a se desligar dela acompanhando a evolução dos núcleos urbanos e a inferior nem sempre possui as condições de estabilidade1 Assim a cultura secular não só convivia com o capitalismo avançado como ainda tinha possibilidades conscientes de sobrevivência Pequenos lavradores sitiantes ou parceiros embora arrastados cada vez mais para o âmbito da economia capitalista e para a esfera de influência das cidades procuram ajustar se ao que se poderia chamar de mínimo inevitável de civilização procurando por outro lado preservar o máximo possível das formas de equilíbrio Daí a qualificálos como grupos que aceitam da cultura urbana os padrões impostos aquilo que não poderiam recusar sem comprometer a sua sobrevivência mas rejeitam os propostos os que não apresentam força incoercível2 Apesar dessa capacidade dos nativos e sertanejos de conviver sem problemas com um capitalismo industrial já avançado a Constituição de 1946 recriou diferenças típicas da imagem corporativista mantinha tanto os governos indígenas como as vastas populações dos sertões à margem do direito de propriedade e à margem da lei de uma economia produtiva Enquadrava a produção sertaneja como economia informal economia do costume tal como nos tempos da colônia ignorando que apesar do tratamento ideológico era uma economia de empreendedores e essencial para o mercado nacional formal Mesmo sem direitos essa grande parcela da população continuou sendo a maior consumidora de produtos industriais e a maior fornecedora de produtos para os centros industriais e de serviços As trocas entre essas partes isoladas tanto do mercado externo quanto da ação do governo federal continuaram sendo aquelas que geravam a dinâmica de crescimento da economia Ainda para esse período recente a aplicação da noção de economia de subsistência continua gerando cenários que não se adequam aos números embora estes já existissem em abundância As observações qualitativas de Antonio Candido indo para muito além dessa noção normativa são muito mais compatíveis com o cenário atual quando mostram a total complementariedade e compatibilidade entre a formação social secular do sertão e a economia capitalista Com essa imagem em mente se pode entender que a reconstrução da tutela no populismo era menos uma exigência do progresso que uma recriação da tradição A incorporação política era uma possibilidade óbvia mostrada pela história da gestão municipal que voltava para as mãos dos governos representativos depois do curto lapso de interrupção ditatorial A incorporação civil era fácil com a simples transformação do direito de posse em direito de propriedade A medida teria provavelmente um efeito econômico ainda maior do que o trazido pelas medidas de Rui Barbosa tanto o mercado de crédito como o de bens logo entrariam na esfera da produção capitalista uma vez que as populações estavam mais que preparadas para tanto Mas nada disso aconteceu a letra da lei embora com preâmbulo iluminista repunha o ideal corporativo de tratar cada parte do corpo social de um modo de criar hierarquias de negar a igualdade A única mudança real trazida pela Constituição de 1946 ocorreu em outra área A alínea r do artigo 5 que definia os poderes da União previa a incorporação dos silvícolas à vida nacional É uma definição curiosa na medida em que os índios desde a Constituição imperial eram tecnicamente cidadãos brasileiros No momento em que a Carta foi escrita eles ainda dominavam a maior parte do território do país embora esse espaço estivesse restrito à Amazônia e ao CentroOeste pois o avanço da agricultura no Sul e no Sudeste durante a primeira metade do século XX ocasionara nessas regiões a devastação das populações nativas e a tomada de seus territórios Como sempre os índios eram agentes efetivos da produção de excedentes e faziam rodar a economia nacional embora nesse aspecto a produtividade industrial tenha aberto um fosso muito maior Por isso a breve menção na Carta era melhor do que nada abria caminho para que o Estado iniciasse uma política para garantir aos povos indígenas o controle das terras que ainda ocupavam um projeto republicano conduzido a duras penas pelo pioneiro Cândido Rondon Somando tudo afinal a elite conservadora incrustada no governo central conseguira se adaptar um pouco mais ao país onde estava instalada O muro pós 1930 já não era mais o lugar apenas dos caranguejos o mercado já não existia apenas nas casas O governo central deixava de ser na economia uma instância apenas de captação de impostos aduaneiros em política se enraizava nos interesses da população agora minimamente expressos no voto Mas o fim da ditadura não significou o fim da pretensão de superioridade conservadora nem a adesão a uma identidade nacional caipira ou multiétnica Na lógica de José Bonifácio não deixava de representar um passo no amalgamento que faria a unidade da nação se tudo desse certo E o tudo certo se concentrava na manutenção dos mecanismos de controle dos fluxos externos da economia que permitiam um crescimento econômico acima da média mundial A razão de ser do muro passou muito bem pela primeira prova prática no novo regime As expectativas de retomada do comércio mundial nas bases multilaterais pensadas por Roosevelt logo se revelaram irrealistas como notou Sergio Besserman Viana Não havia equilíbrio possível nas condições de mercado Os Estados Unidos haviam crescido 11 em média ao ano entre 1940 e 1945 enquanto a Europa e o Japão tiveram parte de suas populações dizimadas suas economias desarticuladas e seus parques produtivos em parte destruídos A volta ao multilateralismo era prematura Foi necessário o malogro da conversibilidade do esterlino em 1947 para que se medisse a natureza e amplitude de um desequilíbrio que se anunciava duradouro3 O reconhecimento desse desequilíbrio ocasionou uma alteração de métodos e cronogramas Os Estados Unidos passaram a bancar a recuperação das economias destruídas pela guerra enquanto a União Soviética expandia o regime comunista para seus vizinhos Começava a Guerra Fria que daria continuidade ao cenário mundial de crescimento baseado mais nos mercados internos do que nas oportunidades internacionais apesar da manutenção do desenho institucional do multilateralismo Dessa vez a reação brasileira foi imediata No campo econômico foi fácil voltar atrás com o fim da breve experiência de liberação da venda de divisas e com a retomada do monopólio estatal e do controle das licenças de importação No campo político o ajuste à Guerra Fria se fez com a proibição das atividades do Partido Comunista Brasileiro após um período igualmente breve de legalização Com isso cessou a discussão interna o muro estatal era tão necessário na nova fase mundial quanto na ditadura que o reforçara como reação à crise de 1929 O governo federal passava a ser o controlador efetivo das estreitas portas do comércio e do movimento financeiro internacionais do país Todos os agentes econômicos que precisavam circular por esses caminhos teriam ainda de acender velas nos altares da burocracia federal A lógica geral do processo ainda era a mesma por trás do Plano de Valorização do Café trocar produtos agrícolas por equipamentos de produção industrial Mas a sua execução não tinha mais nada a ver com os mecanismos de mercado agora era processo discricionário uma vez que o controle das portas estreitas do comércio internacional exigia muito do governo federal Do ponto de vista operacional o controle dos fluxos externos ampliouse com o monopólio de compra dos principais produtos agrícolas de exportação café açúcar cacau e mate eram adquiridos por autarquias em moeda nacional Isso apresentava uma dupla vantagem reduzia a pressão nas portas e dava mais poder de fogo ao governo federal na hora das vendas O governo federal era ainda o maior estocador mundial de café mas agora sua ação para forçar preços funcionava como subsídio de concorrentes externos de modo que a posição foi se deteriorando ao longo do tempo Era um sacrifício para a agricultura afastada das portas mas elemento crucial na administração dos fluxos No sentido das importações na maior parte do tempo as licenças resultavam de processos arbitrários que favoreciam o setor industrial Além de permitir o acesso a equipamentos as portas estreitas criavam uma quase obrigatória reserva de muitos mercados para a produção nacional mesmo havendo produção mais barata no exterior Porém como essa era mais ou menos a situação das principais economias do mundo as reclamações eram mais protocolares que qualquer outra coisa Mesmo os Estados Unidos os únicos de fato capazes de sustentar o multilateralismo muitas vezes tinham de se curvar ao realismo nacional Para vender produtos de suas indústrias no Brasil financiavam até mesmo projetos contrários a seus interesses globais Além da siderurgia boa parte dos investimentos estatais no setor industrial em especial na área elétrica contou com financiamento de longo prazo dado ao governo brasileiro por agências norteamericanas algo muito bemvindo num ambiente de escassez que se estendia ao lado financeiro das transações externas Nessa seara a luta era mais dura ainda Os fluxos de capital eram controlados a contagotas Toda hora faltava dinheiro para equilibrar a balança A cada soluço nos preços do café havia choradeira dos importadores dos empresários que precisavam remeter capital dos credores do governo que ficava ainda maior quando se recorria às emissões de moeda nacional para fabricar milagres e gerar inflação Em meio a tantos solavancos o resultado foi positivo Ao longo das décadas de 1940 e 1950 permaneceu a tendência iniciada com a República o crescimento da indústria manteve um ritmo muito superior ao das demais atividades especialmente a agricultura Como a partir de 1947 passou a existir um cálculo do PIB essa medida deixou de ser marcada por imprecisões estatísticas A média anual do período era superior a 7 o que colocava a economia brasileira entre as mais dinâmicas do planeta Tudo num cenário de crescimento próximo a zero do comércio internacional As exportações brasileiras foram de 11 bilhão de dólares em 1947 em 1962 de 12 bilhão de dólares Apenas num ano excepcional 1951 chegaram a 17 bilhão de dólares Foi exclusivamente graças a um extremo esforço discricionário que se manteve a dinâmica da economia O bom desempenho deviase quase que apenas ao crescimento do mercado interno justificando o desenho institucional do muro Mas o próprio sucesso teve suas consequências A sociedade mudava de cara Para manter esse elevado ritmo de crescimento sem o recurso a imigrantes cresceu a migração originária da região produtiva mas desprotegida pela lei para aquela na qual se concentravam os privilégios concedidos ao trabalho formal Sua marca maior foi a vinda de nordestinos para o Sudeste sobretudo São Paulo Pelas regras toda essa gente ao mudar do sertão para a cidade ganhava direitos aumentando as pressões sobre o sistema político Nos primeiros anos a maior fonte de oposição vinha dos prejudicados pelos privilégios concedidos à indústria no acesso às divisas como os importadores e os investidores estrangeiros que precisavam remeter lucros E a posição deles era expressa por economistas que atualizavam a antiga posição fisiocrata anti industrial em ortodoxia financeira Essa crítica ao arbítrio governamental era ampliada com medidas no âmbito interno que provocavam grandes desequilíbrios nas relações produtivas e que se tornaram uma tentação para políticos em busca de popularidade rápida Getúlio Vargas elegeuse com facilidade em 1950 e quis deixar uma imagem que fosse além daquela de ditador como um pai dos pobres democrata Como seu governo andou meio de lado e o mandato estava acabando apelou para a elevação do salário mínimo em 100 por decreto seguida pela adesão do Executivo a uma proposta da oposição que criava uma empresa estatal monopolista na área de petróleo Essas foram fontes relevantes da perda de apoio político entre empresários seguida da perda do controle do Congresso o que levaria ao gesto do suicídio Mesmo um grande solavanco como esse não alterou o rumo geral do período O que parecia uma crise impossível no governo interrompido pelo suicídio de Vargas foi superado com facilidade quando Juscelino Kubitschek soube se aproveitar da recuperação no cenário internacional para alargar as portas da felicidade industrial atraindo o capital estrangeiro de risco para a montagem da indústria automobilística Ao mesmo tempo construiu Brasília rompendo a secular ligação entre sede do governo e sede da região importadora do país em clima de Bossa Nova e modernismo Rasgou estradas de rodagem pelo sertão onde foi erguida a nova capital viabilizando a rapina das posses dos moradores e tornando urgente um mínimo de igualdade entre os brasileiros Tudo isso exigiu um comportamento muito heterodoxo no controle das portas em tal medida que aconteceu um milagre em 1960 pela primeira vez em toda a história do Brasil um candidato de oposição ganhou uma eleição para a chefia do Executivo Seu nome era Jânio Quadros e tinha como programa uma administração econômica mais ortodoxa Tomou posse com extrema minoria no Parlamento quatro quintos dos parlamentares eleitos eram dos partidos que apoiavam as administrações anteriores Logo tomou uma medida histórica a criação do Parque Nacional do Xingu primeira terra delimitada para os índios na República Não teve tempo para muito mais Tentou reverter a desvantagem com uma manobra política heterodoxa uma renúncia para forçar um golpe de Estado e acabou indo contar sua história em bares como cidadão comum O vicepresidente João Goulart chegara ao cargo por artes da política Não tinha nada a ver com o renunciante nem com seu programa pois era parte do espectro ideológico oposto Enfrentou o mesmo problema do antecessor bases parlamentares exíguas Ao fim e ao cabo o Partido Social Democrático o PSD que controlava o governo desde 1945 conduziu as negociações que levaram ao parlamentarismo e à manutenção da agremiação no comando do país graças a sua base parlamentar Mas a coisa desandou As portas seletivas para o exterior se tornaram inoperantes em meio a conflitos de todo tipo No lado econômico a produção industrial caiu e a inflação aumentou No lado político havia a pressão por direitos que foi apoiada por João Goulart as chamadas reformas de base com a reforma agrária em primeiro lugar entraram na pauta Tratavase de algo muito razoável num país no qual o sertão sempre ficara de fora do desenho do poder central Mas para ser favor custava dinheiro num momento em que o governo federal tinha as contas no bagaço bem ou mal a questão que elegera Jânio Quadros ia se mostrando pertinente Tudo isso levou a um impasse CAPÍTULO 67 Ditadura militar e seus paradoxos NÃO RESTA DÚVIDA DE QUE A OPOSIÇÃO RADICAL À PROPOSTA DAS REFORMAS DE BASE e a perseguição mais uma vez aos comunistas estava na base da deposição do presidente João Goulart Tal constatação além de factual serve muitas vezes como elemento explicativo de cunho ideológico para analisar o regime que veio em seguida Mas certas nuances devem ser levadas em conta Na manhã do dia 2 de abril de 1964 o país tinha três presidentes precários e um potencial No Rio Grande do Sul o presidente Goulart aguardava os acontecimentos Nas primeiras horas do dia em Brasília o Congresso Nacional decretara vago o cargo maior do país e indicara o presidente da Câmara Ranieri Mazzilli para ocupar o posto No Rio de Janeiro o marechal Costa e Silva falava em nome do Supremo Comando da Revolução como autoridade de fato Na mesma cidade o marechal Castelo Branco tentava viabilizar sua indicação para a presidência Jango deixou o país mas a situação de múltiplo comando perdurou por quatro dias durante os quais não houve reação popular de monta Quem acabou resolvendo tudo foram os parlamentares os mesmos que haviam resolvido a crise que se seguiu à renúncia de Jânio Quadros em 1961 com o parlamentarismo e também os problemas do parlamentarismo com o plebiscito de 1962 que restaurou o presidencialismo Uma das primeiras providências de Ranieri Mazzilli foi nomear os comandantes militares como ministros trazendo os para o governo institucional Por causa dessa capacidade de manobra muitos dos que apoiaram o movimento militar para acabar com a carreira dos políticos iam se tornando políticos Logo teriam motivos maiores para se preocupar No dia 7 de abril na casa do deputado Joaquim Ramos encontraramse os próceres do PSD Juscelino Kubitschek Amaral Peixoto José Maria Alckmin e Negrão de Lima O marechal Castelo Branco lá chegou acompanhado do senador pessedista Luís Viana Filho No registro do marechal ficou apenas a afirmação de que se comprometera a cumprir a Constituição e o Ato Institucional No relato de Juscelino e de todos os políticos o marechal entrou na conversa como candidato afirmando que respeitaria a Constituição e as eleições aconteceriam na data marcada outubro de 19651 O fato é que o marechal saiu da conversa como candidato firme à presidência inclusive aceitando como vice o homem de confiança de Juscelino José Maria Alckmin Para fazer valer o acordo o Congresso aprovou nada menos que sete reformas constitucionais em apenas quatro dias A maior vitória dos defensores do arbítrio foi a promulgação de uma versão mais branda do Ato Institucional no 1 pelos ministros militares em nome do governo Ela aumentava os poderes do presidente em detrimento dos do Parlamento Como prova desses poderes foram cassados os mandatos de 40 parlamentares No dia seguinte 11 de abril o Congresso elegeu Castelo Branco presidente para terminar o mandato de Jânio Quadros Castelo Branco recebeu 261 votos incluídos 36 vindos da bancada do PTB o partido de João Goulart e também o sufrágio do senador Juscelino Kubitschek Apenas 72 deputados por motivo de consciência se abstiveram Completavase assim um ritual Não deixa de ser curioso indagar por que ele foi realizado Apesar de terem o comando de fato os vitoriosos preferiram submeter o escolhido a limitações em troca da unção pública E tudo isso seguiu um roteiro histórico Os governadoresgerais se apresentavam perante as câmaras o primeiro imperador e os constituintes lutaram pelo reconhecimento mútuo de suas posições relativas como detentores de duas soberanias nas cerimônias de abertura da sessão parlamentar os republicanos se apresentaram perante a câmara do Rio de Janeiro no momento da vitória Getúlio Vargas fugira à regra mas em 1964 os militares recuperaram a tradição com um fim preciso Queriam de fato um mandato uma forma de evitar que o ungido se sobrepusesse à instituição armada como ditador Nesse sentido adotavam um costume secular dos analfabetos a rotação dos eleitos nas câmaras municipais sempre impedira ditaduras locais O ritual de unção também se justificava por dois outros motivos ajudou a criar consenso interno nas forças armadas e revestiu imediatamente de alguma legitimidade alguém que passava a ser presidente da República numa situação constitucional Mas não seria um presidente qualquer Para empregar a linguagem de Campos Sales seria um depositário unipessoal pelo qual se eliminava a política de uma comunidade para concentrála na pessoa de uma suprema autoridade E para mostrar que era pessoa de suprema autoridade uma das providências do presidente Castelo Branco foi cassar os direitos políticos de Juscelino Kubitschek Era um sinal de que como diziam os conservadores sobre o imperador havia alguém que reina governa e administra Alguém que saberia colocar os interesses da administração acima da política como diria o visconde do Uruguai e repetiria Getúlio Vargas em seu diário A proximidade das eleições faz com que as conveniências vão se sobrepondo aos interesses da administração É o mal que volta2 Renovada a velha crença dos conservadores agora que reinstalavam um poder acima da representação da soberania dos cidadãos expressa no voto um mal estaria sendo afastado e um novo bem se instalaria a partir de uma ação técnica que se sobreporia às conveniências dos eleitores uma situação que o monarquista João de Scantimburgo nomeava como nostalgia do Poder Moderador Antes de entrar na articulação desse novo bem cabe aqui uma mirada sobre o mundo Ao longo dos primeiros anos do pósguerra a situação mundial havia gerado com exceção dos Estados Unidos políticas semelhantes àquelas adotadas no Brasil Andrew Terborgh assim resumiu as opções europeias A situação após a Segunda Guerra Mundial fortaleceu as posições trabalhistas na Europa e deu poder a partidos de esquerda com bases operárias Em troca da moderação nos pedidos de aumento salarial os governos mantiveram compromissos com o pleno emprego e o desenvolvimento econômico Esses acordos limitaram o poder das autoridades monetárias para eliminar déficits externos o emprego de contração monetária para equilibrar as contas externas destruiria a acomodação entre capital e trabalho Como consequência os países europeus adotaram controles cambiais e o resultado foi que uma rede de pagamentos internacionais tão benéfica para o comércio mundial antes de 1914 não se desenvolveu nos anos 503 Nada muito diverso do que aconteceu no Brasil Mas então o cenário do comércio mundial começou a mudar Em 1957 seis países europeus Alemanha Itália França Bélgica Holanda e Luxemburgo se reuniram para criar o Mercado Comum Europeu Países que nos séculos anteriores viviam em guerra só entre França e Alemanha houve quatro grandes conflitos nos dois séculos anteriores abriram mão de parte da soberania nacional algo inédito em termos históricos Na base econômica da união estavam isenções tarifárias para a circulação de produtos industriais entre os países proteção tarifária em defesa da produção agrícola dos membros e adesão à conversibilidade das moedas nos termos do tratado de Bretton Woods O realinhamento provocou uma aceleração imediata no crescimento do comércio internacional invertendo uma tendência que vinha desde 1929 Nos primeiros anos do pósguerra o crescimento interno das economias era maior que o do comércio internacional Entre 1960 e 1963 as taxas de crescimento do comércio internacional se igualaram às dos mercados internos A partir daí começaram a superálas rapidamente em taxas superiores a 8 anuais Em suma inverteuse a situação que levara em 1930 à criação do muro que protegeu o desenvolvimento do mercado interno brasileiro Voltou o tempo das oportunidades no comércio internacional Japão Coreia e Cingapura países com possibilidades menores nos tempos de isolamento foram os primeiros a se aventurar nas novas ondas A nova frente de oportunidades estava aberta apenas para empresas pois os Estados continuaram sendo nacionais Para uma nação se aproveitar delas teria de ter outro papel em vez de defender fronteiras precisaria incentivar as empresas que atuam fora das fronteiras nacionais comprando e vendendo no comércio internacional e no sentido oposto defender os setores mais fracos do assédio de competidores internacionais Esse era o sentido da ação europeia e das nações asiáticas com Cingapura e Japão à frente que se lançaram atrás das oportunidades abertas pelo crescimento do comércio internacional Um sinal evidente de que os pressupostos mundiais que justificavam o muro brasileiro como fator de desenvolvimento econômico não eram mais os mesmos Mas também um sinal que fazia pouco sentido para os novos donos do poder Os militares assumiam o comando de uma economia que crescia ininterruptamente com taxas altas maiores que a média mundial havia setenta anos Um período tão longo de progresso em meio a um Ocidente que conhecera duas guerras mundiais e uma grande crise afetando os países mais desenvolvidos não era pouco a economia brasileira era naquele momento uma das que apresentavam maior crescimento no mundo no período entre 1890 e 1960 Em períodos diversos do cenário internacional a fórmula brasileira fora a mesma incentivar a indústria local e com isso obter uma taxa de crescimento do mercado interno maior do que a do setor exportador Também fazia parte da experiência brasileira a manutenção de um sistema político que se baseava no emprego do governo central como fornecedor de meios para o controle dos resultados eleitorais sistema este que fora herdado intacto do Império e já tinha 120 anos de existência além de ter sobrevivido à mudança de regime A rigor o rito militar de fusão com o Parlamento era uma aposta na continuidade desse controle uma defesa contra a ameaça que o voto significava para os controladores dos recursos políticopatrimoniais do centro Por isso os novos donos do poder sequer consideraram ler os eventos do mundo ao modo dos primeiros republicanos como indicador de que valia a pena descentralizar poder permitir o incremento de fluxos internacionais confiar na imagem modernista de ligação entre sertão e vanguarda buscar oportunidades novas no mundo Nesse contexto entrou em funcionamento a administração acima da política do novo regime comandada por técnicos Dois funcionários públicos federais de carreira se encarregaram da condução da política econômica Otávio Gouveia de Bulhões ministro da Fazenda e Roberto Campos ministro do Planejamento Eram ambos discípulos de Eugênio Gudin economista conservador que passara as duas décadas anteriores criticando a inflação brasileira e tendo poucas palavras para explicar o desenvolvimento Com a mudança do regime as ideias dos três sobre inflação passaram a nortear as ações do governo e foram expressas no Programa de Ação Econômica do Governo A inflação era apresentada como resultado da inconsistência da política distributiva concentrada em dois pontos principais 1 no dispêndio governamental superior à retirada do poder de compra do setor privado sob a forma de impostos ou de empréstimos públicos ii na incompatibilidade entre a propensão a consumir decorrente da política salarial e da propensão a investir associada à política de expansão do crédito às empresas Dentro deste quadro encontramse as três causas tradicionais da inflação brasileira os déficits públicos a expansão do crédito às empresas e as majorações institucionais de salários em proporção superior à do aumento da produtividade4 Havia um fator próprio do âmbito público e mensurável na argumentação os gastos governamentais acima das receitas e financiados por emissão de moeda Já os outros dois fatores são até hoje de quase impossível quantificação além de confundirem a esfera do governo e a dos mercados No caso do crédito às empresas o lado financeiro do capital privado no processo o termo expansão leva a supor facilidade para capitalizar empresas em geral num país onde o fiado e a informalidade eram muito presentes e a capitalização dos empreendimentos muito baixa até as grandes empresas eram familiares por falta de opção Mais imprecisa e impossível de quantificar até hoje era a afirmação de que uma das causas da inflação estaria nos aumentos do salário mínimo em proporção maior que o aumento da produtividade A maior parte do trabalho produtivo brasileiro naquele momento ainda era realizada pelo modo secular por produtores independentes tipo Jeca Tatu no sertão ou em associação entre eles e outros empresários parceiros meeiros diaristas etc O trabalho assalariado ainda estava restrito a uma minoria e o salário mínimo afetava uma minoria nessa minoria Nesse cenário a proposição de que o aumento do salário mínimo gerava inflação era no mínimo imprecisa em termos quantitativos Mas essas eram as causas vistas pelos novos agentes de um Executivo com poderes muito reforçados e portanto capazes de colocar a administração acima da política Agiram para atacar as causas que viam e vieram os resultados Para resolver o impasse dos gastos públicos o governo retirou poder de compra dos agentes privados num ritmo inaudito Thomas Skidmore resume As rigorosas medidas de arrecadação de impostos resultaram em significativa elevação da receita federal Ela passou de 78 do PIB em 1963 para 83 em 1964 depois para 89 em 1965 e 111 em 1966 A combinação com o corte de despesas reduziu o déficit público de 42 do PIB em 1963 para 16 em 19655 O governo federal estava longe de ser um gigante mesmo após o processo de 34 anos de concentração de poderes no período pós1930 Era ainda um governo que absorvia uma parcela relativamente modesta da produção total ou seja o setor privado continuava sendo o centro do processo de crescimento A grande mudança do regime militar foi promover uma forte estatização expandindo a presença do governo federal na economia Em apenas três anos a instância central de poder passou a abocanhar uma fatia da riqueza nacional 43 maior E essa foi a parte menor da retirada de recursos do setor privado O governo criou fundos compulsórios sobre o trabalho o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço dinheiro retirado de trabalhadores e empregadores que era administrado pelo governo transferiu compulsoriamente para a esfera federal todos os ativos do setor de previdência com a criação do INPS subordinou o novo instrumento das cadernetas de poupança a um banco oficial o BNH transformandose no dono do crédito imobiliário em todo o país Ao mesmo tempo reorganizou a estrutura jurídica e ampliou sua atuação direta como gestor de empresas Antes de 1964 apesar de o setor público federal ser relativamente modesto o governo tinha uma empresa monopolista no setor de petróleo a Petrobras financiada por impostos gerais tornarase operador da maior parte das ferrovias com a criação da Rede Ferroviária Federal controlava a maior mineradora a Companhia Vale do Rio Doce a maior siderúrgica a Companhia Siderúrgica Nacional e os maiores bancos Banco do Brasil Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico Caixa Econômica Federal comprava com poderes monopolistas as produções agrícolas exportáveis sobretudo a do café E como conseguiu muito dinheiro novo tratou de ampliar a atuação como empresário criando a Telebrás telecomunicações a Eletrobrás energia elétrica e a Siderbrás siderurgia Antes de 1964 havia 12 estatais em três anos tornaramse 44 A mudança efetiva de estrutura aconteceu também na área financeira A criação do Banco Central e uma lei de organização do sistema financeiro permitiram o surgimento de algo parecido com um mercado de capitais autônomo Mas logo este estava a serviço de seu principal beneficiário o próprio governo que passou a ter condições de captar poupança privada para cobrir seus déficits por meio de títulos indexados à inflação as ORTN Em suma os agentes do poder agora discricionário empregaram seu poder para ampliar enormemente o governo federal Ao modo que vinha dos séculos os interesses da esfera central se confundiam com o bem comum e aqueles da sociedade eram apresentados como interesses particulares Assim eram pensados os interesses nos termos do Antigo Regime a separação entre público aquilo que a lei define e privado a esfera de liberdade para além da lei não cabe bem para explicar a nova etapa de concentração de poder pela ditadura Com esse alerta se entende melhor um duplo prejuízo no setor privado Do lado do capital no setor privado os resultados foram inauditos Durante a gestão de Castelo Branco a indústria cresceu menos que a média do PIB brasileiro algo que era constante apenas até o final da década de 1870 e depois ocorrera apenas com a recessão de Joaquim Murtinho o ídolo de Eugênio Gudin Do lado do trabalho as coisas foram ainda piores O governo federal aproveitou seu peculiar modo de ver os salários como elemento inflacionário para estatizar algo que antes era parte do jogo econômico do mercado transformou reajustes salariais em norma governamental decretando reajustes abaixo da inflação algo só possível num país com sindicatos oficiais e uma lei que proibia greves Desse modo capital e trabalho foram subordinados ao governo federal o grande beneficiado pela política A obra de concentração econômica teve como paralelo a concentração política Do ponto de vista das instâncias de governo a esfera federal se tornou proporcionalmente muito maior que as estaduais e municipais Do ponto de vista da distribuição de poderes o Executivo federal adquiriu um enorme domínio sobre o Parlamento No que se refere à distribuição de poderes entre o eleitor soberano e a autoridade a concentração foi ainda maior Em 1966 a competência para eleger governadores e prefeitos das principais cidades do país foi retirada dos eleitores e transferida ao presidente da República uma concentração maior do que no Império e pouco menor do que ocorrera no Estado Novo Junto com essa concentração veio outra o governo definiu por decreto a existência de dois partidos um do governo e dos favores estatais outro da oposição e das dores sociais Com isso as eleições que restaram para deputados estaduais federais e prefeituras de cidades pequenas as fontes históricas do poder representativo se tornaram de novo mais rituais de sagração do que pleitos competitivos A grande expansão de poderes do governo federal no âmbito interno foi montada para realizar certos objetivos externos assim resumidos por André Lara Resende A restrição do balanço de pagamentos era diagnosticada como séria limitação ao crescimento Para superála o PAEG propunha uma política de incentivos à exportação uma opção pela internacionalização da economia abrindoa ao capital estrangeiro promovendo a integração com os centros financeiros internacionais e o explícito alinhamento com o sistema norte americano da Aliança para o Progresso6 A política de incentivos à exportação estava na base de todos os projetos nacionais bemsucedidos no mundo num momento em que o comércio internacional crescia mais que as economias locais Os países que cresciam incentivavam empresas que vendiam fora do país a entrar em outros mercados Mas na versão brasileira essa parte do projeto ficou apenas no papel O objetivo de exportar mais foi logo deixado de lado pelo regime militar durante o governo Castelo Branco as exportações brasileiras se mantiveram na média histórica de 12 bilhão de dólares sempre bem abaixo do recorde de 1951 Com o Brasil fora da vida democrática ocidental e fora das trocas econômicas internacionais ascendentes apenas a cultura acabou sendo o campo que recebia novidades e logo expressava o choque entre o andamento otimista do mundo após a retomada do comércio internacional expresso nessa área pelo rock o movimento hippie os protestos estudantis tudo transmitido quase em tempo real via satélite televisão rádio e a opressão interna O descompasso foi interpretado por grupos políticos que se inspiravam no exemplo de Fidel Castro para sustentar projetos de derrubada do regime pelas armas Assim como a tentativa de Prestes em 1935 ou a pregação do perigo comunista pelos golpistas de 1964 a guerrilha foi o combustível que o governo empregou para atalhar as sobras relevantes do poder dos cidadãos Em 1968 com o pretexto de combater a guerrilha o Ato Institucional no 5 determinou o fechamento do Congresso a pena de morte a censura à imprensa enfim a pletora de poderes discricionários dos autoritários republicanos Mantevese no entanto o rito de sagração em 1969 o Congresso foi reaberto para eleger um novo ditador com mandato A política econômica ficou nas mãos de um mesmo homem entre 1967 e 1973 Antônio Delfim Netto um novo tipo de tecnocrata era professor de economia da Universidade de São Paulo Mais ligado ao mundo da produção paulista do que ao das finanças federais ele introduziu pequenas variantes no modelo sobretudo na atenção às exportações em especial do setor industrial Em 1967 quando assumiu as exportações foram de 14 bilhão de dólares na média estagnada de todo o período pós1930 em 1973 ao deixar o cargo haviam alcançado 62 bilhões de dólares mais do que quadruplicaram aproveitando a onda de crescimento do comércio internacional O café pela primeira vez desde a Independência deixava de ser o principal produto de exportação e pela primeira vez desde a proclamação da República deixava de ser a fonte maior da expansão do mercado interno ordenando as trocas com o exterior A indústria aparecia agora como um eventual novo passe para a criação de oportunidades num mercado mundial no qual o comércio crescia em proporção superior às economias locais no qual empresas privadas atuando internacionalmente tomavam o lugar dos governos nacionais como centros dinâmicos de acumulação de riqueza Mas ao mesmo tempo o poder discricionário e autoritário do governo federal chegara ao máximo CAPÍTULO 68 O muro e a Grande Muralha NO DIA 15 DE MARÇO DE 1974 ERNESTO GEISEL TOMOU POSSE COMO ditadormandatário em um momento crucial da conjuntura mundial primeiro em agosto de 1971 os Estados Unidos haviam tomado a histórica decisão de renegar os acordos de Bretton Woods rompendo a promessa de trocar notas de dólares por determinada quantidade de ouro Terminava ali a crença na relação entre metal e papelmoeda que sustentara as relações entre moedas nacionais durante séculos Toda a moeda passava a ter valor apenas fiduciário um valor que dependia somente da credibilidade no que estava impresso no papel O Brasil conhecia essa forma de moeda desde o Império Gênios como o barão de Mauá souberam interpretar as vantagens dessa realidade contra a então avassaladora crença metalista dos conservadores A constatação de que o câmbio era um preço e não um valor estável permitiu a política monetária de Rui Barbosa que mudou a face do crescimento na República O mesmo conceito esteve na base da Caixa de Conversão criada com o Plano de Valorização do Café que permitiu a industrialização acelerada E também foi aproveitado por Getúlio Vargas em 1930 quando da proteção do mercado nacional A globalização da moeda fiduciária trouxe consequências importantes para o Brasil Com ela todas as moedas podiam ser desvalorizadas e desaparecia o elemento de proteção para o país em relação às grandes economias praticantes de câmbio fixo a grande oportunidade a favor do país explorada pela Caixa de Conversão no Plano de Valorização do Café Além disso a decisão transformou uma montanha de papel impresso que podia ser trocado por ouro numa massa de moeda de reserva e os Estados Unidos ganharam a monumental taxa de senhoriagem embutida na diferença Como todas as grandes economias seguiram os Estados Unidos no abandono do padrãoouro houve um aumento potencial gigantesco de instrumentos de liquidez no cenário internacional O fluxo de divisas entre nações voltou ao que era no século XIX um atrator para negócios entre nações pois agora além do comércio haveria um crescimento dos instrumentos de crédito para facilitar transações Era mais que uma oportunidade para o Brasil rever a política de monopólio estatal nas transações com divisas estabelecida no vórtice da crise de 1929 Em segundo lugar a Conferência de Estocolmo promovida em 1972 pelas Nações Unidas teve como tema as ações do homem sobre o meio ambiente e sua conclusão foi de que se estava chegando ao limiar da capacidade de reposição do equilíbrio natural o aquecimento global era uma das consequências visíveis desse processo Para lidar com a questão foram tomadas várias medidas entre as quais a criação do primeiro programa mundial de meio ambiente Assim começou a surgir um consenso científico e a percepção de que se tratava de um problema global que teria de ser resolvido por todas as nações e todos os homens ao mesmo tempo Tal constatação implicava a revisão de um pressuposto conceitual comum aos iluministas e aos marxistas a noção de natureza como algo inesgotável um repositório do qual se pode sacar tudo gratuitamente e ao infinito Todos os princípios fundadores do capitalismo e do socialismo se estruturavam em torno dessa noção Terceiro outro sinal de mudança radical no mundo só aparecia em ambientes isolados e comunidades fechadas Em outubro de 1969 foi efetuada a primeira transmissão de mensagens entre computadores No mesmo mês aconteceu a primeira interligação de computadores entre a Universidade de Stanford e a da Califórnia No mês seguinte já estava em funcionamento uma rede de quatro computadores entre centros universitários que seria o embrião da Internet Em 1973 aconteceu outro evento relevante GrãBretanha Irlanda e Dinamarca passaram a fazer parte do Mercado Comum Europeu Além da mera ampliação isso marcou uma alteração do escopo do projeto original começava a ser desenhado o mapa para a cessão de competências cada vez mais relevantes dos membros do grupo para a entidade supranacional Era uma inovação extraordinária no convívio entre nações permitindo que rivalidades seculares dessem lugar a convivência pacífica e respeito a tratados institucionais Esse conjunto de sinais anunciando novas perspectivas mundiais era forte o suficiente para permitir apostas ousadas de líderes nacionais No início da década de 1970 embora a China comunista fosse o país mais populoso do mundo sua economia não se destacava pela pujança o PIB em números absolutos era menor que o do Brasil e a renda per capita muito menor Era também uma economia fechada em si mesma há milênios isolada do mundo Quando os faraós ainda erguiam pirâmides os chineses iniciavam a maior obra de construção de todos os tempos uma muralha para separar a sua civilização da barbárie circundante Foram precisos longos quatro séculos de contatos diretos com o Ocidente para que afinal os chineses concebessem a hipótese de um mundo formado por nações com iguais direitos e governos Em 1949 o Império milenar e o imperador considerado o elo entre os mundos terreno e divino foram derrubados O líder MaoTseTung fez o que pôde para mudar as coisas acordos com a União Soviética reeducação da elite burocrática fuzilamentos em massa envolvimento em duas guerras com os Estados Unidos Ao fim e ao cabo constatou com humor que só conseguira mudar alguns quarteirões na periferia de Pequim e jogou uma cartada radical Enviou sinais aos Estados Unidos e em 1971 Henry Kissinger então assessor de segurança nacional do presidente Richard Nixon fez uma viagem secreta à China No ano seguinte o próprio Nixon trocou apertos de mão com o camarada Mao indicando que a muralha seria aberta de dentro para fora O governo comunista da China foi o primeiro a decidir que o socialismo num só país era uma possibilidade sem futuro Dali em diante ainda que o Partido Comunista mantivesse o controle monopolista da política o objetivo central da nação seria o da integração na economia global Para seguir adiante a China passou a admitir a entrada de empresas estrangeiras e mais importante a criar um setor privado nacional capaz de atuar além das fronteiras nacionais seguindo a receita que começava a se tornar norma Era um projeto mais que incerto na medida em que o país não tinha legislação apropriada sobre propriedade nem tradição democrática e tampouco empresas empenhadas em negócios internacionais Porém como a iniciativa de abertura refletia a tendência mundial na direção da integração logo apareceram os negócios Por fim a posse de Ernesto Geisel coincidiu com um sinal que não podia ignorar reunidos na OPEP os países produtores de petróleo quadruplicaram o preço da mercadoria Como esta era vendida para todo o mundo os produtores passaram a receber quatro vezes mais e a aplicar a maior parte desses recursos em compras no exterior Com isso os fluxos financeiros mundiais sofreram uma aceleração muito maior que a das economias nacionais ou mesmo do comércio internacional Os bancos acumularam montanhas de dinheiro em depósitos e como tinham de aplicar os recursos dos petroclientes foram atrás de ativos e clientes interessados em dinheiro tornandose eles mesmos financiadores internacionais De modo abrupto desaparecia o gargalo na disponibilidade de crédito que havia marcado as décadas anteriores assim como a época em que apenas agências de governo financiavam projetos de longo prazo Agora havia abundância de dinheiro no mercado internacional Esse conjunto de sinais que apontavam uma nova configuração mundial chegou ao Brasil num momento em que os dados da sua economia também podiam ser lidos de modo otimista por um ditador A tal ponto que o crescimento da economia entre 1970 e 1973 foi batizado pelos entusiastas do regime como milagre brasileiro em todos esses anos a taxa de crescimento do PIB foi superior a 10 em 1973 chegou mesmo a 143 com o setor industrial batendo nos 166 Tal sucesso foi visto como prova do acerto da opção de aumentar a participação do governo central na economia marca do regime Num cenário de três gerações de crescimento alto quase ininterrupto olhar para dentro fazia sentido Mas Ernesto Geisel era um autocrata militar um homem da tradição conservadora além de nacionalista Diante do novo panorama mundial desdenhou até mesmo das muralhas milenares que estavam sendo destruídas Quando mirou o lado da economia interna vislumbrou um futuro glorioso Os conservadores sempre cultivaram uma visão muito peculiar do próprio papel no sucesso da nação Essa concepção era reforçada pelo argumento oficial demolido pela econometria de que o crescimento brasileiro acontecera depois de 1930 ou seja após o momento em que o governo central passara a desempenhar papel relevante no crescimento econômico Esse modo de entendimento era adequado para quem considerava a nação dividida entre uma elite com formação técnica e capacidade de pensar e um povo analfabeto e incompetente De quem supunha estar fazendo o milagre brasileiro Uns poucos números demográficos embalavam o orgulho A fatia da população urbana saltara de 31 em 1940 para 44 em 1960 Em 1970 a parcela dos brasileiros que moravam em cidades tornouse majoritária chegando a 56 da população total doze pontos percentuais de aumento em apenas uma década Tudo isso dava margem a duas suposições plausíveis para um ditador uma a de que o controle monopolista das transações com divisas por parte do governo era um fator de grande crescimento e outra de que a centralização de poder na ditadura ajudara a acelerar ainda mais o progresso graças ao predomínio das decisões técnicas sobre as escolhas errôneas do povo e de seus representantes políticos pouco qualificados Uma visão como essa leva obrigatoriamente a deixar de lado alguns aspectos na equação do progresso nacional Em primeiro lugar a distribuição do resultado da produção social entre aqueles que trabalham Até a ditadura o processo mais relevante dessa distribuição era o que formava um mercado interno crescente baseado nas trocas entre os produtores independentes do sertão a maioria da população rural que consumia produtos da indústria e os capitalistas da cidade onde se consumiam produtos rurais Esse era um processo quase automático que vinha acontecendo desde os tempos coloniais com os mercados funcionando nas casas os negócios realizados sem nenhuma intervenção do governo Por muito tempo tudo acontecera sem necessidade de regulação e sem solavancos Como resultado as rendas no sertão continuaram a crescer no período republicano mas em proporção menor que o incremento dos ganhos dos trabalhadores urbanos Assim à medida que apareciam as oportunidades as pessoas iam se mudando para a cidade A intervenção governamental se resumia à definição do salário mínimo instrumento que afetava cada vez mais gente mas não a maioria da população que continuava no campo onde não valiam as regras de reajuste Tal equilíbrio automático pelas regras de mercado foi rompido com a ditadura uma necessidade decorrente da violenta retirada de recursos da sociedade para o governo central Os reajustes de salário abaixo da inflação trouxeram um resultado direto uma queda violenta nos rendimentos dos mais pobres Em 1960 a metade mais pobre da população tinha 174 do total da riqueza nacional em 1970 sua fatia desse bolo era de 149 ou seja 15 menor Já os 20 mais ricos aumentaram sua participação de 549 para 652 A redução da renda dos mais pobres se espalhou do teto assalariado para o piso sertanejo mas numa proporção muito difícil de ser medida dado o caráter informal ou seja fora da proteção do Estado e das estatísticas oficiais dessa produção Uma medida indireta desse impacto é a própria forma que tomou a migração para as cidades No período anterior à ditadura havia os tradicionais subúrbios mescla do urbano e do rural nas franjas da cidade eles se transformaram nas periferias a versão urbana empobrecida de economia informal que ia da posse do barraco até o bico no trabalho No sentido oposto a medida era a nova organização do sertão O trem foi substituído pelas rodovias como elemento facilitador de uma penetração territorial que alcançou até mesmo a Amazônia Tratores e motosserras derrubaram a mata como nunca antes na maioria dos casos para colocar no lugar pastos e gado Tudo isso era visto como progresso como eliminação da parte da sociedade e da economia que não estava na esfera de influência do governo federal ao mesmo tempo que este era pensado como único elemento construtor da nação Com base em sua única experiência empresarial à frente da empresa estatal que monopolizava a produção de petróleo Geisel se tornou um entusiasta tanto do planejamento como das grandes possibilidades que pareciam surgir do controle estatal da economia Diante das mudanças no plano internacional o ditador decidiu seguir numa direção cujo pressuposto central era tão simples que parecia simplório a ação do governo federal sustentara o crescimento do país a conjuntura externa trazia a grande oportunidade de acelerar ainda mais esse crescimento interno levando a economia adiante por meio da ampliação em escala da mesma receita que dera certo ou seja a de desenvolver o mercado interno em ritmo maior do que o restante do mundo tudo comandado por alguém que tinha poderes de ditador e fixação por enquadrar subordinados O fato mais relevante contra a ideia o crescimento do comércio internacional em escala maior que os mercados internos nacionais foi ignorado e a ideia colocada em ação O instrumento de Geisel chamavase Plano Nacional de Desenvolvimento Nele havia previsão para construir ao mesmo tempo tudo o que faltava para o país virar uma grande potência usinas nucleares empresas petroquímicas siderúrgicas mineradoras indústria pesada novas ferrovias e rodovias energias alternativas ao petróleo hidrelétricas centros de pesquisa e o mais que a imaginação permitia colocar numa folha de papel Como todos os planos ousados o PND deixava de lado detalhes como custos exatos viabilidade disposição dos agentes Através dele e sob o comando de Mário Henrique Simonsen na área econômica o governo federal passaria a exercer domínio quase absoluto sobre os grandes agentes privados recorrendo ao método autoritário usual dava proteção e dinheiro em troca de obediência As tarefas privadas foram determinadas nos moldes das campanhas militares O governo escolheu a parte que tocaria por si mesmo como empresário e a criação de empresas estatais virou prática corriqueira era em média mais do que uma empresa nova por semana ao final da gestão havia nada menos de 440 novas empresas estatais Esse era considerado o centro da economia restando as margens para o setor privado Em vez de aguardar a atuação de empresários que abrissem mercados o governo passou a dizerlhes de que forma iriam investir o dinheiro que de resto já estava disponível Havia regras prontas para tudo O setor petroquímico seria formado por empresas com capital dividido em partes iguais entre o Estado um grupo privado nacional e uma empresa multinacional e assim foi feito As indústrias de bens de capital seriam formadas pela expansão de grupos nacionais O programa do álcool substituto do petróleo seria controlado pela Petrobras e realizado por grandes empresas agrícolas Os problemas que surgiam iam sendo resolvidos com o que estivesse à mão pouco importando os custos Se não havia mercado para os projetos logo vinha uma oferta de dinheiro sob a forma de subsídios Em 1970 os subsídios admitidos oficialmente eram 08 de todo o PIB em 1980 essa porcentagem havia quase quintuplicado com o governo gastando nada menos que 36 do PIB nos mais variados campos desde a criação de grandes empresas de bens de capital até a plantação de seringueiras passando pelo programa do álcool ou a produção de filmes Assim os investidores privados tornavamse mera extensão da vontade nacional de crescer cuja única representação era o governo central De onde vinha tanto dinheiro Em vez de integrar o país nas oportunidades que se abriam no mundo o ditador resolveu limitar essa integração a um ato que não apenas servia aos planos de expansão do Estado como mantinha o isolamento do país o próprio governo se encarregava de tomar os empréstimos no mercado externo Como diria um dos justificadores da opção Carlos Langoni era uma oportunidade imperdível de aproveitar o que pareciam ser erros dos países desenvolvidos Quase todos os países importadores de petróleo desenvolvidos ou subdesenvolvidos precisaram decidir como lidar com o severo desequilíbrio em suas contas externas produzido pelo choque do petróleo Nesse ponto os padrões divergiram os países desenvolvidos escolheram se ajustar prontamente reduzindo seus déficits em conta corrente ainda que a custa de um menor crescimento Em contraste a maioria dos países subdesenvolvidos decidiu financiar o desequilíbrio externo pela via do acesso ao renovado mercado financeiro internacional Entre 1974 e 1978 as taxas de juro reais eram negativas em 1 Em outras palavras havia literalmente fundos subsidiados emprestados a taxas menores que a inflação uma oferta que ninguém podia recusar Os países subdesenvolvidos pensavam ter encontrado a pedra filosofal1 Assim se formou a corrente da felicidade O governo ditatorial fazia planos envolvendo empresas estatais e o setor privado As estatais pegavam dinheiro no exterior O governo fazia o câmbio entregando moeda nacional às estatais e usando os dólares emprestados a elas para pagar a conta do petróleo Continuava comprando as principais produções agrícolas em moeda nacional mantendo o controle sobre as divisas restantes O resultado financeiro da operação aparecia como dívida externa Ela era de 52 bilhões de dólares em 1970 o equivalente a dois anos de exportação Cresceu para 171 bilhões em 1974 após o aumento do petróleo o que representava 21 anos dado o aumento das exportações no intervalo Depois subiu sem parar até atingir 499 bilhões de dólares em 1979 último ano do governo Geisel quando equivalia a 33 anos de exportações Na óptica de Ernesto Geisel a obra era um sucesso O objetivo do Plano Nacional de Desenvolvimento era o de empregar capital externo emprestado pelo governo federal para aplicar nas empresas estatais nacionais isolando o Brasil dos fluxos internacionais de mercadorias Pela avaliação de Dionísio Dias Carneiro no que se refere aos resultados do governo Geisel o objetivo foi cumprido Talvez o aspecto mais surpreendente do governo Geisel tenha sido a rapidez com que as medidas lograram reduzir o coeficiente de importação da economia Em 1974 as importações correspondiam a cerca de 12 do PIB Em 1978 o coeficiente importado já era de 7252 Importações proporcionalmente menores em relação ao todo da economia significavam também um muro com portas mais estreitas entre o Brasil e o mundo O atingimento dessa meta era visto como potência em construção de tal porte que permitia afinal remover alguns dos poderes concentrados na figura do ditadorpresidente Havia inclusive razões políticas para tal abertura O primeiro teste real da eleição transformada em puro ritual de legitimação do regime após o AI5 deuse em 1972 com a vitória arrasadora da ditadura A mistura de censura com propaganda ufanista carreou quase 80 dos votos para o partido governista e o ditador da época deixou o governo com uma taxa de popularidade quase da mesma magnitude Durou pouco A retomada dos seus poderes pela soberania popular começou logo em seguida pois apenas ditadores acreditam em sagração permanente pelas urnas Em 1974 os eleitores votaram maciçamente em candidatos a senador da oposição era o sinal possível da desaprovação popular do regime Se fossem uma democracia e uma eleição para valer cairia o governo Como não eram os ganhos de poder pela sociedade foram outros Em 1976 foi abrandada a censura prévia a jornais e revistas No mesmo ano pulularam manifestações estudantis por todo o país Dois anos depois foram decretadas greves operárias apesar da proibição legal e revogadas as disposições arbitrárias do AI5 Em 1979 foi decretada uma anistia permitindo a volta ao país de centenas de exilados Os sinais de dentro também não foram ouvidos e o sonho virou um gigantesco pesadelo No auge do endividamento e da infinidade de obras em andamento em 1979 os produtores da OPEP aumentaram ainda mais o preço do barril de petróleo o patamar de 12 dólares em 1978 foi sendo elevado continuamente até atingir 29 dólares em 1980 Se a adaptação ao primeiro choque do petróleo havia sido difícil o segundo exigia medidas drásticas Em vez de repetir os métodos moderados de adaptação ao aumento de 1974 quando as taxas de inflação superaram algumas vezes as taxas de juros possibilitando os empréstimos subsidiados que haviam atraído o Brasil muitos países desenvolvidos tomaram a decisão radical de provocar uma recessão por meio do aumento das taxas de juros Foi o que ocorreu na Europa nos Estados Unidos e no Japão A taxa de juros real inglesa por exemplo passou de 166 ao ano em 1978 para 415 em 1979 e 739 em 1980 As taxas nominais passaram de 20 Ainda na etapa de concepção planejamento e concretização o movimento de marcha forçada econômica promovido pelo governo ditatorial viuse submetido ao crivo das contas feitas com as novas taxas de juros O castelo de cartas ruiu de imediato O governo federal agora tinha muito buraco comercial para cobrir muito juro para pagar muita dívida vencendo E com quem ficaria a conta Claro que com o setor produtivo nacional agora formado por centenas de estatais endividadas muitas sem a menor perspectiva de faturar nem sequer uma fração dos empréstimos tomados pelas empresas privadas que ainda tivessem lucro e pelos cidadãos que pagavam impostos Quem receberia Os países que haviam apostado na globalização e preparado as suas empresas para aproveitar as novas oportunidades CAPÍTULO 69 Cuidando da franguinha JOÃO BAPTISTA FIGUEIREDO TOMOU POSSE EM MARÇO DE 1979 COM UM MANDATO estendido para seis anos Oficial de cavalaria tinha certo pendor para metáforas cruas e diretas Comunicou as seguintes ordens ao ministro Antônio Delfim Netto O Brasil é uma franguinha o Geisel fez botar um ovo de avestruz Tua missão é costurar a franguinha Metáforas de mau gosto raramente sintetizam situações complexas Mas essa de alguma forma ajuda a encaminhar o entendimento dos problemas brasileiros nos tempos subsequentes A frase traz um sujeito pessoal que teria feito uma reforma o Geisel É proferida por outro sujeito que está no mesmo papel de demiurgo delegando a missão a um auxiliar Ambos os sujeitos são pensados como detentores de poderes muito grandes com relação ao corpo dilacerado da nação Um dos modos de entender o tamanho desses poderes no momento em que a frase foi pronunciada é medir sua concentração nessas figuras pessoais Embora tivessem passado pelo ritual de unção no Congresso e aceitassem a limitação temporal de um mandato ambos detinham poderes discricionários que apesar da abertura em andamento eram bem extensos Ao longo do regime militar tais poderes foram sendo acumulados aos poucos após serem retirados da esfera da sociedade dos demais poderes nacionais das instâncias descentralizadas de governo de outros agentes privados da economia e por meio da incorporação de franquias de exceção Começando pela sociedade o poder retirado foi basicamente o de intervir nos destinos da nação por meio do voto em outras palavras a soberania geral perdeu atribuições para o arbítrio pessoal O eleitor deixou de escolher o presidente da República os governadores estaduais e os prefeitos das principais cidades Os únicos representantes que continuaram a ser eleitos foram os parlamentares mas as franquias do Legislativo também foram muito limitadas e transferidas ao ditadorpresidente Parlamentares não podiam criar partidos políticos não podiam legislar sobre gastos nem mesmo elaborar os orçamentos os seus mandatos podiam ser cassados arbitrariamente pelo chefe do Executivo e nem sequer tinham acesso a informações sobre a gestão financeira do governo Processo semelhante ocorreu nas esferas locais de governo Passaram dos eleitores para o poder pessoal do ditadorpresidente a indicação dos governadores de estado embora sujeitos a um ritual de sagração dos prefeitos das capitais e das então chamadas áreas de segurança nacional um eufemismo para qualquer cidade importante A concentração incluía ainda os poderes retirados de várias outras competências e concentrados de maneira permanente na instituição crucial do AI5 legislar por decreto em matérias de âmbito federal estadual e municipal decretar o recesso do Congresso suspender os direitos políticos de qualquer cidadão remover funcionários inclusive juízes por decreto suspensão do habeas corpus censura à imprensa prisão sem processo No campo dos resultados econômicos a medida mais direta de concentração de meios na esfera central de poder é a da arrecadação de tributos pelo governo federal como porcentagem do total da riqueza nacional Nos tempos do governo descentralizado do início da República o governo federal arrecadava algo estimado em 4 do PIB A partir da década de 1930 com toda a centralização essa proporção oscilou em torno de 6 com a carga tributária total ficando ao redor de 10 No final da década de 1970 a carga tributária total havia mais que dobrado passando a representar algo em torno de 25 do PIB Toda a concentração se deveu ao governo federal cujas receitas atingiram 1945 do PIB em 1979 Ao longo de todo o regime militar a arrecadação dos estados se manteve em torno dos 5 e a dos municípios em torno de 1 do PIB Essa concentração de riqueza e meios nas mãos do governo federal compunha apenas uma parcela de seu poderio de intervenção na área econômica aquele cuja contabilidade entrava no Orçamento da União As 440 estatais do governo ficavam parcialmente fora dessa conta competindo diretamente com o setor privado pelos recursos econômicos produtivos Também ficavam fora da conta recursos de crédito nas mais diversas formas como subsídios e empréstimos especiais consignados em orçamentos separados só os primeiros superavam 2 do PIB na virada para os anos 1980 Igualmente faziam parte dos poderes as reservas legais de determinadas áreas da economia petróleo riquezas minerais telecomunicações e energia eram setores nos quais tudo dependia de autorização do governo federal No setor financeiro continuava valendo o monopólio da compra e venda de divisas que vinha desde 1930 Era monopólio do governo a administração dos fundos de previdência e das cadernetas de poupança ainda que esses recursos fossem teoricamente privados Apenas os bancos estatais tinham capacidade para realizar empréstimos de longo prazo O governo federal captava ainda poupança privada através da emissão de títulos da dívida pública No campo das relações entre capital e trabalho o governo detinha os monopólios de determinar os reajustes salariais por lei autorizar e controlar o funcionamento de sindicatos controlar a Justiça do Trabalho fazer cumprir a lei que proibia greves controlar os preços de venda de milhares de produtos por simples portarias Esse era o instrumental que permitira ao ditador gestar o ovo de avestruz com dinheiro externo e esperança de riqueza Antes de terminadas as obras que iriam gerar a abundância nacional por meio da ação estatal aconteceu o diálogo entre o presidente e seu ministro E o ministro encarregado da missão entendeua do modo que interessava ao chefe piadista Não se tratava de aliviar as dores da franguinha mas de preparála para alimentar o avestruz do governo federal O sucesso em estreitar as portas de importação e exportação em manter sob estrito controle as portas do muro entre o Brasil e o mundo apareceu mas sob a forma de um fracasso irremediável No lugar de ganhos na produção interna superiores às despesas para instalar tal produção havia uma realidade inevitável a captura de parte desses ganhos pelo governo que financiava as obras e os pagamentos aos credores externos que haviam financiado a instalação A elevação dos preços do petróleo em 1979 provocou a necessidade de mais idas e vindas de dinheiro e mercadorias pelas portas estreitas do muro Num sentido saíam os recursos para pagar o petróleo 606 milhões de dólares em 1973 25 bilhões em 1974 4 bilhões em 1978 62 bilhões em 1979 95 bilhões de dólares em 1983 Os recursos para saldar essa despesa adicional poderiam vir de maiores exportações brasileiras mas era a diminuição da necessidade de importar e comerciar com o exterior que justificava o plano O desempenho das exportações foi previsivelmente muito inferior ao crescimento das importações de petróleo 62 bilhões de dólares em 1973 79 bilhões em 1974 12 bilhões em 1978 152 bilhões em 1979 219 bilhões de dólares em 1983 A diferença entre os gastos ampliados com petróleo e o menor crescimento de exportações só deixou uma saída ao governo federal buscar mais recursos no exterior Como resultado a dívida externa só cresceu passando de 125 bilhões de dólares em 1973 para 171 bilhões em 1974 435 bilhões em 1978 50 bilhões em 1979 e 813 bilhões de dólares em 1983 Em decorrência disso as portas dos fluxos internacionais mais estreitas ficaram instáveis por causa dos fluxos de capitais muito aumentados No centro de toda essa instabilidade estava o governo federal comprometido com o endividamento e pressionado pelos credores externos De 1980 em diante toda a política econômica resumiuse a tirar mais da franguinha para alimentar o avestruz governamental que devia ao mundo pelo dinheiro para as obras do milagre Para tanto o governo recorreu a diversos métodos O primeiro instrumento heterodoxo fora aplicado pelo próprio Delfim Netto pouco depois da conversa com Figueiredo fixação prévia dos índices de indexação da economia em 45 Como houve um pequeno erro na previsão 45 de correção por estimativa e 110 de inflação real em 1980 os ativos dos credores internos o maior dos quais era o próprio governo foram reduzidos à metade já os devedores do governo que tanto precisava de dinheiro tiveram suas dívidas reduzidas na mesma proporção O ato trouxe à luz o parceiro gêmeo da dívida externa a inflação Nos mesmos anos dos indicadores mostrados anteriormente eis seu comportamento 156 em 1973 269 em 1974 497 em 1978 773 em 1979 211 em 1983 Dessa maneira a inflação se tornou o principal meio pelo qual o governo federal passou a extrair riqueza da franguinha para pagar as contas O sonhado método seria o aumento da arrecadação uma vez que se previa um crescimento da economia da ordem de 10 anuais em média Mas a realidade era que os tempos do crescimento contínuo da economia começavam a ficar para trás O incremento do PIB teve o seguinte comportamento com os números do PIB da indústria entre parêntesis 14 166 em 1973 90 78 em 1974 48 61 em 1978 72 69 em 1979 e 31 104 em 1981 28 61 em 1983 O desastre estava feito Assim se tornou crônica a queda de desempenho da economia brasileira em relação ao mundo que crescia com a globalização Por meio de inflação e recessão fazendo aumentar a distância que separava as duas realidades o ministro foi arrancando do setor privado o alimento para o avestruz Os instrumentos para manter o setor privado pagando a conta do desequilíbrio financeiro do governo federal foram se tornando cada vez mais violentos congelamentos de preços confiscos moratórias No lado de lá do muro as apostas no posicionamento dos governos como incentivadores das empresas privadas as únicas capazes de atuar em âmbito global para que buscassem oportunidades nas trocas internacionais foram se mostrando vencedoras Na década de 1970 o comércio internacional cresceu num ritmo superior ao dobro do crescimento das economias nacionais O impacto das crises do petróleo interrompeu um pouco o processo mas a retomada da tendência anterior foi clara entre 1985 e 1990 a média do crescimento das economias nacionais foi de 39 contra 58 do comércio internacional A tendência acelerouse ainda mais no quinquênio seguinte 27 para as economias nacionais 61 para o comércio internacional Já o Brasil foi ficando para trás Em 1973 o país era a economia que mais crescera no mundo nas oito décadas anteriores a República permitira o aproveitamento das oportunidades num mundo de comércio aberto e com elas houve retomada do crescimento como nos tempos coloniais a revolução de 1930 criara as condições para o crescimento num mundo fechado Então o pagamento da conta do muro que separava o Brasil da globalização era mais que justificado naquele cenário as taxas de crescimento internas haviam ficado muito acima da média mundial Agora a situação se invertia Enquanto o muro brasileiro ampliado levava a dívidas externas desequilíbrio da economia interna e taxas pífias de crescimento médio os sinais do mundo continuavam indicando outras direções Ao longo da década de 1980 outros Estados nacionais Grécia Portugal e Espanha aderiram ao projeto europeu de criação de um ente supranacional formando uma massa crítica suficiente para ensaiar um passo mais ousado a criação da Comunidade Europeia e de uma moeda única o euro Tudo visando ampliar a escala das trocas internacionais diminuir custos e aumentar a competitividade de cada economia No Brasil porém a ditadura ampliara as barreiras deixando a conta para a nação Sair dessa situação só era possível com a diminuição dos poderes concentrados no governo federal A ditadura manteve a mesma marca de busca de legitimidade do modelo positivista gaúcho que lhe deu origem e que Getúlio Vargas não copiou em seu período como ditador pleno uma concessão à ideia metafísica da representação através da manutenção de mandatos e da realização de eleições No projeto dos construtores do sistema essas eleições deveriam ser como eram as do Império pura sagração da sabedoria do alto nunca expressão da soberania vinda de baixo Para tanto o sistema partidário fora ordenado com a criação do partido do regime e do partido contrário ao regime Cada eleição portanto deixava de ser um ritual de escolha livre dos cidadãos para se tornar um ritual de aprovação do regime Tal concepção tornava imperiosa a intervenção do governo no pleito Cada candidato que se apresentava em seu partido por mais humilde que fosse era um portavoz do Estado na sociedade Apresentavamse com cargos oficiais favores do governo ou outros signos da opulência daquilo que representavam Mostravam aos eleitores a eficácia da ditadura desde a colocação de um time local num campeonato nacional de futebol até obras faraônicas tudo servia a esse propósito Assim revestiam o lado adversário com a danação de Getúlio Vargas Aos amigos tudo aos inimigos a lei Os opositores eram presos perseguidos afastados dos favores condenados à miséria Eram se tanto as vozes da sociedade condenada a viver em sua miserável inferioridade No entanto a falta de alternativas levou o ditadorpresidente a iniciar a devolução de poderes ao eleitor soberano O passo seguinte à anistia de 1979 foi a recuperação pelos cidadãos do direito de eleger governadores estaduais em 1982 O eleitorado deu um recado claro colocando oposicionistas nas principais cadeiras São Paulo Minas Gerais Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul Em todos esses estados havia alguma condição para colocar em prática políticas alternativas sobretudo na área social Com elas foi se tornando cada vez mais claro que os tempos do regime autoritário estavam contados Mas o regime ainda tinha força derivada do fato de que o governo federal distribuía dinheiro público como instrumento de obtenção de aliados políticos notícias favoráveis eleitores desavisados O Estado era explicitamente patrono de um partido político Com o declínio da capacidade de se legitimar cada vez mais o regime dependia desses instrumentos patrimonialistas para se manter no poder Nesse contexto preparou a sagração indireta do novo mandatário pelo Congresso onde manobras de toda espécie o Executivo podia indicar por decreto um terço do Senado por exemplo garantiriam uma maioria A situação mudou quando milhões de brasileiros saíram às ruas em 1984 reivindicando eleições diretas para presidente Uma emenda que viabilizaria a ideia foi derrotada no Parlamento mas o movimento popular se mostrou suficiente para que o oposicionista Tancredo Neves acabasse eleito para suceder o piadista Figueiredo em 1985 A mudança aconteceu com a presidência da República caindo no colo do sempre governista apoiava o regime desde 1964 José Sarney que tomou posse no lugar do titular doente e falecido logo em seguida Embora a muitos parecesse pequena a mudança abriuse espaço para esperanças As primeiras eleições da nova fase aconteceram sob o marco de uma decisão simbólica em 1985 os analfabetos recuperaram o direito de votar depois de 104 anos de proibição Com a implantação do sufrágio universal o Brasil voltava a se equiparar a todas as democracias do Ocidente e a outras tantas do Oriente sem qualquer abalo no funcionamento do sistema pois afinal haviam sido os analfabetos da colônia que ensinaram os letrados a votar e governar como representantes eleitos As esperanças de reversão do quadro tenebroso da economia explodiram no momento da campanha para a eleição da Assembleia Constituinte por causa do êxito temporário da primeira tentativa de controlar a inflação num golpe o que rendeu a eleição em massa de políticos criados na estrutura do regime militar filhos dos favores explícitos do governo Os trabalhos dos constituintes tiveram início no momento em que o plano fracassou mas não as esperanças no futuro Ainda pagando a pesada conta de manutenção do governo ainda sob a pesada influência dos investimentos estatais na sagração de aliados o Brasil recomeçou a pensar com influência do soberano eleitor em seu destino CAPÍTULO 70 Pasturo A DITADURA ENTREGOU O GOVERNO FEDERAL DE PORTEIRA FECHADA NAS CONDIÇÕES lastimáveis em que estava um futuro que era cada vez mais passado um passado que tinha cada vez menos futuro Mais do que os erros estratégicos em relação às circunstâncias mundiais o crescimento econômico baixo a dívida externa e a inflação a reinstauração de um governo minimamente democrático exigia a superação de desafios que iam bastante além de recuperar o desempenho produtivo A extrema concentração de instrumentos econômicos permitira que os governos militares mais acentuadamente o governo federal mas também os estaduais e as prefeituras atuassem não apenas em seus campos tradicionais mas também na esfera do mercado através das empresas estatais Esse tipo de atuação econômica se caracteriza pelo emprego de capital e trabalho em empreendimentos que visam o lucro Mas faz isso de forma muito diversa dos empresários comuns No setor privado o capitalista precisa acumular previamente o necessário para entrar na atividade gasta sua poupança ou convence alguém com dinheiro a se associar Contrata trabalho produz vende Remunerase pelo lucro quando este existe Se perde o prejuízo é dele eou de quem empatou capital Já os governos entram nessa atividade de outra forma Captam a poupança de empresários e trabalhadores via impostos além de contraírem dívidas Ou seja retiram da poupança geral da sociedade os recursos que investem transferindoos para funções diferentes daquelas típicas de governo Remuneramse tanto pelo lucro como pelo aumento geral da arrecadação de impostos Quando perdem o prejuízo é socializado a conta não fica para quem investiu mas vai para todos Se há dinheiro pelo pagamento dos prejuízos com recursos públicos se não há por meio da emissão de dinheiro algo fora do alcance dos empresários privados Para obter os recursos que lhe permitiram atuar no mercado a ditadura brasileira duplicou a retirada de poupança da sociedade por meio de impostos desviando muito dinheiro para funções outras que não as tradicionais As duras marcas desse processo apareceram já no período de acumulação ainda antes do fracasso dos empreendimentos Ao longo dos 75 anos entre 1889 e 1964 a economia brasileira foi uma das que mais cresceu no mundo Além de crescer distribuiu os frutos desse crescimento de forma razoavelmente equilibrada O governo central custava relativamente pouco mesmo depois de acumular novas funções econômicas em 1930 Com isso restava nas mãos do setor privado muita riqueza partilhada entre empresários que tinham lucro trabalhadores que recebiam salários e os produtores autônomos do sertão que constituíam a maioria da população em todo o período Após 1964 o governo central formou sua base de capital empresarial retirando recursos desses três setores Dos detentores de capital o governo conseguiu dinheiro suficiente para controlar os mecanismos financeiros de investimento Em 1974 os bancos estatais responderam por 75 dos empréstimos de longo prazo e no ano seguinte as empresas estatais não financeiras aplicaram 203 de todo o capital investido por empresas no país tomando assim uma fatia dos empresários privados Do lado dos trabalhadores que recebiam salário o dinheiro veio sobretudo dos impostos dos recolhimentos compulsórios e da política de reajuste salarial que retirava dinheiro dos trabalhadores em benefício do capital Como resultado da violenta compressão houve uma enorme queda real nos rendimentos do trabalho entre 1964 e 1974 a perda de poder aquisitivo do salário mínimo que fornecia a base para todos os reajustes foi de nada menos de 42 A perda no lado do sertão dos produtores independentes que até então formavam a base do mercado interno pode ser medida com outros números Para relembrar em 1960 56 dos brasileiros viviam e sobreviviam no campo Em 1980 apenas 32 dos brasileiros moravam nas zonas rurais e essa proporção cairia para 22 em 1991 Houve assim um êxodo maciço para as cidades Até a década de 1960 essa migração era regulada pelo equilíbrio entre as atrações urbanas e as oportunidades próprias para que os Jeca Tatu ganhassem a vida como produtores e ficassem mais ricos ainda que em ritmo menor que os trabalhadores urbanos A mudança de padrão promovida pelo regime militar foi de outra natureza distributiva A entrada na atividade empresarial se fez com o governo federal retirando renda da sociedade como um todo não apenas de capitalistas e assalariados mas também da grande massa expulsa do sertão Luiz Aranha Correa do Lago resume É particularmente impressionante a concentração nas mãos dos 5 mais ricos e dos 1 mais ricos No primeiro caso sua participação na renda passa de 2834 em 1960 para 341 em 1970 e 398 em 1972 Em contraste os 50 mais pobres recebiam 174 em 1960 e passaram a auferir apenas 149 em 1970 e 113 em 19721 A migração para as cidades transformava produtores independentes rurais em trabalhadores precários nas periferias urbanas com menor participação na riqueza e com menos oportunidades de sobreviver como empreendedores Tudo isso se refletiu no coeficiente de Gini criado especialmente para medir os níveis de desigualdade social Em 1960 esse índice era de 0497 no Brasil Em 1970 chegou a 0562 o que já indica um aumento na concentração de renda Em 1972 o índice atingiu 0622 e mantevese nesse patamar elevado até o final da década de 1980 De novo embora o grau de concentração de recursos no topo promovido pelo regime militar não seja específico do desenvolvimento do capitalismo no Brasil ele marca o período da intervenção do governo federal nas atividades empresariais Durante sete décadas vinha ocorrendo o desenvolvimento capitalista com patamares elevados de acumulação sob o comando do setor privado e seus capitalistas ambiciosos mas mantendo um arranjo com o trabalho assalariado e os produtores independentes do sertão que resultava numa distribuição da riqueza por toda a sociedade de tal ordem que comparada ao que se implantou na ditadura era bastante justa A desigualdade de renda foi apenas uma das consequências da entrada do governo no mundo dos negócios Outra não menos relevante foi o fato de que essa decisão exigiu uma repartição interna de esforços estatais que não se mostrou nada favorável aos serviços tradicionais Em termos proporcionais atividades como educação ou saúde passaram a contar com menos recursos o que levou à degradação desses serviços para a população Para completar o governo fez maus negócios a partir da década de 1970 Investiu no mercado nacional num tempo em que outras nações apostavam na abertura para o mercado mundial Investiu na estatização num momento em que os maiores ganhos estavam vindo de empresas privadas que atuavam em mais de um mercado nacional Investiu com dinheiro emprestado de alto risco imaginando que as vantagens seriam eternas e acabou derrubado pela mudança de rumos Num resumo bruto nos tempos em que se evidenciou o fracasso da onda empresarial estatal o governo central no fim da ditadura mais lembrava o que havia sido o governo central imperial pomposo no todo e ineficiente no que interessava Em vez da almejada economia líder em desenvolvimento havia outra marcada pelo atraso estrutural Não se sabia exatamente quão caro era esse governo pois a população pagava a conta sobretudo pela via da inflação descontrolada resultado do pagamento das dívidas públicas com papel impresso Quão ineficiente também ninguém sabia em decorrência de uma série de distorções internas correção monetária subsídios preços controlados reservas de mercado tabelamentos etc que tornavam impossível a comparação com as economias do restante do mundo No contexto mundial a oportunidade de repensar o papel do país com base em uma nova Constituição coincidiu com o avanço cada vez maior do comércio internacional O processo ganhava força para romper muros derrubar barreiras de imensas economias fechadas Em 1986 Mikhail Gorbatchev assumiu o comando da União Soviética Com treze anos de atraso em relação à China impôs de maneira acelerada uma abertura econômica criando às pressas um setor privado Ao contrário do que ocorreu na China porém também promoveu uma abertura política para a democracia Tudo isso acelerou muito o processo de trocas econômicas e a adoção de regras políticas estáveis entre nações num processo já então conhecido como globalização Todos que queriam crescer retiravam barreiras para aproveitar a proliferação de oportunidades internacionais Esse se tornara o grande dilema dos construtores da abertura política Além das contas a pagar tinham de lidar com um evidente atraso no posicionamento do país como um todo Nesse cenário o deputado Ulysses Guimarães líder da oposição nos anos duros fiador do novo regime e homem com poder para dirigir os trabalhos da Constituinte optou por um caminho peculiar para o retorno a um regime constitucional democrático um caminho tão peculiar que precisa ser explicado à luz da história Desde 1500 até 1987 o Brasil conhecera sete padrões de leis escritas Em primeiro lugar as Ordenações do Reino Embora sendo lei escrita regiase inteiramente pelos moldes do Antigo Regime No lugar de incluir as regras que valiam para todos estabeleciam regras gerais para os vulgares e privilégios particulares para as pessoas de qualidade fidalgos clérigos nobres e o rei Quanto mais alto na escala maiores os benefícios menores as penas e os deveres Por isso a aplicação da lei se fazia com o sentido de manter diferenças que a natureza criara vistas pela metáfora do corporativismo e aplicadas com a noção dos direitos adquiridos Nesse todo a igualdade era apenas a parte reservada para os súditos no ponto mais baixo da escala social aqueles que não tinham nenhum direito adquirido Por isso a lei não era igual para todos e apenas aplicada nas partes que se referiam a cada um Sendo a colônia espaço de plebeus as Ordenações foram a legislação vigente no território durante todo o período colonial mas somente as partes que se aplicavam a eles Como muitas dessas partes eram de fato incentivadoras do empreendedorismo na área econômica contendo instituições favoráveis à igualdade de oportunidades heranças e dotes por exemplo e à organização de governos representativos nas vilas aquelas em vigor como lei comum no Brasil acabaram sendo adotadas após a Independência Apesar da Constituição os títulos só aos poucos foram sendo substituídos por legislação nova num processo que durou até 1916 quando foi votado o Código Civil O que de fato valia eram as partes que se adequavam aos costumes as leis que davam certo Apenas a partir da Independência o Brasil conheceu constituições A primeira delas a de 1824 foi promulgada para dar conta da expansão das ideias iluministas procurando amalgamar os princípios da universalidade da lei e da igualdade dos cidadãos com as tradições do corporativismo Com seu ambíguo emprego de duas soberanias permitiu ao fim e ao cabo que o Poder Moderador comandasse rituais de sagração nas eleições nacionais fazendo coexistir uma base de governos democráticos dos nativos e representativos governos e câmaras locais com o arbítrio da Coroa Os conservadores exploraram cada aspecto da ambiguidade estrutural para tentar deter os espectros do capitalismo e da igualdade perante a lei sobretudo aqueles que definiam poderes arbitrários para o monarca por outro lado os defensores dos princípios iluministas tentavam abrir brechas a partir do Parlamento representante da soberania popular A primeira Constituição republicana de 1891 extinguiu o poder arbitrário na lei Ainda que com limitações para o exercício efetivo da soberania popular mantendo o atraso com relação ao Ocidente que se acentuara no final do Império permitiu a implantação de muitas instituições fundadas na universalidade e na liberdade em especial no âmbito dos negócios Mesmo convivendo com a resistência dos costumes autocráticos conservadores elas permitiram uma transformação radical na organização dos governos locais e no desenvolvimento econômico O muro estatal erguido após 1930 trouxe consigo um período de grande oscilação no que se refere às leis gerais Em apenas 33 anos entre 1934 e 1967 o país conheceu nada menos que quatro constituições cada uma delas retrato das oscilações entre aspirações democráticas e desejos autoritários Duas tiveram duração muito curta a de 1934 vigorou por três anos a de 1937 por oito anos As que duraram mais 20 anos a de 1946 e 21 anos a de 1967 sofreram emendas violentas parlamentarismo e legalização do regime militar a primeira atos institucionais e reformas a segunda Todas essas Constituições e todas as fases de ditadura no período haviam deixado claro o problema fundamental garantir que os governos sobretudo o governo central ficassem efetivamente subordinados à soberania dos eleitores embora fossem discricionários na operação do muro Ou seja que a lei fosse de fato para todos e não uma para os de baixo e outra para aqueles no poder Que a relação entre as partes fosse de igualdade e não de favorecedor e cliente Com raríssimas e honrosas exceções os ocupantes do governo central pensaram em si mesmos como os governantes nos tempos coloniais como pessoas muito acima dos demais moradores como iluminados obrigados a agir em nítido contraste com a gente comum ao redor Assim foram os ditadores do regime militar e o que entregaram não foi o produto de seu sonho técnico mas uma nação dilacerada pela concentração econômica e política de um lado e de outro pelo fracasso na produção e na gestão tudo isso expresso no lastimável estado do governo central Em função disso a fim de alcançar um equilíbrio Ulysses Guimarães buscou implantar um projeto constitucional que tinha como eixo básico a afirmação de direitos das mais variadas espécies vistos como forma de proteção contra o arbítrio Embora não sendo um objetivo constitucional clássico foi o caminho seguido Em vez de um conjunto de normas gerais afirmações apenas das leis que seriam iguais para todos buscouse a máxima participação de modo que desejos sociais de justiça ficassem gravados na lei maior do país Uma comissão de notáveis colheu previamente tais desejos na sociedade Quando os representantes eleitos se reuniram para discutir o texto constitucional encontraram todo esse material recolhido E recorreram a uma metodologia de trabalho inversa à das Cartas anteriores previamente esboçadas por especialistas comissões temáticas cuidariam de esboçar trechos diferentes levando em conta as sugestões Depois disso os trechos seriam votados em plenário Para se ter uma ideia do resultado basta o exame do Título II da Carta uma declaração dos direitos fundamentais dos brasileiros algo inexistente nas Constituições anteriores Ali são listados nada menos de 78 direitos fundamentais 10 direitos sociais e 34 direitos dos trabalhadores afora os direitos políticos Tal extensão só se tornou possível com o apelo à variedade Alguns direitos são expressos por princípios gerais do tipo todos são iguais perante a lei ou homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações típicos das Cartas iluministas Outros estabelecem uma relação normativa de tutela entre a sociedade e o Estado obrigando este a atuar numa série de áreas da vida prática O Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita a todos os que comprovarem insuficiência de recursos ou O Estado promoverá na forma da lei o direito do consumidor como supridor de meios e inversamente retirando responsabilidades dos cidadãos para que a tutela seja possível Os procedimentos de responsabilização do Estado pela atuação em áreas práticas da vida social são repetidos em quase todos os demais capítulos Eles vão definindo simetricamente direitos para a sociedade e obrigações tutelares para o Estado Dois casos típicos e essenciais A saúde é direito de todos e dever do Estado ou A educação direito de todos e dever do Estado e da família O termo família traz uma lembrança importante para avaliar esse tipo de procedimento constitucional O legislador lembrouse vagamente de que existe o costume que o cidadão é responsável que a sociedade tem vida própria Mas essa menção é uma exceção na quase totalidade dos casos o texto faz uma reserva de áreas para a atuação do Estado e simetricamente retira da sociedade do ponto de vista político e do setor privado do ponto de vista econômico um papel substantivo na área a que se refere o texto Mas os detalhamentos legais foram além dessas assimetrias concernentes a temas práticos Para se chegar a um número tão alto de direitos foi preciso elevar a situação de grupos sociais muito particulares ao estatuto de merecedores da consideração constitucional Um caso típico Às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação A lista das transformações de casos particulares em preceito geral é imensa No caso dos direitos trabalhistas até mesmo dilemas de conjuntura se transformaram em direito constitucional como por exemplo a proteção contra a automação na forma da lei o segurodesemprego o fundo de garantia o décimo terceiro salário a jornada de oito horas e aquela de seis para quem trabalha em turno contínuo Por todo o texto vão surgindo afirmações de interesses muito particulares como obrigação geral nomeados pelas mesmas palavras que vinham desde o tempo das Ordenações direitos adquiridos A maior parte dessas disposições aparece nas garantias a servidores públicos Entre os 22 direitos a eles garantidos para além de todos os direitos gerais estão detalhes que vão desde o período de validade de um concurso público dois anos prorrogáveis por mais dois até uma amarração completa dos vencimentos de todos os funcionários ao salário dos juízes do Supremo Tribunal Federal a obrigação do Estado de dar aumentos reais periódicos ou regras detalhadas para o acúmulo de cargos públicos Aberta a porteira muitos passaram Há casos quase folclóricos como a garantia constitucional para os donos de cartórios Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado por delegação do Poder Público para uma instituição pública de ensino em particular O Colégio Pedro II localizado na cidade do Rio de Janeiro será mantido na órbita federal ou um caso microscópico É assegurado o exercício cumulativo de dois cargos ou empregos privativos de médico que estejam sendo exercidos por médico militar na administração pública direta ou indireta Criouse assim uma ambiguidade estrutural Há normas gerais segundo a tradição iluminista mas também enorme quantidade de normas que definem tutelas do governo sobre determinadas atividades além de um número ainda maior de normas que regulamentam interesses particulares Tal ambiguidade sustenta uma pergunta mas afinal o que mesmo se universalizou Seria o caso de repetir aqui muito brevemente algumas referências à doutrina portuguesa do corporativismo Tal doutrina se baseava numa noção de justiça formulada a partir da metáfora de um corpo cuja saúde depende do reconhecimento das funções específicas de cada parte Tal reconhecimento se faria com o soberano dando a cada um o seu o direito adquirido inclusive em dinheiro Esse modo de pensar não levava em conta o fato de que era necessário arrecadar e equilibrar contas Como se viu no Advertimento dos meios mais eficazes e convenientes que há para desempenho do patrimônio real escrito por Baltazar de Faria Servetim no distante ano de 1607 para criticar esse tipo de procedimento Ordinariamente os conselheiros fazem uma descrição das grandes virtudes que há de ter o Príncipe como há de ser justo temente a Deus misericordioso liberal afável prudente e valoroso Tratam mui difusamente da conveniência do Rei ter muitas rendas grandes riquezas e tesouros e dizem muitas outras coisas que servem somente para pintar um perfeito Príncipe e uma perfeita República São especulativos não considerando mais que a bondade dos fins sem darem regra de como se hão de achar os meios para estes fins se alcançarem2 O ideal de legislar para fazer justiça e pensar tal justiça caso a caso em cada parte do corpo acabou sendo mais presente no texto da nova Constituição do que as instruções de como achar os meios para alcançar esses fins Mas havia sentido nos comandos contraditórios Eles garantiam não só uma reserva de espaços para o setor público como retiravam o controle da ação estatal das esferas do Executivo e do Legislativo A lógica da decisão sobre a parte válida dos comandos contraditórios pode ser eventualmente entrevista na já citada análise das relações entre a cabeça coroada e o corpo social feita por Xavier e Hespanha Uma vez que a doutrina corporativista estabelecia como núcleo dos direitos do rei o respeito à justiça este ficava obrigado a observar o direito quer como núcleo de comandos dever de obediência à lei quer enquanto instância geradora de direitos particulares dever de respeito dos direitos adquiridos A derrogação de um direito adquirido fosse a propriedade de bens a posse de ofícios ou expectativas ligadas a estes era possível apenas em sede judicial Dito isto já se vê como os tribunais como instância de salvaguarda da justiça e da defesa dos direitos adquiridos de cada um ocupam na esfera do Antigo Regime uma função constitucional determinante3 Essas breves rememorações ajudam a vislumbrar um híbrido que não é mais o original corporativo com o rei no alto e os privilegiados abaixo aquele que serviu de molde tanto para as Ordenações do Reino como para a Constituição imperial Dessa vez a cabeça é formada pelos princípios constitucionais iluministas e o corpo pelas normas que reservam áreas para a ação estatal e pelas garantias constitucionais a pequenos grupos privilegiados que passam a ter direitos adquiridos garantidos pela lei geral e defensáveis na justiça Tratase agora portanto de outra universalidade Não são universais apenas os princípios gerais mas universal é o clientelismo o atendimento a setores inteiros da vida social ou o respeito às exceções particulares e não privadas gravadas na lei E o juiz passa a ser aquele que dá a cada um segundo o seu e não mais o aplicador da norma universal embora tenha o maior de todos os poderes no molde corporativo Por isso tal imagem de híbrido talvez seja melhor definida pela expressão de José Bonifácio como mais um passo no lento amalgamento dos metais diversos na composição de um todo brasileiro único Dessa vez com o domínio do moderno princípio da soberania popular servindo de abrigo para diversas soberanias particulares corporativas aparentemente postas em posição subalterna Em apenas um ano essa peculiar disposição constitucional foi submetida a um teste não previsto por seus autores Na primeira eleição direta para presidente da República em 1989 os brasileiros escolheram Fernando Collor de Mello cujo programa pregava a reforma do Estado brasileiro e a abertura da economia para a globalização Ulysses Guimarães foi apenas o sétimo colocado no primeiro turno do pleito Essa determinação do eleitor soberano mostrou um descompasso imediato entre a Carta recémaprovada e o objetivo nacional escolhido nas urnas Vale a pena notar a natureza desse descompasso toda a vida brasileira estava legalmente estatizada Qualquer mudança dependia de autorização Qualquer corte significativo nos gastos estatais era agora quase impossível pois exigiria uma reforma constitucional e a chancela do Poder Judiciário convertido em defensor dos direitos adquiridos fixados no texto até mesmo contra determinações do Poder Legislativo Também não deixa de ser relevante notar que a globalização avançava a passos céleres Em 1989 durante a campanha presidencial moradores de Berlim demoliram o muro que dividia a cidade símbolo da divisão entre capitalismo e socialismo na Guerra Fria A Alemanha Oriental foi incorporada pela Ocidental as nações do bloco comunista voltaramse para a Europa e em 1991 a própria União Soviética se desfez A Rússia adequouse à economia de mercado as demais nações foram atrás de oportunidades globais Quem ganhou imediatamente foi outra integração Em 1992 foram criados a União Europeia que expandiu a soberania extranacional para a cidadania e o euro a moeda única que tomaria o lugar de seculares moedas nacionais Ao longo da década seguinte o número de paísesmembros chegaria a 28 em boa medida pela absorção das nações que haviam sido satélites da União Soviética Esse também foi o período no qual a China emergiu como grande potência econômica Apesar de o controle político continuar nas mãos do Partido Comunista o crescimento todo era fundado no setor privado que começava a se expandir para além das fronteiras nacionais num ritmo bastante superior aos 10 anuais da média dos dois setores Até mesmo o mais jeca dos eleitores brasileiros dava mostras de perceber um fosso aumentando entre 1985 e 1990 a média do crescimento das economias no mundo foi de 39 contra 58 do comércio internacional A tendência acelerouse ainda mais no quinquênio seguinte 27 para as economias nacionais 61 para o comércio internacional Enquanto isso o Brasil vivia um pesadelo econômico O crescimento interno passou a depender dos azares da conjuntura indo e vindo com oscilações fortes 79 em 1985 01 em 1988 32 em 1989 41 em 1990 47 em 1993 As taxas de inflação variaram entre o mínimo de 15 em 1987 e o máximo histórico de 1782 em 1989 Herdando tal recorde e tendo prometido aos eleitores que iria romper o muro brasileiro Collor recorreu aos métodos heterodoxos típicos dos desesperados confisco de poupanças fechamento de setores inteiros da economia estatal cinema por exemplo empréstimos compulsórios O resultado em termos de desenvolvimento foi uma recessão brutal acompanhada de surtos inflacionários Houve também tragédias novas A abertura da economia para a competição internacional inviabilizou milhares de indústrias que deviam sua existência ao muro sobretudo nos setores que haviam apostado nos planos de Geisel como o de bens de capital e investido para abastecer um mercado interno maior A concorrência com o mundo obrigou os sobreviventes a se adaptar ou morrer e gerou desemprego Por outro lado registraramse também ganhos efetivos O Brasil teve papel fundamental na criação do Mercosul a primeira iniciativa relevante para o país se posicionar no mundo global Também conseguiu participação importante nas discussões sobre meio ambiente hospedando a Rio 92 a tentativa inicial de se alcançar uma solução da mesma natureza que o problema em âmbito global e para além dos Estados nacionais Também ocorreu ligeira diminuição do papel do Estado na economia com as privatizações de portos e ferrovias No processo se revelou o valor das proteções constitucionais a muitos setores particulares dadas pela Constituição Cada mudança exigia uma reforma constitucional seguida de batalhas judiciais movidas pelos detentores de direitos adquiridos que se sentiam prejudicados Nessa luta veio à luz a parte híbrida do próprio presidente enquanto abria a economia de um lado alimentavase com a ração do avestruz corporativista de outro A corrupção maciça agora que havia democracia veio à luz levando multidões às ruas em protesto e por fim ao próprio impedimento do presidente Mas a abertura econômica prosseguiu CAPÍTULO 71 Desencalhe reencalhe O VICEPRESIDENTE DE FERNANDO COLLOR ERA ITAMAR FRANCO UM POLÍTICO COM fama de estatista paroquial e nacionalista Como presidente porém soube realizar as promessas maiores embutidas no mandato recebido Contra as próprias afinidades privatizou a Companhia Siderúrgica Nacional tida como o grande símbolo do governoempresário que promovia o crescimento do país A empresa continuou a produzir como se nada tivesse acontecido O presidente não dava murro em ponta de faca Trocou três vezes de ministro da Fazenda por falta de resultados até colocar no cargo o chanceler Fernando Henrique Cardoso que não tinha experiência anterior no Executivo nem na gestão econômica Àquela altura o país completava uma década de desgovernos na área mas acumulara alguns resultados a dívida externa voltara a um patamar administrável as contas públicas tinham um mínimo de ordem a sociedade estava exausta da inflação E o Plano Real lançado no final de fevereiro de 1994 conseguiu o milagre depois de três décadas de inflação crônica e uma década de hiperinflação os preços da economia foram estabilizados Dessa vez não apenas como um golpe temporário A diferença se fez com o esforço subsequente para impedir gastos do governo sem receitas prévias inclusive com cortes no aparato estatal e abertura da economia Os métodos arbitrários e os poderes excepcionais do governo federal começaram a ser domados Foram os resultados obtidos nesse sentido que embasaram a campanha que levou Fernando Henrique Cardoso a ser eleito presidente da República em primeiro turno nas eleições de 1994 E também o cerne do que veio a seguir Como talvez não acontecia desde os tempos de Prudente de Morais o fundamental era recolher demônios Os demônios nesse caso tinham duas emanações Uma delas surgia na obra de rescaldo de remoção dos esqueletos de dívida pública que vindos desde a ditadura estavam espalhados pelos mais diversos itens dos orçamentos nacional e estaduais Para que não se transformassem em focos inflacionários era necessária uma operação de saneamento capaz de tornar quantificáveis e registradas na forma de dívida as promessas de pagamento sem a devida cobertura de receitas Na frase do encarregado da tarefa o ministro da Fazenda Pedro Malan no Brasil as incertezas da economia não são as do futuro mas as do passado A tarefa de saneamento foi bastante ampla Atingiu o governo federal exigiu entre outras medidas assumir as dívidas de todos os estados e a renegociação delas obrigou a limpar os balanços recapitalizar bancos e empresas públicas mudar os critérios de registro contábil do próprio governo criar a Lei de Responsabilidade Fiscal que tornou os administradores públicos responsabilizáveis em caso de gastos fora de padrão Sem a inflação e os fantasmas tudo isso resultou na contabilização das contas a pagar sob a forma de dívida pública que chegou a 213 do PIB em 1989 e a 252 em 1993 devido aos processos da era Collor que geraram canos aos credores Daí em diante o total de débitos teve um crescimento contínuo 279 em 1994 293 em 1998 356 em 2002 Esse aumento da dívida aconteceu apesar de forte aumento da carga tributária Ela representava 256 do PIB em 1993 passou para 279 no ano seguinte chegou a 293 em 1998 e atingiu 356 em 2002 O governo custava caro para os brasileiros mas o impacto foi absorvido porque havia esperanças oriundas de outra frente de combate aos demônios A segunda fonte de emanação de demônios era a crença de que reservas constitucionais para o governo central no campo da economia equivaliam a progresso e inversamente que abrir a economia para o exterior seria perder oportunidades de crescimento Nesse ponto é esclarecedor seguir o argumento proposto por Thomas Piketty em seu livro O capital no século XXI que divide em dois o período que vai de 1913 a 2012 tendo como marco de corte a década de 1970 No século como um todo o crescimento da produção mundial seria de 3 ao ano para um crescimento demográfico de 14 anuais com a renda per capita mundial crescendo portanto 16 ao ano No período que vai de 1913 até a década de 1970 essa tendência mundial se reflete na economia brasileira que teve um dos melhores desempenhos em termos de crescimento econômico per capita de todo o planeta Todavia a partir da década de 1970 há um descolamento entre o ritmo mundial e o local No cenário mundial a grande mudança é o aumento exponencial da atuação de empresas mundiais em mercados regulamentados por Estados nacionais Essas empresas passaram a ser a maior fonte de acumulação de riquezas e de fortunas privadas em todo o mundo Sua peculiar forma de distribuir a riqueza obtida sob a forma de dividendos sobre os lucros faz com que os resultados se transformem em estoque de riqueza dos mais ricos nos países em que estão sediadas Os dados para os países mais ricos do planeta Estados Unidos Alemanha Reino Unido Japão Canadá França Itália e Austrália revelam uma linha clara assim enunciada por Piketty Há uma tendência de longo prazo no conjunto dos países ricos entre as décadas de 1970 e 2010 No início da década de 1970 o valor total da riqueza privada subtraídas as dívidas era de entre 2 e 35 anos da renda nacional em todos os países ricos de todos os continentes Quarenta anos mais tarde no início dos anos 2010 a riqueza privada representa entre 4 e 7 anos de renda nacional também em todos os países estudados A evolução geral não deixa dúvida alguma além das bolhas estamos assistindo à volta triunfal do capital privado nos países ricos1 Uma afirmação como essa poderia levar a supor que o fenômeno da acumulação de riqueza pelo setor privado estaria limitado aos ganhos da globalização pelos países ricos em detrimento dos menos desenvolvidos Mas a parte seguinte do livro traz estatísticas comparadas de distribuição de riqueza em diversas economias inclusive de países ricos menores Suécia ou com menor renda per capita Índia Indonésia África do Sul China Argentina e Colômbia A conclusão é igualmente uniforme As ordens de grandeza obtidas para a parcela do centésimo superior na renda nacional das nações pobres ou emergentes são a princípio extremamente próximas das observadas nos países ricos Durante as fases de maior desigualdade em particular ao longo da primeira metade do século XX o centésimo superior detinha em torno de 20 da renda nacional nos quatro países considerados Índia África do Sul Indonésia e Argentina Nas fases de maior igualdade ou seja entre os anos 1950 e 1970 a parcela do centésimo superior caiu para níveis de 612 de acordo com o país A partir dos anos 1980 assistimos a uma recuperação mais ou menos generalizada da parcela do décimo superior2 A tendência vale inclusive para a China Na China observamos um forte aumento da parcela do centésimo superior na renda nacional ao longo das últimas décadas mas que partiu de um nível relativamente baixo quase escandinavo em meados dos anos 1980 menos de 5 da renda nacional para o centésimo superior O aumento das desigualdades chinesas foi muito rápido após o movimento de liberalização da economia nos anos 1980 e durante o crescimento acelerado dos anos 19902000 mas de acordo com nossas estimativas a parcela do décimo superior situase em torno de 1011 da renda nacional3 E também para a Suécia A Suécia não é o país estruturalmente igualitário que costumamos imaginar A concentração de riqueza na Suécia por certo atingiu nos anos 197080 o ponto mais baixo observado em nossas séries históricas mas ela aumentou sensivelmente desde os anos 198019904 Os dados evidenciam uma tendência relativamente universal de concentração de riqueza no setor privado a partir da década de 1970 tanto nos países ricos como nos hoje chamados emergentes Tal uniformidade não exclui nem mesmo os antigos países socialistas que conseguiram redirecionar suas economias visando o aumento da atividade produtiva Aqui caberia uma inferência para além do campo da economia A lista de países que apresentam a mesma tendência de acumulação de riqueza no setor privado abrange variantes políticas expressivas regimes dominados por um partido único como a China governos predominantemente socialdemocratas como a Suécia países com o Estado grande como a França ou a Itália que alternaram políticas conservadoras e de esquerda sem que isso afetasse a tendência de concentração a Alemanha onde se alternam os socialdemocratas e os conservadores o Japão majoritariamente dirigido por forças centristas o Reino Unido e os Estados Unidos onde os conservadores neoliberais se alternaram no poder com os trabalhistas e os democratas tanto uns quanto outros incapazes de alterar a tendência geral Em outras palavras o processo de globalização se tornou impositivo porque foi carreando para si todos os Estados nacionais independentemente das opções políticas ou ideológicas locais Ter um setor privado forte atuante no mundo inteiro capaz de competir em escala mundial passou a ser a regra do jogo Manter o isolamento os apanágios nacionais o mercado fechado as regras idiossincráticas tornouse a marca dos perdedores o caso do Brasil nesse período A obra de desencalhe desse isolamento prejudicial inaugurada em 1990 e continuada no mandato popular seguinte tinha um ponto fulcral remover as barreiras que reservavam ao governo federal seja por administração direta ou por meio de empresas estatais o domínio monopolista de uma série de atividades econômicas Cada quebra de monopólio exigiu a privatização de empresas estatais ou uma ou mais reformas constitucionais pelas quais afinal o setor privado ganhava autorização para investir capital de risco No primeiro caso o destaque ficou com o setor de telecomunicações Em 1994 o país mal tinha telefones fixos para uma minoria da população a transmissão de dados entre computadores dependia de uma morosa empresa estatal com monopólio estendido inclusive a transmissões privadas Com a privatização esse quadro foi alterado justamente no período em que a Internet e os celulares se tornaram os meios relevantes de comunicação e em menos de uma década todo o setor foi modernizado No segundo caso o modelo de sucesso foi a privatização da estatal Vale do Rio Doce Também em menos de uma década ela deixou de ser o braço provincial de um governo local para se tornar uma grande empresa mundial de mineração passando inclusive a controlar ativos no exterior Um terceiro modelo de sucesso foi aplicado no caso do petróleo Rompido o monopólio estatal da empresa governamental foi possível atrair empresas e capitais do mundo inteiro Num primeiro momento elas vieram trazendo capitais de risco para explorar o potencial de muitas reservas sobretudo na plataforma continental À medida que se livrava de esqueletos do passado e deixava de atuar em áreas nas quais não conseguia ser empresário eficiente o governo federal passou a dispor de mais recursos para cuidar das áreas prioritárias E nenhuma delas deu um resultado maior que a educação em 2002 último ano da gestão de Fernando Henrique Cardoso o número de crianças na escola fundamental passou de 83 em 1994 ano de estreia no governo para 99 Esse era um sinal maior de uma tendência geral de melhoria de todos os indicadores sociais mortalidade infantil caiu de 471 de cada mil nascidos vivos em 1990 para 344 em 2002 expectativa de vida aumentou de 66 anos para 686 entre 1991 e 2000 distribuição de renda o índice de Gini caiu de 0636 em 1989 para 06 em 1995 e 058 em 2002 porcentagem de alunos no ensino superior renda do trabalho proporção de homicídios Ao mesmo tempo foram implantadas duas políticas de importância histórica A maior reforma agrária da história brasileira seguida de uma política de crédito para a agricultura familiar permitindo a diminuição no ritmo de esvaziamento do sertão a proporção da população rural caiu apenas dois pontos percentuais de 24 para 22 entre 1991 e 2000 Ao mesmo tempo implantouse uma política efetiva de demarcação de terras indígenas uma dívida de cinco séculos começava a ser resgatada o que fez com que essa população passasse a crescer Outra inovação fundamental a partir das experiências de Ruth Cardoso graças ao emprego de métodos modernos de informática teve início com o programa Bolsa Escola a transferência direta de renda do Estado para a população mais pobre sem os tradicionais intermediários clientelistas Tudo isso levou a população brasileira a acreditar que a democracia estava de fato ganhando um significado maior A democracia secular como sistema de representação nos municípios e também secular nos parlamentos estava afinal deixando de ser o instrumento de sagração do chefe dos executivos estaduais e sobretudo do nacional para se tornar um mecanismo substantivo de representação Os programas prometidos aos eleitores por Collor foram bem ou mal cumpridos Aqueles de Fernando Henrique Cardoso em grau muito maior também E as eleições de 2002 apresentaram uma escolha promissora Luiz Inácio da Silva o Lula tinha uma biografia que era um retrato da transformação da vida do brasileiro pobre da época inclusive no que se refere a oportunidades de ascensão social Nascido em 1945 em Garanhuns Pernambuco migrou para São Paulo aos 7 anos A mãe carregou os filhos para São Paulo atrás do marido que viera antes numa viagem num caminhão pau de arara que durou 22 dias Começou a trabalhar vendendo laranja no cais de Santos e catando siri no mangue Entrou na escola pública na qual foi alfabetizado Mudouse com a mãe para São Paulo e aos 14 anos passa a trabalhar com carteira assinada como operário metalúrgico Com 19 anos de idade um acidente com o torno mecânico o fez perder o dedo mínimo da mão esquerda Em seguida em 1966 foi trabalhar numa grande indústria a Villares onde mais tarde fez carreira como sindicalista Em 1973 recebeu formação da central sindical norteamericana AFLCIO e começou a a se destacar no meio sindical propondo o fim da CLT e fazendo oposição às tradicionais lideranças vindas do varguismo Tornouse um líder efetivo ao comandar as primeiras greves em mais de uma década enfrentando a dura repressão do regime militar Em 1980 Lula acumulara prestígio suficiente para ser a grande figura em torno da qual gravitavam os grupos que fundaram o Partido dos Trabalhadores Foi reforçando a imagem de seu partido e a sua por meio de candidaturas a cargos majoritários governador de São Paulo em 1982 e quatro vezes candidato a presidente da República a partir de 1989 Apenas uma vez se elegeu nesses anos para deputado constituinte em 1986 Teve atuação relativamente apagada pela qual permitiu manter a CLT contra a qual tanto havia lutado Mas era um líder partidário incontestável e de um partido que fazia duras críticas ao programa de Fernando Henrique Cardoso As críticas do PT fundavamse na análise do processo de globalização feita a partir da disjuntiva direitaesquerda de uma Guerra Fria já encerrada na repartição entre capitalismo e socialismo o governo seria neoliberal enquanto a alternativa petista era apresentada como sendo de esquerda e priorizando os pobres e o Brasil Já o candidato foi para a televisão contando da fome pela qual passara e prometendo acabar com ela através de um programa chamado Fome Zero Ganhou as eleições e foi muito pragmático trocou o programa de seu partido por uma ampliação do Bolsa Escola que passou a se chamar Bolsa Família e foi apresentado como presente paternalista do presidente Ganhou imensa popularidade mas não apenas por isso Manteve a política econômica do governo anterior o que lhe garantiu apoio de empresários mas interrompeu as reformas no Estado o que lhe assegurou o apoio dos funcionários públicos e dos interesses corporativistas Como logo vieram anos muito bons para as exportações brasileiras o crescimento econômico embora modesto para os padrões anteriores aos da década de 1980 chegou a ser alentador aumentando tanto o nível de emprego como a renda dos trabalhadores Tudo isso o transformou num líder que efetivamente cumpria as promessas feitas aos mais pobres As pesadas marcas sociais deixadas como herança pela ditadura pareciam estar sendo curadas O prestígio do presidente era de tal ordem que foi reeleito no primeiro turno em 2006 apesar de um processo por corrupção aberto contra os principais líderes de seu partido e alguns aliados no governo Nesse cenário ainda dominado pelo otimismo vem outra notícia econômica relevante em 2007 a intensificação das pesquisas petrolíferas implantada com o fim do monopólio estatal do petróleo levara à descoberta de gigantescas reservas na plataforma marítima brasileira tão grandes que poderiam impulsionar um novo surto de progresso do país Mas veio uma crise mundial em 2008 e tudo voltou para trás A resposta do governo foi atualizar os pressupostos nacionalistas do governo Geisel valia a pena cercar essas reservas por um muro protetor investir nelas como um monopólio nacional e carrear os lucros maiores para o interior da nação Toda a máquina relacionada a essa espécie de pensamento foi posta para girar as regras para o petróleo foram mudadas no meio do jogo com uma legislação que colocou o governo brasileiro como detentor exclusivo do comando e a estatal do setor como agente obrigatória sócia reguladora de todos os passos da exploração petrolífera Ao mesmo tempo reforçouse o programa pelo qual determinadas empresas nacionais teriam o monopólio de fornecimento de equipamentos e serviços ainda que estes custassem muito mais do que no mercado internacional Linhas de financiamento subsidiadas com dinheiro público foram abertas não só para essas empresas mas também para outras indústrias locais Tudo isso aumentou a estima de empresários que sentiam desconforto em competir nas circunstâncias de abertura progressiva para o mundo global e que agora eram favorecidos pelo dinheiro público As mudanças se estenderam ao campo político Para aprovar tudo no Parlamento o governo apresentou uma perspectiva de tal abundância futura que seria necessário mudar as leis Primeiro para garantir o financiamento da educação e da saúde bastaria parte dos ganhos os rendimentos restantes seriam colocados em um fundo soberano a ser criado A reação brasileira foi ampliar muito todos os tipos de crédito a fim de evitar o contágio maior de uma recessão que se espalhava pelo mundo Além do setor da construção civil um dos grandes beneficiários foi a indústria automobilística Com isso atenuouse o impacto da crise mundial e a popularidade do presidente garantiu a eleição da candidata proposta por seu partido Dilma Rousseff que se tornou a primeira mulher a presidir o Brasil Em sua gestão as políticas de gasto público prosseguiram em ritmo acelerado mesmo depois de passada a onda recessiva internacional Para manter a roda do gasto foi preciso ir ultrapassando limites primeiro o da prudência logo em seguida o das formalidades implantouse a chamada contabilidade criativa que permitiu a retomada da prática de ocultação dos esqueletos financeiros Mesmo com os truques a percepção de que havia problemas nesse modelo acabou derrubando o crescimento econômico Ainda assim Dilma Roussef conseguiu se reeleger em 2014 Todo o investimento público havia sido feito com o pressuposto de receitas proporcionadas por um patamar de preço do barril de petróleo da ordem de 120 dólares No entanto ao longo de 2015 esse patamar foi baixando até se estabilizar em 30 dólares fazendo ruir o castelo de sonhos do crescimento como nos tempos de Geisel Ficou para o país como antes a obrigação de pagar o preço da aposta perdida contra a globalização Esse preço vinha dessa vez como prejuízo gigantesco da estatal de petróleo falência dos empresários que se associaram à aposta rombo nas contas públicas que toda a população precisaria cobrir e uma gigantesca recessão de magnitude muito maior que a de 1929 Pior ainda com o agravante de ser uma recessão apenas brasileira levando o perdedor para muitas casas abaixo na economia globalizada Não bastasse isso acabou emergindo à luz toda a parte perversa do investimento clientelista a empresa estatal não apenas aceitou como incentivou a aprovação legal do plano contratou privilegiados a preços sabidamente mais caros dos que poderia pagar de outra forma os privilegiados pagaram pelo privilégio e os recebedores da propina estavam no governo federal e no sistema político que aprovou o plano Além da aposta perdida o método era o único possível para alcançar um objetivo protecionista quando já não havia sentido econômico para isso no mundo Tudo isso levou as pessoas de novo às ruas o Congresso acabou por votar um novo impedimento de presidente e em 2016 Michel Temer assumiu a presidência da República apresentando um plano chamado Ponte Para o Futuro Por ele comprometiase a fazer o governo federal controlar seus gastos num patamar suportável Ao mesmo tempo procuradores concentravam investigações sobre o setor privado tido por muita gente como o único responsável pela situação Com isso numa sociedade dominada por costumes igualitários e globalizados o corporativismo luta para sobreviver no poder para manter a imagem hierárquica como modelo O amálgama das leis aos costumes está ainda em processo e como será deste ponto em diante já não é mais história POSFÁCIO Quintafeira 20 de abril de 2017 DIANTE DE MIM ESTÁ UMA EDIÇÃO DA HISTÓRIA DO BRASIL DO FREI VICENTE DO Salvador Esse livro sempre fica à mão porque era de minha mãe Carmen Pires do Rio Caldeira formada em História e muito capaz de instilar no filho a paixão pelo passado do país Acabo de concluir o capítulo anterior e continuo a escrever aqui em parte porque a História do frei me traz recordações e reflexões para dividir com você amável leitor Há uma questão de tempos um da história outro da vida real As passagens entre eles podem ser muito bruscas Há exatos 38 anos lá pelas cinco da tarde passei na casa de meus pais Fui visitar minha avó Odila que estava se recuperando de uma fratura no fêmur Desci as escadas na companhia de minha mãe nos despedimos Fui para o lançamento de um livro do Celso Favaretto meu professor de filosofia no colegial sobre a Tropicália Encontrei amigos decidimos ir a uma festa Ninguém sabia direito chegar ao lugar algo que naquele tempo se resolvia com a consulta a guias de ruas Como estava passando quase na porta da casa de meus pais parei para consultar um Mal abro a porta encontro minha tia Molly irmã de minha avó aos gritos Tua mãe morreu Um acidente horrível Atarantado saio pela porta pensando em avisar os amigos Não consigo pronunciar frase nenhuma O longo pesadelo da ausência que hoje completa 38 anos começara Só agora consigo escrever sobre isso E penso realmente é preciso tempo para contar a história para o vivido ser narrado de um modo que faça sentido Sempre fui muito cuidadoso com esse preceito tentando escrever apenas sobre aquilo que já assentou Desta vez fui além abri uma exceção entrei onde não devia a área contaminada pelo presente ou pior ainda pelas expectativas em relação ao futuro Governantes cuidam melhor do presente com sua obrigação de resolver os problemas do dia economistas se arriscam pelo futuro porque o veem como resultado de proposições que consideram científicas Historiadores que trazem a narrativa até o presente podem apenas falar de vagas sensações de movimentos tectônicos que um dia podem ou não virar terremoto E falo dessas intuições apenas para que fique a certeza de que esta narrativa sobre os séculos se desdobrará em eventos que a modificarão Alguns certamente terão acontecido entre o momento em que estas linhas são digitadas e o momento em que serão percorridas por seus olhos leitor Nesse intervalo muito terá acontecido e muito mais virá a seguir Sinto tensão nos encontros entre diversas placas Até os papas sabem que existe o risco de uma catástrofe global afetando a vida no planeta como um todo Esse é um risco e tanto porque só pode ser eliminado com uma mudança no modo de pensar a atividade humana que abandone os ideais iluministas Todos Adam Smith ou Marx e o leque inteiro de seus seguidores Deixarão de ter sentido tanto a noção de natureza como um repositório infinito e gratuito para o proveito humano como a noção de que todo valor econômico está na marca deixada pelo trabalho no objeto natural Isso é de fato novo totalmente novo e assusta Sobretudo aqueles cuja identidade humana está baseada na acumulação e começam a sentir o pânico pelo que terão de enfrentar A negação das evidências científicas não chega a ser uma solução Os sinais econômicos de um encerramento do ciclo de aproveitamento do cenário internacional como oportunidade para maiores ganhos são cada vez mais evidentes ao menos se formos pensar como o velho Marx um dia alguém não aceita um crédito e aí a onda se espalha pelo planeta Foi difícil conter as consequências em 2008 pode ser mais difícil adiante Sim leitor Não sei o que vai acontecer Apenas espero que este pobre escrito tenha ajudado você a pensar em algo mais acabado do que pude fazer Por isso tenho confiança no futuro no país nos cidadãos todos iguais empenhados na busca conjunta na diversidade que ensina e em governos que levem isso em conta para nos levar adiante NOTAS BIBLIOGRÁFICAS PARTE I 15001508 CAPÍTULO 1 COSTUMES E PROBLEMAS DE ESCRITA 1 Pierre Clastres A sociedade contra o Estado São Paulo Cosac Naify 2003 p 212 2 Jorge Caldeira A teoria do valor Tupinambá em Idem Nem céu nem inferno São Paulo Três Estrelas 2015 pp 2122 CAPÍTULO 3 GOVERNO PORTUGUÊS TEORIA ESCRITA E IGREJA 1 Aristóteles Política Brasília Editora da UNB 1997 p 18 2 De potestate civili n 8 in Obras completas de Francisco Vitória Madri BAC 1960 3 Angela Barreto Xavier Antonio Manuel Hespanha A representação da sociedade e do poder em José Matoso org História de Portugal Lisboa Estampa 1998 v 4 p 125 4 Ibid pp 12930 5 Ibid p 142 6 Ibid p 130 CAPÍTULO 6 GOVERNOGERAL 1 Regimento de Tomé de Sousa em Viagem pela história do Brasil seção documentos CDRom São Paulo Companhia das Letras 1997 2 Ibid 3 Ibid 4 Ibid 5 Manuel da Nóbrega Diálogo sobre a conversão do gentio 1556 em Serafim Leite org Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil São Paulo Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo 195657 v 2 p 337 6 Ibid p 450 CAPÍTULO 7 GOVERNO FRANCÊS CORPO E ESPÍRITO 1 Ferdinand Denis Brasil São Paulo Belo Horizonte Edusp Itatiaia 1980 p 58 2 Carta de Luís de Góis a d João III em Documentos interessantes v 1 São Paulo Archivo do Estado 1917 p 11 3 Charles W Baird History of the Huguenot emigration to America Nova York Dodd Mead Company 1885 v 1 pp 3233 Trad do autor 4 Ibid pp 3940 5 Ibid p 42 6 Jean de Léry Viagem à terra do Brasil 1578 São Paulo Martins Edusp 1972 pp 159 17172 7 Carl Gustav Jung O símbolo da transformação na missa Petrópolis Vozes 2011 p 34 8 Sérgio Buarque de Holanda Olga Pantaleão Franceses ingleses e holandeses no Brasil quinhentista em Sérgio Buarque de Holanda dir História geral da civilização brasileira São Paulo Difusão Europeia do Livro 1960 t 1 v 1 p 156 9 Nicolas Durand de Villegagnon Carta aos de Genebra Paris 6 de julho de 1560 apud Frans Leonard Schalwijk O Brasil na correspondência de Calvino Fides Reformata 1 2004 pp 10128 10 Sérgio Buarque de Holanda Olga Pantaleão op cit pp 15657 11 Ibid 12 Montaigne Ensaios livro I cap 23 13 Ibid 14 Ibid CAPÍTULO 8 ALIANÇA GERAL 1 Serafim Leite org Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil op cit v 2 2 Alvará de 20 de março de 1570 3 Joseph C Miller A dimensão histórica da África no Atlântico açúcar escravos e plantações em A dimensão atlântica da África II Reunião Internacional de História da África Rio de Janeiro São Paulo CEAUSP SDGMarinha Capes 1997 pp 2526 4 Frei Vicente do Salvador História do Brasil Rio de Janeiro São Paulo Versal Odebrecht 2008 cap 3 fl 6 5 Ibid 6 Ibid CAPÍTULO 9 GOVERNOS DA ESPANHA 1 Blas Garay Prologo em Nicolas del Techo Historia de la Provincia del Paraguay de la Compañia de Jesus Madri La Uribe 1897 p 20 2 Carta do superior Nicolás Durán ao padre Francisco Crespo in Anais do Museu Paulista 1922 v 1 t I p 170 3 Ibid pp 17980 4 Cédula Real de 12091628 em Ibid p 182 5 Archivo General de las Indias Charcas 30 R 1 n 1 bloque 2 6 Testemunho de fatos ocorridos no Paraguai Anais do Museu Paulista 1922 p 256 CAPÍTULO 10 GOVERNOS DA HOLANDA 1 Betty Wood The origins of American slavery Nova York Hill and Wang 1997 pp 99100 Trad do autor 2 Niels Steensgaard Violence in the rise of capitalism Review A Journal of the Fernand Braudel Center v 2 n 5 p 257 Trad do autor 3 Eric Williams From Columbus to Castro The History of Caribbean 14921969 Nova York Vintage Books 1984 p 112 Trad do autor CAPÍTULO 12 GOVERNO CENTRAL E ECONOMIA 1 Bartolomeu Lopes Carvalho Manifesto ao Rei em Juarez Donizete Ambires Os jesuítas e a administração de índios em São Paulo dissertação de mestrado FFLCHUSP p 195 CAPÍTULO 13 GOVERNOS LOCAIS E COSTUMES 1 Apud Jorge Caldeira O banqueiro do sertão São Paulo Mameluco 2006 v 2 p 37 2 Rae Jean Dell Flory Bahian society in the midcolonial periods the sugar planters tobacco growers merchants and artisans of Salvador and Reconcavo tese de doutorado University of Texas Austin 1978 p 172 Trad do autor 3 Ibid p 146 CAPÍTULO 14 POLÍTICA MISERÁVEL E CARANGUEJO 1 Frei Vicente do Salvador op cit cap 2 fl 4 2 Ibid 3 Ibid 4 Ibid 5 Evaldo Cabral de Mello Rubro veio o imaginário da restauração pernambucana Rio de Janeiro Nova Fronteira 1986 p 194 CAPÍTULO 15 BRASILEIROS 1 José Miguel Wisnik Introdução em Poemas escolhidos de Gregório de Matos São Paulo Companhia das Letras 2011 p 13 2 Frei Vicente do Salvador op cit cap 3 fl 6 3 Ibid CAPÍTULO 16 GOVERNOGERAL NO SERTÃO 1 José Ferreira Carrato Igreja iluminismo e escolas coloniais São Paulo Nacional Edusp 1968 p 13 2 Carta de Artur de Sá e Menezes a D Pedro II apud Jorge Caldeira O banqueiro do sertão São Paulo Mameluco 2006 v 2 p 481 3 Patente dada por Artur de Sá e Menezes a Manuel de Borba Gato em Ibid p 489 4 Carta de Bento Fernandes Furtado em Ibid p 493 5 Afonso de E Taunay Prefácio em Pedro Taques de Almeida Paes Leme Nobiliarquia paulistana histórica e genealógica São Paulo Martins sd v I pp 1516 6 José Francisco Rocha Pombo História do Brasil Rio de Janeiro Benjamin de Aguila sd v 5 pp 454 501 CAPÍTULO 17 OS FAVORES DA CABEÇA 1 Arquivo Nacional da Torre do Tombo ms 1607 2 Antonio Manuel Hespanha Ângela Barreto Xavier op cit p 236 3 Ibid p 130 4 Ver Jorge Caldeira A nação mercantilista São Paulo Editora 34 1999 pp 173268 CAPÍTULO 18 OURO E REDISTRIBUIÇÃO DOS GOVERNOS NO TERRITÓRIO 1 José Antonio Caldas Notícia geral de toda esta capitania da Bahia desde o seu descobrimento até o ano de 1759 Salvador Tipografia Beneditina edição facsimilar 1951 p 63 2 Ibid p 71 CAPÍTULO 19 RIQUEZA E EMPREENDEDORES 1 Fréderic Mauro A conjuntura atlântica e a independência do Brasil em Carlos Guilherme Mota org 1822 Dimensões São Paulo Perspectiva 1986 p 44 2 José Jobson A de Arruda O Brasil no comércio colonial São Paulo Ática 1980 p 612 3 João Luís Ribeiro Fragoso Homens de grossa aventura Rio de Janeiro Arquivo Nacional 1992 p 23 4 Tais proporções encontradas por Nathaniel Leff são muito semelhantes àquelas da primeira década do século atual Em 2008 o mercado interno representava 867 do PIB nacional 5 Iraci del Nero da Costa Arraia miúda um estudo sobre os não proprietários de escravos no Brasil São Paulo MGSP 1992 pp 1156 6 Francisco Vidal Luna Herbert S Klein Economia e sociedade escravista Minas Gerais e São Paulo em Vv Aa Escravismo em São Paulo e Minas Gerais São Paulo Edusp Imesp 2009 p 197 7 Francisco Vidal Luna Herbert S Klein Evolução da sociedade e economia escravista de São Paulo 17501850 São Paulo Edusp 2006 p 197 CAPÍTULO 20 GOVERNOS LOCAIS E COSTUMES NA MINERAÇÃO DO OURO 1 Luciano Figueiredo Barrocas famílias a vida familiar em Minas Gerais no século 18 São Paulo Hucitec pp 2526 CAPÍTULO 21 COSTUMES E LEI CIVIL APÓS O OURO 1 Karl Marx O capital México Fondo de Cultura Económica 1978 v 1 p 52 2 Thomas Piketty O capital no século XXI Rio de Janeiro Intrínseca 2014 pp 35354 3 Muriel Nazzari O desaparecimento do dote São Paulo Companhia das Letras 2001 p 28 4 Ibid pp 26465 5 Lúcia Maria do Amaral Azevedo Martha Maria do Amaral e Azevedo A família brasileira Anais do II Congresso LatinoAmericano de Psicologia Jungiana Rio de Janeiro Paulus 2001 pp 31318 6 Francisco Vidal Luna Herbert S Klein Economia e sociedade escravista op cit pp 197200 7 Dicionário Morais Silva Ed facsimilar Rio de Janeiro 1813 v 2 p 29 8 Dicionário Houaiss Rio de Janeiro Objetiva 2002 p 1334 9 Hebe Maria de Castro Mattos Ao sul da história São Paulo Brasiliense 1987 p 110 10 Ibid p 111 11 Marquês do Lavradio Apud Caldeira Jorge A nação mercantilista São Paulo Editora 34 1998 p 304 PARTE II 18081889 CAPÍTULO 22 TEORIA DOS GOVERNOS UMA REVOLUÇÃO 1 Fernando A Novaes Portugal o Brasil e o antigo sistema colonial São Paulo Hucitec 1995 pp 142 43 2 Apud C R Boxer A idade do ouro São Paulo Nacional 1963 p 279 3 JeanJacques Rousseau Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens São Paulo Nova Cultural 1999 p 61 4 Ibid p 94 5 Ibid p 110 6 Ibid p 112 7 JeanJacques Rousseau Do contrato social São Paulo Martin Claret 2013 p 27 8 Ibid p 75 9 Norberto Bobbio O modelo jusnaturalista em Norberto Bobbio Michelangio Bovero Sociedade e Estado na filosofia política moderna São Paulo Brasiliense 1996 pp 4445 10 JeanJaques Rousseau Do contrato social São Paulo Abril Cultural 1973 p 75 11 Aristóteles Política op cit p 27 12 Adam Smith A riqueza das nações São Paulo Abril Cultural 1981 p 53 13 Ibid p 285 14 Ibid p 286 15 Ibid p 290 CAPÍTULO 23 REINO COLONIAL SONHO DE REAÇÃO 1 Joaquim José da Cunha de Azeredo Coutinho Análise da justiça do comércio de escravos com a costa da África em Idem Obras econômicas São Paulo Companhia Editora Nacional 1966 p 233 2 Ibid p 236 3 Ibid p 246 4 Ibid pp 24142 5 José da Silva Lisboa Princípios de economia política São Paulo Pongetti 1956 p 118 6 Ibid p 121 7 John Luccock Notas sobre o Rio de Janeiro Belo Horizonte São Paulo Itatiaia Edusp 1975 p 383 CAPÍTULO 25 A CONSTITUIÇÃO DE 1834 1 Jorge Caldeira A nação mercantilista op cit p 288 2 José Bonifácio de Andrada e Silva Representação à Assembleia Geral Constituinte do Império do Brasil sobre a escravatura em Jorge Caldeira org José Bonifácio de Andrada e Silva São Paulo Editora 34 2002 p 202 3 Ibid p 36 4 Antônio Carlos Ribeiro de Andrada discurso na sessão de 26 de junho de 1826 em Marcelo Bueno Mendes Antonio Carlos na formação do pensamento político constitucional brasileiro Curitiba Juruá Editora 2017 p 168 CAPÍTULO 26 DANDO PARA SI MESMO 1 Visconde de Cairu Observações sobre a franqueza de indústrias e o estabelecimento de fábricas no Brasil em Antonio Penalves Rocha org Visconde de Cairu São Paulo Editora 34 2001 p 226 2 Ibid p 221 3 François Quesnay Cereais em François Quesnay São Paulo Nova Cultural 1996 p 302 4 Ibid p 306 5 Karl Marx Teorias de la plusvalia Madri Alberto Corazón 1974 v 1 p 278 6 Ibid p 30 7 Carlos Pelaez Wilson Suzigan História monetária do Brasil Brasília Editora da UNB 1981 p 150 CAPÍTULO 27 PODERES EM CONFRONTO 1 diplomata austríaco 2 Apud Jorge Caldeira Mauá empresário do Império São Paulo Companhia das Letras 1995 p 104 3 Ibid p 106 4 Ibid p 126 CAPÍTULO 28 REGÊNCIAS E LIDERANÇAS 1 Jorge Caldeira org Diogo Antonio Feijó São Paulo Editora 34 1999 p 22 2 Ibid p 104 3 Ibid p 109 4 Ibid p 123 5 Ibid p 68 CAPÍTULO 29 EXECUTIVO ELEITO 1 Apud José Murilo de Carvalho org Bernardo Pereira de Vasconcelos São Paulo Editora 34 1999 CAPÍTULO 31 MAUÁ E A REAÇÃO 1 Apud Jorge Caldeira Mauá empresário do Império São Paulo Companhia das Letras 1995 p 242 2 Ibid p 245 3 Ibid p 266 4 Ibid p 267 5 Ibid p 268 6 Ibid p 269 7 Apud Jorge Caldeira Júlio Mesquita e seu tempo São Paulo Mameluco 2014 v 1 p 64 8 Carlos Manuel Pelaez Wilson Suzigan História monetária do Brasil Brasília Ed da UNB 1981 p 100 CAPÍTULO 32 O ARBÍTRIO ILUSTRADO 1 Anais da Câmara dos Deputados 06071853 2 Instruções do imperador ao ministério organizado pelo marquês de Paraná 691853 Biblioteca Nacional Seção de manuscritos 3 Eduardo Kugelmas O jurista e a Coroa em Idem org Marquês de São Vicente São Paulo Editora 34 2002 p 49 4 Ibid p 87 5 Ibid p 205 6 Ibid p 206 7 João Camillo de Oliveira Torres A democracia coroada teoria política do Império do Brasil Petrópolis Vozes 1964 p 89 8 Paulino José Soares de Sousa visconde do Uruguai Do poder administrativo ou da administração sua divisão em José Murilo de Carvalho org Visconde do Uruguai São Paulo Editora 34 2002 pp 131 32 9 Ibid p 437 10 João Camillo de Oliveira Torres A democracia coroada op cit pp 7172 11 Ibid 12 Ibid 13 Braz Florentino Henriques de Sousa Do poder moderador ensaio de direito constitucional contendo a analise do titulo V capitulo I da Constituição política do Brasil Recife Tipografia Universal 1864 p 469 14 Ibid p 507 15 Ibid p 536 CAPÍTULO 33 REPUBLICANOS 1 Discurso de Nabuco de Araújo na Câmara dos Deputados 1771868 em Joaquim Nabuco Nabuco de Araújo Um estadista do Império sua vida suas opiniões sua época 18661878 Rio de JaneiroParis Livraria Garnier 1927 t 3 p 121 2 Ibid 3 Ibid 4 Ibid 5 Ibid 6 Ibid 7 George C A Boehrer Da monarquia à república história do partido republicano do Brasil 1870 1889 Rio de Janeiro Ministério da Educação e Cultura Serviço de Documentação sd p21 8 Manifesto republicano apud Jorge Caldeira Júlio Mesquita e seu tempo São Paulo Mameluco 2015 v 1 p 115 9 Ibid p 116 CAPÍTULO 34 OCASO 1 Raffaele Romanelli Electoral systems and social structures a comparative perspective em Raffaele Romanelli org How did they become voters The history of franchise in modern European representation Holanda Kluwer Law International 1998 p 4 2 Arnaldo Testi The construction and deconstruction of the US electorate in the age of manhood suffrage 1830s1920s em Raffaele Romanelli org op cit p 389 3 Kenneth F Warren org Encyclopedia of U S campaigns elections and electoral behavior California SAGE 2008 pp 82223 4 Tracy Campbell Deliver the vote a history of election fraud an American political tradition 17422004 Nova York Carrol Graf 2005 p 77 5 Leticia Bicalho Canedo Les listes electorales et le processus de nationalization de la citoyennete au Brésil 18221845 em Raffaele Romanelli org op cit p 196 6 Carlos Dardé Manuel Estrada Social and territorial representation in Spanish electoral systems 18091874 em Raffaele Romanelli org op cit p 153 7 Manuel Loff Electoral procedings in Salazarist Portugal 19261974 formalism and fraud em Raffaele Romanelli org op cit p 230 8 Birgitta BaderZaar From corporate to individual representation the electoral systems of Austria 1861 1918 em Raffaele Romanelli org op cit p 311 9 Lars I Andersson How did they become voters Sweden after 1866 em Raffaele Romanelli org op cit p 349 10 Jaap Talsma Accomodation and conflict traditional politics religion and social relationships in the Dutch electoral process em Raffaele Romanelli org op cit p 375 11 I G C Hutchison The electorate and the electoral system in Scotland c1800c1950 em Raffaele Romanelli org op cit p 420 12 Arnaldo Testi The construction and deconstruction of the US electorate in the age of manhood suffrage 1830s1920s em Raffaele Romanelli org op cit p 389 13 Discurso de Cansansão de Sinimbu na Câmara dos Deputados 20121878 Anais de 1878 v 1 p 105 em Organizações e programas ministeriais regime parlamentar no império 3 ed Brasília Instituto Nacional do Livro 1979 p 177 14 Decreto n 3029 de 911881 em Nelson Jobim Walter Costa Porto orgs Legislação eleitoral no Brasil do século XVI a nossos dias Brasília Senado Federal 1996 v 3 p 214 15 Ibid p 217 16 Ibid 17 Decreto n 7981 de 291 1881 Manda observar as instruções para o primeiro alistamento dos eleitores a que se tem de proceder em virtude da lei n 3029 de 9 de janeiro corrente ano em Nelson Jobim Walter Costa Porto orgs op cit p 237 18 Decreto n 3029 91 1881 Reforma a legislação eleitoral em Nelson Jobim Walter Costa Porto orgs op cit v 3 p 217 19 Ibid p 218 20 Ibid p 219 CAPÍTULO 35 FIM 1 Escritura de constituição da Sociedade Promotora da Imigração reconhecida em São Paulo em 2 de julho de 1886 e no Rio de Janeiro em 22 de dezembro em Helena da Silva Prado In Memoriam Martinho Prado Junior 18431943 São Paulo se 1944 pp 36971 2 Cincinato Braga Problemas brasileiros magnos problemas econômicos de São Paulo Rio de JaneiroSão Paulo Livraria José Olympio Editora 1948 p 254 3 Maria Silvia C Beozzo Bassanezi et al Atlas da imigração internacional em São Paulo 18501950 São Paulo Editora UNESP 2008 p 21 4 Cálculos realizados com base em Wilson Cano Raízes da concentração industrial em São Paulo São Paulo DIFEL 1977 p 36 5 Quadro no 1 E F Leopoldina suprimentos fornecidos à lavoura em Rui Barbosa Obras completas Anexos ao relatório do ministro da Fazenda 1891 Rio de Janeiro Ministério da Educação e Saúde 1949 v 18 t 2 p 143 6 Gustavo H B Franco Reforma monetária e instabilidade durante a transição republicana Rio de Janeiro BNDES 1983 p 22 7 Affonso de E Taunay História do café no Brasil no Brasil imperial 18721889 Rio de Janeiro Departamento Nacional do Café 1939 v 6 t 4 p 256 8 Rui Barbosa Obras completas Relatório do ministro da Fazenda Rio de Janeiro Ministério da Educação e Saúde 1949 v 18 t 3 p 251 9 Quadro no 7 Estado da dívida interna fundada até 30 de setembro de 1890 em Rui Barbosa Obras completas Anexos ao relatório do ministro da Fazenda 1891 Rio de Janeiro ministério da Educação e Saúde 1949 v 18 t 4 p 462 10 Gustavo H B Franco A primeira década republicana em Marcelo de Paiva Abreu org Dionísio Dias Carneiro et al A ordem do progresso cem anos de política econômica republicana 18891989 Rio de Janeiro Campus 1992 p 17 11 Rui Barbosa Obras completas Anexos ao relatório do ministro da Fazenda 1891 Rio de Janeiro Ministério da Educação e Saúde 1949 v 18 t 2 p 157 12 Ilmar Rohloff de Mattos O tempo saquarema a formação do Estado imperial São Paulo Hucitec 1990 p 284 CAPÍTULO 36 BALANÇO DO IMPÉRIO 1 Nathaniel H Leff Subdesenvolvimento e desenvolvimento no Brasil reavaliação dos obstáculos ao desenvolvimento econômico Rio de Janeiro Expressão e Cultura 1991 v 2 p 26 2 Evaldo Cabral de Mello O Norte agrário e o Império 18711889 Rio de Janeiro Brasília Nova Fronteira Instituto Nacional do Livro 1984 pp 9899 3 Ibid p 255 4 Angus Maddison Monitoring the world economy 18201992 Paris OECD Development Centre 1995 p 25 PARTE III 18891930 CAPÍTULO 37 GOVERNO PROVISÓRIO E DITADURA 1 Câmara dos Deputados O apostolado positivista e a República Brasília Editora Universidade de Brasília 1981 p 6 2 Fragmento de texto de Miguel Lemos e R Teixeira Mendes em Câmara dos Deputados O apostolado positivista e a República op cit pp 5051 3 Aristides Lobo Cartas do Rio Diário Popular São Paulo 18111889 em José Murilo de Carvalho Os bestializados o Rio de Janeiro e a República que não foi São Paulo Companhia das Letras 1987 p 9 4 Apud Jorge Caldeira Júlio Mesquita e seu tempo São Paulo Mameluco 2015 v 1 p 228 5 Ibid p 229 6 Ibid p 229 CAPÍTULO 38 REFORMAS FUNDAMENTAIS 1 Rui Barbosa Obras completas Anexos ao relatório do ministro da Fazenda 1891 Rio de Janeiro Ministério da Educação e Saúde 1949 v 18 t 4 p 23 2 Ibid v 18 t 2 pp 5253 3 Ibid 4 Steven Topik The states contribution to the development of Brazils international economy 1850 1930 Hispanic American Historical Review Nova York 1985 v 65 2 pp 203228 5 Ibid p 208 6 Ibid p 209 CAPÍTULO 39 NOVA LEI VELHOS COSTUMES 1 Carta do barão de Lucena ao Dr Américo Brasiliense de Almeida Melo 531891 Revista do Arquivo Municipal São Paulo v 67 maio 1939 p 217 2 Anne G Hanley Renato Leite Marcondes Bancos na transição republicana em São Paulo o financiamento hipotecário 18881901 Estudos Econômicos São Paulo v 40 n 1 janmar 2010 p 112 3 Anne G Hanley Native capital financial institutions and economic development in São Paulo Brazil 18501920 Stanford Stanford University Press 2005 p 97 4 Rui Barbosa Obras completas Anexos ao relatório do ministro da Fazenda 1891 op cit v 18 t 2 p 158 5 William Roderick Summerhill Order against progress government foreign investment and railroads in Brazil 18541913 Stanford Stanford University Press 2003 p 69 6 Eduardo Modiano A ópera dos três cruzados 19851989 em Marcelo de Paiva Abreu org Dionísio Dias Carneiro et al A ordem do progresso cem anos de política econômica republicana 18891989 Rio de Janeiro Campus 1992 p 388 7 Kris James Mitchener Marc D Weidenmier The Baring crisis and the great Latin American meltdown of the 1890s Cambridge MA National Bureau of Economic Research 2007 p 33 8 Gustavo H B Franco Winston Fritsch Aspects of the Brazilian experience with the gold standard em Pablo Matín Aceña Jaime Reis orgs Monetary standards in the periphery paper silver and gold 18541933 Londres Macmillan Press 2000 p 6 9 Discurso de Tristão de Alencar Araripe ministro da Fazenda 2121891 em Dunshee de Abranches O golpe de Estado atas e atos do governo Lucena Rio de Janeiro Jornal do Brasil 1954 p 159 10 Relatório de Rodrigues Alves ministro da Fazenda 1892 em Rui Barbosa Obras completas anexos ao relatório do ministro da Fazenda 1891 op cit v 18 t 2 p lx CAPÍTULO 40 A ESFINGE 1 Marechal Floriano Peixoto Manifesto à nação 23111891 em Edgard Carone A Primeira República texto e contexto 18891930 São Paulo Difusão Europeia do Livro 1973 pp 2324 2 Ibid 3 Francolino Cameu Artur Vieira Peixoto Floriano Peixoto vida e governo Brasília Editora da Universidade de Brasília 1983 p 99 CAPÍTULO 41 PRESIDENTE ELEITO 1 Discurso de posse de Prudente de Morais no Congresso Legislativo 451893 em Antônio Barreto do Amaral Prudente de Morais uma vida marcada São Paulo Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo 1971 p 184 2 Ata da sessão da Convenção do Partido Republicano Federal realizada no dia 23 de setembro de 1893 em José Sebastião Witter A primeira tentativa de organização partidária na República o Partido Republicano Federal 18931897 tese de doutorado Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas Universidade de São Paulo 1971 p 150 3 Discurso de Manoel Vitorino na sessão da Convenção do Partido Republicano Federal realizada no dia 23 de setembro de 1893 em José Sebastião Witter op cit pp 15152 4 Visconde de Taunay O encilhamento cenas contemporâneas da bolsa do Rio de Janeiro em 1890 1891 e 1892 São Paulo Melhoramentos sd p 59 5 Ibid p 136 6 Ibid p 301 CAPÍTULO 42 A ARTE DE ENSACAR DEMÔNIOS 1 Luiz Felipe dÁvila Os virtuosos os estadistas que fundaram a República brasileira São Paulo A Girafa 2006 p 75 2 Carta de Prudente de Morais a Bernardino de Campos 18111891 em Antônio Barreto do Amaral Prudente de Morais uma vida marcada op cit pp 22122 3 Oleone Coelho Fontes O TremeTerra Moreira César a República e Canudos Petrópolis Vozes 1995 p 167 4 Euclides da Cunha Os sertões São Paulo Brasiliense Secretaria do Estado de Cultura 1985 p 325 5 Brígido Tinoco A vida de Nilo Peçanha Rio de Janeiro José Olympio 1962 p 92 6 Antônio Barreto do Amaral Prudente de Morais op cit p 295 7 Euclides da Cunha Canudos Diário de uma expedição Canudos 1o de Outubro O Estado de S Paulo 25101897 8 Silveira Peixoto A tormenta que Prudente de Morais venceu São Paulo Imprensa Oficial do Estado 1990 p 243 9 Edgard Carone A República Velha a evolução política 18891930 São Paulo Difel 1977 v 2 p 182 10 Prudente de Morais O atentado à nação O Estado de S Paulo 7111897 CAPÍTULO 43 PRIMEIRA DÉCADA ALTERNÂNCIA E MERCADO 1 Evolução da população amazônica da região Norte censos de 1872 a 1980 em Samuel Benchimol Amazônia legal na década de 7080 expansão e concentração demográfica Manaus CEDEAMUA 1981 p 7 2 Bernardino de Campos Relatório do ministro dos Negócios da Fazenda de 1898 Rio de Janeiro Imprensa Oficial 1898 p 421 3 Ibid p 201 4 Flávio Saes São Paulo republicana vida econômica em Paula Porta org História da cidade de São Paulo a cidade na primeira metade do século XX 18901954 São Paulo Paz e Terra 2004 v 3 p 224 5 Wilson Suzigan Indústria brasileira origem e desenvolvimento São Paulo Brasiliense 1986 p 241 6 Odilon Nogueira de Matos Café e ferrovias a evolução ferroviária de São Paulo e o desenvolvimento da cultura cafeeira Campinas Pontes 1990 p 142 7 Thomas H Holloway Imigrantes para o café café e sociedade em São Paulo 18861934 Rio de Janeiro Paz e Terra 1984 p 261 8 Receita com porcentagem da receita federal da Secretaria da Fazenda de São Paulo de 18791940 em Joseph L Love A locomotiva São Paulo na federação brasileira 18891937 Rio de Janeiro Paz e Terra 1982 p 415 9 Dados orçamentários da Secretaria da Fazenda de São Paulo de 18791940 em Joseph L Love op cit p 416 10 Sources of Bank funds 18891906 em Anne G Hanley Native Capital op cit p 157 11 Investment of Commercial Banking earning assets 18921906 em Anne G Hanley Native Capital op cit p 166 12 Quadro das fábricas de tecidos instaladas em Minas Gerais entre 1872 e 1900 em Alisson Mascarenhas Vaz Cia Cedro e Cachoeira história de uma empresa familiar 18831987 Belo Horizonte Companhia de Fiação e Tecidos Cedro e Cachoeira 1990 p 25 13 Nilton Baeta A indústria siderúrgica em Minas Gerais Belo Horizonte se 1973 p 261 14 Quadro do valor total do charque exportado e sua participação no valor total das exportações do Rio Grande do Sul em Pedro Cezar Dutra Fonseca RS economia conflitos políticos na República Velha Porto Alegre Mercado Aberto 1983 p 130 15 William R Summerhill Order against progress op cit p 66 16 Ibid p 138 17 Stephen Haber The efficiency consequences of institutional change financial market regulation and industrial productivity growth in Brazil 18661934 em John H Coatsworth Alan M Taylor orgs Latin America and the world economy since 1800 Cambridge MA Harvard University Press David Rockefeller Center for Latin American Studies 1999 p 311 CAPÍTULO 44 PRIMEIRA DÉCADA SERTÃO E CAPITALISMO 1 Antônio Delfim Netto O problema do café no Brasil Rio de Janeiro Fundação Getúlio Vargas Ministério da Agricultura Suplan 1979 p 34 2 Hebe Maria da Costa Mattos Gomes de Castro Ao sul da história lavradores pobres na crise do trabalho escravo São Paulo Brasiliense 1987 p 183 3 Ibid p 179 4 João Heraldo Limia Café e indústria em Minas Gerais no início do século algumas observações Estudos Econômicos São Paulo v 8 n 2 1978 pp 21617 5 Jorge Caldeira História do Brasil com empreendedores São Paulo Mameluco 2009 p 201 6 Barbara Weinstein A borracha na Amazônia expansão e decadência 18501920 São Paulo Hucitec Editora da Universidade de São Paulo 1993 p 41 7 Karl Marx O capital op cit v 3 p 315 8 Barbara Weinstein A borracha na Amazônia op cit p 205 9 Ibid p 207 10 Ibid p 209 11 Robert Levine A velha usina Pernambuco na federação brasileira 18891937 Rio de Janeiro Paz e Terra 1980 pp 5960 CAPÍTULO 45 PRIMEIRA DÉCADA AMÁLGAMAS E INCRUSTAÇÕES 1 Michael Schudson Discovering the news a social history of American newspapers Nova York Basic Books 2010 p 15 2 Ibid 3 Henry B Turner When giants ruled the history of Park Row New Yorks great newspaper street Nova York Fordham University Press 1999 pp 89 4 Michael Schudson op cit p 25 5 Max Leclerc Cartas do Brasil São Paulo 1942 apud Nelson Werneck Sodré História da imprensa no Brasil Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1966 p 288 6 Ibid p 289 7 Bernardino de Campos Relatório do ministro de Estado dos Negócios da Fazenda para o ano de 1897 Rio de Janeiro Imprensa Nacional 1897 p 132 8 Carta de Prudente de Morais ao Jornal do Commercio 19111898 em Antônio Barreto do Amaral Prudente de Morais op cit pp 34243 CAPÍTULO 46 CAMPOS SALES E O PLANO REGRESSIVO 1 Campos Sales Manifesto inaugural à nação 15111898 em Campos Sales Manifestos e mensagens 18981902 São Paulo Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Fundap 2007 pp 3940 2 Célio Debes Campos Sales São Paulo IHGSP 1977 v 2 p 77 3 Joaquim Murtinho Introdução ao relatório do ministro da Indústria Viação e Obras Públicas 1897 em Nícia Villela Luz org Ideias econômicas de Joaquim Murtinho Brasília Rio de Janeiro Senado Federal Fundação Casa de Rui Barbosa 1930 p 148 4 Ibid p 147 5 Ibid p 143 6 Ibid p 148 7 Ibid p 171 8 François Quesnay Cereais em François Quesnay Quadro econômico dos fisiocratas São Paulo Nova Cultural 1996 p 302 9 Karl Marx Teorias de la plusvalia op cit pp 2728 10 Joaquim Murtinho op cit p 144 11 Ibid pp 14445 12 Ibid 13 Campos Sales Manifesto lido no banquete político realizado na capital do Estado de São Paulo em 31 de outubro de 1897 em Campos Sales Manifestos e mensagens op cit p 17 14 Ibid pp 2324 15 Ibid pp 11 e 13 16 Ibid p 24 17 Ibid p 26 18 Campos Sales Da propaganda à presidência São Paulo Lisboa A Editora 1908 p 164 CAPÍTULO 47 O CARANGUEJO E A OSTRA 1 Carta de Campos Sales a Prudente de Morais 1421898 em Silveira Peixoto A tormenta que Prudente de Morais venceu São Paulo Imprensa Oficial do Estado 1990 p 279 2 Prudente de Morais Manifesto à nação 351897 em Câmara dos Deputados Centro de informação e documentação Mensagens presidenciais 18901910 Brasília 1978 p 167 3 Ibid 4 Campos Sales Da propaganda à presidência op cit p 170 5 Gustavo H B Franco A década republicana o Brasil e a economia internacional 18881900 Rio de Janeiro IPEA 1991 p 59 6 Tobias Monteiro O presidente Campos Sales na Europa Belo Horizonte São Paulo Itatiaia Edusp 1983 pp 10203 7 Campos Sales Manifesto inaugural à nação de 15 de novembro de 1898 op cit pp 3940 8 Ibid p 46 9 Campos Sales Mensagem apresentada na terceira sessão da terceira legislatura do Congresso nacional em 3 de maio de 1899 em Campos Sales Manifestos e mensagens op cit pp 6263 10 O terceiro regime 1251899 em Rui Barbosa Obras completas A imprensa 1899 Rio de Janeiro Ministério da Educação e Cultura 1965 p 25 11 Política interior 1351899 em Rui Barbosa Obras completas A imprensa 1899 op cit p 29 12 João Camillo de Oliveira Torres A democracia coroada teoria política do império do Brasil Petrópolis Vozes 1964 p 126 13 Ibid p 119 14 Política interior 1351899 em Rui Barbosa Obras completas A imprensa 1899 op cit pp 3031 15 Administração 1751899 em Rui Barbosa Obras completas A imprensa 1899 op cit pp 5253 CAPÍTULO 48 A PÉROLA HEREDITÁRIA 1 Joaquim Murtinho Introdução ao Relatório do Ministério da Fazenda em 1899 em Nícia Villela Luz org Ideias econômicas de Joaquim Murtinho Brasília Rio de Janeiro Senado Federal Fundação Casa de Rui Barbosa 1930 p 184 2 Ibid p 176 3 Ibid pp 17980 4 Ibid p 208 5 Ibid p 185 6 Ibid 7 Ibid p 232 8 William R Summerhill Order against progress op cit p 68 9 Anne G Hanley Native capital op cit p 174 10 Joaquim Murtinho Introdução ao Relatório do Ministério da Fazenda em 1900 em Nícia Villela Luz org Ideias econômicas de Joaquim Murtinho op cit p 219 11 Campos Sales Da propaganda à presidência op cit p 234 12 Ibid p 250 13 Ibid 14 Ibid p 252 15 João de Scantimburgo O poder moderador história e teoria São Paulo Secretaria do Estado da Cultura Pioneira 1980 p 30 CAPÍTULO 49 GOVERNO CENTRAL REACIONÁRIO 1 Afonso Arinos de Melo Franco Rodrigues Alves apogeu e declínio do presidencialismo Rio de Janeiro São Paulo José Olympio Edusp 1973 v 1 p 183 2 José Ênio Casalecchi O Partido Republicano Paulista política e poder 18891926 São Paulo Brasiliense 1987 pp 18788 3 Joseph L Love A locomotiva São Paulo na federação brasileira 18891937 op cit p 163 4 Campos Sales Da propaganda à presidência op cit pp 24445 5 Ibid p 246 6 Isidro Molas Os partidos políticos Rio de Janeiro Salvat Editora do Brasil 1979 p 23 7 Ibid pp 2627 8 Ibid pp 2930 9 Ibid pp 3233 10 Ibid p 34 11 Robert Michels Political parties a sociological study of the oligarchical tendencies of modern democracy Gloucester Dodo Press 2009 pp xivxv 12 Ibid p iv 13 Manifesto político aos nossos cidadãos O Estado de S Paulo 6111901 14 Ibid 15 Ibid 16 Ibid 17 Eduardo Kugelmas Difícil hegemonia um estudo sobre São Paulo na Primeira República tese de doutorado Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas Universidade de São Paulo 1986 p 77 CAPÍTULO 50 FOSSO 1 Balanço político O Estado de S Paulo 2071901 2 Ibid 3 Ibid 4 Gustave Le Bon The crowd Nova York Ballantine Books 1969 pp 2223 5 Gabriel Cohn Sociologia da comunicação teoria e ideologia São Paulo Pioneira 1973 p 20 6 Júlio Mesquita O Estado de S Paulo 2771901 7 Gabriel Cohn Sociologia da comunicação teoria e ideologia op cit p 49 8 Ibid p 67 9 Paulo Egydio A opinião e a multidão por G Tarde O Estado de S Paulo 211902 10 Júlio Mesquita A revisão O Estado de S Paulo 2971901 11 Campos Sales Da propaganda à presidência op cit pp 34647 12 Ibid pp 34849 13 Ibid p 357 14 Manifesto do Partido Socialista Brasileiro O Estado de S Paulo 28081902 15 Everardo Dias História das lutas sociais no Brasil São Paulo AlfaÔmega 1977 pp 4748 16 Ibid p 50 17 José Veríssimo Uma história dos sertões e da Campanha de Canudos O Estado de S Paulo 5121902 18 Discurso de Arthur Orlando na 95a sessão ordinária da Câmara dos Deputados do Estado de São Paulo em 25 de setembro de 1906 Anais da sessão ordinária de 1906 da Câmara dos Deputados do Estado de São Paulo 3o ano da 6a legislatura p 558 19 José Maria Bello História da República 18891954 São Paulo Companhia Editora Nacional 1958 p 198 20 Discurso de Leopoldo de Bulhões na Câmara dos Deputados na 66a sessão de 02 de agosto de 1893 em Leopoldo de Bulhões Discursos parlamentares Brasília Câmara dos Deputados 1979 p 297 CAPÍTULO 51 O PLANO DO CAFÉ SOCIEDADE E LEGISLATIVO ESTADUAL 1 Ficha do professor doutor Augusto Ferreira Ramos sd Arquivo histórico da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo pasta Prof Dr Augusto Ferreira Ramos 2 Francisco Ferreira Ramos A defesa do café O Estado de S Paulo 2591921 3 Antonio Carlos Botelho Souza Aranha Carlos Botelho nasceu no século XIX viveu no XX e vislumbrou São Paulo do século XXI São Paulo Ed do Autor 2011 p 12 4 Warren Dean A industrialização de São Paulo 18801945 São Paulo Difel sd p 82 5 O Estado de São Paulo Barcelona Monte Domeq 1918 p 555 6 Warren Dean A industrialização de São Paulo op cit p 83 7 O Estado de São Paulo op cit p 562 8 Wilson Suzigan Indústria brasileira origem e desenvolvimento São Paulo Brasiliense 1986 p 237 9 Antonio Francisco Bandeira Junior A indústria no estado de São Paulo em 1901 São Paulo Tip Diário Oficial 1901 p 218 10 Maria Cecília Brotero Pereira de Castro org A família Souza Queiroz de 1874 a 2004 e a Associação Barão de Souza Queiroz de proteção à infância e à juventude São Paulo Instituto Dona Ana Rosa 2004 p 15 11 Renato Monseff Perissinotto Estado e capital cafeeiro burocracia e interesse de classe na condução da política econômica 18891930 tese de doutorado Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Universidade Estadual de Campinas 1997 p 418 12 Ibid p 414 13 Associação Agricola Commercial Paulista Correio Paulistano 2211902 14 Augusto Ramos Valorização do café III O Estado de S Paulo 1051902 15 Exposição de Augusto Ramos 2171906 em Câmara dos Deputados Política Econômica Valorização do Café 18951906 Rio de Janeiro Tip do Jornal do Commercio 1915 p 381 16 Augusto Ferreira Ramos Valorização do café artigos publicados no Jornal do Commercio e Estado de São Paulo em 1902 São Paulo Tip Diario Oficial 1902 p 30 17 Ibid p 18 18 Augusto Ramos Valorização do café IV O Estado de S Paulo 1151902 19 Augusto Ferreira Ramos Valorização do café op cit p 9 20 Augusto Ramos Valorização do café III O Estado de S Paulo 1051902 21 Augusto Ferreira Ramos Valorização do café op cit p 28 22 Discurso de Rubião Junior na 56a sessão ordinária da Câmara dos Deputados do Estado de São Paulo em 30 de outubro de 1902 Anais da sessão ordinária de 1902 da Câmara dos Deputados do Estado de São Paulo 2o ano da 5a legislatura p 819 CAPÍTULO 52 O PLANO DO CAFÉ OS ESTADOS 1 Augusto Ramos Valorização do café a resistência II O Estado de S Paulo 851903 2 Augusto Ramos Valorização do café a resistência III O Estado de S Paulo 951903 3 Ibid 4 Ibid 5 Ibid 6 Augusto Ramos Valorização do café a resistência V O Estado de S Paulo 1351903 7 Francisco de Assis Barbosa org Ideias políticas de João Pinheiro Brasília Rio de Janeiro Senado Federal Fundação Casa de Rui Barbosa 1980 8 Carta de João Pinheiro da Silva a Pandiá Calógeras 2521905 apud Marcos Fábio Martins de Oliveira Ana Carolina Ferreira Caetano A trajetória de um propagandista no início da república o discurso de João Pinheiro da Silva em prol do desenvolvimento Anais do XIV Seminário sobre a Economia Mineira n 68 Cedeplar Universidade Federal de Minas Gerais 2010 Disponível em httpideasrepecorgscdpdiam10html 9 Resumo do pronunciamento de João Pinheiro no Congresso das municipalidades do norte Diamantina apud Marcos Fábio Martins de Oliveira Ana Carolina Ferreira Caetano A trajetória de um propagandista op cit 10 Cláudia Maria Ribeiro Viscardi O teatro das oligarquias uma revisão da política do café com leite Belo Horizonte CArte 2001 p 150 11 Boletim do Centro Industrial do Brasil sl v 1 19041905 p 317 apud Edgard Carone O Centro Industrial do Rio de Janeiro e a sua importante participação na economia nacional 18271977 Rio de Janeiro CIRJ Cátedra 1978 p 73 12 Ibid p 74 13 Ibid 14 John D Wirth O fiel da balança Minas Gerais na federação brasileira Rio de Janeiro Paz e Terra 1985 pp 8384 15 Discurso proferido na sessão de encerramento do Congresso Agrícola Industrial e Comercial Belo Horizonte 20 de maio de 1903 apud Francisco de Assis Barbosa org João Pinheiro documentário sobre a sua vida Belo Horizonte Arquivo Público Mineiro 1966 pp 12122 16 Alexandre Siciliano Valorização do café O Estado de S Paulo 2481903 CAPÍTULO 53 O PLANO DO CAFÉ O MERCADO INTERNACIONAL 1 Rodrigo Soares Júnior Jorge Tibiriçá e sua época São Paulo Companhia Editora Nacional 1958 pp 44751 2 Augusto Ramos A indústria cafeeira na América hespanhola São Paulo Secretaria da Agricultura Commercio e Obras Públicas do Estado de São Paulo 1907 p 4 3 Ibid pp 6063 4 Ibid pp 6365 5 Ibid p 66 6 Augusto Ramos Valorização do café estudo sobre o projeto de A Siciliano São Paulo Typ Diário Oficial 1905 p 0405 7 Ibid p 7 8 Ibid pp 1112 9 Ibid p 16 10 Ibid pp 1920 11 Ibid p 35 CAPÍTULO 54 O PLANO DO CAFÉ OPORTUNIDADE QUASE MILAGROSA 1 Gustavo Barroso Pinheiro Machado na intimidade Evocações Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro Rio de Janeiro v 211 abrjun 1951 p 92 Joseph L Love O regionalismo gaúcho e as origens da revolução de 1930 São Paulo Perspectiva 1975 p 147 2 Rodrigues Alves Eleição presidencial candidaturas apud Afonso Arinos de Melo Franco Rodrigues Alves apogeu e declínio do presidencialismo Rio de Janeiro São Paulo José Olympio Editora da Universidade de São Paulo 1973 v 2 p 527 3 Ibid p 528 4 Carta de Campos Sales a Arnolfo de Azevedo 4101904 em Célio Debes Campos Sales perfil de um estadista São Paulo Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo 1977 t 2 pp 19394 5 Carta de Campos Sales a Pinheiro Machado 531905 em Célio Debes Campos Sales op cit pp 195 97 6 Entrevista concedida por Pinheiro Machado Presidência da República O Estado de S Paulo 651905 7 Entrevista concedida por Bernardino de Campos O programa do Dr Bernardino de Campos O Paiz Rio de Janeiro 2661905 8 Entrevista de Bernardino de Campos op cit Cláudia Maria Ribeiro Viscardi O teatro das oligarquias op cit p 109 9 Américo Jacobina Lacombe Afonso Pena e sua época Rio de Janeiro José Olympio 1986 p 262 10 Ibid p 276 11 Carta de Afonso Pena a Francisco Salles 2771905 em Américo Jacobina Lacombe Afonso Pena op cit p 290 12 Carta de Bias Fortes a Afonso Pena Barbacena 231905 em Américo Jacobina Lacombe Afonso Pena op cit pp 26364 13 Carta de Rodrigues Alves a Afonso Pena Petrópolis 1531905 em Américo Jacobina Lacombe Afonso Pena op cit pp 25557 14 Carta de Rodrigues Alves a Bernardino de Campos Rio de Janeiro 1381904 em Motta Filho Uma grande vida biografia de Bernardino de Campos São Paulo Companhia Editora Nacional 1941 pp 280 81 15 Ibid p 204 16 A renúncia O Estado de S Paulo 1881905 CAPÍTULO 55 O CONVÊNIO DE TAUBATÉ 1 Discurso de Siqueira Campos no Congresso Legislativo do Estado de São Paulo em 16 de agosto de 1905 Anais do Senado do Estado de São Paulo 21a sessão ordinária p 123 2 Peter Louis Blasenheim A regional history of the Zona da Mata in Minas Gerais Brazil 18701906 tese de doutorado Departamento de História Universidade de Stanford 1982 p 244 3 Marcos Fábio Martins de Oliveira O pensamento econômico de Francisco Salles João Pinheiro e João Luís Alves e o desenvolvimento de Minas Gerais 18891914 tese de doutorado Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas Universidade de São Paulo p 77 4 Valorização do café O Estado de S Paulo 2391905 5 Congresso Legislativo do Estado de São Paulo 2591905 Anais do Senado do Estado de São Paulo 47a sessão ordinária p 259 6 Renato Monseff Perissinotto Estado e capital cafeeiro op cit p 418 7 Alberto Sousa Memória Histórica sobre o Correio Paulistano 18541904 São Paulo Arauco 2010 p 84 8 Discurso de Luiz Piza no Congresso Legislativo do Estado de São Paulo em 26 de setembro de 1905 Anais do Senado do Estado de São Paulo 48a sessão ordinária p 273 9 Ibid 10 Ibid 11 Discurso de Luiz Piza no Congresso Legislativo do Estado de São Paulo em 29 de setembro de 1905 Anais do Senado do Estado de São Paulo 51a sessão ordinária pp 30102 12 Discurso de Luiz Piza no Congresso Legislativo do Estado de São Paulo em 3 de outubro de 1905 Anais do Senado do Estado de São Paulo 54a sessão ordinária p 312 13 Discurso de Luiz Piza no Congresso Legislativo do Estado de São Paulo em 17 de agosto de 1905 Anais do Senado do Estado de São Paulo 22a sessão ordinária p 135 14 Thomas H Holloway Vida e morte do Convênio de Taubaté a primeira valorização do café Rio de Janeiro Paz e Terra 1978 p 28 15 Joaquim Murtinho Discurso sobre as candidaturas de Afonso Pena e Nilo Peçanha à presidência e vicepresidência da República em Nícia Villela Luz org Ideias econômicas de Joaquim Murtinho op cit p 301 16 Programa Presidencial Correio Paulistano 14101905 Transcrição de discurso de Afonso Pena 17 Cartas do Rio O Estado de S Paulo 27101905 18 Afonso Arinos de Melo Franco Rodrigues Alves op cit v 2 p 456 56 A GUERRA O FRONT PARLAMENTAR 1 Carta de Leopoldo de Bulhões a Afonso Pena 2721906 em Américo Jacobina Lacombe Afonso Pena opcit pp 30406 2 Ibid pp 30710 3 Brasil Política econômica Valorização do café 18951906 Rio de Janeiro Tip do Jornal do Commercio i195 v1 pp 205206 Coleção Documentos Parlamentares 4 Ibid p 207 5 Ibid 6 Discurso de Paulino de Souza na 79a sessão ordinária da Câmara dos Deputados em 3 de setembro de 1906 Anais da Câmara dos Deputados Rio de Janeiro Imprensa Nacional 1907 p 124 7 Ibid 8 Ibid p 126 9 Ibid p 128 10 Ibid 11 Ibid 12 Ibid 13 Ibid 14 Ibid 15 Ibid p 210 16 Ibid 17 Ibid 18 Ibid 19 Ibid p 131 20 Ibid p 134 21 Discurso de José de Barros Franco Júnior na 102a sessão ordinária da Câmara dos Deputados em 5 de outubro de 1906 Anais da Câmara dos Deputados Rio de Janeiro Imprensa Nacional 1907 p 142 22 Ibid p 143 23 Ibid 24 Ibid 25 Ibid p 145 26 Ibid p 146 27 Ibid 28 Ibid 29 Ibid p 147 30 Ibid p 148 31 Ibid p 149 CAPÍTULO 57 A GUERRA O QUEBRADOR DE OSSOS 1 Notas e informações O Estado de S Paulo 1021906 2 Ficha do prof Dr Francisco Ferreira Ramos sd Arquivo Histórico da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo pasta Prof Dr Francisco Ferreira Ramos 3 Notas e informações O Estado de S Paulo 1821906 4 Santos 21 O Estado de S Paulo 2221906 5 Notas e informações O Estado de S Paulo 441906 6 Notas e informações O Estado de S Paulo 441906 Francisco Ferreira Ramos La question de la valorization du café au Brésil Conférence faite au cercle détudes coloniales dAnvers le 29 janvier 1907 Antuérpia J E Buschmann 1907 p 7 7 Institut Royal Colonial Belge Biographie coloniale belge Bruxelas Librairie Falk 1948 t I pp 180 03 Disponível em httpwwwkaowarsombe Acesso em 2232015 8 William Harrison Ukers All about coffee Nova York The Tea and Coffee Trade Journal Company 1922 p 519 Trad do autor 9 Crossmans estate valued at 5310953 Coffee importer bequeathed 1000000 to Herman Sielcken his partner The New York Times 3181913 Trad do autor 10 Sugar Men Retaliate the Havemeyers Buy a Coffee Refinery and Get a Manager The New York Times 22121896 Trad do autor 11 Thomas H Holloway Vida e morte do Convênio de Taubaté A primeira valorização do café Rio de Janeiro Paz e Terra 1978 p 70 12 How Brazil cornered the worlds coffee market though flying in the face of the law of supply and demand the valorization plan worked so well that now steps are being taken to find the coffee trust The New York Times 2651912 Trad do autor 13 O café O Estado de S Paulo 2771906 14 Thomas H Holloway Vida e morte do Convênio de Taubaté op cit p 70 CAPÍTULO 58 A GUERRA A BATALHA DOS CHEQUES 1 Antônio Delfim Netto O problema do café no Brasil Rio de Janeiro Fundação Getúlio Vargas Ministério da Agricultura Suplan 1979 pp 501 2 Francisco Ferreira Ramos A defesa do café O Estado de S Paulo 2591921 3 Ibid 4 Ibid 5 How Brazil cornered the worlds coffee market though flying in the face of the law of supply and demand the valorization plan worked so well that now steps are being taken to find the coffee trust The New York Times 2651912 Trad do autor 6 Francisco Ferreira Ramos A defesa do café O Estado de S Paulo 2591921 7 Pierre Denis Brazil Londres Fisher Unwin 1911 p 255 8 Carta de Jorge Tibiriçá a Pinheiro Machado 571906 em Rodrigo Soares Júnior Jorge Tibiriçá e sua época 18551928 op cit pp 5401 9 Charles A Gauld Farquhar o último titã Um empreendedor americano na América Latina São Paulo Editora de Cultura 2006 p 232 10 Ibid 11 Discurso de Barata Ribeiro na 63a sessão ordinária do Senado Federal em 3 de agosto de 1907 Anais do Senado Federal Rio de Janeiro Imprensa Nacional 1908 p 144 12 Ibid p 145 13 Ibid p 146 14 Ibid p 156 15 Notas e Informações O Estado de S Paulo 140507 16 MJ Albuquerque Lins mensagem enviada ao Congresso Legislativo a 14 de julho de 1908 O Estado de S Paulo 15 jul 1908 pp 12 17 Mensagem de Afonso Augusto Moreira Pena ao Congresso Nacional 10111908 em Rio de Janeiro Tip do Jornal do Commercio 1916 v 2 p 9 18 Discurso de Pandiá Calógeras na 145ª sessão ordinária da Câmara dos Deputados em 18 de novembro de 1908 Anais da Câmara dos Deputados Rio de Janeiro Imprensa Nacional 1909 pp 6034 v XI 19 Ibid p 596 20 Thomas H Holloway Vida e morte do Convênio de Taubaté op cit p 79 21 Ibid p 81 CAPÍTULO 59 A GUERRA BRASILEIROS CONTRA BRASILEIROS 1 Augusto Ramos Valorização do café III O Estado de S Paulo 1051902 2 Antônio Delfim Netto O problema do café no Brasil op cit pp 556 3 Carta de Rui Barbosa a Afonso Pena 16121908 em Américo Jacobina Lacombe Afonso Pena op cit p 407 4 Ibid p 408 5 Ibid p 444 6 Rui Barbosa A situação política O Estado de S Paulo 2151909 7 Ibid 8 Rui Barbosa A conferência da Bahia O Estado de S Paulo 1611910 9 Discurso de Hermes da Fonseca no Teatro Municipal do Rio de Janeiro em 26 de dezembro de 1909 em A presidência da República O Estado de S Paulo 27121909 pp 34 10 Leopoldo de Bulhões Jardim Relatório de Bulhões Jardim para o ano de 1910 Rio de Janeiro Ministério da Fazenda Imprensa Nacional 1910 p xxii 11 Discurso de Josino de Araújo na Câmara dos Deputados em 15 de dezembro de 1910 op cit p 331 12 Discurso de Cincinato Braga na Câmara dos Deputados 10111910 em A taxa cambial O Estado de S Paulo 12111910 13 Winston Fritsch External constraints on economic policy in Brazil 18891930 Pittsburgh University of Pittsburgh Press 1988 p 24 CAPÍTULO 60 CAPITALISMO NO TOPO DA VELOCIDADE DO MUNDO 1 Carlos Manuel Peláez Wilson Suzigan História monetária do Brasil análise da política comportamento e instituições monetárias op cit p 152 2 Piketty Thomas O capital no século XXI op cit pp 7879 3 Estatísticas históricas do Brasil séries econômicas demográficas e sociais de 1550 a 1988 Rio de Janeiro IBGE 1990 pp 56974 4 Ibid pp 385 e 56970 5 Augusto Ramos José de Barros Franco et al Pela estabilidade do câmbio à nação e aos seus representantes no Congresso Nacional Manifesto do Comitê de Defesa da Produção Nacional O Estado de S Paulo 2271910 6 Ibid 7 Ibid 8 Ibid 9 Ibid 10 Ibid 11 Ibid 12 Ibid 13 Ibid 14 Ibid 15 Ibid 16 Wilson Cano Raízes da concentração industrial em São Paulo op cit pp 23536 CAPÍTULO 61 19101918 TEMPOS EXCRUCIANTES I 1 A revolta da armada a bordo dos dois dreadnoughts O Estado de S Paulo 26111910 2 O Minas Gerais virou sucata em 1953 e seu grande comandante temporário viveu como marinheiro civil cidadão pobre e digno até 1969 3 Paulo R Pestana O progresso paulista O Estado de S Paulo 1421909 4 Anne G Hanley Native capital op cit p 179 5 Discurso de Francisco de Paula Rodrigues Alves no banquete do Partido Republicano Paulista São Paulo 1611912 em Eugênio Egas Galeria dos presidentes de São Paulo São Paulo Publicação Oficial do Estado de São Paulo 1927 v 2 pp 41112 6 Ibid pp 41213 7 Altino Arantes Meu diário registro íntimo de factos e de impressões v 4 Arquivo Histórico da Academia Paulista de Letras CAPÍTULO 62 19171930 TEMPOS EXCRUCIANTES II 1 Júlio Mesquita A guerra 19141918 São Paulo Estado de S Paulo Terceiro Nome 2002 v 4 p 745 2 Ibid 3 Rui Barbosa Obras completas Campanha presidencial Rio de Janeiro Ministério da Educação e Cultura 1956 v 46 t 1 p 6 4 Ibid p 51 5 Ibid p 81 6 Ibid 7 Ibid p 110 8 Ibid p 117 9 Ibid p 82 10 Epitácio Pessoa Pela verdade Rio de Janeiro Francisco Alves 1925 p 157 11 José Pires do Rio Relatório de 1919 Rio de Janeiro Ministério da Viação e Obras Públicas Imprensa Oficial 1920 p 86 12 Ibid pp 293 353 13 Conferência de Menotti del Picchia 1521922 em Gilberto Mendonça Teles Vanguarda europeia e modernismo brasileiro apresentação de 1922 Petrópolis Vozes 1997 pp 28788 CAPÍTULO 63 18891930 UM BALANÇO 1 Estatísticas históricas do Brasil Rio de Janeiro Fundação IBGE 1990 p 34 2 Ibid p 74 3 Ibid p 382 4 Ibid p 493 5 Ibid 6 Ibid p 474 7 Ibid p 457 8 Ibid p 463 9 Ibid p 385 10 Ibid p 350 11 Alberto Carlos Almeida O Brasil no final do século XX Um caso de sucesso Dados Rio de Janeiro v 41 n 4 1998 Disponível em httpdxdoiorg101590S001152581998000400004 acesso em 20032017 12 José Bento Monteiro Lobato Urupês O Estado de S Paulo 23121914 PARTE IV 19302017 CAPÍTULO 64 CENTRALIZAÇÃO COM SENTIDO 1 Lira Neto Getúlio São Paulo Companhia das Letras 2012 v 1 p 100 2 Ibid 3 Mario Henrique Simonsen Oswaldo Aranha e o Ministério da Fazenda em Oswaldo Aranha a Estrela da Revolução São Paulo Mandarim 1996 p 384 4 Marcelino Martins 150 anos de café São Paulo Salamandra 1992 p 369 5 Ibid p 383 6 Mario Henrique Simonsen Oswaldo Aranha e o Ministério da Fazenda op cit pp 398405 7 Estatísticas nacionais op cit p 385 CAPÍTULO 65 A SONHADA DITADURA 1 Apud Leon Trotsky Revolução e contra revolução na Alemanha São Paulo Ciências Humanas 1979 p153 2 Ibid pp 2529 3 Oliveira Viana Evolução do povo brasileiro Rio de Janeiro José Olympio 1956 pp 21950 4 Decreto 19770 de 1931931 5 Diário Carioca 24232 apud Lira Neto Getúlio Vargas op cit v 2 p29 6 Ibid p 35 7 Oliveira Viana Problemas de política objetiva Rio de Janeiro Record 1974 pp 12141 8 Ibid p 81 9 Ibid p 36 10 Lira Neto Getúlio op cit v 2 p 226 11 Ibid p 258 12 Diário Carioca 3345 CAPÍTULO 66 DEMOCRACIA POPULISTA 1 Antonio Candido Os parceiros do Rio Bonito Estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida São Paulo Duas Cidades Editora 34 2001 p 105 2 Ibid p 273 3 Sergio Besserman Viana Política econômica externa e industrialização 19461951 em Marcelo Paiva Abreu org A ordem do progresso Rio de Janeiro Campus 1992 pp10607 CAPÍTULO 67 DITADURA MILITAR E SEUS PARADOXOS 1 Claudio Bojunga JK Rio de Janeiro Objetiva 2001 p 817 2 Getúlio Vargas Diário São Paulo Rio de Janeiro Siciliano FGV 1995 p 203 3 Andrew G Terborgh The postwar rise of world trade does the Bretton Woods system deserve credit working paper 7803 Department of Economic History London School of Economics 2003 Trad do autor 4 Ministério do Planejamento e Coordenação Econômica Programa de Ação Econômica do Governo 19641966 Documentos Epea Rio de Janeiro novembro de 1964 p 28 5 Thomas Skidmore Brasil de Castelo a Tancredo Rio de Janeiro Paz e Terra 1988 p 75 6 André Lara Resende Estabilização e reforma em Marcelo Abreu org A ordem do progresso op cit p 215 CAPÍTULO 68 O MURO E A GRANDE MURALHA 1 Carlos Langoni The development crisis São Francisco International Center for Economic Growth 1987 p 19 2 Dionísio Dias Carneiro Crise e esperança 19741980 em Marcelo Abreu org A ordem do progresso op cit p 311 CAPÍTULO 70 PASTURO 1 Luiz Aranha Corrêa do Lago A retomada do crescimento e as distorções do milagre em Marcelo Abreu org A ordem do progresso op cit p 290 2 Ibid p 203 3 Antonio Manuel Hespanha Ângela Barreto Xavier op cit pp 12930 CAPÍTULO 71 DESENCALHE REENCALHE 1 Thomas Piketty O capital no século XXI op cit p 171 2 Ibid p 318 3 Ibid 4 Ibid p 337 SOBRE O AUTOR JORGE CALDEIRA nasceu em São Paulo em 1955 É doutor em Ciência Política mestre em Sociologia e bacharel em Ciências Sociais FFLCHUSP Sóciofundador da Mameluco Edições e Produções Culturais é escritor e possui ampla experiência profissional na área jornalística e editorial Foi publisher da revista Bravo consultor do projeto Brasil 500 Anos da Rede Globo de Televisão editorexecutivo da revista Exame editor do caderno Ilustrada e da Revista da Folha do jornal Folha de SPaulo editor de economia da revista IstoÉ e editor da revista Novos Estudos Cebrap É autor de 101 brasileiros que fizeram história Estação Brasil Noel Rosa de costas para o mar Brasiliense Mauá empresário do Império e Viagem pela história do Brasil Companhia das Letras A nação mercantilista e Ronaldo glória e drama no futebol globalizado Editora 34 O banqueiro do sertão A construção do samba História do Brasil com empreendedores e Júlio Mesquita e seu tempo Mameluco além de organizador dos volumes Diogo Antônio Feijó e José Bonifácio de Andrada e Silva que integram a coleção Formadores do Brasil LanceEditora 34 e do livro Brasil a história contada por quem viu Mameluco Ocupa a cadeira no 18 da Academia Paulista de Letras Este livro foi editado na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro no inverno de 2017 Foram usados tipos TheAntiqua e TheSans criados por Lucas de Groot Estação Brasil é o ponto de encontro dos leitores que desejam redescobrir o Brasil Queremos revisitar e revisar a história discutir ideias revelar as nossas belezas e denunciar as nossas misérias Os livros da Estação Brasil misturamse com o corpo e a alma de nosso país e apontam para o futuro E o nosso futuro será tanto melhor quanto mais e melhor conhecermos o nosso passado e a nós mesmos Sumário Créditos Apresentação por Mary del Priore Prefácio I 15001808 Alianças colônia e o mundo do Antigo Regime 1 Costumes e problemas de escrita 2 Governos com genros europeus 3 Governo português teoria escrita e Igreja 4 Vilas 5 Capitanias 6 Governogeral 7 Governo francês corpo e espírito 8 Aliança geral 9 Governos da Espanha 10 Governos da Holanda 11 Economia colonial economia metropolitana e o lugar do Brasil 12 Governo central e economia 13 Governos locais e costumes 14 Política miserável e caranguejo 15 Brasileiros 16 Governogeral no sertão 17 Os favores da cabeça 18 Ouro e redistribuição dos governos no território 19 Riqueza e empreendedores 20 Governos locais e costumes na mineração do ouro 21 Costumes e lei civil após o ouro II 18081889 Coroas e estagnação durante o desenvolvimento do Ocidente 22 Teoria dos governos uma revolução 23 Reino colonial sonho de reação 24 Governo nacional 25 A Constituição de 1824 26 Dando para si mesmo 27 Poderes em confronto 28 Regências e lideranças 29 Executivo eleito 30 Imperador 31 Mauá e a reação 32 O arbítrio ilustrado 33 Republicanos 34 Ocaso 35 Fim 36 Balanço do Império III 18891930 Primeira República explosão de crescimento 37 Governo provisório e ditadura 38 Reformas fundamentais 39 Nova lei velhos costumes 40 A esfinge 41 Presidente eleito 42 A arte de ensacar demônios 43 Primeira década alternância e mercado 44 Primeira década sertão e capitalismo 45 Primeira década amálgamas e incrustações 46 Campos Sales e o plano regressivo 47 O caranguejo e a ostra 48 A pérola hereditária 49 Governo central reacionário 50 Fosso 51 O plano do café sociedade e legislativo estadual 52 O plano do café os estados 53 O plano do café o mercado internacional 54 O plano do café oportunidade quase milagrosa 55 O Convênio de Taubaté 56 A guerra o front parlamentar 57 A guerra o quebrador de ossos 58 A guerra a batalha dos cheques 59 A guerra brasileiros contra brasileiros 60 Capitalismo no topo da velocidade do mundo 61 19101918 tempos excruciantes I 62 19171930 tempos excruciantes II 63 18891930 um balanço IV 19302017 A era do muro uma centralização dois resultados 64 Centralização com sentido 65 A sonhada ditadura 66 Democracia populista 67 Ditadura militar e seus paradoxos 68 O muro e a Grande Muralha 69 Cuidando da franguinha 70 Pasturo 71 Desencalhe reencalhe Posfácio Notas bibliográficas Sobre o autor Sobre a Estação Brasil
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Jorge Caldeira HISTÓRIA DA RIQUEZA NO BRASIL CINCO SÉCULOS DE PESSOAS COSTUMES E GOVERNOS HISTÓRIA DA RIQUEZA NO BRASIL Jorge Caldeira Copyright 2017 por Mameluco Edições e Produções Culturais Ltda Todos os direitos reservados Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sob quaisquer meios existentes sem autorização por escrito dos editores Todos os esforços foram feitos para creditar devidamente todos os detentores dos direitos das imagens que ilustram este livro Eventuais omissões de crédito e copyright não foram intencionais e serão devidamente solucionadas nas próximas edições bastando que seus proprietários entrem em contato com os editores EDIÇÃO Pascoal Soto COPIDESQUE Claudio Marcondes REVISÃO Ana Kronemberger e Luis Américo Costa CAPA E PROJETO GRÁFICO Victor Burton DIAGRAMAÇÃO Adriana Moreno e Anderson Junqueira IMAGENS DE MIOLO p 182 Reprodução Revista Illustrada p 300 Fundação Casa de Rui Barbosa Arquivo p 522 Jean Manzon Paris 1915 São Paulo 1990 Hugo Borghi c 1950 impressão sobre papel pratagelatina 169 x 21 cm doação Pirelli 1995 Inv MASP01940 Coleção Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand Foto cortesia MASP Jean Manzon Cepar Consultoria e Participações LTDA p 523 Alice Brill Acervo Instituto Moreira Salles ADAPTAÇÃO PARA EBOOK Marcelo Morais CIPBRASIL CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS RJ C151h Caldeira Jorge História da riqueza no Brasil recurso eletrônico Jorge Caldeira 1 ed Rio de Janeiro Estação Brasil 2017 recurso digital Formato ePub Requisitos do sistema Adobe Digital Editions Modo de acesso World Wide Web ISBN 9788556080264 recurso eletrônico 1 Brasil Usos e costumes 2 Brasil Civilização 3 Antropologia 4 Livros eletrônicos I Título 17 44435 CDD 981 CDU 9481 Todos os direitos reservados no Brasil por GMT Editores Ltda Rua Voluntários da Pátria 45 Gr 1404 Botafogo 22270000 Rio de Janeiro RJ Tel 21 25384100 Fax 21 22869244 Email atendimentosextantecombr wwwsextantecombr APRESENTAÇÃO UM CLÁSSICO O ADJETIVO FOI CRIADO NO SÉCULO XVI SIGNIFICANDO O QUE FAZ autoridade o que deve ser imitado que serve como modelo Pois o livro que o leitor tem nas mãos é um clássico Mais um pois Jorge Caldeira já nos ofereceu outros Mauá empresário do Império História do Brasil com empreendedores e A nação mercantilista ensaios sobre o Brasil se tornaram há muito leitura obrigatória para quem quer conhecer nossa história Caldeira é sociólogo doutor em Ciências Políticas mestre em Sociologia e bacharel em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo além de renomado jornalista e editor de veículos importantes como a Folha de SPaulo revistas IstoÉ e Bravo Pesquisador apaixonado criou a Mameluco Produções responsável pelo mais importante acervo jamais reunido sobre José Bonifácio entre outras realizações A tantos atributos somase outro ele é um dos mais prolíficos e consistentes historiadores brasileiros Seus textos não são apenas sinônimos de autoridade mas também de prazer de descobrir Pois para Caldeira não se trata só de escrever ou descrever mas de emprestar a escuta aos sons ao mesmo tempo próximos e confusos que escapam dos arquivos oferecendo ao leitor interpretações absolutamente pioneiras capazes de ajudálo a enxergar o Brasil por outras lentes Sua visão da História convida a uma abordagem singular tanto nos métodos de trabalho quanto na delimitação dos campos a serem investigados Ele trata também de fugir de cansadas explicações gerais para aprofundar a pesquisa e revelar num tesouro de dados e documentos o que ela traz de original Como ele mesmo diz introduzir um entendimento novo do passado permite entender de um modo novo também os problemas atuais Acho que conhecer História não é só um problema da academia é um problema de todo cidadão História da riqueza no Brasil é ao mesmo tempo tão monumental quanto síntese Há algumas definitivas como as do trio Gilberto FreyreSérgio Buarque de HolandaCaio Prado A diferença São mais de quinhentos anos relidos e explicados em nova chave Pois para realizar a sua Caldeira serviuse de disciplinas vizinhas a antropologia e a econometria enriquecendo interpretações que já vinha consolidando em obras anteriores A antropologia lhe permitiu se aproximar do passado iluminando objetos como a família a mestiçagem atitudes econômicas as alianças de poder revelando sua surpreendente permanência ao longo de cinco séculos Quanto à econometria essa forneceu medidas e estatísticas mal e pouco conhecidas de grande parte dos historiadores para apreender fatos que só mediante essa abordagem são capturáveis Neste livro Caldeira faz emergir mais uma vez elementos originais e impressionantes Ele demonstra por exemplo como o governo central do Império mantém a escravidão e freia o crescimento jogando o país no atraso enquanto o Ocidente revoluciona o papel do governo e o desenvolvimento capitalista Ou como durante a I República a descentralização federal liberou o setor privado e em uma década e meia o Brasil passou de uma das economias mais estagnadas à que mais crescia no mundo O sucesso pasme leitor se deu por causa da diminuição da capacidade do Estado de funcionar como elemento capaz de isolar as relações entre o Brasil e o mundo Dessa forma empreendedores puderam se multiplicar nas brechas do sistema Não se trata de ideologia Governos explica o autor por vezes podem funcionar como muros que vedam a comunicação positiva entre o mercado interno e a situação internacional mas em outros momentos podem empregar as mesmas armas para proteger o mercado interno contra maus momentos internacionais como aconteceu entre 1930 e a década de 1970 quando as barreiras ajudaram no crescimento da economia Mudada a realidade mundial no entanto voltaram a ser muros contra o progresso do tempo como na forma imperial quando reforçados fosse pelo regime militar conservador fosse pelo governo petista de esquerda impedindo em ambos os casos que o país colhesse os benefícios das oportunidades internacionais da globalização além de gerar recessões Com informações inéditas Caldeira ilumina zonas de sombra E são elas que lhe permitem fazer o que ele faz melhor tecer sua trama e permitir que vejamos novos atores novas paisagens novos fatos Circular com Jorge Caldeira pelos caminhos da História é passear numa floresta que acreditávamos conhecer Tudo está lá as árvores o céu as alamedas E contudo a caminhada é decididamente especial singular Os lugares ou fatos da cronologia são familiares mas sua fisionomia é outra Num panorama analítico virtuoso e objetivo Caldeira explica outra sim outra História A que ainda não conhecemos Animado por generosa pesquisa e brilhante interpretação História da riqueza no Brasil é mais um livro de Jorge Caldeira que já nasce clássico Mary del Priore PREFÁCIO 1 História da Riqueza Em muitos sentidos este é um livro de história bastante tradicional A narrativa segue a cronologia de maneira linear indo do passado ao presente e tem como foco um território determinado Procura ser o mais clara possível sem recorrer a tabelas ou tecnicismos Mantém as divisões qualitativas conhecidas para agrupar os eventos que neste território se passam eou se superpõem ocupação primeva colônia monarquia república Trata de um assunto central a acumulação de bens Para esclarecer esse assunto vai apresentando sucessivamente medidas dessa acumulação números indicativos do tamanho da riqueza reunida a cada etapa dessa história A sucessão das séries de números permite avaliações do desempenho no tempo e dessas avaliações resultam contrastes entre momentos de crescimento e outros de estagnação ou queda Ao mesmo tempo os números locais são comparados a outros Até o final do período colonial com aqueles relativos à economia metropolitana daí em diante com o desempenho de economias ocidentais e para o período mais recente da história com os dados da economia global Dessas comparações resulta outra espécie de avaliação aquela que se manifesta como progresso ou atraso entre a economia local e do modo possível dentro das limitações o mundo Quase todos esses números derivam de trabalhos recentes e de uma mudança no modo de fazer pesquisa em história econômica A partir da década de 1970 a disciplina foi revolucionada por uma combinação de processamento digital uso de bancos de dados e análise estatística o cerne da econometria que permitiu o reconhecimento de nexos significativos num universo de dados que para quase todos os historiadores tradicionais eram dispersos demais ou de impossível compilação e análise Apenas um exemplo bons censos foram realizados no século XVIII com a coleta de dados razoavelmente uniformes mas esses dados estavam em manuscritos dispersos por centenas de arquivos locais No passado um historiador dedicado conseguiria consultar alguns desses arquivos e extrair umas poucas relações coerentes entre os dados consultados Com a informática a incorporação de dados desse tipo em bancos propiciou uma transformação radical nos métodos de análise O aumento exponencial da capacidade de agrupamento e interpretação estatística somado a técnicas de tratamento permitiu a muitos historiadores econômicos irem reunindo conjuntos inovadores alguns dos quais são apresentados aqui Tais conjuntos de dados como se poderá ver trazem resultados muito distintos daqueles consolidados no modelo metodológico anterior O contraste entre as revelações estatísticas e o padrão histórico clássico estabelecido até meio século atrás é muitas vezes chocante Um caso muito evidente é o das relações entre a riqueza da colônia e a da metrópole O estudo da documentação tradicional apontava consistentemente a subordinação política e administrativa como geradora de um resultado econômico pobreza na colônia e transferência de riqueza para o Reino Todas as interpretações eram solidamente ancoradas nessa inferência As diferenças ficavam para a avaliação de tendências mas o cenário da inferioridade colonial era um só Os números que os econometristas foram encontrando e que são apresentados no correr da narrativa sobre o período apontam na direção oposta à documentação tradicional Atualmente é consenso que a economia colonial era no final do século XVIII muito maior que aquela da metrópole Esse é o primeiro caso mas não o único na narrativa no qual os indicativos numéricos vindos de centenas de estudos das mais diferentes fontes levam a uma mudança radical de postura não se trata mais de dar uma nova resposta a um problema estabelecido na tradição mas antes de explicar um problema diferente daquele que vinha sendo colocado pelos estudiosos As implicações nesses casos são tremendas Para ficar no caso da colônia a inversão nas medidas derruba também toda uma série de noções consideradas unânimes Em termos de riqueza a mais ampla delas é aquela da economia de subsistência que define tanto as economias nativas quanto a atividade no mercado interno como incapazes de gerar excedentes permitir acumulação gerar riqueza Essa noção é indistintamente empregada por todas as correntes de historiadores que tentavam explicar o cenário comum da colônia pobre o espectro de uso ia sem divergências dos conservadores mais empedernidos até os marxistas mais radicais A unanimidade fazia sentido pois todos estavam tentando explicar um mercado interno pouco dinâmico e uma acumulação concentrada apenas na face exportadora da economia Para isso a ideia de que tanto a economia dos nativos como a do mercado interno não tinham qualquer possibilidade de gerar riqueza apenas a de garantir a subsistência era mais do que conveniente Por isso sempre aceitaram essa noção pouco mais que uma tautologia sobre a fraqueza acumulativa interna Evidentemente esse tipo de noção perde totalmente a razão de ser quando se trata de explicar uma economia colonial que cresce mais que a metropolitana pois o novo quadro somente pode ser explicado pelo crescimento do mercado interno da área colonial em ritmo mais rápido que aquele do comércio com a metrópole e o mundo Assim a primeira consequência de se entender os números descobertos estabelecidos é a de abandonar por completo as interpretações baseadas no conhecimento clássico Não por divergências pontuais ou ideológicas mas apenas porque os números mostram um cenário completamente diferente Novos instrumentos novas descobertas novos problemas novas possibilidades a serem exploradas e também novas divergências futuras O esforço é concentrado na busca de explicações alternativas para esse novo quadro de problemas e estas muitas vezes surgem de outras disciplinas que não a história No caso da noção de economia de subsistência por exemplo mudanças radicais de entendimento aconteceram a partir do momento em que os antropólogos também passaram a empregar técnicas quantitativas para avaliar o trabalho e a produtividade nas economias dos povos nativos Embora sejam economias sem moeda fato que levou os estudiosos tradicionais a supor uma economia incapaz de acumular riqueza descobriuse que são economias perfeitamente capazes de produzir excedentes e trocálos com outras formações além de terem mecanismos próprios para a administração dos bens acumulados da riqueza que produzem Em grau ainda mais acentuado a mesma capacidade de acumular bens muito ao contrário do que sugeria a restrita circulação do dinheiro foi sendo constatada em toda a economia do sertão Esse novo conhecimento fez ruir de vez os precários fundamentos empíricos da noção de economia de subsistência Permitiu comprovar que tanto a produção dos nativos quanto a dos sertanejos eram capazes de gerar riqueza em ritmo crescente ou de outro modo permitiu que se começasse a entender de que maneira o mercado interno tinha uma dinâmica de crescimento mais forte que a do setor exportador ou a da economia metropolitana Ao longo da leitura o leitor poderá aquilatar o tamanho das diferenças em relação ao padrão anterior de análise também para outros períodos históricos 2 Pessoas costumes e governos A necessidade de se adotar outro modo de análise quando se trata de explicar um novo problema não se limita à economia Tanto quanto a narrativa acompanha os variados resultados na produção da riqueza evidenciados nos novos cenários são também acompanhados os processos sociais da formação dessa riqueza com especial ênfase no papel das pessoas dos costumes e dos governos e o plural aqui é tudo O cenário tradicional de análise permitia mais do que a unanimidade em torno de noções como a de economia de subsistência Dava como certo que o foco principal da ação destinada a organizar a sociedade para produzir riqueza estava no centro fosse exportador ou metropolitano A civilização vinha de fora para dentro da autoridade real para os súditos A quase negação do processo interno de acumulação de riqueza levava a retratar como indistintas muitas outras esferas da vida social na noção de sertão selvagem ficavam englobados nativos caboclos e até mesmo autoridades interioranas Para se entender a nova espécie de realidade que os números mostram é preciso ir na direção contrária começar nas pessoas passar pelos costumes as esferas de governo e ver como nas relações entre todas elas se criaram as instituições que permitiram um desenvolvimento econômico centrado no mercado interno Tal perspectiva serve para mostrar melhor não apenas a realidade da colônia mas a quase totalidade do período analisado Um simples exemplo um símile ajuda a mostrar do que se trata com mais facilidade do que a linguagem técnica da ciência política Você gira a chave na partida o carro pega e a vida segue em frente Vida costumeira Noutro dia você tenta ligar e zás nada o carro encrenca Num átimo a programação cotidiana desaba em vez de seguir para o trabalho é preciso cancelar tudo Cadê o mecânico O redirecionamento de energia provoca uma tensão imediata Entre as reações mais sensatas estão as de fazer o possível para reduzir o estresse e trazer a vida de volta ao leito normal Por exemplo achar uma boa oficina e entregar o carro aos cuidados de quem conhece Embora não seja a vida de sempre ainda guarda um quê de normalidade pois é provável que o mecânico solucione o problema Mas também pode acontecer de você chegar à oficina e sem querer avistar o mecânico ao lado do carro batendo boca com um engenheiro um técnico com uniforme da fábrica Aí você se dá conta de que o caso é realmente sério Entrelaçaramse três níveis nessa cena O cotidiano aquele do automático da rotina sem problemas O da oficina aquele dos problemas solúveis também por meios rotineiros E por fim o das situações excepcionais cuja solução exige algum tipo de especialista Embora o carro que conduz a narrativa deste livro seja o do desenvolvimento econômico não se trata de um livro de economia O que se busca é contar a história ao longo do tempo das relações dessa esfera econômica com os governos Por que o plural De novo o exemplo O primeiro nível descrito na cena aquele que é hoje o do cotidiano das pessoas do carro que funciona pode também ser comparado com um nível de governo que no livro será designado como o governo do costume ou consuetudinário É também uma forma de governo com profundo enraizamento no espaço e no tempo embora seja usualmente ignorada quando se faz história de Brasil e para se entender a razão da escolha desse nível de governo é preciso explicar algo sobre as aspas Em termos de enraizamento espacial os governos montados unicamente sobre os costumes comuns e consensos entre pessoas isto é sem leis escritas nem áreas delimitadas de autoridade política ou seja sem oficinas nem técnicos eram os únicos existentes num vasto território Embora esse território fosse chamado Brasil desde a chegada de europeus demorou para que outras formas de governo estendessem sua autoridade sobre esses espaços e pessoas Ao longo dos séculos houve um domínio extenso de outras formas de governo ainda neste ano de 2017 algo como 11 do território da atual nação são governados quase exclusivamente na forma consuetudinária Mas a mesma forma vale para os muitos condutores de carro no espaço onde imperam outras formas de governo O costume é a forma de governo efetiva durante quase todo o tempo aquela que determina a existência da imensa maioria dos cidadãos brasileiros A rigor vivendo de acordo com o costume com a sociedade se governando muito por si mesma as novas gerações são criadas as leis e os regulamentos cumpridos os impostos pagos o trabalho realizado e a riqueza econômica acumulada Quase o tempo todo os cidadãos usam o carro do governo por conta própria sem quase nunca aparecer numa oficina estatal ou ter contato com seus agentes E nesse ambiente constroem riqueza Mesmo quando se entra na esfera formal dos governos quando se recorre a suas oficinas nem tudo é unanimidade sobretudo quando se trata de história Desde muito cedo houve diferentes tipos de oficina Em 1532 foi instalada a primeira vila mas com um território circunscrito de governo em 1534 implantaramse oficinas mais abrangentes que atuavam sobre conjuntos de vilas as chamadas capitanias hereditárias Em 1549 criouse uma oficina central o governogeral Desde então sem exceções essa estrutura com três níveis hoje chamados de municipal estadual e federal conforma a esfera dos governos de molde ocidental ainda que nem sempre de forma coesa A coordenação mínima entre essas três esferas demandou bastante tempo e gerou formas de acomodação entre os governos trazidos dalémmar e os governos de costume preexistentes O livro não tem como objeto a análise propriamente política Mas considera os costumes e governos formais em suas possíveis relações significativas com a acumulação de riqueza o carro desta narrativa vale repetir Tanto quanto possível o tratamento dessas instâncias segue o padrão da apresentação de números locais para medir a evolução e da comparação com situações externas para medir atraso ou adiantamento Mas como nesse caso tais indicativos são muito mais esparsos é impossível evitar um descompasso nas apresentações Por fim existe a esfera da teoria da ação dos engenheiros No geral ela ganha relevo nos momentos de grande dificuldade o carro não pega o mecânico não descobre as causas É a hora de apelar para os detentores de maior conhecimento como consertar a oficina mudando as normas Como recolocar a vida no eixo alterandose o próprio carro ou o conjunto das normas A resposta a essas perguntas cabe a teóricos Este porém não é um livro teórico Não há qualquer intenção de propor ideais de governos ditar normas produzir manuais de instrução vender veículos ou avaliar motoristas O principal objetivo aqui é o de juntar num todo que faça sentido uma série de novos conhecimentos sobre os números da riqueza de tal forma que se possa entender também o papel das instituições de governo A necessidade nesse ponto é semelhante àquela da revisão da noção de economia de subsistência Os estudos das relações entre governos e desenvolvimento no Brasil no quadro tradicional consideravam relevantes para a acumulação apenas as atividades governamentais do centro e aquelas que influíam sobre as exportações Nada disso serve muito quando se trata de explicar quais instituições permitiram um desenvolvimento que agora se sabe acontecer a partir justamente da área desprezada anteriormente 3 Clássicos e escrita Quatro décadas atrás na época da minha formação universitária bastava a leitura das obras tidas como clássicos para se vislumbrar um quadro histórico geral comum no âmbito do qual cabia apenas o esforço de interpretação Isso ajudou as pessoas de minha geração a mergulharem no processo de especialização acadêmica que então começava o consenso em relação ao todo servia de pressuposto comum a partir do qual todas as áreas especializadas podiam aprofundar a pesquisa Mas a própria especialização foi fazendo das suas como se viu posteriormente nos casos da econometria e da antropologia citados antes Assim foi se criando um contraste com o quadro geral antes considerado unânime com um impacto especial na área da história A boa regra nessa disciplina exige o tratamento de conjuntos documentais e sua interpretação No caso do Brasil contudo a busca desse ideal leva a um universo restrito No Brasil colonial e imperial as escolas foram escassas Tão raras que até a virada do século XX o baixo índice de alfabetização determinava um comportamento peculiar de quem passava por elas como a condição excepcional de alfabetizado permitia que o indivíduo se considerasse um ser de elevado estatuto social esses poucos alfabetizados costumavam reforçar ao máximo as diferenças entre o falar e o escrever como sinal de sua distinção Por isso escreviam e se comunicavam segundo normas complicadas de ortografia sintaxe e estilo Ironizavam a incapacidade dos analfabetos de entenderem a própria língua na qual se comunicavam Tornavam difíceis as condições para a disseminação da escrita nas escolas existentes perpetuando essa situação Deixaram também um problema que por muito tempo se mostrou insolúvel Uma vez que eram os únicos a produzir documentos escritos os historiadores tiveram de trabalhar apenas com esse universo restrito e artificial de manifestações sobretudo nos períodos iniciais do uso da escrita no território Os novos conjuntos de dados romperam uma limitação estrutural inerente à documentação escrita Tanto as descobertas da antropologia como as da econometria permitiram a formulação de modelos que apontam na mesma direção No primeiro caso graças à compilação das normas dos governos consuetudinários dos povos sem escrita tornouse possível a reavaliação dos seus sistemas produtivos No segundo tratando de maneira indistinta os dados relativos a alfabetizados e analfabetos possibilitaram uma nova perspectiva dos mercados e da acumulação de riqueza Devido a ambas inovações no campo da pesquisa um universo antes descartado e tido como marginal na formação da riqueza e no modo de governo de maneira muito ampla o chamado sertão termo que aparece já na carta de Caminha em 1500 pôde ser analisado de outra maneira diversa da que presidiu a produção de documentos coevos e as análises dos clássicos no século passado Vem dessa diferença a opção por contar uma história da relação entre os governos e o desenvolvimento que não se baseia no modelo tradicional da disciplina mas antes nas descobertas vindas de fora Para tanto foi preciso recorrer a uma visada transdisciplinar o que leva a um último ponto relevante Minha especialização técnica foi constituída formalmente num mestrado em Sociologia e num doutorado em Ciência Política Ao completála segui a norma da produção acadêmica que implica a especialização a delimitação progressiva de um campo pelo emprego de termos técnicos a constante referência à bibliografia e por fim a avaliação pelos pares Tenho apreço por tudo isso Mas tive de colocar de lado tudo isso ao redigir este livro que é basicamente uma tentativa de juntar materiais vindos de disciplinas diversas num todo que faça sentido para todos os leitores e não apenas para os especialistas num conjunto capaz de integrar os resultados obtidos por meio de novas formas de conhecimento Não há aqui nenhum desejo de mudar a história Tratase pelo contrário de uma modesta síntese daquilo que já existe não havendo portanto inovações em termos de explicações antropológicas demonstrações estatísticas interpretações históricas teorias políticas ou sociológicas Ao escrever sempre tive em mente o exemplo de um personagem inesquecível de Monteiro Lobato o Visconde de Sabugosa erudito no estilo anterior ao do modernismo sempre de casaca e cartola empregando citações doutas rigoroso defensor das normas cultas e detrator da ignorância ao redor Enquanto a vida corria solta lá fora o visconde se enfurnava na biblioteca do Sítio do PicaPau Amarelo Ali ia se enchendo de letras até embolorar começava a falar de modo incompreensível a fazer citações sem nexo Apenas Tia Nastácia sábia e analfabeta resolvia o problema do teórico pendurava o sabugo para secar ao sol as letrinhas excessivas iam caindo com o bolor e ele voltava a falar e se comportar como gente Para sem ofender minha formação contar essa história que a especialização não permite contar tanto quanto possível sem palavras em excesso e sem jargão espero ter perdido letras inúteis suficientes e ter me restringido ao que interessa A história aqui apresentada procura mostrar apenas com as referências técnicas mais essenciais como ao longo dos anos foi se dando o complexo balé entre governados e governantes na busca do bem comum a riqueza maior 15001808 Alianças colônia e o mundo do Antigo Regime Uma sociedade radicalmente nova instituições mescladas e governos locais eleitos sustentam uma economia dinâmica em contraste com um governo central que só retira recursos e um Ocidente que cresce lentamente BRASILIEN SIM VEL HOMINVM in Peru habiens CAPÍTULO 1 Costumes e problemas de escrita A DESPEITO DE TODAS AS DIFICULDADES ESTATÍSTICAS DEMÓGRAFOS HISTÓRICOS estimam que o território das chamadas Terras Baixas a porção a leste dos Andes no continente sulamericano teria em 1500 uma população entre 1 milhão e 85 milhões de pessoas Linguistas especializados em história identificaram mais de 170 línguas faladas por esses povos e distribuídas em quatro grandes troncos linguísticos tupiguarani jê caribe e aruaque Essa imensa variedade linguística leva a algumas discussões sobre os primórdios da ocupação humana na região De acordo com indícios recentes os primeiros grupos ali se instaram há 30 mil anos ampliando assim a estimativa anterior de pouco mais de 10 mil anos depois de terem eventualmente percorrido duas rotas uma por terra desde a América do Norte e a outra pelo oceano Pacífico As características comuns a tantos grupos são poucas quase todos viviam em aldeias autônomas Sempre que o grupo atingia certo porte havia divisão com parte dos moradores se mudando e formando um novo grupo Desse modo o governo era exercido apenas na área de domínio de cada aldeia Bastante variado era o nível de desenvolvimento tecnológico num extremo pequenos grupos de coletores migrantes que desconheciam a agricultura no outro os chamados cacicados da Amazônia com dezenas de milhares de indivíduos no século XVI para comparação a população de Madri era de 30 mil pessoas que viviam em aglomerações extensas e cultivavam terras irrigadas Como nenhum desses grupos conhecia a metalurgia as ferramentas de trabalho e os utensílios domésticos eram feitos de pedra e madeira Por outro lado o conhecimento sobre as espécies naturais era muito avançado Enquanto os médicos europeus manipulavam algo como uma centena e meia de espécies vegetais no século XVI algumas populações trabalhavam com cerca de 3 mil espécies e três quartos de todas as drogas medicinais de origem vegetal empregadas atualmente no mundo derivam desse conhecimento nativo Nenhum dos grupos conhecia a escrita o que está longe de significar a inexistência de leis Assim como dominavam a fala e a linguagem todos os grupos viviam segundo regras de comportamento precisas embora não escritas Para eles as leis se mostravam nos costumes nos comportamentos prescritos e seguidos por todos Como dizia Rousseau o costume é a maior de todas as leis pois se grava nos corações A imensa maioria dos costumes não era apenas local como o espaço de governo de cada aldeia Havia um alto nível de generalidade mais notável no caso do macrogrupo TupiGuarani Apesar da variedade geográfica e linguística os TupiGuarani exibiam um nível comum de conhecimentos domínio tecnológico e costumes Alguns povos desse grupo alcançaram um patamar de tecnologia relativamente elevado em relação aos demais Além do conhecimento das espécies naturais domesticaram cultivares importantes como milho mandioca tabaco e algodão espécies desconhecidas até então no Ocidente Tinham sistemas agrícolas de boa produtividade em apenas três ou quatro horas diárias de trabalho os moradores das aldeias produziam não apenas o necessário para sobreviver mas o suficiente para manterem estoques de segurança alimentar Numa época em que a fome era um flagelo na Europa os Tupi Guarani se constituíam em exceção de relativa fartura Essa constatação de antropólogos levou a um consenso assim enunciado por Pierre Clastres estudioso da cultura Guarani Estamos portanto bem longe da miserabilidade que envolve a ideia de economia de subsistência Não só o homem das sociedades primitivas não está de forma alguma sujeito a esta existência animal que seria a busca permanente para assegurar a sobrevivência como é a preço de um tempo de atividade econômica curto que ele alcança esse resultado Isso significa que as sociedades primitivas dispõem se assim o desejarem de todo o necessário para aumentar a produção de bens materiais1 A noção de economia de subsistência e a consequente suposição de uma vida econômica restrita aos mínimos vitais foi empregada irrestritamente no século XX por economistas e historiadores de todas as tendências para descrever a produção dos povos das Terras Baixas Mas o cenário muda radicalmente com a constatação de que os TupiGuarani eram capazes de produzir muito além dos níveis vitais No que se refere a desenvolvimento isso obriga a pensar nos nativos como produtores de excedentes como produtores de riqueza a tomálos como base para a história dessa riqueza A possibilidade de uma economia na qual se consegue a produção de excedentes leva a um novo tipo de consideração O patamar no qual se produzem excedentes econômicos regulares para acumular ou trocar implica uma transformação importante nas organizações sociais Quando isso ocorre um grupo se destaca dos demais e assume o controle do estoque de excedentes Criamse assim dois grupos sociais um de produtores e outro de não produtores Nesse momento é que se forma o governo como unidade destacada do restante da sociedade Especializada a função de governante surgem pessoas encarregadas da gestão do Tesouro nome dado ao estoque destacado do consumo normal e reservado para acumulação que passam a levar uma vida diversa das pessoas comuns Apesar de produzir excedentes os TupiGuarani adotaram uma solução peculiar para conciliar a abundância material e a igualdade social Justificavam a solução com argumentos coerentes O sentido maior da preservação tornava inteligíveis outros pontos da teoria do valor Tupinambá Todo trabalho estava relacionado à preservação Sendo assim não fazia sentido trabalhar mais quando isso não representasse mais preservação2 Com isso todo o esforço econômico se voltava para a eficiência máxima da distribuição a igualdade social em vez de ampliar a produção acumulada numa sociedade dividida A produção começava na família Na cultura TupiGuarani família significava algo bastante diverso do que se entendia pelo termo no Ocidente No aspecto produtivo a família TupiGuarani se organizava em termos de uma separação radical de papéis sexuais Os homens cuidavam da derrubada das matas da abertura de roças e da caça as mulheres encarregavamse da roça e do preparo dos alimentos como apenas elas cozinhavam controlavam a distribuição inclusive da caça Tal produção circulava em unidades familiares de acordo com regras também baseadas nos papéis de homem e mulher Para os TupiGuarani há apenas um genitor o pai a mãe é considerada apenas um veículo de geração da vida Essa noção fundava um mundo de diferenças em relação às noções ocidentais Por exemplo os filhos de um irmão do pai são considerados por este como irmãos de seus filhos Sendo assim um casamento entre pessoas nessa situação é considerado incestuoso e punido com severidade Já os filhos de uma irmã desse mesmo pai nem sequer são tidos como parentes e não há nenhum impedimento para o casamento de uma de suas filhas Na cultura ocidental por outro lado são todos indistintamente primos A reunião de famílias numa oca obedece a uma regra costumeira igualmente forte Na hora de casar um homem deve procurar mulher em outra oca ou na via contrária a mulher deve receber um noivo vindo de fora Com tal regra toda estratégia de formação de uma família ganha cor própria Os filhos homens vivem em seus lares de origem apenas durante a infância e o início da puberdade Ajudam o grupo claro mas não constituem o arrimo no longo prazo uma vez que um dia vão partir Para renovar e melhorar as condições de vida portanto toda a estratégia das famílias se organiza na busca de marido para as filhas pois ele é que vai ficar morando na casa Assim as mulheres têm um papel fundamental mas oposto ao da responsabilidade pela geração da vida Uma oca típica reúne de forma permanente apenas a linhagem feminina avó materna mãe irmãs filhas Os maridos vêm de fora e os filhos são mandados para fora E todos são educados para obedecer tal costume Com isso as mulheres aprendem a casar com um homem vindo de fora capaz de enriquecer a vida do grupo de mulheres permanentes e homens passageiros Não é algo fácil pois casamento significa um ato de união consensual e temporária que pode ser desfeita a qualquer momento com a partida do homem Havia duas exceções fundamentais a essa organização cotidiana os momentos de guerra e os momentos de vivência religiosa A guerra era uma constante devido ao fato de os campos serem cultivados de maneira provisória derrubavase a mata queimavamse as árvores caídas e plantavase no terreno Em poucos anos porém diminuía a fertilidade do solo e o grupo saía em busca de outro trecho de mata nativa Com milhares de grupos em movimento os entrechoques eram inevitáveis Ser atacado ou atacar era uma certeza Por isso os homens treinavam constantemente para se manterem em forma E a guerra exigia preparo meticuloso não apenas no que se refere a armamentos e técnicas Era preciso guardar um excedente alimentar para o grupo pelo tempo que durassem os conflitos o que obrigava a um planejamento e também isso implicava mudança na forma de governo Sempre que surgia no horizonte a possibilidade de guerra um dos membros do grupo mudava de papel Em tempos de paz o chefe cuidava apenas de conversar com todos a fim de manter a unidade do grupo e o modo de vida da tribo Nos momentos de perigo ele comandava de outra forma mandava e era obedecido Nessa nova função ele ficava encarregado de controlar os excedentes do grupo regulando sua acumulação e distribuição conforme as necessidades Determinava colheitas chefiava treinamentos militares impunha táticas Também buscava reforços segundo os costumes do macrogrupo Uma das formas mais eficazes de reforço era firmar uma aliança militar com um grupo próximo em geral da mesma origem étnica a fim de compartilhar tanto os riscos como os despojos em caso de vitória Essa aliança era selada por um ritual reservado apenas para os chefes que recebiam uma mulher na maioria das vezes uma das filhas do chefe aliado em matrimônio Relações familiares e políticas se mesclavam para aumentar a concentração de poder Era uma dupla exceção Num primeiro plano a mulher que ia viver no grupo do chefe fazia o percurso contrário da regra normal de casamento O chefe por sua vez ficava com duas mulheres ou mais se repetisse o processo com outros grupos aliados A poligamia dos chefes era aceita com naturalidade por todos como parte das leis costumeiras e tinha consequências econômicas O chefe com muitas mulheres precisava trabalhar bem mais pois se tornava responsável pela caça e a abertura de roças para todas elas e seus filhos As mulheres por sua vez tinham de trabalhar proporcionalmente menos ao cuidar de um único marido e dividir os cuidados de distribuição entre todas Era a desigualdade aceita Passado o momento da guerra a situação de poligamia continuava assim como as alianças entre os grupos que se uniram para combater Mas recuperada a paz os guerreiros não mais deviam obediência ao chefe que se tornava igual a todos os demais exceto pelo fato de ter várias mulheres Sua autoridade voltava a se basear na capacidade de se apresentar para além da fama de guerreiro feroz ou trabalhador capaz de alimentar muitas mulheres e filhos como mantenedor da amizade cívica entre os moradores Em ocasiões de grande sucesso na guerra ou de fartura nas colheitas outra forma de acesso desigual aos estoques se apresentava A vida religiosa cotidiana dos Tupi Guarani se moldava num contato bastante direto com os deuses alguns homens com vocação eram treinados tanto para viajar pelo mundo divino como para relatar essas viagens a todos da aldeia no momento mesmo em que estavam ocorrendo em geral à noite os pajés iam cantando em versos aquilo que encontravam no mundo dos deuses e espíritos Todos ficavam nas redes entreouvindo os cantos No dia seguinte as palavras dos deuses eram comentadas com respeito pelos mais velhos glosadas não sem ironia pelos mais jovens viravam motivo de brincadeira entre as crianças antes assustadas Assim reconstruídos em palavras os deuses reviviam no cotidiano sem a intermediação de grupos especializados pois os pajés que cantavam à noite trabalhavam como outro qualquer na maior parte dos dias Mas também desempenhavam papel importante na destinação do excedente econômico Quando havia folga de excedentes os pajés organizavam grandes festas rituais que mobilizavam o grupo todo Dependendo dos estoques e da importância do ritual havia convites para que grupos aliados viessem comer e participar Em geral os rituais da guerra e da religião eram separados mas havia um caso no qual coincidiam a morte ritual de prisioneiros de guerra valorosos e a ingestão antropofágica de seus corpos cozidos tanto para que a coragem se transmitisse aos vencedores como para que fosse incorporada a força dos espíritos que guiavam o sacrificado Para esse ritual não se economizavam excedentes nem convites a aliados Terminada a festa consumidos os estoques distribuídos os excedentes econômicos que suplantassem os estoques alimentares dissolviase a autoridade do pajé sobre o Tesouro os convidados iam embora e a vida retornava ao normal Com esse brevíssimo resumo notase que os TupiGuarani mantinham um tal equilíbrio entre produção econômica alianças diplomáticas chefia política na guerra e destinação ritual dos excedentes que não os obrigava a criar uma função especializada de governo com a permanente divisão dos membros da sociedade entre governantes e governados Mesmo assim havia governo as instituições indicadas pelo costume funcionavam com regularidade e desfrutavam do respeito de todos Era um modo tão eficiente de governo e regulagem da vida que mal foi notado pela imensa maioria dos europeus que entraram em contato com os TupiGuarani Ficou famosa a frase de uma testemunha que não enxergou religião por falta de prédios que servissem de templo nem civilidade pela inexistência de códigos escritos para punir a inobservância dos costumes tampouco de uma classe separada para governar Sem fé sem lei sem rei escreveu glosando o não uso dos fonemas F L e R na língua geral Tupi Guarani o nhengatu Tratase de uma observação contundente reveladora de um problema secular para contar a história econômica dos governos nativos no atual território do Brasil Para que europeus pudessem conhecer com algum rigor e propriedade os costumes que governam ainda hoje os TupiGuarani é necessário bem mais que o domínio da escrita e umas poucas horas de contato Apenas no século XX começamos a entender melhor tais costumes E isso só foi possível porque uma descrição cuidadosa deles exige treinamento numa disciplina técnica a antropologia Assim os sistemas de produção econômica e de governo dos indígenas foram estudados por importantes intelectuais antropólogos do porte de Darcy Ribeiro Roberto da Matta e Eduardo Viveiros de Castro fizeram grandes descobertas sobre os Tupi desde a metade do século passado Já no caso dos Guarani os trabalhos de Bartolomeu Melià e Pierre Clastres complementam essas descobertas Além disso outros indícios permitem aos cientistas contar a história de povos sem escrita É o caso por exemplo de fósseis analisados por paleontólogos dos estudos de etnobiologia das teses de linguística comparada das análises de formas decorativas em artefatos e pinturas corporais feitas por historiadores da arte A rigor esse trabalho recente está em andamento ou em outras palavras ainda estamos delineando um retrato razoável por meio da escrita dos costumes que funcionam como leis no coração dos TupiGuarani Mas a literatura técnica já produzida é útil para avaliarmos o que está registrado na documentação histórica nos relatos produzidos desde o contato inicial dos europeus com os indígenas O governo consuetudinário que se revela dessa maneira não é bem o que foi descrito no passado nos documentos a que durante séculos os historiadores recorreram para fazer seu trabalho e contar a história do Brasil E o que se nota hoje é que essa documentação está fortemente enviesada pelas crenças dos escritores revelando até mais de seus preconceitos do que efetivamente dos costumes que procuravam descrever Mesmo quando tais autores viveram muito tempo em contato com essas sociedades e tinham grande capacidade de observação era o caso por exemplo de José de Anchieta ou em escala muito menor de convívio do calvinista Jean de Léry questões como a crença religiosa do observador marcavam as afirmações sobre os observados As mudanças trazidas pela escrita de antropólogos produziram um retrato tão mais fiel dos costumes do governo e da economia TupiGuarani que nem vale muito a pena repassar o senso comum remanescente desses séculos ou pior daquilo que se ensinou e se ensina até hoje sobre os nativos brasileiros em escolas secundárias e em cursos universitários de história O sumaríssimo resumo dos costumes permitido pelas novas técnicas leva a outro retrato nos primeiros séculos do milênio passado a combinação de organização em pequenos núcleos com relações de aliança domínio da tecnologia agrícola formação de excedentes e administração temporária em guerras e rituais permitiu que os grupos TupiGuarani dominassem um território cada vez maior no interior do continente A maior parte das terras férteis estava sob seu controle Cada unidade se governava a si mesma pelo costume Todas as unidades expandiam o costume comum fazendo pressão sobre mais de uma centena e meia de povos com outros costumes muito diversos daqueles dos TupiGuarani Podiam produzir e acumular riquezas com facilidade caso fosse necessário Nesse momento de sua evolução receberam inesperados visitantes CAPÍTULO 2 Governos com genros europeus A PARTIR DE 1500 OS HABITANTES DO LITORAL ATLÂNTICO DA AM ÉRICA DO SUL contemplaram uma cena que se repetiria com frequência cada vez maior grandes barcos fundeavam em baías se reabasteciam de água e mantimentos e em troca das cargas que levavam deixavam objetos e também pessoas Nos registros históricos constam vários motivos para o desembarque desses indivíduos Havia os marujos que cansados das viagens e dos riscos atiravamse por conta própria na busca de uma nova vida em meio à paisagem deslumbrante que incluía as mulheres vestidas apenas com coberturas púbicas e pinturas corporais Comandantes ordenavam o desembarque de tripulantes os chamados lançados que ficavam em terra para aprender os costumes dos moradores e relatar seus conhecimentos para um eventual próximo comboio E também passaram a ser comuns as arribadas de náufragos O destino dos que deram em terra foi tão variado quanto os motivos de desembarque Muitos terminaram mortos Mas os sobreviventes cuja história acabou sendo registrada tiveram quase sempre o mesmo destino eles travaram relações com os grupos TupiGuarani Não se tratava de acidente Um dos primeiros a escrever sobre essas relações foi Ulrich Schmidl alemão que fazia parte de uma leva de 300 espanhóis que subiram o rio da Prata a partir de 1535 Durante dois anos foram topando com habitantes nativos lutando por comida escorraçando e sendo escorraçados Não conseguiram estabelecer nenhuma outra forma de contato além da guerra com qualquer grupo exceto quando afinal encontraram os Guarani Após um breve combate estabeleceuse uma trégua e em seguida os 300 europeus receberam 300 mulheres nativas em casamento Não porque eram bonitos mas porque os Guarani firmaram com eles uma aliança pelas regras consuetudinárias tradicionais ou seja por meio da oferta matrimonial O determinante era a cultura Guarani os forasteiros não haviam mantido relações com mulheres de outros povos indígenas simplesmente porque a aliança por casamento não fazia parte do costume deles Essa peculiaridade cultural determinou a sobrevivência dos que vieram dar no litoral atlântico com uma pequena variante como a maior parte da costa era dominada pelos Tupi os despejados de navios no litoral acabaram conhecendo várias possibilidades de convivência com esse grupo Os mais belicosos e corajosos foram mortos como guerreiros e tiveram seus corpos devidamente ingeridos em banquetes rituais muitas vezes em festas que reuniam vários grupos Outros se salvaram pelo medo O alemão Hans Staden foi tratado como guerreiro valoroso e preparado para o sacrifício Porém quando chorou na hora em que ia ser morto a cerimônia foi interrompida um covarde sem honra transmitiria a covardia aos que ingerissem sua carne Por essa atitude desprezível Staden foi transformado em escravo Numa sociedade que não funcionava segundo o princípio da acumulação de bens os escravos não tinham valor como mercadoria Eram apenas seres humanos sem o valor dos guerreiros portanto destinados a uma existência corriqueira no grupo Se eram capazes de produzir alimentos e ajudar nos trabalhos recebiam uma mulher com quem tinham filhos e viviam no grupo tal como os velhos que não mais iam à guerra Mas não participavam dos grandes momentos rituais de ingestão de coragem guerreira muito menos das guerras reservadas para os homens valorosos A regularidade da passagem dos navios consolidouse a partir de uma fórmula que combinava a capacidade de produzir excedentes econômicos dos Tupi com a busca desses excedentes pelos navegadores em torno de um elemento crucial os utensílios de ferro Como desconheciam a metalurgia os Tupi apreciaram muito os machados de ferro europeus com os quais derrubavam árvores em um décimo do tempo do que o faziam com ferramentas de pedra Já os europeus descobriram que podiam obter elevados lucros com vários objetos entre os quais logo se destacaram as toras de paubrasil de onde se extraía uma tintura vermelha para tecidos que logo teve grande demanda no mercado europeu Não demorou para que se organizasse um esquema de trocas Franceses espanhóis e portugueses dispersos pelo litoral acabaram se firmando como intermediários concentrando a recepção e o armazenamento dos utensílios de ferro trazidos de portos europeus e que depois eram usados na troca com o paubrasil Isso criou uma mudança na estrutura da economia local com a introdução de uma produção regular de excedentes para a troca e o comércio de produtos vindos de fora até então muito limitado passou a fazer parte das vidas e dos planos cotidianos dos grupos Tupi que passaram a consumir produtos de ferro importados Todos os eventos descritos até aqui e todas as adaptações posteriores se passaram sem a participação efetiva de qualquer governo europeu Apenas e exclusivamente os governos Tupi viabilizaram esse fluxo comercial fazendo adaptações em seus modos de produzir mas mantendo seus governos consuetudinários aos quais os europeus por sua vez tiveram de se conformar Não chegou a ser exatamente um sofrimento A cultura TupiGuarani previa a absorção de forasteiros segundo um costume bem definido o qual era apenas uma dentre várias opções de relacionamento como também o sacrifício ritual ou a escravização dos covardes A aceitação de um estrangeiro se fazia como já se viu por um ato muito simples o casamento de aliança com uma filha de chefe E esse ato num grupo em que pelo costume os homens vinham de fora e as mulheres eram educadas para receber em casa os homens de fora era bem mais simples de ser arranjado quando envolvia indivíduos de plagas remotas O grupo que aceitava o estrangeiro o fazia com o sentido costumeiro de firmar uma aliança com todo o povo do noivo uma ideia à qual os negócios deram nova substância Para merecer uma filha de chefe o noivo deveria ser capaz de trazer progressos para todo o grupo algo que os objetos de ferro ajudavam muito a materializar Não demorou para que os detentores da maravilha fossem capazes também de obter uma segunda mulher o que os alçava a um plano mais elevado no modo de governar TupiGuarani A poligamia era em geral reservada àqueles capazes de produzir muito lutar com valor e fazer novas alianças de casamento em suma restringiase aos chefes Quando surgiram europeus com acesso a excedentes de ferro e isso era poder muitos chefes vislumbraram a oportunidade de se aliarem aos controladores desses excedentes recorrendo ao método a que estavam acostumados ou seja oferecendolhes as filhas em casamento ou caso isso já tivesse acontecido arranjando uma segunda mulher para o genro Com isso asseguravam a prioridade nos benefícios eventualmente trazidos por conterrâneos do novo genro O papel de genro do chefe foi aquele no qual acabaram se enquadrando todos os estrangeiros bemsucedidos nos negócios Em cada porto onde se deu um arranjo desse tipo um ou alguns poucos europeus apoiados nessas alianças foram capazes de organizar um fluxo comercial no qual os elementos básicos num primeiro momento foram de um lado os utensílios de ferro e de outro o paubrasil Para eles os ganhos eram evidentes como o ferro custava bem menos do que o paubrasil era possível ter um bom lucro na transação Mas seria também um bom negócio para os membros de uma sociedade na qual não tinha sentido acumular bens Para os nativos os utensílios de ferro valiam muito pelo que poupavam de trabalho e pelo poder que conferiam A tarefa mais dura que cabia aos homens era a de abrir as roças cortando árvores com machados de pedra A empreitada levava dias com os instrumentos tradicionais em vez de horas com um machado de ferro Mesmo que os Tupi não tivessem interesse econômico em sempre aumentar mais a produção a troca de ferramenta já valeria pelo tempo de trabalho poupado que poderia ser dedicado a mais bem viver Mas havia também uma razão estratégica fundamental a ressaltar a importância dos machados de ferro A abertura de uma nova roça exigia que um grupo grande de homens fortes deixasse a aldeia e ficasse fora por todos os dias em que durasse o trabalho E como todos os grupos em mudança cumpriam a tarefa na mesma época do ano esse era um fator muito considerado pelos chefes na hora de fazer a guerra Para um grupo sem machados de ferro a ausência do grupo empenhado em abrir uma roça longe durava muito tempo e criava uma oportunidade para atacar a aldeia desprotegida por aqueles que faziam o mesmo trabalho em menos tempo Portanto o chefe que contava com um genro fornecedor de implementos de ferro desfrutava de todas essas vantagens e não apenas em favor do grupo isolado que comandava A partir de certa escala as possibilidades produtivas de um único povo ou da natureza em sua área de domínio poderiam ser menores do que a demanda Nesse caso um chefe poderia aproveitar os utensílios de ferro para ampliar a produção em outros locais realizando alianças matrimoniais com chefes de outros grupos da mesma etnia Tudo isso era necessário para satisfazer a demanda como um único navio podia transportar até 5 mil toras de paubrasil a extração da madeira tinha de ser estendida por uma área considerável Mais ainda o trabalho de corte e transporte era contínuo entre as visitas dos navios de modo a deixar o carregamento pronto para facilitar e apressar o seu embarque Os intermediários europeus logo se tornaram mais do que simples sobreviventes casados ao modo Tupi Muitos receberam cargas de ferro suficientes para que as ofertas corressem o interior do continente Grupos cada vez mais distantes foram sendo mobilizados pelas ofertas metalúrgicas e pelos pedidos de madeira Também começou a surgir um sistema de logística com muita gente envolvida na dura tarefa de carregar as toras nas costas até o litoral Nas áreas afetadas as mudanças também se refletiram no próprio papel de chefe Antes nos tempos de paz o controle do chefe sobre os excedentes produtivos e os demais membros do grupo era bastante diluído resumindose na prática ao que conseguia por meio do convencimento Já o comando dessa produção de excedentes para a troca constituía uma oportunidade única de manter o tempo todo o poder que antes se gozava apenas em épocas de conflitos A mudança também se refletiu no equilíbrio com os demais grupos Se os Tupi da costa já desfrutavam de vantagens tecnológicas e estratégicas antes da chegada dos europeus quando tiveram maior acesso aos utensílios de ferro eles conseguiram aumentar a sua força guerreira possibilitandolhes o controle de praticamente todos os territórios que quisessem O aumento da escala produtiva e dos conflitos teve outras consequências Os cativos de guerra antes incorporados ao grupo agora passaram a ser empregados nos trabalhos produtivos e muitos começaram a ser vendidos como mercadoria pelos genros que serviam de intermediários Já na segunda década do século XVI esses negócios se tornaram comuns em todo o litoral e em vários portos surgiram entrepostos permanentes comandados pelos genros de chefes Assim passaram a ter um papel que antes não existia na sociedade Tupi o de pessoas ricas capazes de acumular a partir de trocas comerciais Alguns nomes de portugueses nessa situação e nesse período foram registrados por historiadores Vasco Fernandes Lucena em Pernambuco Diogo Álvares Correia o Caramuru na Bahia João Ramalho e Antônio Rodrigues em São Vicente Mas o fato é que talvez fossem minoria entre os europeus O número de franceses vivendo nas mesmas condições talvez fosse ainda maior uma vez que os negócios entre os genros franceses acomodados em grupos Tupi e os navegantes de seu país estendiamse por uma vastíssima área que ia desde a foz do rio Amazonas até a baía de Guanabara Havia também espanhóis em meio a esses grupos sobretudo no sul o Bacharel de Cananeia e Enrique Montes este em Santa Catarina foram os mais notórios E não havia exclusividade para os conterrâneos nas compras e vendas Alguns deles quando ganharam dinheiro suficiente viajaram para a Europa levando as suas diversas mulheres Tupi Foi o que fez Diogo Álvares Correia que seguiu para a França num navio comandado por Jacques Cartier o futuro descobridor do Canadá O grupo desembarcou em Rouen onde as mulheres foram batizadas em 1528 Uma delas Guaimbimpará filha do chefe Taparica teve como madrinha Catherine des Granges nobre e mulher de Cartier e adotou o nome desta ficando mais tarde conhecida como Catarina Paraguaçu O mesmo entrecruzamento de espaços e culturas acontecia no interior do continente Em 1526 o português Aleixo Garcia que vivia em aldeamentos na região de Cananeia embrenhouse pelo interior com um grande número de guerreiros seus parentes sempre avançando por regiões dominadas por Tupi ou Guarani Ali encontravam guias para levar a expedição adiante As trocas tinham dois sentidos Muitos grupos iam conhecendo o ferro já os europeus constatavam que as histórias ouvidas no litoral não eram apenas lendas ou mitos Depois do contato com os incas e a prata descobriram que o Império do Rei Branco existia e melhor ainda que havia prata em fartura Garcia recolheu amostras bem reais do metal e elas chegaram intactas ao ponto de partida da expedição ainda que ele tenha morrido no caminho Os europeus de Cananeia receberam as amostras Como essa espécie de notícia acompanhada de provas era sensacional moradores da região bem como suas mulheres foram levados para a Europa onde mostraram pessoalmente as peças para os reis de Portugal e da Espanha Os franceses souberam de tudo Diante da comprovação da existência de minerais preciosos os soberanos dos três reinos chegaram à mesma conclusão valia a pena gastar dinheiro próprio para fazer algo que até então vinha sendo totalmente desnecessário qual seja montar postos avançados oficinas no exemplo inicial de governo no território Até então durante três décadas as providências governativas para adaptar a produção crescente de mercadorias e manter a vida civilizada haviam sido tomadas apenas pelos Tupi Como eram capazes de produzir segundo seus costumes mais excedentes que o padrão anterior exigido pelos europeus o crescimento da acumulação econômica não exigiu transformações de monta nesses costumes dentro deles com variantes palatáveis os genros foram ampliando as atividades e se adaptando ao modo de vida TupiGuarani CAPÍTULO 3 Governo português teoria escrita e Igreja SE O MAIS DIFÍCIL NA ANÁLISE HISTÓRICA DO PAPEL DOS GOVERNOS TUPIGUARANI é formular os costumes que os regem na forma escrita pela qual estamos acostumados a pensar a dificuldade para entender o governo português do século XVI é inversa destrinchar um resumo coerente das muitas escritas que o regiam Nesse caso vale a pena seguir o caminho inverso indo da teoria às leis Em termos de teoria o reino português não se distinguia de outras monarquias na Europa Desde a Antiguidade todas seguiam uma regra máxima que definia a lógica das leis e do exercício da autoridade a manutenção da desigualdade entre os seres humanos Quem formulou a regra foi Aristóteles que assim a definiu na Política Todos os homens que diferem entre si para pior no mesmo grau em que a alma difere do corpo e o ser humano difere de um animal são naturalmente escravos e para eles nada melhor do que estarem sujeitos à autoridade de um senhor1 Essa desigualdade radical definida como natural funcionava como guia para a ação de quem detinha o poder Com o cristianismo uma pequena alteração foi introduzida na fórmula O governante mais sábio era aquele que não interferia nas desigualdades introduzidas por Deus na natureza mas antes as mantinha tal como haviam sido criadas A manutenção do desigual se bem realizada equivalia a fazer justiça e o cumprimento desse objetivo nada tinha a ver com a fórmula atual de que todos são iguais perante a lei Ao contrário o ideal de justiça era dar a cada qual o seu direito ou seja tratar desigualmente cada um segundo sua qualidade Essa capacidade central era nomeada fuero juzgo no pensamento hispânico Faciendo derecho el rey debe haber nome de rey et faciendo torto pierde nome de rey na expressão de Francisco de Vitoria2 O direito e o torto no caso não resultam da ação própria do soberano mas antes do fato de suas ações se pautarem pelo respeito ao plano divino o qual funciona como a régua da vida terrena E régua que seria conhecida na Terra apenas pelo rei cujo poder teria portanto origem divina Com base nessa régua e atribuindo a justa parte a cada um o soberano mereceria a fama de justo Os reis de Portugal resolveram merecer seu nome fazendo algo que nem era obrigatório para quem conhecia as medidas da Justiça desde o século XV passaram a editar as leis que mantinham a justa medida que sustentava as desigualdades entre os homens num código conhecido como as Ordenações do Reino Em 1521 o rei D Manuel deu um passo adiante empregando sua versão as chamadas Ordenações Manuelinas como arma de difusão e propaganda num tempo de mudanças Aproveitou a recente invenção da tipografia para fazer cópias do conjunto de leis e distribuir essas cópias pelos incontáveis órgãos com poderes judiciários visando a uniformidade de aplicação que não tinha nada a ver com universalidade da lei ou igualdade Tratavase apenas da organização da desigualdade O código era organizado em cinco livros cada um deles subdividido em títulos O conjunto visava criar uma hierarquia algo que pode ser facilmente entendido a partir de um exemplo as determinações do modo pelo qual uma pessoa podia ser presa O Livro I tratava das formas mais altas de Justiça No caso das prisões o título 14 definia a esfera mais alta aquelas detenções que só o monarca podia mandar fazer através do meirinhomor o único que poderia prender pessoas de Estado quando por nós o rei lhe for mandado e assim grandes fidalgos ou tais que outras justiças não possam prender Já o Livro II que de maneira geral regulamentava as relações do poder régio mais alto com a nobreza e o clero definia caso a caso como funcionavam as prisões de nobres apenas o rei podia determinálas e eram feitas com discrição ou clérigos da alta hierarquia cada ordem tinha os próprios privilégios e algumas delas detinham plenos poderes para julgar o preso acima até mesmo da vontade real O Livro III codificava várias relações entre agentes do rei clero e nobreza com os estratos intermediários os cavaleiros e fidalgos O título 4 desse livro definia que desembargadores e altos funcionários podiam trazer para a Corte todos os processos em que estivessem envolvidos enquanto o título 6 dizia que esses funcionários só podiam ser citados ou presos com autorização direta do rei Os livros IV e V tratavam em geral das relações entre os fidalgos e os estratos mais baixos da sociedade os homens de negócios e o povo Mesmo os empresários podiam muito pouco judicialmente O título 52 determinava os poucos casos nos quais poderia haver prisão pelo não pagamento de dívidas e apenas quem não tinha nenhuma espécie de privilégio estava sujeito a ela O Livro IV definia também uma série de normas civis reservadas às pessoas sem privilégios herança partilhada entre os filhos as propriedades da Igreja e dos nobres não eram divididas compra e venda de bens inclusive a terra Já o Livro V trazia as normas de comportamento geral mas punições particulares O título 31 por exemplo trazia as punições para homens que se vestissem de mulher ou mulheres que se vestissem de homens com as respectivas penas pessoas sem nenhum grau de fidalguia deveriam ser açoitadas em público escudeiros e daí para cima teriam pena de dois anos de degredo Com esses exemplos é possível entender a própria finalidade da lei escrita em Portugal definir direitos diferentes de acordo com a posição social do indivíduo Por isso sobretudo a partir das Ordenações Manuelinas a busca de lugares apropriados para cada um ganhou um nome duradouro corporativismo O vocábulo indicava o emprego da metáfora do corpo como modelo ideal para o funcionamento de toda a sociedade Como definiram Barreto e Hespanha faz parte deste patrimônio doutrinal a ideia de que cada parte do corpo social como cada órgão humano tem sua própria função de modo que a cada parte deve ser concedida autonomia para o corpo funcionar3 Nessa metáfora o governo é concebido como sendo a cabeça da sociedade ao passo que as partes desta são os diversos órgãos a ela subordinados O corporativismo configurava uma versão atenuada da definição aristotélica na medida em que se calcava mais no princípio da diferença funcional entre órgãos do que naquele da desigualdade radical entre pessoas Essa nuance era importante pois deu origem a um instrumento eficaz de ação política depois da codificação escrita das leis o recurso de buscar o Judiciário para arrancar concessões no sentido do reconhecimento de pequenos privilégios pelo enquadramento na lei Esse fluxo inverteu até mesmo o privilégio maior do rei amparado na origem divina de suas medidas de justiça Uma vez que a doutrina corporativa do poder estabelecia como núcleo dos deveres do rei o respeito à Justiça este ficava obrigado a observar o direito quer enquanto conjunto de comandos dever de obediência à Lei quer enquanto instância geradora de direitos particulares dever de respeito aos direitos adquiridos 4 Como a expressão corporativismo o termo direitos adquiridos tem vida longa Na origem o significado da expressão vinha a ser exatamente o contrário da igualdade Marcava antes o privilégio particular que distinguia um indivíduo de outro o fato de só poder ser preso de determinado modo ser condenado a penas menores etc identificava uma função corporal na sociedade e funcionava como cimento para a ideia de que as diferenças eram a verdade política criada pela natureza sancionada pela Justiça e mantida pelo rei O uso do Judiciário como instância maior de defesa do corporativismo e do reconhecimento de direitos adquiridos levou esse poder a funcionar em Portugal como uma espécie de órgão emissor da moeda da diferença social algo que não acontecia nas versões mais castiças da filosofia aristotélica nas quais tal papel era reservado apenas a Deus e ao olho divino do rei Como resultado dessa descentralização os limites se alargaram O princípio da intangibilidade dos privilégios era uma peça central nas estratégias jurídicas de defesa do status quo político A tal ponto que mesmo Pascoal de Melo continua a afirmar que também os privilégios concedidos individualmente a alguém se chamam leis pois ninguém pode perturbar aquele cidadão na fruição de seu direito5 Todos os privilégios tidos como direito deixaram de ser apenas tradicionais para se transformarem em assunto de tribunal A derrogação de um direito adquirido fosse a propriedade de bens a posse de ofícios a detenção de um privilégio irrevogável o direito de não pagar impostos ilegalmente criados só era possível em sede judicial Dito isso já se vê como os tribunais como instâncias de salvaguarda da justiça e de defesa dos direitos de cada um ocupam na constituição jurídica do Antigo Regime uma função constitucional determinante 6 A codificação de leis e a judicialização dos conflitos inerentes ao reconhecimento de diferenças e direitos adquiridos não eram as únicas peculiaridades da formalização escrita do governo português da época A empresa dos descobrimentos e a administração das novas terras estavam ligadas a uma singular estrutura capaz de dar conta ao mesmo tempo de uma operação tecnológica de ponta e uma diplomacia religiosa a Ordem de Cristo Essa instituição tinha uma história reveladora Embora conquistada pelos cristãos na Primeira Cruzada em 1098 Jerusalém viuse de novo cercada pelos árabes em 1116 Foi nessa ocasião que os nobres franceses Hugo de Poiens e Geoffroi de SaintOmer juraram na igreja do Santo Sepulcro o templo dos cristãos na cidade viver em perpétua pobreza e defender os peregrinos que iam à Terra Santa Nascia assim a Ordem dos Cavaleiros Pobres de Cristo renomeada em 1119 como Ordem dos Cavaleiros do Templo quando a sede foi transferida para o Templo de Salomão e por isso ficou conhecida como a Ordem dos Templários Na época várias organizações católicas congregavam devotos sob regimento próprio A dos templários entretanto tinha um regimento particular seus membros eram mongesguerreiros que se empenhavam em combates militares As regras da ordem eram secretas e só conhecidas na totalidade pelo comandantechefe o grãomestre e pelo papa Desde o início os templários foram desobrigados de obedecer aos reis Podiam assim ter interesses próprios Ao entrar na ordem o novato só conhecia parte das regras e à medida que era promovido sempre em batalha tinha acesso a outros conhecimentos reservados aos graus hierárquicos superiores Ritos de iniciação marcavam as promoções Essa estrutura com graus de iniciação permitiu que os templários atuassem em frentes pouco comuns para uma ordem religiosa Enquanto as cruzadas empolgaram a Europa os templários receberam milhares de propriedades por doação ou herança o que gerou uma oportunidade administrativa e financeira Cada sede foi orientada a criar uma caixaforte para depósitos de ouro e outros objetos preciosos Elas aceitavam joias de viajantes entregando uma letra com o valor do depósito o viajante entregava a letra em qualquer sede e recebia o valor eram as primeiras letras de câmbio e o início de um banco de empréstimos com agências internacionais Os ritos de iniciação também permitiram que se especializassem em arquitetura e engenharia O mito central que envolvia as atividades era o de que os templários haviam descoberto a planta do Templo de Salomão que teria sido riscada por Deus e com isso os iniciados como pedreiros homens que dominavam régua esquadro e compasso seriam capazes de construir as melhores fortalezas e catedrais do mundo A necessidade de ligação constante entre o Oriente e a Europa levou a outra forma de iniciação cavaleiros que construíam navios e conheciam os segredos da navegação cuidavam da frota que interligava as duas regiões uma das instalações mais importantes eram os estaleiros de Lisboa E assim em muitas áreas Os templários precisavam o tempo todo de cavalos e acabaram desenvolvendo métodos de cruzamento e seleção de raças em seus estábulos Outro desenvolvimento veio com a obtenção e o processamento regular de informações Estabeleceuse um fluxo de informações sobre terras caminhos e riquezas que era ordenado a partir do centro Um dos textos dessa espécie que acabou circulando na ordem foi o das viagens de Marco Polo aliás sobrinho de um grãomestre ao Oriente Mas todos esses avanços tecnológicos estavam ligados a uma causa central Enquanto houve cruzadas os templários exibiram orgulhosamente o manto branco com a cruz quadrada vermelha Com a queda da Cidade Santa em 1244 e a expulsão das tropas cristãs da Palestina em 1291 a mística se dissipou As derrotas no Oriente Médio desencadearam uma onda de acusações segundo as quais os cavaleiros teriam feito acordos com os muçulmanos fugido de campos de batalha e traído os cristãos Aproveitando o clima em 13 de outubro de 1307 o rei francês Felipe o Belo invadiu de surpresa as sedes templárias em toda a França Só em Paris foram detidos 500 cavaleiros muitos dos quais acabaram degolados Todos os bens da ordem foram confiscados Esperavase uma fortuna mas como pouco foi efetivamente recolhido criouse a lenda de que tesouros teriam sido transferidos em segurança para outro país Para muitos esses país teria sido Portugal O rei D Dinis 12611325 decidiu de outro modo Em 1317 reiterando que os templários não haviam cometido crime em Portugal D Dinis transferiu o patrimônio deles para uma organização recémfundada a Ordem de Cristo Assim Portugal serviu de refúgio para perseguidos em toda a Europa De vários países chegavam fugitivos carregando o que podiam O castelo de Tomar virou a caixaforte dos segredos que a Inquisição não conseguiu arrancar Nas primeiras décadas de existência da Ordem de Cristo os extemplários mantiveram os estaleiros em Lisboa fizeram contratos de manutenção de navios e dedicaramse à tecnologia náutica aproveitando o conhecimento adquirido no transporte marítimo de peregrinos entre a Europa e o Levante Alimentaram planos para voltar à ação contornando a África por mar e aliandose a cristãos orientais expulsar os mouros do comércio de especiarias Convenceram alguém importante O infante D Henrique sagrouse cavaleiro em 1415 na batalha de Ceuta no atual Marrocos em que os portugueses expulsaram os muçulmanos da cidade No ano seguinte o príncipe foi nomeado comandante da Ordem de Cristo Solteiro e casto dividia o tempo entre o castelo de Tomar sede da ordem e a vila de Lagos no Algarve Em Tomar cuidava das finanças da diplomacia e da carreira dos pilotos iniciados nos segredos do empreendimento cruzado O castelo era um repositório de recursos e informações secretas Lagos era a base naval e uma corte aberta Desde Tomar D Henrique chefiou as negociações com o Vaticano Em 1418 conseguiu sagrar uma importante aliança uma bula papal deu aval para o projeto de navegação classificandoo como uma cruzada Em termos técnicos o reconhecimento desse estatuto na bula transferia à Ordem de Cristo o poder de organizar e administrar a Igreja nos territórios conquistados Da cobrança dos impostos eclesiásticos à criação de bispados ou paróquias tudo dependia do grãomestre da ordem Ao mesmo tempo o papa reconhecia o direito desta aos territórios conquistados aos infiéis e se comprometia a lutar pelo reconhecimento desses direitos entre outros reis católicos Daí em diante cada avanço para o sul e para o oeste será seguido da negociação de novos direitos Em um século os papas emitiram onze bulas privilegiando a Ordem de Cristo com monopólios de navegação na África posse de terras isenção de impostos eclesiásticos e autonomia para organizar a ação da Igreja nos locais descobertos Já em Lagos a vida era muito cosmopolita para o tempo Vinham viajantes de todo o mundo de desvairadas nações de gentes tão afastadas de nosso uso como diz Gomes Eanes de Zurara na Crônica da tomada da Guiné Entre outros o autor cita moradores das ilhas Canárias caravaneiros do Saara mercadores de Timbuctu hoje no Mali monges de Jerusalém navegadores venezianos alemães e dinamarqueses cartógrafos italianos e astrônomos judeus Até a metade do século XV todos os volumosos investimentos para transformar essa variedade de informações em conhecimentos capazes de permitir a navegação oceânica foram bancados pela Ordem de Cristo e os resultados mapas instrumentos de navegação relatos de viagens guardados em Tomar e mostrados apenas aos cavaleiros iniciados que agora comandavam navios e missões diplomáticas Enquanto o tesouro de dados marítimos esteve sob a sua guarda a estrutura secreta da ordem garantiu a exclusividade para os portugueses Em Tomar e em Lagos os navegadores progrediam na hierarquia apenas depois que a sua lealdade era comprovada se possível em batalha Só então tinham acesso aos relatórios reservados de pilotos que já haviam explorado regiões desconhecidas e a preciosidades como as tábuas de declinação magnética que permitiam calcular a diferença entre o polo norte verdadeiro e o polo norte magnético assinalado pelas bússolas E à medida que as conquistas avançavam no Atlântico eram feitos novos mapas de navegação astronômica que forneciam orientação pelas estrelas do hemisfério Sul a que também unicamente os iniciados tinham acesso Todavia com a consolidação do comércio na rota das Índias a partir da sua descoberta em 1498 a Coroa foi aos poucos absorvendo os poderes da ordem Já no reinado de D Manuel de 1495 a 1521 o rei de Portugal era também o comandante dela em caráter privado pois a instituição não se fundiu com o restante do governo As terras americanas estavam até então subordinadas apenas à Ordem de Cristo À frente dessa complexa estrutura legal e administrativa o rei D João III herdeiro de D Manuel se viu às voltas com maridos de mulheres Tupi e decidiu que espécie de governo iria instalar no Brasil CAPÍTULO 4 Vilas OS MORADORES DE CANANEIA QUE HERDARAM AS AMOSTRAS DE PRATA OBTIDAS por Aleixo Garcia foram levados para Sevilha na Espanha em 1530 com todas as suas mulheres com seus filhos e parentes O rei Carlos V então o homem mais poderoso da Europa dono das coroas de Castela Aragão Leão Navarra Catalunha Alemanha Áustria Borgonha Sicília Sardenha Nápoles e Milão ligou pouco para a poligamia que exibiam abertamente e muito para o metal Recebeu os recémchegados ouviulhes os relatos cobriuos de honrarias e tratou de modificar sua estratégia Enquanto Carlos V tomava providências espiões portugueses ficaram sabendo do encontro e avisaram o rei D João III em Lisboa Este ordenou a seu embaixador que fizesse o possível para convencer algum dos náufragos a lhes contar a mesma história O embaixador mostrouse convincente o bastante para que Gonçalo da Costa aceitasse rever seu Portugal natal Finda a conversa o monarca ofereceu mundos e fundos para que ele deixasse de lado as benesses espanholas e servisse a um novo senhor Porém como o acordo proposto não incluía a permissão para que vivesse com as duas mulheres Tupi e os filhos Gonçalo achou mais prudente fugir de fininho O embaixador repetiu o processo de aliciamento com Henrique Montes igualmente português Mais sensível ao dinheiro que aos casamentos abandonou as suas mulheres na Espanha e foi para Lisboa no início de novembro de 1530 Já no dia 15 foi nomeado cavaleiro da Casa Real um fidalgo de nobre estirpe e passou a ganhar 24 milréis por ano No mesmo ato foi nomeado provedor da armada de Martim Afonso de Sousa quase pronta para levantar âncoras o que ocorreu no dia 3 de dezembro de 1530 Ao longo de 30 anos a monarquia portuguesa vinha recebendo notícias bens e pessoas do Brasil Nada disso levara o rei a mover um dedo no sentido de instalar qualquer dispositivo de governo no território nem ao menos um modesto funcionário ou um casebre haviam sido instalados para competir com a autoridade governativa dos chefes TupiGuarani Martim Afonso de Sousa um amigo de infância do rei recebeu de D João III algo mais que o comando das naus Levava uma carta que o designava capitãomor de todo o Brasil Em outras palavras o texto delegava ao comandante uma série de poderes que só o rei poderia exercer Entre esses poderes o mais importante era o de tomar posse do território Martim Afonso de Sousa deveria percorrer todo o litoral desde a foz do Amazonas até a foz do Prata e fincar marcos de pedra nos mais diversos pontos como prova material do domínio português O comandante gastou um ano cumprindo essas ordens Era um serviço para o rei em disputa com outros soberanos europeus mas como marcos de pedra não significavam muita coisa para os moradores da terra nenhum deles deu muita atenção aos artefatos reais Em 1o de agosto de 1531 a armada chegou a Cananeia o ponto de partida da expedição pioneira de Aleixo Garcia Dali todos se lançaram à região da prata por dois caminhos um grupo de 70 homens sem experiência no convívio com os nativos foi enviado por terra aos domínios do Rei Branco Já os navios seguiram a rota determinada pelo rei descer pelo mar até a foz do rio da Prata e subir continente adentro por ele e pelo rio Paraná Os dois projetos fracassaram A tropa terrestre desapareceu sem notícias o navio de Martim Afonso naufragou em baixios os outros não conseguiram ir muito longe rio acima Juntando as sobras o capitão voltou no rumo norte e foi dar em dia exato num local que já fora batizado em português No dia 22 de janeiro de 1502 as naus de Gonçalo Coelho haviam aportado numa baía e como era dia de são Vicente padroeiro de Portugal deram o nome dele ao local Durante o longo intervalo de três décadas nenhuma autoridade havia aparecido por lá e assim o nome original caíra no esquecimento Mais práticos os frequentadores o conheciam pelo tipo de atividade ali praticada Porto dos Escravos Na falta de paubrasil abundante na região outra mercadoria embora menos rentável que a madeira de tintura mostrarase atraente o suficiente para ser trocada por utensílios de ferro Para estabelecer esse fluxo foi necessária apenas uma adaptação nos hábitos guerreiros locais Em vez de deixarem soltos os prisioneiros de guerra os europeus associados aos chefes passaram a se apossar deles leválos até o porto e promover as convenientes trocas Em tudo o mais procediam ao modo Tupi forneciam artefatos recebiam mulheres apoiavam os chefes no preparo das guerras que davam substância a seu poder de mando Os principais chefes da aliança local perfilaramse para receber o capitão que desembarcava Tibiriçá Caiubi e Piquerobi todos Tupi João Ramalho e Antônio Rodrigues náufragos que ali viviam por duas décadas e casados com inumeráveis mulheres das muitas tribos que se aliaram para formar a rede de negócios também estavam presentes Estimase que comandassem 20 mil homens que espalhavam utensílios de ferro e terror continente adentro Com isso Martim Afonso de Sousa sentiuse seguro o suficiente para aceitar um convite e visitar a taba de Tibiriçá que ficava num local conhecido como Piratininga onde mais tarde os jesuítas fundariam o colégio de São Paulo Subiu a serra do Mar conheceu o rio Anhembi mais tarde Tietê que os exércitos da aliança usavam para penetrar no interior Martim Afonso voltou para São Vicente Nesse cenário que combinava o augúrio do santo protetor com a rudeza dos moradores por um motivo até hoje desconhecido o comandante tomou uma medida diversa daquelas que vinha tomando antes Por mais de um ano andara de porto em porto conhecera diversas instalações de genros de chefes Tupi avaliara suas condições sem fazer mais que observações Diante da grande autoridade do grupo que o recebia com honras a cada dia chegavam ao local mais chefes e genros europeus convocados por eles decidiu que era hora de uma nova atitude Ofereceu uma possibilidade para alguns de seus homens desembarcar casar com uma mulher indicada por João Ramalho e passar a viver na terra Houve aceitação em número suficiente para o comandante desencadear um longo rol de providências escritas capazes de criar não apenas um governo regido por leis mas a substância de uma vida sob essa espécie de governo Mandou chamar o escrivão da armada e fez com que formalizasse por escrito os títulos de sesmarias Cada genro importante recebeu o seu título de modo que todos passaram a ostentar também a condição de proprietários da terra na qual morariam garantida por alguém que assinava em nome do próprio rei Até mesmo Henrique Montes recebeu uma sesmaria Depois Martim Afonso convocou o capelão para que batizasse as nativas Como os sacerdotes não podiam batizar fiéis de outras religiões a saída foi considerar as índias como inocentes ou seja como desprovidas de qualquer tipo de religião Desse modo depois de batizadas elas passaram a ser enquadradas na categoria de cristãsvelhas isto é de descendentes de cristãos pelos quatro costados e portanto aptas a receber títulos de nobreza O batismo permitiu que as nativas fossem casadas no ritual católico interpretado nos moldes de sua cultura como um ato que as vinculava a filhos de chefe com dignidade suficiente para que invertessem a regra usual e mudassem para a casa dos maridos E agora iriam viver nas terras cedidas também pelos nativos como parte da aliança aos casais Em seguida um juiz preparou a lista dos homens bons do local Na definição do tempo tais homens bons seriam cristãosvelhos netos de cristãos pelos quatro costados tal como suas mulheres proprietários de bens de raiz garantidos pelos recémconcedidos títulos de terras pessoas que não viviam do comércio com dinheiro na falta deste a atividade central do porto deixava de ser empecilho e pessoas que viviam de acordo com a lei da Igreja como a poligamia dos que estavam há tempos na terra também foi esquecida eles entraram na lista e se tornaram imediatamente aptos a exercer um direito importante Homens bons funcionavam como eleitores das autoridades que poderiam governar uma vila e um decreto de Martim Afonso de Sousa transformou São Vicente em vila Na realidade portuguesa o governo de uma vila por pessoas eleitas era o mais adequado para locais nos quais não existiam nobres clérigos ou fidalgos com direitos sobre terras e pessoas apenas pessoas do terceiro estado povo e aspirantes a fidalguia como os novos homens bons o que era o caso do Brasil Portanto os homens bons procederam segundo a lei elegendo aqueles que teriam o poder de governar em nome do rei fazendo cumprir as Ordenações do Reino E reunidos em uma câmara os homens bons escolheram aqueles que seriam vereadores e fariam as leis administradores e fariam cumprir as leis inclusive com o poder de prender os recalcitrantes e juízes e julgavam aqueles que transgrediam as leis Tudo foi registrado em ata inclusive as decisões dos três primeiros eleitos para governar Juntos se revezariam nas funções administrativas e judiciais Assim numa sequência de rituais textos padronizados nos formatos usuais atos preparatórios e sagrações instalouse a vila de São Vicente a primeira oficina do governo português no território brasileiro Pelo conjunto de atos registrados em documentos escritos formais os genros que antes controlavam o Porto dos Escravos se transformaram em fidalgos Não mudaram de roupa não abandonaram as mulheres e continuaram a viver exatamente como antes Mas nem tudo era como antes Martim Afonso de Sousa sabia empregar muito bem as fórmulas rituais Os antigos náufragos foram enobrecidos para garantir uma sólida aliança com os desembarcados Estes ficariam na terra como esteio de um projeto que incluía algo mais do que as trocas comandadas pelos genros europeus A vila garantia domínio suficiente para que Martim Afonso de Sousa iniciasse um investimento de longo prazo no local com a instalação de um engenho de açúcar Não se tratava apenas de aproveitar as oportunidades locais mas de criar oportunidades produtivas de longo prazo O nome popular do local já indicava que o fornecimento de trabalho cativo para o plantio e a colheita da cana não seria um problema A vila instalada serviu de garantia para que um dos grupos financeiros mais importantes da época os Fugger alemães se associasse ao flamengo Erasmo Schetz para financiar as compras de equipamentos e instalações Com tais projetos assentados Martim Afonso de Sousa partiu Por mais duas décadas a vila de São Vicente mantevese isolada e sem contatos com qualquer representante da autoridade real Tempo suficiente para que os rituais e as formalidades fossem esquecidos Tempo para que o Porto dos Escravos voltasse a ser o que eram todos os assentamentos com europeus no território ponto de negócios comandados por genros de chefes Mas não foi assim Aquela gente preservou um ritual As autoridades eleitas governaram distribuíram títulos mal escritos pelos raríssimos alfabetizados prenderam multaram e julgaram Passados os três anos dos mandatos regulares os vereadores convocaram eleições os eleitos tomaram posse aqueles que deixaram o governo voltaram para a condição de simples governados os novos governantes passaram a exercer a autoridade Eram quase todos analfabetos indivíduos de origem humilde nobilitados apenas no papel casados com índias ou filhas de índias Estas mulheres estavam mais que acostumadas com a autoridade dos governos do costume eleita e provisória competente na busca de consenso e com a vida em coletividades nas quais mandavam os homens ainda que a casa permanente se organizasse em torno da linhagem feminina Nesse grupo misto operouse o milagre da multiplicação das eleições e do governo cuja autoridade derivava da escolha dos governados Assim a instituição portuguesa da vila sobreviveu num ambiente inteiramente diverso daquele no qual havia sido criada Em Portugal a autoridade dos vereadores eleitos era apenas uma entre muitas e de pouca importância na hierarquia Os escolhidos só podiam decidir questões que não afetassem os poderes do rei dos nobres da Igreja e dos fidalgos ou seja quase nada No Brasil como não havia nenhuma dessas autoridades superiores os eleitos se tornaram os únicos governantes formais no território Dividiam a autoridade com seus aliados os chefes Tupi ao redor Mas o fato é que os genros desses chefes passaram a ser também homens bons e eventualmente ganhavam mandatos de vereador que cumpriam apenas até o final do prazo e assim se tornaram interessados na nova forma de governo Dessa maneira ocorreu uma sobreposição do governo regular mas sem escrita das aldeias e do governo baseado em fórmulas escritas legais sem contrastes invencíveis entre um e outro Antes que tal construção de grande plasticidade passasse pela prova do tempo no entanto mudaram as regras do jogo Ainda com partes da armada de Martim Afonso de Sousa no Brasil o rei D João III criou no território outra instância de governo Em carta a Martim Afonso de Sousa disse que tinha encontrado outro caminho Cancelou as franquias concedidas ao capitão e amigo de infância para governar todo o território em seu nome e resolveu fatiar o domínio em capitanias hereditárias Na carta o soberano não deixou de lembrar que reservara as melhores fatias para o comandante e para o irmão deste Pero Lopes de Sousa os quais receberam capitanias alternadas no litoral sul e além disso Pero Lopes tornouse capitão de Itamaracá em Pernambuco Os títulos começaram a ser distribuídos a partir de 1534 Em pouco mais de dois anos todo o território foi redistribuído Começava uma nova era na qual os pedaços de papel fundavam novos cálculos de governo que a prática do contato com a economia mista dos Tupi e dos genros trataria de transformar em destinos CAPÍTULO 5 Capitanias AS AMOSTRAS DE PRATA E AS HISTÓRIAS DE HENRIQUE MONTES LEVARAM O REI D João III a gastar dinheiro do Tesouro para financiar a viagem do amigo Martim Afonso de Sousa Mas os relatos do capitãomor listando fracassos e as mortes dos buscadores de metal o levaram a enfrentar uma dura realidade Os governos se mantêm graças ao que arrecadam dos governados e ao que conseguem emprestado D João III avançara sobre os recursos do reino para pagar a expedição e não podia contar com a sonhada prata para repor com lucro esse dispêndio Pior ainda gastara num período em que a agricultura portuguesa enfrentava problemas devido ao clima em que os franceses faziam provocações diplomáticas e em que as viagens para a Índia não estavam rendendo o previsto Tudo isso também significava aumento de despesas Fechando a conta e constatando o déficit os conselheiros do rei o chamaram para uma reunião em Évora no verão de 1532 Saiu dela convencido de que não valia a pena gastar muito dinheiro do Tesouro para instalar um governo no Brasil E foi convencido porque os conselheiros apresentaramlhe um plano de repassar a missão a particulares Nos moldes da época era uma fórmula clássica O rei concedia parte de seus poderes a empreendedores que realizavam por conta própria serviços governamentais em troca dos quais cobravam impostos dos beneficiários embolsando a diferença na forma de lucros Já havia sido empregada com êxito nas ilhas dos Açores e da Madeira de modo que era só adaptar a ideia para a nova terra O segredo estava no equilíbrio adequado entre o que o rei cedia ao interessado e o que reservava para si mesmo como autoridade A parte cedida ficava registrada numa carta de doação o domínio sobre uma porção de terra a capitania as regras de transmissão desse domínio para herdeiros por isso hereditárias os poderes de governo reservados ao donatário em relação ao controle da justiça e da vida civil exercidos como autoridade no lugar do rei Já a parte da autoridade partilhada era definida em outra carta o foral No princípio o termo designava uma concessão régia pela qual os moradores das vilas ficavam num território delimitado diretamente sob a autoridade do rei e fora da jurisdição de senhores feudais ou clérigos A instituição foi adaptada para o caso brasileiro com algumas variações Juntamente com a capitania o rei concedia ao donatário os poderes de criar vilas ou escravizar nativos para o cultivo da terra Além disso o donatário ficava isento de parte dos impostos a que estaria obrigado como o dízimo e a contribuição para a Ordem de Cristo assim como das taxas incidentes no comércio de paubrasil e pescados Todavia os demais impostos deveriam ser pagos ao rei de modo que a ideia central era assegurar uma renda para o Tesouro evitar despesas e ainda assim estabelecer no território alguma espécie de governo submetido a Lisboa Como tudo isso era dado de graça não faltaram interessados na doação das capitanias Porém com as cartas nas mãos esses interessados teriam de viabilizar o governo nos novos domínios o que implicava investir dinheiro na montagem da operação a fim de colher lucros Nas ilhas do Atlântico a fórmula dera certo com a instalação de engenhos de açúcar Estes eram construídos e geridos por operadores interessados em enriquecer Quando começava a produção e vinham os lucros os operadores pagavam impostos ao donatário que por sua vez repassava ao rei parte do dinheiro No Brasil surgiram interessados em 15 fatias e cada um deles experimentou fórmulas próprias para transformar os dois pedaços de papel em governo efetivo e dinheiro nos bolsos Começando do Norte o donatário de uma das duas capitanias intituladas Maranhão era João de Barros Tesoureiro da Casa da Índia não tinha dificuldades para obter recursos mas faltavalhe tempo para cuidar do assunto Arranjouse então com seu vizinho na segunda capitania do Maranhão Fernando Álvares de Andrade e seu sócio na capitania do Maranhão Aires da Cunha Os investimentos seriam feitos em conjunto começando pela ocupação da capitania do Maranhão O trio armou dez navios que levantaram âncora em 1535 A maior parte da frota se perdeu numa tempestade e alguns sobreviventes foram dar no Caribe Só um pequeno grupo desembarcou no Maranhão Como ali os aliados dos Tupi eram franceses foram recebidos a flecha e acabaram expulsos O prejuízo dizimou as fortunas dos donatários Apenas em 1554 reuniram dinheiro para tentar de novo dessa vez com dois navios E de novo foram expulsos pelos nativos aliados aos franceses A capitania do Ceará foi doada a Antônio Cardoso de Barros alto funcionário do Tesouro As notícias do fracasso maranhense e da existência de feitorias francesas em seu quinhão foram decisivas ao pesar os prós e os contras entre a proximidade segura de um tesouro real e os riscos para fazer o seu resolveu ficar com o que já punha no bolso e deixou o governo e os negócios cearenses em mãos dos Tupi e franceses No caso da capitania de Rio Grande ela foi dada em sociedade para João de Barros e Aires da Cunha justamente os dois que perderam muito investindo no Maranhão Por conta disso os sócios tiveram a mesma atitude do vizinho setentrional deixaram o governo e os negócios para os nativos e franceses Pero Lopes de Sousa o donatário de Itamaracá tinha uma relação bem diferente com seu território No comando de navios da frota do irmão Martim Afonso de Sousa ele atacara e tomara duas vezes a feitoria francesa ali existente Instalara gente de confiança na administração mas o diabo é que a clientela que vinha de navio era toda francesa de modo que ficou muito difícil criar um fluxo de comércio em outra direção O melhor que conseguiu foi reforçar a posição minoritária de náufragos portugueses que eram sócios dos investidores franceses contentandose com alguns trocados O vizinho ao sul era Duarte Coelho donatário da capitania de Pernambuco Ele decidiu vir pessoalmente trazendo a mulher Brites de Albuquerque o cunhado Jerônimo de Albuquerque e todos os técnicos que julgava necessários para instalar engenhos além de ter encontrado financiadores e fornecedores europeus para garantir a operação Ainda assim passou apertado pelo motivo de sempre nativos pouco interessados em abandonar as terras que controlavam ou em abrir roças para os outros pois sabiam o quanto isso era trabalhoso As disputas pela mão de obra de nativos aliados continuaram até serem resolvidas ao modo da terra Vasco Fernandes Lucena náufrago português com vasta experiência no trato com governos nativos convenceu Jerônimo de Albuquerque a se casar com Muira Ubi filha de um chefe Tabajara Selada a aliança o sogro mudou de lado e as coisas mudaram de rumo Enquanto Jerônimo ia tendo filho atrás de filho com sua mulher batizada de Maria do Espírito Santo Arcoverde e com outras filhas de chefe que garantiram a ampliação da aliança original tudo se resolvia O território governado pelos sogros dos franceses foi limitado apareceram escravos para trabalhar os campos foram cultivados os negócios progrediram e um governo português se firmou no território com duas instâncias distintas Além da capitania em 1541 foi instalada a vila de Olinda com a repetição de todas as formalidades de São Vicente títulos de sesmarias lista de homens bons aptos a votar eleição de vereadores alternância no poder A diferença era que havia entre eles produtores regulares plantadores de cana artesãos senhores de engenho e portanto uma volumosa produção de excedentes fora do controle dos nativos Mas a vila era apenas uma instância menor de governo Em Pernambuco passou a funcionar de maneira efetiva a autoridade do donatário em dois sentidos No das receitas implantou a cobrança de impostos inclusive com repasses ao rei e tais recursos financiavam serviços delegados ao donatário como o de atuar como instância mais alta que o Judiciário da vila e o de controlar a vida civil Dezoito anos depois da chegada em 1553 Duarte Coelho voltou à Europa levando os filhos para estudar e deixou a mulher Brites de Albuquerque que era alfabetizada coisa muito rara na época no exercício do cargo de capitoa e governadora como diziam os pernambucanos O marido morreu no ano seguinte de modo que Brites governou Pernambuco até sua morte em 1584 como casta viúva e em sociedade com o seu irmão casado com muitas mulheres Jerônimo teve um mínimo de três dúzias de filhos com muitas índias algumas escravas africanas e a mulher portuguesa que lhe enviou a rainha Catarina quando ele tinha 52 anos com ordens para desposála e deixar de viver na lei de Moisés com suas trezentas concubinas a parte do casamento foi cumprida e ele teve uma dúzia de filhos com a enviada mas não se desfez das concubinas Se tivesse prestado um mínimo de atenção nas alianças de casamento com nativas o vizinho ao sul dos Coelho Albuquerque Arcoverde talvez tivesse sido o mais bemsucedido de todos os donatários Francisco Pereira Coutinho desembarcou na baía de Todos os Santos em 1536 e foi bem recebido por Diogo Álvares Correia o Caramuru suas mulheres e os sogros indígenas Viu a igreja da Graça que os parentes índios haviam erguido para a mulher de Caramuru Guaibimpará agora rebatizada como Catarina Paraguaçu Conseguiu com facilidade terras e escravos para implantar engenhos Por dez anos reinou a prosperidade tanto dos engenhos e dos ganhos de Coutinho como dos negócios com os franceses que faziam a fortuna de Caramuru Por algum motivo contudo o donatário fez valer seu apelido de Rusticão obtido em batalhas pela Ásia e África e a situação degringolou Em 1545 os parentes nativos de Diogo e Catarina atacaram os engenhos e a pequena aglomeração urbana Coutinho ao contrário de Coelho não dividiu seus poderes com os moradores fundando uma vila expulsando os portugueses para Porto Seguro Tentando retomar a capitania Coutinho organizou uma expedição em 1547 O navio no qual vinham naufragou e todos foram dar na ilha de Taparica assim nomeada porque ali vivia o sogro de Caramuru Então comprovouse que o Rusticão era de fato um guerreiro valente foi morto ritualmente a golpes de borduna teve o corpo cozido e as partes devidamente deglutidas para infundir coragem em seus vencedores entre eles Caramuru A mesma relação inicial entre sucesso econômico e boas relações com os governos Tupi marcou a evolução da capitania de Ilhéus cujo donatário era Jorge Figueiredo Correia Ele organizou a expedição mas deixou o comando nas mãos de Francisco Romero e voltou para Portugal Este seguiu o roteiro de sucesso fez aliança com os índios instalou os engenhos foram nove organizou vilas quatro As coisas andaram tão bem que um simples proprietário local Lucas Giraldes acabou comprando a capitania dos descendentes do donatário original depois da morte deste em 1552 Mas tudo desandou quando os Aimoré se desentenderam com os novos ocupantes e passaram a empreender ataques seguidos desarticulando a produção e retomando o governo efetivo da maior parte do território Pero de Campos Tourinho o donatário de Porto Seguro desembarcou com 700 homens e muitas famílias O potencial da capitania era grande terras férteis e muito paubrasil além de um mar especialmente piscoso por causa dos corais de Abrolhos Os problemas eram os mesmos de outros donatários os franceses dominavam os negócios de paubrasil porque se haviam aliado por casamento aos Tupi locais Homem rude e conhecido pela propensão e profusão de blasfêmias o donatário foi se virando como pôde Aliouse aos nativos para mexer na estrutura francesa dos negócios de paubrasil Conseguiu espaço suficiente para criar vilas montar uma produção pesqueira de certo porte vendia peixe salgado para a Bahia abrir roças mas não conseguiu instalar nenhum engenho de grande porte Por fim acabou prejudicado por sua boca mesmo tendo fundado oito igrejas foi preso por blasfemar e obrigado a responder a processo em Lisboa Inocentado viuse proibido de voltar à capitania que teve de transferir para o filho Já Vasco Fernandes Coutinho o donatário da capitania do Espírito Santo era o menos abastado de todos Desembarcou com um pequeno grupo de 60 degredados e só os que sobreviveram aos primeiros embates com os nativos conseguiram se aliar a eles pelo casamento sobrevivendo de modo semelhante aos paulistas fornecendo objetos de ferro para seus parentes que governavam Dali para o sul começava uma região de forte associação entre franceses e nativos Por toda parte essa aliança se fez valer O donatário de São Tomé Pero de Góis foi expulso em 1536 Martim Afonso de Sousa e Pero Lopes de Sousa donatários respectivamente do primeiro quinhão de São Vicente no litoral do atual estado do Rio e de Santo Amaro parte no atual estado do Rio e parte no atual litoral norte de São Paulo não fizeram nada nesses domínios Mas a vila de São Vicente prosperou o suficiente para que a capitania de Martim Afonso fosse se firmando basicamente porque ali não havia conflito com os nativos uma vez que o controle do governo da vila estava nas mãos dos genros de chefes importantes e de seus parentes Um representante local do donatário colhia umas poucas receitas de impostos mas estas eram lucro já que ele mesmo não tinha gasto nada para instalar o governo Na mais meridional das capitanias a de Santana não aconteceu nada Para resumir sete dos quinze lotes permaneceram o tempo todo sob governo dos nativos e dos negócios franceses Em Itamaracá e Porto Seguro houve ocupação portuguesa mas os franceses continuaram negociando paubrasil Nas regiões de alianças entre nativos e genros portugueses os resultados foram variados Na Bahia e em Ilhéus os donatários começaram bem mas se perderam pois não souberam lidar com aqueles que os precederam No Espírito Santo mal e mal os recémchegados sobreviveram Do lado dos resultados políticos em todas as capitanias nas quais vingou a ocupação instalaramse vilas e funcionaram os governos eleitos em uma realidade de mestiçagem progressiva com os aliados nativos No campo dos resultados econômicos muitos investimentos se perderam e poucos impostos chegaram aos cofres do rei Apenas em duas capitanias a aliança entre chefes Tupi e genros portugueses permitiu certo progresso em conjunção com o governo do donatário Pernambuco sob o comando de Brites de Albuquerque foi de longe a tentativa mais bemsucedida Depois do acerto com os locais implantouse a produção de açúcar A riqueza crescente garantiu o fornecimento de utensílios de ferro para os nativos boa vida para o donatário ricos animados na vila de Olinda e impostos para o rei Em escala muito mais modesta o mesmo se deu em São Vicente Esse balanço foi realizado por D João III e dele resultou uma fórmula pessoal para outra tentativa de governo A maior parte do território era governada pelos habitantes nativos a seu modo tradicional e apenas com contatos esporádicos de alguns deles para as trocas por ferro que exigiam pequenas adaptações dos costumes No litoral esses governos consuetudinários tinham participação importante de aliados franceses na maior extensão e portugueses O governo propriamente português tinha autoridade sobre uma parcela ínfima do território aquela ocupada pelas vilas com a única exceção de São Vicente onde muitas das autoridades locais exerciam grande influência sobre os governos Tupi ao redor Apenas nesse espaço valia a autoridade dos donatários E só em Pernambuco consolidouse a projetada combinação de duas esferas de governo a das vilas e a do donatário Nessa realidade é que o rei vai instalar uma representação da Coroa um governo de natureza bem mais sofisticada que os existentes CAPÍTULO 6 Governogeral AO DECIDIR INSTALAR UMA NOVA ESFERA DE GOVERNO NO BRASIL O PRIMEIRO ATO de D João III foi o de comprar de volta a capitania da Bahia recuperando os seus plenos direitos em troca de uma compensação financeira à família do falecido donatário Francisco Pereira Coutinho Ao praticar esse ato deixou de praticar outros igualmente possíveis nos limites de seus muitos poderes de monarca Para começar não demarcou os domínios como sendo propriedade real como eram suas possessões metropolitanas Também não escolheu um nobre para lhe conceder poderes de mando no campo da justiça civil e criminal Preferiu instalar o governogeral como uma esfera adicional no âmbito da capitania cujo capitãomor por acaso era o rei Dessa forma enquadrou a administração de todo o Brasil como governo sobre terras nas quais não existiriam nobres nem clérigos com poderes especiais E isso numa época em que as possessões da Índia eram governadas por um vice rei um nobre dotado de muito mais poder Assim o governadorgeral do Brasil tinha também de governar uma capitania real com os mesmos poderes dos demais donatários criar vilas distribuir títulos de terras cobrar determinados impostos ter certas franquias judiciárias As terras cedidas eram todas negociáveis de modo que sobre elas não se estabelecia qualquer direito de transmissão para um herdeiro Uma vez que todas as demais instituições de governo seguiam esse modelo não se transferiu ao Brasil nenhum dos privilégios maiores da nobreza do alto clero ou até da fidalguia de maior qualidade Apenas como exemplo a terra cedida era mercadoria vendável algo que só foi disseminado no Ocidente no século XIX e o sistema de heranças obrigatório era o mesmo do estrato mais baixo da sociedade metropolitana do povo divisão igualitária de bens entre os herdeiros Esse desenho do governogeral estabeleceu um exemplo contundente Se o próprio rei cabeça espiritual do poder não empregava os poderes de conceder domínios de terra e jurisdição apartados para si mesmo por que haveria de fazer concessões similares para a nobreza Desse modo a ação direta do governo ficava nas mãos de agentes que circulavam em torno das ordens militares da pequena fidalguia e dos primeiros técnicos de governo a chamada nobreza togada a nobreza dos direitos adquiridos resultantes da mistura entre empreendimento e nobilitação menor Esse enquadramento não era corriqueiro nem mesmo para D João III Ao assumir o trono em 1521 os conflitos entre a nobreza togada e a nobreza hereditária estavam provocando uma ruptura importante Ao longo do século XV Portugal fizera um esforço tecnológico admirável com base em adesões conseguidas pela Ordem de Cristo cartógrafos judeus matemáticos árabes pilotos italianos financiadores de toda a Europa O objetivo central foi atingido a navegação oceânica permitiu ligar povos e países de todo o mundo Os navios levavam nos porões mercadorias que criavam novos fluxos de comércio gerando lucros e concentração de capital para seus proprietários em proporções capazes de mudar a vida econômica do Ocidente Lisboa foi o primeiro centro mundial a viver essas novas circunstâncias Porém assim que os lucros começaram a fluir o governo português passou a dividir aquilo que lhe custara muito a congregar A capacidade de absorver inovações esbarrou em limites quando se tratou de criar um ambiente de negócios capaz de dar conta das gigantescas possibilidades abertas pela navegação marítima Novas tecnologias e novos negócios se traduziam na multiplicação de pessoas de formação técnica e de empresários e em termos de governo em pressão para ampliar o âmbito de poder dessas pessoas A adaptação a essa mudança começou ainda antes do reinado de D João III mas não exatamente na direção favorável a tal expansão As expulsões de judeus primeiro da Espanha e depois de Portugal ocorreram na altura em que se abriam as rotas marítimas Os expulsos levaram seus capitais para as cidades da Flandres que logo se tornaram pontos efervescentes de comércio internacional Uma das primeiras medidas do novo monarca em sua condição de administrador da Igreja foi a de instalar a Inquisição em Portugal ajudando a expulsar não apenas as pessoas mas também os capitais e as tecnologias que dominavam para alegria da nobreza tradicional ameaçada e desespero dos empreendedores Em tal cenário a sobreposição do governogeral ao esquema das capitanias apontava no sentido contrário à tradição feudal E o passo seguinte do monarca levou as coisas ainda mais nessa direção Como primeiro governadorgeral ele escolheu Tomé de Sousa que recebeu poderes temporários ligados ao cumprimento de certos objetivos determinados pelo soberano Tudo isso era explicitado num Regimento entregue ao futuro governador Ou seja cabia a ele sobretudo executar ordens No terreno econômico o principal objetivo era o mesmo das doações de capitanias reunir gente e meios capazes de permitir a instalação de atividades produtivas geradoras de lucro no âmbito empresarial e impostos naquele do governo Tais objetivos econômicos não vinham a ser exatamente aqueles que caracterizavam as relações do monarca com os nobres em Portugal Nas instruções de ação política o ar de novidade era ainda maior Elas eram detalhadas passo a passo no Regimento a partir de uma constatação essencial Tanto que chegardes à dita baía de Todos os Santos tomareis posse da cerca que nela está que fez Francisco Pereira Coutinho a qual sou informado que está ora povoada de meus vassalos e que é favorecida de alguns gentios da terra e está de maneira que pacificamente e sem resistência podereis desembarcar e aposentarvos nela com a gente que convosco vai 1 A construção do governo teria um alicerce duplo o favor dos gentios da terra como eram chamados os índios e os vassalos existentes Em apenas uma frase o monarca reconhecia um poder de fato aquele dos nativos capaz de dar apoio ao governador com tais vassalos existentes D João III explicitava o que entendia por reconhecimento desse poder dos nativos O texto do Regimento citava os conflitos entre o primeiro donatário e os nativos que terminaram com as partes do corpo de Coutinho trinchadas e moqueadas para mostrar que mesmo sendo monarca de um Império poderoso sabia tirar lições dos erros e apontar novos caminhos com ordens bastante diretas Portanto vos mando que como chegardes a dita baía vos informeis de quais são os gentios que mantiveram a paz e os favoreçais de maneira que sendovos necessário sua ajuda a tenhais certa2 Assim com palavras o monarca aceitava aquilo que todos os sobreviventes no Brasil haviam aceitado a aliança com os governantes Tupi E mesmo sem palavras diretas dispunhase a consagrar a sábia decisão dos sobreviventes No lugar de simplesmente entregar territórios por cartas sem ligar a mínima para vassalos existentes preferiu entenderse com o maior deles Alguns historiadores dizem que antes de entregar o Regimento a Tomé de Sousa D João III escreveu uma carta a Diogo Álvares Correia o Caramuru Sem nenhum cargo formal de governo ele sustentava as alianças essenciais com os Tupi a partir de seus casamentos Pelas alturas de 1549 era já um homem rico e algumas de suas filhas especialmente aquelas tidas com Guaibimpará agora Catarina Paraguaçu estavam casadas com homens ricos Tudo isso se constituía em poder que foi reconhecido pelo monarca tenha ou não escrito a carta Assim que desembarcou o novo governador fez em nome do rei aliança com a família lusoTupi Três dos filhos homens do casal foram nobilitados quase no ato do desembarque alçados a membros da nobreza togada Logo em seguida alguns recémchegados abastados e prestigiosos casaramse com filhas do casal Assim se constituiu muito rapidamente uma ocupação econômica As terras para a agricultura foram distribuídas sem atritos com os territórios das aldeias aliadas os utensílios de ferro chegaram ali em abundância e parte deles foi trocada por escravos que os aliados dos aliados agora traziam do interior de modo que não faltava mão de obra para abrir matas plantar cana e construir engenhos Salvador foi transformada em vila com a repetição dos rituais de São Vicente e Olinda uma série de títulos de propriedade distribuídos e uma eleição para dar substância e poder ao governo local recéminstalado e que passava a processar os interesses representados na eleição Mas a vila não seria como as outras já instaladas no Brasil Estabelecer uma capitania produtiva para o real donatário era apenas parte do plano O Regimento também era claro sobre o que fazer em caso de êxito Tanto que os negócios que na dita baía haveis de fazer estiverem para os poderdes deixar vós com os navios e gente que vos bem parecer ireis visitar as outras capitanias E porque a do Espírito Santo que é a de Vasco Fernandes Coutinho está levantada ireis a ela com a mais brevidade que puderdes e tomareis a informação por o dito Vasco Fernandes Coutinho e por quaisquer outras pessoas que vos disso saibam dar razão da maneira que estão com os ditos gentios e o que cumpre fazerse para se a dita capitania tornar a reformar e povoar e o que assentardes poreis em obra trabalhando tudo o que for em vós porque a terra se segure e fique pacífica e de maneira que ao diante se não levantem mais os ditos gentios e na dita capitania do Espírito Santo estareis o tempo que vos parecer necessário para fazerdes o que é dito 3 A lição do reconhecimento da aliança Tupi como alicerce sobre o qual assentaria o progresso deveria se estender transformada em realidade política onde quer que chegasse a ação do governogeral Como parte dessa transformação havia mais um ponto expresso no Regimento A principal tentativa minha é que se convertam à nossa santa fé logo é razão que se tenha com eles todos os modos que puderem ser para que o façais assim E o principal há de ser escusardes fazerlhes guerra porque com ela se não pode ter a comunicação que convém que se com eles tenha4 As novidades foram além Até então o comandante da cruzada empreendida pela Ordem de Cristo não tinha feito o menor gesto para instalar a Igreja que comandava naquela terra onde agora instalava uma representação da esfera real de governo Até 1549 os documentos revelam apenas a construção de igrejas por encomenda de moradores fossem europeus como em Iguape onde existe menção de uma capela de Nossa Senhora da Conceição das Neves em 1534 ou nativos convertidos como a igreja erguida por ordem de Catarina Paraguaçu No entanto tudo mudou de figura depois que Tomé de Sousa conseguiu acertar as coisas durante a viagem em que passou pelos pontos então ocupados Em 1553 ele saiu de Salvador para executar um plano diretamente associado à combinação de conversão religiosa dos nativos com domínio político ampliado do território Esse plano havia sido concebido por membros de uma ordem religiosa fundada em 1540 a Companhia de Jesus Ainda em seus primórdios a organização caiu nas graças de D João III que como chefe da Igreja em seus domínios foi entregando sucessivas missões aos jesuítas a começar pela reforma da universidade de Coimbra As relações entre o rei que encomendava serviços e os padres que os realizavam eram muito diferentes das tradicionais Em vez de ficarem em conventos os jesuítas eram treinados para andar no mundo o rei se aproveitava desse treino para encarregálos de missões específicas diretamente financiadas com recursos do Tesouro Sem precisar perder tempo buscando dinheiro de esmolas os padres iam direto ao ponto E o ponto no caso dos seis jesuítas que vieram com o governadorgeral era o de estudar cuidadosamente a cultura dos índios num local onde ainda vivessem a seu modo e montar um projeto exequível de conversão em massa Ao passar por São Vicente Tomé de Sousa conheceu João Ramalho e assim o descreveu ao rei Tem tantas mulheres filhos netos e bisnetos e descendentes que não ouso dizer o número a Vossa Alteza Não tem cãs na cabeça e anda nove léguas a pé todos os dias antes do jantar Por educação deixou de fora o número de mulheres e a nudez mas não hesitou em fazer uma série de concessões de fidalguia transformou a taba onde João Ramalho vivia na vila de Santo André concedeu títulos de homens bons aos parentes indianizados conferiu ao andarilho o título de capitão e reconheceulhe o mandato de vereador Em troca de tudo isso conseguiu que ele arranjasse junto a seu sogro Tibiriçá uma forma de acomodar os padres europeus na tribo sem que tivessem de casar algo que causava muita estranheza a um Tupi Mas afinal tudo se ajeitou de forma que o estudo da cultura Tupi foi adiante como parte da ação do governogeral no Brasil Coube ao padre Manuel da Nóbrega chefiar a missão que contou com grande ajuda de José de Anchieta capaz de destrinchar em pouco tempo tanto a língua como o sistema de parentesco dos nativos cumprindo tarefas dignas de um antropólogo moderno Para o que interessa ao plano de conversão uma indagação básica precisava ser respondida os nativos eram seres racionais capazes de reconhecer Deus ou apenas brutos danados Ao fim do estudo Nóbrega chegou à conclusão de que embora fossem descendentes de Caim e por isso ficam nus não chegavam a ser como seres humanos substancialmente diferentes de europeus e povoadores Toda esta gente uma e outra naquilo que se cria tem uma mesma alma e um mesmo entendimento5 Porque tinham alma racional e capacidade de entendimento o padre jesuíta não via diferenças humanas essenciais entre antropófagos e europeus Mas exatamente por não vislumbrar tanta diferença esboçou um programa de catequese expresso no Diálogo sobre a conversão do gentio pelo qual os índios deveriam ser transformados à força em cristãos e colocados num lugar determinado na nova sociedade a ser criada A lei que lhe hão de dar é defenderlhes de comer carne humana e guerrear sem licença do governador fazerlhes ter uma só mulher vestiremse pois têm muito algodão depois de transformálos em cristãos tirarlhes os feiticeiros mantêlos em justiça entre si e para com os demais cristãos fazêlos viver quietos e sem mudarem para outras partes tendo terras repartidas que lhes bastem e padres da Companhia para doutrinálos6 Na altura em que traçou tal plano a realidade prática do governo no território ainda era marcada pelo domínio das formas anteriores à chegada dos primeiros navios pelo governo autônomo de pequenos grupos Mas o comércio de ferro e madeira por navios marca da nova era havia promovido as transformações das alianças entre europeus e grupos cada vez mais extensos de Tupi uma realidade que até mesmo D João III reconheceu como fundamento para a política Os territórios das principais áreas de contato entre portugueses e Tupi ganharam o estatuto de vilas mesmo quando não passavam de tabas como a Santo André de João Ramalho Aglomerados regionais de vilas eram supervisionados por donatários O governogeral começou como uma capitania de sucesso e como um centro de dispersão das decisões de fundar a política de fato nas alianças com nativos e nos planos de controle dele Parecia muito pouco mas logo apareceu a oportunidade de mudar radicalmente o quadro CAPÍTULO 7 Governo francês corpo e espírito A ALIANÇA ENTRE FRANCESES E TUPI DEU CERTO EM TODO O TRECHO DO LITORAL que vai do Maranhão ao Rio de Janeiro Os métodos políticos foram exatamente os mesmos o casamento de franceses com filhas de chefes fundamentou um fluxo de comércio no qual o algodão e o paubrasil eram trocados por utensílios de ferro Os efeitos também foram os mesmos aglutinação de grupos em torno do fluxo mercantil guerras seguidas contra os demais ocupantes do território Os registros sobre o governo em terras americanas são escassos entre outros motivos porque há pouco interesse de historiadores franceses em estudar os compatriotas que se tupinizaram e as relações deles com seus parentes poderosos em nível local Uma das exceções é Ferdinand Denis que escreveu O francês que se decidia a viver entre os Tupinambá começava a se conformar pouco a pouco em todas as coisas com o modo de vida de seus companheiros Adotado por uma aldeia tomava como seus os interesses dela e seguia os seus costumes Tal se tornava seu desprezo pelos hábitos que abandonara que por vezes se pintavam como selvagens e viviam em florestas Seguindo o exemplo dos chefes com quem gostava de se comparar esposava muitas mulheres1 Francês português espanhol não importa o europeu A regra do sucesso econômico e social era a mesma aculturação no governo de costume Tupi e a concomitante criação de um fluxo de negócios A medida desse fluxo na vertente francesa aparece mais em outro tipo de documentação desde o início do século XVI há registros de nativos brasileiros vivendo na França sobretudo em torno de Rouen Os negócios com o Brasil passaram a envolver negociantes poderosos dessa cidade que reclamavam junto ao rei quando seus navios eram apreendidos como invasores do Brasil Francisco I não hesitou em defender os súditos Pediu ao papa para ver o testamento de Adão que teria justificado o Tratado de Tordesilhas que dividia entre portugueses e espanhóis o mundo então acessível por navios O soberano francês também ajudou em processos de perdas movidos pelos armadores e promoveu todo tipo de intriga diplomática Havia razões econômicas Os negócios franceses andavam tão bem que em 1548 Luís de Góis morador de São Vicente escreveu a D João III Não sei que fim terá esta carta pois de dois anos para cá vem a esta parte sete ou oito naus francesas a cada ano direto para Cabo Frio e o Rio de Janeiro e não há navio português que ouse aparecer pois muitos têm sido tomados pelos franceses2 As naus francesas não levavam apenas paubrasil Os muitos produtos agrícolas domesticados pelos nativos iam encontrando mercado O algodão tornavase conhecido entre tecelões Até mesmo a rainha Catarina de Médici adotou o hábito de fumar tabaco Havia tantos Tupi vivendo em Rouen que as autoridades da cidade resolveram transformálos em atração das festividades de recepção ao rei Henrique II e à rainha fumante que em 1550 visitaram a cidade E era atração forte o suficiente para atrair gente importante Maria Stuart rainha da Escócia os embaixadores da Espanha Veneza Inglaterra e Alemanha entre outros além de sete cardeais e nobres de alta estirpe O espetáculo foi apresentado ao ar livre O cenário era aquele de uma aldeia que tinha tabas redes moquém instrumentos de todo tipo Cinco dezenas de Tupi nus e duas centenas de figurantes franceses iam mostrando como era a vida cotidiana inclusive o modo de cortar paubrasil O ponto alto do espetáculo ficou para o final o ataque simulado de uma tribo inimiga aliada dos portugueses repelido com ajuda dos franceses O fluxo de mercadorias e signos entre o Brasil e a França dependia por completo no lado americano dos governos Tupi Cada grupo nativo segundo seu costume dava conta de processar as mudanças econômicas de monta Tudo funcionava tão bem que nenhum francês teve a ideia de implantar algum tipo de governo na terra Com o governogeral porém a situação mudou Em 1554 o cavaleiro Nicolas Durand de Villegagnon depois de uma incursão a Cabo Frio convenceu o rei de que afinal seria vantajoso instalar um governo francês Mesmo sem a perspectiva de muito lucro Henrique II topou Ajudando aqui e ali permitiu que Villegagnon armasse uma esquadra embarcasse 600 homens e tomasse o rumo da baía de Guanabara Ao desembarcar ali em novembro de 1555 foi recebido pelos franceses casados na terra Escolheu o local que lhe pareceu adequado para edificar uma fortaleza que seria a primeira obra de seu governo uma laje de pedra no meio da baía onde hoje funciona a Escola Naval ao lado do aterro onde foi construída a pista do aeroporto Santos Dumont Apesar da esquisitice do lugar quente e sem água não faltaram meios para instalar os aliados dos aliados com ajuda dos Tupinambá em três meses o forte estava pronto Bastou esse curto intervalo para que os soldados e marujos percebessem que podiam ter uma vida muito boa se casassem com as índias que lhes eram oferecidas a cada dia pois a aliança matrimonial era a linguagem política dos Tupinambá Villegagnon porém ficou com medo de perder autoridade e acabar governado pelos moradores e por isso baixou medidas draconianas para separar as partes A consequência foram os motins e as fugas Tentando recuperar o comando Villegagnon começou a escrever cartas a conhecidos por toda a Europa Num dia de 1556 uma delas chegou a Genebra Escrita para um antigo companheiro de colégio chamado João Calvino ausente foi aberta por seus auxiliares e os resultados da leitura foram registrados por Charles Baird Um culto solene teve lugar na catedral Todos naturalmente desejosos de difundir sua religião deram graças a Deus por aquilo que viam como um caminho aberto para estabelecer sua doutrina e permitir que a luz do Evangelho brilhasse entre os povos bárbaros sem Deus nem lei nem religião3 Vários jovens estudantes cheios de fé um dos quais o sapateiro Jean de Léry se ofereceram para o trabalho de instruir os selvagens a respeito do cristianismo revelado Formouse assim o primeiro grupo de protestantes a cruzar o Atlântico Depois de muitas peripécias chegaram ao Rio de Janeiro em março de 1557 Foram recebidos por Villegagnon Depois ainda segundo Baird Concluída a sóbria refeição o grupo foi deixado nas instalações providenciadas para todos Consistiam em estacas cravadas na beira da água as quais os selvagens a serviço do governador cobriram de grama No lugar de camas tinham redes suspensas no ar segundo o costume local Podemos supor que foi uma noite insone para uma parte do grupo O ar era tépido como costuma ser em maio na Europa O céu sem nuvens permitia a vista de novas constelações A baía com suas costas irregulares recobertas por graciosas palmeiras e as montanhas que lembravam os Alpes deve ter deixado insone parte do grupo Para os pastores ao menos os projetos acalentados eram ainda mais impressionantes Estavam no Novo Mundo onde a Palavra do Filho de Deus tão recentemente revelada em toda sua pureza para as nações da Europa iria ser levada para as tribos selvagens imersas na escuridão Agora com a primeira missão do protestantismo a pura doutrina da Cristandade poderia ser anunciada antes que os emissários de Loyola pudessem introduzir suas crenças corruptas4 Na verdade os discípulos de Loyola já haviam chegado e estavam pregando para as tribos no Colégio de São Paulo E a missão dos pastores era bem mais complexa que a dos padres em um grupo humano que desconhecia a Bíblia e a escrita eles contavam com a capacidade de distinguir uma interpretação específica do texto bíblico por eles tida como verdade revelada e também que os nativos entendessem que tal interpretação contrariava outra considerada corrupta e vislumbrassem nesse modo novo de interpretar o texto do livro a verdade da razão e afinal se convertessem por vontade própria De acordo com o roteiro protestante eles deveriam abandonar sua cultura e seu modo de vida passando a viver como cristãos renovados sob a direção espiritual dos pastores Tanta exigência teve poucos resultados menos de um mês após a chegada nas palavras de Baird a avaliação dos homens de fé sobre os nativos estava muito longe daquela em que eram vistos como inocentes à espera da Palavra A respeito dos bárbaros habitantes da terra os pastores escreveram com indisfarçável horror Não apenas estavam acostumados a comer carne humana mas de vários modos haviam caído ao nível dos animais Não distinguiam o bem do mal não tinham a concepção da existência de um Deus Os pastores sentiamse deprimidos pela incapacidade de incutir em tais pagãos as boas novas da Redenção5 Frustração maior condenação maior Até mesmo Jean de Léry um dos que mais conviveram com os índios não se furtou a um julgamento muito negativo sobre os canibais Em verdade penso que pouco diferem dos brutos e que no mundo não há pessoas mais afastadas das ideias religiosas São descendentes de Caim e trazem o estigma da maldição de Deus Por mim reputo certo descender esta gente da raça maldita de Adão6 Tal juízo decorria do mesmo roteiro inquiridor traçado pelo padre Manuel da Nóbrega tratavase primeiro de saber se os índios tinham capacidade de entendimento para católicos e protestantes isso equivalia a entender a existência do Deus da Bíblia a partir dessa resposta era preciso avaliar se eles andavam nus por serem inocentes ou porque eram os filhos danados de Caim em função de tudo decidir se podiam ser convertidos ou deveriam ser declarados inimigos da fé O pastor foi bem mais duro do que o padre Manuel da Nóbrega incluiu os Tupinambá entre os descendentes de Caim relegandoos à esfera dos animais desprovidos de razão e não à dos homens com alma racional tal como todos os demais conforme o julgamento de Nóbrega e dos malditos Nóbrega entendia racional como capaz de ouvindo sentir a divindade Léry entendia racional como sinônimo da capacidade de se curvar à palavra escrita e revelada pela interpretação sendo esta o grande ente de razão Como seus interlocutores não mostraram disposição para se converter ouvindo a Palavra foram incluídos entre os animais ferozes O que veio em seguida foi pior que frustração No agrupamento francês havia tanto padres e fiéis católicos quanto pastores e fiéis protestantes Convivendo com antropófagos reais os dois grupos logo se engalfinharam num acirrado debate teológico cujo tema era um milenar ritual de antropofagia simbólica assim descrita por Carl Gustav Jung Os horrores da morte na cruz são imprescindíveis como condição preliminar da transformação na missa Esta consiste primeiramente na vivificação de substâncias inanimadas e depois na mudança intrínseca e essencial dessas mesmas substâncias no sentido de uma espiritualização como matéria sutil Tal concepção se expressa na participação concreta no corpo e sangue de Cristo pela comunhão7 Até o encontro com os Tupinambá da Guanabara a ritualização da união entre corpo e espírito num ritual antropofágico simbólico era tão diáfana para todos os cristãos quanto a espiritualização do pão e do vinho Mas depois dele tornouse impossível evitar a impressão material causada pela ingestão da carne dos prisioneiros sacrificados Sérgio Buarque de Holanda narrou com certo detalhe as controvérsias teológicas surgidas na ilha A crise surgiria no Pentecostes de 1557 quando nasceram dúvidas sobre se era lícito deitar água no vinho na cerimônia da consagração Villegagnon optou pela afirmativa evocando a tradição particularmente são Cipriano são Clemente e os sagrados concílios O pastor Pierre Richier valendose das Escrituras contradizia firmemente essa opinião8 Villegagnon tinha tanta certeza de que sua posição teológica não apenas seria correta mas de acordo com as novas doutrinas que a defendeu em carta enviada ao próprio Calvino na qual criticava as posições de outro pastor Guillaume Chartier Ensinava ele que a realidade interior é intelectual não corporal a ser percebida pela fé Desse modo se vos for oferecido o Cristo crucificado da morte e ressuscitado e crerdes que O recebereis será isso mesmo de outra forma será apenas pão que comeis Que Cristo deve ser adorado apenas no espírito e não na carne para não se adorar o elemento terreno9 Enquanto os guerreiros Tupi exaltavam em seus discursos a união de corpo e espírito ao ingerirem a carne dos prisioneiros sacrificados ritualmente os franceses se desentendiam cada vez mais a respeito dessa relação simbolizada na missa como narra Sérgio Buarque de Holanda A controvérsia estava lançada e degenerou logo em violentos debates sobre a natureza da presença de Cristo nas espécies da Eucaristia Aos poucos foramse avolumando essas desinteligências e Villegagnon pretendeu impor a qualquer preço sua autoridade desmandandose em atos que fecharam o caminho a qualquer reconciliação O convívio entre as facções em que se dividia a colônia foi ficando cada vez mais insustentável agravandose com as notícias bem ou mal fundadas de insubordinação e revoltas10 Depois de vários episódios de conflito o ato final assemelhouse ao sacrifício dos prisioneiros Tupi dessa vez com a integridade espiritual exposta pelos prisioneiros protestantes interrogados por Villegagnon antes do sacrifício Submeteu todos a um rigoroso questionário que versou sobre pontos de teologia referentes aos sacramentos E como três deles se mostrassem obstinados no apego às opiniões dos reformados condenouos por hereges mandando supliciá los e depois lançálos ao mar11 A disputa cindiu o governo francês na Guanabara que assim chegou a resultados opostos aos acordos com nativos que haviam permitido o estabelecimento do governogeral português em Salvador No lugar de reforçar alianças e tolerar os costumes de governo Tupi os governantes franceses passaram a condenar os casamentos com índias impedir alianças e brigar entre si por motivos religiosos Foi um fracasso total Católicos e protestantes foram abandonando a Guanabara O projeto ruiu antes mesmo do primeiro ataque português E as desavenças de católicos e protestantes em torno da simbologia antropofágica de união de corpo e espírito na missa prosseguiram no retorno à França De lá a controvérsia se espalhou pela Europa com os desentendimentos levando à primeira guerra entre católicos e calvinistas na França e pelo menos outras oito ocorreriam até o final da década de 1570 Assim a simbologia Tupinambá entrou na cultura europeia Um francês da região de Rouen Michel Eyquem senhor do castelo de Montaigne conheceu os Tupinambá dizem que tinha um criado trazido do Rio de Janeiro e as guerras religiosas Com isso na memória em algum momento da década de 1570 ele escreveu um ensaio intitulado Dos Canibais no qual dizia O benefício da vitória dos canibais na guerra consiste na glória que auferem dela e na vantagem de se terem mostrado superiores em valentia e coragem pois não saberiam o que fazer dos bens dos vencidos Quando vencidos seus inimigos procedem de igual maneira Aos prisioneiros não se exige senão que se confessem vencidos Mas não se encontra um só em um século que não prefira a morte a assumir uma atitude ou uma palavra capazes de desmentir uma coragem que timbram em ostentar acima de tudo Não se vê quem não prefira ser morto e comido a pedir mercê Dãolhes todas as comodidades imagináveis para que a vida lhes seja mais grata mas ameaçam nos frequentemente com a morte futura com os tormentos que os esperam com os preparativos feitos para tal fim com a destruição dos seus membros e o festim que celebrarão à sua custa Fazem tudo isso para lhes arrancar da boca alguma palavra de fraqueza ou de humilhação ou induzilos a fugir vangloriandose então de os terem amedrontado e quebrantado a sua firmeza Porque em verdade só nisto consiste a verdadeira vitória A vitória verdadeira é a que constrange o inimigo a declararse vencido12 Como tal espécie de vitória nem sempre acontecia a escolha mais comum dos prisioneiros seria outra Longe de se renderem diante do que se lhes faz conservam um ar alegre nos dois ou três meses que estão em poder do inimigo incitam seus captores a apressarlhes a morte desafiamnos injuriamnos lançamlhes na cara a sua covardia e relembram as inúmeras batalhas por eles perdidas contra os seus Conservo uma canção feita por um desses prisioneiros onde se encontra este dito Que venham todos quanto antes e se reúnam para comer minha carne porque comerão ao mesmo tempo aquela de seus pais e avós que outrora alimentaram e nutriram meu corpo Estes músculos esta carne e estas veias são as vossas pobres loucos não reconheceis que a substância dos membros dos vossos antepassados ainda está em mim Saboreaios bem e achareis o gosto da vossa própria carne Não há o menor traço de barbárie neste discurso As testemunhas que descrevem os moribundos no momento do sacrifício pintam o prisioneiro cuspindo na cara de seus matadores e fazendo lhes caretas Não deixam até ao último suspiro de os insultar e desafiar por palavras e obras 13 A descrição da morte ritual termina antes do ritual do repasto antropofágico pois o autor coloca nesse momento a questão essencial que está sendo examinada no ensaio Empregando nossos olhos diríamos sem dúvida eis aqui homens completamente selvagens Mas de fato ou eles o são na realidade ou o somos nós Isso porque existe uma maravilhosa distância entre a maneira de ser deles e a nossa14 Esse ensaio marcou a primeira grande influência da cultura TupiGuarani no pensamento europeu Para Montaigne seriam os Tupi e não os reis ou religiosos europeus aqueles que manteriam a integridade mística entre corpo e espírito aquela que se perdia com as guerras no âmbito da cristandade Essa integridade resistiu a governos e religiosos no meio século em que os Tupi puderam controlar o avanço do governo formal e da palavra escrita por meio do controle dos genros aliados Em seguida porém não mais conseguiriam manter monopólio de governo em sua terra natal CAPÍTULO 8 Aliança geral EM 1557 O TRONO DE PORTUGAL PASSOU PARA UM MENINO DE TRÊS ANOS D Sebastião já então apelidado de O Desejado Um dos primeiros atos da regente D Catarina a avó do menino foi indicar Mem de Sá filho de padre num tempo em que padres ainda podiam casar e ter filhos funcionário do alto escalão juiz de instâncias superiores legislador embaixador para ocupar o cargo de governadorgeral do Brasil Tinha 58 anos de idade bem mais que a média de vida da época Ao desembarcar em Salvador no dia 27 de dezembro de 1557 em vez de seguir para o palácio do governo internouse no convento dos jesuítas Durante vários dias discutiu ponto por ponto os planos para a colônia elaborados pelo padre Manuel da Nóbrega O jesuíta Serafim Leite definiu desta forma o resultado das conversas Adotou e cumpriu sem reservas não obstante a oposição1 Uma de suas primeiras medidas em 1559 foi alterar as tarifas alfandegárias reduzindo em quase 40 a alíquota para a entrada de escravos africanos tornando mais barata a importação Quem mais ganhava com isso eram os comerciantes que pagavam parte das compras de açúcar com escravos africanos E quem mais perdia eram os produtores que empregavam a mão de obra nativa e seus fornecedores Quase ao mesmo tempo o novo governadorgeral promoveu algo inédito ao reunir exércitos Tupi aliados de toda a colônia para uma investida contra o governo francês no Rio de Janeiro Até então a capacidade de arregimentar tropas aliadas restringiase à esfera de cada aliança local via casamentos Mas algo havia mudado os jesuítas haviam estabelecido relações entre os vários espaços portugueses preparando o terreno para um alistamento geral em todas as áreas nas quais viviam portugueses indianizados Em 1560 a ordem de reunir os aliados foram cumpridas e visavam um objetivo claramente ligado a um projeto de governo que ia além das alianças com governos locais Tupi e conferia um caráter nacional a conflitos tribais e mercantis Nesse novo tipo de guerra o primeiro alvo era o forte francês na baía de Guanabara A vitória foi rápida até porque ali restara apenas uma pequena fração dos ocupantes originais Mas a ela seguiuse um longo e demorado embate com a verdadeira base da atividade econômica francesa os miscigenados e Tamoio esse é o nome dado pelos demais Tupi aos Tupinambá da região que se haviam aliado aos franceses que afinal eram os governantes de fato do território O conflito se estendeu por uma área enorme Numa primeira etapa as tropas dos muitos Tamoio avançam por todo o litoral ao sul da Guanabara e o vale do Paraíba em 1562 Só foram detidos por João Ramalho quando tentavam invadir São Paulo Os jesuítas foram arregimentando os índios que podiam e enviando notícias a Salvador onde o governador preparava um novo grupo de ataque que ficaria sob o comando do seu sobrinho Estácio de Sá Além disso no Espírito Santo os jesuítas conseguiram uma ajuda de peso Arariboia vivia com a sua gente nos fundos da baía de Guanabara mas acabou tendo de fugir dali para o Espírito Santo após a chegada do grupo do governador francês Internouse pelos matos arregimentou pessoal Aceitou com fúria o convite para se reunir ao grupo organizado para retomar sua região nativa em 1564 No ano seguinte as tropas portuguesas comandadas por Estácio de Sá e por aliados indígenas entraram na baía de Guanabara A guerra longamente preparada foi bemsucedida Depois de um primeiro ataque caíram as posições dos franceses miscigenados de Uruçumirim hoje praia do Flamengo Numa segunda onda de ataques Estácio de Sá acabou ferido no rosto por uma flecha envenenada vindo a morrer pouco depois Mas a taba de Paranapuã também caiu e a vitória foi completa O que houve em seguida foi também a inauguração de novos métodos de tratamento dos vencidos Em vez de fazer escravos o objetivo do combate Tupi os Tamoio foram massacrados a sanguefrio Seguiram o destino dos franceses pendurados em paus para escarmento nas palavras do jesuíta Simão de Vasconcelos Os combates ainda continuaram pelos anos seguintes Em 1575 os Tamoio foram expulsos de Cabo Frio Com essa vitória a guerra tribal em escala ampliada promovida pelo governogeral cumpriu seu efeito mundial refugiando se no interior os Tamoio perderam contato com o aliado europeu com quem trocavam mercadorias e os franceses perderam tanto o negócio como o domínio por falta de produtos para trocar A partir desse momento cessaram os fluxos do Rio de Janeiro para Rouen as exibições para a Corte francesa as possibilidades de comprar paubrasil algodão e tabaco A instalação de Tupi aliados dos portugueses no novo território não seguiu o modelo tradicional da expansão das alianças de fundo matrimonial Os vencedores eram agora representantes diretos do rei e portanto capazes de dar a cada um conforme o seu numa escala mais ampla e conforme aos moldes da época Primeiro deram ao rei Em teoria o território conquistado deveria pertencer a dois capitães donatários os descendentes de Martim Afonso de Sousa um quinhão de São Vicente e Pero Góis da Silveira São Tomé Mas o governadorgeral promulgou uma lei na qual se dizia que uma vez que a terra tinha sido abandonada justificavase a criação de uma nova capitania real a do Rio de Janeiro Também por decreto o governadorgeral nomeou o sobrinho Estácio de Sá capitãomor da capitania recémcriada Para ele e outros amigos o governador geral distribuiu as melhores terras como sesmarias fazendo da região quase uma capitania hereditária dos Sá Mem de Sá não se esqueceu dos aliados Os jesuítas receberam generosas doações de terras nas quais montaram engenhos e fazendas Ao longo dos séculos seguintes as propriedades jesuíticas do Rio de Janeiro em especial o Engenho de Dentro e a Fazenda Santa Cruz seriam das mais rentáveis da região O governadorgeral e os jesuítas souberam criar uma situação especial para seu principal aliado militar Primeiro conseguiram a conversão de Arariboia que foi batizado com o nome de Martim Afonso de Sousa Além disso pediram ao rei que lhe conferisse um título de nobreza togada extraordinário o de cavaleiro da Ordem de Cristo com pensão de 12 mil réis anuais Para merecer um título como esse o pretendente precisava provar que era cristãovelho ou seja neto de cristãos pelos quatro avós A definição que Manuel da Nóbrega criara aquela do índio inocente e dotado de razão serviu para contornar o caso ela transformava o batizado de um inocente num atalho para a nobilitação Poucos conseguiam o título na ordem chefiada pelo rei e quase ninguém era ainda por cima agraciado com uma pensão Receber dinheiro era um privilégio tão grande no século XVI que apenas nove testamentos do período em São Paulo registram herança nessa espécie Além da nobilitação Arariboia ainda ganhou duas sesmarias A maior delas conhecida como São Gonçalo dos Índios na atual Niterói virou uma mescla de aldeamento jesuítico com propriedade comunal misturando as funções de arregimentação de defesa e fornecimento de mão de obra Os vencedores também providenciaram para o agraciado uma casa na cidade perto daquelas das autoridades Cada vez que vinha à casa o proprietário era tratado com a deferência reservada a um fidalgo embora o registro definitivo na Ordem de Cristo nunca tenha sido realizado Seja como for o arranjo marcou um novo tempo No Brasil como um todo a atuação do governogeral levou a um realinhamento das alianças tribais A mobilização geral de várias alianças locais em torno de um único objetivo nacional português mostrouse viável A reorganização da produção após a vitória permitiu uma escala inusitada de concentração de riqueza na qual a proximidade ao centro de poder servia de acesso às benesses Essa reorganização geral explica o destino negativo de outros combatentes na guerra João Ramalho arregimentou tropas arriscou a vida defendeu seu espaço escorraçou os Tamoio Mas só ganhou reprimendas dos jesuítas que não julgavam mais necessitar dele agora que tinham o governogeral como instrumento de apoio mais poderoso são desse período as seguidas cartas condenatórias dos maus costumes do representante da aliança matrimonial Não se tratava de nada pessoal Manuel da Nóbrega tinha traçado um plano completo para o Brasil e nele as alianças locais deveriam ser controladas A nobilitação potencial dos Tupi aliados fora das alianças tradicionais como foi o caso de Arariboia era um passo necessário na implementação da mudança Na segunda metade da década de 1560 Manuel da Nóbrega escreveu uma série de estudos teológicos sobre a inocência dos índios Num deles procurando responder à pergunta Pode um pai vender a seu filho ou venderse a si mesmo dizia que um inocente não poderia fazer isso porque o ato feriria a liberdade natural dos homens Essa era uma ideia totalmente estranha aos costumes políticos e jurídicos da época baseados na tradição aristotélica na qual a desigualdade natural entre senhores e escravos era o fundamento de toda a vida social Mas o desenvolvimento do princípio não levava ao corolário de que todos os homens livres eram iguais Aplicada restritamente aos Tupi que teriam liberdade natural mas não todo o entendimento racional o conhecimento de Deus para usufruíla havia a necessidade de serem tutelados em sua transição para o pleno exercício dela Quem tutelaria Jamais os moradores que eram definidos como movidos apenas pelo interesse Esse era o papel adequado aos jesuítas que poderiam manter os tutelados em aldeamentos de modo a lhes garantir a liberdade parcial O conceito inovador e interessado foi vendido ao rei e transformado em alvará em 1570 Nele aparecia outra novidade depois de sete décadas os nativos eram incluídos entre os súditos de Portugal mas não exatamente como os mais capazes O artigo mais famoso do decreto dizia Mando que daqui em diante não se use nas ditas partes do Brasil o modo que se usou até agora em fazer cativos os ditos gentios nem se possa cativar de modo e de maneira alguma salvo aqueles que forem tomados em guerra justa que os portugueses fizerem ao dito gentio com autoridade ou licença minha ou do governador das ditas partes2 A rigor a lei não acabava com as guerras Mas a decisão quanto à legalidade de uma guerra era transferida dos aliados portugueses e dos chefes tribais para um representante do rei Tipicamente o decreto ampliava ao máximo a margem discricionária da autoridade quase sem mexer na realidade No momento em que a lei foi escrita era pouco mais que um pedaço de papel que dizia algo sobre uma porção ínfima do território Mas deixava transparecer uma pretensão de governo que ia muito além da recomendação ao primeiro governadorgeral para se entender com os nativos Dizia muito também sobre os cativos tomados em guerra em tese deveriam ser entregues aos jesuítas e viver nos aldeamentos Como ali todas as trocas de excedentes eram comandadas pelos padres que também embolsavam as rendas auferidas os índios livres se tornavam produtores de bens para seus tutores Isso tornou os jesuítas funcionários diretamente ligados à Coroa não custa relembrar na autoridade central mais efetiva do território Ao mesmo tempo que criava uma legalidade à feição da época dando a cada um o seu a lei criava uma larga área de ilegalidade na qual incluía todos os índios e todos os moradores que realizavam alianças matrimoniais do lado pessoal e todo o resultado da troca de excedentes econômicos entre as duas partes Até a véspera da lei eles vinham conhecendo um período de relativa aceitação por parte do governo Mas os tempos em que até mesmo a rainha reconhecia candidamente a necessidade de um fidalgo viver na lei de Moisés com suas trezentas concubinas duraram apenas o necessário para a acomodação de um representante da autoridade central com capacidade própria de ação Claro a lei não tinha como alterar a realidade Tanto quanto antes o fluxo de excedentes econômicos gerados nas relações com os Tupi promovia uma acumulação cada vez maior entre os moradores Em termos da política tal crescimento se refletia no número de vilas que não parava de aumentar Quase todas ficavam muito longe da ação regular do governogeral a maior parte distante também da interferência dos senhores de capitanias o poder era todo dos moradores que elegiam seus representantes para governar No lado econômico as trocas começavam a gerar fortunas monetárias de todo tipo O homem mais rico de Salvador era Garcia dÁvila que acumulou sua riqueza com uma mistura de fazendas de gado tocadas por índios venda de farinhas e algodão tudo construído a partir de casamentos com nativas a despeito de ter trazido mulher do Reino Esse exemplo serve para lembrar que nem só a atividade de exportar açúcar gerava renda monetária no Brasil do século XVI Mas o exemplo também não nega o fato de que a atuação do governogeral foi capaz de direcionar os fluxos de riqueza na direção da combinação escravos africanos e exportação Como lembra Joseph Miller essa combinação permitia vencer o principal obstáculo para a manutenção de um fluxo de comércio com a Europa Os construtores do sistema não só tiveram de organizar especulações comerciais caras e altamente especializadas mas também de custear as despesas relativas à compra e manutenção de sua força laboral abrir manter e defender vastas áreas construir e operar complexas máquinas industriais sem o desembolso dos escassos e por conseguinte preciosos metais monetários Não apenas a baixo custo mas especificamente sem fazer uso do ouro e da prata3 Um único exemplo explica essa necessidade imperiosa Em 1640 o valor total da produção de açúcar brasileiro foi equivalente a 17790 quilos de ouro no mesmo ano a entrada total de ouro na Casa da Moeda de Lisboa foi de 3004 quilos o equivalente a 16 da produção Com isso se percebe que não existia outra alternativa senão a introdução do pagamento com outras mercadorias e que o esforço governamental para utilizar o escravo africano e afastar os nativos dessa produção tinha um sentido que ia além das questões teológicas Toda a acumulação de riqueza em moeda na colônia seja resultante dos negócios internos seja derivada da atividade no setor exportador teria de ser feita internamente Mais ainda teria de ser feita à margem do estatuto legal Ninguém notou isso com mais acuidade do que frei Vicente do Salvador autor do primeiro livro com o título História do Brasil de 1625 ao relatar a impressão de um empresário que visitou Salvador em 1585 Notava ele que se mandava comprar um frango quatro ovos e um peixe para comer nada lhe traziam porque não se achava na praça nem no açougue Mas se mandava pedir as ditas coisas às casas particulares lhes mandavam4 Em vez da proteção jurídica para a existência pública os negócios produtivos internos eram relegados ao espaço da informalidade onde eram invisíveis para o governo eram postos no âmbito dos costumes e não da lei E no sentido oposto todos aqueles que produziam para o mercado e negociavam a produção interna procuravam viver o mais longe possível da autoridade central portuguesa Esta por sua vez só cuidava de dar a cada um para as pessoas próximas do governogeral pouco se importando com os demais O resultado nas palavras do padre era uma inversão que não se limitava aos mercados Nessa terra andam as coisas trocadas porque toda ela não é república sendoo cada casa Pois o que é fontes pontes caminhos e outras coisas públicas é uma piedade5 Uma das razões dessa inversão no Brasil era justamente a realidade dos governos pósD João III Depois da morte de D João III que soube estimálo e curálo não houve outro que dele curasse senão para colher suas rendas e direitos6 Nesse cenário encontrar um representante do governo central significava provavelmente dar de cara com um cobrador de impostos e não com alguém disposto a prestar serviços gerais Com isso surgiu uma dupla legalidade De um lado aquela que refletia o interesse dos moradores dos produtores locais interessados em enriquecer fosse com produção interna ou exportação e o interesse de seus aliados Tupi em trocar excedentes que permitiam que isso acontecesse De outro aquela que refletia os interesses do centro representados no Brasil pelo governogeral e pelos jesuítas Também foi surgindo uma divisão espacial Tanto o governogeral como os administradores de capitanias as mais altas instâncias da autoridade metropolitana de fato mal e mal arranhavam o litoral Já as câmaras eram a autoridade efetiva única no sertão Onde havia negócios de exportação havia escravos e alfândega abastecedores do comércio europeu e dos governos Fora de Salvador e das sedes de capitanias o governo era de responsabilidade dos moradores miscigenados das vilas No restante do imenso território continuavam a existir apenas os governos de costume Comerciando guerreando ou se casando estabeleciamse as relações entre essas duas últimas partes ambas em expansão CAPÍTULO 9 Governos da Espanha UMA DAS CONFUSÕES MAIS COMUNS QUANDO SE TRATA DA HISTÓRIA DE PORTUGAL e Espanha é a generalização da atuação do clero católico Até mesmo estudiosos de peso costumam atribuir todas as decisões ao papado a Roma ou mesmo aos jesuítas como se tais instâncias tivessem todo o poder para avançar seus interesses Mas as generalizações desse tipo tornam quase impossível o entendimento de fenômenos muito importantes Tomese por exemplo o seguinte conjunto único de generalidades um mesmo rei governando Portugal e Espanha como ocorreu a partir de 1580 a notória união entre os jesuítas de todo o mundo relações muito especiais com o papado duas colonizações que fundamentavam suas pretensões jurídicas em bulas papais Tudo isso pode levar a imaginar que se tratava de uma realidade católica única sobretudo no que se refere a questões de governo Mas tal impressão não se sustenta diante dos fatos históricos Os jesuítas desembarcaram no Brasil em 1549 diretamente a serviço do rei D João III Como eram financiados pela Coroa não perderam tempo disputando esmolas de fiéis e concentraramse na conversão da população nativa o que não quer dizer que descuidassem do resto Também montaram uma rede de colégios para formar na terra os seus sacerdotes tudo financiado com dinheiro do rei Tornaramse empresários explorando propriedades muito lucrativas sobretudo na Bahia e no Rio de Janeiro Criaram e se beneficiaram da política de aldeamentos Ao fim do século XVI havia nada menos que 169 jesuítas empenhados em todo esse projeto Sendo uma ordem centralizada e geradora de um fluxo regular de informações todos os inacianos eram obrigados a redigir relatórios trimestrais de suas atividades todos os colégios reuniam a informação de sua área e produziam relatórios consolidados todas as províncias faziam o mesmo em relação a Roma algo raro na época tinha nesse sentido uma atuação fortemente coordenada Mas havia também barreiras importantes No mesmo ano de 1600 apenas oito jesuítas espanhóis atuavam em toda a bacia do Prata concentrados na área de Córdoba Em toda a América hispânica do México à Patagônia o número total de jesuítas era inferior ao do Brasil Nenhum desses jesuítas tinha qualquer privilégio do rei de modo que para sobreviver precisavam disputar com outros clérigos o bolo das esmolas dos moradores E eram alvo sobretudo dos 2 mil franciscanos agraciados com favores imperiais e espalhados por todos os territórios hispânicos As críticas concentravamse quase sempre na política dos inacianos de não dispersarem esforços em missões de evangelização dos nativos que implicavam custos e não geravam receitas e se dedicarem apenas aos colégios e suas rendas Tal diferença da situação financeira dos inacianos no Brasil e na América espanhola não se devia a uma decisão da ordem e sim ao modo como haviam sido avaliados pelos reis espanhóis Santo Inácio de Loyola nunca fez milagre em casa ainda vivo a ordem que fundou foi considerada estranha e pouco obediente aos monarcas de seu país natal Por causa disso os jesuítas tiveram de esperar até 1566 para receber a autorização para se instalarem no Peru A atuação deles incluiu períodos favoráveis com os colégios funcionando e desfavoráveis expulsões gerais Só a partir da década de 1580 no reinado de Felipe II teve início o que se poderia chamar de participação mais regular Então em 1598 com Felipe III os jesuítas passaram a desfrutar a confiança do monarca Quase em seguida à ascensão deste ao trono jesuítas graduados foram inspecionar as propriedades e conventos da ordem na região do rio da Prata Nos locais em que os padres instalaram unidades de produção a realidade era uniforme trabalho forçado dos nativos através de uma instituição chamada encomienda legal em todo o território e de emprego generalizado Para surpresa dos padres os superiores ordenaram que fossem libertados todos os encomendados que até então os haviam servido sem qualquer reclamação Em 1607 o rei financiou o transporte e a instalação em Buenos Aires de oito jesuítas encarregados de ali fundar um colégio dobrando o número dos inacianos na região Dois anos depois não apenas mandou pagar as despesas de outros 20 padres como determinou ao governador de Tucumán que entregasse à ordem um colégio já existente e lhe assegurasse 2 mil pesos de renda anual Em 1610 outra leva de mais 27 padres Numa década o número passou de oito para 63 Nessa etapa inicial foi estabelecida uma rede de colégios e fazendas que interligavam a bacia do rio da Prata com a região mineradora de prata de Potosí então possivelmente a cidade mais populosa do mundo 200 mil habitantes contra 60 mil de Roma por exemplo Foi nessa altura que se delineou para eles um alvo o Paraguai Desde 1537 ali predominava uma aliança entre espanhóis e Guarani que era mais forte e mais dinâmica do que aquelas firmadas entre portugueses e índios Tupi entre outros motivos pelo ímpeto inicial pois formada a partir do casamento de 300 espanhóis com mulheres Guarani Tendo Assunção como centro espraiarase por uma série de vilas no interior do continente Com o tempo a área transformouse em abastecedora da região mineradora peruana Milho algodão tabaco e especialmente a nativa erva mate passaram a ser cada vez mais cultivados Mas o fluxo também eventualmente incluía escravos inclusive vários Tupi brasileiros que eram registrados ao passarem pela alfândega em Tucumán já no caminho de Potosi A vida política seguia em plena normalidade nas três esferas de governo hispânicas câmaras eleitas governando nas vilas um governador na província do Paraguai um vicerei em Lima A legislação espanhola também seguia o tradicional modelo corporativo ainda que com as necessárias adaptações E no Paraguai a mais notável adaptação era o uso da encomienda como reguladora das relações entre moradores e nativos em quase tudo iguais àquelas vigentes com os Tupi brasileiros As alianças eram firmadas por meio de casamentos com as mulheres dos grupos nativos e sobre tal base se estabeleciam os fluxos econômicos de excedentes e militares que asseguravam o domínio territorial Enquanto chefes e pajés comandavam os grupos os genros cuidavam do comércio Com tal aliança os Guarani tornaramse senhores únicos de uma vasta área mesmo tendo de enfrentar inimigos mais organizados do que a maioria dos Tupi brasileiros Os utensílios de ferro ajudavam a consolidar o domínio enquanto os produtos de troca enriqueciam os aparentados das vilas Os paraguaios alimentavam planos próprios de expansão Em 1603 enviaram uma comitiva a São Paulo com a finalidade de formar uma aliança entre as duas vilas que fosse capaz de garantir um caminho seguro de abastecimento entre o porto de Santos e Potosí algo plausível uma vez que ambos eram súditos do mesmo monarca Não durou muito tal otimismo Em 1609 apareceu em Assunção o padre Diego Torres superior jesuíta levando planos para abrir missões em três frentes na região Para tanto recebeu ajuda dos franciscanos que havia décadas mantinham missões entre os Guarani gramáticas Guarani escritas pelo frei Bolaños e até catecúmenos emprestados para ajudar No início do ano seguinte enquanto o governador era substituído correram em Madri acusações de que os franciscanos paraguaios se aproveitavam do trabalho nativo No final de setembro de 1610 o superior Torres em carta ao rei Felipe III afirmou que o serviço dos nativos era contra o direito natural e divino Era a senha para a repetição de uma institucionalização semelhante à que ocorrera no Brasil mas na qual os jesuítas espanhóis teriam outro papel O rei enviou então ao Paraguai o visitador Domingo de Alfaro e no dia 12 de outubro de 1611 este promulgou uma nova legislação inteiramente contrária à tradição a fonte de legitimidade para as leis naquele tempo Conhecidas como Ordenações de Alfaro elas dispunham que um único direito passaria a vigorar para os Guarani o direito natural à liberdade Esse novo direito deveria substituir o antigo vínculo da encomienda Com a implantação do novo quadro jurídico os moradores ficavam legalmente proibidos de muitos atos que haviam sido legais na véspera como obter trabalho cobrar tributos comerciar morar próximo manter gado perto de aldeias ter nativos operando moinhos participar de guerras ou incursões pela mata empregar índias como ama de leite e claro casar com índias segundo os costumes Guarani ou reconhecer os filhos desses casamentos Além de todas essas proibições para os moradores as Ordenações de Alfaro traziam uma longa lista de privilégios para os Guarani que fossem morar nas reduções dos padres jesuítas entre eles isenção total de tributos por dez anos A despeito dos protestos de toda espécie os inacianos conseguiram se impor depressa para além do apoio do rei mostraramse preparados para a missão que haviam cuidadosamente planejado E contavam com um conhecimento obtido na prática O modelo de atuação português desenvolvido em décadas com apoio dos monarcas de Lisboa inclusive os Felipes espanhóis baseavase no aldeamento Este funcionava sem que os padres entrassem no sertão os jesuítas portugueses eram obrigados a seguir um regulamento que os proibia de sair da área central das vilas com isso os aldeamentos só recebiam nativos trazidos por moradores O modelo da redução apresentado pelos jesuítas espanhóis à Coroa castelhana ia muito mais longe Previa a entrada dos padres no ambiente nativo dos Guarani visando o domínio exclusivo e monopolista de todas as relações espirituais e materiais destes com o mundo colonial Para funcionar os padres teriam de alcançar dois objetivos simultâneos converter e chefiar Não era exatamente fácil mas foi feito depressa por um caminho preciso Em vez de se aliarem a chefes como faziam os moradores os padres tomaram o lugar dos pajés Como conheciam a cultura religiosa dos Guarani os padres apareciam falando como os grandes profetas os caraíbas Prometiam transformar a redução na Terra Sem Mal o paraíso que só os caraíbas conheciam Listavam os males que seriam afastados com a adesão do grupo às reduções não haveria mais guerras nem exploração por parte dos espanhóis e portugueses Falavam do bem fartura de alimentos vida em paz Os pajés que criticavam o discurso eram chamados de mentirosos presos e supliciados Bemsucedido o missionário anulava uma esfera de poder na cultura tradicional e assumia também uma posição que lhe permitia controlar os excedentes produtivos e a vida econômica Havia argumentos para convencer também os chefes mais fartura a oferecer nas alianças sob a forma de utensílios de ferro de sementes ou de gado Para os demais havia a receita descoberta por José de Anchieta estabilizar a vida da maioria das famílias com os casamentos monogâmicos de primos cruzados Tudo isso promoveu um progresso acentuado nas reduções A produção logo crescia com a introdução do gado e de técnicas de plantio europeias Uma vez produzidos os excedentes entrava a questão de como distribuílos antes resolvida por chefes ou pajés agora pelos padres Toda produção ia para eles que substituíam chefes e pajés na função de redistribuir os excedentes e eles tinham muito para redistribuir Cumpriam a promessa de evitar guerras de modo que sobrava força para o trabalho tornaram o trabalho mais produtivo com a mescla de novas técnicas Os efeitos do imenso crescimento da produção possivelmente beneficiaram as duas partes no momento de redistribuir Aos índios reduzidos pela melhora da dieta sem exigir sobrecarga de trabalho Aos padres pela imensa riqueza que acumularam com a parte do excedente de produção que retinham para si e comercializavam em Potosí distribuído com ajuda da rede de propriedades por todo o caminho As consequências foram notáveis Em apenas três anos passaram a funcionar nada menos de 19 reduções jesuíticas no Prata nas quais atuavam 101 padres Com uma década de ação em 1622 havia na Província do Paraguai 11 colégios duas casas comunais uma de noviciado Além disso as fazendas e propriedades distribuídas pelo vicereinado do Peru chegavam às dezenas a maior propriedade a do Colégio de Buenos Aires estendiase por 2 mil quilômetros quadrados e o total de padres na região chegou a 194 Em apenas uma década a influência ativa da Coroa em todo o processo permitiu que a Companhia de Jesus construísse uma estrutura no Paraguai maior do que a implantada em 70 anos de atuação no Brasil Além do domínio monopolístico das relações com os Guarani reduzidos parte do êxito financeiro do empreendimento se devia ao fato de que os padres tinham isenção tributária em todos os negócios não apenas naqueles com os índios Mas houve também quem perdeu e muito com a mudança Os ganhos obtidos nos negócios com os excedentes Guarani antes eram apropriados pela população paraguaia o que evidentemente deixou de ocorrer Para piorar a situação dos moradores os jesuítas não pagavam impostos o que lhes conferia enorme vantagem em relação aos comerciantes locais Como resumiu o historiador paraguaio Blas Garay todo o benefício recebido pelos jesuítas implicava prejuízos para os espanhóis cujos comércios minguavam enquanto aquele prosperava1 A primeira reação de peso para aliviar a situação dos moradores veio da parte do bispo de Assunção Tomás de Torres outro dos perdedores Antes da chegada dos jesuítas o bispo comandava o clero e recebia rendas depois tornouse figura sem poder Para mudar as coisas tentou transformar algumas reduções em territórios sob sua jurisdição em 1623 Acabou tendo de deixar a cidade em meio a uma concentração de tropas Guarani trazidas das reduções que saltaram de 19 em 1622 para 40 em 1628 Nessa altura a expansão para leste começava a ultrapassar o território Guarani e surgiram as primeiras tentativas de instalar reduções entre os Caingangue povos Jê que dominavam o território intermediário entre o dos Guarani associados a espanhóis do Paraguai e o dos Tupi associados a portugueses em São Paulo Logo depois surgiram reduções que recebiam Tupi fugidos de São Paulo em busca de proteção e planos para entrar no antigo território da Coroa portuguesa A justificativa para tal ação apareceu pela primeira vez numa carta privada do padre Nicolás Durán firmada em Buenos Aires em 24 de outubro de 1627 Ela informava da existência de reduções a dez dias de marcha de São Paulo e que esta vila era habitada por moradores de tal forma selvagens que uma vez tomados índios cativos os tratam com tanta crueldade que não parecem cristãos matando as crianças e os velhos que não podem andar e dandoos como alimento para seus cães2 O argumento foi repetido literalmente numa carta enviada pelo procuradorchefe dos jesuítas espanhóis ao Conselho das Índias em 31 de agosto de 1628 pela qual pedia licença para dar castigo exemplar a tais pecadores3 O Conselho aprovou a ideia mesmo sabendo perfeitamente que estava dando ordens para súditos espanhóis agirem em território da Coroa portuguesa Menos de duas semanas depois em 12 de setembro de 1628 o rei Felipe IV ordenava ao governador de Buenos Aires que por todos os meios possíveis capture e castigue os delinquentes paulistas que tratavam índios com tanta crueldade que dão as crianças e os velhos que não podem andar como comida para seus cães4 São Paulo a vila a ser atacada por sua vez passava por uma mudança Até 1620 havia sido governada apenas pelos homens bons eleitos para a Câmara Os representantes dos donatários eram figuras distantes até a chegada de Fernão Vieira Tavares que apareceu com uma carta que o nomeava representante do donatário da capitania de Santo Amaro doada 86 anos antes a Pero Lopes de Sousa e desde então abandonada Recorrendo a truques e com o apoio de outros interessados forjou uns tantos papéis que colocavam as vilas de São Vicente e São Paulo nos domínios dessa capitania Os moradores da vila eram parceiros de negócios daqueles que viviam no lado espanhol e sentiram os efeitos do empobrecimento deles Quando as reduções ultrapassaram a fronteira Guarani o sucessor do novo representante do donatário seu filho Antônio Raposo Tavares juntouse à Câmara para declarar guerra justa contra os espanhóis em 1628 sem saber que no mesmo momento o rei espanhol dava ordens militares de mesmo sentido Nesse exato momento surge em São Paulo um providencial representante do acaso Luis de Céspedes Xería havia sido nomeado governador do Paraguai em 1625 Devido à invasão da Bahia pelos holandeses a sua viagem foi repleta de peripécias e contratempos Depois de roubado e preso o governador desembarcou no Rio de Janeiro em 1628 Ali acabou acertando um casamento com Vitória de Sá bisneta de Estácio de Sá e irmã do governador Martim de Sá Luis de Céspedes também nada sabia das ordens de seu rei A fim de alcançar o quanto antes os seus domínios resolveu cortar caminho por São Paulo aonde chegou em junho de 1628 três meses antes de o soberano espanhol conclamar à punição dos paulistas Partiu quase ao mesmo tempo que as tropas formadas por Tupi aliados e moradores Em Guairá no centro da área de reduções escreveu ao superior das missões padre Antonio Ruiz de Montoya pedindo que organizasse uma comitiva para visitálas Ficou furioso com a recepção que lhe deram Recebi míseros 15 índios com duas canoas5 Foi um momento crítico Houve pequenas escaramuças militares em três reduções com duas vitórias espanholas e um máximo de 14 mortes se admitidas todas as relacionadas pelos jesuítas Mas a conjunção da presença de um governador das tropas paulistas e do apoio dos moradores locais reforçou o discurso repetido por todos os atacantes o padre Montoya era um falso caraíba a prometida Terra Sem Mal não existia e os moradores das reduções já não eram guerreiros mas apenas covardes O padre Montoya sabia que era visto como caraíba Entre os Guarani corre o boato de que eu sou TepãEté o verdadeiro Deus Sabia também das vantagens ser ouvido como Deus e desvantagens ser morto em caso de mentir da posição Perdeu parcialmente a guerra das palavras Os padres Stuck e Mansilla autores de uma denúncia contra os paulistas mostraram o efeito das palavras destes entre os índios das reduções Devido ao que ouviram imaginam que somos traidores e que temos relações secretas com os portugueses e por isso andam em grupos procurando os padres para os matarem6 As palavras mostraramse mais eficazes do que as armas Se os mortos foram 14 as dissensões levaram 60 mil índios a abandonar as reduções Todo o conjunto de missões do Guairá foi desarticulado Com vistas a salvar as reduções mais antigas nas quais toda uma geração havia crescido em contato com os padres e onde a palavra destes não foi posta em dúvida Montoya chefiou a transferência de todos para uma nova Terra Sem Mal no vale do rio Uruguai No sentido inverso desfizeramse as vilas espanholas de Guairá e Vila Rica com os moradores transferindose para São Paulo com todos os aliados nativos que puderam levar Essa vitória ampliou de forma exponencial o território governado pelos moradores da vila de São Paulo e seus aliados nativos Uma vasta área que incluía os territórios dos Caingangue e dos Guarani o espinhaço central e as bacias leste dos rios Paraná e Paraguai passou a ser incluída no domínio paulista Na própria São Paulo quase metade da população da vila era de espanhóis e Guarani Sem nenhuma ação do governogeral contra o rei apenas pela ação dos moradores marginalizados legalmente crescia o domínio português numa época crucial CAPÍTULO 10 Governos da Holanda O INVESTIMENTO HOLANDÊS PARA IMPLANTAR UM GOVERNO NO BRASIL SEGUIU UM caminho único organizandose em torno de uma empresa a Companhia das Índias Ocidentais fundada em 1621 Esta reuniu capital com a venda de ações e tinha o lucro como objetivo assim o governo de novas terras era um meio de obtenção de renda Mas a organização tinha outras peculiaridades A formação da empresa era parte de um longo esforço de guerra pelo qual o país tentava libertarse da Espanha E a guerra tinha fundamentos religiosos na medida em que a Igreja calvinista se constituíra em religião oficial do Estado holandês Por causa disso o governo era acionista e a Igreja tinha papel dominante na condução da companhia Os primeiros anos de sua existência foram de altos e baixos em decorrência da modalidade de atuação escolhida a pirataria Essa opção por sua vez deviase ao fato de os holandeses contarem com muitos navios armados e pouca gente para os empreendimentos de longo prazo Dadas essas condições em certo momento o Brasil passou a ser visto como alvo promissor de um ataque Em 1624 uma esquadra da companhia investiu contra a cidade de Salvador que foi tomada e devidamente saqueada os armazéns repletos e as alfaias de prata das igrejas acabaram pagando com lucros a parte inicial do plano Pelos cálculos dos invasores a tomada da capital obrigaria os moradores da região a vir comerciar na cidade onde teriam de pagar o que lhes fosse pedido pelas mercadorias trazidas na frota aumentando o lucro da incursão Mas as coisas não saíram conforme o planejado A imensa maioria dos moradores refugiouse no interior Ali havia todo o necessário para viver bem e também reservas de tropas a serem mobilizadas Assim foram organizados grupos de índios e europeus que fustigavam os invasores toda vez que estes se aventuravam fora da cidade Em consequência os invasores é que ficaram na dependência do abastecimento naval Por isso não foi difícil para uma frota lusoespanhola forçar a retirada dos holandeses em 1625 No caminho de volta alguns navios atracaram na Paraíba encontraram um grupo Tupi que os recebeu amigavelmente e levaram cinco nativos para serem devidamente educados em outros moldes Os indígenas foram entregues a pastores que então viviam momentos de transição As doutrinas protestantes eram fundadas na exegese do texto bíblico Exigiam a adesão consciente a uma interpretação dele algo que desde Jean de Léry era evidente que estava fora do alcance de povos iletrados O primeiro território de contato maciço de missionários reformados com nativos americanos havia sido os Estados Unidos e desse contato não resultaram exatamente conversões e compreensão como notou a historiadora Betty Wood Os puritanos passaram a interpretar o comportamento dos nativos de modo a reforçar sua imagem de bárbaros ou incivilizados Estes não só ameaçavam a civilização inglesa como punham em risco a própria sociedade puritana Os colonos passaram a dizer que os nativos teriam recebido a custódia da terra de Deus mas eram incapazes de ter noção exata das finalidades para as quais ela foi criada de modo que podiam ser declarados como tendo perdido o direito sobre a terra onde estavam1 Essas justificativas teológicas serviram de fundamento a várias políticas proibição de casamentos interraciais guerras de extermínio tratamento dos nativos como membros de nações inimigas nada muito diferente do que os católicos faziam no sul do continente com a exceção dos casamentos de aliança A presunção de maior humanidade protestante no início do século XVII aplicavase mais à escravidão Esta era quase inexistente nos Estados Unidos e considerada em geral como instituição selvagem e ao gosto do primitivismo católico Alinhados a essa posição os estatutos da Companhia das Índias Ocidentais revistos por pastores proibiam expressamente que a empresa se dedicasse ao tráfico de escravos Enquanto a Companhia das Índias Ocidentais procurava se consolidar chegou uma grande notícia o almirante Peter Heyn conseguira 85 toneladas de prata ao atacar a frota anual que levava para a Espanha a produção de toda a América Com isso os planos para atacar Pernambuco foram acelerados A frota com 67 navios e 7 mil soldados vinha preparada para uma campanha prolongada Depois de algumas tentativas os invasores conseguiram tomar Olinda e Recife Repetiram o procedimento de saque e devastação das igrejas e armazéns Tal como havia ocorrido na Bahia os moradores que puderam se retiraram para o interior A produção de açúcar passou a ser despachada de portos alternativos Diante da paralisia econômica os holandeses adotaram uma medida drástica arrasaram Olinda a fim de diminuir as guarnições necessárias Expulsaram definitivamente tanto os padres regulares como os pertencentes às ordens dos jesuítas franciscanos carmelitas e beneditinos que viviam em mosteiros Os jesuítas foram presos e mandados para a Holanda No entanto não agiram com o mesmo rigor nos aldeamentos Durante a estadia na Holanda os nativos Potiguar não apenas se converteram mas mostraram que fazia sentido para sua cultura a vida regrada em torno de uma igreja e assim se tornaram arautos de uma outra modalidade de aliança com o apoio das autoridades holandesas Tal como os jesuítas os governantes declararam os índios livres por direito natural algo que não acontecia na América protestante Além de ampliar o escopo da doutrina isso tornou possível uma ajuda essencial Os convertidos convenceram muitos parentes a lutar ao lado dos holandeses de forma que não demorou muito para que um terço das tropas em combate fosse de índios Potiguar Essa ajuda foi essencial para que as tropas holandesas treinadas para lutar em condições europeias se adaptassem aos ataques de guerrilha e ações na mata dos adversários Com isso depois de dois anos de cerco alterouse o equilíbrio das forças A área de produção no interior foi invadida e os engenhos foram tomados A resistência foi sendo quebrada de ponto em ponto Até o final de 1636 toda a vasta área de domínio dos pernambucanos do Maranhão até a foz do rio São Francisco caiu sob domínio holandês Por todo o período praticamente nenhuma ajuda veio de fora O domínio do território trouxe a necessidade de reestruturar o governo dos holandeses Enquanto a emergência militar presidia as ações tudo se justificava pela lógica dos combates dos saques aos aprisionamentos as ações governativas eram decididas por uma junta de autoridades militares políticas e eclesiásticas A vitória significou não apenas o fim das oportunidades fortuitas como a necessidade de reiniciar a produção que havia sido desarticulada E isso teria de ser feito nos moldes empresariais que estavam por trás de todo o empreendimento A mudança de atitude foi decidida nas assembleias da Companhia das Índias Ocidentais nas quais os acionistas e os pastores que votavam nem sempre tinham os mesmos objetivos em mente Havia vários dilemas a resolver Do ponto de vista do negócio o problema era o de fazer mais investimentos bem num momento em que as fontes de recursos que sustinham a empreitada os saques começavam a rarear Além disso para retomar a produção seria preciso agregar gente e capacidades algo mais complexo do que construir uma nova infraestrutura uma vez que os prédios e instalações dos engenhos haviam sido preservados Como não havia gente nem capacidade entre soldados era necessário encontrálas onde fosse possível Para atrair operadores de engenho e mão de obra alguma oferta deveria ser feita Também havia impasses entre os acionistas religiosos a Igreja calvinista era parte do governo de modo que os pastores esperavam algum tipo de ganho no terreno das almas Por isso tinham apoiado medidas repressivas como a interdição de missas católicas em lugares públicos e com portas abertas apenas os cultos tinham essa permissão Em suma queriam conversões Mas enfrentavam diante dos católicos que falavam português os mesmos obstáculos que os afastavam dos nativos dificuldades de língua e de métodos para mostrar a verdade revelada a partir do texto sagrado pois os moradores eram quase todos analfabetos Não queriam relaxar o tratamento aos recalcitrantes tinham muito pouca disposição para permitir a livre prática do catolicismo e facilitar negócios com os seguidores dessa fé A solução de compromisso foi entregar o governo de Pernambuco a um nobre holandês o príncipe Maurício de Nassau Ele tinha prestígio suficiente entre os acionistas para receber uma delegação contratual de autoridade que lhe permitiria decidir com autonomia Como o acordo também lhe propiciaria muito dinheiro ele contratou uma corte inteira de serviçais para acompanhálo médicos naturalistas pintores administradores artesãos e até lavadeiras O príncipe atraiu ainda um grupo muito especial os judeus sefarditas de Amsterdã com suas conexões seus conhecimentos do mercado e seus capitais assegurandolhes um ambiente de tolerância religiosa de modo que puderam instalar no Recife a primeira sinagoga das Américas Essa tolerância não foi bemvista pelo clero calvinista da cidade Por algum tempo os religiosos acusaram os judeus de controlar o comércio e a produção de açúcar e açambarcar as melhores oportunidades de negócio Mas o máximo que obtiveram foi a restrição de que os cultos ocorressem em ambiente fechado Quanto aos católicos os cultos públicos foram efetivamente proibidos apenas no Recife onde os fiéis só podiam assistir a missas em recintos fechados da mesma forma que os judeus nas sinagogas Mas a política para o interior foi de cegueira ostensiva autoridades soldados e pastores fingiam não ver toda espécie de rito nas vilas e engenhos desde as missas solenes até as procissões com índios e os cultos africanos Tais atos eram duros de engolir pelos pastores mas a necessidade de integrar todos à produção falou mais alto A pregação protestante acabou avançando sobretudo nos aldeamentos Ali aproveitaram as capelas simples e sem aparatos para os cultos Havia nativos já convertidos que pregavam em nhengatu a língua geral TupiGuarani e logo dois pastores holandeses se mostraram capazes de fazer o mesmo com grande sucesso As idiossincrasias locais acabaram indicando um caminho adaptado às condições existentes Nassau ajudou na produção de uma cartilha trilíngue holandês nhengatu português que era distribuída como instrumento para tentar firmar uma conversão consciente baseada na leitura da Bíblia como era da raiz do protestantismo Somando tudo a ação de Maurício de Nassau foi suficiente para permitir que a complicada engrenagem religiosa gerida pelo trio governo companhiaigreja girasse sem atritos nem solavancos excessivos e que ele concentrasse a atenção na tarefa de reorganizar a produção Ele acelerou a redistribuição dos engenhos tomados a novos proprietários privilegiando os que tinham conhecimento anterior e capacidade de reunir a mão de obra essencial para produzir cana e açúcar Havia muito a fazer pois a produção despencara para um terço do volume anterior à instalação do novo governo Em seguida Nassau atacou depressa um ponto essencial os combates haviam desarticulado as equipes treinadas que movimentavam o complexo maquinário dos engenhos que não eram formadas apenas por técnicos A produção dependia de trabalho de equipes em turnos e a maioria desses trabalhadores era de escravos africanos Nassau não hesitou em passar por cima dos estatutos da empresa que proibiam o tráfico Uma das suas primeiras providências foi a de enviar uma esquadra com tropas mistas de índios e soldados para tomar o forte de São Jorge da Mina o maior entreposto escravista português na África No primeiro ano de sua gestão os desembarques dobraram Pastores e empresários que formavam o Conselho dos 19 órgão máximo de direção em Amsterdã entenderam que as necessidades da produção estavam então muito acima de eventuais considerações religiosas de modo que mais essa adaptação se fez com pouco ruído No que de fato interessava os objetivos de produção da Companhia das Índias Ocidentais logo foram atingidos Já em 1642 depois da tomada de Angola as entregas de escravos africanos em Pernambuco atingiram 14 mil cativos e a produção recuperou o nível anterior à invasão Como se tratava de uma companhia a expectativa era a de que a elevada produção resultasse em lucros no balanço mas o que se viu foi exatamente o contrário E esse balanço trazia uma totalidade complexa assim descrita pelo historiador Niels Steensgard O governo era gerido como um negócio não como um império Garantindo a sua própria proteção as companhias não apenas se apropriavam de tributos mas também se tornavam capazes de determinar a qualidade e o custo da defesa Este era trazido para a órbita do custo racional e não deixado ao sabor dos atos de Deus e dos inimigos do rei2 Na órbita do custo racional as despesas com defesa do governo holandês no Brasil eram bem maiores que as necessárias para manter a raquítica máquina do governogeral português A defesa holandesa era garantida por uma tropa remunerada de europeus que lutavam contra exércitos organizados por conta de moradores que não custavam um real ao governo português O governo holandês era caro em relação ao português porque pagava em dinheiro uma despesa que sempre fora coberta pelos moradores Essa realidade aparecia no balanço da companhia como despesa e os acionistas esperavam recuperála como lucro por meio da cobrança de impostos dos produtores Mas também pelo lado desses produtores havia outro problema no balanço da companhia Para recolocar as moendas em funcionamento não bastou o dinheiro dos investidores da Holanda Muitos dos novos proprietários julgaram prudente comprar escravos e instrumentos a crédito e a companhia aceitou bancar os pedidos com seu caixa Depois os novos senhores conseguiram financiar o custeio das safras com a companhia Sob o governo português eles mesmos bancavam tudo isso Quando chegou a produção e fechouse afinal o balanço veio o susto o déficit resultante dos custos de defesa financiamento de escravos e custeio das safras era alarmante Da análise do balanço nasceu uma crise de governo os acionistas ficaram descontentes com a pouca disposição do príncipe para sair cobrando dívidas dos produtores e decidiram que era hora de fazer caixa Nassau foi chamado de volta e os novos administradores saíram executando dívidas dos mercadores do Recife que apertaram os comerciantes do interior que apertaram os produtores que reagiram de modo inesperado Chefiada por João Fernandes Vieira o segundo maior devedor da companhia uma revolta explodiu em 1645 Em poucas semanas todo o território do interior tão duramente conquistado foi perdido O governo holandês viu o seu espaço de domínio limitado ao Recife e o balanço da Companhia das Índias Ocidentais foi acumulando registros de prejuízo em praticamente todos os empréstimos feitos a empresários além de refletir o aumento nos custos de defesa Os empresários holandeses não perderam tudo Os anos de experiência foram suficientes para que percebessem a elevadíssima produtividade comparada à época do trabalho escravo organizado em turmas Muitos se mudaram para o Caribe onde a produção de açúcar era entremeada com a de tabaco e milho em pequenas propriedades Aonde chegavam mudavam tudo depressa O historiador Eric Williams narra um dos muitos casos Os holandeses expulsos do Brasil chegaram a Barbados para ensinar aos habitantes os segredos da cultura e da manufatura do açúcar Havia 11 mil proprietários na ilha por volta de 1667 estavam reduzidos a 745 e o número de escravos elevado de 6 mil para o formidável número de 82 mil o que fez da ilha a mais preciosa pérola da Coroa britânica3 O mesmo ocorreu em todo o Caribe e até mesmo nos Estados Unidos onde judeus saídos de Pernambuco compraram a ilha de Manhattan Em pouco tempo toda a produção foi adaptada para o trabalho de grandes turmas de escravos em especial nas plantações de tabaco da Virgínia Essas mudanças na estrutura produtiva de toda a América a partir de variações de um mecanismo desenvolvido no Brasil marcam duplamente um novo momento No cenário econômico do continente mercantilismo e escravismo serão as notas dominantes de uma forte concorrência entre territórios coloniais das diferentes nações que se engalfinharam em algum momento pelo domínio do Brasil mais a Inglaterra Todavia no cenário interno a partir da segunda metade do século XVII haverá um único governo central atuando no território aquele de Portugal Mais de um século e meio havia se passado desde o primeiro contato dos portugueses com a terra um século se passara desde a instalação formal do governogeral em Salvador Nesse longo intervalo a evolução política e econômica do Brasil acontecera num ritmo inverso ao da metrópole Esse contraste é atualmente conhecido em grandes números muito diferentes das suposições que formaram a base da interpretação dos clássicos Essa diferença de ritmos coloca em novas bases a avaliação do papel do governo metropolitano e de sua oficina brasileira o governo central CAPÍTULO 11 Economia colonial economia metropolitana e o lugar do Brasil QUANDO PASSOU A SER GOVERNADO PELA COROA ESPANHOLA EM 1580 PORTUGAL ainda era o mais avançado centro de navegação do planeta seus navios mantinham domínios no Brasil na costa africana na Índia em Macau e no Japão O país só viria recuperar a independência política em 1640 e estabilizarse como nação soberana em 1661 ao assinar um tratado de paz com a Holanda No intervalo perdeu o domínio da tecnologia naval para a Inglaterra sobretudo devido à invenção do cronômetro e ao cálculo da longitude e a maior parte das suas possessões africanas e asiáticas Tornarase apenas uma potência secundária no cenário europeu A evolução brasileira seguiu um rumo oposto Em 1560 o domínio português mal e mal firmarase em três pontos isolados no imenso litoral Pernambuco Bahia e São Vicente Além desses locais sobreviviam os assentamentos do Espírito Santo Porto Seguro e Ilhéus Havia apenas uma vila no interior São Paulo Todo o restante do litoral na vasta faixa que se estendia desde o Amazonas até o Rio de Janeiro era na prática território de negócios franceses Pelo interior do continente havia uma sólida base espanhola em Assunção a partir da qual se negociava ervamate no território dos atuais estados do Mato Grosso e Paraná além de fornecimentos variados para Potosí A expansão de domínio territorial e negócios a partir de cada um dos pontos centrais da aliança entre Tupi e portugueses foi notável Começando por Pernambuco em 1550 o domínio restringiase às cercanias de Olinda Nos setenta anos que se seguiram de Pernambuco partiram os conquistadores da Paraíba Rio Grande do Norte Ceará Maranhão e Pará O conjunto absorveu o impacto da invasão holandesa preservando o espaço amazônico Depois de 1645 todo esse território com exceção de Recife voltou a ficar sob domínio dos pernambucanos E tudo por obra dos moradores locais Da Bahia partiram incursões de criadores de gado com as quais ficou assegurado o domínio de todo o vale oeste do rio São Francisco A produção do Recôncavo baiano se diversificou com o cultivo do tabaco outra herança Tupi Em meados do século XVII Salvador abrigava 30 mil habitantes uma população equivalente à de uma grande cidade europeia e 70 mil moradores se distribuíam pelas vilas do interior Perto de uma centena de engenhos de açúcar instalados estavam em funcionamento na região Em 1580 mal e mal os moradores de São Paulo navegavam o Tietê Em 1661 os paulistas mantinham negócios com os nativos em toda a bacia oriental do PrataParaná área dos atuais estados do Paraná São Paulo Mato Grosso do Sul e Mato Grosso nos vales do Araguaia e Tocantins Goiás Tocantins e Pará nos vales dos afluentes do Tietê e na região dos formadores do rio São Francisco Minas Gerais Na esteira da expansão fundaram uma dezena de vilas pelo interior nas quais se fixaram algo como 50 mil pessoas Outro ponto de expansão se formou após a fundação do Rio de Janeiro em 1565 mas não na direção do interior graças a Salvador Correia de Sá o maior empresário brasileiro do século XVII Ainda jovem foi a Assunção levar a irmã que iria se casar com o governador Luis de Céspedes Xería Convidado para participar de incursões contra nativos locais virou herói em Tucumán onde se casou com uma rica herdeira A fim de ampliar os negócios da mulher foi até Potosí o centro da mineração de prata e de toda economia mercantil da América do Sul De volta ao Rio de Janeiro estabeleceu uma rede de trocas alternativa à dos paulistas pelo interior comprava escravos em Angola e os vendia para os espanhóis em Buenos Aires acumulando lucros sob a forma de moedas de prata Com a Restauração em 1640 conseguiu ser designado por D João IV para reconquistar Luanda que havia sido tomada pelos holandeses Com um exército de índios reunido no Rio de Janeiro para lutar na África ele cumpriu a missão e foi nomeado governador o primeiro de uma série de nativos da colônia a ocuparem o posto Remontou a estrutura de tráfico de escravos com capitais brasileiros de modo que toda a economia africana das possessões portuguesas se tornou uma extensão dos negócios de comerciantes estabelecidos na colônia brasileira A expansão internacional viabilizou a instalação local de meia centena de engenhos de açúcar alguns ao redor da cidade do Rio de Janeiro e a maioria na região de Campos dos Goitacazes O conjunto de atividades gerou volume de negócios suficiente para Salvador de Sá entrar em novos empreendimentos Na década de 1650 criou um estaleiro na ilha do Governador e nele iniciou com a contribuição de carpinteiros indígenas a construção do maior navio do mundo da época o galeão Padre Eterno Investimentos como esse exigiam muito capital O comércio com Buenos Aires e as incursões paulistas pelo vale do Paraguai constituíam uma rede de captação de prata e os indivíduos enriquecidos pelo interior deixaram de ser apenas aqueles casados com muitas mulheres índias e donos de muito gado e muitos títulos de terra Tanto quanto os produtores de açúcar e os comerciantes do litoral o surgimento de fortunas monetárias sob a forma de prata refletia uma acumulação de capital nos circuitos econômicos internos da América A prata originária da área espanhola não só permitia a acumulação de capital no interior do continente mas era essencial para manter a produção exportadora A expressão mais artística dessa forma de riqueza sobrevive até hoje em muitos pontos do país na miríade de objetos sacros de prata do século XVII Não se tratava apenas de religiosidade mas também de uma maneira de os proprietários de capital colocarem essa riqueza fora do alcance do Fisco o que leva à peculiar administração da Igreja pelo governo português Embora não permitisse que organizações religiosas tivessem propriedades com privilégios de nobreza na colônia o governo admitia exceções protegidas do Fisco estavam as riquezas incorporadas em objetos sacros das Santas Casas e das Ordens Terceiras do clero regular Graças a isso tais instituições puderam atuar como bancos Tinham capital em prata e emprestavam a juros transformandose em financiadoras da produção inclusive do açúcar e do tráfico de escravos As análises dos balanços feitas posteriormente revelaram indícios fortes de uma contínua acumulação de capital no século XVI e na primeira metade do XVII Essa lógica de acumulação conferia unidade à expansão contínua da aliança entre portugueses e Tupi Em 1661 essa aliança preservava o domínio dos negócios e o controle territorial em uma área que no caso do litoral estendiase desde o Amapá até o sul de Santa Catarina No interior essa expansão havia sido ainda mais intensa A partir de São Paulo os domínios continuaram a se dilatar Surgiram negócios com toda a área Jê do Espinhaço Central a mineração e a criação de gado levaram à ocupação do leste do Paraná em 1680 os paulistas fundaram Laguna no sul de Santa Catarina A partir de Pernambuco os domínios haviam se ampliado pela margem esquerda do São Francisco com os currais chegando ao Piauí no final do século XVII Após a fundação de Belém pelo grupo que tomou o Maranhão em 1620 as alianças com os Tupi permitiram acelerada expansão pela bacia amazônica avançando pelos vales dos rios Negro Tapajós e Araguaia Tocantins Em 1639 Pedro Teixeira comandou um grupo que chegou até Quito no Equador Uma figura interligou simbolicamente todo esse território Antônio Raposo Tavares estava entre aqueles que desarticularam as reduções espanholas em 1629 em seguida participou de uma incursão ao Rio Grande do Sul lutou contra os holandeses desembarcou no Rio Grande do Norte em 1639 e percorreu 3 mil quilômetros pelo sertão nordestino até chegar a Salvador Partindo de São Paulo em 1648 embrenhouse pelo território Guarani atravessou o Pantanal matogrossense adentrou o espaço da atual Bolívia atravessou o divisor das bacias do Prata e do Amazonas desceu o Guaporé e o Madeira e foi dar em Belém três anos e 18 mil quilômetros depois da partida Marcou assim novos limites interiores da área controlada pela aliança que agora era dos TupiGuarani com os portugueses Diante do acentuado contraste nos ritmos econômicos do Brasil e de Portugal nesse período duas perguntas se impõem qual a relação existente entre as economias da colônia e da metrópole Qual o papel dos governos nessa realidade Uma resposta adequada à primeira pergunta mostra hoje muita produção local contrabando de moeda com a área espanhola para formar reservas metálicas que eram o capital da época e financiar a expansão Tudo confirmado pelo novo tratamento de dados documentais extraídos de contratos testamentos documentos fiscais ou contábeis Essas demonstrações de acumulação crescente de riqueza e desenvolvimento só ganham sentido para explicar esse período quando combinadas com as conclusões de antropólogos sobre a capacidade de produção de excedentes nas sociedades TupiGuarani desde os primórdios da aliança as trocas comerciais com as sociedades nativas eram em escala suficiente para permitir a acumulação de riqueza sob a forma de dinheiro e capital nas vilas Essa acumulação derivava sobretudo de várias atividades da produção interna pecuária agricultura alimentar farinhas feijão etc indústrias manufatureiras como tecelagem de algodão ou metalurgia do ferro transportes etc Mesmo na área exportadora algumas das maiores fortunas monetárias foram obtidas por criadores de gado e comerciantes da produção local alguns deles chegaram a reunir fortunas maiores que as dos senhores de engenhos Os estudos quantitativos revelam que todas as atividades internas ou externas geravam riquezas que os mais ricos em todas as localidades eram os comerciantes E que os mais ricos entre os comerciantes eram os traficantes de escravos africanos Os produtores agrícolas na exportação ou no mercado interno tinham fortunas menores Em áreas mais distantes da exportação como São Paulo as grandes fortunas monetárias eram obtidas a partir das trocas com os nativos e com a área espanhola vinculada à mineração da prata Tudo isso permite mostrar um retrato muito diferente não apenas nas áreas de governo Tupi mas também naquelas das vilas do sertão daquele obtido com o emprego da noção de economia de subsistência unanimemente adotada pelos clássicos Tal noção gerou a descrição tradicional da economia das vilas ou do sertão nesse período como sendo uma economia de baixa produtividade incapaz de gerar excedentes sem dinâmica mercantil ao mesmo tempo que atribuía toda a dinâmica mercantil ao setor exportador Um único dado basta para mostrar que nesse período o setor exportador não era capaz de gerar dinâmica no mercado interno a produção de açúcar no Brasil em 1624 ano da primeira invasão holandesa foi de 960 mil arrobas esse volume somente seria atingido novamente mais de um século depois em 1737 quando foram produzidas 937 mil arrobas E os preços caíram continuamente na maior parte do período de 17 milréis por arroba em 1637 para 778 réis por arroba em 1689 Desse modo a grande expansão da área de domínio e também da riqueza mostradas pelos estudos quantitativos como existente desde o século XVI só pode ser devidamente explicada com uma radical mudança na forma de se entender tanto a produção interna como os governos e a vida no sertão Ainda que se ressalve o acentuado crescimento da produção de açúcar entre 1580 e 1624 quando o produto tornouse o mais importante das trocas entre as Américas e a Europa os levantamentos quantitativos sugerem que não há como sustentar o conceito de uma economia colonial dual formada por um setor interno sem dinâmica mercantil e um setor exportador concentrando o aspecto acumulador da produção Quando se reconhece na economia nativa a capacidade de gerar excedentes e a circulação desses excedentes tudo muda O que então se nota graças aos novos conhecimentos é um contínuo de acumulação que começa nas trocas de ferro entre tribos sem contato direto com europeus passa pelos ranchos nos quais os produtos eram guardados para serem trocados por ferro quando viessem parentes aliados desses grupos Tupi nativos ou moradores de vilas continua na atividade local de produção das vilas metalurgia gado etc na acumulação de dinheiro que financiava a produção exportadora e segue para além do espaço da aliança com o controle do tráfico de escravos africanos pelos capitais brasileiros ou o envio regular de navios com escravos para Buenos Aires e as trocas de prata pelo interior completando um circuito multinacional de acumulação centrado no Brasil Tal retrato econômico implica igualmente a necessidade de uma revisão sociológica A noção de economia de subsistência associada ao conceito de uma dualidade radical entre produção interna desprovida de dinamismo e setor exportador acumulador acabou por gerar uma série de definições dos papéis sociais segundo as quais a escravidão africana seria o indicador maior de dinâmica produtiva e portanto a clivagem central para entender a estratificação social e as disputas de classes pelos resultados da produção Para essa análise tradicional a sociedade do sertão seria apenas um conjunto indistinto de pessoas que viviam em regime de subsistência enquanto a produção exportadora concentraria a geração de excedentes significativos e portanto toda acumulação de capital seria fruto da espoliação daquilo que os escravos produziam para os seus senhores Nada disso porém faz muito sentido em face das descobertas mais recentes possibilitadas pelas novas metodologias Uma tradução sociológica mais acurada dessas descobertas tem de levar em conta uma gama de frações acumuladoras Havia aquelas realizadas por agentes que funcionam como produtores coletivos no caso dos excedentes gerados por nativos Mas a maior fração da produção econômica colonial cabia aos produtores independentes donos de seus meios de produção e tomadores de risco ou seja aos empreendedores Do ponto de vista sociológico os estudos quantitativos mostram que a unidade produtiva mais comum era a pequena posse largamente dominante ou propriedade seja individual ou familiar em múltiplas formas um curral de gado no sertão uma pequena roça próxima de uma vila os ganhos nas caravanas de trocas com nativos tecelagem artesanal venda de quitutes nas ruas nas vilas maiores pequeno comércio transporte trabalhos especializados fundição de ferro carpintaria construção etc Até o século XVII a regra praticamente geral era a de produzir tudo isso sem o emprego de escravos nas vilas espalhadas pelo vasto território da aliança Apenas nos maiores centros exportadores havia a presença da mão de obra cativa e mais cara em trabalhos competitivos com os empreendedores independentes Com tal retrato econômico e sociológico se pode avaliar de outra forma o papel dos diversos governos atuantes no período CAPÍTULO 12 Governo central e economia ASSIM COMO CONCENTRAVAM VALOR EXPLICATIVO NO SETOR EXPORTADOR OS clássicos focavam inteiramente na esfera central de governo a Coroa e o governogeral como a única relevante na determinação dos rumos da colônia Os novos conhecimentos obrigam a uma nova mirada sobre tal pressuposto tão unânime como a aplicação da noção de economia de subsistência Uma das maneiras mais simples para avaliar qualitativamente a atuação da esfera central de governo na economia do período é examinar o modo como operava os seus recursos financeiros captando impostos e gastando com serviços Desde o início do domínio espanhol em 1580 até pouco além da retomada da normalidade com o tratado de 1661 no final do século XVII os dados disponíveis mais constantes referemse na prática ao governo português como um todo no âmbito do império do qual o Brasil fazia parte No que tange às receitas que o império português obtinha com o Brasil o mais relevante eram as exportações da colônia E isso porque o governo central a soma de governo geral no Brasil com o metropolitano captava dinheiro de impostos da economia brasileira basicamente nas alfândegas locais ou na de Lisboa e sobretudo após a retomada de Angola em 1641 dos traficantes brasileiros que faziam negócios na África No princípio o rendimento com o Brasil era relativamente insignificante no contexto do império Em 1607 quando a produção exportável ainda estava sendo organizada as receitas brasileiras representavam apenas 5 do total arrecadado no vasto império mundial Nessa altura é provável que houvesse certo equilíbrio entre despesas e receitas e a ação econômica da esfera central na economia local seria de relativa neutralidade Em 1681 pouco depois da estabilidade as receitas tributárias extraídas do Brasil representavam metade de toda a arrecadação do império português Proporcionalmente a colônia passou a pagar dez vezes mais impostos do que no início do século Desde que o balanço com as despesas fosse preservado isso não seria problemático Mas não foi o que aconteceu No final do século XVII o Brasil fornecia cerca de 60 da receita tributária global de Portugal enquanto as demais partes do império ultramarino as possessões africanas com destaque para Angola onde traficantes brasileiros pagavam impostos além de uns poucos domínios asiáticos restantes forneciam 20 No total 80 das receitas tributárias do império vinham das possessões e apenas 20 dos moradores metropolitanos Naquilo que se refere às despesas 75 delas eram realizadas no Reino e 25 no ultramar Nesse cenário na melhor das hipóteses gasto zero na África e Ásia dois terços daquilo que os brasileiros pagavam em impostos eram transferidos para fora e gastos na economia metropolitana ou em outras partes do império Em outros termos ao longo do século XVII o governo central português se transformou numa máquina que extorquia muitos impostos e gastava apenas uma fração do arrecadado na economia brasileira Do ponto de vista fiscal o Brasil foi transformado naquilo que o rei D João IV definiu com total clareza como a vaca leiteira do Reino Essa mudança radical da posição do Brasil no cenário das finanças públicas do império português era um reflexo direto da decadência deste no cenário internacional durante o período Em 1621 sob quatro décadas de domínio espanhol as receitas ultramarinas e as despesas globais portuguesas ainda mantinham certo equilíbrio Apenas sete anos depois em 1628 as receitas alfandegárias haviam caído 30 e as da Casa da Índia se reduzido praticamente a zero A primeira reação do governo foi contratar empréstimos para cobrir o rombo na esperança de uma retomada Nesse primeiro momento a Coroa também aumentou os impostos pagos pelos metropolitanos Em 1632 no auge da crise da invasão holandesa os reinóis pagaram impostos para fornecer 58 das receitas Ainda assim a situação relativa lhes era favorável Somando receitas e despesas desse ano os metropolitanos pagaram 58 dos impostos e receberam de volta 81 dos gastos uma diferença favorável de 23 financiada sobretudo com empréstimos e receitas asiáticas Aos poucos foi ficando claro que a retomada das receitas ultramarinas não estava no horizonte e também que a política tributária apontava numa direção clara entre 1621 e 1641 os impostos pagos pelos metropolitanos tiveram um aumento de 55 especialmente na região agrícola do interior Os gastos também mostraram uma direção clara 46 das despesas de 1641 foram para o pagamento de juros quase todos devidos à burguesia mercantil de Lisboa Esse aumento relativo dos ganhos de uma burguesia mercantil que não tinha mais acesso a boa parte de seus antigos mercados fora do reino e feito à custa da nobreza e do funcionalismo se expressava num dado o pagamento de juros superou as despesas de manutenção de funcionários e nobres que em 1641 chegaram a 35 dos gastos governamentais O balanço entre esses dois maiores beneficiários da despesa pública mudou radicalmente com a Revolução de 1640 que levou um português de volta ao trono Uma das primeiras medidas do novo governo foi uma forte diminuição da carga tributária na metrópole que passou a responder por pouco mais de 20 da receita total quase um terço da proporção vigente apenas oito anos antes A partir daí sobrevivendo como pôde o governo manteve o mesmo rumo aumentando impostos no Brasil e diminuindo o quanto possível o pagamento de juros para a burguesia lisboeta em 1681 ano em que os tributos brasileiros representaram 50 das receitas totais do reino o pagamento de juros representou 25 do total das receitas contra 46 do que era pago na época em que mudou a dinastia e aumentando o quanto possível os pagamentos a nobres e funcionários nesse mesmo ano alcançaram 40 das despesas eram 25 em 1641 Essa política fiscal mostra com clareza o sentido da ação metropolitana arrancar dinheiro da economia produtiva do Brasil e transferir o máximo possível para o funcionalismo e a nobreza agrária do interior da metrópole Para isso valia quase tudo Em 1647 dois anos depois do início da revolta no território holandês com os moradores do Brasil bancando toda a luta e a produção ainda desarticulada o governo metropolitano instalou cobradores de impostos na região para a qual não havia enviado soldados Pior ainda a política fiscal não era a única ação prejudicial ao desempenho da economia colonial A partir de 1649 como forma de compensar as perdas da burguesia comercial lisboeta o monarca determinou a criação da Companhia Geral do Estado do Brasil criada a partir de um empréstimo do Tesouro ou seja dinheiro do governo Os acionistas que se beneficiaram do dinheiro eram os que emprestavam ao governo que passou a lhes garantir um monopólio e expulsou os comerciantes menores da rota Como resultado do monopólio aumentaram os preços das mercadorias metropolitanas para o Brasil e diminuíram os pagamentos para produtores A eficácia também diminuiu muito nos primeiros tempos a empresa só conseguia mandar uma frota a cada dois anos interrompendo na prática as importações e exportações por longos intervalos No caso do tabaco o tratamento foi ainda mais feroz Em 1675 o monarca transformou o comércio do produto em monopólio real Os resultados produtivos foram ruins as exportações caíram de 100 mil arrobas nesse ano para 80 mil arrobas em 1690 O preço pago pelo monopolista régio aos produtores caiu de 2 milréis por arroba em 1674 último ano antes do monopólio para 12 milréis em 1700 nada menos que 40 Mas o essencial para os objetivos metropolitanos foi o fato de que cada arroba exportada rendia agora 213 milréis para o governo metropolitano 80 a mais do que recebiam os produtores Em escala menor o mesmo tipo de medida monopolista foi adotado numa das capitanias administradas diretamente pelo rei a do GrãoPará e do Maranhão Em 1681 o governo criou o monopólio de comércio para a capitania e no ano seguinte o repassou a um particular O aumento extorsivo do preço dos produtos trazidos de Lisboa e a queda violenta dos pagamentos aos produtores locais foi a consequência direta do monopólio Este só cessou em 1684 quando eclodiu uma revolta popular que forçou o governo a abandonar a ideia Mas nem por isso acabou a ordenha fiscal nesse nível intermediário de governo O primeiro capitãomor enviado conseguiu aprovar na Câmara um aumento dos impostos locais para compensar o alívio no comércio Em 1693 a arrecadação da capitania foi de 13 contos de réis os gastos de cinco e a diferença mandada para Lisboa A contínua transferência de recursos fiscais para o centro e a miséria nos investimentos do governo central na colônia torna muito difícil supor que essa esfera tenha de fato influência no crescimento da economia colonial Ainda que se argumente com o papel organizador da produção nos tempos de Mem de Sá e no período até a virada final do século XVII parece claro que o governo central foi no balanço geral dos dois primeiros séculos muito mais um obstáculo do que uma alavanca para o desenvolvimento Apesar disso um ponto deve ser considerado tal governo se impôs em meio a forte competição Houve tentativas de implantação de governos franceses e holandeses além de disputas diretas com o governo espanhol Bem ou mal com ou sem investimentos o governo central português foi capaz em meio a esses conflitos de assegurar uma área de domínio que se ampliou constantemente na maior parte das vezes por guerras e combates Nesses casos os moradores eventualmente tiveram opções Caramuru fez negócios com franceses e portugueses mas acabou atraído para a órbita do governogeral Os pernambucanos produziram sob ordenamento jurídico português e holandês e terminaram optando pelo primeiro Moradores espanhóis do Paraguai e portugueses de São Paulo oscilaram entre as duas ordens até que a portuguesa se estabeleceu em parte do território antes sob controle espanhol O vencedor em todos os casos foi um só Apesar de esses governos alternativos derrotados eventualmente serem menos prejudiciais do ponto de vista fiscal tiveram dificuldades para se estabelecer Os franceses por causa do específico momento de divergência religiosa os holandeses pelas dificuldades em manter o equilíbrio nos balanços de uma empresa que pagava as contas do governo e as necessidades da produção os espanhóis pela cessão de poderes aos inacianos que empurrou moradores para a aliança vitoriosa com o governo do outro lado da fronteira Com exceção parcial da expulsão dos franceses do Rio de Janeiro quando o governogeral arregimentou os índios que lutaram em nenhum dos outros a instância central teve sequer um papel secundário no resultado Os moradores de São Paulo e Assunção moldaram o cenário a seu modo os pernambucanos como dizia a Câmara de Olinda expulsaram os holandeses à custa de nosso sangue e fazendas bens A regra que vale para as lutas contra governos estrangeiros vale em grau maior ainda para toda a expansão rumo ao interior O governogeral não tinha meios para nada Tropas planos resultados tudo dependia das capitanias sobretudo Pernambuco e São Paulo dos moradores das vilas e dos nativos Por quase dois séculos o governo central português se limitou a cobrar muito em impostos devolver quase nada em serviços teve uma presença que praticamente se restringia à capital apenas os jesuítas funcionários públicos pagos pelo rei tiveram um papel no território como um todo Portanto para se entender a expansão interna mostrada pelas novas metodologias todo o desenvolvimento precisa ser entendido a partir dos governos intermediários das capitanias dos governos locais das vilas mas sobretudo dos governos consuetudinários em especial os TupiGuarani Para isso no entanto é necessária uma forte mudança de sinais No modo tradicional de contar a história não é apenas a economia que aparece segmentada entre um setor dinâmico e outro anêmico seja de nativos ou de moradores Sem acesso à visão de uma produção dinâmica permitida pela combinação dos estudos antropológicos e econométricos não era possível para esses historiadores perceber que os interesses derivados dessa riqueza inexistentes por definição devido ao uso da noção de economia de subsistência sustentassem formas próprias de governo Por não terem acesso aos interesses a história política derivada da visão de estagnação na economia de subsistência é aquela da quase total desconsideração das esferas descentralizadas de poder Assim como a história econômica tende a se confundir com a do setor exportador a história política dos clássicos se confunde muitas vezes com a história da instância central A constatação da existência de uma dinâmica econômica interna requer também na presença de um governo central que não contribuía para o progresso desse âmbito o entendimento de como os governos locais se portavam com relação ao desenvolvimento econômico Em vez da complementaridade surge então uma tensão gerada pela disputa por riqueza entre os moradores e os governos que eles controlavam ou influenciavam e o governo central Para que tal tensão seja percebida no entanto é necessário reconhecer o valor de uma série de instituições locais que representavam interesses locais reconhecimento totalmente ignorado pela formulação clássica Entre tais instituições estavam por exemplo as Santas Casas que eram formalmente instituições não governamentais locais para atender gratuitamente doentes sustentadas por doações dos moradores de uma vila Cada uma era independente da outra embora funcionassem de acordo com a mesma regra o dinheiro das doações era isento de tributos de modo que escapava da ação dos captadores metropolitanos Muita gente importante se aproveitava da brecha Ricos faziam doações muitas vezes grandes o suficiente para influírem na administração do patrimônio da entidade Tal patrimônio era muitas vezes aplicado em empréstimos e isso tornava as Santas Casas e as Ordens Terceiras sujeitas ao mesmo regimento nos bancos locais da economia A tensão entre os interesses do capital local mobilizado pelas Santas Casas e os interesses do governogeral podem ser medidas na situação da maior delas a Santa Casa de Misericórdia de Salvador Sua capitalização foi crescente desde a fundação nos tempos da instalação do governogeral na cidade O auge da crise portuguesa e das exportações brasileiras entre 1624 e 1650 coincidiu com um período áureo de capitalização com o recebimento de 128 contos de réis de legados Essa base sólida de capitalização permitiu empréstimos de 40 contos em 1650 A partir daí no período da máxima expansão fiscal do governo central uma conjunção de legados em queda com inadimplência em alta levou a uma crise na instituição Em 1675 os empréstimos haviam caído para 125 contos menos que no primeiro quarto do século Esse é apenas um exemplo relevante das tensões entre a capitalização interna da economia e a ação do governo central na direção contrária Mas a capacidade de pressão metropolitana por recursos fiscais era limitada Nos locais em que o governo central tinha dificuldade para arrecadar impostos como por exemplo em São Paulo os efeitos da ordenha e as tensões eram menores Como o governo local era relativamente muito mais poderoso as relações com o centro se revestiam de uma formalidade curiosa para os habitantes valia a pena fingir que obedeciam ao centro na via inversa os atos governamentais da Coroa se resumiam a trocar cartas pedindo favores com o dinheiro alheio e retribuindo com títulos de fidalguia totalmente simbólicos Um curioso resumo dessa situação aparece num documento que circulou na Corte em 1690 intitulado Apologia dos Paulistas Na parte positiva dizia que os paulistas são os verdadeiros exploradores do Brasil e nisso fizeram grandes serviços a Vossa Majestade com seu destemor e armas Mas a seguir vinha uma constatação de que eram gente incapaz de se reduzir a termos especulativos porquanto entre eles suas leis são as da sua conveniência Sem as possibilidades de pensar trazidas pela observância da lei escrita diz o texto podem ser facilmente manejados animandoos Vossa Majestade com a mercê de honrálos porque são ainda daquela inclinação dos primeiros moradores diante de qualquer pano vermelho que lhes mostravam1 Era sarcasmo mas sarcasmo capaz de permitir entender que o ponto definidor das relações entre o governo metropolitano e o governo local não era tanto o dos panos vermelhos vistosos na narração mas a constatação de que o governo efetivo da vila era aquele da conveniência mútua das partes Os panos vermelhos e os papéis de fidalguia permitiam um reconhecimento mútuo formal de costumes Os paulistas reconheciam a autoridade do rei como centro do poder o rei limitava sua atuação efetiva aos panos vermelhos Assim o governo efetivo exercido naquele espaço era apenas aquele dos moradores que sagrava seus costumes suas leis gravadas no coração Para saber como esse governo sancionava o progresso é necessário olhar em detalhe as relações entre ele e os costumes CAPÍTULO 13 Governos locais e costumes EM TERMOS FORMAIS TODOS OS GOVERNOS DAS VILAS ESTAVAM OBRIGADOS A SEGUIR as normas escritas pautando o governo de acordo com as Ordenações do Reino Porém como o faziam numa realidade que nada tinha a ver com o mundo ordenado dos valores medievais havia necessidade de adaptações A primeira vila do Brasil São Vicente foi criada em 1532 Após a partida do capitão Martim Afonso de Sousa os moradores assumiram o comando do próprio destino A economia andou o Porto dos Escravos manteve sua atividade de sempre ao lado de um engenho de cana de relativa prosperidade Os costumes também se mantiveram com os habitantes vivendo de acordo com as normas vigentes entre os aliados Tupi embora fossem donos da própria taba Poderiam muito bem ter deixado de lado os rituais eleitorais prescritos nas Ordenações do Reino ou a utilização da lei escrita mas não foi o que aconteceu também fazia parte da cultura local a busca do consenso comandada por um chefe ou a confiança nos poderes que lhe eram delegados em casos de guerra Assim é que as eleições continuaram a ser realizadas a cada três anos com os eleitos tomando posse e transmitindo o cargo aos sucessores Ninguém de fora se intrometeu no governo Com isso os vereadores aplicaram as leis a costumes que não eram bem aqueles definidos como apropriados pelo código João Ramalho viveu muito bem com suas 30 mulheres e nenhum vereador o perturbou Esses matrimônios do ponto de vista Tupi estavam dentro dos códigos dos bons costumes e da mais elevada moral Por causa dessas mulheres ele era respeitado não apenas na vila mas entre os membros dos muitos grupos Tupi que compunham as redes de aliados criadas pelos casamentos como figura poderosa e pródiga de bens e como líder capaz de comandar guerreiros que dominavam um vasto território Além disso era muito influente na vila Do ponto de vista social porque arranjara os casamentos de quase todos os moradores e soubera também fazer essas uniões ganharem um significado relevante no universo administrativo do governo local Tupi Do ponto de vista político porque sabia mobilizar a parentela nas eleições Do ponto de vista econômico porque sem seu beneplácito ninguém negociava com os nativos Por isso nenhuma autoridade se lembrou de enquadrar o potentado na lei portuguesa que ele transgredia de maneira evidente afinal João Ramalho era um homem casado na Igreja que abandonara a mulher legítima em Portugal para viver em pecado aberto Tal comportamento transgredia vários títulos das Ordenações de modo que o dever de quem velava por tal lei seria processálo e condenálo por tais desvios A primeira autoridade do governo central a lidar com o dilema foi o governadorgeral Tomé de Sousa Como já se viu esteve com João Ramalho em 1553 e viu com os próprios olhos que ele andava nu pelas ruas seguido por mulheres e filhos Notou ainda o enorme poder econômico e social que detinha Apesar de tudo o que viu em vez de julgar pelas transgressões explícitas preferiu levar em conta outros aspectos relevantes de sua missão Entre eles estavam as ordens para instalar os jesuítas no sertão a fim de que estudassem a melhor maneira de converter os nativos Tanto o governador como os padres resolveram esquecer certas determinações das Ordenações do Reino e tentaram atender os próprios interesses de governo Se o próprio governadorgeral mostrava tolerância os jesuítas não tinham por que agir de outro modo Instalados em Piratininga sob proteção de João Ramalho no princípio esforçaramse ao máximo para tratar bem seu protetor Em carta Manuel da Nóbrega faz uma avaliação positiva dele mencionando sua intenção de abandonar as mulheres nativas e trazer a legítima esposa de Portugal Todavia assim que perceberam a extensão de sua influência entre os nativos que não era exatamente na direção da monogamia nem da submissão à autoridade de padres foram mudando de tratamento Até 1562 quando o vereador João Ramalho comandou as tropas que salvaram a vila de um ataque Tamoio mostraramse comedidos Depois com o controle de toda a região nas mãos dos aliados Tupi dos portugueses os padres retomaram a preocupação moral e passaram a descrevêlo como um pecador contumaz que havia abandonado a mulher para levar uma vida devassa Por esse exemplo notase que um mesmo costume é objeto de tratamento muito diferente conforme a cultura em que está inserido Que as leis do costume Tupi não eram todas enquadráveis na lei escrita portuguesa Que dependendo das circunstâncias efetivas até mesmo os encarregados de fazer valer a lei escrita não podiam tudo Que a realidade dos costumes muitas vezes se impunha às normas codificadas E até mesmo que os costumes podiam dar um novo sentido positivo a tais normas como se viu no caso das eleições repetidas costume português que pegou no Brasil Onde quer que se criasse uma vila no Brasil a história se repetia eleições de três em três anos posse dos eleitos nova eleição transmissão do cargo Não há notícias de comportamento diverso em nenhuma vila da colônia apenas as quantificações são mais raras Também não há notícias de outro comportamento que não a tolerância mais aberta para conciliar as discrepâncias entre as prescrições do livro e a realidade O caso de São Paulo nome que a vila de João Ramalho recebeu depois de 1560 também serve de exemplo para outra regra havia rotatividade no poder Apenas entre 1596 e 1625 foram 222 pessoas diferentes ocupando cargos eletivos de governo quando o número de famílias na época o termo definia um agrupamento político no sentido aristotélico um chefe com sua mulher filhos criados e escravos não passava de 190 Um quinto dos moradores mais ricos jamais ocupou cargos enquanto pessoas que praticamente não deixaram bens em testamento o fizeram repetidas vezes João Ramalho entre elas Em todo esse período o isolamento foi a marca da vila apenas um ex governadorgeral ali se instalou e uma única autoridade ligada ao governogeral um juiz por lá passou alguns dias depois de meio século sem nenhuma visita de autoridades externas Apenas os jesuítas permaneceram Montaram aldeamentos os moradores entregavam os índios pregavam contra o pecado em que todos viviam e conseguiram influenciar alguns moradores Mas a regra da mistura de costumes e de enquadramento destes pelo governo local segundo as conveniências da vida continuou No decorrer do tempo foram se consolidando não apenas costumes de pessoas miscigenadas mas todo um modo de adequar as Ordenações do Reino a essa realidade mesclada Isso não valia só para as questões de moralidade sexual ou para os momentos iniciais de contato A recuperação das normas que regem os costumes Tupi por parte dos antropólogos permitiu entre outras coisas que estudiosos e leitores contemporâneos com acesso apenas à escrita para formar seus juízos possam entender a documentação histórica com nova mirada muitas vezes reveladora de uma extensão muito maior das fusões e amalgamentos entre sistemas normativos pois o comportamento dos Tupi não era errático mas seguia as normas consuetudinárias depois explicitadas pelos antropólogos e costumes diversos O padre Guilherme Pompeu de Almeida paulista da segunda metade do século XVII altamente letrado era doutor em teologia formado no Colégio dos Jesuítas de Salvador e empresário abastado anotou a seguinte genealogia João Ramalho filho do Reino teve uma filha que se casou com Bartolomeu Camacho este teve uma filha que se casou com Jerônimo Dias Cortes este teve outra filha que se casou com Domingos Luiz o Carvoeiro este teve uma filha que se casou com João da Costa este teve uma filha Maria de Lima que se casou com João Pedroso estes tiveram a filha Ana Lima casada com o capitãomor Guilherme Pompeu de Almeida1 Além de se tratar de um dos raros documentos em primeira pessoa da época colonial ele mostra uma estrutura que soa estranha aos costumes ocidentais menciona apenas os nomes de homens por muitas gerações mas segue a linhagem descendente feminina indo das mães para as filhas Essa peculiaridade genealógica ganha outro significado quando vista à luz das referências antropológicas à cultura TupiGuarani Nessa cultura a filha é só do pai mas são as mulheres que constituem a estrutura permanente do grupo acolhendo os homens de fora Em linguagem técnica atual a genealogia apresentada pelo padre é ao modo da concepção Tupi patrilinear e matrifocal por quatro gerações Apenas na quinta aparece uma fusão parcial com o modo ocidental de pensar com as filhas sendo atribuídas a pai e mãe como no Ocidente além de serem nomeadas Mas a estrutura maior continua sendo a da linhagem de mulheres ancestrais que acaba no padreautor Uma vez reconhecido esse modo de pensar Tupi pode ser aplicado a realidades mais amplas O pai do padre o capitãomor Guilherme Pompeu de Almeida embora filho de letrado casouse com uma mulher pobre e mestiça Ao modo dos Tupi mudouse em 1630 para a recémfundada vila de Santana de Parnaíba a casa de sua mulher Foi viver ao lado do sogro bastante indianizado cujo apelido era Terror dos Índios Comprou uma mina de ferro abandonada montou uma pequena oficina e passou a fornecer ferro para os parentes da mulher que circulavam pelo sertão recebendo como pagamento parte das mercadorias que traziam na volta Ficou rico depressa e soube investir Na segunda metade do século era dono de uma grande manufatura com cinco oficinas especializadas empregando pelo menos 200 artesãos a grande maioria escravos nativos mas com alguns mestiços e europeus bem pagos apesar de formalmente escravos nas funções mais técnicas Juntou dinheiro suficiente para financiar negócios de grande monta e grande amplitude espacial Entre eles estavam empreendimentos como a instalação de parentes mineradores em Curitiba a transferência de 5 mil moradores de uma vila espanhola do atual território da Bolívia para São Paulo faziam parte do grupo de artesãos especializados que construíram os grandes tesouros artísticos e arquitetônicos paulistas da época e a construção da Colônia do Sacramento um ponto de contrabando diante de Buenos Aires Quase todos esses negócios apesar do volume crescente de dinheiro eram baseados apenas no costume com o fornecimento de crédito e a liquidação dos débitos sem qualquer contrato escrito o fiado era a forma dominante de investimento de capital no sertão Nos tempos do capitão a única forma de registro de tais empreendimentos eram as menções de dívidas nos inventários e testamentos de pessoas que morriam com os negócios ainda em andamento ou em esporádicas menções de atas das câmaras municipais Já o filho letrado tinha o hábito de registrar as transações que fazia em cadernos e um deles sobreviveu tornandose um dos raríssimos registros escritos dos negócios feitos segundo o costume no sertão Mas que costume Colocadas num banco de dados as referências aos negócios de pai e filho mostram pouca lógica quando cruzadas com uma genealogia elaborada nos moldes ocidentais que é patrifocal Porém quando as referências são cruzadas com uma genealogia Tupi construída com as mesmas categorias que definem a família tanto para o padre como para os Tupi todos os investimentos de capital se encaixam Em outras palavras os investimentos de capital acumulado em padrão ocidental eram alocados segundo a lógica de menor risco de inadimplência na parentela Tupi Por aí se vê que a junção dos conhecimentos antropológicos com as técnicas de pesquisa quantitativa pode revelar algo sobre aquilo que a Apologia dos Paulistas define como viver de acordo com leis da sua conveniência Os costumes Tupi operavam em São Paulo em camadas bem mais fundas que as formas legais das Ordenações até mesmo no que se refere ao enriquecimento aplicação de capitais e financiamento de uma economia cada vez mais mercantil O fato de que o padreempresário respeitado por todos vivesse com uma índia e tivesse um filho com ela era apenas um detalhe nessa estrutura As diferenças entre as esferas da norma escrita portuguesa e do costume fortemente marcado pela cultura TupiGuarani nesse caso operavam num amplo cenário espacial O capitão e o padre eram empresários e acumularam grandes fortunas para o padrão da época Eram também sertanejos vivendo em pequenas vilas do interior o padre instalouse em Araçariguama Negociavam com o sertão financiando caravanas de parentes indianizados e com o exterior a fortuna de ambos era acumulada na forma de prata trazida de Potosí mais de 100 quilos no caso do padre Pensavam com conceitos e categorias de família de fornecimento de crédito em que se mesclavam ambas as esferas Com isso ganharam relevo no governo local Os reis de Portugal escreveram diretamente ao capitão fazendo ofertas de fidalguia que ele aceitou embora não exatamente como inclinação a qualquer pano vermelho Uma dessas cartas reais transformou o primeiro Guilherme Pompeu de Almeida em capitãomor da vila de Santana de Parnaíba outra o levou a investir na Colônia do Sacramento com o devido cuidado O rei lhe prometeu que podia financiar parte do empreendimento com impostos pelo que o capitão resolveu se eleger vereador da vila pela primeira vez na vida coordenando a cobrança O rei entrou com o papel o capitão com a substância política e econômica Assim se aprofunda um grau de fusão entre de um lado a lei escrita portuguesa seguida pelos governos locais e de outro as necessidades e os interesses da acumulação de riqueza garantidos pelas alianças com os nativos na maior parte do território Fusões dessa natureza podiam ser encontradas até mesmo nos maiores centros exportadores da colônia desde que se empreguem métodos capazes de detectálas A historiadora norteamericana Rae Jean Dell Flory foi uma das pioneiras no emprego de banco de dados para cruzar registros documentais Trabalhando na década de 1970 quando a técnica começou a ser aplicada ela juntou num único banco os registros de nomes de pessoas citadas em contratos comerciais documentos de registro civil certidões de batismo e enterro nas igrejas que eram documentos oficiais numa época em que a Igreja fazia parte do governo e documentação oficial de governo na região do Recôncavo baiano no período de 1685 a 1725 Com base nesses dados ela conseguiu traçar um retrato da economia de mercado local Segundo Dell Flory a pesquisa tinha um limite abrangendo apenas o topo da atividade empresarial e deixando de fora uma base de negócios mais ampla além de sociologicamente não incluir as relações produtivas com nativos livres e escravos Desse modo apresenta um viés descrevendo mais o perfil da elite do que o da população como um todo Ainda assim os resultados são relevantes Num tempo em que se estimava a população da região em 100 mil pessoas 30 mil em Salvador os registros informam a existência de uma média de 110 engenhos de açúcar em funcionamento 450 grandes comerciantes em atividade 2 mil plantadores de cana autônomos e 2 mil plantadores de tabaco Com isso o topo empresarial da cidade teria na época cerca de 46 mil responsáveis por empresas maiores ou 46 da população total estimada Descontadas as mortes e somados os casos omissos na documentação o número não deixa de ser significativo Caso a média de pessoas por família fosse de cinco membros uma estimativa muito conservadora para o período o contingente ligado a essa posição produtiva elevada abrangeria uma parcela de pessoas que com as famílias chegava a um mínimo de 225 da população da capital Abaixo desse grupo havia uma larga base de empreendedores de pequenos empresários que se dedicavam a atividades variadas pequenos comerciantes vendeiros do interior quituteiras artesãos independentes transportadores havia algo como 2 mil barcos na região além de muitos estaleiros estivadores etc Todos fazendo seus negócios parte deles eram escravos como muitos artesãos ou quituteiras longe da vista ou do registro na papelada oficial de governo de modo que os historiadores tradicionais não tinham como analisar tal estrutura antes da introdução das novas técnicas As consequências analíticas dessas descobertas são imensas Os historiadores tradicionais com base apenas na leitura da documentação desta extraíram a interpretação sociológica de que a sociedade nordestina da época seria dominada por latifundiários e pela produção escravista com o restante da população nativa ou mista relegado à esfera da economia de subsistência Resultado da análise dos contratos de compra e venda de terras agrícolas uma das conclusões mais salientes de Dell Flory vai no sentido oposto dessa concepção tradicional mostrando uma sociedade de pequenos e grandes produtores e um mercado pujante A formação de lotes pequenos ou de tamanho moderado está presente em 204 das 285 transferências de propriedade registradas no período Aproximadamente dois terços das transações geravam propriedades com menos de mil hectares a maioria tinha entre 100 e 600 2 Essa tendência de divisão da propriedade e aumento do número de produtores independentes fica clara na análise dos dados sobre o tabaco o número de cultivadores quadruplicou no período estudado enquanto a produção média de cada unidade caiu para menos da metade da quantidade um claro processo de desconcentração Outras análises dos dados levaram a notar certas características muito relevantes do topo da sociedade baiana Para começar as medidas de riqueza permitiram afirmar que os mais ricos eram os comerciantes atacadistas e em seguida os senhores de engenho Cruzando esses dados com registros civis ela constatou que nada menos de 87 dos grandes mercadores então atuantes na cidade haviam nascido em Portugal Entre estes nada menos de 88 casavamse com mulheres de famílias abastadas da cidade Como resultado a autora formula a seguinte descrição Caracteristicamente os senhores de engenho casavamse com filhas de outros senhores ou de plantadores de cana enquanto um número considerável de filhas de senhores de engenho casavase com imigrantes O casamento tinha importantes implicações pois permitia consolidar propriedades Em muitos casos especialmente na execução dos inventários o casamento com imigrante com dinheiro era o dado fundamental para essa consolidação3 A historiadora não recorre a conceitos da antropologia em suas análises Mas quando estes são levados em conta é possível acrescentar que no topo econômico da mais rica vila do Brasil quase todos os filhos de senhores de engenho só se casavam ao modo Tupi com as poucas mulheres de fora disponíveis todas elas sem fortuna própria na melhor das hipóteses herdeiras juntamente com os irmãos Enquanto isso as filhas tinham a possibilidade de ser oferecidas para alguém rico noutra aliança típica da cultura Tupi na qual porém não mais contava o domínio dos utensílios de ferro e sim o dinheiro Entre os cadernos de negócio de um padre no interior de São Paulo e os dados estatísticos da documentação do Recôncavo baiano podem ser encontrados traços de costumes Tupi capazes de sugerir explicações para o desenvolvimento de mercados à margem do governogeral e da formalização jurídica ainda que em realidades muito distintas naquela altura A expansão da economia e do domínio territorial do sertão nos séculos XVI e XVII refletiu basicamente a expansão da área de negócios e das guerras entre os Tupi e os demais povos que se governavam pelo costume e os resultados que se acumulavam nas vilas sob a forma de riqueza O processo ampliou o domínio Tupi no território interior levou à destruição de outras populações e gerou um fluxo de excedentes econômicos em torno das trocas por utensílios de ferro As áreas das vilas em que não havia exportação se expandiram atrás dessa onda Nelas se instalaram muitos tipos de produção com destaque para a pecuária no Nordeste e os produtos de abastecimento e artesanato em todo o território A pequena produção era a regra manufaturas como a do capitão Guilherme Pompeu de Almeida ou os engenhos do Nordeste a exceção A busca da riqueza dava sentido à vida O empreendedor era a figura central Os governos locais serviam de apoio a essa tendência Providenciavam força militar para a expansão defesa transporte obediência às leis tolerando os costumes mistos legitimidade pela eleição que era a regra geral de acesso ao poder Tudo por sua conta e ainda pagando impostos gerais para sustentar a metrópole Como resultado permitiam a acumulação de riqueza em todo o território Essa acumulação progressiva explica a multiplicação de vilas e de negócios Eram também as câmaras municipais que organizavam a representação dos interesses dos produtores de mercadorias exportáveis nas áreas em que havia esse tipo de atividade As câmaras de Salvador e Olinda mantinham representação em Lisboa especialmente para defender os interesses dos produtores locais Tanto quanto o governo central as câmaras invadiam esferas de competência Na maior parte dos casos porque eram o único governo existente A câmara de São Paulo não apenas declarou uma guerra internacional contra áreas sob domínio hispânico em 1690 decretou um valor próprio para a moeda algo que era poder privativo do monarca Todos os moradores seguiram o decreto de seus vereadores Com isso o governo central embora cobrando muito e não prestando nenhum serviço relevante acabava sendo aceito em parte pela autonomia de que desfrutavam os governos locais e se impondo aos concorrentes estrangeiros que apareceram Fica então um mistério por que sendo governos da escrita esse papel das instâncias locais não foi reconhecido pelos clásicos CAPÍTULO 14 Política miserável e caranguejo A ESCRITA ASSIM COMO A METALURGIA AO CONTRÁRIO DO CONHECIMENTO DA natureza e dos caminhos na terra era uma importante vantagem tecnológica ocidental com relação à cultura nativa no campo da produção e difusão de conhecimentos Esse era também um setor que conheceu na Europa dos séculos XVI e XVII uma revolução tão importante quanto a ocasionada pela navegação oceânica Tanto a produção de conhecimento por letrados como a leitura do que se produzia eram muito limitadas por um gargalo nos meios de transmissão desses conhecimentos O mais importante deles era o livro cuja reprodução se fazia por cópia manual o que exigia até anos de trabalho paciente de um especialista Alguns desses copistas trabalhavam para ricos interessados mas a maioria vivia em mosteiros que eram os grandes centros bibliográficos Afora a Igreja só em poucas cidades da Europa havia de tempos em tempos condições de juntar todas as peças da engrenagem no mundo laico Na península Ibérica a mais importante foi Toledo na Espanha Entre os séculos XI e XIV o espírito de tolerância e de convivência entre cristãos muçulmanos e judeus permitiu a tradução para o latim de grandes bibliotecas árabes que continham todo o saber da Antiguidade Por essa via por exemplo a obra de Aristóteles foi traduzida para o latim e voltou a fazer parte da cultura ocidental Portugal beneficiouse desses centros a partir do princípio do século XIV neles arregimentando letrados e pesquisadores para suas instituições Em 1290 o rei D Dinis fundou uma das primeiras universidades ocidentais que passou a funcionar entre Coimbra e Lisboa Em 1307 criou a Ordem de Cristo que alistou em torno de seu projeto tecnológico As duas instituições atraíram produtores de conhecimento e leitores que não estavam subordinados à Igreja e propiciaram o salto tecnológico e cultural do Reino No entanto a grande mudança geral na Europa ocorreu em 1450 com a invenção da prensa com tipos móveis de Gutenberg Com ela superouse o grande gargalo da produção de livros e difusão da leitura permitindo a confecção de muitos exemplares de uma obra em muito menos tempo uma enorme redução nos custos e o crescimento monumental na quantidade de leitores Uma das consequências foi a perda da importância da Igreja no processo de transmissão de conhecimentos assim como o aumento de poder dos produtores e leitores laicos Por outro lado a revolução da tipografia também atingiu a Igreja a facilidade de conhecer a palavra sagrada por escrito por meio de Bíblias impressas estava na raiz do protestantismo Publicada em 1503 a obra Novus Mundus em que Américo Vespúcio narrava as suas viagens ao continente recémdescoberto teve treze edições em latim esgotadas em dois anos dez em alemão nos dois anos seguintes além de outras em italiano francês e algumas na Holanda Em pouco mais de uma década estimase que tenham sido vendidos 15 mil exemplares o que fez da obra o primeiro bestseller laico e levou os leitores a identificar o novo continente com o nome de um navegador medíocre que fez poucas descobertas mas era um mestre da narrativa Esse impacto da descoberta refletiuse em Portugal que passou a sofrer um assédio compreensível em todas as nações nas quais se difundia a leitura dos livros impressos os governantes se mobilizaram para atrair navegantes que dominassem a tecnologia da navegação oceânica os comerciantes se interessaram em carregar os navios de mercadorias e os aventureiros prepararamse para sair em busca de tesouros A reação portuguesa foi basicamente de procurar manter em segredo as informações estratégicas Isso se fez em muitas áreas mas sempre com o mesmo sentido de fechamento de inversão do esforço de abertura do período anterior todo ele laico mercantil e universalista A tolerância religiosa e cultural que estava na base do desenvolvimento tecnológico e seu financiamento parcial por mercadores foi substituída pela instalação da Inquisição como órgão da estrutura de governo e a expulsão dos judeus A Ordem de Cristo perdeu autonomia após um acordo com o monarca tornandose parte da burocracia estatal A Universidade de Coimbra teve o mesmo destino e parte dela foi entregue aos jesuítas A mesma diretriz foi adotada no que se referia à tecnologia que desencadeara tantas mudanças no fluxo dos conhecimentos A Inquisição ficou encarregada de controlar o funcionamento de tipografias embora fossem empreendimentos particulares só podiam abrir as portas com autorização desse órgão do governo o comércio e a importação de livros a publicação só podiam ser publicados textos aprovados pelos inquisidores e até mesmo as vendas de livros Ainda que alguns desses controles existissem também em outros países poucos somaram tanta restrição à mudança quanto Portugal O Brasil foi visado de maneira feroz em cada um desses desdobramentos da política reacionária que acompanhou a decadência do império português A política de segredo de tentar impedir o conhecimento da terra e de seus habitantes pelos europeus já facilitada no ponto de partida pela inexistência da escrita ganhou detalhes de crueldade Um deles pode ser notado em um trecho do frei Vicente do Salvador O nome de Brasil lhe ajuntaram ao estado e o chamam Estado do Brasil Disto dão culpa alguns aos reis de Portugal outros aos povoadores aos reis pelo pouco caso que têm de tão grande estado que nem o título dele quiseram preferindo intitularse senhores de Guiné por uma caravelinha que lá vai nem houve um que o curasse senão para colher rendas e direitos1 O trecho critica o fato de que o nome da terra nunca apareceu na fórmula de praxe para identificação dos monarcas em documentos oficiais Fulano de tal rei de Portugal e Algarves senhor das Índias Molucas Goa etc Como bem notou o padre até a Guiné aparecia entre os senhorios citados mas nem Terra de Santa Cruz nem Brasil quando a denominação popular foi oficializada jamais foram mencionados em qualquer bula decreto ou alvará dos reis de Portugal mesmo naqueles que traziam ordens para o Brasil O objetivo do segredo justificava outra política dura A Inquisição permitiu a instalação de uma tipografia em Goa que funcionou a partir de 1556 e concedeu o monopólio de impressão aos jesuítas no Oriente em 1574 Mas jamais permitiu a instalação de uma tipografia no Brasil todos aqueles que tentaram trazer máquinas e tipos foram presos processados e tiveram seu material destruído e isso continuou a ocorrer até o tardio ano de 1808 Para efeito de comparação na América espanhola onde também havia uma política similar de controle inquisitório quase toda a correspondência oficial relevante era impressa em tipografias nos mais diversos pontos do continente A cidade de Lima no Peru tinha um jornal regular impresso em tipografia já no século XVI e até mesmo as reduções jesuíticas no Paraguai receberam autorização para levar o equipamento e imprimir bíblias em guarani para serem lidas pelos que viviam nas reduções Com a proibição total de tipografias os moradores do Brasil só podiam mandar imprimir livros em Lisboa e mesmo assim depois de conseguirem a autorização dos censores Como estes tinham a preocupação de evitar que leitores estrangeiros tivessem acesso a informações consideradas estratégicas as permissões concedidas nos dois séculos inicias da colônia podiam contarse nos dedos das mãos E no caso da leitura dos textos escritos até mesmo a compra de exemplares impressos dependia de outra espécie de censura A Inquisição tinha poderes também para impedir a circulação de livros sobretudo estrangeiros Nos portos havia controles das importações e apreensões sempre com o objetivo de impedir o envio de exemplares à colônia Idêntica atitude de caráter retrógrado impedia a fundação de instituições produtoras de conhecimentos Desde o século XVI havia na colônia moradores ricos o suficiente para investir na formação local de seus filhos e bancar a conta Mas todas as tentativas foram frustradas e negados todos os pedidos para a instalação de faculdades ou universidades Em comparação a primeira universidade da América espanhola a de São Domingos começou a funcionar em 1536 Mais ao sul a pioneira foi a universidade de Lima que passou a oferecer cursos a partir de 1551 apenas dez anos depois de Pizarro ter dominado o império inca Dois anos depois era inaugurada uma universidade no México Nos Estados Unidos onde tudo dependia da iniciativa de colonos enriquecidos as primeiras faculdades começaram a funcionar a partir de 1636 pouco mais de três décadas após o início da ocupação inglesa só no século seguinte houve recursos suficientes para montar universidades Até mesmo a etapa mais elementar de todo o processo o ensino básico da leitura e escrita foi restringida pelo governo metropolitano Apenas os colégios dos jesuítas recebiam estipêndios do Tesouro em troca dos quais ficavam obrigados a manter escolas gratuitas para alunos inclusive do ensino básico Mas os regulamentos também diziam claramente que o objetivo das escolas não era o de prover ensino para quem quisesse e sim o de preparar futuros membros para a ordem religiosa e com isso as vagas eram severamente limitadas Apenas uma das instalações jesuíticas o Colégio de Salvador mantinha um curso superior de teologia com aulas dadas por padres de melhor formação o grande destaque no século XVII foi o padre Antônio Vieira um dos grandes eruditos da época e um dos mestres da língua portuguesa Mas era um curso que formava em média um aluno por ano quase sempre já aceito na ordem Outras ordens de clérigos regulares beneditinos franciscanos e carmelitas mantinham instalações educacionais mas também só para fornecer uma formação intelectual um pouco mais sólida para seus membros Para a imensa maioria dos moradores restava a proximidade caridosa a alguma dessas fontes para aprender a ler e escrever A pequena fração daqueles que conseguiam vencer as barreiras e escapavam da carreira eclesiástica acabava sendo recrutada por uma das poucas oficinas do governogeral ou como autoridade possível nas vilas ocupando cargos administrativos e cuidando da papelada civil do governo atas de câmaras processos judiciais pedidos de favores testamentos etc As consequências de tantas restrições ao acesso à escrita desde esse período foram catastróficas em termos de documentação a respeito da vida e do comportamento das pessoas Hoje tudo precisa ser minerado na rala documentação oficial quase não há depoimentos pessoais comentários cartas particulares ou desenhos Casos como o de São Paulo nos três primeiros séculos não são incomuns nenhum retrato de morador nenhuma carta particular nenhum depoimento pessoal em forma literária A produção de conhecimento formal nessas condições tão inóspitas era a possível exigindo uma retórica tortuosa Fazer história exigia desvios narrativos de monta Vejase por exemplo a frase que ficou para a memória na História do Brasil do frei Vicente do Salvador Da largura que a terra do Brasil tem para o sertão eu não trato porque até agora não houve quem a andasse por negligência dos portugueses que sendo grandes conquistadores de terras não se aproveitam delas mas contentamse em andar arranhando ao longo do mar como caranguejos2 Ele atribui a total falta de conhecimento do interior aos portugueses É um vocábulo ambíguo pois português era tecnicamente o autor da frase e eram então todos os moradores da terra Nesse contexto porém português se confunde com metropolitano e os conhecimentos passíveis de serem divulgados por via escrita seriam apenas aqueles que passassem por seu crivo pois nenhum autor podia ignorar os censores A história escrita tinha de se adequar a tais portugueses num grau muito maior do que a vida política local onde a adaptação entre lei e costume ficava por conta dos moradores Uma série de procedimentos narrativos reforçam a imagem da terra e de seus moradores como gente vil danada pelo amor ao mercado e o dinheiro Essa danação ganha inclusive a forma de um mito de fundação O capitão Pedro Álvares Cabral levantou a cruz no dia 3 de maio quando se celebra a Santa Cruz em que Cristo morreu por nós e por esta causa pôs nome de Terra de Santa Cruz à terra Porém o demônio que com o sinal da Cruz perdeu todo o domínio que tinha sobre os homens receando também perder o muito que tinha nos desta terra trabalhou para que se esquecesse o primeiro nome e lhe ficasse o de Brasil por causa de um pau de cor abrasada que há muito nesta terra e com que se tingem os panos Com o que importava mais o nome de um pau de tingir que aquele do sagrado lenho que deu toda a virtude a todos os sacramentos da Igreja3 Perdidos de Deus e dominados pelo demônio interessados apenas na matéria os que nela ficaram seriam construtores de desastres morais e sociais E de mesmo modo se hão os povoadores os quais por mais arraigados que na terra estejam tudo pretendem levar para Portugal Se as fazendas e bens que possuem soubessem falar diriam como os papagaios para os quais as primeiras palavras que ensinam são papagaio real pera Portugal Ainda os que cá nasceram não são senhores mas usufrutuários que desfrutam e deixam a terra destruída Donde nasce também que nenhum homem nesta terra é repúblico nela zela ou trata do bem comum senão cada um do particular4 As técnicas de pesquisa recentes permitem mostrar que a imensa maioria daqueles que chegavam ao Brasil empreendiam casavam ficavam viviam uma sociabilidade nova incluindo o padre escritor O objetivo de voltar rico para Portugal era buscado por uma minoria mas descrevia com eficácia simbólica o propósito do governogeral arrecadador e dos agentes dele que ficavam na terra provisoriamente Assim a retórica abre um fosso conveniente A diferença entre o que se pode falar de Brasil em palavras escritas e a realidade do tempo é imensa umas encapsuladas na casca de caranguejo outra do tamanho do sertão ignoto Vale notar que na altura em que escrevia o frei o termo sertão já designava toda a porção do território que ia além do litoral que a retórica confunde com área que os portugueses não conhecem Assim se faz a mágica da frase famosa que afirma uma diferença entre o sabido ou aquilo que oficialmente se pode dizer em palavras impressas e o incógnito os costumes pecaminosos onipresentes inclusive o de enriquecer que entretanto não se deve mencionar O conhecimento do interior do sertão não era inexistente e o próprio livro fala dele Entretanto como não é certificado pelos conquistadores portugueses que autorizam a publicar não pode ser afirmado como algo que tenha o valor moral capaz de eleválo a parte da história A gigantesca porção de território existia as pessoas viviam nela mas o historiador se obrigava a calar sobre detalhes da largura para o interior para não ferir a política de segredo não chamar atenção da censura O conhecimento que vinha dos coloniais vulgares não atravessava imune a carapuça do caranguejo ficava de fora da narrativa não era história que se contasse Só era possível narrar ao modo do livro Toda a ocupação do território é contada como emanação de ordens dos governadoresgerais para empregar de novo a metáfora eles acenavam panos vermelhos por carta Tal aceno era descrito pelo narrador como causalidade o governo central ordenou os súditos cumpriram Assim aparecem contados os eventos do Rio de Janeiro a ocupação da Paraíba as entradas no sertão a partir de Salvador Esse milagre da escrita transformando em demiurgo um governo que pouco agia e muito arrecadava passou a ser o ideal de Estado o objetivo perseguido pela miserável política de restrição à escrita e ao conhecimento O analfabetismo foi uma construção rigorosa resultando na falta de expressão dos costumes na consciência no não reconhecimento de uma moralidade própria que pudesse ser lei Assim foi se impondo a narrativa do caranguejo do mito de um governo geral que comandava tudo que enfrentava o comportamento depravado e argentário dos moradores que tentava civilizar Em termos de representação escrita um olhar positivo para aquilo que havia de próprio na vida colonial encontrase apenas de maneira esparsa na documentação produzida pelos outros governos os governos eleitos de vilas únicos com capacidade de transformar os costumes dos moradores em argumentos escritos para defender leis ou interesses Ali se encontram outras constantes como esta formulada pelo historiador Evaldo Cabral de Mello ao analisar a produção da câmara de Olinda depois da expulsão dos holandeses A restauração forjarase sobre a aliança de grupos étnicos que compunham a população local não evidentemente em pé de igualdade mas sob a direção da nobreza da terra e dos reinóis Tratase de uma noção já consagrada pelo imaginário nativista nos começos do século XVIII mediante o simbolismo de uma tetrarquia de heróis a que se devia o culto cívico tributado aos verdadeiros pais da pátria5 A ideia de uma pátria que se forma pela aliança de grupos étnicos na luta contra a dominação estrangeira resultou no culto à tetrarquia formada por João Fernandes Vieira reinol André Vidal de Negreiros nobre da terra Felipe Camarão Tupi e Henrique Dias negro que se juntaram para expulsar o inimigo externo sem qualquer ajuda do governo metropolitano Nesse universo começou a aparecer de maneira incipiente o emprego do gentílico brasileiros uma identidade positiva uma forma geral de consciência uma afirmação de substância da vida ali onde a miserável política metropolitana para a escrita a todo custo tentava evitar CAPÍTULO 15 Brasileiros A POLÍTICA DE RESTRIÇÃO DRACONIANA À PRODUÇÃO E CONSUMO DE MATERIAL ESCRITO na colônia dificultou muito a expressão do território mental próprio para além do litoral e que se espraiava pela imensidão dos sertões Nessa imensidão de ausência de escrita e pensamento os governos locais não só se tornavam os únicos encarregados de prestar serviços e processar interesses muito diversos como faziam isso de modo a conciliar contradições como no caso de João Ramalho e da instalação dos jesuítas em São Paulo Eles tinham de encarar de frente a realidade e os interesses locais o que obrigava uma câmara como a de Olinda por exemplo a recorrer à criação de representações históricas sobre a reconquista a fim de reivindicar o atendimento de interesses dos moradores Nesse ponto a atividade política bordeja as fronteiras do mundo cultural da criação de símbolos e representações Respeitando tal fronteira é possível demarcar um limiar no qual surge uma identificação entre a experiência de vida das pessoas e a terra na qual viviam Da perspectiva da experiência havia já muito material refletindo as características da terra No âmbito econômico uma acumulação de riqueza em volume significativo com as trocas de excedentes se ampliando desde o mais fundo das matas até a capital No âmbito político governos de costumes nativos baseados em alianças interétnicas e governos locais de vilas eleitos como forma dominante em muitos territórios No âmbito social um predomínio de pequenos empreendedores e grandes empresários produtores independentes e com crescente participação de cativos africanos ali onde havia exportação No âmbito cultural tratavase de uma das primeiras sociedades nas quais por livre vontade ou por coerção seres humanos de todo o planeta conviviam nos mesmos espaços Tanta variedade de experiência contrastava com a falta de um sinal de unidade Embora o termo genérico Brasil fosse empregado para designar essa região do planeta o gentílico brasileiro era tão ausente na rala documentação escrita quanto os textos em primeira pessoa Devido à sua excepcionalidade portanto merece comentário um dos mais antigos exemplos do uso desse termo por parte de um pintor excepcional Albert Eckhout nasceu em Groningen na Holanda por volta de 1607 Há poucas informações sobre a infância e o período de formação em sua cidade natal sabese com certeza que no início da década de 1630 estava estabelecido em Amsterdã onde ficou conhecido como retratista e pintor da natureza Por isso foi convidado para fazer parte da comitiva do príncipe Maurício de Nassau que chegou ao Brasil em janeiro de 1637 No princípio Eckhout não se destacou entre os artistas do grupo Seu trabalho consistia sobretudo em acompanhar os naturalistas Piso e Marcgraf desenhando em pequenos cadernos os animais e as plantas que os dois descreviam Mas Eckhout registrava também as pessoas dos índios aos nobres Assim revelouse a sua habilidade que o levou a ser encarregado até mesmo de missões diplomáticas junto ao inimigo português em Salvador chegou a pintar um retrato do governadorgeral do Brasil Embora não haja certeza a respeito estimase que por volta de 1643 ele tenha recebido de Nassau a incumbência de pintar telas monumentais para a decoração de um salão no palácio que o príncipe construía no Recife Com a volta de ambos para a Europa o teor da encomenda muda as telas seriam um presente para o eleitor de Brandemburgo dando ao agraciado uma impressão geral de como era o Brasil As pinturas exibem uma estrutura quadripartida quatro casais em quatro estágios de civilização indo dos povos mais brutos aos mais civilizados Com isso o pintor fez mais do que os primeiros grandes retratos de pessoas vivendo no Brasil criou uma interpretação para ilustrar uma civilização que nasceria do casamento entre pessoas de origem étnica diversa A mesma concepção dos vereadores de Olinda com uma pequena variação Na escala mais baixa de civilização estão os retratos intitulados Homem tapuia e Mulher tapuia O primeiro exibe alguns signos do tempo que designavam a selvageria tem como único adereço de vestuário o estojo peniano usa botoques na face e no queixo porta um tacape empregado nas mortes cerimoniais a seus pés estão animais peçonhentos a cobra e a aranha O retrato da mulher segue o padrão poucos sinais de civilização como folhas cobrindo a região genital ou uma pequena pedra no lábio Em contraste os adereços indicativos de selvageria são dramáticos com as partes amputadas de corpos humanos uma vez que competia às mulheres como únicas detentoras do poder de cozinhar no grupo moquear as vítimas para o banquete ritual da antropofagia A Mulher africana já aparece vestida leva uma cesta com alimentos e está acompanhada de um filho O cenário é claramente brasileiro com uma carnaubeira frutas nativas na cesta a espiga de milho nas mãos do filho que de pele mais clara que a mãe pode ser fruto de miscigenação O Homem africano destoa um pouco não há no fundo nenhum elemento natural exclusivo do Brasil mas antes dois indicativos da África a tamareira e a presa de elefante aos pés do retratado Toda a indumentária é de origem africana e a espada indicativa da nobreza da Guiné Seguemse o Homem brasileiro e a Mulher brasileira O primeiro aparece com vários adereços civilizatórios roupas brancas cobrindo a cintura uma cabaça para carregar água uma cesta com utensílios A pele lisa não apresenta sinais de pintura corporal nem marcas de adornos Ao lado aparece uma bananeira planta introduzida pelos europeus ao fundo um engenho com fileiras de árvores e terras cultivadas Algo semelhante se passa no caso da Mulher brasileira tratase de uma índia Tupinambá de aldeamento acostumada a viver no espaço europeu e a mistura é ressaltada nos elementos do fundo Antes de detalhar o emprego do termo vale a pena conhecer o último casal formado pelo Mulato e pela Mameluca O filho mestiço de negra e europeu aparece num grau de civilização mais alto assemelhado ao europeu É apresentado como um militar com roupas armamentos inclusive a espada de uso então restrito a nobres e gibão Está entre mamoeiros produtos plantados da flora local e a canadeaçúcar a safra europeia de maior significado econômico da nova terra Já a Mameluca mestiça de índia e europeu também é representada como ápice civilizatório Aparece trajada com um vestido longo de corte europeu mas que porta com sensualidade expondo um pedaço da perna e os pés nus Um olhar sorridente e convidativo acentua essa sensualidade No mais tudo em volta são exemplares da beleza da flora local dos cajueiros no alto às flores no cesto Ao fundo veemse campos cultivados de um lado e um casal de porquinhosdaíndia de outro Toda a composição segue o modelo europeu contemporâneo das pinturas da deusa Flora símbolo da primavera e da fertilidade Embora aplicado ao casal de índios de aldeamento o gentílico faz sentido em um contexto no qual se narram como próprios do Brasil os costumes do mundo das relações interraciais de alguma forma focadas no modelo dos índios os sujeitos históricos nessa matéria e do hibridismo que se reflete na escolha de plantas e animais de diversas origens geográficas e nas cenas de fundo Assim o gentílico é aplicado como uma observação afável de quem mostra o que está se passando Não à toa essa impressão teve grande impacto nos observadores dos quadros Estes se tornaram fontes seminais servindo de modelo para centenas de obras de pintores e artesãos europeus nos séculos seguintes Todos os elementos da composição foram reproduzidos em quadros tapeçarias artes decorativas e esse conjunto de elementos firmou a imagem básica de Brasil e brasileiro que se difundiu pelo continente europeu Essa visão positiva da miscigenação assemelhase à dos textos produzidos pela câmara de Olinda Mas vale notar que embora formulassem uma associação entre pátria e união de várias etnias estes evitavam escrupulosamente o emprego de um gentílico capaz de dar unidade a toda a variedade O contraste entre as duas situações podia ser extremo e fazia sentido dada a política de restrição extrema às letras eventualmente facilitadoras da elaboração consciente de uma nova identidade a partir da experiência inédita da vida no Brasil Nesse sentido outro exemplo esclarecedor é o do poeta Gregório de Matos cujo problema não era exatamente a falta de domínio da palavra Nascido em Salvador em 1636 o pai dele era um empreiteiro e senhor de engenhos abastado que mandou o filho estudar em Coimbra uma vez que o governo português não permitia faculdades no Brasil Formado em direito e teologia fez carreira como magistrado de instâncias elevadas no círculo próximo da cabeça mística do reino o pedaço de mundo vedado ao espaço colonial e chegou até mesmo a publicar livros algo reservado para muito poucos A certa altura porém viu barrada a pretensão de ocupar um posto nos tribunais superiores da metrópole Voltou para a cidade natal em 1681 como padre num cargo da administração eclesiástica algo plausível em um governo que controlava a administração da Igreja e dada a sua condição de viúvo Desembarcou portanto como autoridade do governo central e escrevia como tal Empregou a sólida formação literária e retórica para fazer poesia nos moldes da época para pessoas da mesma situação social elevada produziu assim uma espécie de crônica social do poder com elogios a autoridades amigas e poesias religiosas nas quais mostrava o domínio da retórica barroca Mas ao sofrer revezes políticos e perder o emprego a sua vida muda radicalmente José Miguel Wisnick resume Casouse com Maria dos Povos vendeu as terras que recebera como dote jogando dinheiro num saco e gastandoo ao acaso e fartamente Sai pelo Recôncavo povoado de pessoas generosas como cantador itinerante convivendo com todas as camadas da população metendose no meio das festas populares banqueteandose sempre que convidado Do gênio que já tinha tirou a máscara para manusear obscenas e petulantes obras diz Manuel de Castro Rabelo Nessa fase engrossa o volume de sua poesia satírica o barroco popular oposto ao acadêmico e a poesia satírica ao lirismo cortês1 Mas não se tornou um João Ramalho poético As festas populares a variedade de etnias a animação sexual de fato surgem como assuntos da poesia Mas a entrega do poeta a esse mundo tem limites Se antes a obra era marcada pelo apuro técnico da escrita na nova fase aparecem definições de cunho popular que marcam fortemente as diferenças entre a vida local e a metropolitana Esse diferencial é resumido de modo muito direto no mote de um poema De dous efes se compõe esta cidade a meu ver um furtar outro foder Com relação ao furtar o poema descreve com acrimônia o fato de a vida brasileira ser muito mais mercantil do que suportava sua visão de mundo marcada indelevelmente pelos anos de exercício dos poderes do centro pobres se tornam ricos tomam o governo vivem como fidalgos sem ter condições de nascimento para tanto Já quanto ao foder desanca com frequência a realidade dos casamentos de aliança pelos quais um enriquecido se entrelaçava com a família de uma noiva pertencente à nobreza da terra continuando a tradição Tupi na sociedade agora mercantil enquanto descreve a vida sexual muito animada inclusive a própria fora do casamento oficial que gera mestiços de todo tipo O máximo que se permite é dar um tratamento rudemente satírico a tudo aquilo que não se enquadra rigidamente na casca do caranguejo A influência da cultura Tupi na vida brasileira a miscigenação que dava origem ao argumento de que o ato inaugurava uma sociedade própria o mesmo campo tentado pela representação da câmara de Olinda era um dos temas para os quais tal enquadramento normativo chegava a extremos de dureza Tal tratamento aparece em sonetos como este Aos principais da Bahia chamados os Caramurus Há cousa como ver um Paiaiá Mui prezado de ser Caramuru Descendente de sangue de tatu Cujo torpe idioma é cobepá A linha feminina é carimá Moqueca pititinga caruru Mingau de puba e vinho de caju Pisado num pilão de Pirajá A masculina é um Aricobé Cuja filha Cobé cum branco Paí Dormiu no promontório de Passé O branco é um marau que veio aqui Ela é uma índia de Maré Cobépá Aricobé Cobé Paí O branco pai e a matriarca indígena formavam uma referência ancestral que a elite local procurava empregar como marca de dignidade pois não ousavam chamar essa tradição de brasileira transformando o casamento de Guaibimpirá Catarina Paraguaçu e Caramuru Diogo Álvares Correia em fundação simbólica de uma realidade própria de uma nobreza da terra era o máximo de identidade então aceito de gente vivendo segundo os costumes mistos que procurava apresentar a origem local como justificativa das próprias leis de sua conveniência Gregório de Matos podia viver na lei da terra conhecialhe a intimidade e as palavras próprias Mas não era seguido pelo narrador poético que ainda manejava as categorias da conveniência dos governantes centrais e via as boas normas como exteriores à condição colonial Ao mostrar com grande rudeza que os atributos da terra eram apenas os da selvageria inclusive no limitado valor das gírias e nas fortes aliterações e oxítonas e nunca aqueles dos bons costumes da nobreza surge uma questão de monta Mesmo vivendo como um dos Adãos de Massapé que ironizava mesmo adotando os costumes sexuais polígamos e abertos mesmo tocando viola nas festas mesmo empregando a linguagem popular mesmo sendo o poeta que melhor retratou os costumes que marcavam a vida brasileira para além das normas portuguesas Gregório de Matos não conseguia pensar em si mesmo como mais um dos muitos transformados pela experiência local como mais um que abandonava normas legais inadequadas para pensar de maneira mais identitária os próprios costumes ele não empregava o gentílico brasileiro Não podia aplicar ao seu narrador poético o mesmo tipo de desvio que se permitira na vida pessoal Era um narrador normativo tão normativo quanto um juiz que enquadra na lei os desviantes Ainda que numa orgia não perdia a compostura de doutor de desigual àqueles analfabetos ao redor O conteúdo efetivo de sua poesia assim como o conteúdo efetivo da maneira de pensar a família do padre Guilherme Pompeu de Almeida a discrepância entre os costumes que regem a vida e o enquadramento desse modo de viver como norma de conduta apropriada costume que deve ser sancionado como lei gera como limite para a escrita a sanção da norma ainda que inadequada à realidade e a condenação do costume ainda que sadio Com essa fissura que impede pensar a experiência brasileira como totalidade eventualmente expressa por um gentílico vale a pena repassar o modelo simbólico elaborado por frei Vicente do Salvador Primeiro relembrando a referência ao estatuto do mercado na sociedade local definida no texto já mostrado em que reproduziu uma impressão de um empresário que visitou Salvador em 1585 Notava ele que se mandava comprar um frango quatro ovos e um peixe para comer nada lhe traziam porque não se achava na praça nem no açougue Mas se mandava pedir as ditas coisas às casas particulares lhe mandavam2 Onde deveria existir substância no espaço público a área simbólica do governo central havia apenas formalidade e vazio Já na dimensão social que deveria ser limitada aquela dos moradores que desconheciam a nobreza na parte inferior da escala pelo padrão aristotélico a vida seguia e o desenvolvimento da economia se dava Em vez de contar com a proteção da lei o mercado existia substancialmente à margem da lei na esfera dos costumes de moradores e nativos das leis não escritas que eram da conveniência dos moradores Pela conveniência do desenvolvimento dos mercados era preciso passar o mais longe possível das autoridades formais fazer tudo em casa Inversamente esperar algo do governo na esfera da manutenção das estruturas comuns era perda de tempo como também notou o padre Nessa terra andam as coisas trocadas porque toda ela não é república sendoo cada casa Pois o que é fontes pontes caminhos e outras coisas públicas é uma piedade3 Tudo isso evidencia que a crescente riqueza e a acumulação de capital na economia brasileira dos séculos XVI e XVII apontadas com clareza pelos dados estatísticos obtidos nas pesquisas recentes não derivavam da ação econômica do governogeral A pequena incursão no mundo simbólico permite lembrar que essa ausência tinha sentido que a documentação era construída para que a atividade da terra ficasse na margem fosse afirmada como condenação Presos irremediavelmente a esse tipo de texto os historiadores clássicos acabaram reproduzindo conceitualmente o fosso em várias áreas a fissura entre norma na cultura lei escrita na esfera jurídica governo e sociedade na política crescimento e ação central na economia Muito pelo contrário a sugestão mais evidente para entender acumulação de riqueza mercado e governos nos dois primeiros séculos parece ser aquela indicada pelo observador citado por frei Vicente do Salvador deixandose de lado a esfera da lei escrita da ação administrativa do governogeral e buscando as mercadorias e as instituições que sustentam os mercados no âmbito doméstico privado no costume nas leis que eram da conveniência dos moradores e tudo isso apenas com sanção parcial na ação dos governos locais Nos dois primeiros séculos essa realidade foi tornada mentalmente plausível por uma efetiva divisão espacial De fato o governogeral era um caranguejo que arranhava o litoral e quase não perturbava a vida nos vastos sertões Os governos locais eram autoridade no sertão que progredia dos que produziam inclusive domínio e defesa do território além de organizarem os mercados O governogeral tinha presença efetiva apenas na capital e nas alfândegas no carreamento de riqueza fiscal para manter a nobreza rural do Reino Mas tudo iria mudar com a descoberta do ouro CAPÍTULO 16 Governogeral no sertão CORRIA O ANO DE 1697 QUANDO OS MORADORES DE SÃO PAULO ASSISTIRAM A UMA cena inusitada depois de chegar pelo caminho que vinha de Santos um governadorgeral do Brasil subiu a ladeira do Carmo e instalouse na vila Na última ocasião em que isso acontecera viviase o ano de 1560 o governador era Mem de Sá e a sede da vila ainda era o arraial de João Ramalho com o nome de Santo André Ao longo de 137 anos os governadoresgerais comportaramse como caranguejos mal arranhando o litoral Apenas uns poucos funcionários dessa instância central haviam passado alguns dias na vila Na visita de 1560 a vila de João Ramalho era um posto de fronteira Em 1697 a capitania de São Paulo dominava de modo efetivo um território que ia pelo litoral desde o sul de Santa Catarina Laguna fora fundada por paulistas em 1680 até Parati No interior o domínio se estendia por toda a bacia ocidental do rio Paraná grosso modo as áreas dos atuais estados de Santa Catarina Paraná São Paulo Mato Grosso do Sul Mato Grosso Goiás nestes dois últimos avançando na bacia amazônica e Tocantins além das cabeceiras dos rios São Francisco e Doce no sul de Minas Gerais Sem a presença do governogeral nem de qualquer donatário todo o domínio todo o investimento econômico e toda a autoridade de governo nessa vasta região que englobava dezenas de vilas era resultado exclusivo da ação dos moradores e governos locais Foi nessa época que se deu a viagem de Artur de Sá e Menezes Governante e moradores tinham plena consciência do que o levara ali a existência de veios significativos de ouro Por causa dessa descoberta passaria a ser outro o relacionamento consolidado entre a população que vivia por conta própria e a autoridade real que se mantivera distante Por dois séculos apenas os grupos nativos e as incursões de TupiGuarani com seus aliados comerciais os moradores das vilas tiveram a capacidade de moldar a formação do sertão As andanças desses últimos seguiam roteiros determinados pelas possibilidades dos grupos TupiGuarani percorrendo o território dos aliados e evitando entrar em áreas sob o controle de outras etnias Nas andanças a torrente paulista estava se fundindo com outra nesse momento O sertão nordestino havia se forjado com a pecuária uma atividade que permitia tanto a ocupação fixa como o trânsito de gente desvinculada da aliança Nesse final do século XVII a complexidade ali era grande Os maiores criadores pernambucanos passaram a contratar paulistas com seus aliados Tupi para fazer as guerras de extermínio de nativos que resultavam na abertura de novos territórios para a atividade como no caso da chamada guerra dos bárbaros Alguns se fixaram em espaços como o do Piauí mas tinham companhia diversa Entre os vaqueiros viamse as mais variadas etnias havia índios e seus filhos mestiços com portugueses mas também mulatos negros africanos dos quilombos cafusos filhos de negros com índias Desse modo a vida no sertão nordestino apresentava já uma nova forma mais semelhante ao modelo pluriétnico retratado por Eckhout que ao da aliança lusoTupiGuarani do Sul A autoridade do governo também exibia características próprias Havia vilas e vereadores mas sobretudo nos domínios da Casa da Torre o domínio do proprietário na organização política era efetivo Tal domínio passou também a ser exercido por concorrentes que atuavam por meio de procuradores Não se tratava apenas de política Os procuradores reuniam tropas que não eram mais de índios mas de pessoas dependentes que iriam tomar conta dos rebanhos e viver na terra tudo controlado por tropas armadas para cobrar rendas e impor domínio um controle que não mais dependia da aliança por casamento mas antes de subordinação econômica por bens ou dinheiro A notícia da descoberta do ouro atraiu em primeiro lugar a gente da região dos descobridores Paulistas juntaram todos os aliados Tupi e os transformaram em mineradores Logo ganharam companhia Juntando exércitos e boiadas os criadores de gado do vale do São Francisco subiam em direção às nascentes do rio onde ficavam as minas Traficantes de escravos do Rio de Janeiro mandavam navios a Angola e organizavam caravanas para entregar cativos a mineradores em vendas fiadas ficando com parte do ouro encontrado Os traficantes da Bahia não ficaram atrás e passaram a trazer cativos da região da Costa da Mina muito valiosos porque sabiam minerar Moradores do Reino faziam de tudo para embarcar nos navios que vinham para o Brasil A avalanche foi gigantesca criando em poucos anos uma nova realidade de miscigenação descrita por João Ferreira Carrato com o foco nas uniões pessoais O grande resvaladouro da frágil virtude daquelas gentes aventureiras é a geral mancebia em que viviam quase todos os homens e mulheres inclusive sacerdotes A falta de mulheres brancas é aguda os aventureiros acham difícil conjugar a vida andeja com o regime estável do casamento as minas estão cheias de pretas escravas mulatas forras solteiras concorrendo com os homens nas minas com seu convite para a coabitação sem responsabilidades nem consequências1 A aliança entre portugueses e TupiGuarani deixava de ser condição essencial para a vida no sertão A união de pessoas de origens diversas ganhou uma dinâmica própria na área mineradora A miscigenação tornouse o meio generalizado para formação de famílias nucleares com pessoas de origens diversas A lógica de todo o processo passou a ser exclusivamente a riqueza a fortuna em ouro O papel do casamento como instrumento de alianças de grupos perdeu força Quem tinha ouro podia ter tudo A chegada de Artur de Sá e Menezes aconteceu no momento dessa mudança geral Embora com relativo atraso ela marcava o ponto inicial de uma política metropolitana de longo prazo para o sertão até então ignorado Assim que chegou o governadorgeral se reuniu com as autoridades da vila e da capitania Ao fim dos entendimentos enviou uma carta ao rei na qual repassava os objetivos centrais de sua missão e repetia alguns dos argumentos a que recorrera para convencer os moradores É de tão grande utilidade para os vassalos a riqueza que estas minas produzem e Vossa Majestade tão generosamente lhes concede e eles esquecendose das suas obrigações extraviam aquela pequena parte que Vossa Majestade manda reservar para a sua Real Fazenda e é justo que se busque todo o remédio para que a ela se pague o que cada um deve2 O governador vinha para arrecadar impostos em outras palavras aumentar as receitas do governo central A retórica melíflua revelava o essencial como o governador pretendia que as despesas com a arrecadação corressem por conta dos paulistas as palavras sobre eles eram brandas Os moradores foram lembrados de que sangue suor e lágrimas gastos para chegar até o ouro não eram tudo Embora distante por tantos anos o rei era o concessionário generoso daquela riqueza e o governador ali estava para ficar com um modesto quinto de toda ela Para um negócio como esse ser palatável aos moradores ao menos um grupo deles precisava receber o suficiente para fazer o trabalho E isso explica algumas concessões um tanto heterodoxas feitas pelo governador para chegar a um acordo O paulista que melhor conhecia a localização dos veios de ouro chamavase Manuel Borba Gato Era genro de Fernão Dias Paes com quem percorrera os sertões por anos a fio em busca do metal Homem habituado à realidade local ficara inconformado quando um abelhudo a serviço real aparecera para bisbilhotar os trabalhos Não se contivera e assassinara o emissário Certo de que seria preso se aparecesse outra autoridade lançouse num caminho só conhecido daqueles que frequentavam os Tupi embrenhandose nas matas do vale do Rio Doce onde casou com algumas filhas de chefe sinal também de que recebia mercadorias e ferro para garantir a aliança e ficou vivendo nas aldeias Uma década mais tarde sentiuse seguro o suficiente para se instalar na aldeia de Paraitinga atual São Luís do Paraitinga em São Paulo Julgandose protegido pelas dificuldades naturais de acesso mandou um recado aos parentes da vila de São Paulo contando a alguns deles informações como chegar até o ouro Alguns desses parentes participaram da reunião com o governador e ambas as partes acabaram decidindo que Borba Gato era o homem que poderia resolver todos os problemas A primeira parte de todo o combinado ganhou registro escrito num decreto do governador que alterava de modo radical a condição social do agraciado Deixava ser de um criminoso foragido para se tornar guardamor das Minas de Caetés fidalgo a quem todos deveriam mostrar respeito Confiado de sua prudência e de que se haverá muito conforme ao real serviço como dono do posto gozará de todas as honras privilégios liberdades e isenções em razão disso mando a todos os oficiais de guerra e justiça que o honrem estimem e a todos que o acompanharem que o obedeçam3 A transformação formal do assassino procurado em fidalgo honrado permitiu a organização da caravana que levaria o governadorgeral à região das minas Sem isso a elevada autoridade não teria como atravessar os matos E uma vez nas minas revelouse outra parte do acordo referente a atividades em nada relacionadas a seu posto assim descritas por Costa Matoso Na repartição das minas tomou o governador Artur de Sá e Menezes datas para si no lugar que lhe assinalou Borba Gato e nelas dizem que tirou trinta e tantas arrobas de ouro voltando rico para Lisboa4 O historiador não informa mas é possível que o governador enriquecido não tenha se esquecido de entregar a parte do rei Também Borba Gato deve ter mandado um carregamento de ouro a Lisboa pois o fato é que se transformou no fidalgo com mais poder na região mineradora a autoridade mais graduada que atuava diretamente por ordem do monarca Assim se cumpriu o objetivo da visita que era o de criar um fluxo de receitas em ouro para Lisboa sem que igualmente se criassem despesas de arrecadação Havia lucro para a metrópole a princípio suficiente para se fazer vista grossa aos vazamentos mais que evidentes na arrecadação Com vazamentos ou por méritos Borba Gato foi progredindo até o ponto de julgar razoável fazer do cunhado Gaspar Rodrigues Paes sócio de uma empreitada em parceria com o governo metropolitano Por um acordo escrito e firmado pelo governadorgeral Paes se comprometeu a construir com recursos próprios a primeira estrada encomendada pelo governogeral em dois séculos de colonização no território do Brasil ligando a região mineradora ao Rio de Janeiro Em troca recebeu a garantia escrita de que poderia cobrar pedágio de todos que a utilizassem por um período de dois anos Enquanto o cunhado dava início ao projeto Borba Gato recorreu à sua autoridade para aumentar ainda mais o lucro potencial da estrada Havia concorrência na abertura de caminhos sobretudo da parte de Manuel Nunes Viana o procurador da Casa da Ponte uma grande cadeia de criadores de gado comandada desde Salvador Mesmo antes da descoberta do ouro ele vinha se destacando por inovar no método de acumular fortuna formando um exército comandado por um escravo africano conhecido como Bigode Oriundo de uma sociedade hierarquizada Bigode moldou as tropas com disciplina realmente militar com postos hierárquicos e obediência estrita Viana se instalou na região mineradora com as suas tropas que se mostraram muito úteis nos negócios Ele trocava por ouro as reses que mandava vir do Nordeste pouco se importando com o fato de que esse comércio era proibido por lei Em pouco tempo passou a trazer também todo tipo de mercadoria da capital Salvador transformandose em comerciante atacadista Por uma década a operação funcionou sem problemas De olho nos ganhos da sua estrada Borba Gato lembrouse da ilegalidade do caminho empregado por Manuel Viana e expulsou o concorrente da região alegando que se tratava de um contrabandista Viana colocou seu exército para lutar derrotou as tropas menos treinadas dos paulistas e dobrou a aposta nos negócios Mandou um emissário até Lisboa propondo ao rei um aumento das remessas de impostos em troca de apoio No trono desde 1706 D João V ficou encantado com aquela oportunidade de mudar muito gastando pouco Para tanto comprou de volta todos os poderes que seus antepassados haviam cedido de maneira hereditária ao donatário da capitania de São Vicente Com isso recuperou franquias como as de instalar vilas supervisionar a atuação dos vereadores eleitos nomear funcionários administrativos e organizar milícias E usou os novos poderes segundo um plano determinado D João V afastou Borba Gato do cargo e o entregou a um aliado de Manuel Viana Embora a estrada estivesse quase pronta o rei tirou Garcia Paes do comando do empreendimento e apropriouse deste sem nenhuma compensação financeira Além disso dividiu em duas a capitania de São Paulo Enviou um capitão para substituir o representante do donatário na parte antiga com ordens para trocar todos os ocupantes de cargos por pessoas dependentes da nova autoridade e não de acordos com moradores ou da indicação das câmaras Com a estrada pronta agora até as tropas régias podiam circular pelo interior do Brasil Um dos contingentes a percorrer o trajeto foi a comitiva do novo governador protegida pela primeira milícia paga pelo governogeral para atuar no interior Era um investimento para tornar mais rentável a arrecadação da região mineradora que logo se mostrou frutuoso Os carregamentos de ouro para Lisboa subiram em proporção bem maior do que as despesas com o pagamento de tropas e funcionários Depois o rei tratou de evitar possíveis vazamentos de impostos pelos moradores Empregando os poderes de administrador da Igreja criou um regulamento próprio para a nova capitania das Minas Gerais proibindo os jesuítas até então os favoritos para executar as tarefas reais de nela se instalarem Diante de tanto ouro achou melhor manter afastados não só os inacianos mas também outras ordens regulares Tanto os jesuítas como os carmelitas franciscanos e beneditinos recebiam do rei franquias de imunidade tributária e fiscal que costumavam transferir para as Ordens Terceiras Dirigidas por leigos essas ordens acumulavam um capital que ficava fora de alcance dos arrecadadores e era empregado como ativo bancário em empréstimos Em pouco tempo a cadeia de comando que subordinava os súditos ao rei ganhou uma forma bem distinta daquela dos tempos das solicitações de cartas e títulos de fidalguia A máquina arrecadadora era do rei requerendo a obediência de todos os moradores Quando se consolidou a capacidade de ação militar do governo central Manuel Nunes Viana conheceu o mesmo destino daqueles que ajudara a afastar acusado de um crime administrativo foi expulso das Minas Gerais e processado Os passos para a instalação dessa forma de governo repetiramse quase como um roteiro fixo em todos os pontos do interior onde foi achado ouro Num único parágrafo o historiador Affonso Taunay resumiu o que se passou com Bartolomeu Bueno da Silva em Goiás Descobrira o terceiro Eldorado brasileiro Trouxe 25 quilos de ouro de sua viagem Com eles ia instalar os poderes que o governador de São Paulo lhe prometera por escrito domínio sobre 600 mil alqueires de terra pedágios em onze rios guardamoria e superintendência das novas minas Em 1727 assumiu o governo da capitania de São Paulo Antônio da Silva Pimentel obcecado pela ideia de fazer a América esboçou o projeto de espoliar o descobridor de Goiás dos proventos de tão grandes sacrifícios Inventando haver descoberto um plano de insurreição dos paulistas de Goiás maquinado por um de seus sócios Bartolomeu Pais mandouo encerrar coberto de grilhões num calabouço e o manteve um ano e meio encarcerado5 Com base na acusação Bueno da Silva teve seus poderes anulados Enquanto tentava se defender o rei empregando seus poderes sobre o território da capitania de São Paulo adquiridos do donatário criou a capitania de Goiás e instalou um governo com autoridade amparada por tropas O mesmo aconteceu em Mato Grosso também separado da capitania de São Paulo após a descoberta do ouro e com o Distrito Diamantino separado da capitania de Minas Gerais e administrado diretamente pela Coroa O ouro e os diamantes tornaramse fatores de introdução da autoridade do rei do governogeral no sertão sempre com o mesmo objetivo o de recolher impostos O historiador José Francisco da Rocha Pombo descreveu no início do século XX os resultados À medida que iam se descobrindo minas se iam criando estações arrecadadoras bem guarnecidas de força A forma usual de cobrança por meio de rendeiros agravava enormemente os danos provenientes do excesso de contribuições e da dureza do fisco Já nas licitações para a arrecadação davamse fraudes das mais escandalosas ora os provedores faziam vingar suas preferências escolhendo os licitantes que mais lhes convinham ora alteravam as condições do contrato para favorecer os ricos As classes dominantes os ricos e poderosos encontravam sempre meios de fazer recair no trabalho e portanto nos menos favorecidos o peso das imposições Eralhes mais fácil pleitear isenções de impostos e favores excepcionais que só aproveitavam ao alto comércio As populações em geral eram tosquiadas sem dó nem piedade e de todos os modos Mesmo no suntuoso período das minas não se sabe dizer quem mais andaria na terra do ouro ou dos diamantes mais agitado com aquela abundância surpreendente e maravilhosa se a legião de mineiros ou se o exército que os acossa persegue e castiga dos extratores do Real Erário6 Como nota o historiador o papel que coube aos moradores foi o de sócio menor na arrecadação Este sócio fazia um contrato para cobrar impostos com apoio das tropas e recolher a receita eventualmente desviando o que pudesse no caminho nos postos fiscais Como a posição dependia de uma escolha com alto grau de arbitrariedade da parte dos governadores os candidatos tendiam a ser muito respeitosos com estes E como era uma função provisória os escolhidos precisavam ganhar o quanto podiam o mais rápido possível A arrecadação em larga escala levou a passos maiores na reforma da estrutura administrativa da colônia Em 1714 o rei D João V transformou o governogeral em vicereinado A partir de então o posto ficou reservado aos titulares das casas mais altas do Reino com predomínio de condes e marqueses Abriuse espaço para que membros da alta nobreza se tornassem com frequência cada vez maior os escolhidos para governar as capitanias mineradoras Desde a posse em Minas Gerais do conde de Assumar em 1717 esse tipo de escolha tornouse cada vez mais constante O mesmo aconteceu em Mato Grosso ficando apenas Goiás sob o comando de meros fidalgos Com isso completouse o plano iniciado modestamente por Artur de Sá e Menezes o ouro passou a fluir do corpo do Brasil para os cofres reais e dali para caminhos que merecem ser conhecidos CAPÍTULO 17 Os favores da cabeça A MUDANÇA NA FORMA DE GOVERNAR COM O GOVERNO CENTRAL ABSORVENDO OS poderes da instância intermediária das capitanias nas regiões mineradoras logo alcançou seu propósito maior um aumento significativo na arrecadação do império português Melhor ainda criou um fluxo que era basicamente de ouro Acumular no Tesouro uma reserva de metais preciosos era o grande sonho dos reis europeus do século XVIII Para os economistas da era mercantilista o desafio estava em encontrar as melhores receitas para encher os cofres reais de moeda metálica D João V logo se viu na situação de ser pela cartilha econômica da época um dos mais bemsucedidos governantes Ficou rica a cabeça mística do Reino que até há pouco vivia apenas do leite de sua vaquinha O fluxo de ouro provocou uma mudança importante na estrutura das receitas fiscais de Portugal Algo entre dois terços e três quartos do total do que entrava nos cofres passou a vir do Brasil Por outro lado os impostos pagos pelos moradores do Reino tornaramse uma parcela cada vez menor do bolo tributário equivalendo a cerca de um quinto dos tributos recolhidos Ao arrecadar mais o rei ganhava também a possibilidade de gastar mais E fez isso segundo a mais escorreita cartilha da teoria dominante em Portugal o corporativismo Esta pregava que a sociedade se organizava como um corpo cuja cabeça mística era o rei e as demais corporações vinham abaixo cada qual com sua função até a colônia plebeia que ficava nos pés O rei era o único que detinha o conhecimento da dose justa de retribuição que cada órgão desse corpo merecia Numa situação de fartura as figuras mais próximas da cabeça do reino nobreza alto clero burocracia lisboeta começaram a empregar as letras que dominavam para elaborar argumentos ao dar a cada um o seu cabia ao rei lembrarse antes dos maiores Os argumentos foram expostos num livreto intitulado Advertimento dos meios mais eficazes e convenientes que há para desempenho do patrimônio real de autoria de Baltazar de Faria Servetim Ordinariamente fazem uma descrição das grandes virtudes que há de ter o Príncipe como há de ser justo temente a Deus misericordioso liberal afável prudente e valoroso Tratam mui difusamente da conveniência do Rei ter muitas rendas grandes riquezas e tesouros e dizem muitas outras coisas que servem somente para pintar um perfeito Príncipe e uma perfeita República São especulativos não considerando mais que a bondade dos fins1 Não era preciso mais que adular a magnanimidade do soberano e relembrar a sua bondade em atender os fins propostos especulativamente pelos autores Com isso a maior parte que saía do Tesouro abastecido pelos colonos brasileiros seguia para os bolsos dos detentores dos chamados direitos adquiridos ou seja aqueles para os quais as Ordenações determinavam um tratamento preferencial Um rei justo premiava os nobres um rei temente ajudava a Igreja um rei liberal mandava pagar boas tenças e pensões a seus preciosos funcionários um rei afável agradava os fidalgos D João V levou em conta cada um desses pontos das cartilhas que louvavam as virtudes reais na hora de gastar o ouro acumulado de dar a cada um o seu a fim de preservar as diferenças que a natureza marcara entre pessoas desiguais Nesse sentido privilegiou as partes do corpo social mais próximas da cabeça aquelas tidas como as de maior virtude na sociedade José Hermano Saraiva resumiu as despesas em poucos números À Igreja pertenceriam rendimentos de montante semelhante ao Estado à nobreza outro tanto dividindose portanto a renda global em três partes de valor aproximado entre os três setores2 Igreja e nobreza de sangue eram consideradas as partes mais próximas da cabeça mística do Estado na forma de entender vinda da Antiguidade e mantida na Idade Média e ficavam com dois terços do arrecadado em ouro A administração o comércio as formas econômicas de produção de riqueza a fidalguia os vassalos e os escravos formavam indistintamente o todo beneficiado com os gastos pela rubrica que o autor denomina Estado As formas para manter as diferenças da Igreja metropolitana detentora de direitos inexistentes na colônia seguiam diretrizes diversas do rigor visto na implantação de ordens religiosas nos territórios mineradores A maior obra do reinado de D João V foi a construção do gigantesco convento de Mafra que empregou 40 mil homens e consumiu o equivalente a 140 toneladas de ouro ou vinte anos de arrecadação do quinto de ouro no Brasil Essa foi apenas a parte maior mas não a mais conspícua dos gastos Entre os regalos de Sua Majestade aos prelados nenhum causou mais furor que os recebidos pelos cardeais Pereira e Cunha 50 dúzias de pratos de ouro para cada um A mesma atenção recebeu a nobreza como se nota no crescimento do pagamento de pensões que saltou do equivalente a 45 toneladas de ouro anuais em 1681 para 85 toneladas em 1716 e nada menos que 274 toneladas anuais em 1748 Portanto D João V promoveu a montagem de um sistema tributário colonial com ênfase na arrecadação e a associou a uma política de gastos de caráter estamental Retirava o ouro produzido pelos que constituíam as partes mais baixas do corpo social e o entregava aos estratos mais elevados Só no final de seu longo reinado o monarca teve a preocupação em fazer um investimento para melhorar o estatuto do Brasil Em 1743 o rei nomeou seu secretário Alexandre de Gusmão nascido em Santos vila da capitania de São Paulo para o Conselho Ultramarino a mais alta instância de governo do mundo colonial português Ao assumir o cargo Alexandre de Gusmão começou a pesquisar no arquivo da instituição com uma estratégia clara buscar todas as evidências documentais das andanças pelo sertão de todos os grupos resultantes da aliança entre Tupi e portugueses E foi assinalando em mapas os pontos citados nos documentos até vislumbrar uma demarcação contínua do território Depois reuniu argumentos para transformar papéis e mapas em documentos capazes de fundamentar pretensões de domínio territorial reconhecidas pelo direito internacional Completou o trabalho com o envio de espiões para verificar a situação de zonas fronteiriças e fazer relatos e mapas favoráveis para reforçar os argumentos nos casos duvidosos Após quatro anos de trabalho foi encarregado em 1747 de negociar as fronteiras entre os territórios americanos de Espanha e Portugal Apresentou sua tese em vez de discutir o direito ao território com base na documentação tradicional bulas papais e o Tratado de Tordesilhas por que não empregar a posse como critério traçando a linha de fronteira pelos pontos que separavam os territórios ocupados pelos súditos de cada reino Gusmão alcançou seu objetivo no Tratado de Madri firmado em 1750 a posse efetiva do território serviu de critério para a delimitação de fronteiras quase todas delineadas em função de limites físicos rios divisores de água das ocupações e incursões de moradores restando apenas uma linha imaginária ligando o extremo sudoeste do Amazonas ao norte de Mato Grosso A nova configuração das divisas indicada num mapa anexado ao tratado delimitou uma área que coincidia em grande parte com o espaço TupiGuarani ficando entremeados a este os territórios das vilas e também aqueles dominados pelos Caribe Jê e Aruaque a maioria ainda desconhecidos dos TupiGuarani e portugueses Desse modo a área de domínio da aliança lusoTupiGuarani se transformava em unidade reconhecida juridicamente pelo direito internacional e identificada pelo nome de Brasil Os muitos atos de casamento entre mulheres nativas e lusitanos o apoio dos chefes aliados aos genros e viceversa as incursões de guerra escravidão ou negócios a destruição de outras etnias o controle de espaços e a busca de riqueza passavam todos para outro plano Tidos até a véspera como impróprios ou ilegais adquiriram o estatuto de atos fundadores do domínio jurídico do reconhecimento internacional das fronteiras do território e de marcadores de uma unidade soberana portuguesa A morte de D João V no mesmo ano da assinatura do tratado assinalou também o fim da concentração dos gastos na nobreza e no clero Seu sucessor D José preferiu governar por meio de um valido o marquês de Pombal que tinha outra concepção das prioridades do Reino Ele estava convencido de que era melhor dar dinheiro a comerciantes e empresários para que multiplicassem a riqueza econômica por meio de investimentos rentáveis Todavia alterar a destinação dos recursos não era nada simples numa sociedade em que a lei funcionava como instrumento de garantia de privilégios estamentais até mesmo para um homem com os poderes de rei Para dar a quem necessitava seria preciso tirar de quem não queria perder E cada um contemplado pelo monarca anterior tinha tomado bastante cuidado para registrar a benesse como direito adquirido Como notam Manuel Hespanha e Angela Barreto A derrogação de um direito adquirido a propriedade de bens posse de ofícios detenção de um privilégio irrevogável o direito de não pagar certos impostos só era possível em sede judicial Dito isto já se vê como os tribunais como instância de salvaguarda da justiça e da defesa dos direitos adquiridos de cada um ocupam na esfera do Antigo Regime uma função constitucional determinante 3 A palavra constitucional não tem o sentido atual uma vez que as leis maiores do reino as Ordenações eram uma coletânea de normas consuetudinárias daquilo que havia sido adquirido como direito por grupos específicos e não um conjunto de normas gerais Esse modo de governar no qual a lei era talhada na medida de cada favorecido tornouse um obstáculo espinhoso quando Pombal quis mudar o feitio do gasto governamental Só podia dispor de certas partes da receita do Estado pois cada ceitil que não fosse entregue aos detentores de direitos adquiridos quase certamente seria objeto de processos contra o Erário Na busca por um alvo que fosse ao mesmo tempo relacionável aos estratos superiores e com menos direitos adquiridos acabou por se fixar nos jesuítas em especial aqueles a quem os soberanos haviam delegado poderes equiparáveis aos dos funcionários da Coroa o que de fato haviam sido Já em 1751 o marquês tomou uma medida similar à deliberada por D João V transferiu competências de instâncias menores de governo para o poder central subordinando ainda mais o Estado do GrãoPará diretamente à Coroa Em seguida nomeou o próprio irmão Francisco Furtado Mendonça para o seu governo No ano seguinte o governador arrancou assinaturas de comerciantes locais para um pedido de incentivo ao comércio A tal ajuda viria em 1755 na forma de uma companhia monopolista de comércio constituída por capitais particulares mas que também desfrutava de concessões governamentais que iam desde o monopólio comercial em todo o novo estado até um conjunto de isenções de impostos e privilégios alfandegários Evidentemente eclodiram protestos da parte dos negociantes prejudicados pelo privilégio legal mas também houve gritaria da parte dos jesuítas que tinham bons lucros com a venda da produção dos diversos aldeamentos no Maranhão e no Pará Dessa vez os argumentos não foram entendidos como defesa de direitos adquiridos Pombal aproveitou a segurança jurídica oferecida pelo reconhecimento do domínio português no Tratado de Madri e promulgou uma lei que transformava todos os nativos tutelados do território em súditos da Coroa Ao estender a eles a condição de homens efetivamente livres Pombal anulava a política que vinha desde os tempos de Mem de Sá dois séculos antes Para regulamentar a situação promulgou também um Diretório dos Índios detalhando o novo estatuto legal dos nativos no Estado do GrãoPará e não em todo o Brasil Pela nova lei as aldeias onde viviam os nativos transformaramse em vilas Os nativos viraram súditos sujeitos a obrigações que iam desde o modo correto de morar até o serviço militar passando pelas modalidades autorizadas de comércio Antecipando a objeção de que os nativos desconheciam a lei esta previa a nomeação de um diretor para cada aldeia um português encarregado de fazer os moradores se adaptarem ao novo figurino com poderes muito mais amplos que os dos padres que administravam aldeamentos Pombal derrogou todos os fundamentos construídos pelos jesuítas Quando estes reclamaram o marquês os chamou de insubordinados algo possível para quem era administrador de toda a Igreja no reino iniciou um processo em Roma e atacou firme Em 1759 expulsouos de todos os domínios portugueses e transferiu para a Coroa todas as propriedades e bens da Companhia de Jesus em seu território Tomando para a Coroa o governo e a administração em áreas da colônia em que não havia ouro Pombal inaugurou uma fórmula para arrebanhar uma parcela ainda maior da produção brasileira arrochar a riqueza local e encher os bolsos de governantes e comerciantes privilegiados com favores monopolistas do governo A estratégia repetiuse no Sul com a redivisão da capitania de São Paulo e a transformação das novas capitanias de Santa Catarina e São Pedro do Rio Grande em áreas de assentamento de colonos açorianos e sob o controle direto do governo metropolitano O alvo seguinte foi Pernambuco nessa altura o último espaço economicamente relevante do Brasil no qual a instância intermediária de governo a capitania ainda operava com a autonomia derivada da força política dos herdeiros do donatário original Primeiro o marquês concedeu favores aos comerciantes metropolitanos que constituíram a Companhia de Pernambuco e da Paraíba Como esses favores não permitiram afastar a concorrência em área sem monopólio o empreendimento não teve o mesmo sucesso Apesar disso o método voltou a ser aplicado Em 1799 na tentativa de contornar os direitos adquiridos existentes o governo central dividiu o território pernambucano com a criação das capitanias do Ceará e da Paraíba e nesta o comércio foi entregue a uma companhia monopolista formada em Lisboa Assim se completou o chamado Século do Ouro no qual a Coroa foi atribuindo para si poderes crescentes Na área administrativa com a elevação de estatuto do seu maior representante agora um vicerei e o controle direto pelo monarca do governo de quase todas as capitanias e de seus cargos administrativos seja pelo uso de tropas militares em funções de polícia seja pelo privilégio legal concedido a comerciantes próximos ao centro do poder Essa concentração de poder administrativo coincidiu com um grande aumento na receita de impostos originários do Brasil que passou a quase pagar toda a conta de manutenção do império português Esses impostos por sua vez geraram despesas nas quais a metrópole era privilegiada as pessoas próximas ao Rei recebiam benesses seja no caso do clero e da nobreza como nos tempos de D João V seja no dos comerciantes e empresários na época de Pombal Em qualquer dos casos os brasileiros passaram a pagar muito mais impostos do que aquilo que recebiam como serviços ou investimentos do governo metropolitano De modo a atualizar o velho objetivo do governo central de arrecadar muito e gastar pouco no Brasil havia sido montada sobretudo nas regiões mineradoras uma estrutura peculiar Um funcionário temporário vinha na função de governador Sabia que desde que o rei recebesse sua cota de impostos pouco se importaria com o fato de ele mesmo aproveitar a oportunidade para enriquecer também A melhor oportunidade era escolher novos comerciantes com os quais se associar na função de cobradores de impostos Os interessados aprenderam depressa a considerar o convite uma oportunidade de curto prazo de modo que tratavam de agir com os mesmos métodos do governante Para todos os envolvidos no alto escalão rei vicerei governadores e arrecadadores locais o objetivo maior era o já citado de arrecadar muito e gastar o mínimo possível Com a rotatividade nesses cargos o Brasil se tornava um fornecedor de mais dinheiro para a metrópole e no sentido inverso a metrópole se reafirmava como território recebedor de dinheiro arrancado da colônia pelo governo central reforçando a tendência que vinha do século XVI Maior poder político e muito maior disponibilidade de dinheiro para o governo central levam a imaginar que a economia metropolitana para a qual se faziam tantos favores teria colhido os benefícios do governo que a privilegiava em outras palavras que seria bem mais pujante que a do Brasil de onde se arrancavam os tributos e lucros com mercadorias exportadas Durante séculos essa foi a suposição dominante entre os historiadores Lendo os documentos que falavam das violências do governo metropolitano e dos seus prepostos nas capitanias assim como dos gemidos dos moradores tais historiadores escreveram sobre o período como se não tivesse havido ganhos no mercado local Todavia a partir da década de 1970 com os novos métodos estatísticos aplicados à história econômica veio a surpresa ao longo de todo o século XVIII apesar da ação de transferir rendas do governo central o desempenho da economia colonial superou o da economia metropolitana No final do século quando decaiu a produção das minas essa diferença se acentuou ainda mais com a economia brasileira em franco crescimento ao passo que a da metrópole entrava em crise4 Para se entender como ocorreu esse desenvolvimento maior não há como recorrer a velhas hipóteses como a que postula o apoio do governo metropolitano à colônia Em vez disso a resposta está nas estruturas remanescentes dos governos das vilas e dos costumes dos moradores governandose a si mesmos CAPÍTULO 18 Ouro e redistribuição dos governos no território A EXPANSÃO DA ESFERA CENTRAL DE GOVERNO FOI IMENSA NO SÉCULO XVIII COMO um todo Na altura da viagem de Artur de Sá e Menezes em 1697 o governogeral desfrutava de uma margem de manobra quase nula no interior do território Mal e mal tinha atuação regular em Salvador única cidade na qual contava com oficinas Afora isso apenas os jesuítas pagos pelo rei e sem depender de moradores eram agentes regulares da esfera central pois os demais padres embora funcionários públicos dependiam dos moradores para ter rendas Na esfera intermediária o centro comandava apenas as capitanias do Rio de Janeiro e da Bahia A substituição do governogeral pelo vicereinado foi o primeiro passo na organização de uma nova estrutura de comando A arrecadação de impostos nas zonas minerais o pivô das mudanças levou o governo central a se mexer em 1763 a capital foi transferida de Salvador para o Rio de Janeiro refletindo as novas prioridades O reforço da esfera central não se limitou a essa alteração de estatuto O maior avanço ocorreu no domínio da esfera intermediária A recompra da capitania de São Paulo permitiu a criação de novas capitanias no interior subordinadas diretamente à Coroa e desprovidas de autonomia administrativa Essa foi a forma de governo que passou a predominar nos sertões São Paulo Minas Gerais Mato Grosso e Goiás as quatro capitanias que não tinham sede no litoral passaram a ser governadas por delegados temporários vindos de fora sem raízes locais e com objetivos que não coincidiam com aqueles dos moradores Mas esse tipo de ação não se restringiu à zona mineradora O Pará também virou uma zona sob o controle mais direto de Lisboa Santa Catarina e São Pedro do Rio Grande no Sul foram separadas de São Paulo e tornaramse capitanias dependentes da autoridade central Na Bahia as capitanias de Ilhéus e Porto Seguro converteramse em unidades subordinadas a Salvador No final do século XVIII o domínio da Coroa sobre as capitanias era quase total Apenas Pernambuco mantinha umas tantas prerrogativas próprias e por isso mesmo o seu território acabou sendo fatiado com cada nova capitania perdendo a sua autonomia Essa inegável expansão da autoridade do governo central no entanto pode indicar a formação de um governo unificado no Brasil ou que a população tinha um só governo Para comprovar isso o melhor é examinar a situação a partir do território Até nessa área houve uma mudança conceitual importante Na virada para o século XVIII a área abrangida pela aliança lusoTupi era fluida apenas uma parte indeterminada das Terras Baixas na zona tropical do continente A partir de 1750 com o Tratado de Madri a área foi delimitada com fixação dos limites da autoridade metropolitana no espaço territorial E era muito espaço nos termos oficialmente reconhecidos nada menos que cerca de 8 milhões de quilômetros quadrados Tal território em tese marcaria o âmbito da ação de um governo central com controle e comando Na prática porém não era bem assim Havia muita gente no território que jamais vira em vida um europeu ou mesmo um descendente miscigenado deles Essa população nativa continuava governando a si mesma em cada aldeia segundo seus costumes Do mesmo modo esses costumes guiavam o relacionamento com grupos mais próximos em termos culturais povos de mesma etnia ou língua E continuavam travando guerras ou firmando alianças com povos de etnias ou línguas diversas Ainda no final do século XVIII os governos de aldeia continuaram sendo os únicos conhecidos em quase toda a bacia amazônica que ocupava mais da metade do território Imensas porções dos atuais estados de Mato Grosso Mato Grosso do Sul Goiás Tocantins São Paulo Paraná Santa Catarina e Rio Grande do Sul eram controladas por povos que não mantinham relações de aliança com os TupiGuarani Na maior parte dos casos os territórios nos quais viviam eram pouco conhecidos e pouco frequentados pelos TupiGuarani ou por seus aliados das vilas No entanto ao longo do século a pressão vinda da porção que se mercantilizava a área sob o domínio das vilas levou cada vez mais adiante as incursões dos TupiGuarani que ali viviam Os parentes distantes dos aliados por casamento iam na frente abrindo o caminho para cada vez mais caravanas mercantis formadas por europeus nativos e miscigenados No início do século XVIII esses grupos percorriam apenas alguns rios maiores Ao longo do período em especial na Amazônia os vales dos principais afluentes conheceram uma devastação imensa em decorrência dessas incursões Quem tentava resistir o Aruaque Ajuricaba à frente de uma coligação de muitos povos do rio Negro na terceira década desse século é o exemplo mais conhecido era massacrado obrigando os sobreviventes a buscar refúgio em áreas inacessíveis às canoas dos forasteiros Parte dessa pressão deviase ao fato de que o território original dos TupiGuarani também conhecera transformações relevantes A área de influência das vilas era restrita no final do século XVII mal e mal chegando a uns poucos quilômetros além das praças da matriz Além disso quase só existiam vilas na faixa litorânea Qualquer incursão mais distante no interior requeria a organização de caravanas de aliados nativos No final do século XVIII por outro lado havia muitos caminhos no interior do continente pelos quais as caravanas originárias das vilas levavam mercadorias com o auxílio secundário dos aliados vivendo na mata Alguns percursos ainda eram aventurosos como as monções que seguiam de São Paulo ou Belém para em viagens de seis meses levar artigos adquiridos pelos enriquecidos com o ouro de Cuiabá Muitas dificuldades foram vencidas e as antigas trilhas Tupi se tornaram picadas viáveis para imigrantes que afluíam em massa de Portugal ou para as caravanas de escravos africanos que seriam vendidos no interior do continente Antes de examinar esse tipo de negócio no entanto cabe dizer algo sobre a situação dos Tupi e dos outros nativos que tiveram de ser afastados para tornar possível esse tráfego Todos esses grupos indígenas sofreram com o aumento da ocupação A existência anterior sob os governos consuetudinários só continuava possível em franjas marginais Ao longo do século XVIII porém consolidaramse também formas de convivência que permitiam aos TupiGuarani sobreviver em bolsões situados nas áreas sob controle das vilas O projeto original dos jesuítas o de reunir índios aliados no espaço segregado do aldeamento aos poucos tornouse uma instituição corriqueira nas vilas de todo o Brasil Os que ali viviam passaram a ser chamados índios bons numa referência indireta ao estatuto dos homens bons os fidalgos eleitores A ideia da liberdade natural antes tão estranha ganhou uma tradução pela qual a situação do nativo aliado ainda que não fosse de liberdade plena não se confundia com a escravidão O arranjo se fez por meio de regulamentações no instituto da tutela no início reservado apenas para os jesuítas encarregados de assegurar a liberdade dos nativos No decorrer do século o conceito de tutela foi tendo o seu sentido alterado O termo escravidão foi definido como o ato de comprar e vender pessoas como mercadorias em troca de dinheiro e isso continuou sendo proibido Também continuou proibida a transmissão de nativos por herança Todavia por meio da chamada administração a tutela exercida apenas pelos religiosos foi estendida à população civil Agora o indígena recebia um tutor que deveria educálo para a religião católica e representálo perante as autoridades civis e por isso em troca adquiria o direito de ficar com parte do resultado do trabalho do administrado que em teoria era livre para ir e vir além de poder recusar trabalhos O instituto do aldeamento ou seja a terra demarcada que era propriedade dos nativos e onde podiam viver segundo alguns de seus costumes foi reformulado como administração e sobreviveu à transformação do estatuto dos nativos que passaram de tutelados a súditos assim como à expulsão dos jesuítas No final do século XVIII encontravamse aldeamentos até mesmo nas maiores cidades e remontam a essa época os primeiros censos da população Um dos mais detalhados feito na Bahia por José Antônio Caldas em 1759 indicava a população de 29 aldeamentos nas capitanias da Bahia Ilhéus e Porto Seguro 29 mil casais e um total de 102 mil moradores1 Nesse mesmo ano haveria nas vilas 286 mil fogos unidades produtivas familiares e 205 mil moradores2 Com isso as famílias de nativos seriam equivalentes a 103 das unidades produtivas e os moradores de aldeamento equivaleriam a 49 da população total Tais números apresentam discrepâncias e boa dose de imprecisão Ainda assim mostram que os aldeamentos continuavam fazendo parte da realidade social e produtiva até mesmo na área sob controle das vilas Com muitas alterações na sociabilidade e nos costumes ainda era um espaço no qual havia algum grau de autonomia governamental para os aliados históricos que haviam garantido a ocupação e a segurança do território E nunca é demais relembrar parte da sobrevivência dos aldeamentos devese ao fato de que os colonos auferiam lucros monetários nas relações com os nativos Mesmo em áreas remotas estes constituíam um mercado potencial para os utensílios de ferro e eram fornecedores de diversos produtos e de mão de obra Continuaram propiciando oportunidades de acumulação de capital Continuaram sendo essenciais para a segurança Continuaram fornecendo conhecimento da natureza tropical O governo das vilas era exercido num espaço mesclado com a área dos aldeamentos e os territórios não demarcados onde predominavam os aliados nativos A parcela maior de domínio territorial compunhase de pontos descontínuos e dispersos por todo o sertão Muitos não passavam de ranchos a partir dos quais os moradores de vilas organizavam incursões de troca com os aliados Outras áreas descontínuas eram os currais de gado no caso do Nordeste em especial locais de descanso para tropas sobretudo no Sudeste ou as roças que geravam pequenas aglomerações de caboclos que se estabeleciam ao longo dos trajetos das caravanas comerciais Aqui e ali despontavam áreas de produção econômica regular e moradores permanentes produzindo para o mercado e comprandolhe os produtos No século XVIII já estavam espalhadas por todo o território do Rio Grande do Sul ao Amapá da Paraíba ao interior do Amazonas Com frequência a comunicação entre os mercados se fazia por meio de um novo tipo de caravana a tropa de mulas conduzida por um pequeno empresário que cobrava frete para as cargas em função do peso da mercadoria e da distância do trajeto recebendo sempre em dinheiro Mas também reservava parte das bruacas para suas mercadorias negociando ele próprio pelos caminhos À diferença de quase todos os comerciantes estabelecidos os tropeiros não se pautavam pela instituição do fiado Compravam e vendiam à vista acumulando os lucros sob a forma de dinheiro sonante Estabelecidas no decorrer do século XVIII as rotas de tropeiros tornaramse assim indicativos claros da localização e do tamanho dos mercados No final do século nenhum caminho de tropas era mais movimentado do que aquele ligando o Rio de Janeiro às mais importantes cidades mineradoras das Minas Gerais Em seu tronco principal circulavam até 400 tropas por semana transportando mercadorias de todo tipo no final do século voltavam com a produção agrícola e industrial tecidos especialmente que já era relevante na região e tinha mercado na capital Esse contingente de tropeiros respondia por apenas uma fração do abastecimento de Minas Gerais Outra rota importante era a existente entre a região mineira e a vila de São Paulo Neste caso também eram significativos os lucros com a venda das próprias mulas um negócio que ia além das fronteiras geográficas brasileiras Os criadores estavam quase todos no território espanhol da bacia do Prata A descoberta do ouro fez com que em poucos anos tenha surgido um caminho até lá pelo interior do continente Já em 1720 os paulistas compravam regularmente mulas jovens nos domínios espanhóis de onde eram conduzidas até os pastos de recria nas cercanias de Curitiba Adultas eram conduzidas até Sorocaba local de uma grande feira anual Não demorou para que a feira de Sorocaba refletisse o dinamismo da economia no território agora reduzido da capitania de São Paulo e era um indicador sempre positivo Na segunda metade do século XVIII eram ali negociadas mais de 10 mil mulas por ano o suficiente para abastecer no mesmo período 125 mil tropas novas Os compradores adestravam os animais misturandoos com as pachorrentas bestas mais velhas Os carregamentos seguiam sobretudo para a região mineradora mas o plantel era revendido para todo o Brasil Com isso as Minas Gerais passaram a ser outro centro de redistribuição do qual saíam caminhos para todos os pontos do interior No final do século até Goiás e Mato Grosso passaram a receber tropas saídas de Minas Gerais e que levavam mercadorias trazidas do Rio de Janeiro No início os baianos também eram compradores importantes das mulas paulistas empregadas em tropas que abasteciam as regiões mineradoras do estado com produtos de Salvador No retorno para a antiga capital muitas dessas tropas cruzavam com caravanas que levavam outra mercadoria produzida com capitais brasileiros fora do espaço territorial local os escravos africanos A exploração do ouro desencadeou um crescimento vertiginoso do tráfico de escravos o qual se estendeu por toda a costa africana até mesmo em áreas fora do domínio português Assim que viram a escala da demanda os traficantes de Salvador aceleraram ao máximo o envio de navios negreiros ao litoral africano Por volta de 1730 a região começou a receber frotas navais regulares de comerciantes baianos E logo estes abriram uma rota ainda mais lucrativa ao empregar o tabaco como moeda de troca na Costa da Mina Formalmente o território era holandês Na prática como os navios enviados levavam propinas sob a forma de mercadorias destinadas aos oficiais holandeses não havia nenhum empecilho oficial para o tráfico nos centros dedicados a esse negócio no litoral Tamanha era a frequência que se arranjou o estabelecimento de um posto permanente exclusivo dos traficantes baianos a fortaleza de Ajudá onde aportavam a cada ano cerca de duas dúzias de navios vindos da Bahia Assim como no Brasil a economia local era movida por uma combinação de trocas diretas de mercadorias negócios pagos com moeda guerras casamentos e acordos políticos Isso permitia inclusive que mestiços brasileiros cuidassem de negócios numa cultura com que já estavam familiarizados Um deles foi Félix Soares de Souza filho de português com índia que se mudou para Ajudá e lá se estabeleceu Começou a carreira de comerciante em posições inferiores Mas mostrouse muito hábil para tirar proveito de alianças matrimoniais das guerras e dos negócios ganhando fama pelo proverbial cumprimento da palavra empenhada Subiu tanto na vida que acabou virando rei do Benim Morreu já no século XIX deixando 53 viúvas 100 filhos 2 mil escravos para vender e uma fortuna em dinheiro O domínio de brasileiros era igualmente forte nas possessões africanas de Portugal Angola e Moçambique recebiam navios enviados do Rio de Janeiro Salvador e Pernambuco Eles levavam mercadorias diversas e o ouro que financiava os captores africanos e o comércio local e na volta traziam os escravos Na África a administração metropolitana era da mesma natureza que a brasileira limitandose a cobrar impostos O dinamismo econômico e social na colônia durante o século XVIII parece sugerir que havia sentido na intuição exposta por frei Vicente do Salvador havia um mercado em funcionamento fora da esfera governamental desde as ocas dos índios até as casas dos grandes traficantes os homens mais ricos do Brasil mais ricos até do que os mineradores bemsucedidos Mas é essencial notar uma mudança Ao falar de governo o frei referiase a um governogeral que mal passava de um adendo administrativo na capital da colônia Por outro lado no fim do século XVIII havia de fato um governo central operante no Brasil com capacidade para comandar as instâncias intermediárias de poder Mas continuava como dizia o frei só curando para receber suas rendas e seus direitos o que obrigava os colonos a zelar apenas por seus negócios particulares Com isso tal como no caso das alianças de casamento com nativos a era da mistura geral de raças da ampliação da presença do escravo africano num ambiente de desigualdade econômica e social o que movia o século do ouro era a mescla de governo local e costumes ou visto da perspectiva oposta o governo formal ainda que ampliado para as capitanias pouco teria a ver com a dinâmica mercantil da ocupação do território Mas o que era invisível para o frei tornouse evidente para estudiosos de história econômica possibilitando um retrato numérico dessa realidade CAPÍTULO 19 Riqueza e empreendedores UMA DAS ORIENTAÇÕES DO MARQUÊS DE POMBAL QUE CHEFIOU O GOVERNO metropolitano a partir de 1750 foi a de que os funcionários produzissem censos regulares da sociedade e da economia No caso brasileiro as informações censitárias mais amplas foram aquelas registradas pelos funcionários mais conspícuos do governo os padres que passaram receber dados de cada paróquia em cada vila brasileira e com eles puderam compilar os chamados maços de população Esses dados eram arquivados com outros produzidos nas paróquias e depois consolidados na medida do possível a partir de cópias enviadas a Lisboa Num tempo em que os documentos eram manuscritos tinham de ser lidos um a um Como não havia processos mecânicos de cálculo as contas para avaliar os dados eram limitadas Sem imprensa cada cópia de cada página tinha de ser feita manualmente e os envios eram demorados Com tudo isso a consolidação de dados era precária e acabava circulando apenas num circuito muito limitado Para os historiadores que vieram depois as dificuldades se mantiveram a dispersão das informações inviabilizava qualquer tentativa de análises mais generalizantes Liam então os documentos produzidos pelos governantes que em geral realçavam o próprio papel e denegriam a situação local Sem alternativas argumentavam em torno daquilo a que tinham acesso Mas tudo mudou quando esses dados foram digitalizados e organizados permitindo que fossem acessados com maior facilidade e analisados como totalidades Com isso o conjunto passou a fornecer um retrato estatístico de certa coerência e as revelações foram surpreendentes Ainda na década de 1970 o historiador francês Fréderic Mauro recorreu a técnicas quantitativas para examinar as relações entre as economias do Brasil e de Portugal no final do século XVIII Na visão tradicional de história econômica esse seria um período caracterizado por uma produção decrescente de ouro E pensando a economia colonial apenas como um reflexo das suas exportações imaginouse que essa queda nas exportações implicaria uma tendência de empobrecimento do Brasil Todavia o que Mauro constatou com base nos números foi bem o contrário Enquanto a economia brasileira registrava uma curva ascendente de crescimento entre 1787 e 1825 a economia portuguesa vivia um ciclo descendente iniciado em 1770 e que se estenderia até 1790 ano em que teria início uma ascensão até a segunda década do século seguinte Os dados apontavam para um período de progresso na economia brasileira que teria se iniciado numa época de franca decadência da produção de ouro O historiador foi cauteloso na hora de tirar as conclusões Seríamos tentados a falar que após a crise do ouro o Brasil teria mergulhado numa economia estacionária Mas é o período em que se desenvolve a criação poderíamos falar num ciclo do gado e as culturas de substituição cacau no Pará algodão e arroz no Nordeste e no Sul1 Ao estudar as balanças comerciais entre Brasil e Portugal no mesmo período José Jobson Arruda levanta uma hipótese para explicar os fatos revelados em pesquisas quantitativas O que aconteceu no período que vai de 1796 em diante Se o ouro estava em fase de declínio e o açúcar conhecia uma leve ascensão como pôde crescer o movimento das exportações neste período Como se explica o salto de 32 milhões de libras em 1796 para 38 milhões em 1807 Só há uma resposta Uma diversificação2 Pouco depois ao enfocar o mercado do Rio de Janeiro João Luís Fragoso notou uma discrepância ainda maior No período de 1799 a 1811 enquanto as exportações locais registravam uma queda muito forte a uma taxa média de 179 ao ano resultante sobretudo da diminuição dos embarques de ouro as taxas de crescimento dos produtos de mercado interno como a farinha e o charque continuavam positivas Mais ainda as vendas de escravos africanos cresceram a uma elevada taxa de 51 ao ano3 Com a acumulação dos dados ficou cada vez mais evidente que no final do século XVIII a economia colonial brasileira era pujante e pujante em decorrência do crescimento de seu mercado interno Mais ainda era uma economia bem maior que a da metrópole Entre 1796 e 1807 as exportações brasileiras corresponderam a nada menos que 837 do total de todas as exportações coloniais para a metrópole no mesmo período as reexportações dessas mercadorias geraram 566 das receitas do império português colônia e metrópole com o comércio exterior No sentido inverso o Brasil consumia 748 dos produtos enviados da metrópole a todas as colônias e 591 dos produtos importados pelo Reino Em poucas palavras os números revelam o oposto do que pressupunham as interpretações anteriores a economia brasileira tinha dinamismo próprio e a economia da metrópole dependia disso Quando as estimativas chegaram a um resultado consolidado dessa economia interna o percentual da produção voltada para o mercado interno que a interpretação tradicional em decorrência do emprego da noção de economia de subsistência postulava como insignificante gerava nada menos de 85 da riqueza brasileira bem mais do que os 15 assegurados pelas exportações4 Evidenciouse portanto que o mercado interno era o centro dinâmico da economia colonial algo que estudos posteriores confirmaram como regra que valia desde o início da colonização Essa certeza de uma dinâmica interna se firmaria ainda quando já no final do século XX os historiadores econômicos começaram a analisar estatisticamente os dados dos censos do século XVIII inclusive fazendo agregações para todo o Brasil Embora estas ainda contenham alguma imprecisão as tendências parecem claras como se vê por exemplo a partir da análise do censo de 1819 Ainda que referente a um período um pouco posterior ao final do século XVIII mostra um retrato demográfico e sociológico da sociedade brasileira válido para o entendimento de processos de longo prazo Na época a população total brasileira contava cerca de 439 milhões de pessoas Embora estes sejam os números finais uma parcela importante é pura estimativa 800 mil índios Aí estão incluídos os moradores de aldeamentos portanto devidamente contabilizados Todavia aquela que seria a maior fração da rubrica a dos grupos sem contato e que se governavam pelo costume não podia ser recenseada embora as trocas com eles fossem parte da economia Por isso é bem possível que a quantidade de indígenas tenha sido bastante subestimada Mesmo assim levando em conta esses números notase que os índios livres representavam 182 da população Já os 359 milhões de outros habitantes apareciam em grandes grupos separados pela escravidão A população de moradores livres das vilas era de 248 milhões de pessoas 566 do total Foram contados 11 milhão de escravos ou seja 253 da população recenseada No global portanto 748 eram pessoas livres Ainda que ampliando a imprecisão uma maneira possível de mostrar o perfil sociológico dessa população na economia é recorrer a uma estimativa hipotética Os censos da época empregavam a categoria fogos para classificar as unidades produtivas Cada fogo era definido segundo a tradição aristotélica uma família constituída pelo chefe e seus dependentes mulher filhos escravos e agregados livres Um resultado censitário elaborado com tal conceito foi obtido para a população baiana de 1759 Dividindose a população total calculada por José Antônio Caldas 205 mil pessoas pelo número de fogos 286 mil resulta que cada fogo teria uma média de 76 pessoas Supondo hipoteticamente que a proporção fosse a mesma em todo o espaço brasileiro os 359 milhões de pessoas livres do Brasil de 1819 formariam 5013 mil fogos ou unidades produtivas A distribuição dos escravos entre essas unidades já foi calculada com precisão bem maior a partir dos estudos censitários os quais indicam que a média de escravos por proprietário na virada do século XIX era de cinco cativos Aplicado ao dado censitário o número de proprietários de escravos seria de 220 mil Assim 9 do contingente de homens livres ou 44 dos chefes de fogos o que talvez fosse mais razoável como forma de raciocínio seriam proprietários de escravos Essa larga distribuição do trabalho escravo pelas unidades produtivas contrapõese à ideia de latifúndio e da concentração de riqueza numa minoria populacional O que os números revelam isso sim é um gradiente definido uma grande maioria de produtores independentes de unidades familiares sem escravos que são também unidades produtivas de empreendedores Mesclado sociologicamente a elas está um grupo muito grande de pequenos proprietários de escravos sendo a média aritmética de cinco escravos por proprietário fica claro que a imensa maioria dos proprietários tinha menos de cinco em termos estatísticos a mediana é bem inferior à média Ainda que se empregue a média claramente um número menor que a realidade para agregar num único grupo os não proprietários e os pequenos proprietários neste caso cinco escravos ou menos a soma daria 391 mil fogos ou 78 do total Este é o mínimo para um agrupamento que formava o universo central da produção brasileira no período o das pequenas unidades produtivas independentes Tal espécie de unidade produtiva foi objeto de um estudo específico de Iraci Del Nero da Costa intitulado Arraia miúda que compara dados censitários de várias regiões da colônia e em épocas diferentes do século XVIII e início do XIX O trabalho adota um procedimento metodológico essencial separa a população livre em dois grupos um de pequenos proprietários de escravos e outro de não proprietários de escravos Fez isso inclusive nos subgrupos dos dependentes e agregados Em seguida os dois grupos foram contrapostos em função de uma série de variáveis que iam do tipo de produção econômica de que cada qual participava até os dados de renda e família Dessa maneira o autor traçou um retrato de base empírica mostrando que não havia proprietários de escravos ricos num extremo da sociedade e uma massa de não proprietários com pouca ou nenhuma renda no outro Pelo contrário com base na estatística ele conclui Os não proprietários compunham parcela majoritária da população livre ademais os mesmos não perderam tal posto em face a expressivas mudanças econômicas e demográficas observadas no passar do tempo O crescimento econômico mesmo quando orientado pela expansão do comércio exterior vinha acompanhado de oportunidades das quais usufruíam também os não proprietários de sorte que os mesmos não eram excluídos das áreas economicamente mais dinâmicas nem perdiam sua posição numericamente dominante A conclusão maior é que tanto da órbita demográfica como daquela marcada por elementos de natureza socioeconômica não havia hiato absoluto a distinguir proprietários e não detentores de cativos A impressão deixada pela análise era a de que estávamos a tratar de duas amostras da mesma população 5 Mesmo se tratando de um único estudo ele tem bases censitárias bastante sólidas e diversificadas tanto no espaço como no tempo Sendo assim é estatisticamente improvável que esse indicador não tenha relação significativa com a realidade global da economia brasileira do século XVIII ainda que variantes possam surgir após outros estudos Segundo um resumo das pesquisas quantitativas realizado por Francisco Luna e Herbert Klein os estudos recentes indicam uma sociedade mais complexa com um mercado interno ativo no qual gêneros básicos eram comercializados para suprir esse mercado e também identificam um amplo sistema de comércio regional e ofícios artesanais Em todas essas atividades agricultura comércio e artesanato encontramos proprietários e não proprietários de escravos bem como trabalhadores livres e cativos Encontramos inclusive proprietários trabalhando ao lado de seus escravos Por toda parte havia cativos até mesmo nos domicílios caracterizados como pobres Não havia região ou atividade econômica sem escravos Mas é importante enfatizar que em todas as atividades exceto na produção de açúcar também havia trabalhadores livres sem escravos6 Além de indicarem uma produção econômica baseada no mercado interno os estudos quantitativos mostraram com clareza que ainda que houvesse concentração de riqueza a produção econômica se estruturava em torno de muitos produtores independentes ou seja de empreendedores individuais a maioria dos quais trabalhava sem escravos ou com contingentes muito reduzidos de cativos Com tal retrato renovado da produção econômica no final do século XVIII a estatística permitiu comparações de magnitude entre economias diversas Uma dessas comparações é esclarecedora Os Estados Unidos exportavam na virada para o século XIX algo em torno de 4 milhões de libras esterlinas anuais como se viu as exportações brasileiras de 1807 foram de 38 milhões de libras esterlinas A diferença de tamanho entre as duas economias portanto estaria mais relacionada ao mercado interno do que ao externo Uma avaliação dessa diferença poderia começar pelas comparações demográficas Em termos de urbanização as três maiores cidades dos Estados Unidos Nova York Filadélfia e Baltimore tinham por volta de 65 mil habitantes em 1810 uma população equivalente à das três maiores cidades brasileiras Rio de Janeiro Salvador e Recife na mesma época Em 1800 a população dos Estados Unidos era de acordo com os critérios censitários locais de 53 milhões de pessoas sendo 41 milhões registradas como caucasianos 81 e 11 milhão de outros 19 Em termos gerais a população era cerca de 20 maior que a brasileira A proporção entre homens livres e escravos também era semelhante As diferenças maiores estavam nos conceitos O critério de classificação norte americano pressupõe uma identidade completa entre a situação étnica de caucasiano e o estatuto social de pessoa livre Desse modo a classificação étnica funcionava como sinônima da posição social o mesmo valendo para o papel de escravo O emprego do termo outros para se referir a escravos negros era então bastante amplo constando até mesmo do texto da Constituição norteamericana E o corte que fazia coincidir a situação racial com o cativeiro tinha um sentido empírico com baixíssima taxa de alforria e leis locais baseadas na raça por exemplo os negros eram proibidos de votar fossem ou não escravos os negros livres compunham um grupo muito pequeno naquela sociedade Outra diferença radical é a ausência de índios no censo norteamericano Isso acontecia porque estes eram considerados pessoas de outras nações estrangeiros Tal tratamento conceitual refletia uma prática consagrada Desde o início da colonização os protestantes sobretudo os puritanos adotaram a definição adotada por Jean de Léry no Rio de Janeiro em 1553 consideravam os nativos como pessoas desprovidas de razão incapazes de ler a Bíblia e compreender a verdade revelada eram portanto pessoas que não poderiam fazer parte da sociedade Em consequência a política que se adotou em relação a eles foi de extermínio que não deixou rastros nem nas estatísticas Dessa maneira as diferenças de pensamento geraram censos que mostravam diferenças sociológicas imensas assim descritas por Herbert Klein Embora a sociedade escravista brasileira do século XIX diferisse pouco da existente no Sul dos Estados Unidos em termos de tamanho e peso relativo da população cativa e seus senhores houve diferenças significativas entre essas duas sociedades no tamanho de sua população livre Enquanto nos Estados Unidos mais de 95 da população livre era branca na maior parte do Brasil os brancos tendiam a compor menos da metade da população livre No início do século XIX o Brasil possuía a maior população livre de cor de todas as sociedades escravistas da América 7 Vale lembrar que o termo pessoas livres de cor é uma agregação estatística recente Os censos brasileiros do século XVIII adotavam categorias intermediárias para dar conta de mesclas étnicas As categorias mais comuns eram pardo filho de europeu e índia nas áreas de maior influência Tupi multietnia inespecífica na maior parte do território mulato filho de europeu e africano cabra ou cafuso filho de africano e índia Eram categorias fluidas muitas vezes uma pessoa que enriquecia ou tratava com fidalgos recebia uma classificação a cada censo Assim a mulata Francisca Silva de Oliveira a Xica da Silva à medida que ganhava prestígio social foi sucessivamente classificada como Francisca Mulata Francisca da Silva parda forra e Francisca Silva de Oliveira sem qualificativos pelos recenseadores de Diamantina A explicação é simples e reflete a evolução do seu relacionamento estável com João Fernandes de Oliveira o contratador a maior autoridade da vila O sentido é claro embora as economias do Brasil e dos Estados Unidos tivessem exportações população e proporção entre homens livres e escravos comparáveis o que eventualmente pode levar a supor um resultado econômico total comparável dada a grande participação do mercado interno no total da produção brasileira possivelmente da mesma magnitude que na economia norte americana o domínio de empreendedores na estrutura produtiva e a acumulação de capital centrada na produção escravista os processos de formação da cultura eram diferentes Não se tratava apenas de diversidade no tamanho da produção e da estrutura sociológica Talvez a grande diferença estivesse no comércio exterior A independência política em 1776 permitiu que os Estados Unidos diversificassem o destino das suas exportações As colônias sulinas dependentes da produção escravista enviavam a sua produção para a Inglaterra o algodão comandava a pauta que comprava 90 do total as colônias do centro exportavam sobretudo para a Europa continental 55 das vendas lideradas pelo tabaco já as colônias setentrionais especializaramse em exportações de produtos alimentares e de abastecimento para o Caribe 75 do total Marcadas as semelhanças e as diferenças entre as duas maiores economias do continente na virada para o século XIX fica mais claro o que era próprio da formação brasileira a peculiar relação entre um governo que se pautava pela teoria e a lei escrita do Antigo Regime e uma sociedade com estrutura étnica caracterizada pela miscigenação e por costumes que não eram exatamente os previstos nas leis Tal contraste se tornou ainda maior com o controle da escrita forte ao ponto de influenciar historiadores e suas análises sobre o período por vários séculos CAPÍTULO 20 Governos locais e costumes na mineração do ouro O CONDE DE ASSUMAR FOI UM DOS PRIMEIROS NOBRES TITULADOS A GOVERNAR Minas Gerais Tomou posse em 1717 e deixou o governo três anos depois sem descuidar da arrecadação para o rei e da saúde do próprio bolso Deixou impressões contundentes sobre a experiência A terra parece que evapora tumultos a água exala motins o ouro toca desaforos destilam liberdade os ares vomitam insolências as nuvens influem desordem os astros o clima é tumba da paz e berço da rebelião a natureza anda inquieta consigo e amotinada por dentro é como no inferno 1 O texto atualiza para o século XVIII aquilo que se poderia chamar de visão do caranguejo A chave dessas impressões está na atribuição à natureza do sentido que lhe conferia Aristóteles como autora da divisão entre senhores e escravos que fundava toda a ordem política e social Se os atentados contra essa divisão eram motivo de ironia na pena de Gregório de Matos eles despertam o horror em um nobre habituado a palácios e cortesãos O narrador é um governante plenamente identificado com a concepção de mundo do Antigo Regime com uma sociedade dividida pela natureza entre desiguais A partir desse critério tenta explicar uma sociedade constituída por mineradores afanosos na busca de um quinhão de riqueza que se juntam em uniões que não levam em conta raça ou posição social que empreendem como podem que enriquecem em liberdade Para o governante contudo não passam de desclassificados Assim haveria no Brasil uma contradição entre os costumes de baixo e as leis do alto Recorrendo às categorias de um mundo para falar de outro o conde empregava a escrita como típico narradorcaranguejo tendo como critério os fundamentos da desigualdade que supostamente marcaria a civilização coloca no balaio do mal do desvio e da selvageria tudo o que faziam os súditos Tal postura existia já desde um século quando foi expressa pelo conde E não destoava em nada do que dizem os documentos sobre os ocupantes do governo central e até agora havia poucas razões para que historiadores questionassem esse tipo de opinião No entanto como vimos as pesquisas recentes mostram uma realidade distinta na qual as atividades econômicas são regidas pelo mercado a economia apresenta dinamismo próprio a sociedade é constituída de produtores independentes tanto pequenos empreendedores como grandes empresários a escravidão é essencialmente de pequenos proprietários indistintos do grupo dos produtores independentes há um domínio financeiro sobre a África com grandes empresários os mais ricos do Brasil controlando o negócio e com um ritmo de crescimento maior que o da metrópole arrecadadora enfim tudo isso nos obriga a deixar de lado a concepção da colônia como um espaço subalterno Sem alternativa os historiadores tradicionais seguiam o caminho imaginavam uma economia sem dinâmica pessoas incapazes ou revoltadas e o Brasil que explicavam era uma colônia pobre e de gente baixa Nesse sentido as suas narrativas seguiam na mesma direção do conde Mas as novas descobertas requerem uma mudança analítica radical Não se trata mais de dar uma resposta nova à interpretação que dominou por séculos até os clássicos mas de abandonar o caminho e reformular o problema explicar como se deu esse crescimento da economia colonial enquanto o governo central expandia os seus poderes às capitanias extorquia recursos como nunca em proveito da metrópole e tentava enquadrar os moradores numa ordem pouco adequada para sua realidade de produtores capazes de criar uma economia produtiva Para tanto faz pouco sentido apelar para o já conhecido seja o coevo de definições como as do conde de Assumar e tantos outros até mesmo Gregório de Matos ou as interpretações posteriores que empregavam a noção de economia de subsistência Ou descrever o governo central o caranguejo do litoral como sendo a boa norma e o mundo do sertão como desvio Ou ainda a ordem como resultado da aplicação das Ordenações do Reino e os costumes locais como depravação Sem se atentar para a originalidade do que ocorre na colônia para os novos costumes de busca da riqueza e liberdade de comportamento em relação ao padrão europeu os governos locais e as instituições o novo problema ficaria sem resposta Para entender o progresso da economia na formação demográfica e social da colônia é preciso seguir outro caminho Não só explicitar o papel dos governos locais como reavaliar o julgamento negativo dos costumes predominante na documentação e retransmitido por historiadores que não podiam lidar com as descobertas das pesquisas recentes Uma reavaliação desse tipo partiria da própria lei portuguesa vigente na colônia Se as Ordenações do Reino como um todo determinavam juízos como o do conde de Assumar cabe notar que apenas parte desse ordenamento basicamente os livros IV e V era aplicada aos moradores do Brasil o que faz muita diferença na hora de avaliar o lugar do mercado na vida social A diferença na organização começava já nos poderes reservados aos ocupantes dos estratos mais baixos aqueles sem nobreza nem pertencentes ao clero regular que constituíam o governo eleito das autoridades nas vilas Por meio das eleições eram escolhidos representantes isto é pessoas que recebiam delegação para governar segundo as leis E governar para esses vereadores significava exercer ao mesmo tempo três poderes formular por escrito as leis como os atuais membros do poder Legislativo comandar a sua aplicação como os atuais detentores do poder Executivo e chefiar a aplicação da justiça nomeando juízes No Brasil colonial por toda parte onde se implantou uma vila o mecanismo da eleição mostrouse efetivo e regular como um relógio com ou sem autoridade régia presente As condições de vida da grande maioria dessas vilas regidas com alternância de poder ao longo dos três séculos da era colonial foram mais ou menos as mesmas povos miscigenados com raríssimos alfabetizados analfabetos votavam e eram votados vivendo isolados e longe da autoridade central Caberia aqui uma questão até que ponto os governantes locais mandavam Se comparados aos vereadores eleitos nas vilas de Portugal mandavam muito mais No Reino apesar de os moradores das vilas elegerem os seus representantes os poderes destes eram severamente limitados não apenas pelo rei mas pelos direitos hereditários dos nobres dos senhores de terra do clero dos fidalgos de diversas espécies todos definidos nos títulos das Ordenações que não eram aplicados no Brasil Sobrava muito pouco para os vereadores em Portugal Já na maioria das vilas brasileiras os poderes que se contrapunham aos dos mandatários eleitos eram muito menos presentes Apenas donatários e governadoresgerais depois do ouro no geral capitãesmores nomeados pelo governo central se sobrepunham aos vereadores Ainda com a mudança na melhor das hipóteses o poder de interferência dessas autoridades era constante apenas na vila onde moravam e intermitente ali onde enviavam representantes No Brasil colônia o governo local por meio de autoridades eleitas foi uma estrutura de poder permanente geral e homogênea traço cultural essencial numa realidade social Foram governos com uma dose de consenso e consulta popular capazes de operar com legitimidade Havia no Brasil um grau de soberania popular maior do que na metrópole Nesse caso a lei geral que regulava o assunto não era apenas norma exótica Ganhou um conteúdo efetivo ao se tornar costumeira com o hábito de eleger e confiar no governo coletivo E esse foi um costume popular coletivo constante Não veio do alto não dependeu de iluminados metropolitanos basta isto para se entender o século e meio de isolamento da São Paulo de analfabetos e mamelucos de três em três anos essa gente organizou eleições deu posse aos governos seguiulhes as determinações e os governantes entregaram os cargos aos eleitos Essa esfera de governo era simplesmente desprezada em textos de governantes como o conde de Assumar embora fosse a única esfera de governo atuante em grande parte do território Ao final do século XVIII os governos de vila exerciam autoridade sobre um espaço de magnitude comparável aos governos consuetudinários dos diversos povos nativos Constituíamse em padrão regular seguindo fielmente partes determinadas das Ordenações do Reino mas com substância conferida pela herança da autoridade delegada dos chefes Tupi repassada aos mestiços analfabetos As câmaras processavam diferenças culturais imensas abismos de posição social interesses materiais contraditórios Sobre elas recaía o peso da defesa do território ainda que mitigado pelo surgimento de milícias do governo central e do provimento de serviços de toda espécie Elas obtinham legitimidade suficiente para manter algum consenso interno uma vida suportável para todos Além do poder temporal havia um poder espiritual A Igreja era a única parte do governo capaz de atuar em todo o território em conformidade com um ordenamento uniforme mas isso exigiu concessões de monta à realidade local A parte mais conhecida da adaptação foi desenvolvida pelos jesuítas grandes produtores de documentação escrita para os padrões da época e não à toa pois eram subsidiados pelo governo central em função de contratos que traziam objetivos claros de ação O primeiro grande resultado desse trabalho foi a criação do arcabouço legal que permitiu a conversão dos Tupi e o seu emprego pelos inacianos e pelo governo como agentes sociais e políticos relevantes A ação requereu até mesmo mudança em regras gerais da Igreja como por exemplo a licença papal para casar primos cruzados Exigiu inovações conceituais como a afirmação de um direito inato à liberdade Passou pela legislação com a criação dos institutos legais do aldeamento da tutela e da administração Parte desse esforço atendia a interesses próprios do governo geral Os padres envolveram os nativos aldeados em guerras que interessavam mais a Portugal do que aos indígenas como no caso das lutas contra os franceses e os seus aliados Mais tarde o manejo dos índios de aldeamentos tornouse uma forma consensual entre moradores e padres pois garantia a segurança interna da área das vilas contra ataques de grupos não Tupi e os serviços geridos pelos padres Os jesuítas foram a parte mais eficiente do governo central português até a descoberta do ouro quando foram proibidos de se instalar nas minas progressivamente afastados pelas autoridades enviadas de Lisboa vicerei e capitães nas capitanias reais e por fim expulsos enquanto seus bens passaram para o governo central O ato tornou ainda mais relevante a figura que desde o início da aliança era o esteio da Igreja o padre secular Os primeiros chegaram antes mesmo do governo convivendo com os pioneiros europeus que se estabeleceram no território Como eram tempos em que os padres seculares isto é os padres que não eram formados em conventos de ordens religiosas chamados regulares podiam casar viviam como todos os demais inclusive sagrando casamentos poligâmicos com nativas Somente em 1552 o rei empregou seus poderes para organizar administrativamente a Igreja no Brasil criando um bispado em Salvador Deste partiriam as ordens para criar freguesias e paróquias além da nomeação dos responsáveis O primeiro bispo Pero Fernandes Sardinha viveu às turras com os jesuítas Obrigado a organizar a instituição com o material disponível deixou de lado o rigor dando muito pouca importância à decisão do Concílio de Trento que a partir de 1543 impôs o celibato aos padres seculares A tolerância do bispo com os costumes vigentes segundo os inacianos tornava muito largas as portas do céu A divisão se consumou o bispo e todos os padres dependiam de esmolas dos moradores para viver portanto não estavam em posição de impor costumes rigorosos ao rebanho As críticas dos jesuítas aumentaram de tom e o resultado foi a renúncia do bispo em 1556 Partiu para Lisboa mas acabou capturado depois de um naufrágio Mostrouse guerreiro de coragem ao menos no julgamento dos captores que o sacrificaram e deglutiram sua carne e seu sangue Mas a realidade mostrouse inexorável Os bispos não podiam prescindir do clero secular e esse clero formado por conta própria composto de funcionários públicos que passavam em exame pessoas obrigadas a ganhar a própria vida quando não tivessem postos rentáveis tornouse a regra no Brasil Apenas as vilas mais ricas dispunham de recursos para sustentar conventos de beneditinos e carmelitas num primeiro momento e depois de franciscanos E se até José de Anchieta constatou que só haveria conversão com a adesão a costumes rituais como festas e rezas noturnas os padres seculares foram ainda mais longe Organizaram um modo de ser católico cuja base era uma relação entre o sagrado e o cotidiano mediada por rituais adaptados ao modo indígena procissões romarias festas dos santos muitas vezes figurando deuses de outras culturas e quase nada na leitura que a política de segredo tornava inacessível até mesmo aos ricos comuns A mesma política foi adotada quando vieram os africanos Já no início do século XVII surgiram as primeiras irmandades do Rosário dos Pretos nas quais cultos sincréticos tornaramse regra Nem mesmo as ordens regulares escaparam ao sincretismo Bento Teixeira tido como o primeiro poeta brasileiro conseguiu ser ao mesmo tempo rabino respeitado e monge beneditino nada de muito estranho numa terra para a qual vieram muitos conversos os cristãosnovos judeus que adotaram nova fé para fugir da Inquisição e muitas vezes mantiveram duas identidades religiosas Com isso os padres seculares foram ganhando forte penetração social transformando o culto católico com fortes traços rituais e com ligação direta entre o praticante e o mundo espiritual ao modo dos pajés numa religião de caráter universal em meio a uma sociedade formada por gente de muitas crenças e etnias Como eram também funcionários públicos cumpriam funções de agentes em diversos serviços com as igrejas atuando como oficinas governamentais A documentação eclesiástica tinha valor civil as certidões de batismo casamento e óbito eram registros oficiais Nos dois primeiros séculos as igrejas eram também cemitérios Depois do século XVIII os padres com postos na hierarquia passaram a realizar os censos em suas circunscrições Com isso o governo podia contar com uma rede de funcionários para determinadas tarefas Muitas vezes o padre era o único agente do governo com que tinha contato o morador dos rincões competindo apenas com os concessionários da cobrança de impostos Administrações locais e clero secular eram instituições de governo com atuação geral regular e tão universal quanto era possível no Brasil Funcionavam nos moldes da lei desempenhavam papel fundamental com sua atividade eram a rigor as oficinas do governo a parte que atendia a população atendia a suas necessidades organizava a vida Mas não eram exatamente benquistas pelos governantes a serviço da Coroa que tendiam a se identificar com nobres ou fidalgos de alta linhagem Por isso tratavam a parte vulgar da sociedade plebeus ou mercadores como gente cuja única função na vida política era a obediência cujo modelo era aquele do escravo Essa qualidade central do modelo era bem o que faltava nos moradores das Minas Gerais na visão do governante Um modo alternativo de entender a pestilência que ele descreve seria pensar que os mineradores não eram mais pessoas formadas segundo a lógica do Antigo Regime inclusive em parte substancial de seu governo com várias frações dele servindo a outros propósitos validando outros costumes como bons e morais E o que valia para os governos locais e o clero secular valia ainda mais para certos institutos legais das Ordenações do Reino que regiam a vida civil as relações contratuais entre pessoas CAPÍTULO 21 Costumes e lei civil após o ouro A APLICAÇÃO AO BRASIL APENAS DOS LIVROS IV E V DAS ORDENAÇÕES PERMITIU o surgimento de traços institucionais peculiares na colônia alguns até mesmo inusitados no Ocidente como um todo Uma definição legal que concebida unicamente para os mercadores e o povo acabou ganhando maior espaço na colônia foi aquela que enquadrava a terra como mercadoria pura e simples Desde sempre no âmbito português da América a terra podia ser vendida e empenhada Havia poucas exceções na hora de executar as hipotecas rurais entre as quais a existência de um negócio global engenhos por exemplo e umas poucas proteções para organizações eclesiásticas mas nenhum impedimento para que senhores de engenho ou ordens regulares comprassem e vendessem as suas propriedades fundiárias Com isso desde muito cedo foi possível dividir lotes alienar instalações obter empréstimos Embora corriqueira no Brasil colonial essa situação era incomum em outras partes Na metrópole a maior parte da terra estava tão vinculada a direitos da nobreza ou do clero que a tornavam inalienável ou impediam que fosse empenhada Esses direitos incluíam jurisdições sobre pessoas e serviços algo que não ocorria no caso brasileiro A situação era tão incomum que até mesmo o atilado Karl Marx não a imaginou possível Os homens muitas vezes converteram outros homens em mercadorias mas nunca a terra Esta ideia podia apresentarse somente em sociedades burguesas já desenvolvidas que datam do último terço do século XVII e só foi levada à prática um século mais tarde com a revolução burguesa da França1 Algo semelhante acontecia com o sistema de heranças As Ordenações do Reino aplicadas ao Brasil reconheciam apenas um caminho aquele que mandava dividir os bens entre os herdeiros Como mostra Thomas Piketty não era o que se passava no restante do Ocidente Muitas sociedades aristocráticas tradicionais têm como base do sistema de herança o princípio da primogenitura dando ao filho mais velho a totalidade da herança ou ao menos uma parte desproporcional do patrimônio parental de modo a evitar seu esfarelamento e preservar ou fazer crescer a fortuna familiar Em relação à riqueza a Revolução francesa e o Código Civil por ela cunhado fundaramse em dois pilares essenciais a abolição das substituições hereditárias e da primogenitura com a afirmação do princípio da divisão igualitária dos bens entre irmãos e irmãs a Revolução americana não sem certa polêmica chegou às mesmas conclusões e o princípio de divisão igualitária das heranças entre irmãos foi inscrito na lei como regra padrão No Reino Unido a primogenitura continuou como regra padrão até 1925 na Alemanha foi necessário esperar a República de Weimar em 1919 para que se abolisse a primogenitura2 A norma da divisão entre todos os herdeiros desde o início da colonização no Brasil teve consequências importantes no que se refere ao empreendedorismo Nos primeiros dois séculos em boa parte por causa dos costumes TupiGuarani de realizar alianças matrimoniais com o intuito de trazerem homens para a casa permanente das mulheres o costume levou a um emprego da lei que reforçava ainda o incentivo a empreendimentos individuais Embora sem se referir à origem cultural do comportamento a historiadora norte americana Muriel Nazzari não deixou de notar o que acontecia em São Paulo no século XVII Como na São Paulo do século XVII não havia companhias ou sociedades comerciais formais a família proprietária constituía ela mesma a estrutura por meio da qual se efetivava a produção econômica O casamento era o modo como se formava uma nova empresa produtiva em que o dote da esposa proporcionava a maior parte dos meios de produção necessários para dar início à nova unidade Casarse com uma mulher com dote constituía também um dos poucos modos pelo qual um jovem adquiria recursos independentes Consequentemente o dote era uma instituição importante e o casamento não era assunto privado que interessasse apenas aos indivíduos envolvidos3 Além de ser um modo de viabilizar um empreendimento ao modo da cultura Tupi o dote era uma forma de financiar o empreendedorismo dos jovens a partir dos bens acumulados pelo grupo familiar da noiva Esses bens eram convertidos em investimento em vez de permanecerem imobilizados como patrimônio O processo ganhava escala significativa na medida em que todas as herdeiras da casa tendiam a receber dotes e todos os jovens maridos que se punham a empreender ao lado do sogro buscavam o melhor desempenho para o dote recebido Mas a oferta da noiva também se mostrou um instrumento flexível no sentido inverso isto é como forma de atração de capital Isso aconteceu desde cedo no litoral açucareiro onde a acumulação de fortunas por comerciantes virou meio muito favorável para o casamento com uma filha de senhor de engenho ou mesmo de grande plantador Esse processo difundiuse por toda parte onde havia fortunas monetárias e tornouse regra no Brasil a partir da mineração do ouro nem mesmo a São Paulo isolada das minas escapou da mudança Em meados do século XVIII os maridos contribuíam muito mais para os casamentos que as esposas Assim as mulheres dotadas casavamse com homens de grandes fortunas e permaneciam em melhor situação que seus irmãos que só podiam casar com mulheres com dotes muito menores que os de suas irmãs É provável que esta transformação do pacto matrimonial tivesse relação com o surgimento do comércio no século XVIII o qual permitia que os homens com alguma capacidade empresarial acumulassem grandes fortunas que não tinham relação direta com seu capital inicial Assim se vê que um negociante não precisasse tanto da contribuição em bens de sua esposa quanto um fazendeiro ou um criador de gado ainda que se beneficiasse enormemente das relações que adquiria Como um negociante se interessava mais pelas relações com a família da noiva que seu dote podia aceitar um dote com menos bens do que ele levava para o casamento4 O conhecimento da origem antropológica desses costumes permite inclusive conferir lógica à espécie de família nova que se formava assim descrita por Lúcia Azevedo e Martha Azevedo O que mais chama a atenção na estrutura da família no período colonial e do Império é a extrema importância da família extensa Casamentos legítimos ou não chamados concubinatos entre parentes eram extremamente comuns sendo os mais comuns os de tio com sobrinha e entre primos que são os preferenciais indígenas Também são comuns relações de uma pessoa com vários parentes homem que tem relação com a mulher e a irmã a mãe ou a tia desta ou a mulher que tem relação com o irmão ou o pai do marido Outra característica importante é o compadrio através do apadrinhamento de crianças estabeleciase laços de amizade proteção e solidariedade dentro das famílias muitas vezes parentes são chamados de padrinhos e também entre famílias formando uma rede social que estabelece ligações e obrigações recíprocas O batizado era uma festa importante na realidade quotidiana sendo a criança fruto de casamento oficial ou não Isso era muito difícil de entender para os representantes da Igreja a aceitação de um sacramento o batismo sem a aceitação concomitante do casamento É que assim são estabelecidas alianças rituais através da utilização de um ritual católico mas com um sentido bem diferente Em estudos atuais sobre comportamento familiar do brasileiro é evidente a importância tanto das relações de consanguinidade quanto das solidariedades construídas através de vizinhança e compadrio Deste modo essas assim chamadas relações incestuosas na verdade revelam a existência e aceitação coletiva de relacionamentos que se alternam dentro da família legal ou não consanguínea ou espiritual Nesse sentido mais que um indicativo da dissolução de costumes a análise desses envolvimentos dentro dos sistemas de parentescos afirma uma família capaz de gerar laços internos de solidariedade e afeto Mas é no estudo do papel da mulher que vamos encontrar mais dados sobre alguns arranjos típicos do Brasil que discrepam do modelo prescrito de família sobretudo o patriarcal Durante todo o período colonial as mulheres foram muito mais ativas do que era esperado no modelo patriarcal o que espantava muitos viajantes estrangeiros Tinham um papel grande de liderança social eram fundadoras de capelas curadoras mulheres de negócio administradoras de roças e fazendas A mulher na ausência do marido por viuvez ou por migração para outras áreas o que foi e ainda é bastante comum assumia a gestão dos negócios e da família Eram também líderes políticas locais não podiam ocupar cargos públicos mas exerciam de fato poder político as mulheres das classes altas aparecem em inúmeros documentos envolvidas nas intrigas locais fazendo pressão sobre as autoridades para conseguir o que queriam Por exemplo uma senhora de Sorocaba recebeu em 1798 uma carta do bispo de São Paulo pedindo que ela fizesse chegar aos ouvidos do governador o que lhe contava que é exatamente o papel político das mulheres numa maloca Tupi 5 Com isso em mente dá para identificar a origem cultural de certas realidades notadas pelas pesquisas empíricas assim explicitadas por Francisco Vidal Luna e Herbert Klein As novas pesquisas também trouxeram à luz o papel das mulheres como proprietárias de escravos Ainda que os homens predominassem como chefes de domicílio e proprietários de cativos as mulheres foram um elemento importante em ambos os grupos Além disso como proprietárias elas possuíam o mesmo número médio de escravos que os homens A maioria das mulheres porém assumiu a posição de chefe de domicílio ou proprietária de escravos ao enviuvar e tomar posse de metade dos bens da família Mas houve também muitas mulheres especialmente entre as artesãs e as ocupadas no comércio que foram economicamente independentes graças a recursos próprios os quais com frequência incluíam escravos6 Tanto a aplicação da leitura antropológica dos costumes como os resultados da pesquisa mais recente levam a conclusões bastante diversas da interpretação tradicional que postulava uma estrutura familiar de modelo patriarcal e mostrando que as relações de gênero dominantes atribuíam à mulher papéis que iam muito além da submissão algo relativamente simples de entender quando se sabe o papel central da mulher na sociedade TupiGuarani Mesmo com a monetização da economia e o maior poder dos homens que possuíam dinheiro ou bens para casar sendo da classe social que fossem a regra essencial da cultura TupiGuarani continuou sendo observada no Brasil homens vindos de fora tinham pela via do casamento a possibilidade de serem aceitos num grupo estabelecido Assim se formou uma sociedade miscigenada a partir da descoberta do ouro com o costume original se expandindo para culturas que não o conheciam como a portuguesa ou as africanas A invisibilidade que encobria o papel ativo da mulher valia também para outra instituição generalizada A mais importante e conspícua instituição econômica da vida colonial funcionava inteiramente na base do costume e fora do âmbito da lei e dos documentos escritos O fiado esteve presente desde o primeiro momento quando comerciantes embarcados forneciam apetrechos de ferro aos náufragos os quais se comprometiam a organizar o carregamento de retorno O fiado arraigouse no lado europeizado da colônia em negócios de toda espécie e sobreviveu à monetização progressiva da economia Sem sofrer alterações relevantes a prática conviveu com a circulação da prata espanhola que servia de moeda e capital nos primeiros dois séculos e do ouro no século XVIII Adiantadores de mercadorias em contascorrentes bem como tomadores de mercadorias fiadas como adiantamento produtivo eram as figuras quase absolutas nos negócios desde a costa até os grotões Tratase de uma instituição estruturalmente múltipla a começar do termo que a designa De um lado fiar significa um ato de fé confiar afiançar e ser fiador conceder confiança fiar no bom juízo era expressão comum nos testamentos coloniais quando se deixavam as decisões sobre a herança ao arbítrio de alguém e sobretudo vender a crédito ou na definição do dicionário Morais de 1813 fornecer havendo a palavra do comprador por empenho da paga esperar e ter quase certeza de que o sujeito desempenhará o que dele se cuida7 Fiar também se liga ao ato de empreender Entregar com confiança fia o lavrador as sementes à terra confiar não fiaremos as vidas às ondas aventurar arriscar fazer fundamento estribarse fia na justiça de sua causa Nesse conjunto de sentidos fiar é um modo de construir uma relação que é duradoura e ao mesmo tempo vincula os contratantes pois o fiado é um contrato não escrito uma aliança por um laço de reciprocidade e confiança E há um terceiro conjunto de significados reduzir a fio uma matéria filamentosa trançar fios confeccionar tecido trama com fios tramar urdir criar uma rede 8 Todavia embora sempre presente em toda a história brasileira pouco se sabe sobre o fiado nem mesmo os estudos quantitativos revelaram os traços gerais dessa prática A sua invisibilidade é da mesma ordem da relativa ao papel dos costumes para estruturar a ordem e a governabilidade da vida Até hoje o fiado não foi objeto de estudos sistemáticos em forma de livros teses ou modestos artigos Nem mesmo pesquisas nos modernos instrumentos de busca eletrônica alteraram a situação bancos de dados universitários ou bibliotecas nada mencionam do assunto em seus índices Uma notável exceção é um trabalho de Hebe Mattos que analisa a economia de uma pequena vila fluminense no século XIX As descrições são quase exatamente da mesma natureza da rede de contratos do padre Guilherme Pompeu de Almeida no século XVII comentada anteriormente de modo que os textos a seguir são transcritos na suposição de que podem iluminar um pouco mais essa instituição secular ainda hoje em pleno século XXI dominado pelas transações eletrônicas cerca de um quinto de todas as vendas no varejo brasileiro são registradas em carteiras de fiado As listas de contascorrentes encontradas em profusão nos pequenos inventários analisados mostram significativamente este papel de intermediação entre a pequena produção local com os mercados regionais de produtos agrícolas Nessas contascorrentes em nenhum caso se creditava o recebimento de dinheiro dos fregueses endividados pelo contrário dinheiro em espécie era fornecido com uma frequência maior que qualquer outro bem de consumo habitualmente adquirido como sal açúcar etc Ao mesmo tempo essas casas não funcionavam como atacadistas existentes nos centros comerciais da região onde fazendeiros e negociantes mais abastados mantinham relações comerciais Na ponta inversa os donos de venda debitavam pequenas quantidades de café e farinha de mandioca que apenas em seu conjunto formavam apreciáveis estoques provavelmente comercializados à semelhança dos grandes lavradores nos grandes centros comerciais9 No balanço entre créditos e débitos ficava clara a lógica maior do fiado A importância da comercialização dessa pequena produção agrícola se revela especialmente no peso das dívidas a haver nos ativos dos proprietários das casas de negócio jamais totalmente saldadas Mas elas representavam garantia de fornecimento regular de produtos agrícolas de produção local para serem comercializados nos centros especializados10 Assim o fiado sendo aliança simbólica a forma que preside o pensamento material TupiGuarani organizava o mercado interno mesmo com o emprego muito reduzido de dinheiro ou os negócios que envolviam pessoas desacostumadas culturalmente com o dinheiro como os indígenas ou pouco adaptadas a ele Esse mecanismo invisível inexistente na definição da lei permitia o funcionamento de toda a produção e circulação de riqueza entre as casas particulares como dizia frei Vicente do Salvador Uma economia garantida apenas pelo costume pela palavra pelo fio de bigode Ao largo da lei ao largo do registro escrito ao largo dos governos ao largo das análises Escrevendo sobre o grande comércio do Rio de Janeiro em 1779 outro nobre o marquês de Lavradio fez as seguintes observações ao fim de seu período como vicerei Estes homens ainda que tenham fundos e sejam honrados e verdadeiros não posso considerar suas casas como casas de comércio porque eles ignoram o que é essa profissão e nem conhecem os livros que lhe são necessários nem sabem regular sua escrituração11 Em grau diferente do conde de Assumar o marquês associou o conhecimento da escrita à capacidade de ganhar dinheiro no comércio Embora a boa escrituração de livros comerciais e o conhecimento técnico da matéria fossem uma realidade imperiosa no mundo nem por isso a ausência desses sinais indicava falta de capacidade Apenas um desses indivíduos que o vicerei descreveu como ignorantes deixou uma fortuna equivalente a nada menos do que um quarto das exportações anuais brasileiras Agindo com astúcia diante de um governante ávido para arrecadar impostos ele conduzia seu empreendimento recorrendo à informalidade e aos costumes desconhecidos pela autoridade régia Nesse caso a invisibilidade era também interesse o mercado e o lucro que ele gerava permaneciam fora do alcance do governo É certo que essa invisibilidade ficou para a história mas por motivos diferentes Ela pode ser atribuída à continuidade ao longo de todo o século XVIII da lamentável política de segredo A rigorosa proibição tanto de cursos superiores como a de tipografias continuava a produzir os seus estragos Restou apenas a documentação oficial dos governantes cegos em relação a quase tudo que era novidade nos governos locais na religião tolerante e nos costumes As pesquisas mais recentes permitem pensar essa cegueira em outro sentido Os moradores do Brasil governavamse a si mesmos basicamente de duas maneiras Em primeiro lugar pelos costumes gerais como os casamentos de aliança ou o fiado que regiam uma sociedade multiétnica empreendedora e capaz de acumular riqueza A aplicação parcial da lei escrita das Ordenações do Reino assegurou o florescimento de instituições favoráveis ao empreendedorismo Em segundo lugar os governos locais atuavam com grande legitimidade e tinham um nível elevado de adaptação a essa sociedade aberta as câmaras municipais e o clero secular eram as autoridades mais conspícuas e influenciadas pelos costumes O domínio da escrita e dos livros separava nitidamente um grupo que pairava acima dessa realidade Mesmo no final do século XVIII os raros letrados tendiam a se identificar com os nobres e os governantes mandados da metrópole que só viam a realidade local como desvio do modelo teórico do Antigo Regime Agiam muitas vezes como um grupo estamental cuja identidade se delineava na exibição de privilégios comuns que os colocavam acima dos demais Nesse meio vicejava a ação do governo central através do vicerei e dos capitãesmores Em termos políticos tinham autoridade efetiva nomeando agentes e comandando tropas No que se refere à economia cumprialhes basicamente arrecadar o máximo prestar o mínimo de serviços e transferir os saldos para Lisboa algo não muito favorável ao desenvolvimento econômico mas por outro lado um preço tolerável para que a atividade informal continuasse invisível No fim das contas o governogeral não atrapalhava demais o crescimento da economia pelas vias informais Restava apenas o acentuado ranço de Antigo Regime muito abrandado pelos governantes eleitos nas vilas e pelo clero secular que eram também governo Leis civis como as relativas ao estatuto da terra a forma de herança ou os direitos da mulher substancialmente alteradas pelo costume também favoreciam os empreendedores e o mercado na comparação com o ambiente metropolitano ou mesmo europeu Costumes da população como alianças matrimoniais ou o fiado garantiam efetivamente o desenvolvimento diferencial da colônia O discurso de governantes definindo a população como desviante das normas do Antigo Regime fazia sentido nos tempos do conde de Assumar pois afinal se enquadrava num mundo no qual a sociedade era em todo o Ocidente pensada como estruturalmente desigual que tal desigualdade era eterna e natural que a riqueza deveria fluir para senhores e nobres e que tudo isso deveria ser estável e dominado pela tradição Essa visão de mundo não permitia explicações para um fenômeno como o crescimento econômico Por isso os governantes do tempo ignoravam olimpicamente tal hipótese Por isso também a documentação rala e fortemente marcada por tal visão não permitiu durante séculos que historiadores moldassem outra visão dos fatos econômicos brasileiros Ficou a impressão da falta de dinâmica econômica num largo período no qual a autoridade central não se importava com ele mas o crescimento acontecia com apoio de governos locais costumes e aplicação diversa das mesmas leis nas diferentes partes do Reino Mas no que se refere ao governo o Ocidente conheceu ainda no século XVIII uma nova realidade as ideias que vinham desde a Antiguidade começaram a ser violentamente contestadas e os argumentos centrais dessa contestação ajudam no entendimento atual da vida no Brasil colonial 18081889 Coroas e estagnação durante o desenvolvimento do Ocidente O transplante para a América e a nacionalização do governo central como Império mantém a escravidão e freiam o crescimento enquanto o Ocidente revolucionou o papel do governo e conhece o desenvolvimento capitalista du CONTRACT SOCIAL ou PRINCIPES du DROIT POLITIQUE Par J J ROUSSEAU CITOYEN DE GENEVE A AMSTERDAM Chez MARC MICHEL REY MDCCLXII CAPÍTULO 22 Teoria dos governos uma revolução A ESCASSEZ DE LETRADOS RESULTANTE DA POLÍTICA METROPOLITANA DE ASSOCIAR a proibição de impressoras e de escolas superiores a uma feroz censura teve consequências enormes impedindo que os brasileiros conhecessem a si mesmos e avaliassem o seu potencial depois da descoberta do ouro Em sentido oposto nem todos os governantes metropolitanos que conheciam a realidade brasileira limitavamse a escrever documentos criticando o amor à liberdade o enriquecimento e os maus costumes dos moradores da colônia Houve momentos em que se tornavam explícitos certos temores que justificavam essa política draconiana como no caso de um papel sem assinatura anexado a uma deliberação do Conselho Ultramarino em 1732 As riquezas fazem aqueles homens soberbos inquietos mal sofridos e desobedientes e este dano é inevitável A fama dessas riquezas convida vassalos para se passarem ao Brasil a procurálas Em poucos anos virá a ter o Brasil tantos vassalos brancos como tem hoje o reino e bem se deixa ver que posto numa balança o Brasil e na outra o reino há de pesar com grande excesso para mais aquela primeira que esta última e assim a maior e mais rica parte não sofrerá ser dominada pela menor e mais pobre e nem a este inconveniente se lhe poderá achar fácil remédio1 Assim era entendida a finalidade das políticas de segredo e centralização empurrar para diante tanto quanto possível o momento no qual as partes menos fidalgas e mais ricas do Corpo Místico do Reino tomassem consciência de sua efetiva importância No decorrer do tempo o Brasil foi enriquecendo a despeito de toda a drenagem fiscal e bem no alto ao redor do soberano aqueles que dominavam a escrita e as informações mais relevantes do Império começaram a cogitar em alternativas para evitar o risco de uma separação da parte mais rica Já em 1736 D Luís da Cunha o conselheiro mais respeitado de D João V escreveu um texto intitulado Instruções Políticas Supostamente destinado ao rei não se sabe se foi lido por ele O conteúdo do parecer era claro e direto defendia a transferência da Corte de Lisboa para o Rio de Janeiro juntando a parte letrada à parte rica a fim de preservar a união do todo Os principais argumentos eram a localização o potencial econômico a articulação nas rotas marítimas as novas possibilidades diplomáticas abertas com uma sólida monarquia americana e um crescimento ainda maior da riqueza nacional Tudo se resumia na conclusão É mais cômodo e seguro estar onde se tem o que sobeja que onde se espera aquilo do que se carece2 Enquanto isso em Genebra na Suíça um estudioso lia os textos já antigos de Montaigne que falavam das formas de pensar as relações entre corpo e espírito nos rituais antropofágicos Tupinambá O genebrino JeanJacques Rousseau havia sido calvinista ou católico em diferentes momentos da vida compositor de óperas e ensaísta político Além da admiração por Montaigne Rousseau estava convencido da existência de um direito inato à liberdade mas bem mais amplo do que as concepções tanto de jesuítas como o padre Manuel da Nóbrega quanto dos teólogos calvinistas da Companhia das Índias Ocidentais Para Rousseau tal direito inato deveria ser modelo universal Em decorrência dessa universalidade uma de suas consequências implicava considerar como vícios as noções que fundavam os governos ocidentais A maioria de nossos males é obra nossa e teríamos evitado quase todos se tivéssemos conservado a maneira simples uniforme e solitária de viver prescrita pela natureza Se ela nos destinou a sermos sãos ouso quase assegurar que o estado de reflexão é um estado contrário à natureza e que o homem que medita é um animal depravado3 No Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens de 1755 Rousseau situa o momento no qual essa virtude teria sido perdida na época em que se consolidaram os governos com tesouro e a propriedade exatamente o que teriam evitado os Tupi e os Guarani da América na virada do século XVI Desde que um homem sentiu necessidade do socorro do outro desapareceu a igualdade introduziuse a propriedade o trabalho tornouse necessário vastas florestas transformaramse em campos cultivados nos quais logo se viram germinar a escravidão e a miséria crescer com as colheitas4 Uma vez iniciado o processo a desigualdade só faria crescer até o momento terminal de uma era agora mundial na qual escrevia o autor Se seguirmos o processo da desigualdade em suas revoluções verificaremos ter constituído seu primeiro termo o estabelecimento da lei e do direito de propriedade o segundo seria o estabelecimento da magistratura o terceiro e último a transformação do poder legítimo em poder arbitrário Assim o estado de rico e de pobre foi autorizado pela primeira época o de forte e de fraco pela segunda o de senhor e escravo que é o último grau da desigualdade até que novas revoluções destruam completamente o governo ou o aproximem de ser uma instituição legítima5 O predomínio da desigualdade geraria uma realidade funesta Verseia a opressão crescer continuamente sem que os oprimidos antevissem seu fim nem quais os meios legítimos que restariam para sustála verseiam os direitos dos cidadãos e as liberdades nacionais apagaremse pouco a pouco com as reclamações dos fracos sendo interpretadas como murmúrio sedicioso verseia a política restringir a uma porção mercenária do povo a honra de defender a causa comum verseia nascer a necessidade de mais impostos o agricultor desencorajado abandonando seus campos e mesmo na época de paz deixando a charrua para cingir a espada verseiam nascer regras funestas e singulares e os defensores da pátria tornaremse seus inimigos mantendo continuamente um punhal alçado contra os cidadãos6 O governo que poderia repor justiça na vida social seria delineado por Rousseau no livro Do contrato social publicado em 1762 No lugar da desigualdade esse contrato imaginado pelo autor criaria uma força de igualdade substantiva capaz de repor a virtude perdida do estado de natureza uma forma de associação que defenda e proteja com toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado e por meio da qual cada um ao se unir a todos somente obedeça a si mesmo e permaneça tão livre como antes7 No corpo político assim criado uma nova hierarquia seria estabelecida É necessário à força pública um agente que reúna e execute segundo as direções da vontade geral que sirva à comunicação do Estado e do soberano que faça na vida pública o que faz no homem a união da alma e corpo Eis qual é no Estado a razão do governo confundida inadequadamente com o soberano do qual não é senão ministro O que é então o governo Um corpo intermediário estabelecido entre súditos e soberano para mútua correspondência responsável pela execução das leis e manutenção da liberdade8 Assim Rousseau renovou o tema do discurso do canibal que impressionou Montaigne a ponto de este colocálo no centro de seu ensaio corpo e espírito unidos num indivíduo fundando a virtude da vida humana Mas Rousseau em vez de limitálo ao caso excepcional da América apresentao como forma radicalmente nova de pensar as relações entre governantes e governados no Ocidente A virtude de um governo não mais estaria na capacidade dada pela divindade a um rei para determinar aquilo que competia a cada um numa sociedade na qual a natureza produziu e juntou homens desiguais senhores e escravos Estaria isso sim no fato de que a vontade geral soma das vontades de todos os indivíduos nascidos livres e iguais serve para pôr em comunicação muitos homens através do governo que escolhem para si e é exercido por seus representantes Pensando a partir do que lera sobre os índios brasileiros e ampliando a noção de liberdade inata dos seres humanos Rousseau elaborou uma versão radical de um projeto acalentado por alguns pensadores da época o de fundar um novo modo de governo baseado na ideia de que a sociedade se governa a partir de um contrato entre homens livres e iguais e não a partir da simples agregação de pessoas desiguais por natureza O cientista político Norberto Bobbio generalizando a partir da versão contratualista de Hobbes expõe as diferenças radicais entre os modelos O estado natural no modelo aristotélico é um estado no qual as relações fundamentais são relações entre superior e inferior e portanto são relações de desigualdade como é o caso precisamente das relações entre senhores e escravos No modelo jusnaturalista de Hobbes o estado de natureza sendo um estado de indivíduos isolados que vivem fora de qualquer organização social é um estado de liberdade e igualdade ou de independência recíproca É precisamente este estado que constitui a condição preliminar necessária da hipótese contratualista já que o contrato pressupõe em seu surgimento sujeitos livres e iguais9 Portanto a diferença principal não tem a ver com a igualdade entre seres humanos no mundo real mas em algo mais abstrato o ato de pensar a liberdade e a igualdade como fundamentos daquilo que deveria ser um governo virtuoso Esse ato intelectual era o ponto de mudança crucial que exigia uma completa e radical alteração na teoria que presidia a organização dos governos ocidentais desde a Antiguidade Segundo a nova filosofia política a igualdade fundamental entre os seres humanos o fato de serem todos dotados de razão deveria substituir a desigualdade natural entre humanos como princípio lógico organizador das leis As consequências dessa mudança seriam imensas O indivíduo livre que se associa aos demais toma o lugar da natureza criadora de desigualdades como o derradeiro fundamento da vida social A capacidade humana de empregar a razão que se expressa coletivamente no contrato social entraria no lugar da tradição como fundamento da ordem jurídica Dessa radical mudança resulta também uma nova moralidade ou para falar nos termos técnicos da política uma nova definição de legitimidade As únicas leis legítimas seriam as derivadas da razão nunca as legadas pela tradição E há outra decorrência necessária só seriam válidas as leis aplicáveis a todos sem exceções e inválidos todos os privilégios e diferenças as leis feitas para gravar o que o rei deu a cada um reunidas em compilações jurídicas como as Ordenações do Reino Em vez de dar a cada um segundo sua qualidade mantendo as diferenças entre homens o bom governo seria aquele capaz de dar igualmente a todos dentro da lei As virtudes de ontem se tornavam os vícios de hoje A mais relevante inversão de sentido moral estava relacionada à escravidão Para Aristóteles tal instituição era a evidência maior de que a sociedade se fundava na desigualdade de modo que ao bom governante caberia apenas manter tal diferença com seus atos Rousseau o exato contrário de Aristóteles dizia Nulo é o direito da escravidão não só por ser ilegítimo mas por ser absurdo e nada significar As palavras escravidão e direito são contraditórias excluemse mutuamente10 Assim se faz uma sobreposição de dois planos de oposição entre o modo aristotélico e o modo iluminista de conceber o bom governo O princípio lógico da igualdade impede o reconhecimento do direito na escravidão por ser contraditório com este daí a classificação da escravidão como absurda logicamente Mas a igualdade também sustenta o sentido moral da política e das leis pois é a fonte dos direitos do cidadão e nesse sentido é ilegítima perante o direito No rigor do pensamento iluminista portanto uma filosofia política de tipo aristotélico era um contrassenso lógico e o reconhecimento de privilégios de um homem sobre outro não passava de um ato ilegítimo As consequências das ideias iluministas no plano da economia implicaram a mesma revisão radical No terreno da produção o modo natural e virtuoso para Aristóteles era o da aquisição de bens naturais por senhores e escravos que permutavam excedentes A esse modo se contrapunha outro artificial e vicioso o da acumulação de bens adquiridos com dinheiro que seria condenável pelos seguintes motivos As pessoas cujo objetivo é uma vida agradável perseguem na medindoa pelos prazeres do corpo de tal forma que como esses parecem depender da posse de bens todas as suas energias se concentram na atividade de enriquecer Como seus desejos e prazeres são excessivos se não conseguem obtêlos tentam chegar até eles por outros meios quaisquer usando cada uma de suas faculdades de maneira contrária à natureza Tais pessoas transformam todas essas faculdades em meios de proporcionar riqueza na convicção de que a riqueza é o fim a atingir e que tudo mais deve contribuir para a consecução deste fim11 Em 1776 um professor de moral chamado Adam Smith publicou um livro A riqueza das nações no qual os comportamentos econômicos foram submetidos à mesma inversão que haviam sofrido os comportamentos políticos pela pena de Rousseau Além de trazerem riqueza as compras e vendas no mercado em vez de condenáveis eram apresentadas como positivas Quando o mercado é muito reduzido ninguém pode sentirse estimulado a dedicarse inteiramente a uma ocupação porque não poderá permutar toda parcela de excedente que ultrapassa seu consumo pessoal pela parcela de produção do trabalho alheio da qual tem necessidade12 Por meio das trocas efetuadas nos mercados segundo Smith os homens se tornariam iguais independentes de seu trabalho especializado e se relacionariam entre si através de contratos justos pois capazes de atender a seus interesses Assim a ideia central do iluminismo se ampliou da esfera política para a econômica o mercado seria o próprio contrato social em atividade permanente A inversão se estenderia em seguida ao tipo de trabalho virtuoso O trabalho escravo deixava de ser visto como positivo o trabalho caracterizado como mercadoria tomava seu lugar Existe um tipo de trabalho que acrescenta algo ao valor do objeto sobre o qual é aplicado e existe outro tipo que não tem este efeito O primeiro pelo fato de produzir valor pode ser considerado produtivo o segundo trabalho improdutivo Assim o trabalho de um manufaturador geralmente acrescenta algo ao valor dos materiais com os quais trabalha o de sua própria manutenção e o lucro de seu patrão Ao contrário o trabalho de um criado doméstico não acrescenta valor algum a nada Uma pessoa enriquece mantendo muitos operários e empobrece mantendo muitos domésticos13 Se antes o rei e o seu tesouro estavam no ápice da vida econômica agora caberia outro lugar à majestade econômica O soberano com todos os oficiais de justiça e guerra que servem sob suas ordens todo o Exército e Marinha são trabalhadores improdutivos Servem ao Estado sendo mantidos por uma parte da produção anual dos outros cidadãos Seu serviço por mais honroso útil ou necessário que seja não produz nada com que igual quantidade de serviço possa ser obtida14 Por isso o governo e os nobres teriam um lugar menor na produção da riqueza Onde quer que predomine o capital predomina o trabalho e onde quer que predomine a renda predomina a ociosidade Os capitais são aumentados pela parcimônia e diminuídos pelo esbanjamento e pela má administração15 O maior objetivo social em economia passa a ser a criação de grandes mercados que fazem a riqueza das nações a soma das mercadorias acumuladas e não consumidas e do trabalho passado acumulado como riqueza financeira Para tanto no âmbito público o governo improdutivo deveria ser limitado e incentivados os esforços individuais visando a produção para o mercado De ponto mais alto da sociedade o governo caía para uma posição secundária a de uma esfera a ser restrita pelo mercado Outro corolário radical dessa mudança de pensar afetava a noção de natureza Para Aristóteles o mundo natural era o modelo de toda a vida social ainda que na desigualdade A partir de Adam Smith a natureza é apenas o território do qual os homens podem extrair indefinidamente a matéria a ser transformada pelo trabalho produtivo e o resultado é a riqueza humana a ser acumulada pelas trocas no mercado Seja na vertente da organização social e política através da ideia do contrato social e da soberania coletiva seja na vertente econômica com o apelo ao ideal do mercado e da riqueza as ideias iluministas têm muito mais afinidade com a realidade da colônia que o enquadramento dado pelo discurso oficial do caranguejo que condenava como desviante a vida dos brasileiros E o Ocidente no final do século XVIII foi profundamente marcado pelas novas ideias Em pouco tempo o Iluminismo deixou de ser uma teoria Entre os leitores de Rousseau e contemporâneos de Adam Smith estavam aqueles que em 1776 separaram o governo das colônias inglesas na América da sua cabeça real marcando o ato com uma Declaração de Independência cujo texto principiava por uma frase que se tornaria norma legal iluminista É evidente por si mesmo que todos os homens foram criados iguais e dotados por seu Criador de certos direitos inalienáveis entre os quais o da vida liberdade e busca da felicidade Para cruzar a distância entre a norma ideal da igualdade dos homens com os respectivos direitos inalienáveis e a crueza da escravidão condenada por Rousseau bastava ir da pena do autor desse texto fundador até os dedos que impulsionavam a pena sobre o papel Thomas Jefferson tinha 150 escravos no momento em que escrevia inclusive oito que eram filhos seus com uma mucama mulata Mesmo depois da Declaração seu autor jamais viu qualquer contradição entre esses detalhes pessoais e a frase a ponto de continuar fazendo seus negócios de compra e venda de indivíduos em tese dotados pelo Criador de direitos inalienáveis e agora sob o império de sua legislação iluminista Todavia com essa frase Thomas Jefferson abdicava de incluir sua atividade escravista no campo do direito legítimo E com a lei alteravase toda a lógica da organização política até então a ordem divina santificava desigualdade e escravidão nas leis agora as relações desiguais entre senhores e escravos eram relegadas a um território fora do âmbito da lei universal e da moral política Os negócios com escravos passavam a ser nas leis que governavam agora os Estados Unidos apenas negócios empíricos fundados no costume tal como as atividades mercantis dos brasileiros em relação às Ordenações do Reino impostos pela força e sem qualquer guarida na moralidade garantida pela lei universal O esforço dos primeiros legisladores iluministas tinha menos o sentido de provocar mudanças empíricas e de alterar o costume e mais de estabelecer o âmbito legal e moral onde mudanças futuras como a extinção da escravidão pudessem ser enquadradas A atitude se repetiu uma década mais tarde Ao formular a Constituição os representantes dos norteamericanos permitiramse apenas menções muito oblíquas a pessoas de outro tipo pessoas tidas em serviço em outros estados ou outras pessoas para designar os escravos Além disso referiamse aos índios como habitantes de outras nações ao mesmo tempo que distribuíam o território dessas nações por decreto Não se tratava de cinismo mas de evitar que fossem reconhecidos na Constituição preservando assim o valor lógico da aplicação universal e o valor moral da garantia dos direitos Qualquer menção constitucional à escravidão ou ao tratamento desigual dos nativos na lei seria equivalente a reconhecer o direito dos proprietários de escravos fundado na aceitação da desigualdade como princípio lógico organizador de leis virtuosas O mesmo valia para o direito dos nativos a suas terras Assim os constituintes preservaram o espaço da Lei como aquele das afirmações universais da Razão da igualdade e dos direitos ainda que tal universalidade jurídica exigisse escamotear o reconhecimento do direito à liberdade de milhões de pessoas que na prática viviam em cativeiro ou excluídas da nacionalidade O mais relevante contudo foi o fato de a nova ideia de governo ganhar adeptos em toda a Europa Em 1789 uma revolução na França levou à convocação de eleições e à instalação de uma assembleia de representantes para fazer as leis que seriam o contrato social garantidor de um governo fundado na liberdade Com isso logo tornouse crítica a situação do monarca Luís XVI Até a véspera da revolução ele era um representante divino o chefe de um governo legítimo o detentor da sabedoria para dar a cada um o seu conforme as diferenças naturais entre os homens enfim o único ser que simbolizava o Corpo Místico de governantes e governados Já os representantes elaboravam as leis segundo princípios opostos evidenciando que o novo figurino não comportava nem a continuidade da tradição nem a figura simbólica do monarca Em agosto de 1792 o rei foi removido do trono e encarcerado Em setembro foi declarada a república como forma de governo enquanto o monarca aprisionado era destituído de seus poderes e passava a ser oficialmente o cidadão Luís Capeto um homem com os mesmos direitos de todos os outros perante a lei A retirada dos sinais que marcavam a diferença entre um representante divino e os meros humanos não foi suficiente para a nova ordem política e assim foi decidido um destino capaz de ter um efeito simbólico tão poderoso como o da tradição No dia 21 de janeiro de 1793 o carrasco Charles Henri Sanson acionou o mecanismo de uma guilhotina uma pesada lâmina de aço desceu por um trilho e separou definitivamente a cabeça física do monarca de seu corpo um ritual para deixar bem claro que ficava no passado todo um modo de conceber o poder as funções e a moralidade do governo como o Corpo Político do qual o rei era a Cabeça Mística O passo seguinte na direção da igualdade aconteceu na América uma onda revolucionária no Haiti aboliu a escravatura e elegeu um presidente negro O efeito das duas ondas revolucionárias foi impressionante Em pouco mais de uma década monarquias milenares foram depostas em toda a Europa Príncipe regente de uma nação pequena situada num extremo do continente o futuro D João VI sobreviveu em Portugal até 1808 quando ficou claro que as tropas revolucionárias francesas estavam prestes a tomar Lisboa Foi quando recorreu a velhas ideias para realizar uma nova espécie de união entre a Coroa portuguesa e o Brasil CAPÍTULO 23 Reino colonial sonho de reação NA HORA CRUCIAL DE DECIDIR ENTRE A RICA COLÔNIA O BRASIL QUE FORNECIA QUATRO quintos da receita do Tesouro e o Reino que produzia pouco mas recebia três quartos das despesas D João esqueceu os defeitos morais dos moradores coloniais tantas vezes lamentados na documentação e ficou com a realidade Como tantos dos seus súditos plebeus nos séculos anteriores enfrentou o Atlântico para tentar fazer a América Foi acompanhado de 15 mil cortesãos boa parte dos que recebiam dois terços das despesas do Erário Sendo colônia o Brasil remetia quase a totalidade de suas exportações para Lisboa Na prática esse fluxo garantia a vida comercial metropolitana entre 80 e 90 de todo o comércio exterior português resultavam da reexportação de mercadorias brasileiras e da reexportação de mercadorias europeias para a colônia o que torna compreensível tanto o motivo da mudança da Corte como o primeiro ato de D João no Brasil o da abertura dos portos uma vez que a intermediação lisboeta se tornara inviável Em pouco tempo as vendas para o Reino passaram a representar apenas uma fração das exportações brasileiras Os atos seguintes modificaram outras áreas que haviam passado séculos imobilizadas Um deles permitiu a instalação do primeiro curso superior uma escola de medicina em Salvador com dois séculos e meio de atraso em relação à América hispânica onde naquela altura funcionavam 23 universidades e quase dois séculos de atraso com relação às colônias inglesas cuja primeira faculdade surgiu poucos anos após a chegada dos primeiros colonos Sem necessidade de atos oficiais outra mudança secular foi o desembarque da primeira prensa tipográfica que iria funcionar legalmente no Brasil Coube aos reis de Portugal a imorredoura glória de serem responsáveis por um atraso de 358 anos em relação ao invento da tipografia para seu emprego no Brasil A magnitude dessa política de ignorância ressalta numa singela comparação com os Estados Unidos uma economia de tamanho comparável com a brasileira naquele momento Em 1776 as tiragens do livro Common Sense de Tom Payne chegaram a 400 mil exemplares mais de 10 do total da população adulta masculina do país Essa desproporção era reflexo direto das taxas de alfabetização das populações Estudiosos calculam que apenas 1 ou 2 dos brasileiros sabiam ler e escrever em 1800 No mesmo ano a proporção de norteamericanos alfabetizados chegava a nada menos de 70 da população adulta masculina proporção bem mais expressiva inclusive em relação à inglesa que era de 55 naquele momento A miséria cultural educacional e literária produzida pelo governo central português permitiu ao governante coroado que até a véspera impedira tudo apresentarse em terras coloniais como alguém progressista interessado em ilustrar a vida de seus súditos Mas seria uma ilustração seletiva Com a impressora também desembarcaram os censores de modo que o recurso acabaria sendo aproveitado apenas por amigos autorizados No mesmo ano de seu desembarque a prensa foi colocada em funcionamento possibilitando que as ideias de alguns raros alfabetizados brasileiros ganhassem a forma de livro Por isso não admira que esses primeiros livros contivessem rasgados elogios ao governante e a instituição criada para abrigar a máquina foi chamada Impressão Régia atual Imprensa Nacional O bispo inquisidor José Joaquim da Cunha Azeredo Coutinho um dos primeiros contemplados com o favor da publicação conseguiu imprimir um livro intitulado nada menos que Análise da justiça do comércio de escravos com a costa da África A obra se destinava a provar que os termos justiça e escravidão eram sinônimos ao modo de Aristóteles e em contraposição a Rousseau Já na dedicatória o bispo deixa evidente a sua posição A vós todos dedico esta obra filha do meu trabalho e que só teve em vista vosso bem obra por cuja causa tenho sido insultado e perseguido pelos ocultos inimigos de vossa Pátria e pelos desumanos e cruéis agentes de Brissot e Robespierre esses monstros de figura humana que estabeleceram a regra Pereça antes uma colônia do que um princípio princípio destruidor da ordem social e cujo ensaio foi a florescente colônia de São Domingos abrasada em chamas nadando em sangue1 A referência à revolução do Haiti serve de metáfora à argumentação subsequente na qual procura mostrar que só a tradição aristotélica poderia servir de guia para um governo justo A seita dos anabatistas no século XVI e a dos novos filósofos no século XVIII ainda que pareçam diametralmente opostas entre si contudo têm a mesma base fundamental a liberdade a igualdade a comunhão de bens Os anabatistas se diziam rígidos observadores das leis de Jesus Cristo mas não se embaraçavam em examinar o Dogma só diziam que o verdadeiro cristão deveria ser justo e santo a religião deles era arbitrária Os da nova seita filosófica que se dizem rígidos observadores da lei natural e que a lei que é contra o direito natural e a humanidade é injusta e que em consequência não deve ser obedecida não nos dão contudo uma definição clara e distinta dessa sua humanidade desse seu direito natural nem nos dizem como ele deve ser aplicado o seu direito é arbitrário e só de nome2 Para o bispo os princípios da liberdade e da igualdade que segundo os iluministas eram verdades ditadas pela Razão e com validade universal eram no fundo de validade muito restrita a grupos particulares cujos defensores formavam uma seita de fanáticos e por isso jamais teriam capacidade de dizer como deveria ser o governo para todos Uma vez com poder esses grupos produziam arbítrio não justiça A seguir reforçava a lição de Aristóteles segundo a qual a justiça ficava reservada para monarcas que recebem de Deus a chave para observar as leis da natureza capazes de revelar os verdadeiros fundamentos de uma política sábia A natureza que criou os homens para a sociedade foi a mesma que os criou quer eles queiram quer não com diferentes e desiguais dotes 3 Apresentando a desigualdade como princípio moral e lógico universal e não mais como resultado da ação da natureza como em Aristóteles e as leis iluministas como tendo apenas validade restrita o bispo negava a ideia do contrato social metáfora da racionalidade universal como sendo uma impossibilidade empírica Conforme o sistema de pactos sociais que se dizem anteriores e produtores de sociedades é necessário supor muitos absurdos e alguns impossíveis alguns dos quais são primeiro que o homem logo que nasce e se pode arrastar ainda sem se conhecer nem a seus pais foge deles para os matos e para as brenhas e ali se faz silvestre e solitário segundo que ainda antes de ter algumas ideias sobre os males e bens da sociedade já sabe discorrer e fazer pactos e convenções 4 A conclusão era a de que os princípios racionais iluministas produziam regras arbitrárias em vez de direito e justiça e não passavam de coisa de insensatos Por outro lado o reconhecimento tanto da desigualdade natural entre os seres humanos como da justiça na escravidão permitiam a disseminação de sábias legislações e a ação justa do rei Em suma a lição que os brasileiros teriam a tirar da época era a de cuidar para que alguns excessos mais evidentes do modelo aristotélico merecessem mais atenção da justiça do soberano O apelo à justiça tal como definida pela tradição corporativa como sanção dos direitos adquiridos e não a uma mudança de sistema e tampouco à adoção de perigosas e inúteis leis racionais derivadas do princípio da igualdade viria a ser a grande solução a mais adequada para o projeto de futuro para o Brasil Outro agraciado com autorização para imprimir as suas obras José da Silva Lisboa o futuro visconde de Cairu reiterou essa posição no campo da economia e com uma estratégia retórica ainda mais curiosa que a do bispo Embora tenha publicado os Princípios de economia política com a intenção explícita de divulgar a obra de Adam Smith A riqueza das nações ele cumpriu tal objetivo de modo muito peculiar Para começar Cairu não estava convencido de que a produção de mercadorias fosse um ideal adequado para a economia Eximia Adam Smith desse pecado e atribuía tal insensatez a um paroxista de Genebra ou seja o próprio Rousseau que ataca o sistema do regime patriarcal como incompatível com as circunstâncias atuais da sociedade5 Cairu também contrapõe Aristóteles às ideias iluministas e assim explica o processo da divisão do trabalho que estaria descrito na obra de Adam Smith O Soberano deve prover para que se faça o devido trabalho público e particular com o mais breve extenso e lucrativo emprego possível de pessoas e capitais em maneira a que jamais falte ocupação honesta a quem oferecer serviços a fim de que se obtenha periodicamente o Estado o maior e mais valioso fruto da geral indústria6 A bondade do Soberano dando a cada um o seu seria o princípio da divisão do trabalho ao passo que a liberdade de agir dos súditos obedientes seria a filha daquele princípio e a riqueza da nação seria para desfrute do monarca que está muito acima dos particulares como se dizia em termos aristotélicos A retórica de Cairu seguia a mesma estratégia do bispo invertendo os termos da crítica iluminista e apresentando a universalidade da razão como um caso particular a ser incorporado no modelo eterno e com isso comprovando o valor universal do princípio da desigualdade de Aristóteles Os dois primeiros autores a publicar no Brasil projetos para sua terra eram bem claros o futuro estava em se aferrar aos conceitos do passado Em manter a escravidão fonte tanto da riqueza como do ordenamento natural do mundo Em negar a busca da riqueza como finalidade para a vida Em reagir contra os ideais iluministas Sobretudo em apoiar o reforço do governo central representado pela mudança da Corte Em suma eram franca e abertamente reacionários com relação ao Iluminismo Queriam o Brasil fora das mudanças do mundo longe das leis universais longe do incentivo para a produção ampliada para o mercado E reacionários também no modo de ver normativamente a própria formação brasileira anterior negando as possibilidades novas de avaliar costumes que essa filosofia trazia para o entendimento da realidade histórica Mas não eram irrealistas no Brasil havia agora um monarca capaz de trazer progresso relativo apesar de tudo Seus argumentos embasavam o plano monárquico de remodelar o Corpo Místico do Reino fincandoo num Brasil que não conhecia privilégios para a nobreza de sangue nem herança para os primogênitos e tampouco terras cujas populações e rendas estivessem sob domínio de nobres ou mosteiros espaço no qual não eram aplicados os livros das Ordenações que tratavam desse tipo de direitos adquiridos A transferência para a colônia do monarca e dos tribunais superiores que dava sentido material a esse projeto trouxera também as pessoas que eram legalmente enquadradas em todos os livros das Ordenações A começar do próprio rei cujo poder e comandos estavam codificados no livro I e depois os nobres titulados e o alto clero cujos direitos adquiridos vinham relacionados nos livros II e III Mesmo sem a substância da terra feudalizada ou das franquias judiciárias e de governo em suas terras a presença dessa gente tornouse um foco de agitação Todos dispostos a se ajustar ao Brasil em vez de ajustar o Brasil a sua prosápia Até o alto a vida se abriu aos moradores coloniais A Corte virou uma atração irresistível para aqueles poucos brasileiros que se consideravam até a véspera a parte mais elevada da vida colonial os comerciantesfidalgos quase todos cobradores de impostos Logo se viram alçados à condição de frequentadores do Paço Imperial com acesso privilegiado a tribunais superiores aos ministros que punham decretos na mesa do monarca e arrancavam assinaturas e acima de tudo à condição de beneficiários imediatos dos recursos do Real Erário juntamente com os recémchegados O Erário se revelou farto como nunca Para reacomodar no Brasil os 15 mil cortesãos nem sequer foi preciso cobrar mais impostos aqueles já pagos anteriormente na colônia foram mais do que suficientes para financiar tudo Por outro lado a mudança da Corte também implicava concentrar na colônia os gastos públicos Assim o dinheiro de impostos antes remetido à metrópole passou a circular na economia local e a estimular o seu crescimento Essa era uma novidade tão grande quanto a prensa tipográfica e tinha consequências importantes para os grandes comerciantes Até a vinda da Corte os negócios na colônia eram todos informais com base na prática do fiado Essa não era apenas uma opção dos comerciantes mas também consequência da legislação Até 1808 só era autorizada a abertura de empresas na metrópole Da mesma forma a lei não permitia nem garantia as letras comerciais instrumentos que viabilizavam a separação dos fluxos financeiros e materiais na atividade econômica Por esse motivo em termos puramente econômicos havia equivalência no tamanho da produção brasileira e da norteamericana Do ponto de vista financeiro porém o abismo entre as economias era gigantesco No Brasil a circulação de moeda e a concessão de crédito não contavam com nenhuma proteção jurídica e dependiam do fiado e da informalidade Já nos Estados Unidos a circulação financeira desde sempre foi garantida pela lei em 1733 ainda nos tempos coloniais funcionava um banco comercial cuja principal atividade era descontar esses títulos Mesmo no Sul escravista a produção era movida a créditos e depósitos Cada envio de mercadoria gerava um título que era descontado de forma separada da liquidação dos negócios físicos Os títulos de propriedade de escravos eram usados como garantia em negócios financeiros de toda espécie A partir da independência o aumento da proteção legal aos negócios dada pela legislação iluminista ampliou ainda mais o fosso Toda essa diferença nas garantias e nos procedimentos fazia com que as taxas de juro nos Estados Unidos fossem muito mais baixas do que no Brasil A vinda de D João tornou legalmente possíveis os primeiros embriões de empresas no Brasil com a fundação de um banco cujos acionistas eram comerciantes e o Real Erário o principal cliente a tomar empréstimos que passou emitir títulos e pagar juros John Luccock um comerciante inglês que veio com a Corte notou as diferenças nessa área Quando se começou a permitir o comércio livre no Brasil verificamos que os comerciantes ignoravam quase que por completo o que fosse crédito e jamais se colocava dinheiro a juros salvo com o governo e mesmo então em somas que os homens de posse julgavam prudente colocar e mesmo assim com a suspeita de que nunca mais as veriam de volta Tinham pouca ideia do valor e da influência do capital e não possuíam confiança uns nos outros para descontar letras Havia na verdade uma espécie de título a que chamavam de crédito mas que pouco mais representava que a declaração de que o credor haveria de ser pago mais cedo ou mais tarde com os bens do devedor caso falhassem todas as tentativas de solvência7 Cabe certa cautela diante dessa observação Ao contrário de frei Vicente do Salvador o comerciante enxerga a realidade a partir de um mercado financeiro organizado pela lei e nada vislumbra na esfera doméstica O fiado era crédito havia cobrança de juros do devedor as dívidas privadas eram saldadas Por outro lado os empréstimos ao governo de fato apresentavam alto risco de inadimplência pouco antes do desembarque da Corte uma avultada dívida com os comerciantes do Rio de Janeiro havia sido simplesmente repudiada Por isso demorou para o Banco do Brasil recriar a velha modalidade de arrecadação pelo governo central e envio para a Corte Mas como dessa vez a Corte estava no Rio de Janeiro a segurança veio e os títulos do governo foram encontrando tomadores constatandose um efeito econômico distinto em vez de transferir recursos de toda a colônia para Lisboa os captadores de impostos extraíam dinheiro das capitanias e este se acumulava na Corte do Rio de Janeiro criando diferenças regionais de riqueza Diante de tal efeito eclodiram revoltas Em 1817 revolucionários tomaram o poder em Pernambuco e espalharam por Recife um panfleto que começava assim Patriotas pernambucanos A suspeita tem se insinuado nos proprietários rurais eles creem que a benéfica tendência da presente liberal revolução tem por fim a emancipação indistinta dos homens de cor e escravos O governo lhes perdoa uma suspeita que o honra Nutrido em sentimentos generosos não pode jamais acreditar que os homens por mais ou menos tostados degenerassem do original tipo de igualdade mas está totalmente convencido de que a base de toda a sociedade regular é a inviolabilidade de qualquer espécie de propriedade Impelido destas duas forças opostas deseja uma emancipação que não permita lavrar entre eles o cancro da escravidão Mas desejaa lenta regular e legal Eram os primeiros seguidores do Iluminismo a ter poderes de governo no Brasil E viveram os mesmos problemas de todos os outros formulando soluções particulares No texto do manifesto aparece o mesmo dilema de Thomas Jefferson a incongruência entre o princípio da igualdade que deveria presidir a formulação das leis e a desigualdade empírica e fatual da escravidão Tal dilema é analisado com vantagens pelos pernambucanos a começar pela exposição clara do problema da emancipação em vez de o escamotear e terminando pela completa separação conceitual entre a raça e a condição de escravo Mas o que se ganha na exposição se perde na conclusão Na hora de empregar a escrita para fazer uma lei transformando a teoria da igualdade em fórmula jurídica aplicável a uma realidade particular o fracasso é completo Os donos do governo não têm a capacidade de escamotear com palavras de não escrever o termo escravo numa lei porque isso seria reconhecer juridicamente a escravidão Assim não lhes resta outra saída senão a de abandonar a universalidade do princípio da liberdade e reconhecer como universal outro princípio o da inviolabilidade da propriedade tradicional o qual também leva a reconhecer juridicamente a propriedade do escravo Razão e costume ganham assim o mesmo peso como resultado dessas duas forças opostas o governo não tem nada de prático a propor com relação aos escravos e reconhece a posse dos senhores até que uma ação lenta regular e legal disponha de outro modo A solução não estaria no governo nem nos princípios mas antes na justiça vista como instância reguladora da tradição tal como pregava a receita corporativa Esse impasse na posição iluminista era o reflexo invertido do impasse conservador diante das noções de liberdade e igualdade Tanto o panfleto revolucionário como as arengas conservadoras reiteravam cada qual à sua maneira a mesma vacilação e paralisia no emprego de princípios universais da razão como fundamento das leis e do direito Do ponto de vista lógico a figura dominante nas propostas dos dois lados era a mesma uma tentativa de transformar princípios opostos e que moviam lutas políticas sangrentas em paradoxos apresentados retoricamente Com isso abriam caminho para a acomodação seja do Corpo Místico do rei à colônia como flertavam os conservadores seja a um mundo de progressivo domínio da igualdade como asseverava o panfleto revolucionário CAPÍTULO 24 Governo nacional NOS SÉCULOS XVII E XVIII O GOVERNO CENTRAL PORTUGUÊS COLOCOUSE COMO um sólido muro entre o Brasil e o resto do mundo Todos os intercâmbios oficiais exigiam baldeação em Lisboa Antes da mudança da Corte havia apenas um caminho oficial entre o Brasil e o mundo exterior os produtos brasileiros precisavam passar pela alfândega e as pessoas pela burocracia da Corte até mesmo para se educar Os mesmos mecanismos funcionavam na direção inversa Mercadorias de variadas praças chegavam ao Brasil num fluxo sempre controlado de perto pelos agentes metropolitanos Também havia um rígido controle cultural fazendo com que a cultura europeia chegasse a contagotas Diante de tantos empecilhos os contatos com as novidades do mundo exterior tinham de ocorrer à margem da legalidade sob a forma de contrabando Como no interior do continente as fronteiras terrestres eram extensas e escapavam ao controle efetivo das autoridades centrais pelo sertão sempre ocorreram trocas com outros povos de governo consuetudinário e com vizinhos sobretudo os espanhóis da região platina Igualmente permeáveis eram as fronteiras com a África devido ao enorme fluxo humano de escravos de lá importados e aos produtos levados pelos traficantes estabelecidos no Brasil Com a vinda da Corte o muro virou um biombo bem mais permeável Não foi um processo uniforme sendo mais acentuado no Rio de Janeiro e nos maiores núcleos urbanos do litoral No âmbito privado a transformação se fez notar na movimentação dos portos que passaram a receber navios bens e pessoas de todo o mundo numa frequência bem maior Esses navios não traziam e levavam apenas cargas A Corte se tornou sede de embaixadas ponto de residência de comerciantes estrangeiros centro para o qual convergiam viajantes curiosos que antes não recebiam autorização para percorrer o país local de moradia de artistas e escritores que traziam as informações antes escamoteadas No sentido oposto aumentou o fluxo dos brasileiros que viajavam para outros pontos que não Portugal Começou assim a se desfazer aquilo que nos séculos anteriores fora zelosamente construído pela política de segredo Todo o processo social baseado nas alianças Tupi e depois da mineração numa mestiçagem geral e na desigualdade da escravidão também geral tinha como única fonte de expressão o costume a lei social dos analfabetos O costume não incluía apenas as alianças por casamento Praticamente todos os negócios o crédito e a produção estavam fundados em redes de fiado inteiramente reguladas pelo costume e sem proteção legal Todos os muitos empreendimentos que levaram das alianças esporádicas no litoral a uma economia integrada numa área de 82 milhões de quilômetros quadrados se fizeram a partir desse alicerce de normas consuetudinárias A abertura para o mundo e para as letras possibilitou que a existência das pessoas comuns pudesse afinal ser pensada escrita e entendida como resultante dos costumes e não como desvio da velha norma Assim a esfera do costume em vez de ter o seu valor negado na elaboração da lei pela manutenção da ignorância e a restrição da escrita viabilizava no Brasil a alternativa que se espalhava pelo mundo criar um governo adequado aos moradores que refletisse seus interesses que tivesse como fonte de poder a soberania popular no qual as leis sagrassem os costumes em vez de se orientarem para realçar a desigualdade Projetos de independência ligada à adoção dos novos princípios começaram a ser debatidos Por outro lado os nobres e cortesãos instalados no Rio de Janeiro familiarizaramse com os brasileiros e sua cultura o suficiente para que surgissem brechas na antiga carapaça Para começar todos se adaptaram ao fato de que a realidade local continuaria à margem do arcabouço legal dos primeiros livros das Ordenações sem privilégios medievais para a nobreza ou o alto clero nenhuma concessão dessa espécie foi feita de modo que até os titulados mais graduados tiveram de se conformar Nem se importaram pois não demoraram a notar o dinamismo do mercado e logo se tornaram investidores trazendo dinheiro da Europa para financiar empreendimentos no Brasil Em pouco tempo havia produção de charque arroz e trigo no Rio Grande do Sul de café no Rio de Janeiro mais comércio com a África investimentos na área platina que levaram à incorporação do Uruguai todos com a participação dos recém chegados A relativa facilidade com que muitos cortesãos se entenderam com os empresários estabelecidos logo se fez notar na movimentação dos brasileiros na Corte até a rainha Carlota Joaquina que odiava o Brasil manteve um caso extraconjugal com o traficante de escravos Fernando Carneiro Leão Já D João VI deixou de lado seus compositores sacros usuais para admirar a música do mulato José Maurício Nunes Garcia As trocas filtradas pelo biombo do governo central recéminstalado no território geraram frutos miscigenados O Brasil deixou de ser um espaço isolado os brasileiros foram vislumbrando as possibilidades de um governo central capaz de processar os interesses locais O secular fluxo fiscal em benefício dos agentes metropolitanos agora era um fluxo de gastos públicos que eventualmente atendia o interesse dos mais ricos Assim se fez a deglutição rápida do governo central O monarca percebeu que tinha feito um grande negócio estratégico agora que vivia num lugar no qual o fantasma da época a cabeça do governante monárquico sendo separada do corpo pela ação da guilhotina parecia ter sido afastado O problema veio justamente da parte do reino que ficou meio esquecida em meio a tantas oportunidades Invadido o Portugal metropolitano sofreu as consequências da vaga revolucionária europeia Somente com a expulsão dos franceses e a derrota de Napoleão veio o momento de reconstruir e constatar que as coisas estavam difíceis A economia metropolitana se compunha de um setor agrícola marcado pelas limitações da produção feudal e de um setor comercial que exportava uns poucos produtos locais vinho em especial e ganhava como intermediário na reexportação de produtos do Brasil Com a Corte no Rio de Janeiro muitos nobres passaram a investir no Brasil os recursos que recebiam do Tesouro enquanto na metrópole comerciantes estrangeiros tomavam uma fatia cada vez maior dos negócios com a chancela do soberano distante Pouco acostumados com uma posição territorial e fiscal subalterna em relação ao governo os mais afetados se atualizaram politicamente Assim em 1820 eclodiu no Porto uma revolução com um programa igualmente marcado pelas contradições da época propunha a elaboração de uma Constituição por representantes eleitos segundo o princípio da liberdade mas também pregava a volta do monarca a Lisboa Em 1821 organizaramse dois movimentos políticos De um lado apesar das instruções precárias os moradores da maioria das capitanias brasileiras elegeram deputados constituintes A função era nova mas uma vez que todos sabiam como os representantes eleitos se comportavam nas câmaras mostraram uma rapidíssima adaptação ao Parlamento quando tiveram de nele atuar Enquanto isso o monarca fazia o caminho de volta acompanhado de cerca de 2 mil cortesãos Sejam quais forem as margens de erro é bastante provável que pouco mais de 10 mil cortesãos tenham decidido permanecer no Brasil Numa altura em que Portugal contava 750 mil habitantes isso representava 12 da população do reino com alta representatividade de fidalgos Cauteloso o rei levou consigo os depósitos em ouro guardados no Banco do Brasil E deixou como regente o filho Pedro então com 22 anos de idade que numa de suas primeiras decisões convocou José Bonifácio de Andrada e Silva que já estava aposentado Nascido em 1763 em Santos numa abastada família de comerciantes e traficantes de escravos José Bonifácio seguira para Portugal com 20 anos a fim de estudar Em 1787 formouse em direito e filosofia e depois publicou um trabalho calcado em princípios inusitados Avaliando a alteração nas relações do homem com a natureza postulada pelo pensamento iluminista convenceuse da urgência de se impor barreiras e limites à exploração que viria por necessidade Em função disso propôs a criação de leis que regulamentassem a pesca de baleias visando evitar a extinção da espécie A obra rendeulhe uma bolsa de estudos no exterior Chegando a Paris em setembro de 1790 teve a oportunidade de acompanhar os desdobramentos da Revolução francesa e tornouse próximo de vários dirigentes do novo governo Assim matizou a formação iluminista com a comprovação direta das lutas desencadeadas pela implantação da nova filosofia Em 1792 instalouse em Freiberg na Saxônia sede da melhor escola de mineralogia da Alemanha e ali fez amizade com o naturalista e explorador Alexander Humboldt Na época do verão realizava viagens de estudo por regiões mineralógicas Conheceu boa parte do continente europeu onde firmou seu nome como mineralogista entre outras coisas por descobrir uma dúzia de espécies minerais e participar da identificação do lítio Em 1801 José Bonifácio estava de volta a Portugal Falava doze línguas escrevia em seis e era membro das principais academias de ciências Na Universidade de Coimbra foi nomeado para a cátedra de mineralogia especialmente criada para ele Durante as invasões francesas de 1808 destacou se como organizador e comandante no Corpo dos Voluntários Acadêmicos Feita a paz assumiu vários postos diretivos na burocracia metropolitana Aposentado retornou ao Brasil em 1819 com 56 anos de idade Instalou sua biblioteca de 6 mil volumes em Santos apesar de dançar lundus em festas e viajar pelo interior da capitania a vida de intelectual o isolava numa vila dominada por analfabetos Para se distrair escrevia sobre todos os assuntos inclusive governo Os apontamentos que produziu nos primeiros anos no Brasil indicam que considerava boa a situação de momento não vendo motivos para uma separação entre Brasil e Portugal Também indicam que tinha alguma prevenção contra os governos de representantes eleitos e a soberania popular cogitando fórmulas de poder nas quais órgãos burocráticos compostos de altos funcionários substitutos da nobreza togada como ele próprio teriam poderes autônomos Em 1821 depois das mudanças em Portugal esteve entre os que passaram a dirigir São Paulo numa junta de governo Organizou a eleição dos seis deputados paulistas um dos quais era o seu irmão Antônio Carlos de Andrada Nessa condição redigiu no dia 10 de outubro um documento prevendo um corpo de funcionários que chamou de censores que atuaria como elemento moderado nas disputas entre o monarca e os representantes eleitos da Assembleia Apenas dois meses depois em janeiro de 1822 foi nomeado ministro pelo regente D Pedro que acabara de completar 23 anos Na primeira reunião entre os dois houve um acordo formar um centro de poder estável no Brasil que assegurasse a sobrevivência da monarquia e a obediência a uma Constituição a ser elaborada por representantes eleitos Parecia um contrassenso evidente fundir instituições fundadas em princípios opostos De um lado estaria o poder real concebido como tendo origem divina operador de uma régua de justiça cuja medida os homens não conhecem e dando a cada um segundo o seu De outro um poder que se via fundado na razão derivado da soberania popular o maior de todos os poderes formado por pessoas eleitas e promulgando leis a que todos deveriam obediência Mas o momento era de emergência A primeira missão do ministro foi a de costurar apoios para que o regente expulsasse as tropas militares fiéis a Lisboa que estavam aquarteladas no Rio de Janeiro O êxito do ministro permitiu que o regente fosse a Minas Gerais Após treze anos no Brasil essa era a primeira vez que D Pedro saía da Corte Viajando sem séquito descobriu tanto as belezas da terra como os caminhos da política local debateu diretamente com as câmaras municipais as entidades que detinham os poderes efetivos para o apoio político fez reuniões públicas e promessas como qualquer vereador conheceu os canais de poder das capitanias bons para cobrar impostos mas inoperantes para atender os interesses dos moradores Teve sucesso ao passar a imagem de um soberano que prometia obedecer a uma Constituição Na volta alterou o tratamento nas cartas dirigidas ao pai substituindo a fórmula Deus guarde a preciosa saúde de Sua Majestade como todos os portugueses hão mister por os portugueses e nós brasileiros havemos mister Passou também a definirse como regente constitucional do Brasil nos decretos que editava e nas ordens que passava Os resultados políticos foram muito efetivos Em pouco mais de três meses consolidouse o acordo pelo qual o regente aceitaria um poder vindo do povo materializado num Parlamento eleito como Poder Legislativo soberano e encarregado de fazer as leis mais adequadas aos interesses dos cidadãos Na via inversa os principais líderes seguidores dos princípios iluministas do Rio de Janeiro Minas Gerais e São Paulo se comprometeram a aceitar não apenas um monarca hereditário mas também a continuidade de toda a visão de mundo do Antigo Regime o preconceito contra os brasileiros comuns a estrutura administrativa que vinha da colônia com o governo central e o comando das capitanias nas mãos de D Pedro Pelo acordo aquilo que no mundo era luta entre modos contraditórios de conceber a legitimidade do poder e a razão de ser das leis ficava em suspenso pela necessidade de garantir a independência No primeiro momento a união tinha um sentido claro figurado na pressão direta da Assembleia portuguesa para retomar o controle da administração brasileira e por meio deste do fluxo de negócios que havia se esgarçado Também havia um ganho potencial que era a possibilidade de herdar sem grandes problemas as conquistas diplomáticas relativas à delimitação do território quase todas contando com reconhecimento jurídico Acima de tudo a fusão de forças mostrouse eficiente Assim que se consolidou o acordo foi sacramentado na Maçonaria a sociedade secreta que reunia a maior parte dos liberais Com isso se estabeleceu um canal informal de difusão do projeto nas diversas capitanias nas quais tropas fiéis às Cortes de Lisboa e governos pouco fiéis ao projeto ainda dominavam Mesmo nessas circunstâncias foi possível promulgar em 3 de junho de 1822 o decreto de convocação de uma Assembleia Constituinte para fazer leis que valeriam apenas no território Os brasileiros estavam tão familiarizados com o processo eleitoral que agiram da mesma forma que na convocação das Cortes portuguesas escolhendo sem problemas os seus representantes para a formação de um Parlamento Em agosto foi dado outro passo para a organização de um governo próprio com as primeiras indicações de embaixadores brasileiros no exterior Eles partiram levando instruções escritas por José Bonifácio que acumulava o posto de chanceler com o de ministro responsável pelos negócios internos Graças ao domínio do governo central sobre parte do território e ao apoio de correntes de interesse internas havia condições suficientes para o gesto formal da independência no dia 7 de setembro Mas a formalidade era essencial a partir dessa data o território seria de uma nação autônoma e o governo central uma questão interna de seus habitantes Os problemas dessa realidade eram claros a rigor a autoridade do novo governo se exercia apenas numa fração do território declarado independente Da Bahia para o Norte as tropas fiéis a Lisboa ainda sustentavam correligionários no comando das capitanias Já no final de 1822 contudo o número de deputados eleitos reunidos no Rio de Janeiro começava a se aproximar do mínimo necessário para a instalação da Assembleia Constituinte Chegava o momento de repartir efetivamente o poder entre o monarca e os representantes da soberania popular De combinar a função de súdito obediente com a de cidadão De limitar o arbítrio e definir a esfera da igualdade perante a lei De cortar privilégios e limitar os poderes do governo Até a reunião dos deputados constituintes a ideia da fusão equilibrada de duas soberanias parecia atraente e efetiva No entanto a mistura mostrouse explosiva assim que começou a briga pela fatia de poder que teria cada soberania baseada em princípios opostos CAPÍTULO 25 A Constituição de 1824 A MAIOR PARTE DOS DEPUTADOS QUE SE DIRIGIRAM AO RIO DE JANEIRO ERA DE pessoas que até a véspera estavam muito abaixo da fidalguia exigida até mesmo para pleitearem um cargo no governo de capitanias E encontraram uma festa preparada Em outubro de 1822 D Pedro fora sagrado imperador e coroado em dezembro Nesse curto intervalo tratou de resolver a seu modo a primeira tensão das forças opostas que se juntaram no projeto A Maçonaria fez pressão para que a cerimônia da coroação o ato simbólico de instalação do novo poder nacional do monarca incluísse um juramento à futura Constituição o ato de inauguração do poder soberano do povo Ofendido o imperador jurou defender a Constituição mas apenas se fosse digna do Brasil e de mim Começava a disputa entre o espaço de continuidade dos valores do Antigo Regime e aquele dos ideais iluministas Com suas atitudes o imperador alertava os representantes eleitos que chegavam à capital que tomassem cuidado ao limitar pela via constitucional o poder que reservara para sua augusta pessoa Tinha confiança de que aqueles deputados que conhecera da Corte seriam capazes de providenciar o figurino digno da sua alta majestade Entre eles estavam o bispo do Rio de Janeiro o peculiar divulgador de Adam Smith que seria mais tarde visconde de Cairu e acima de todos José Bonifácio ministro com poderes quase de rei Todavia nem todos os recémchegados se importavam com essa parte do espetáculo Entre eles havia 16 padres seculares que não seguiam as posições do superior hierárquico o bispo nem os preceitos da divindade do poder monárquico Assim que começaram as sessões preparatórias um desses padres do interior o mineiro José Custódio Dias tomou posição contrária à proposta de obrigar os parlamentares a jurarem fidelidade ao rei com o seguinte argumento iluminista Nenhum limite deve circunscrever as funções dos membros da Constituinte salvo os ditados pela razão e pela justiça Doze dias mais tarde voltou à carga quando se discutia a posição que o rei deveria ocupar no salão durante a cerimônia de abertura dos trabalhos Pela proposta do palácio o trono seria colocado no alto de uma escadaria aos pés da qual ficaria a cadeira do presidente da Assembleia Custódio Dias argumentou Como o digno representante do poder Executivo tem de respeitar a Nação legitimamente representada da qual só deriva toda a autoridade que pelo pacto social se lhe vai conferir por lei fundamental cabe a colocação das cadeiras no mesmo plano Pareciam detalhes mas eram assuntos de fundo Toda a tradição do já então chamado Antigo Regime o mundo anterior à decapitação de Luís XVI era a de organizar o poder como desigualdade tendo como modelo as relações senhorrei e escravosúdito Já o modelo iluminista era aquele da sociedade de iguais que faz um contrato constitucional por delegação do povo soberano Em sociedades com muitos analfabetos o cerimonial é a organização de um roteiro para ser lido por todos e por isso a localização era importante como símbolo do que viria pela frente Por isso a insistência Muitos dos constituintes viam a si mesmos pelo figurino iluminista como representantes eleitos da população e portanto responsáveis por transformar o governo com monarca e tudo num intermediário entre a soberania geral e a execução de sua vontade Estavam dispostos a tolerar um rei à frente de um dos poderes mas também a redigir uma Constituição na qual teria papel central o Poder Legislativo que inauguravam Perderam o primeiro round mas a luta continuou A disputa simbólica entre um poder que tinha como fonte filosófica o princípio da desigualdade que separa o monarca de seus súditos e outro que se alimentava da igualdade entre os cidadãos logo ganhou uma referência muda nos debates a escravidão Nenhuma nação do Ocidente encontrara ainda uma fórmula para aplicar com êxito o princípio da igualdade na vida civil A abolição da escravatura no Haiti resultara em desastre econômico e todos os iluministas davam tratos a bola para descobrir fórmulas de ajuste entre a realidade do cativeiro os ideais de liberdade e os anseios de progresso No Haiti a total desarticulação da economia ocorrera por causa do duplo caráter da mudança Do lado político aconteceu a garantia da liberdade Do lado econômico tal liberdade implicava o cancelamento dos títulos de propriedade dos donos dos escravos A luta contra o princípio lógico que sustentava o poder real tinha uma tradução prática complicada na economia O custo em dinheiro da abolição também seria imenso na realidade brasileira da época Na época da independência o valor total representado pelos escravos brasileiros era de 688 milhões de libras esterlinas ou 293 milhões de dólares Em base per capita seriam 10446 dólares por homem livre a população livre em 1823 era de 28 milhões de pessoas mais que o PIB per capita estimado para a época Era um valor 637 vezes maior que a receita orçamentária de 1826 que foi de 59 mil contos o que dá uma ideia do problema fiscal que seria criado com a combinação de abolição e pagamentos de indenização aos senhores pela via da emissão de títulos1 Mesmo sem indenização o fim do cativeiro naquele momento era mais um problema de economia do que de direitos e não havia solução disponível O melhor que ingleses e norteamericanos haviam conseguido fora uma solução de compromisso legislar contra o tráfico internacional de escravos sem legislar contra a escravidão E as leis contra o tráfico foram aprovadas quase ao mesmo tempo nos dois países no ano de 1808 Depois desse ato a Inglaterra até então uma das maiores nações traficantes do planeta pôde concentrarse no desenvolvimento capitalista e abandonar as políticas mercantilistas Passou então a pressionar para que a atividade fosse interrompida em todo o mundo e um dos alvos dessa pressão foram os traficantes brasileiros Já nos tempos de D João VI os ingleses tinham arrancado acordos pelos quais o tráfico de escravos passaria a ser ilegal ao norte do Equador a partir de 1815 Era a solução de longo prazo exequível A nação recémindependente poderia ou não reconhecer essa posição e a decisão estava nas mãos de José Bonifácio ministro dos Negócios Exteriores Ele baseou as conversas iniciais com a Inglaterra numa troca Londres reconheceria a independência brasileira e o novo país adotaria uma política de contenção gradual do tráfico Tal opção criava um problema espinhoso Uma vez que quase não havia bancos nem empresas no país a acumulação de capital dependia do fornecimento da mercadoria viva os escravos eram não só uma fonte de trabalho mas também o esteio das cadeias de fiado que ligavam a capital ao mais remoto sertão Não à toa os traficantes eram de longe os mais ricos empresários brasileiros Aceitar o fim do tráfico obrigaria a uma imperiosa mudança em toda a estrutura de subordinação financeira dos produtores do sertão aos comerciantes do interior e destes aos traficantes dos grandes centros Assim além da disputa filosófica a respeito da organização das leis e dos bons governos logo se mostrou um complicado problema prático A posição de José Bonifácio desagradou profundamente os traficantes que ao contrário dos deputados recémchegados mantinham relações de extraordinária proximidade com o Paço Imperial lastreada em anos de bons negócios mútuos os traficantes ofereciam aos nobres e cortesãos uma participação nos lucros dos seus empreendimentos imiscuíamse nos negócios de arrecadação de impostos nas transações com as províncias arrematavam contratos de obras públicas e cargos no governo Então eles se aproveitaram de um momento de alívio das ameaças militares as tropas fiéis a Lisboa que ainda dominavam a Bahia foram cercadas em maio de 1823 e abandonaram Salvador até 2 de julho daquele ano Com isso apenas o Maranhão e o Pará ainda não tinham aderido formalmente à independência Essa drástica redução de riscos permitiu que o imperador assumisse outros demitiu José Bonifácio e seu irmão Martim Francisco ministro da Fazenda colocando no lugar deste o marquês de Baependi cunhado de Fernando Carneiro Leão o traficante que fora amante de Carlota Joaquina José Bonifácio não se abalou deixou o serviço da autoridade coroada e assumiu o posto de deputado constituinte para o qual fora eleito por São Paulo Um de seus primeiros atos foi protocolar uma Representação sobre a escravatura Sendo trabalho de parlamentar representante eleito e não mais de ministro a serviço do poder arbitrário apresentava um novo foco que ecoava a posição anglosaxã da transição lenta mas com foco brasileiro É tempo que vamos acabando gradualmente com os últimos vestígios da escravidão entre nós para que venhamos a formar uma nação homogênea sem o que nunca seremos verdadeiramente respeitáveis e felizes É da maior necessidade ir acabando com tanta heterogeneidade física e civil Cuidemos pois desde já em combinar sabiamente tantos elementos discordes e contrários em amalgamar tantos metais diversos para que saia um todo homogêneo e compacto que não se esfarele ao toque de qualquer convulsão política2 O texto revela domínio da teoria iluminista e dos modos já empregados para transformála em escrita norteadora das leis nacionais Nos Estados Unidos também havia essa ideia de empregar a teoria como guia de uma legislação sábia a ser executada em meio a costumes muitas vezes selvagens Para tanto os legisladores escolheram definir em lei apenas os princípios básicos de tal modo que se reforçasse a igualdade por meio da jurisprudência ao mesmo tempo que desestimulava os costumes que mantinham a desigualdade à margem da letra No Brasil era o contrário José Bonifácio via as virtudes nos costumes via as soluções a partir da essencial mestiçagem capaz de unificar o país a partir da sociedade Sendo os costumes a fonte da igualdade o problema real seria usálos como fundamento para o desaparecimento da heterogeneidade civil eliminando o direito do arbítrio circunscrevendo a autoridade do monarca e dos senhores os esteios da vida nos moldes do Antigo Regime O andar de cima é que precisava de reforma Se embora com diferenças as posições de José Bonifácio e dos norte americanos visavam o mesmo objetivo havia uma radical diferença de visão entre ele e os defensores nacionais da continuidade dos valores do Antigo Regime como norteadores das leis brasileiras Para estes desde sempre a manutenção das diferenças era o mais importante Viamse como os caranguejos e os demais brasileiros como um punhado de mestiços de mau comportamento Para José Bonifácio pelo contrário o futuro seria marcado pela virtude de costumes que ele em escrito anterior definira da seguinte maneira Nós não conhecemos diferenças nem distinções na família humana como brasileiros serão tratados por nós o chinês e o luso o egípcio e o haitiano o adorador do sol e de Maomé3 A cidadania deveria abolir todos os privilégios Diferenças de raça ou diferenças de religião não seriam impeditivos para alguém ser brasileiro Pelo contrário o reconhecimento da liberdade de credo e da igualdade essencial entre os seres de todas as raças seria o fundamento do que define os brasileiros A formulação de José Bonifácio incorpora ao modo iluminista uma concepção universal da capacidade humana de empregar a razão independentemente de raça ou religião Como todos os seres humanos teriam essa capacidade todos teriam direitos como cidadãos Mas há um detalhe importante para ele eram os brasileiros e não os seres humanos em geral que não considerariam diferenças religiosas ou raciais José Bonifácio identificava algo próprio da sociedade brasileira que tornava as ideias de liberdade e igualdade plausíveis para todos num grau inconcebível para outros iluministas Thomas Jefferson era um dos que não acreditava que os negros mesmo livres tivessem a capacidade de usar a razão ao ponto de terem direitos civis isto é serem cidadãos tão capazes de pensar por si mesmos que poderiam votar e ser votados Assim defendeu legislações na Virgínia que negavam o direito de voto aos negros livres Rousseau duvidava que habitantes dos trópicos tivessem capacidade racional plena Essa crença num processo de união nacional constituída por amalgamento a peça central da aliança agora brasileiroTupi distinguia o deputado José Bonifácio Ele argumentou em favor de uma união inicial entre elementos discordes o monarca hereditário e o Parlamento como preço inevitável a pagar O rei deveria aceitar um Parlamento casa adequada para se criar instituições liberais dignas de uma sociedade que vivesse em liberdade E os liberais deveriam aceitar um rei até o momento em que a sociedade civil fosse homogênea Com esse tipo de argumento procurou ajudar na elaboração de um texto constitucional que mantivesse a substância da proposta original fazer conviver duas fontes de poder opostas numa única regra social No início de setembro de 1823 chegouse a um projeto palatável aos constituintes e restava o problema de saber se o monarca o considerava digno de si Nessa altura porém garantido o controle de quase todo o território o monarca tinha outro tipo de aliança em mente Estava governando com o apoio de sempre os comerciantesfidalgos que também pregavam os valores do Antigo Regime Passado o susto da intervenção nos negócios destes e nos poderes daquele as duas partes associadas no alto começavam a se perguntar se seria o caso de partilhar o governo com os recémchegados do Parlamento A resposta veio em novembro com a Assembleia Constituinte sendo fechada por tropas e José Bonifácio forçado a se exilar Para mostrar quem de fato decidia o que seria digno para o Brasil o monarca promulgou uma Constituição feita por ele mesmo na qual aproveitava grande parte do texto elaborado pelos deputados mantendo inclusive umas tantas qualidades Entre elas estavam o reconhecimento como cidadãos de todos os moradores do território nascidos onde fossem fossem índios libertos ou portugueses Não se empregava a palavra escravos mas como definia que todos os libertos eram cidadãos plenos algo que não acontecia nos Estados Unidos de então o ato afirmava direitos plenos para todos que não fossem escravos Mantinha a capacidade de voto para todos incluindo analfabetos e estabelecia como critério de exclusão maior um limite de renda 100 milréis menos que o valor do salário de um carpinteiro Por outro lado o texto do imperador introduzia uma mudança radical no projeto aprovado no Parlamento exatamente nos capítulos que definiam os poderes do soberano As prerrogativas começavam no artigo 98 que criava um poder exclusivo do monarca o Poder Moderador como a chave de toda a organização política delegado privativamente ao imperador como chefe supremo da nação e seu primeiro representante para que incessantemente vele sobre a manutenção da independência equilíbrio e harmonia dos demais poderes As relações entre o soberano de origem divina e a soberania popular representada no Parlamento não seriam relações entre iguais como queria o padre José Custódio Dias Agora havia uma chave para regular os espaços das duas soberanias opostas com dono privativo Para ficar claro que não se tratavam de partes iguais de eventuais ocupantes de um mesmo plano o artigo 99 reiterava A pessoa do imperador é inviolável e sagrada Ele não está sujeito a responsabilidade alguma O termo responsabilidade está empregado em seu sentido jurídico a lei não pode ser aplicada ao detentor do Poder Moderador É igual apenas para os súditos o monarca está acima dela As atribuições do Poder Moderador em relação a muitas instituições eram relacionadas caso a caso O artigo 102 definia as relações com o Executivo O imperador é o chefe do poder executivo e o exercita através de seus ministros O sentido preciso desse através é detalhado no capítulo 6 ministros eram os responsáveis ou seja respondiam juridicamente podendo ser processados por traição abuso do poder transgressão à lei mau uso do dinheiro público Caso ainda restassem dúvidas o artigo 135 esclarecia Não salva aos ministros da responsabilidade a ordem do imperador vocal ou por escrito Nesse caso o imperador mandava o ministro fazia o que não o isentava de um eventual processo O controle do Poder Judiciário também ficava sob o comando direto do imperador que nomeava ou afastava à vontade todos os membros dos tribunais superiores além de manter o antigo poder da graça que lhe permitia alterar sentenças judiciais quando julgasse conveniente A Constituição preservava apenas uma novidade de fundo iluminista a definição do Poder Legislativo como parte do governo da nação dotada de soberania própria derivada da escolha dos eleitores e não da vontade do imperador Também reservava exclusivamente aos parlamentares alguns poderes fazer leis fixar impostos e despesas autorizar empréstimos definir o valor da moeda e os padrões de medida Mas também o definia como poder delegado e portanto produtor de atos que só entrariam em vigor após a sanção do imperador Para que nenhum parlamentar se aventurasse o artigo 65 dizia explicitamente que a ausência de sanção tornava sem efeito as decisões legislativas a menos que o mesmo e exato texto fosse aprovado de novo por uma segunda legislatura Publicada a nova Constituição os exdeputados foram mantidos em casa A convocação de eleições só aconteceria quando assim o decidisse o detentor do Poder Moderador Enquanto a nação ficava sem representantes eleitos muitos iam reinterpretando palavras que recendiam a recados do Paço como essas do então ministro Antônio Carlos Ribeiro de Andrada ao refutar a ideia do padre José Custódio Dias de colocar as cadeiras num mesmo plano Que paridade há entre o representante hereditário da nação inteira e os representantes temporários Que paralelo se pode encontrar entre o monarca que concentra em sua individualidade toda uma delegação soberana e o presidente de uma assembleia que abrange coletivamente outra delegação soberana mas que não pode nem deve abrangêla toda Como se pode nivelar um poder que é fonte de todas as honras com uma assembleia cujo maior ornato é a simplicidade4 Exilado com o irmão José Bonifácio o homem um dia preso por participar de revoluções começou a se dar conta de outro padrão para julgar o quanto essa desigualdade expressa no texto estava longe de seus sonhos nos quais essa dualidade seria favorecida pelos costumes os atos arbitrários do primeiro governante do país independente CAPÍTULO 26 Dando para si mesmo MAIS DO QUE REDIGIR UMA CONSTITUIÇÃO A SEU GOSTO D PEDRO I CONSEGUIU transformar o poder legal concebido para realçar sua pessoa em poder efetivo tendo de superar apenas um obstáculo notável A principal reação veio de Pernambuco que voltou a pegar em armas contra o poder central A Confederação do Equador durou poucos meses e foi debelada por meio da intervenção conjunta dos recém criados Exército e Marinha nacionais o primeiro caso no qual forças organizadas para a defesa externa foram empregadas contra os agora cidadãos segundo ditava a teoria iluminista e súditos como ditava o Poder Moderador Os principais líderes liberais da província frei Caneca à frente foram fuzilados em janeiro de 1825 Em seguida o Exército e a Marinha cumpriram também a última missão de luta contra forças ainda ligadas a Lisboa instalando governos brasileiros no Maranhão e no Pará Assim se completou um ciclo Em pouco mais de dois anos foi criado um governo independente no país capaz de exercer autoridade num território que coincidia com todo o território colonial Além disso a autoridade imperial estabelecida comandara uma centralização de porte ampliando o domínio sobre as demais instâncias de governo se comparado ao monarca anterior Governando do Rio de Janeiro D João VI era obrigado a observar as regras de seu poder fundado na tradição secular do reino multicontinental Não podia derrogar os direitos adquiridos pelos nobres ou pelo clero precisava lidar com um Poder Judiciário que mantinha essas prerrogativas tinha de seguir as rotinas de consultas aos vários conselhos Mesmo estando instalado na face americana de seus domínios na qual os direitos feudais da nobreza e do clero não existiam de fato seus atos seguiam o modelo geral O máximo que fez em termos administrativos foi transformar as capitanias em províncias por um ato de 1821 Essa instância intermediária de governo embora subordinada ao monarca mostrou de imediato um relevante grau de autonomia Com a Revolução do Porto juntas de moradores em diversas províncias haviam tomado para si o poder Organizaram a eleição de deputados constituintes e com elas obtiveram tanto a ampliação da esfera de ação do voto como relações diretas com os representantes eleitos sem que o monarca tivesse determinado nada a respeito Depois comandaram as eleições dos representantes para o Parlamento brasileiro em muitos casos antes mesmo do 7 de setembro A violenta repressão dos pernambucanos foi também um alerta pela nova Constituição a escolha dos governantes nas províncias passava a ser um ato reservado ao Poder Moderador ou seja dependia da vontade arbitrária do imperador Os fuzilamentos no Recife lembraram à última província a manter a já secular tradição de governos regionais autônomos que havia começado uma nova era que não era exatamente a do governo que representava a sociedade A única contestação à autoridade régia manifestouse através de pequenas discordâncias esparsas de câmaras municipais naquele momento as únicas representantes da soberania popular A Câmara de Quixeramobim no Ceará proclamou a república em resposta à Constituição outorgada a de Itu em São Paulo recusou a Carta Era quase nada de modo que o imperador passou a governar quase sem contraste de outras esferas de poder O poder político imposto do centro para as localidades se completava por um fluxo financeiro na direção oposta impostos captados em todo o país afluíam ao Tesouro no Rio de Janeiro Assim se completava a soma do mandar e do receber No momento de o governo dar a cada um o seu a independência também introduziu novidades importantes Na época colonial toda a lógica do governo central baseavase na obtenção de superávits no Brasil os quais compensavam os gastos deficitários com nobres clérigos e fidalgos togados na metrópole Como no Brasil não havia nada disso as despesas do país independente tinham caráter bem mais discricionário ou seja o poder central podia gastar o dinheiro como bem entendesse E o poder central de 1824 em diante era praticamente sinônimo de imperador A Constituição concentrara poderes em torno de uma única figura que derrogara o Parlamento e passara a mandar sozinha Agora o emprego dos recursos da nação era quase uma decisão pessoal do imperador O quase devese ao fato de que a centralização do poder não era apenas um projeto pessoal Havia gente importante em todo o país que apoiava a ideia de um poder arbitrário Por isso ainda que não tivesse obrigações explícitas para com essas pessoas o soberano precisava prestar atenção naqueles súditos que mais o ajudavam a fazer a roda girar nesse sentido D Pedro não descuidou disso desenvolvendo versões nacionais de fórmulas monárquicas muito baratas e de relativo peso social recompensando a obediência com os panos vermelhos de fidalguia Depois de bater nos cidadãos com a Constituição passou a assoprar uns poucos súditos que o sustentavam por meio da distribuição de títulos de nobreza A monarquia portuguesa determinara o hábito da Ordem de Cristo como o maior grau de fidalguia acessível aos brasileiros o que se justificava para evitar as franquias que acompanhavam os títulos de nobreza hereditários No país independente essa vinculação desapareceu com a Constituição de modo que o imperador passou a distribuir títulos que tinham os mesmos nomes daqueles da nobreza de sangue mas nada de seu conteúdo uma vez que a eles não estavam associados direitos adquiridos Um dos primeiros títulos dessa natureza foi concedido à paulista Domitila de Castro Mello amante do imperador desde a Independência que se tornou primeiro viscondessa e logo depois marquesa de Santos uma ironia direta com o santista José Bonifácio que se recusou a ser nobilitado Outro agraciado foi José da Silva Lisboa desde 1808 o economista quase oficial da monarquia joanina Em 1824 com a eclosão da Confederação do Equador ele publicou o Apelo à honra brasileira contra a facção federalista de Pernambuco e no ano seguinte recebeu o título de barão de Cairu A ardorosa defesa do poder central não era obra de ocasião pois há muito fazia parte dos ideais do novo nobre Suas ideias reacionárias tinham apoio social relevante E seus livros eram lidos com grande respeito por aqueles que mais interessavam os grandes comerciantes do Rio de Janeiro as pessoas mais ricas do país e que acumulavam também as funções de traficantes de escravos arrecadadores de impostos e beneficiários dos recursos do governo razões mais que suficientes para apoiarem a centralização do poder todos eles em excelente posição para querer receber o seu junto ao rei Por motivos que a obra de Cairu permite entender consideravamse satisfeitos com a ausência de mudanças econômicas e políticas na Independência e por isso se colocavam ao lado do imperador contra os liberais e a facção federalista O que mais lhes importava era a continuidade do tráfico de escravos e do trabalho escravo Eram contra a indústria No texto Observação sobre a franqueza da indústria e estabelecimento de fábricas no Brasil Cairu não deixou dúvidas a respeito Reintegrandose a paz na monarquia os gêneros coloniais devem ter vastos mercados na Europa e com a franqueza ié liberdade do comércio e indústria provavelmente poderemos vencer aos competidores na venda de iguais produtos e consequentemente não convém com privilégios distrair os fundos de nossa agricultura e menos ainda com a mão do governo levantar fábricas1 Era uma proposta deliberada para manter intocada a estrutura da economia brasileira e se afastar do caminho da produção capitalista uma realidade apresentada como inelutável A nossa população principal é de escravos e a de brancos e gente livre é pequena e avança muito lentamente pela desgraçada lei do cativeiro e comércio da costa da África que dificulta o casamento com pessoas de extração europeia Convém pois ao Brasil pela necessidade das coisas o trabalho dos campos das artes comuns visto que a óbvia e farta colheita dos frutos rudes da terra e o simples fabrico e transporte de obras grosseiras ou ordinárias está mais na possibilidade e esfera da parte principal do povo Não devemos presumir de melhor entendermos nossos interesses para querermos a torto e a direito pretender rivalizar na indústria manufatureira com países que têm redundante população e séculos de exercício fabril2 Essa definição da produção brasileira resulta antes de um modo de ver do Antigo Regime do que aquela atualmente revelada pelos dados estatísticos Mas essa espécie de proposta não chegava a ser exótica na época marcada pelas ideias do famoso economista francês François Quesnay que assim definia a primeira máxima para a ação do governo em economia Os trabalhos da indústria não multiplicam as riquezas Os trabalhos da agricultura compensam os custos pagam a mão de obra do cultivo propiciam ganhos aos lavradores e além disso produzem as rendas dos bens de raiz Os que compram as obras da indústria pagam os custos da mão de obra e o ganho dos mercadores mas essas obras não produzem nenhuma renda a mais3 Se não gerava riqueza a indústria poderia até produzir pobreza sobretudo num caso assim descrito por Quesnay Uma nação que tenha grande território e faça baixar o preço dos gêneros produzidos em suas terras para favorecer a fabricação de obras manufaturadas destróise por todos os lados4 Karl Marx fez o seguinte retrato dos traços essenciais do pensamento fisiocrata como ficou posteriormente conhecida a escola do economista francês Para os fisiocratas o trabalho agrícola é o único trabalho produtivo porque é o único que cria mais valia eles não reconhecem outra forma de maisvalia além da renda da terra Segundo os fisiocratas a agricultura fornece matéria para toda a produção social O operário industrial não acrescenta matéria mas se limita a modificar sua forma acrescenta valor à matéria sem dúvida mas pelo custo da produção de seu trabalho não pelo trabalho acrescenta valor através da soma de meios consumidos durante seu trabalho igual ao subsídio que recebe da agricultura Para os fisiocratas também o lucro não é mais que uma espécie de salário de categoria superior pago pelos proprietários de terra e consumido como renda pelos capitalistas industriais5 Essa espécie de pensamento segundo Marx seria uma forma adaptada do pensamento do Antigo Regime para interpretar a aurora burguesa Nesta concepção o proprietário de terras aparece como verdadeiro capitalista como elemento que se apropria do trabalho excedente Deste modo o sistema feudal se apresenta reproduzido e explicado na descrição da produção burguesa e a agricultura aparece como único setor que realiza produção capitalista ou seja produz maisvalia O feudalismo se aburguesa e a burguesia ganha ares feudais Por isso o pensamento fisiocrata apareceu sobretudo na França país essencialmente agrícola6 Mesmo citando Adam Smith Cairu norteavase pelos valores fisiocratas Mais ainda empregavaos em sentido retrógrado Apostava no potencial da produção escravista porque via na agricultura a principal atividade natural da economia brasileira enquanto as fábricas seriam artificiais O ano de 1825 parecia para quem defendia tal projeto ser de vitória completa Parecia garantido que a desigualdade entre os homens era não apenas um dado da natureza mas também o princípio sobre o qual deveria se assentar a organização do bom governo e da sociedade A autoridade do imperador que garantiria a continuidade do mundo assim organizado se firmara no topo Por isso os defensores de seu poder acreditavam num futuro brilhante e na superação dos concorrentes na produção agrícola que haviam optado pela via iluminista Os maiores defensores internos da visão iluminista e da soberania popular estavam exilados presos ou tinham sido mortos por fuzilamento A possibilidade de produzir bens toscos e afastar a indústria parecia firme agora que o domínio do governo nacional se afirmara em todo o território Mas o poder arbitrário servia para outras coisas além de satisfazer os planos reacionários de traficantes D Pedro I sentiu que o momento era propício em outra frente e o aproveitou ao máximo Por dois anos as negociações em torno do reconhecimento diplomático da independência vinham se arrastando Ao indicar a Inglaterra como sua representante nas negociações Portugal encontrara um intermediário poderoso que não se furtou a avançar os próprios interesses instando para que o novo país adotasse os privilégios alfandegários e comerciais cedidos por Portugal além de proibir o tráfico de escravos Enquanto a situação não se esclarecia o próprio imperador havia sido mantido pelo pai como herdeiro do trono português Dessa forma D Pedro negociava com dois objetivos o poder no Brasil e o futuro poder em Portugal Quando juntou poder pessoal suficiente para resolver as coisas como queria D Pedro solicitou aos ingleses que mandassem ao Rio de Janeiro um emissário com poderes para assinar o tratado Charles Stuart demorou apenas o período de julho e agosto para distinguir a importância relativa dos vários interesses em jogo Definida a ordem o tratado foi assinado em 29 de agosto A solução poderia parecer estranha para um governo que se estabelecera por combates militares vitoriosos pelo acordo Portugal concedia a independência ao Brasil como um favor O Brasil por sua vez recompensava o favor com uma indenização de 2 milhões de libras esterlinas metade de suas exportações anuais ou cerca de 7 do PIB da época Satisfeitos os interesses de Portugal vinha a seguir o reconhecimento pela Inglaterra também retribuído com o atendimento a seus interesses Por 15 anos o novo país comprometiase a manter todas as vantagens que os ingleses haviam arrancado de Portugal impostos de 15 para os produtos ingleses na alfândega enquanto todos os demais países pagavam 24 um juizado especial para os crimes de ingleses no território brasileiro franquias religiosas privilegiadas para seus súditos Além disso o Brasil comprometiase a extinguir o tráfico de escravos no prazo de cinco anos O imperador também conseguiu satisfazer interesses pessoais A forma do tratado o mantinha como herdeiro da Coroa portuguesa e mais que isso colocavalhe à disposição meios financeiros empréstimos ingleses a serem pagos pelo novo país para agir em defesa desse direito presumido Tanto D Pedro como Stuart sabiam perfeitamente o que o pagamento dessa conta significava para os brasileiros Por isso cuidaram de fatiar o acordo em várias partes As mais palatáveis foram apresentadas em público outras foram tidas como sensíveis demais e registradas em acordos secretos assinados à parte Foi preciso algum tempo para que os brasileiros tivessem uma ideia dos custos do acordo Somando tudo o país ficou com uma dívida de 568 milhões de libras esterlinas Um século e meio mais tarde Carlos Pelaez e Wilson Suzigan chegaram ao seguinte cálculo do destino desse dinheiro Somente 600 mil libras foram enviadas para os cofres do Banco do Brasil O restante foi empregado em expedições militares e missões diplomáticas na Europa Sendo assim os objetivos econômicos para a obtenção de empréstimos não foram levados em consideração para a obtenção de recursos A situação monetária do país piorou consideravelmente graças à má administração dos empréstimos7 Em outras palavras algo como 3 milhões de libras esterlinas dois terços das exportações ou quase 10 do PIB brasileiro foi embolsado pelo monarca para seus projetos pessoais ou pagamentos aos ingleses No total um valor que equivalia a algo como 18 do PIB foi dado em pagamento para o exterior seja a Portugal ou ao bolso do monarca Era uma novidade amarga Com o tratado desapareceram de vez as possibilidades de que a independência nacional coincidisse com um período de progresso do país Nem capitalismo nem escravismo ganharam com o acordo Pelo contrário sobrou para todos o ônus a dívida de todos esses gastos improdutivos Mesmo desconhecendo os números por causa do caráter sigiloso do tratado até mesmo os mais radicais defensores do poder arbitrário logo notaram que não estavam do lado dos ganhadores bastava a cláusula que previa o fim do tráfico legal de escravos para indicar que até os interesses dos traficantes que sonhavam com a monarquia haviam sido desconsiderados D Pedro I por sua vez era o único que sabia com exatidão o tamanho do presente que dera a si mesmo aquilo que os analistas posteriores chamam de dinheiro empregado em expedições militares e missões diplomáticas na Europa Essas missões tiveram como objetivo central a montagem de um esquema forte o suficiente para garantir suas pretensões ao trono então ocupado por seu pai Claro que esses gastos bancados por brasileiros poderiam ser objeto de contestação Para evitar o constrangimento D Pedro I tratou de declarar guerra à Argentina em dezembro de 1825 O ato não apenas justificava gastos para contratar mercenários na Europa como apelava para a união dos brasileiros contra um inimigo externo Tudo isso aconteceu no intervalo de apenas dois anos durante o qual o imperador foi o único soberano o representante sem contraste de todos os poderes de governo da nação com exceção da autoridade dos caciques nas selvas e dos governos municipais nas vilas O poder pessoal definido na Constituição como irresponsável agira cabia agora aos súditos responsáveis encontrar um modo de saldar a conta Para essa parte menor do problema fazia sentido a participação do poder soberano dos representantes O Parlamento foi reaberto e fez sua parte CAPÍTULO 27 Poderes em confronto A PRIMEIRA LEGISLATURA REGULAR DO PARLAMENTO BRASILEIRO FOI ABERTA EM 1826 Meio século antes havia sido instaurado o primeiro Parlamento do continente o norte americano o qual continuava sendo o único a funcionar regularmente na América O território do Império espanhol se fragmentara em várias nações de vida política irregular com os parlamentos funcionando de maneira intermitente no Império português fora o Brasil os demais territórios permaneciam como colônias Nem mesmo na Europa havia regularidade Com exceção da Inglaterra onde os poderes monárquicos haviam sido severamente limitados pelo Parlamento no século XVII em quase todo o continente com a derrota de Napoleão Bonaparte em 1815 refluíra a onda revolucionária inspirada na França e os parlamentos remanescentes competiam pelo poder com os reis quase sempre em desvantagem a regra geral era uma restrição dos poderes do Legislativo semelhante à imposta pela Constituição brasileira Nos dois continentes os critérios de habilitação dos eleitores criavam limitações severas a um poder que pretendia representálos Na Europa havia exigências de renda similares às brasileiras e voto qualificado Nos Estados Unidos além delas havia critérios explícitos de raça que excluíam das eleições os negros livres De acordo com estimativas posteriores a proporção de eleitores variava entre 1 e 2 da população nos dois lados do Atlântico No Brasil devido à herança do voto municipal historiadores notam uma situação relativamente favorável à representação popular mesmo com as restrições de renda o total de votantes nas primeiras eleições para o Parlamento nacional era em termos proporcionais possivelmente maior do que na Europa ou nos Estados Unidos Além disso votavam analfabetos e negros livres com poucas restrições Mas as vantagens acabavam aí Do ponto de vista político os parlamentares eleitos tinham de enfrentar uma situação institucional muito desfavorável para o exercício do poder soberano da vontade geral Havia uma lei maior escrita e essa lei colocava os poderes Executivo e Judiciário em completa subordinação ao Poder Moderador eram três poderes coordenados contra um só Mais ainda as Ordenações do Reino mantidas praticamente inalteradas desde o século XV foram herdadas como legislação infraconstitucional em todos os pontos que não colidissem com a Constituição Esse Parlamento começou a funcionar num momento em que uma constatação ficava clara as esperanças na sobrevivência da escravidão que animavam os conservadores se toldavam com as notícias da Europa e dos Estados Unidos A produção capitalista dependente de trabalho assalariado e capital estava se mostrando pujante sobretudo na Inglaterra cujas instituições econômicas estavam se transformando no modelo a ser imitado por todos Ainda que convivendo com a escravidão o forte desenvolvimento do capitalismo nos Estados Unidos puxado pelos estados com menos escravos já era um sinal mais que evidente do rumo da mudança A combinação de indústria com trabalho assalariado trazia uma nova dinâmica para o todo A produção escravista embora produtiva e rentável e ainda capaz de expansão começava a ficar para trás Enfim começava a ficar claro que a escravidão não teria muito futuro exatamente o oposto do que imaginavam os autores que exprimiam os sentimentos da elite traficante na época da mudança da Corte como o bispo Coutinho ou o visconde de Cairu O tratado de reconhecimento da independência fizera somar à má escolha estratégica um elemento estrutural O imperador comprometera o futuro dessa nação que começava a andar na contramão do mundo com o pagamento de uma dívida imensa e improdutiva a que somavamse favores à Inglaterra Condenara seus únicos apoiadores externos a agir brevemente na ilegalidade Tudo isso agiu para arrastar forças políticas em direção à oposição Tudo isso aumentava o potencial do Parlamento mas também tornava ainda mais difícil a tarefa essencial dos parlamentares encontrar meios para levar adiante um país novo que estava em guerra com o principal vizinho e tinha uma economia à beira do caos monetário Mesmo assim os representantes da soberania popular tentaram cumprir sua função A dura experiência da Constituinte fechada fez com que as disputas simbólicas com o trono fossem reduzidas ao mínimo sem eliminar o estranhamento entre os poderes Só que o momento era outro Consciente do dano que causaria à nação o imperador buscava parceiros para convencer os prejudicados a aceitálo Para reunir os poderes que lhe permitiram assinar o acordo D Pedro I concentrara franquias e decidira sozinho agora que precisava dividir a conta por muitos esperava que o Legislativo o ajudasse na tarefa de explicar aos brasileiros que valia a pena tal sacrifício pela pátria Apesar do sigilo relativo à parte mais pesada do acordo já circulavam os rumores de que o tratado fora arranjado para satisfazer os interesses lusitanos do monarca à custa do sangue brasileiro Em 1826 poucas semanas antes da abertura da sessão legislativa ocorreu um evento que potencializou esses comentários a morte de D João VI Ele foi um dos raros monarcas de sua geração na Europa a deixar a vida com a coroa sobre a cabeça e esta ainda sobre o corpo místico de rei D Pedro assumiu o trono como herdeiro promulgou uma Constituição e renunciou em seguida ao trono português em favor da filha mais velha Maria da Glória Ainda assim o interesse dele nos negócios da antiga metrópole ficou claro ajudando a disseminar críticas Em seu discurso na solenidade de abertura do Parlamento brasileiro o imperador empenhouse em justificar suas ações Ressaltou que a renúncia ao trono português era uma grande prova de seu amor pelo Brasil e de que não tinha interesse em Portugal claro deixou de lado a coroa da filha E recorreu a um argumento de força para quem se atrevesse a pensar de outro modo lembrou aos parlamentares que tal como havia fechado uma Assembleia ainda tinha poderes para repetir o ato Para os parlamentares tornouse óbvio que o monarca agora dirigia a política de duas coroas Não passaram recibo da ameaça E muito menos se conformaram com o papel de auxiliares do trono na hora das dificuldades Começaram a buscar formas de exercer o papel de representantes da população descontente mas sem provocar choques diretos com o poder real Não demoraram para achar o caminho da economia O tratado de reconhecimento da independência implicara um imenso dispêndio de recursos do governo central A guerra com a Argentina aumentara ainda mais o volume desses gastos Porém como não houve aumento da riqueza nem dos impostos o governo pagava muito mais do que arrecadava acumulando déficit atrás de déficit O dinheiro dos empréstimos ingleses cobriu uma pequena parte do rombo mas era preciso muito mais para fechar a conta A saída tradicional da época para o governo obter recursos seria aumentar os impostos sobre as importações a sua principal fonte de receita O problema é que como o tratado com a Inglaterra fixara as alíquotas desse país num patamar muito baixo não havia campo para a manobra Por isso o governo começou a cunhar moedas com valor de face muito mais alto que o do metal com que eram feitas Recolhia as moedas antigas recunhava e ficava com a diferença em metal Deu certo por um tempo já que a medida funcionou como convite para falsificadores cunharem eles mesmos as moedas A combinação de moeda de menor valor com moeda falsificada mostrava fisicamente para cada um que tocava nas peças que o governo tornavao possuidor de menos ficando com mais Isso era uma má novidade nos tempos coloniais o governo central arrecadava muitos impostos empregava a violência mas levava apenas de quem supostamente produzira riquezas A recunhagem era imposto sobre todos a pobreza que gerava aparecia de forma gritante e o descontentamento que criava era geral Entre a necessidade imperial de continuar gastando e o sentimento popular de revolta a maioria dos deputados não hesitou Parlamentares começaram a pedir que o governo enviasse um ministro para explicar a situação econômica Tomando o pedido como intervenção em seara indevida o monarca recusouse a atender à convocação Os parlamentares começaram a alegar que precisavam das informações para elaborar o orçamento do ano seguinte uma de suas atribuições Um diplomata austríaco interpretou da seguinte maneira o comportamento do imperador Apesar de suas declarações e suas ideias democráticas pesalhe esta forma de governo parlamentar sente todos os inconvenientes que ela encerra e dos quais bem queria se libertar Seu fito pareceme ser deixar que as Câmaras se debatam sem atingirem resultados positivos até que o povo cansado de uma representação que custa muito caro o suplique para pôla de lado1 Por inconveniência ou propósito o fato é que essa queda de braço consumiu os quatro meses da primeira sessão parlamentar sem que nenhuma decisão fosse tomada Mas o Parlamento sobreviveu e em vez do cansaço da população os representantes foram encontrando aliados no propósito de dobrar a resistência do imperador A existência do Parlamento despertou a atenção de pessoas que antes tinham seus interesses ignorados e as levou a participar da discussão política Com isso surgiu o correlato interesse por informações sobre política e firmou se o negócio de divulgar essas informações com o surgimento dos jornais que eram vendidos aos interessados nos debates Os interesses da maior parte dos jornais eram os mesmos dos parlamentares ecoar o sentimento dos leitores e não reproduzir os argumentos do monarca como fazia a gazeta oficial Assim no intervalo entre uma e outra sessão legislativa os jornais substituíram os deputados na argumentação e foram atrás de informações Acabaram se fixando num tema que permitia criticar fortemente a política de governo sem criticar a pessoa sagrada do imperador pois assim estariam violando explicitamente a Constituição O Banco do Brasil se tornara a peça central para manter um governo que gastava muito e arrecadava pouco empregando um método ainda desconhecido na economia local O governo emitia títulos de dívida e estes eram adquiridos pelo banco com o dinheiro que os depositantes deixavam em seu caixa A posse do título conferia ao banco o poder de emitir notas de papel que tinham circulação oficial como dinheiro Na hora de fazer o balanço o banco contabilizava os títulos como ativos e os juros que eles pagavam como lucro O esquema criava dois fluxos de dinheiro Um carreava os recursos dos depositantes para os cofres do governo outro ia do banco para os seus acionistas Como o governo pagava apenas os juros o banco emitia sempre mais algo que interessava aos acionistas Para todos os demais brasileiros sobrava dinheiro de papel que cumpria a mesma função da moeda falsificada Uma edição de 1827 do jornal Astréa resumiu as relações políticas decorrentes da ligação entre um governo que emitia títulos de dívida um banco que os aceitava e emitia notas de papel que funcionavam como moeda e muita gente que pagava a conta de tudo isso A Nação é devedora ao banco de uma quantia pela qual paga juros de 6 e o banco continua a suprir o Tesouro com notas sem que isso lhe custe um só vintém em dinheiro Isto vem a ser que as notas do banco não representam valor em caixa mas apenas uma dívida do Tesouro para com os particulares que as recebem do banco Mas só os acionistas é que lucram porque só entre eles se divide o juro que a Nação paga sem que o verdadeiro credor do Tesouro isto é o portador da nota receba coisa alguma2 Entre os acionistas do banco estavam em sua parte mais significativa os grandes comerciantesfidalgostraficantes que desde o século XVIII eram os únicos moradores locais com interesses ligados à Coroa Mas exatamente por serem sócios sem poderes constitucionais podiam ser alvos de ataque da imprensa e dos parlamentares Na metade da sessão de 1827 um relatório da Câmara dos Deputados transformou o argumento do jornal em discurso político A administração do banco percebendo nos abusos do governo um escudo para seus próprios abusos e um fundo inesgotável de lucros com que adormecia a vigilância dos interessados marchou ombro a ombro com o governo que apelidava a este ilícito consenso com o nome de patriotismo Desta aberração da honra e da moral provieram os espantosos lucros obtidos à custa da substância nacional3 A campanha contra o banco no Parlamento logo faria deste a voz da substância nacional contra os abusos do governo expressos na administração do banco Em vez de ajudar a pagar a conta o Legislativo tornouse o organizador de uma torrente oposicionista Muita gente começou a ver no Parlamento um instrumento de defesa e na Coroa um poder que custava muito caro e só produzia infelicidades A guerra com a Argentina terminou em 1828 sem vencedores nenhum dos contendores dominou o Uruguai que se tornou independente com ajuda da Inglaterra O exército montado para o conflito com muitos mercenários estrangeiros voltou para o Rio de Janeiro e ali ficou estacionado como apêndice de força do imperador Ainda assim os parlamentares continuaram avançando Em 1829 aprovaram um projeto que fechava o banco A lei prejudicou depositantes e buscadores de crédito privado e não impediu a continuidade da derrama pois o próprio governo passaria a emitir notas Mas cortou a mesada dos acionistas que se beneficiavam do esquema e eram os grandes aliados políticos do imperador Nessa altura ficou claro que dois projetos haviam fracassado Os reacionários que esperavam um futuro brilhante da produção escravista sob as ordens de um monarca fiel aos princípios do Antigo Regime perderam o último fio de esperança de que aumentariam a própria riqueza Os iluministas que escaparam do exílio ou da cadeia também sabiam da conta que vinha pela frente O imperador cada vez se importava mais com o Portugal onde gastava dinheiro do que com o Brasil de onde não havia como arrancar mais recursos Mesmo com todas as limitações constitucionais o Parlamento consolidouse como um poder político relevante para equacionar a crise E o imperador não conseguiu encontrar meios para contraatacar Continuou mantendo um tom sobranceiro no tratamento dos representantes insistindo na fórmula de que o Poder Executivo era apenas uma extensão do Poder Moderador e nomeando ministros com o critério da fidelidade pessoal Assim foram se fechando os caminhos que um dia o ligaram aos brasileiros comuns fossem ricos ou índios Toda a impopularidade gerada pela situação econômica acabou por se concentrar em sua pessoa Nem mesmo os traficantes o apoiaram depois do fechamento do banco pois lembravam que o tratado com os ingleses continha uma cláusula que tornava ilegal o tráfico de escravos a partir do final de 1831 Os últimos aliados que sobravam gente da Corte foram realistas propuseram ao imperador que nomeasse parlamentares para o ministério Assim eles seriam ao mesmo tempo representantes da população e responsáveis pelo pagamento das contas e pelo respeito ao governo Contra o conselho pesava a curta tentativa de 1828 quando um ministério com parlamentares fora despachado após poucos dias no poder Em fevereiro de 1831 quando eclodiram sublevações populares em várias cidades o imperador tentou repetir o procedimento de nove anos antes viajou para Minas buscando o apoio direto da população Dessa vez foi recebido com frieza Na volta para o Rio o sentimento já era de hostilidade Orgulhoso o detentor da chave do sistema político o governante irresponsável o chefe do Poder Executivo o nomeador de juízes não encontrava apoio para governar Uma última tentativa de associar a soberania popular e a cabeça mística foi feita em abril e respondida com a nomeação do chamado ministério dos marqueses todo formado por cortesãos A resposta dessa vez veio das ruas uma multidão reunida na praça aprovou uma proclamação pedindo a nomeação de novo ministério De uma coisa o imperador não cogitava governar segundo a vontade de gente das ruas Na madrugada de 7 de abril renunciou ao trono e buscou refúgio num navio inglês Deixou como herdeiro o filho de 5 anos Sabia que haveria a nomeação de uma regência e que os regentes não poderiam exercer o Poder Moderador pessoal e privativo de um monarca com plenos poderes Tinha noção exata de que apenas o jovem Parlamento concentraria todos os poderes no governo central Numa carta escrita a bordo e destinada ao menino que ficava em terra deixou bem claro o que pensava Espero que a Regência tenha força moral para lhe entregar o cetro e a coroa tão inteiros como estavam no dia que abdiquei Mas onde está o prestígio da Regência Onde está a opinião pública interessada em manter o governo Eu não os vejo4 Os moradores locais a parte cujos interesses eram invisíveis para o alto a parte que ficava fora da carapaça do caranguejo a gente que o centro pensava como incapaz de governar enfim seria todo o poder CAPÍTULO 28 Regências e lideranças ENQUANTO D PEDRO I REDIGIA O BILHETE DE DESPEDIDA OS PARLAMENTARES QUE estavam no Rio de Janeiro para a sessão que começaria em maio faziam uma reunião Até a véspera representavam uma instituição que cinco anos antes fora incrustada na estrutura de governo central arbitrário que se constitucionalizou sob a forma do Poder Moderador Mas no dia seguinte conversavam já como comandantes da nação pela primeira vez os representantes eleitos pelo povo chefiariam o governo e o grupo decidia coletivamente e por consenso o que era comum nas câmaras mas inusitado em instâncias mais altas de governo A própria ideia de uma reunião de iguais como método para assumir a direção do governo era algo inconcebível para quem considerava sagrado e necessário o poder arbitrário de um rei Enquanto corria a reunião uma chusma de nobres e criados do Paço rondava o cais os mais insistentes subiam a bordo da fragata inglesa oferecendose para prestar serviços ou expondo desconsolos ao soberano renunciante partilhando com ele o sentimento de que a terra se perderia sem um rei que a governasse Na cidade a reunião resultou em típica decisão parlamentar Para dar sentido nacional ao governo escolheuse o formato de um triunvirato que abarcasse as várias opiniões O senador Francisco de Lima e Silva era militar conhecido ressaltando o interesse na manutenção da ordem O marquês de Caravelas também senador era um conservador e defensor do imperador renunciante Já o terceiro senador escolhido Nicolau de Campos Vergueiro era conhecido por suas posições liberais O desafio dessa Regência Trina era exercer efetivamente a sua autoridade o que na situação equivalia a reorganizar totalmente o governo nacional em outras bases E nesse esforço numa realidade econômica desesperadora foi se consolidando na prática a estrutura de soberania dúplice sugerida por José Bonifácio mesmo a preço alto a monarquia tinha valor A primeira decisão dos regentes foi promover um ato político simbólico empregando exatamente a espécie de linguagem que a Coroa permitia um desfile pela cidade de uma carruagem levando o menino de 5 anos que herdava o trono para que fosse aclamado pela população como imperador Com essa maneira econômica de tomar para si o prestígio secular da Coroa enquanto os órfãos do imperador estavam ainda desarticulados os regentes apareceram efetivamente como governo Tal ganho simbólico era fundamental pois o grande problema da autoridade assim obtida estava nas parcelas de governo que desapareceram com a partida da fragata o Poder Moderador com toda sua concentração deixava de vigorar enquanto o herdeiro do trono fosse menor de idade Completouse assim a inversão de papéis Os parlamentares assumiram o comando do Executivo até então exclusivo do Poder Moderador Aqueles que viviam basicamente do direito adquirido que recebiam o seu por decisão do imperador entrincheiraramse na Corte embora suspenso o Poder Moderador a Corte continuava a existir bem como toda a estrutura que lhe dava substância Os regentes souberam como exercer o comando do Executivo colocando em prática uma forma de aplicar os recursos que era comum nas câmaras municipais mas inédita no governo central por meio de uma lei do Orçamento que regulamentava os gastos públicos O resultado foi a delimitação de uma zona de conflito entre as duas lógicas que marcavam as soberanias reconhecidas na Constituição Para aqueles que pensavam e agiam segundo a lógica do Antigo Regime o governo arrecadava um máximo de todos e distribuía esse dinheiro fazendo justiça para quem tinha direitos adquiridos Já os novos dirigentes pensavam e agiam segundo a lógica iluminista de que a soberania popular restringia o governo de modo que este arrecadava de todos e distribuía para todos apenas o arrecadado e seguindo uma lei votada pelos representantes eleitos essa era a função do Orçamento Com o controle do Executivo os parlamentares agora tinham poderes para fazer cumprir o determinado na lei de gastos e antes mesmo da aprovação de um orçamento o ministério indicado pelos regentes passou a cortar gastos a fim de equilibrar as finanças Esses cortes atingiram sobretudo os beneficiários de dinheiro público ligados ao imperador A reação dos prejudicados à dura mudança de posição foi proporcional ao prestígio que imaginavam ter A mais aguda veio diretamente das forças armadas O imperador contratara mercenários para montar uma marinha e um exército primeiro para se contrapor às tropas portuguesas depois para lutar na Argentina Com o dinheiro que pelo tratado reservara para si mesmo ainda organizou um exército na Europa A luta com Portugal havia terminado assim como o conflito com a Argentina mas os contratos dos mercenários continuavam vigentes Quando vieram as notícias dos cortes nas tropas eclodiram os motins no Rio de Janeiro A reação do Parlamento não se fez esperar Assim que começaram as sessões regulares a Regência provisória foi transformada em permanente com um triunvirato formado pelo paulista José da Costa Carvalho o maranhense João Bráulio Moniz e o general Francisco de Lima e Silva Em seu primeiro ato o trio de regentes instalou um ministério no qual a pasta da Justiça encarregada de manter a ordem interna foi entregue a um homem que jamais poderia ser suspeito de amor pelos ideais de nobreza Diogo Antônio Feijó ganhou uma marca indelével já em seus primeiros dias de vida foi deixado na Roda dos Expostos traquitana instalada no muro da Santa Casa de São Paulo na qual mães abandonavam filhos ilegítimos Numa sociedade que valorizava sobretudo a condição de nascimento isso equivalia a relegar o bebê ao ponto mais baixo da escala social Feijó cresceu nessa condição ora recolhido por uma alma caridosa ora acompanhando alguém que não se importava com sua presença Acabou seguindo um padre que cuidava do aldeamento indígena de Queluz com quem aprendeu a ler e escrever além dos rudimentos do ofício sacerdotal Tornouse padre secular Fez as provas em 1798 foi aprovado mas não tinha a idade mínima requerida Mudou então para a recémfundada cidade de Campinas onde aparece nos registros como pessoa que vive de esmolas além de ter ganhos irregulares como professor1 A situação perdurou até 1805 Para ser afinal nomeado padre teve de jurar por escrito que não era nem haveria de ser imitador da incontinência de meus pais A boa situação não durou muito uma acusação falsa de incentivo ao adultério no confessionário abalou sua carreira Embora inocentado ficou com o nome maculado Enquanto se aperfeiçoava nos estudos sacros começou a se interessar também pelas ideias revolucionárias dos liberais Em 1821 a vida de Feijó sofreu uma mudança radical Sem jamais ter participação administrativa a condição de abandonado lhe vedava o acesso a cargos de governo mais importantes reservados a fidalgos àqueles que podiam comprovar bom nascimento nem contar com fortuna acabou escolhido como um dos seis deputados enviados por São Paulo às Cortes de Lisboa Ao desembarcar em Portugal em fevereiro de 1822 a Constituição estava pronta e sendo votada Estreou como orador parlamentar fazendo um duro ataque a seu conteúdo A reação foi tão violenta que precisou fugir pra a Inglaterra Voltou à cena política em 1826 dessa vez como deputado no recém inaugurado Parlamento brasileiro Seu primeiro projeto foi polêmico propôs o fim do celibato dos padres com o argumento de que era assunto administrativo e portanto da esfera de competência do regalismo e não um assunto de fé pertinente à esfera de decisão de Roma Teve apoio de deputados como o padre José de Alencar pai de oito filhos entre eles o futuro escritor José de Alencar e Antônio Pereira Rebouças o primeiro negro eleito para o Parlamento meio século antes de fenômeno semelhante acontecer nos Estados Unidos Com tal currículo não é de se estranhar que Feijó fosse identificado com o modo iluminista de conceber o governo e pouco propenso a valorizar tradições ou direitos adquiridos Feijó tomou posse e reagiu aos motins Confirmou que não gastaria um centavo além do que havia sido autorizado pelo Parlamento e a essa altura os parlamentares aprovavam o primeiro Orçamento brasileiro Antes esparsos os motins se transformaram em revoltas permanentes Feijó enfrentou uma revolta atrás da outra sempre com destemor De um lado demitiu incontáveis militares profissionais De outro nacionalizou as forças de segurança nas vilas criando a Guarda Nacional sob comando de cidadãos Em meio a uma série de combates o major do Exército Luís Alves de Lima e Silva filho do marechal regente destacouse como um comandante mais competente que os da hierarquia militar alcançando vitória atrás de vitória para o governo Foram meses duros No pior momento o Parlamento viuse cercado durante seis dias pelos amotinados que exigiam a continuidade de privilégios Em sessão permanente os deputados resistiram negociando ganhando tempo dissolvendo posições irredutíveis buscando apoio armado convencendo a população Juntando forças venceram os amotinados Assim o Parlamento conseguiu manter o poder da Regência e do ministério Até o final de 1832 a nova ordem se impôs Foram dispensados 30 mil soldados e com isso os gastos do governo tiveram uma redução monumental de 36 em relação a 1830 caindo de 198 mil contos para 128 mil contos de réis A amplitude do corte fez mais que resolver o problema da autoridade Ainda restava parte da herança econômica deixada por D Pedro I o tratado que este assinara em segredo e restringia as possibilidades de atuação governamental no campo da economia como um todo O acordo impôs duas condicionantes De um lado a previsão do fim do tráfico legal de escravos implicava perda de receitas os impostos cobrados dos traficantes formavam parte significativa da receita do governo A partir do final de 1831 essa fonte deixou de existir agravando o problema do equilíbrio orçamentário Pior ainda funcionou como incentivo para o tráfico ilegal na medida em que tornava este mais lucrativo pois não pagava impostos De outro lado os favores concedidos à Inglaterra tinham a forma de uma taxa baixa e fixa para as importações vindas desse país Numa época em que a taxação sobre o comércio exterior era a principal fonte de renda de todas as nações o favorecimento a uma delas significava também restringir o crescimento de receitas do governo A única medida compensatória seria aumentar os impostos sobre importações de outros países o que apenas tornaria mais competitivas as mercadorias inglesas A opção foi manter tarifas baixas para todos Com isso as receitas alfandegárias caíram 25 entre 1830 e 1832 Nesse cenário o violento corte de despesas acabou sendo a fórmula para equilibrar a situação do governo central como um todo Graças a ele as emissões que financiavam o déficit foram praticamente eliminadas caindo nada menos de 85 no período A conta recaiu quase toda sobre os antigos beneficiários do imperador E prosseguiu o avanço dos parlamentares para ampliar o espaço das instituições iluministas Uma lei obrigou a que todos os tratados nacionais fossem ratificados pelo Parlamento impedindo surpresas como a de tratados secretos Foi criado um mecanismo pelo qual o Executivo passou a prestar contas ao Parlamento com os ministros sendo convocados a comparecer perante os deputados A execução rigorosa do Orçamento reforçou a disciplina financeira e permitiu o início do recolhimento das moedas de cobre com alta taxa de senhoriagem um primeiro passo na direção do controle financeiro do governo central Os derrotados concentrados ao redor da Corte a parte do Poder Moderador que se mostrou imune ao Parlamento pois nela a maioria dos cargos dependia de nomeação por parte do imperador reagiram como puderam concentrando o ódio em Feijó Tinham prestígio e dinheiro para financiar jornais nos quais o ministro era tratado como alcoviteiro sedutor de donzelas ou homem que veio ao mundo num chiqueiro de porcos A campanha de desmoralização marcou o início de um movimento Ao recorrer à imprensa e buscar resultados no Parlamento os privilegiados de antes reconheciam que o Legislativo agora estava no centro de todas as decisões E foram bemsucedidos na campanha Recuperada a ordem pública e controladas as contas formouse uma maioria parlamentar contrária ao ministro da Justiça que se viu forçado a deixar o cargo De volta ao Parlamento Feijó assumiu a liderança de um grupo de congressistas que pregavam reformas na Constituição de 1824 A mudança da configuração de forças no Parlamento acabou se refletindo no Ato Adicional aprovado em 1834 Por ele as províncias ganhavam o direito de eleger uma assembleia de representantes criando na esfera intermediária de governo uma representação da população No mesmo sentido transferiramse às províncias uma série de poderes antes reservados pela Constituição ao centro como a indicação de juízes locais ou a entrega do poder de polícia a magistrados eleitos A defesa dos antigos privilégios concentrouse então na pressão sobre o Senado vitalício quase todos indicados pelo imperador renunciante e conseguiu impedir algumas mudanças Assim se criou um novo jogo político no qual o Parlamento foi ganhando substância como centro coletivo de representação de posições diversas centro de decisões criador de soluções viáveis respeitador do interesse nacional Se a letra da Constituição continha uma regra de organização que favorecia o poder arbitrário o Poder Moderador em detrimento do Parlamento com a Regência o país contava com um governo fundado na soberania popular configurada nesse poder Legislativo agora prestigioso Já os brasileiros comuns sabiam muito bem como funcionavam os governos representativos e apoiavam a ampliação do espaço da soberania popular A Regência mostrou que controlando o Executivo era possível avançar na direção de um governo voltado para o atendimento de interesses gerais O Legislativo encontrou o caminho das reformas constitucionais que ao menos aparavam os piores excessos da lei maior A luta dos que defendiam o arbítrio era bem mais fácil tentar impedir as mudanças alongar os prazos de sua implementação tergiversar Além disso a certeza de que mais adiante haveria um imperador capaz de empregar o Poder Moderador para limitar o espaço iluminista ajudava a embalar suas expectativas O resultado dos confrontos ia delineando as fronteiras entre as soberanias opostas Em vez de um sistema substituir o seu oposto havia acomodações sucessivas de espaços controlados por um ou por outro Como a iniciativa agora estava com o Parlamento outro passo foi dado Entre os vários dispositivos modificados um previa uma eleição nacional para a escolha de um regente Pela primeira vez na história do Brasil o comando do Executivo ficaria a cargo de uma pessoa escolhida pelos cidadãos E a eleição ocorreu em 1835 Não havia campanha organizada tampouco um homem entretinha dúvidas quanto à conveniência de ser eleito Pouco antes da eleição Diogo Antônio Feijó lançou um jornal O Justiceiro cujo primeiro editorial de 7 de novembro de 1834 fazia uma avaliação do passado Até maio de 1826 o Brasil foi governado por capitãesgenerais nas províncias e pelos capitãesmores nas vilas e seus termos Por abusos há séculos tolerados prendiam arbitrariamente a quem queriam e chamavam a isso prender de potência Muitas vezes deportavam para fora das províncias Se tais arbitrariedades e despotismos fossem praticadas contra as classes pobres nenhum outro recurso restava que o sofrimento2 As mudanças trazidas com a Regência eram assim avaliadas Não sofremos mais as injustiças e violações do despotismo Respiramos desafogados depois da abdicação Porém temos uma legislação má incompleta ineficaz insuficiente o governo fraco sem atribuições sem meios para fazer efetivas aquelas que têm autoridades de eleição popular quase sem ingerência no governo todas destacadas sem centro nem unidade os cidadãos sem estímulo para interessaremse no serviço da pátria o povo sem educação a magistratura como apostada a fazer ainda piores as leis que lhe dão3 Feijó tinha clareza o Parlamento conseguira se firmar no poder conseguira controlar o Executivo e mudar a Constituição Mas quase toda a legislação vigente no país ainda estava baseada nas Ordenações do Reino compiladas para regular as relações entre os súditos e um governante arbitrário E tais relações norteavam as sentenças num Poder Judiciário que além de organizado nos moldes do Antigo Regime era subordinado ao Poder Moderador Feijó tinha um alvo de mudanças As pretensões do Poder Judiciário por independência são traduzidas por eles os juízes dos tribunais superiores em absolutismo e irresponsabilidade Enquanto este poder não se tornar constitucional isto é independente nos seus atos mas responsável juridicamente por eles o arbítrio e o despotismo que pesam sobre os brasileiros devese ao poder judicial4 A ideia de mudar o Judiciário visando a sua integração à esfera do poder responsável aquele que vinha basicamente do eleitor e assim fazêlo agir como um poder que deveria respeitar essa condição era parte de uma definição maior enunciada por ele na sessão de 16 de julho de 1829 A Constituição sem responsabilidade é uma quimera porque o governo faz o que quer à sombra dela enquanto os governados se iludem com belas palavras e promessas5 No dia 7 de abril de 1835 os brasileiros escolheram como governante um padre que defendia abertamente o fim do celibato um bebê abandonado no nascimento um homem que não queria privilégios nem foros especiais de fidalguia um político que pretendia estender a esfera da responsabilidade para exercer as funções de comandante do Executivo como substituto do rei Um novo patamar de acomodação entre soberanias opostas seria tentado CAPÍTULO 29 Executivo eleito A INDICAÇÃO DE UM CHEFE DO EXECUTIVO A PARTIR DA SOBERANIA POPULAR ERA uma aposta promissora haveria até uma década para o eleito mostrar a que viera enquanto o imperador não chegava à maioridade Tempo suficiente tanto para a implantação de novas ideias como para a avaliação de um método de escolha que não constava da Constituição Diogo Antônio Feijó tinha consciência disso Mas também sabia que o escalão de governo sob o seu comando tinha como única proposta econômica aos brasileiros a continuidade da dura digestão do prejuízo legado por D Pedro I O esforço de Feijó no Ministério da Justiça havia evitado a derrocada mas a estabilidade adquirida não configurava de nenhuma perspectiva uma situação favorável aos brasileiros Apenas o pagamento de juros da dívida contraída no tratado de reconhecimento da Independência consumia 300 mil libras anuais 7 das exportações ou por volta de 1 do PIB estimado no período O pagamento dessa conta exigia arrecadação de dinheiro pelo governo e transferência de divisas aos credores E essas divisas não vinham de resultados econômicos da aplicação dos recursos externos na economia interna mas tinha de ser arrancada do suor da produção de cada ano Todos perdiam para compensar o que o imperador renunciante ganhara para si mesmo E perdiam numa situação desfavorável A crise provocada pelos gastos excessivos nos últimos anos do reinado de D Pedro I devastara as ralas poupanças locais consumira as reservas internacionais e a moeda metálica transformara o dinheiro de papel no único meio de circulação existente o que era uma raridade na economia mundial Em meio a tudo isso o governo cobrava impostos saldava as dívidas e em consequência gastava com a população menos do que arrecadava A população até que compreendia o esforço Todos viviam apertados pois os mercados caíam Mas a paciência tinha limites O empobrecimento também reforçava a antiga percepção geral que vinha desde os tempos coloniais a de um governo central que arrecadava muito e quase nada proporcionava de volta em serviços Não era o que se esperava do governo eleito pela nação E aos poucos disseminavase a impressão de que não mais se tratava da metrópole a dissipar e sim da Corte no Rio de Janeiro que agora viveria na fartura à custa da miséria das províncias Tal interpretação pesou muito na argumentação que levou à eclosão de revoltas armadas nas províncias logo em seguida à estabilidade da vida no Rio de Janeiro Em todas ergueuse a bandeira da maior autonomia local marcando a divisão entre os defensores do poder central e os do poder provincial Porém basta o exame dos resultados dos movimentos de maior amplitude para que se note um problema maior A Cabanagem do Pará começou em janeiro de 1835 pouco antes da posse de Feijó como regente único Eclodiu numa província afligida por problemas próprios decorrentes da Independência Ao contrário do restante do país em formação o tráfico e o cativeiro dos africanos eram pouco relevantes na economia paraense por isso nem sempre os potentados locais eram aqueles comerciantes que vendiam escravos e compravam a produção local No Pará quase tudo era produzido por índios Em segundo lugar a produção mais importante antes da Independência era enviada diretamente a Lisboa e vendida no mercado europeu e isso não só por causa das facilidades de comércio Além dos econômicos havia vínculos políticos peculiares a região estava ligada administrativamente a Lisboa e não ao Rio de Janeiro o que se devia em grande medida ao regime de ventos no Atlântico pelo qual a navegação a vela durava 20 dias até a metrópole e 90 dias até o Rio de Janeiro Antes da Independência portanto os governos da província eram dominados por comerciantes ligados à metrópole Embora cara era sustentável tal vinculação da economia local à economia europeia por intermédio do governo e do comércio metropolitanos Com a Independência desapareceram tanto os governadores enviados por Lisboa como os navios que escoavam a produção local e traziam de Lisboa os produtos europeus Essa perda de conexão com o comércio internacional não foi compensada por outras formas de negócios propiciadas pelo governo nacional Os representantes políticos do Rio de Janeiro limitavamse a cumprir as funções de arrecadar impostos e manter a ordem tal como os piores governantes coloniais sem nada fazer em prol da economia local Nessas circunstâncias começou a decadência econômica e eclodiram violentas disputas pelo poder político nas quais sobressaiu o maior líder cabano Eduardo Nogueira Nascido no Ceará em 1814 desde jovem ele mostrou talento para os negócios Tornouse comerciante a profissão dos ricos mas logo desistiu para cultivar roças em terras arrendadas bem na época em que a Independência inviabilizara o comércio com Lisboa Sem comerciantes que pudessem adquirir a produção e colocála no mercado as dissensões descambaram em conflitos abertos entre os defensores do governo central e aqueles de um federalismo maior Em meio à luta Eduardo Nogueira conhecido como Angelim devido às qualidades de dureza e resistência dessa madeira deixa a condição de lavrador e assume a liderança de uma revolta popular À frente de uma tropa de caboclos e índios toma a cidade de Belém em agosto de 1835 Tem apenas 21 anos ao se tornar o chefe de uma revolução que vai se estender a toda a Amazônia Quando tropas e emissários do governo central retomam Belém em abril de 1836 Angelim continua a lutar no interior Preso em outubro e enviado ao Rio de Janeiro ele acaba exilado em Fernando de Noronha enquanto a luta continua por outros cinco anos Ao final dos combates cerca de 30 mil cabanos numa população total de 150 mil pessoas na província haviam sido massacrados A economia foi tão devastada quanto a população mas os impostos para o governo central passam a ser arrecadados com regularidade sobre uma produção local agora reduzida a quase nada Tais eram os azares da era mercantilista do capitalismo comercial que ainda não desaparecera em muitos pontos da América a acumulação de capital dependia mais do capital comercial que organizava trocas do que do capital obtido com a produção a partir do trabalho assalariado a produção capitalista A retirada do primeiro não significava obrigatoriamente o domínio do segundo e o fantasma do Haiti com liberdade mas também com miséria econômica era o símbolo continental do que ocorreu na Amazônia Neste caso a economia andou para trás num momento em que fora do Brasil o capitalismo impunha um novo ritmo de crescimento à economia mundial Em abril de 1835 mal Feijó acabara de ser eleito a mesma pressão do governo central por mais impostos acirrava no Rio Grande do Sul o dilema entre manter ou não os vínculos com o Rio de Janeiro Mas ali as condições de produção eram muito diferentes das do Pará A Independência em nada afetara o funcionamento dos mercados a província continuava a vender sobretudo o charque processado por escravos sendo portanto uma economia dependente da mão de obra cativa e dos traficantes que a forneciam Os maiores consumidores da produção gaúcha estavam na Bahia Pernambuco e Rio de Janeiro ou seja faziam parte do mercado interno Ainda assim os custos da Independência apareceram de maneira inusitada A ínfima margem de manobra permitida pelo tratado de 1825 obrigou o governo brasileiro a reduzir as tarifas alfandegárias a ponto de tornar competitiva a importação de charque do Uruguai e da Argentina Essa concorrência externa restringiu muito os ganhos dos produtores gaúchos além de refrear a disposição deles para pagar impostos nacionais Os dez anos de duração da Revolução Farroupilha proporcionaram o melhor dos mundos aos participantes do conflito os produtores de charque deixaram de pagar impostos para o Rio de Janeiro os vendedores de escravos forneceram africanos traficados ilegalmente ou seja sem pagar impostos e transportaram o charque adquirido também ilegalmente sem pagar impostos Com isso a revolta sequer arranhou as profundas ligações escravistas e mercantis que sustentavam a acumulação de capital tanto no Rio Grande do Sul como no Rio de Janeiro Na maior parte do período os gaúchos foram capazes de organizar e financiar um governo independente proclamar uma república e manter uma autoridade que não mais respondia ao Rio de Janeiro E os números da produção foram positivos apesar de pequenas oscilações iniciais Já a partir de 1839 as vendas de charque atingiram o patamar de 6 mil toneladas em 1843 em pleno litígio alcançaram 163 mil toneladas resultado que com uma única exceção seria repetido apenas na década de 1850 Apesar das diferenças as grandezas e os contratempos da luta revolucionária não propiciaram aos governos locais das províncias oportunidades econômicas de um avanço capitalista como se dava no resto do mundo Enquanto os paraenses viram cair a produção e crescer a tributação os farroupilhas conseguiram produzir mais e pagar menos nem conservadores paraenses nem cabanos puderam aproveitar o poder para articular outro sistema produtivo ao passo que os farroupilhas nunca se propuseram alterar a estrutura produtiva escravista em seus anos de domínio Em seguida revoltas similares eclodiram em outras províncias opondo os que queriam melhores condições locais aos defensores da subordinação ao centro Todos esses conflitos resultaram em fracasso econômico pois cada caso refletia a parcela de perda local do grande desastre nacional E para o governo central cada novo movimento piorava a situação agravando as despesas nacionais com tropas e diminuindo as receitas Houve uma exceção com o fluxo dos tributos desempenhando um papel inverso o Rio de Janeiro Ali o fluxo monetário gerado pelos impostos era positivo com os gastos locais superando as receitas tributárias pois na capital se concentravam as forças armadas e os funcionários nacionais Com isso a região acabou sofrendo menos que o restante do país Melhor ainda esse fluxo de dinheiro se associava a outro Desde os tempos de D João VI os grandes traficantes aplicavam parte de seus lucros em fazendas de café Era um investimento de longo prazo anos derrubando a mata para abrir áreas de plantio outros tantos para as plantas crescerem além da instalação da estrutura de processamento Todo esse investimento começou a retornar com o crescimento das vendas no exterior a preços compensadores o que colocou o café fluminense no topo da pauta de exportações do país substituindo o açúcar cuja proeminência vinha desde o século XVI Diogo Antônio Feijó era federalista defensor intransigente da descentralização de poder da transferência de franquias para as províncias as vilas e a sociedade Tomou ele mesmo várias medidas nessa direção como a transferência das responsabilidades de segurança interna para a população com a criação da Guarda Nacional realizada mais por necessidade do que propriamente como resultado de um plano Mesmo assim sua ação como regente eleito resultou no oposto do que de fato queria pois a centralização revelouse o único modo de fazer avançar o país em condições que tolhiam quase todo o dinamismo da vida local Por outro lado as perdas decorrentes da gestão predadora do primeiro imperador iam relegando a uma posição secundária os planos dos traficantes de escravos no sentido de se manterem no centro da vida nacional A reorganização do projeto ganhou expressão política com a formação de um agrupamento formado por ocasião da posse de Feijó o autointitulado Regresso Seus líderes eram parlamentares que haviam se oposto ao arbítrio do primeiro imperador apoiado a Regência mas continuavam convencidos de que a escravidão era uma instituição capaz de trazer o progresso e construir um futuro Elemento essencial dessa organização era um novo modo de conceber a questão do tráfico durante quase toda a Regência a combinação de ilegalidade e falta de demanda fez com que as compras na África e as vendas no Brasil se reduzissem a cerca de 5 mil cativos anuais Com isso muitos traficantes tradicionais deixaram o mercado alguns deles voltando a Portugal Alguns negociantes fluminenses viram que as oportunidades de compra na África portuguesa ainda existiam assim como compradores interessados Também notaram que a lucratividade seria muito mais alta no esquema de contrabando no qual não havia mais o imposto antes cobrado pelo governo Em vez de fazerem os desembarques de escravos no porto do Rio de Janeiro passaram a descarregálos em pontos pouco acessíveis no litoral fluminense de onde seguiam diretamente para as fazendas de café no vale do Paraíba Além disso esses negociantes entraram na política elegendose nesses locais a fim de defender os seus interesses A continuidade do tráfico de escravos era o mote às vezes explícito do movimento e seria apresentada com orgulho como a solda econômica da nação Não se tratava apenas de propaganda Por esse novo esquema já em 1837 foram trazidos da África 35 mil escravos sete vezes mais do que dois anos antes A tradução política desse crescimento do negócio foi um programa de defesa ostensiva da centralização do governo e do fluxo de recursos que vinculava os privilegiados do comércio de cada província ao centro fiscal da Corte e centro comercial do tráfico Também recobraram força as estruturas de fiado entre os comerciantes de todo o país sustentados pelo fornecimento de escravos Como a proliferação de negócios reforçou o apoio à ideia poucos meses de atuação bastaram para que os regressistas conquistassem a maioria no Parlamento e inviabilizassem as possibilidades de Feijó Sendo além de federalista homem do Parlamento e da busca de maiorias este viuse obrigado a renunciar em 1837 ao constatar que não tinha perspectivas de retomar a maioria Mas deixou herança Sob pressão do regente o Parlamento aprovara duas leis que substituíam partes das Ordenações do Reino o Código Criminal e o Código de Processo ampliavam os poderes dos juízes locais eleitos criavam o tribunal do júri instituíam o instituto do habeas corpus e proibiram as prisões de potência que tanto horrorizavam Feijó Ambos se baseavam nos princípios jurídicos iluministas da presunção de inocência do fim das prisões arbitrárias e numa legislação que previa penas iguais para ricos e pobres além de não supor uma nobreza à parte Mesmo fora do poder Feijó logo recuperou o prestígio político No comando do governo central os regressistas não tinham muito o que oferecer aos brasileiros além de tentarem anular as poucas mudanças legais introduzidas nas Regências Uma frase atribuída ao maior de todos os regressistas o deputado mineiro Bernardo Pereira de Vasconcelos resume o espírito do grupo Fui liberal Então a liberdade era nova no país estava nas aspirações de todos mas não nas leis nas ideias práticas O poder era tudo fui liberal Hoje porém é diverso o espectro da sociedade os princípios democráticos tudo ganharam e muito comprometeram A sociedade que então corria o risco pelo poder agora corre o risco pela desorganização e pela anarquia Como então quis servir à sociedade hoje também quero Por isso sou regressista Não sou trânsfuga não abandonei a causa que defendi Deixoa no dia que é tão seguro seu triunfo que até o excesso a compromete1 A confusão declarada entre ordem poder central e governo discricionário e a confusão inversa entre desordem poder local e democracia seria a grande construção ideológica do grupo a palavra de ordem para manter como nacional a estrutura de poder central arbitrária herdada da colônia e expressa na Constituição pelas duas soberanias Assim o discurso do caranguejo seria atualizado em sua versão nacional Havia claro uma importante diferença Regressistas e federalistas encerrados os confrontos armados começaram a travar duelos de palavras em busca da maioria no Parlamento esta sim a instituição nova a representação coletiva que efetivamente passava a ter papel central na condução da nação Mas antes que assentasse tal percepção o outro lado tratou de conferir mais substância ao mecanismo da dupla soberania Vislumbrando a reconquista do poder sem passar pelas urnas os adeptos das posições descentralizadoras no Legislativo tentaram uma manobra esperta antecipar a maioridade do príncipe D Pedro Isso significava abdicar do projeto do Executivo eleito e submeterse como instrumento do Poder Moderador mas assim foi Em 1840 a coroa foi colocada na cabeça mística do detentor pessoal do Poder Moderador então com 14 anos de idade Uma nova rodada começava com a volta ao cenário do poder irresponsável CAPÍTULO 30 Imperador QUANDO D PEDRO II ASSUMIU O TRONO EM 1840 FAZIA JÁ 32 ANOS QUE A monarquia funcionava de fato no Brasil e 18 anos desde que vigorava o modelo mesclado das duas soberanias constitucionais Era também uma época na qual as tendências da economia e da política se consolidavam em ritmos bastante diversos se comparados ao padrão do resto do Ocidente No lado da economia o ponto de partida em 1808 havia sido o de um crescimento impulsionado pelo mercado interno e de tamanho comparável ao dos Estados Unidos Essa economia conhecera três mudanças relevantes No lado positivo a transferência da Corte redirecionou os gastos do governo central que aumentou de forma significativa por todo o território invertendo a secular rotina de arrecadar muito e gastar pouco na colônia A segunda mudança também começara com sentido positivo Houve maior autorização legal para a circulação de títulos de crédito também incentivada pela fundação do primeiro banco Porém ainda nos tempos de D João VI surgiram os aspectos negativos O campo econômico se convertera em um território de caça para o Erário com as seguidas emissões para financiar o déficit do governo com base na poupança da população um instrumento de coleta até então desconhecido no Brasil Efetuado pelo monarca ao voltar a Portugal em 1821 o saque dos depósitos bancários foi o primeiro sinal de que o governo não estava preocupado com os poupadores que investiam na instituição E a ampliação desmesurada do uso da poupança por meio da emissão de títulos com a finalidade de fechar o caixa de um governo deficitário aumentou muito após 1825 O tratado de reconhecimento da Independência inaugurou outra forma de o governo central arrecadar recursos gastar sem controle e deixar a conta para os brasileiros o que só foi possível graças à Constituição Um empréstimo que não traria dinheiro para o país feito a partir de um tratado secreto seria quase impossível em Portugal onde a nobreza a administração e o Judiciário serviam de contraponto ao poder efetivo do monarca Como no Brasil recémcriado não havia nenhum desses contrapesos o saque foi possível As três mudanças tiveram a mesma consequência criar a partir de formas escrituradas de circulação de moeda uma torrente de gastos por parte do governo central e a transferência direta de riqueza para Portugal no caso do caixa do banco e da indenização pela Independência e para o bolso de D Pedro I para financiar sua política europeia e os mercenários Desse modo em poucos anos o governo central esgotou a poupança nacional As formas de acumulação de riqueza antes existentes eram muito precárias tal como eram primitivos os instrumentos do governo para obter esses recursos pois restritos aos impostos sobre a riqueza já acumulada Com o banco os títulos públicos o tratado de Independência e a emissão de dinheiro de papel a colheita foi muito maior Assim o efeito maior do gasto público sob o governo de dois reis com poderes irresponsáveis foi o de destruir a poupança privada com investimentos improdutivos Diante de tal legado os representantes da soberania popular e responsável das regências aproveitaram na medida do possível o comando do Executivo para impor o Orçamento e o comando do Parlamento para aprovar leis tendentes ao equilíbrio fiscal tentaram atingir esse objetivo na prática cortando gastos e buscando receitas para equilibrar as contas Mesmo com todos esses cuidados ainda sobrou para a economia interna devastada convocada a pagar impostos para a sustentação do governo central A única boa notícia econômica era a de que graças ao constante esforço de todos os governos regenciais no final da década de 1830 alcançouse um equilíbrio nas contas do governo central Com isso tornouse possível vislumbrar uma etapa de crescimento a partir de uma base bem inferior à do início do século se comparada aos outros países do Ocidente A derrocada brasileira coincidiu com uma inversão no movimento multissecular da economia ocidental Apesar de todo o incremento trazido pelas navegações oceânicas o crescimento da renda per capita nas economias europeias mantevese sempre muito baixo entre os séculos XVI e XVIII ao contrário do que ocorria no Brasil ou nos Estados Unidos coloniais onde a população encontrou meios informais de gerar riqueza Entretanto a introdução de legislações iluministas na esfera econômica delineando um quadro legal de apoio ao setor privado ampliou tremendamente as condições institucionais para a circulação de títulos privados e instaurou as condições para a difusão do trabalho assalariado que junto com o capital que o comprava constituíam os elementos essenciais que para Marx caracterizam o capitalismo Essas transformações conferiram um impulso ao andamento da economia com o crescimento da renda per capita tornandose a regra tanto nas partes da Europa Ocidental que adotaram as legislações iluministas como nos Estados Unidos Com isso as quatro primeiras décadas do século XIX foram marcadas pelo distanciamento entre essas economias e a do Brasil Mas nesse cenário econômico que se comparado ao novo padrão o das economias capitalistas do Ocidente era de decadência ocorreram avanços na esfera da política O mais notável foi sem dúvida a consolidação do Parlamento no centro de todo o governo A instituição era alguns meses mais nova que o monarca de 14 anos Começara a funcionar como apêndice em meio a três outros poderes todos submetidos ao Poder Moderador Mas os parlamentares souberam delimitar um espaço político próprio aproveitando tanto o descontentamento com o imperador como a necessidade que este tinha de conter sua impopularidade No quinto ano de funcionamento o Parlamento tornarase a instituição central de comando de todos os poderes assumindo substantivamente o controle do Executivo e confrontandose a um Judiciário e uma Corte que atuavam em defesa do governo irresponsável De vitória em vitória na contenção de gastos à frente do Executivo e de reforma em reforma na legislação à frente do próprio Parlamento os representantes da soberania popular souberam ampliar muito a esfera da responsabilidade na vida brasileira Isso era algo inusitado no Ocidente Com exceção da Inglaterra e dos Estados Unidos países onde o Parlamento era responsável e efetivo a maior parte da Europa só conhecera até então parlamentos marcados pelo radicalismo na operação e pela instabilidade no tempo quase sempre eram efetivos apenas durante uma vaga revolucionária tendo os poderes derrogados em seguida por monarcas arbitrários No caso do Brasil não se tratava de acidente Havia uma base mais que sólida para a eleição de representantes e governantes na sociedade brasileira a tradição herdada dos governos locais Essa base explica tanto a rapidez com que os parlamentares souberam se apropriar do poder quanto a face moderna até em comparação com a Europa do sistema eleitoral Mas apesar do extraordinário avanço e do efetivo apoio do soberano popular que era o eleitor surgiu um impasse que não se devia tanto à falta de empenho dos parlamentares mas a um limite efetivo da Constituição mestiça que começou a ser testado onde passavam na prática as fronteiras criadas com uma Constituição de duas soberanias Tal questão estava sendo resolvida de maneira radical por todo o Ocidente algo previsível quando se pensa em dois modos contrários de fundamentar teoricamente o sentido da ação justa dos governos Apenas nos Estados Unidos se implantara um governo de molde iluminista com base no voto do eleitor e na norma da igualdade perante a lei Em toda a Europa a monarquia e com ela o direito divino dos reis a governar de maneira irresponsável sobrevivia entre ondas revolucionárias ou aceitando um papel muito secundário como na Inglaterra A peculiar forma brasileira da miscigenação da convivência de pessoas formadas em princípios opostos era uma possibilidade numa formação social que fundia culturas diversas A prática revelava que José Bonifácio não havia tido uma ideia utópica Ainda que com acentuados movimentos na direção do arbítrio sobretudo nos anos iniciais de D Pedro I houve também avanço na direção contrária em especial no princípio da Regência Nem um nem outro avanço foram fortes ao ponto de se impor um ao outro Tanto o imperador precisou reabrir o Parlamento como os regentes precisaram do símbolo do imperador menino e preservaram todos os instrumentos de exercício do Poder Moderador a começar da Corte Com o passar do tempo os limites entre as soberanias opostas foram deixando de se tornar uma oposição radical para se transformar em fronteiras negociadas no Parlamento e questão de opinião de expressão pessoal de cidadãos e agrupamentos políticos Assim a Constituição foi também se afastando do rigor da letra para se aproximar do costume a cada ida ou vinda das fronteiras o sistema se tornava operacional na prática O todo era aceito por todos e as disputas se concentravam nas mudanças que o Parlamento conseguia impor ao funcionamento do sistema orçamentos regulagem de tratados internacionais por exemplo e na legislação com os códigos que foram substituindo partes das Ordenações do Reino Esses avanços justificavam expectativas como a de José Bonifácio ao formular o projeto pelo qual a mistura brasileira acabaria por levar ao reconhecimento dos costumes democráticos dos brasileiros e à unidade efetiva na sociedade Já nos momentos de maior avanço dos defensores do Poder Moderador a impressão era contrária a defesa dos negócios com escravos se confundia com a defesa da escravidão como fonte moral das boas leis e da justiça a desigualdade entre os homens era acentuada o ideal da igualdade criticado até com escárnio funcionários subordinados ao poder pessoal recusavamse a obedecer a meros súditos eleitos Isso era assim porque mesmo depois de quase duas décadas de independência o governo central preservava algo da forma colonial muito controle e poucas oficinas A Constituição de 1824 ampliara o escopo de poderes do governo central Na esfera intermediária de governo os comandantes de capitanias nem sempre controláveis deram lugar a presidentes de província que eram meros delegados do Poder Moderador dotados de quase todo o poder uma vez que as assembleias provinciais eram quase um órgão de assessoramento sem poderes específicos Todas as instâncias superiores do Judiciário também eram dependentes do Poder Moderador e atuavam em contraste e confronto com os juízes das vilas os chamados juízes ordinários eleitos pelos moradores A lei manteve ainda outra herança medieval das Ordenações os chamados foros privilegiados e por isso os juízes não podiam ser processados na forma da lei que deveria valer para todos Embora o controle a partir do alto fosse total a sua efetividade nos níveis inferiores era muito pequena Presidentes de província e juízes de altos escalões dependiam em tudo da ação das autoridades municipais uma vez que não contavam com funcionários pagos pela instância intermediária nem meios próprios para agir Afora as alfândegas que recolhiam impostos quase não havia representantes próprios dos poderes do governo imperial no país As raras tropas do Exército sobretudo em zonas de fronteira eram o apoio mais eficaz da autoridade central mas apareciam quase sempre para lutar contra a população A única rede geral de oficinas do governo central eram as igrejas sob o controle direto do Poder Moderador a partir da Independência quando o monarca brasileiro herdou o comando da Ordem de Cristo no território e todos os poderes de nele organizar o catolicismo Embora relativamente uniforme geral e importante para o exercício da autoridade o clero brasileiro sobrevivia de esmolas locais era dotado de grande autonomia econômica e não à toa fornecia alguns dos membros mais radicais do Parlamento na luta por um governo responsável Assim a mescla foi se cristalizando no final da década de 1830 com um equilíbrio difícil de ser rompido não havia maioria no Parlamento para avançar nas reformas nem os defensores do arbítrio tinham meios para voltar tudo para trás embora tivessem maioria Nessa situação os reformistas resolveram testar outro demarcador de fronteiras o menino de 14 anos que vinha sendo preparado para governar Consultado D Pedro II aceitou a antecipação de sua maioridade No trono formou o ministério que agia responsavelmente em seu nome No poder o ministério fez algo que os regentes relutavam em fazer porque agora agiam como representantes do Poder Moderador trocaram os presidentes de província colocando auxiliares políticos nas vagas Esses auxiliares demitiram funcionários e colocaram aliados no lugar Os aliados organizaram as eleições pressionando adversários e ajudando aliados As eleições criaram a maioria parlamentar para o agrupamento que controlava o ministério E essa maioria votou leis reformistas No entanto antes que a vitória se consumasse um ato imperial mostrou quem efetivamente havia conquistado o controle das eleições D Pedro II demitiu o ministério podia fazer isso quando bem entendesse pois pela Constituição o ministério era apenas o agente responsável pelo exercício do Poder Moderador no Executivo e instalou outro formado por derrotados e minoritários Era a segunda eleição ganha pelos indicados do imperador e o reflexo de uma nova relação entre as duas soberanias constitucionais Aquela do povo apesar de geral e costumeira passava a ser inteiramente subordinada aos caprichos do ocupante irresponsável do trono também no que se referia aos resultados das eleições Mesmo com poucas oficinas o governo central dispunha do necessário para transformar o resultado eleitoral em variável dependente da vontade irresponsável do detentor do Poder Moderador O segundo ministério a representar essa vontade anulou as eleições anteriores antes mesmo da posse dos eleitos convocou outras que lhe deram ampla maioria a qual por sua vez promulgou uma legislação centralizadora que anulava as alterações anteriores ampliando ainda mais o escopo de ação do poder central e cancelando franquias das esferas descentralizadas de poder Os prejudicados reagiram com revoltas Entre eles estava Diogo Antônio Feijó que até os 58 anos nunca havia participado de movimentos armados contra o governo Lutou numa cadeira de rodas pois havia sofrido um derrame Sentiu na carne o peso do despotismo que odiava Senador com direito a imunidade foi preso de potência exilado sem sentença degredado sem julgamento A muito custo os senadores conseguiram que fosse instaurado um inquérito e só assim pôde se defender Jamais houve julgamento tudo o que conseguiu foi morrer em casa A rodada de revoluções de 1842 em Minas Gerais e São Paulo marcou o fim de um ciclo Com exceção da Farroupilha foram todas derrotadas pelo governo central Todas as economias acabaram subordinadas em sua pobreza ao Rio de Janeiro sede da Corte e único território onde o governo gastava mais que arrecadava Foi também o momento da organização formal de dois partidos políticos com representação no Parlamento o Conservador e o Liberal Demitindo os conservadores e trazendo os liberais de volta sem anular as mudanças do gabinete anterior o imperador deixava claro que estava no comando do governo do Brasil CAPÍTULO 31 Mauá e a reação A PERCEPÇÃO DE QUE O JOVEM IMPERADOR ESCOLHIA OS MINISTROS APENAS NO ÂMBITO do Parlamento permitiu uma rápida acomodação na disputa entre responsabilidade e irresponsabilidade D Pedro II logo se firmou como um comandante devotado à arte de fazer funcionar os gabinetes de maioria Jamais indicava ministros que não poderia demitir de modo que os amigos permaneciam fora das listas pelo que agradeciam os parlamentares rivais Exercendo uma supervisão fina do Parlamento ele controlava com precisão as trocas de guarda no gabinete Como conhecia ou se mantinha informado sobre todos os congressistas era capaz de fazer bons convites Com isso os membros do Legislativo se aquietaram E passaram a apostar mais nos rapapés ao monarca pois sabiam que dele e só dele vinham agora os convites para o Executivo Empenhados em sugerir ideias capazes de gerar uma convocação da Coroa pensavam um pouco menos nas satisfações que deviam aos eleitores E a conjuntura favoreceu o governo Em 1844 venceu o tratado comercial com a Inglaterra firmado por D Pedro I Embora os ingleses pressionassem pela continuidade dos privilégios estes eram tão escandalosos para a época que só mesmo um imperador com poderes ditatoriais poderia mantêlos Como não era o caso do novo imperador o governo brasileiro com pleno apoio do Parlamento viuse em condições para promover uma guinada a favor do país e o gabinete liderado pelo ministro liberal Alves Branco fez passar uma lei que alterava toda a pauta alfandegária No lugar das alíquotas baseadas no país de origem das mercadorias a taxação passou a incidir sobre categorias de produtos A média passou de 15 para mais de 30 com muitos itens chegando a pagar até 60 As consequências foram imediatas e variadas No caso do Rio Grande do Sul o aumento da cobrança sobre a produção platina devolveu vantagens ao charque local permitindo um acordo que pôs fim a uma década da Revolta Farroupilha Esse foi apenas um exemplo das mudanças A arrecadação de tributos pelo governo central passou de 154 mil contos em 1843 para 348 mil contos em 1845 um incremento de nada menos de 122 nesse curto período Assim desaparecia o equilíbrio precário do Executivo que impedira qualquer ação frente ao quadro econômico crítico da década anterior Embora a política de elevação de alíquotas tenha sido pensada pelo governo como forma de elevar a arrecadação os efeitos colaterais se fizeram sentir na economia como um todo Desde a Independência excetuandose a produção de café fluminense por todo o país eram raros os sinais de recuperação da atividade econômica E um dos sinais dessa decadência é a própria qualidade dos dados hoje disponíveis sobre o período Como os censos deixaram de ser realizados a partir das turbulências pósabdicação de D Pedro I nem mesmo os atuais econometristas conseguem traçar um quadro preciso da situação Ainda assim restam indícios indiretos significativos Na década de 1840 foram fundados os dois primeiros bancos privados do país um na Bahia e outro no Rio de Janeiro Era quase nada numa época em que os bancos se contavam aos milhares na Inglaterra e nos Estados Unidos mas não deixava de ser um sinal de que a elevação das tarifas deu alento aos negócios Para quem sabia fazer contas os impostos maiores sobre importações criavam uma nova moldura para os cálculos de investimento Empreendimentos que antes não tinham sentido passavam a ser viáveis Irineu Evangelista de Sousa um dos mais argutos empresários do tempo soube se antecipar vendeu seus negócios comerciais e investiu o capital na fundição e estaleiro da Ponta da Areia em Niterói A instalação dessa que foi a primeira grande indústria brasileira coincidiu com um período de grandes incertezas a maior das quais advinda da reação inglesa ao fim dos privilégios comerciais Enquanto esses privilégios duraram a reação inglesa ao tráfico feito na ilegalidade era meramente formal Os cônsules ingleses tomavam nota das movimentações de escravos que ignoravam as proibições do tratado enviando relatórios aos ministros que por sua vez os guardavam na gaveta Assim surgiu o ditado que definia a proibição do tráfico como lei para inglês ver Confiando na atitude inerte na segunda metade da década de 1840 houve até certa euforia entre os produtores escravistas que tomaram as discussões na Inglaterra sobre o fim das sanções econômicas ao açúcar produzido por escravos como sinal de que cresceria a demanda pela mercadoria que negociavam Porém bastou a subida de um gabinete conservador em Londres para tudo mudar A primeira medida do conde de Aberdeen foi passar uma lei que levou seu nome autorizando a Marinha britânica a capturar qualquer barco sobre o qual pairasse a suspeita e bastava a suspeita de estar transportando escravos No primeiro ano de vigência da lei a partir de 1847 nada menos de 27 navios mercantes brasileiros foram confiscados juntamente com sua carga e postos à disposição de ingleses Tal medida era um reflexo do quanto a escravidão já criminalizada nas legislações iluministas de muitos países ia deixando de ser também um costume imposto pela força e tolerado pelos legisladores O tráfico internacional de escravos era ilegal desde o início do século XIX tanto nos Estados Unidos único país de toda a América em que as taxas de natalidade de escravos eram positivas dispensando as importações como na Inglaterra para suas colônias Também foram sendo encontradas fórmulas para extinguir a escravidão sem acabar com a acumulação de capital nas economias que a adotavam A primeira a resolver a equação foi a própria Inglaterra em 1833 prevendo a indenização dos proprietários coloniais de modo a que financiassem a transição para o uso do trabalho assalariado Com a Lei Aberdeen a Inglaterra deu mais um passo no cerco ao escravismo criando um problema e tanto para a economia brasileira Desde o século XVII quando Salvador Correia de Sá comandou a tomada de Angola o domínio efetivo de brasileiros sobre vastas porções do espaço africano se tornara uma realidade E o negócio do tráfico africano envolvia muito mais que compras e transporte Parte da produção brasileira cachaça fumo búzios era vendida no mercado africano Os navios negreiros eram de propriedade de brasileiros e constituíam a parte mais sofisticada da marinha mercante Um sistema de seguros e crédito formava a parte financeira do negócio reservada a detentores de muito capital Uma vez desembarcados no território brasileiro os cativos africanos funcionavam como reguladores das trocas internas Normalmente vendidos a crédito obrigavam o comprador por prazos longos com o vendedor vinculando os fazendeiros ao comerciante da cidade que lhes fornecia escravos Os títulos de posse sobre um escravo eram a garantia mais aceita em empréstimos de curto prazo o que tornava o cativo importante patrimônio financeiro Essa longa cadeia fazia com que na economia brasileira os traficantes de escravos fossem de longe e desde sempre os empresários mais bemsucedidos Nos tempos coloniais e da Corte joanina quando o negócio era legal os traficantes também eram os sócios preferenciais da administração central arrecadavam impostos prestavam serviços e recebiam a sua parte do Real Erário A Regência aproveitara a ilegalidade do tráfico para fazer umas tantas mudanças na situação Para começar acabara com a concessão a particulares da cobrança de impostos que se tornou uma incumbência da própria administração Como o tráfico virou contrabando muitos dos antigos traficantesfidalgos preferiram abandonar o negócio e ser apenas cortesãos ou políticos Mas logo ficou claro que se tratava de um negócio sem futuro Em 1848 o imperador apeou os liberais que haviam aumentado as tarifas e convocou conservadores para delinear a saída definitiva do Brasil dos negócios africanos como um todo O resultado foi uma grande reorientação na posição geoestratégica da nação Advertidos os traficantes foram aos poucos liquidando os seus créditos no continente africano acumulando capital em dinheiro Ainda conseguiram desembarcar volumes significativos dos derradeiros cativos transformando os fazendeiros assustados em devedores Com o fim do tráfico havia uma abundância de capital no Rio de Janeiro e apenas um homem foi capaz de vislumbrar fórmulas para que esse dinheiro fosse empregado no sentido de encaminhar o setor privado rumo ao capitalismo Nascido no Rio Grande do Sul em 1813 órfão aos 5 anos de idade Irineu Evangelista de Sousa foi enviado com 9 anos para trabalhar no Rio de Janeiro a princípio como caixeiro tornandose depois gerente e sócio de uma empresa comercial Nesse tempo completou por conta própria uma sólida formação em economia lendo os livros emprestados por seu patrão e depois sócio escocês Consolidou a formação com uma viagem pela Inglaterra onde viu de perto não apenas as fábricas e os operários mas todas as instituições do capitalismo triunfante Ali havia rei mas não havia Poder Moderador Os tratadistas políticos e econômicos distinguiam na esteira do Iluminismo entre a esfera pública onde vigorava a lei e a esfera privada o espaço de liberdade total de empreender parte dos direitos que a lei garantia como inalcançáveis pela ação do governo A primeira era universal valendo para todos a segunda individual com cada um agindo conforme sua consciência A lei tanto regulava os limites do governo como incentivava os empreendedores a organizarem empresas aproveitando o trabalho assalariado e investindo os lucros para ampliar cada vez mais esse setor produtivo na economia Na altura em que decidiu apostar em empreendimentos industriais Irineu Evangelista de Sousa deixou de fazer parte daquele indistinto lugar histórico e social reservado pelo governo brasileiro aos empresários O mundo empresarial ainda era regulado pelo Livro IV das Ordenações do Reino cujo conteúdo guardava influências da realidade mercantil do século XV as últimas alterações relevantes haviam sido introduzidas no século XVI Tão obsoleto era o instituto que nem sequer previa a separação legal e contábil entre a pessoa física do empresário e a pessoa jurídica da empresa Por exemplo por ocasião da morte de um comerciante todas as contas de seu negócio eram incluídas no testamento e às vezes créditos e débitos demoravam anos para ser quitados em meio a disputas de filhos e parentes pelos bens Na via inversa os comerciantes ficavam sem receber de um cliente fazendeiro que morresse O visconde de Souto um dos maiores banqueiros da época lembrou dessa maneira a praça do Rio de Janeiro na segunda metade da década de 1840 Quando entrei na vida comercial estreando na carreira em uma das mais respeitadas casas de comissões nunca soube o que fosse descontar letras dos fazendeiros Nesse tempo a imperfeição da circulação não consentia as letras dos fazendeiros tanto que o Banco Comercial então o maior do país não as conheceu em sua carteira1 Talvez haja quem considere tal situação precária uma consequência da escravidão Nesse caso cabe lembrar que havia bancos de desconto no Sul escravista dos Estados Unidos desde o século XVIII ou que antes disso toda a produção de açúcar no Caribe inglês se fizera com a emissão de títulos O mais característico do modo como se tratava o capital no Brasil ainda refletia a observação feita pelo frei Vicente do Salvador no século XVII o mercado funcionava apenas na esfera particular ou seja fora da proteção legal do Estado Todas as transações relevantes aconteciam entre pessoas e eram fiadas apenas pela palavra por isso o fiado mesmo nas altas esferas de negócio era a única instituição relevante na economia O fiado servira para analfabetos tocarem a economia produtiva até o século XIX mas não para assegurar a competitividade da produção brasileira no mundo capitalista Até o mais importante ciclo produtivo da economia o do café escravista funcionava todo na base do fiado e conhecia apenas uma operação anual de liquidação financeira Com sua formação sofisticada e acesso a capitais com juros baixos na Inglaterra Irineu Evangelista ganhou dinheiro como comerciante sem que ninguém se desse conta Como industrial tentou criar um ambiente institucional menos prejudicial a esse tipo de negócio que exigia liquidações em dinheiro num grande volume Eleito presidente da comissão que dirigia a praça de comércio do Rio de Janeiro acabou sendo convidado a atualizar a legislação comercial Recorrendo a todo o seu conhecimento da situação inglesa ajudou a redigir uma versão do Código de Comércio Aprovada em 1850 a legislação substituiu mais uma parcela das Ordenações Atualizava o possível desde a legalização de sociedades anônimas ainda que sujeitas à aprovação do Poder Moderador até a introdução de regras para emissão desconto e cobrança de títulos comerciais instrumentos inexistentes quando as leis haviam sido escritas Após o encerramento do tráfico essa lei permitiu uma revolução Irineu Evangelista de Sousa comandou a formação do Banco do Brasil um empreendimento privado do qual seria o maior acionista e o primeiro presidente A parte mais fácil foi reunir o capital de 10 mil contos de réis 33 vezes maior que o da fundição e estaleiro da Ponta da Areia e um terço dos 28 mil contos de receita do governo central em 1850 como muitos traficantes tinham dinheiro e não sabiam o que fazer com ele em apenas três semanas o capital foi integralizado Mais complicado foi passar pelo crivo do governo três meses foram consumidos em verificações de toda ordem feitas por representantes do Poder Moderador que examinaram os estatutos e exigiram as alterações que lhes pareceram necessárias para que a sociedade fosse digna do governo Obtida enfim a autorização o Banco do Brasil passou a emitir títulos comerciais para muitas operações fazendo diminuir os prazos de giro e o custo do dinheiro Começou a fornecer crédito a produtores de café com taxas de juros tão melhores que aquelas dos tempos do tráfico que provocaram lembranças marcantes no visconde de Souto Os produtores se livraram de uma situação que a custo do tráfico nefando de escravos e da usura que só os comércios ilícitos permitem sustentar ditava a lei à praça e impunha sua vontade aos governos2 Esse não foi o único emprego dos capitais reunidos no banco Irineu Evangelista de Sousa foi também capaz de empregar parte deles para o financiamento de obras de infraestrutura que ele mesmo fazia e gerenciava a construção da primeira ferrovia brasileira aproveitando os trilhos e equipamentos produzidos em sua fundição a iluminação a gás no Rio de Janeiro com encanamentos produzidos por ele e uma companhia de navegação a vapor no Amazonas com navios saídos do seu estaleiro Não era milagre Os capitais que agora viabilizavam esses projetos existiam antes da fundação do banco O que não havia era uma lei que permitisse o emprego de tais capitais em empresas sob a proteção formal do governo Quando ela veio houve confiança suficiente para trazer o dinheiro à luz aplicálo em negócios transparentes e legais Já o capital destinado a empréstimos era aplicado com as garantias proporcionadas pelos novos títulos de crédito de modo que não era preciso ganhar tanto em cada giro valia a pena emprestar muitas vezes com poucos ganhos em vez de como antes cobrar muito e girar pouco Mas o Brasil era um império que tinha também uma solenidade máxima a abertura da sessão anual do Parlamento o momento no qual se reuniam os dois entes soberanos o momento para o qual o imperador reservava sua veste mais solene a murça de plumas amarelas de tucano que lhe cobria o peito Era a ocasião na qual ele ressaltava aos parlamentares os pontos que em sua visão deveriam merecer exame nas casas legislativas Entre aqueles que enfatizou na sessão de 1853 estava o seguinte Recomendolhes a criação de um banco solidamente constituído que dê atividade e expansão às operações do comércio e da indústria Nas circunstâncias em que felizmente nos achamos semelhante instituição é um elemento indispensável a nossa organização econômica3 O nossa do discurso não se referia à nação mas à parte do governo submetida ao Poder Moderador e o projeto que correu foi o de empregar dinheiro do Tesouro para adquirir o controle do Banco do Brasil A justificativa da compra foi assim apresentada pelo ministro da Fazenda o conservador visconde de Itaboraí A concorrência entre bancos senhores tem sido a causa de quase todas as crises comerciais É a porfia de cada um por fazer mais negócios aliciar mais fregueses por dar maiores dividendos aos acionistas que de ordinário ocasiona a facilidade de se descontarem títulos sem as necessárias garantias que faz baixar demasiadamente os juros que excita empresas aleatórias que faz desaparecer os capitais reais disponíveis para os substituir por capitais fictícios ou de imaginação é a rivalidade entre bancos que concorre poderosamente para produzir as quebras a ruína o desespero das famílias A concorrência entre bancos prepara para os produtores ávidos e imprudentes todas essas elevações de fortuna essas quedas precipitadas que dão ao trabalho e à indústria todos os delírios todas as angústias do jogo4 Apenas um senador Batista de Oliveira reagiu O projeto é um arbítrio espantoso dando ao governo a organização de um banco privilegiado A organização deste projeto é mais uma prova das tendências do atual ministério de implantar neste país um governo absoluto de fato5 A gritaria não teve consequências O Banco do Brasil foi estatizado e Irineu Evangelista recebeu um bom dinheiro por suas ações O governo as revendeu para os novos sócios minoritários de uma instituição que seria dirigida pelo governo numa operação assim descrita pelo Jornal do Commercio A especulação em torno das ações se transformou em verdadeiro jogo que exercia poderosa atração não apenas sobre comerciantes mas sobre militares empregados públicos altos funcionários do Estado sobre pessoas enfim até então estranhas à própria praça6 As primeiras providências dos novos dirigentes foram aumentar o número de diretorias de 3 para 15 e restringir tanto o crédito para as empresas como a emissão de títulos Os juros subiram o financiamento agrícola desapareceu Os privilegiados pelos empréstimos foram sobretudo os antigos traficantes que empregaram o dinheiro para reforçar um negócio prestes a desaparecer Escolhidos a dedo pelos diretores da estatal aqueles que recebiam os créditos se transformaram em comissários de café a forma primitiva de subordinação que os antigos traficantes encontraram para continuar no topo Claro com ela veio também o retrocesso às contascorrentes liquidadas uma vez por ano E logo depois o tráfico interno sobretudo originário do Nordeste que substituiu o comércio atlântico proibido A volta atrás foi concluída em 1860 por outro gabinete conservador O visconde de Itaboraí nomeado presidente do Banco do Brasil justificou desta maneira um projeto de lei do governo destinado a dificultar a atividade de empresas já em tempos de capitalismo avançado Uma larga porção do capital flutuante foi desviada da agricultura para a indústria tendo sido convertida em capital fixo os graves transtornos que esta conversão causam num país de produção acanhada tornam impossível que as empresas agrícolas vão adiante7 Com essa justificativa foi aprovada a lei 2711 que introduzia restrições para a formação de empresas restrições tão severas que acabou sendo conhecida como Lei dos Entraves Com ela se voltava ao tempo anterior ao Código Comercial no qual a informalidade o mercado que funcionava no âmbito privado e à margem das leis passava a ser a única saída Esse era um corolário inevitável do uso do poder legal para restringir a aplicação do capital existente fora de um restrito circuito próximo do governo O julgamento da política adotada pelo ministro Francisco de Sales Torres Homem feito por economistas especializados em econometria do século XX como Carlos Pelaez e Wilson Suzigan é severo As políticas recessivas do governo no mercado monetário foram compensadas pelo aumento do comércio exterior parecendo ter se caracterizado um caso raro de declínio do estoque de moeda com expansão da atividade econômica que se poderia explicar pela natureza do declínio políticas monetárias erradas e as causas da expansão aumento na procura do café8 As políticas erradas remetem ao que seria certo ou seja o governo empregar as políticas monetárias para apoiar o crescimento dos mercados e da riqueza nacional Mas isso para o Poder Moderador era justamente o errado pois considerava as políticas de expansão do crédito e de incremento da atividade econômica como o combustível da jogatina e da indústria artificial Assim do ponto de vista de quem impunha a política o certo era a capacidade de o governo central cercear uma possibilidade real da economia a de transferir via sistema de crédito poupanças antes alocadas no setor escravista para o setor capitalista especialmente o industrial Esse projeto fora acalentado como utopia com a chegada de D João Tornarase inelutável em decorrência da autoridade pessoal e arbitrária de D Pedro I e do desastre que este causou na economia Transfigurada com a reação ao fim do tráfico de escravos consolidavase agora como opção deliberada do poder central Como as duas soberanias se complementavam no projeto os entusiastas do Poder Moderador mostraramse tão confiantes no projeto que criaram uma vasta literatura para justificar o sistema CAPÍTULO 32 O arbítrio ilustrado AS RESTRIÇÕES AO CAPITALISMO NA DÉCADA DE 1850 FORAM POSSÍVEIS POR RAZÕES políticas Mantendo se à frente de seguidos gabinetes ministeriais os conservadores mantinham o total controle das eleições Esse controle chegou a um ponto tal que em 1852 o partido conseguiu eleger todos os deputados da Câmara restando apenas uns poucos liberais no Senado vitalício O imperador vislumbrou aí uma oportunidade única Até então ele se limitara a indicar alternativamente políticos de cada partido Em 1853 resolveu montar um ministério a seu gosto ou seja um ministério que embora formado por parlamentares atuasse plenamente como expressão do Poder Moderador e não como resultado da delegação da soberania popular O anúncio da ideia seguiu uma fórmula aperfeiçoada pelo próprio imperador nos anos anteriores ele mesmo nada falava a respeito deixando a tarefa para ministros e parlamentares Desse modo o plano acabou sendo apresentado num discurso pronunciado pelo senador Nabuco de Araújo no Parlamento Como a base do projeto era a subordinação de ambos os partidos ao trono em torno de uma conciliação com os interesses deste o senador batizou a ideia de Ponte de Ouro e fez questão de deixar claro quem comandaria tudo Entendo ao contrário que a conciliação deve ser a obra do governo e não dos partidos porque no estado atual se os partidos por si mesmo se conciliarem será em ódio e desrespeito ao governo1 O imperador fez questão de escrever pessoalmente o programa do ministério item por item Ao final vinham as Disposições Gerais das quais a primeira era O ministro que se desculpar com meu nome será demitido2 Em seguida vinham as demais limitações todas as decisões seriam tomadas em audiência com o monarca cada nomeação política deveria contar com a sua aprovação até na mais remota província e todos os assuntos importantes deveriam ser apresentados previamente para estudos O documento foi entregue e aceito pelo marquês de Paraná que se encarregou de encontrar pessoas dos dois partidos dispostas a seguir as instruções Com isso o Poder Moderador avançava para um controle da vida nacional como desde muito não se via só fora ultrapassado nos tempos em que D Pedro I governava sem contraste Inversamente a soberania popular se via reduzida ao papel muito secundário de sagrar as indicações do alto Essa peculiar combinação de um monarca irresponsável e um ministério submisso que não podia se eximir da responsabilidade nem mesmo apresentando ordem escrita do imperador estava prevista na Constituição Mas até então nunca chegara a ser prática regular e isso gerou uma compreensível euforia no imperador Não só dirigiu o ministério como recorreu ao mesmo método para criar justificativas escritas de seu comportamento sempre expressas por terceiros responsabilizáveis e não por sua majestade O livro Direito público brasileiro e análise da Constituição do Império foi assinado por José Antônio Pimenta Bueno marquês de São Vicente que o iniciou em 1852 e o publicou em 1857 Um dos motivos alegados para a demora foi o fato de que o autor apresentava o texto a um amigo muito especial que corrigia a lápis as versões o próprio imperador Por isso na conclusão concisa de Eduardo Kugelmas o livro apresenta o trono de São Cristóvão como seu ocupante gostaria de vêlo3 Pimenta Bueno justifica a peculiar afirmação constitucional de duas soberanias com a seguinte análise do artigo 11 da Constituição de 1824 que dizia Os representantes da nação brasileira são o imperador e a Assembleia Geral Para ele tal duplicidade era uma resolução inspirada pela Providência Isso porque de um lado desviou do Brasil a nossa forma de governo os males que resultam das monarquias vitalícias ou eletivas de um lado e muito mais dos governos temporários do outro4 A prova da efetiva sabedoria dessa dupla soberania e de origens opostas aparecia na altura da obra em que Pimenta Bueno trata de um hipotético desacordo entre ambas aquele no qual o Parlamento aprova uma lei cumprindo sua função precípua e o imperador nega sua sanção recorrendo a uma das muitas franquias do Poder Moderador A determinação do poder da sanção exige o estabelecimento de uma hierarquia entre os dois representantes da nação e Pimenta Bueno não hesita em colocar um deles no ponto mais alto A Coroa é o centro da administração do Estado reside na mais elevada eminência da sociedade desta altura vê todas suas relações todos seus serviços todas suas necessidades em contato com a atualidade e o futuro Já os parlamentos se caracterizariam por ter por missão o progresso mais ou menos sôfrego desde que o entendam conveniente5 Entre os dois representantes portanto não deve haver dúvidas sobre qual seria a parte mais importante Colocada a Coroa sem rivais acima de todos os interesses do momento animada por seu princípio de perpetuidade superior a todos os partidos e paixões não podendo ter verdadeira glória e força senão na estabilidade de suas instituições na prosperidade nacional quem deverá temer e desviar mais do que ela qualquer tentativa de lei perigosa6 O argumento de que a soberania arbitrária seria permanente e superior enquanto a soberania popular cuidaria apenas do contingente e dos interesses menores virou um grande bordão Membros diversos do Partido Conservador sentiram que o imperador era sensível a argumentos de desigualdade e não deixaram de perceber que essa apresentação permitia enquadrar os adversários liberais como pouco capacitados para entender os grandes interesses nacionais Melhor ainda adoraram ver o imperante como chefe efetivo da administração miúda o programa do gabinete incluía itens como regulamentação do trabalho dos bombeiros limpeza dos esgotos da cidade do Rio de Janeiro análise das madeiras que poderiam ser cortadas para a construção naval entre outros de modo que passaram a criar textos para justificar também essa ampliação da esfera de atuação do Poder Moderador A argumentação a favor da intervenção seria assim resumida por Oliveira Torres no século XX Ao rei cabe reinar aos ministros do rei responsáveis perante a Câmara dos Deputados compete o governo aos diversos departamentos e repartições assim como às províncias e câmaras municipais a administração pública No Brasil imperial a distinção entre essas três funções seria tema de importantes discussões onde ficou conhecida a célebre máxima do visconde de Itaboraí o rei reina governa e administra7 Nessa definição o monarca era pensado como chefe de Estado chefe de governo e chefe da administração que estenderia seu controle ao das províncias e das câmaras municipais A extensão dos poderes irresponsáveis do imperador de modo a abranger essas esferas que eram fonte histórica da soberania popular foi defendida num tratado de outro conservador o visconde do Uruguai que assim definiu o poder de administrar do monarca em relação aos cidadãos súditos Aplica as leis de ordem administrativa por meio de um complexo de agentes de ordens diferentes disseminados por diversas circunscrições territoriais Aplica o interesse geral a casos especiais pondose em contato com o cidadão individualmente e vêse muitas vezes na necessidade de sacrificar o interesse particular deste ou mesmo o seu direito ao interesse social8 Por essa definição os funcionários e havia muitos funcionários não eleitos se tornavam agentes do Poder Moderador tão cumpridores das ordens de um monarca irresponsável quanto os ministros deste Mais ainda no cumprimento dessas ordens poderiam passar por cima dos interesses particulares e dos direitos dos súditos Assim o teórico conservador reduzia a quase nada os interesses e direitos da soberania popular O princípio iluminista da igualdade perante a lei era ignorado e o soberano irresponsável tinha seus poderes elevados à proximidade da totalidade No entanto para o visconde tal intervenção se justificava por seu caráter civilizatório É certo que o poder central administra melhor as localidades quando estas são ignorantes e semibárbaras e aquele ilustrado quando aquele é ativo e estas inertes e quando estas mesmas localidades se acham divididas por paixões e parcialidades odientas que tornam impossível uma administração regular Então a ação do poder central que está mais alto e mais longe que tem mais pejo e é mais imparcial oferece mais garantias9 A duplicidade constitucional de soberanias ganhava assim um caráter hierárquico na concepção do visconde Mas as interpretações foram além recuperando uma antiga tradição portuguesa No Brasil nunca existiram nobres com direitos jurisdicionais sobre terras e pessoas tampouco o direito da primogenitura Também não havia clero com tais direitos Enfim não existiam as bases reais da teoria de governo do Antigo Regime Todavia os argumentos nesse sentido proliferaram a partir das definições interessadas dos amigos do imperador como indicaria Oliveira Torres no século XX O conceito central em que se fundava o regime imperial era o seguinte a soberania a plenitude dos direitos políticos residia na Nação brasileira uma realidade composta do povo e do Estado o imperador A soberania não residia nem no Estado nem no povo mas na união dos dois No Brasil a função de servir o bem comum como ocupação particular estava a cargo do imperador auxiliado por seus funcionários O Estado no Brasil realizavase num grande corpo cuja cabeça era o imperador10 A aplicação da metáfora corporativa original do século XVI ao caso do país independente na era capitalista permitia recuperar certas glórias para o Poder Moderador O Estado no Brasil realizavase num grande corpo cuja cabeça era o imperador seu chefe hereditário e presidente perpétuo dessa associação política dos cidadãos que constituía o Império Esta ideia central da teoria do Estado Imperial estava expressa na Constituição do seguinte modo Os representantes da Nação Brasileira são o imperador e a Assembleia Geral O imperador como chefe e símbolo do Estado representava a vontade coletiva os membros da Assembleia representavam o povo os interesses divergentes particulares11 A superioridade da cabeça seria total Não haveria perigo de conflito entre essas vontades parcialmente soberanas de cuja fusão nascia a soberania nacional Houve não há dúvida casos de choque mas estes nasceram do desconhecimento de suas atribuições próprias por uma dessas vontades Todos eram representantes da soberania nacional Mas perante quem eram representantes O imperador perante o mundo perante o passado e o futuro Ainda perante o povo representava a força do Estado e da lei representava em resumo os interesses coletivos e permanentes da pátria Os deputados e senadores representavam o povo perante o imperador para que este na sua vontade permanente de conservar a nação não ferisse os interesses populares12 Para explicar a virtude da dupla soberania do Brasil imperial por meio da metáfora corporativista era preciso hierarquizar aquilo que aparecia como duplicidade na lei Rebaixados a representantes do povo perante o imperador os eleitos pela soberania popular ganhavam papel infinitamente mais modesto do que o concebido por Rousseau O argumento concentra exclusivamente na cabeça coroada outra capacidade da totalidade dúplice da nação a função de servir o bem comum que seria realizada apenas pelo imperador e seus funcionários Com isso não só o soberano mas todas as instâncias do governo central são retirados da esfera nacional e incluídos na esfera imperial Esse rebaixamento foi detalhado pelo jurista Braz Florentino Ele não remontou as justificativas até o corporativismo mas voltou bem mais no tempo até a fonte da desigualdade como princípio fundador da vida social na Antiguidade Relativamente ao Poder Moderador não é possível deixar de admitir conforme a expressão de um publicista Aristóteles a ideia natural vulgar e quase inata de que O rei é senhor e o ministro servo que um é feito para mandar e outro para obedecer13 Sem dúvida cabe ao jurista a posição de defensor mais radical da excelência do Poder Moderador inscrito na Constituição Em sua concepção a Constituição sendo monárquica não deixaria nenhum espaço para a soberania popular nem no Estado nem na representação do interesse nacional conforme estava na letra da lei O belo o sublime da forma monárquica consiste na persuasão geral de que não só se tem provido a duração e a segurança do Estado pois que o primeiro posto opõe uma barreira insuperável às paixões individuais mas também que há no Estado uma vontade que se pode sempre aceitar como pura porque identificase e deve necessariamente identificarse com o interesse nacional14 Desse modo as duas soberanias separadas representariam também valores morais opostos Uma representaria o bem e as virtudes outra os malefícios e os vícios Está escrito e ninguém o poderá apagar todo o Império dividido há de perecer e o parlamentarismo divide os ânimos e os inquieta põe em dispersão todas as hierarquias divide a sociedade em cem partidos e não contente com a divisão natural do poder já estabelecida quer ainda levar essa divisão ao seio do poder centralizador e unívoco o poder real ou Moderador o parlamentarismo que é a divisão no todo e em todas as partes nas altas regiões nas regiões médias e nas regiões baixas no poder na sociedade e no homem não pode subtrairse nem se subtrairá jamais ao império dessa lei inexoravelmente soberana15 Assim a mudança que o imperador introduziu no comando da administração e nas justificativas de seu poder ampliado acabou levando a interpretações nas quais as condições econômicas do capitalismo eram vistas como um jogo a ser barrado e a existência da soberania popular um perigo a ser conjurado O êxito nessas duas missões seria a grande virtude da organização constitucional brasileira segundo os defensores da ideia Mas nem todos viam o Poder Moderador como instrumento tão eficaz O próprio visconde do Uruguai embora fosse conservador e notasse a identidade entre a instituição constitucional e as suas ideias não deixava de reconhecer naquela um limite O Poder Moderador pela natureza e alcance de suas atribuições separadas do Executivo não pode ser invasor não pode usurpar Pode embaraçar o movimento não o pode por si só empreender e levar a efeito O mais que pode é efetuar a conservação do que está por algum tempo É poder não de movimento mas essencialmente conservador E o realismo do visconde se comprovou pois viria a hora em que o movimento não pôde mais ser detido nem mesmo pelo Poder Moderador CAPÍTULO 33 Republicanos ENQUANTO O BRASIL SE ORGANIZAVA COM O INTUITO DE CONSERVAR O STATUS QUO adiar o fim da escravidão e preservar a natural desigualdade entre os homens os Estados Unidos viramse diante do esgotamento das possibilidades de evitar o mesmo conflito e de escamoteálo por meio do seu enquadramento num espaço aquém da lei racional e válida para todos num espaço ordenado pelos costumes A forma federativa ampla com grande latitude dos poderes locais permitiu um primeiro arranjo adaptativo alguns estados proibiram a escravidão enquanto outros legalizaram os títulos de propriedade sobre seres humanos A promulgação da Constituição uma década depois da Independência norte americana foi basicamente uma troca Os estados do Norte queriam recursos para financiar um governo central capaz de defender seus interesses comerciais no Caribe Pagaram seu preço Não só aceitaram que novos estados pudessem ter constituições protetoras do escravismo como admitiram o reconhecimento constitucional implícito dos escravos nos estados do Sul pelo mecanismo de incluílos na população para efeito do cálculo do número de deputados A expectativa dos estados do Norte estava no crescimento de sua economia e na estagnação do escravagismo Nas décadas seguintes tal expectativa acabou frustrada pois não só a vida política foi dominada por políticos do Sul como a economia escravista se revelou capaz de se expandir para oeste Na década de 1850 contudo os mecanismos de acomodação começaram a falhar e o primeiro conflito eclodiu por ocasião da transformação em estado do território do Kansas Em 1854 a Suprema Corte determinou que ali poderia haver escravidão Dois anos depois os abolicionistas venceram um plesbicito estadual e proibiram a instituição A violência entre as partes aumentou Enquanto isso os escravagistas faziam contas com a proibição a oeste seriam minoria permanente no Congresso Então sete estados do Sul se declararam fora da federação americana e formaram uma confederação Da secessão para a guerra civil foi um passo E com a guerra vieram os dispositivos legais que promoveriam a maior coincidência entre as ideias iluministas e os costumes todos na direção oposta à das leis conservadoras brasileiras Em 1861 foi promulgado o Homestead Act uma lei pela qual o governo prometia legalizar a propriedade de qualquer posse com menos de 160 hectares em cinco anos enquanto no Brasil a Lei de Terras de 1850 simplesmente anulava o instituto da posse e a imensa maioria dos agricultores do país eram posseiros e criava instrumentos para ratificar legalmente grandes propriedades como parte da política de proteção aos interesses conservadores Ao longo da guerra civil americana o governo da União passou a oferecer cada vez mais a promessa de liberdade para escravos que lutassem em suas fileiras ou abandonassem o território confederado Assim conseguiu atrair nada menos de 120 mil homens para seu exército E a perspectiva de vitória tornou claro que seria possível dar o passo decisivo e sempre temido No dia 31 de janeiro de 1865 o Congresso norteamericano afinal aprovou uma lei tornando ilegal a escravidão em todo o país Três meses depois as últimas tropas confederadas se renderam e uma semana depois o presidente que havia ganho a guerra e forçado a aprovação da abolição Abraham Lincoln foi assassinado Ao todo foram 600 mil mortes até se chegar a uma sociedade na qual era ilegal a posse de escravos Mas nem mesmo esse imenso custo foi capaz de fazer retroagir a acumulação de capital ao contrário do que ocorrera no Haiti após a revolta dos escravos ou no Pará após a Cabanagem A produção capitalista tinha ímpeto suficiente para se expandir sobre os destroços do Sul que fora escravista Enquanto isso o Brasil vivia outra espécie de crise A combinação de restrições a empresas e contenção monetária foi sufocando o otimismo que surgira com o fim do tráfico A necessidade de mudanças alimentou a oposição liberal e matou a política de Conciliação o visconde de Uruguai tinha razão quanto à total incapacidade de empreender e levar a efeito do conservadorismo implícito no Poder Moderador Em 1864 os liberais se firmaram no poder com uma maioria sólida E logo tiveram de lidar com duas crises gigantescas a falência do Banco Souto o preferido dos nobres e do imperador e a invasão pelo Paraguai Para enfrentar ambas foi preciso contrariar os princípios conservadores No campo econômico o ideal monetário de conter as emissões não poderia conviver com as necessidades de financiamento da guerra Foi preciso emitir e boa parte das emissões acabou sendo gasta em São Paulo onde o governo comprava tropas de mulas e produtos para enviar à zona conflagrada no Mato Grosso Um dos indicados pelos liberais para a presidência da província de São Paulo foi Saldanha Marinho que se juntou a empresários enriquecidos pela venda de produtos para a guerra para contrariar outro ideal conservador o da contenção das empresas E fez algo inusitado entre os presidentes de província da época deu todo o apoio pessoal e institucional para que se formassem sociedades anônimas voltadas para a construção de ferrovias Ao garantir o enquadramento legal para tais investimentos surgiram nada menos que 20 mil contos de poupança antes obrigados a circular na informalidade O dinheiro permitiu capitalizar ao mesmo tempo cinco empresas ferroviárias cujo capital equivalia a 11 vezes o orçamento da província ou ao valor de toda a produção cafeeira paulista naquele ano Na época as ferrovias eram empreendimentos baseados em tecnologia de ponta alta capitalização mão de obra assalariada intensiva e em financiamentos volumosos Tudo o que o Brasil parecia não ter Mas na realidade tinha o que se comprovava agora com a eliminação dos empecilhos legais Nenhum daqueles requisitos prejudicou o avanço das empresas numa região em que até a véspera a economia parecia dormente Além de abrir brechas para o avanço da economia formal o desenrolar da guerra começou a exigir mudanças em questões fundamentais Embora em grau bem menor do que nos Estados Unidos a criação de um exército para decidir o conflito implicou a libertação de cativos e a formação de tropas mistas A pressão de baixo acabou provocando um estalo no alto À frente do gabinete liberal que conduzia a guerra estava Zacarias de Góis e Vasconcelos que também era debatedor da filosofia do direito brasileiro o título de sua obra mais conhecida dizia muito a respeito do modo como via as coisas Da natureza e dos limites do Poder Moderador Para ele o fato de o ministério ser responsável era uma barreira para uma série de decisões imperiais Como parte administrativa dessas crenças Zacarias de Góis comandava a política de guerra relegando o principal líder militar conservador o marquês de Caxias a uma posição consultiva Por um tempo o imperador se conteve mas não aguentou e acabou convidando o seu soldado preferido para o comando das tropas Caxias respondeu que só aceitaria se os conservadores comandassem o ministério D Pedro II depôs Zacarias abrindo uma crise política em plena guerra Então um cristal quebrou No dia seguinte à posse do ministério conservador o senador liberal José Tomás Nabuco de Araújo o mesmo que um dia tornara pública a política da conciliação fez um discurso Dessa vez ao invés de falar sobre junção começou pela disjunção Sou chamado à tribuna por um motivo que em minha consciência é muito imperioso Esse motivo senhores é que tenho apreensão de um governo absoluto Não de um governo absoluto de direito porque isso não é possível nesse país que está na América mas governo absoluto de fato1 Referirse ao governo imperial como absoluto era para um senador com posto no Conselho de Estado uma questão complicada Além de representante eleito Nabuco também era membro de um órgão assessor do Poder Moderador Sabia que estava escolhendo entre dois senhores Por isso teve de explicitar a sua posição Peço aos nobres ministros da Coroa que se porventura julgarem inconveniência no que digo em relação à posição que ocupo no Conselho da Coroa eu lhes peço a exoneração do cargo de conselheiro do Estado Porque senhores eu prefiro a tudo a missão que eu recebi de meus concidadãos de acompanhar a opinião que me elegeu e me colocou neste lugar2 A opção de abandonar a Coroa em decorrência de um conflito de interesses e escolher o poder derivado do voto como o maior dos bens era então uma atitude quase inconcebível toda a recente literatura conservadora definia tal atitude como adesão a interesses menores Mas Nabuco voltou as costas para o alto Quero fazer um protesto não sobre a legalidade do ministério atual porque em verdade a Coroa tem o direito de nomear livremente seus ministros mas sobre a legitimidade E vós concebeis a diferença que há entre legalidade e legitimidade A escravidão entre nós é um fato autorizado por lei é um fato legal mas ninguém dirá que é um fato legítimo porque é um fato condenado pela lei divina é um fato condenado pelo mundo inteiro3 E continuou seu argumentação associando legitimidade à maioria no Parlamento Havia no Parlamento uma maioria tão legítima e tão legal como tem sido todas as maiorias que hão de vir enquanto não tivermos liberdade de eleição4 O Brasil só teria uma pessoa com liberdade de escolha O Poder Moderador não tem o direito de despachar ministros como despacha empregados e delegados de polícia Senhores senadores vós não podeis levar a tanto a atribuição que a Constituição confere à Coroa de nomear livremente seus ministros Não podeis ir até ao ponto de querer que nessa faculdade se envolva o direito de fazer política sem a intervenção nacional o direito de substituir situações como lhe aprouver Não é isso uma farsa Não é isso o verdadeiro absolutismo no estado em que se acham as eleições em nosso país5 Veio então a definição que ficou famosa Vede este sorites fatal este sorites que acaba com o sistema representativo o Poder Moderador pode chamar quem quiser para organizar o ministério essa pessoa faz a eleição porque há de fazê la esta eleição faz a maioria Eis aí o sistema representativo de nosso país6 O termo sorites é tanto a palavra grega para monte como o nome de um paradoxo lógico muito antigo da filosofia présocrática embutido na pergunta Em que momento um monte de areia deixa de sêlo quando se vão removendo os grãos Nas contas de Nabuco a remoção de Zacarias de Góis removera também de modo fatal a legitimidade das instituições brasileiras do sistema com duas soberanias e assim ultrapassara o limite em que o monte deixava de sêlo Claro que o discurso não produziu efeitos suficientes para evitar o mal anunciado Pelo contrário aconteceu exatamente o que o senador temia O ministério era o Poder Executivo que na época não era ocupado por pessoas eleitas para os cargos mas indicadas pelo imperador Tomando posse os ministros indicaram novos presidentes de província Estes por sua vez mandaram embora todos os funcionários indicados pelo ministério anterior Os novos indicados controlaram o processo eleitoral Como sempre fora desde a posse do imperador O resultado prático disso tudo foi resumido por George Boherer É difícil saber até que ponto se usou fraude e pressão para determinar os resultados da eleição Contudo é certo que nenhum ministério jamais perdeu uma eleição mesmo quando os membros do Parlamento anterior eram pronunciadamente oposicionistas como se deu em 1868 Antes dessas eleições os liberais controlavam quase unanimemente a Câmara dos Deputados Depois das eleições a Câmara tornouse quase totalmente conservadora7 Essa era a verdade apontada por Nabuco de Araújo a vontade do eleitor não contava para nada O que de fato importava para o resultado de uma eleição era o fato de o Executivo ser entregue a um partido o qual punha em movimento uma máquina eleitoral controlada a partir do Poder Moderador que assegurava votos suficientes para uma maioria parlamentar A liberdade de eleição o papel do eleitor era na verdade irrisório quando a operação vinha de cima para baixo A crítica calou fundo porque invertia a argumentação conservadora da década anterior colocava toda a legitimidade na soberania do eleitor e toda arbitrariedade e paixão no Poder Moderador Mais ainda anunciava um conflito insolúvel entre a opinião nacional a vontade do eleitor e a instituição que permitia ao monarca governar sem levar em conta essa vontade Muita gente começou a pensar no imperador de outro modo em vez da figura que juntava areia no monte da nação poderia ser aquela que espalhava a areia juntada pelos esforços de todos os cidadãos o chefe de um governo que tentando controlar tudo atrapalhava em vez de construir O fim da guerra em vez de afastar a pergunta incômoda trouxe uma resposta ainda mais incômoda Depois de um ano de intensos debates públicos no Rio de Janeiro um grupo de pessoas chegou à conclusão que não havia mais sentido no sistema de poder definido na Constituição Para elas a única solução estava no fim do maior responsável pela tutela de pessoas e negócios o Poder Moderador o que equivalia pura e simplesmente a acabar com a monarquia As razões para tanto vinham detalhadas em um manifesto O poder intruso que se constitui chave do sistema regulador dos outros poderes ponderador do equilíbrio constitucional avocou a si e concentrou em suas mãos toda a ação toda a preponderância Temos representação nacional Não há nem pode haver eleição livre onde a vontade do cidadão e sua liberdade individual estão dependentes dos agentes imediatos do poder que dispõe da força pública Militarizada a nação arregimentada ela no funcionalismo dependente é ilusória a soberania que só pode revelarse sob a condição de ir sempre de acordo com a vontade do poder Um poder soberano privativo perpétuo e irresponsável forma a seu nuto o Poder Executivo escolhendo os ministros o Poder Legislativo escolhendo os senadores e designando os deputados e o Poder Judiciário nomeando os magistrados Deste modo qual é a delegação nacional Que poder a representa Como pode ser a lei representação da vontade do povo Como podem coexistir com o poder absoluto que tudo domina os poderes independentes de que fala a carta8 Só havia uma saída a remoção de uma das partes Atar ao carro do Estado dois locomotores que se dirigem para sentidos opostos é procurar a imobilidade se as duas forças são iguais ou a destruição de uma delas se a outra lhe é superior Para que um governo seja representativo todos os poderes devem ser delegação da nação e não podendo haver um direito contra outro direito a monarquia temperada é uma ficção sem realidade A soberania nacional só pode existir só pode ser reconhecida e praticada em uma nação em que o Parlamento seja eleito pela participação de todos os cidadãos e tenha a suprema direção e pronuncie a última palavras nos negócios públicos Outra condição essencial da soberania nacional é ser inalienável e não poder delegar mais que o seu exercício Dessa verdade resulta que quando o povo cede uma parte de sua soberania não constitui um senhor mas um servidor Em consequência o funcionário tem que ser revocável móvel e eletivo9 O Manifesto do Partido Republicano apontava como solução básica para os problemas brasileiros a eliminação de um dos dois sóis do sistema constitucional aquele do poder irresponsável do monarca da figura que manda de cima e não pode ser responsabilizada Ou seja pregava a extinção da monarquia A primeira das 59 assinaturas no texto era a de Joaquim Saldanha Marinho expresidente da província de São Paulo Ele sabia o que estava fazendo Ao firmar o manifesto declarava que o governo imperial não só devia ser considerado ilegítimo ao modo de liberais monarquistas como Nabuco mas também ilegal usurpador de um poder que pertencia aos cidadãos O programa do Partido Republicano teria sempre um esteio central a ideia iluminista da existência de um único soberano o povo Um partido que tinha esse ponto como base do programa jamais podia esperar ser um dia convocado pelo detentor irresponsável do Poder Moderador para ocupar o ministério que garantia a vitória nas eleições em seu nome Por isso cada assinatura no manifesto implicava uma renúncia ao exercício de poder no regime monárquico Era uma opção por fazer política apenas na sociedade fora da vasta área de domínio da autoridade real contra o governo Rompida a unanimidade em torno da Constituição começava o declínio do império CAPÍTULO 34 Ocaso APESAR DE TODAS AS CRÍTICAS CONSERVADORAS À SOBERANIA POPULAR E APESAR DA imagem negativa de seu papel na representação nacional e na política as estruturas de eleição e representação eleitoral no Brasil mantiveram a sua força original As eleições locais continuaram ocorrendo com regularidade e o mesmo passou a se dar com as eleições dos deputados provinciais e nacionais O quadro geral desse sistema eleitoral era atualizado mesmo com relação às democracias do Ocidente sobretudo no que se refere à grande questão da época como organizar um sistema de poder representativo transformar os cidadãos em eleitores e fazer o sistema funcionar Um estudioso da questão o historiador italiano Raffaele Romanelli descreve sucintamente o problema e seus paradigmas de análise O principal objetivo no estabelecimento de uma representação nacional era o de organizar o país pacificamente como um todo sob as mesmas regras com o poder sujeito ao controle da opinião pública e as lutas políticas reguladas por um conjunto de normas universais Embora conectadas com práticas eleitorais mais antigas essa nova forma de representação permitiu a emergência de uma sociedade de mercado e da opinião pública como no caso das mudanças que tiveram lugar na Inglaterra durante os séculos XVII e XVIII ou por outro lado estiveram associadas ao desenvolvimento do Estado moderno na passagem do absolutismo para a Revolução francesa1 Nesse sentido o Brasil havia dado bons passos iniciais pois contava com o substancial legado de formas mais antigas as eleições locais no momento em que virou nação independente Elas permitiram a consolidação de um Parlamento com poder constante de legislar e uma noção de opinião pública As eleições regulares fizeram o resto apenas a Inglaterra e os Estados Unidos elegiam legisladores há mais tempo do que o Brasil Mesmo a França o paradigma predileto dos teóricos brasileiros não conheceu o funcionamento contínuo de um Parlamento com monopólio de legislar senão em 1875 ao se tornar república A opção brasileira seguiu o caso inglês com a incrustação do sistema representativo numa monarquia Essa foi a regra em toda a Europa nos primeiros três quartos do século XIX mas não produziu êxitos duradouros Com exceção da Inglaterra em todos os demais países do continente aconteceu o mesmo que no Brasil um convívio conflituoso entre um poder monárquico arbitrário e sempre adversário do poder soberano dos eleitores e o Parlamento Nesse conflito na melhor das hipóteses havia alternância de predomínio Nos momentos ruins o Parlamento era fechado nos surtos revolucionários os reis eram derrubados Essa foi a realidade da França mas também da Alemanha Holanda Suécia Itália Espanha e Portugal entre outros Nesse contexto os conflitos brasileiros podem ser tidos como moderados e isso sobretudo porque o Parlamento não demorou para se impor O outro modelo disponível era o republicano No caso europeu esse regime inspiravase nos breves momentos em que até então fora adotado na França Mas na verdade a única república regular do Ocidente no século XIX era a dos Estados Unidos onde os eleitores efetivamente escolhiam com regularidade o chefe do Executivo Não foi apenas na elaboração de regras gerais que o Brasil teve uma experiência histórica positiva As regras nacionais estáveis são uma condição necessária mas não suficiente para o governo de representantes Também cabe levar em conta importantes aspectos internos do processo relacionados aos instrumentos legais para transformar os súditos da era medieval em cidadãos com o poder efetivo de eleger representantes As fórmulas para compatibilizar a regra geral da soberania popular com a realidade generalizada do arbítrio foram mais ou menos as mesmas em todo o Ocidente definir franquias por meio de leis regulamentadoras do direito universal previsto na Constituição Essas franquias limitavam o número dos incluídos no direito Assim por exemplo todas as leis nacionais do século XIX permitiam o exercício do voto apenas para os homens e nunca para as mulheres o que já excluía metade dos seres criados livres As franquias tinham diversas origens legais Constituição legislação civil costume controle do Poder Executivo normas especiais deste emprego de agentes públicos com funções partidárias Essa pletora de possibilidades torna mais difícil a comparação com o modelo geral uma vez que cada país adotava uma fórmula para distribuir as franquias pelas diversas instâncias de governo As definições de quem era eleitor e elegível nos Estados Unidos não estavam na Constituição mas nem por isso os governos locais deixavam de impôlas Além dos escravos não podiam votar os negros livres apenas em 1860 cinco estados pioneiros permitiram esse voto e os imigrantes asiáticos2 Além dessas limitações gerais havia outras específicas em cada estado norte americano o que torna difícil os cálculos dos eleitores em relação à população geral Mas nos poucos casos onde estes existem é evidente a limitação do eleitorado nas eleições para governador da Virgínia em 1851 votaram 112 dos habitantes3 Além disso tal como no Brasil os atos de votar e contar votos não eram caracterizados pela lisura Também os governos norteamericanos trabalhavam ativamente em prol do partido no poder empregando métodos duros assim descritos por Tracy Campbell ao analisar a década anterior a 1876 Foi uma década de culminância de eleições corruptas onde os dois partidos viam o outro como deliberadamente fraudando os resultados Contagens honestas dos resultados não passavam pela cabeça de ninguém4 A própria maneira de criar franquias no Brasil oferecia certas vantagens insuspeitas para a época Embora excluíssem os escravos as franquias brasileiras incluíam índios e negros livres tornando menos rígido o enquadramento racial Um exemplo simbólico desse abrandamento enquanto no Brasil o primeiro deputado negro Antônio Rebouças foi eleito já em 1829 na Bahia os primeiros negros livres norteamericanos somente começariam a votar três décadas depois E nas monarquias da Europa havia muitas limitações semelhantes às brasileiras voto censitário voto qualificado proibição de voto para analfabetos e outras regras restritivas Graças a métodos estatísticos tornouse possível comparar o número de eleitores e sua relação com o total da população para vários países em meados do século XIX Com base nos dados do Censo de 1872 Letícia Bicalho mostra que no Brasil eram 1097 milhão ou 13 da população livre brasileira naquele momento5 Na eleição espanhola de 1865 apenas 26 da população votaram6 Em Portugal no ano de 1878 os eleitores eram 18 da população7 Em 1873 na Áustria votaram apenas 6 da população8 Em 1872 na Suécia a proporção de votantes era de 53 da população urbana e 57 da rural9 Na Holanda até 1870 os eleitores eram 10 da população total10 Na Inglaterra o percentual de eleitores depois da reforma de 1832 era de aproximadamente 20 da população mas na Escócia era de 1211 Para relembrar nas eleições para governador da Virgínia em 1851 votaram 112 dos habitantes Até 1879 portanto o Brasil tinha uma tradição de três séculos e meio de governo local representativo um mecanismo institucional nacional que permitia a eleição de representantes provinciais e nacionais um quadro estável de regras para as disputas políticas e um conjunto de franquias que não destoava do padrão mais avançado do mundo ocidental Mas tal padrão logo se alterou em decorrência da aprovação de normas gerais que se sobrepunham às definições particulares das franquias Em 1870 na esteira da Guerra de Secessão e da abolição da escravatura o Congresso norteamericano aprovou a 15a emenda constitucional que proibia o uso da cor da pele e da condição de escravo como critério para qualificação de eleitores Na Europa uma sequência de mudanças ocorreu na mesma direção Na Alemanha e na Itália deuse o mesmo em consequência dos processos de unificação nacional na França em 1875 com a implantação do regime republicano Em pouco tempo o sufrágio universal masculino se tornou norma Em sentido inverso os ajustes possibilitados pelas franquias acabaram deslocados para espaços secundários sem que isso significasse o seu desaparecimento No Sul escravista dos Estados Unidos por exemplo ainda que proibidas constitucionalmente de recorrer a critérios raciais de qualificação eleitoral as autoridades introduziram outros em especial o da alfabetização para alcançar o mesmo efeito como mostra Arnaldo Testi Nos antigos estados confederados os brancos do Sul retiveram o controle das legislaturas locais introduziram taxas altas de inscrição testes de leitura e outras cláusulas restritivas No Mississsippi ficou famosa a cláusula do entendimento pela qual a qualificação como eleitor dependia de serem capazes de ler e entender partes da constituição estadual12 O mesmo recurso às franquias para evitar a aplicação dos preceitos constitucionais aconteceu de forma variada em todos os países europeus Autoridades municipais incluíam nomes de candidatos aliados e retiravam os de adversários na França na Itália e na Espanha quase um terço dos deputados eleitos tinha seus mandatos contestados através de ações judiciais detentores de prerrogativas como as do voto qualificado encontravam maneiras de manter seus privilégios Seja como for a imposição normativa do sufrágio universal estava feita A partir da década de 1870 a proporção dos eleitores no total da população subiu em todas as democracias ocidentais aproximandose dos 30 da população total perto do máximo possível pela regra que deixava de fora as mulheres e os menores Justamente nesse momento no Brasil começavam as contestações republicanas ao Poder Moderador cuja reação seguiu a praxe Em 1879 houve troca de ministério Cansansão do Sinimbu o novo comandante do gabinete assim explicou a sua nomeação Sua Majestade tendo reconhecido a oportunidade de se fazer a reforma eleitoral direta não vê nisso uma questão de partido mas de interesse nacional13 Aparentemente tratavase de uma proposta para aperfeiçoar o modo de votar Em vez das eleições de delegados das vilas para posterior escolha dos parlamentares numa reunião na capital da província num processo indireto pelo qual até hoje se elege o presidente dos Estados Unidos num colégio eleitoral seria introduzido o pleito num único dia e a escolha dos candidatos com maior número de votos Mas o que de fato interessava ao monarca aflorou nos detalhes da regulamentação da lei Pela regra anterior as vilas cuidavam de tudo na primeira rodada eleitoral reconheciam os eleitores organizavam a votação apuravam o resultado e diplomavam os delegados escolhidos Eram portanto franquias locais Pela nova regra essas franquias foram retiradas da instância local e repassadas aos funcionários do Poder Moderador Primeiro foi a qualificação eleitoral A Constituição trazia poucas limitações para o direito de votar a maior delas era uma renda mínima Como não havia definições legais de como se comprovaria tal renda valia a tradição os juízes das vilas que eram eleitos e membros da Câmara eram os responsáveis pela comprovação de renda Como dependiam de eleitores para se eleger faziam vista grossa na hora de avaliar os rendimentos Já a nova lei trazia uma lista nacional e centralizada de exigências todos que quisessem ser eleitores deveriam apresentar certidão passada pela respectiva repartição fiscal14 como parte de vasta documentação que deveria constar de um processo pelo qual seu direito seria reconhecido A instrução do processo se fazia ainda nas vilas sob supervisão dos juízes locais eleitos Então vinha o pulo do gato O parágrafo 7o do artigo 6o do decreto 3029 de 1881 determinava que os juízes municipais enviarão aos juízes de direito das comarcas todos os requerimentos recebidos de eleitores e respectivos documentos15 Já o 9o parágrafo dispunha que os juízes de direito da comarca julgarão provado ou não o direito de cada cidadão de ser reconhecido como eleitor16 Uma vez que os juízes de comarca agora detentores do poder para decidir qual cidadão teria ou não o direito de votar eram funcionários subordinados ao Poder Moderador mesmo estando alocados nos governos provinciais eram nomeados pelo governo central e estavam sujeitos ao presidente de província delegado do Poder Moderador eles tinham muito mais interesse na própria carreira dependente de nomeações partidárias do que em reconhecer direitos de eleitores A subordinação do direito constitucional às normas dos funcionários do governo central adquiria aspectos caricatos O decreto 7981 de 29 de janeiro de 1881 definia que são eleitores todos os cidadãos brasileiros que se acharem no gozo dos direitos políticos e provarem as condições exigidas para seu direito de votar17 Cabia ao eleitor o ônus da prova e ao funcionário o poder de negar esse direito por qualquer motivo formal As barreiras burocráticas se tornavam especialmente duras para os analfabetos que podiam votar de acordo com a Constituição No entanto para exercer tal direito agora precisavam requerer certidões depois passar pelo seguinte constrangimento Nenhum cidadão será incluído no registro de eleitores sem o ter requerido por escrito e com assinatura ou de seu especial procurador provando que tem o seu direito com os documentos exigidos nesta lei18 Os aprovados receberiam o título de eleitor num ritual assim determinado Os títulos serão entregues aos próprios eleitores os quais os assinarão na margem perante o juiz municipal e o juiz de direito e em livro especial passarão recibo com a sua assinatura sendo admitido assinar pelo eleitor que não souber ler nem escrever outro por ele indicado19 Mas essa possibilidade da assinatura de um terceiro era apenas provisória Segundo a lei a partir do ano seguinte somente seriam alistados eleitores que requererem e provarem as qualidades de eleitor de conformidade com essa lei e souberem ler e escrever20 Assim contra a Constituição mas em benefício do Poder Moderador o eleitorado foi reduzido a um décimo do que era antes nas primeiras eleições com as novas regras os eleitores eram apenas 15 da população Não apenas a economia regrediu no Império também a política foi empurrada na contramão do tempo para tentar brecar Iluminismo e capitalismo E nem assim o Poder Moderador conseguiu evitar sua derrocada CAPÍTULO 35 Fim O BRASIL ENTROU NA DÉCADA DE 1880 COM A ECONOMIA TRAVADA DEVIDO À contenção do crédito decorrente da política do governo com as grandes dificuldades institucionais para a formação de empresas e com toda a vida política efetivamente encalacrada em torno do controle dos funcionários do Poder Moderador sobre os pleitos Mas os interesses de cima refletiam cada vez menos o andamento do país Com o governo nacional atendendo apenas a interesses cada vez mais restritos a sociedade reagiu a seu modo histórico O progresso efetivo continuava a se fazer na informalidade no âmbito secular das relações pessoais O mercado se fazia nas casas pelo fiado pelas relações de confiança pela liquidação de negócios sem moeda porque as leis serviam apenas para umas poucas transações econômicas em um círculo restrito A civilidade política dependia do convívio tolerante entre pessoas dos costumes que sustentavam além das trocas econômicas os intercâmbios sociais e afetivos entre pessoas diferentes festas para socializar misturas étnicas e sincretismos religiosos Nesse ambiente o nó da escravidão acabou sendo desatado basicamente à margem do circuito decisório oficial Na década de 1880 o movimento abolicionista pipocou por todo o país impulsionado quase exclusivamente pela sociedade No Ceará já em 1884 decretouse uma abolição No Rio de Janeiro figuras importantes como Joaquim Nabuco André Rebouças e José do Patrocínio comandavam a pregação com o apoio nem sempre velado da princesa Isabel Em São Paulo Luiz Gama comandou a formação de uma imensa rede abolicionista informal cuja amplitude pôde ser medida no dia do seu enterro quando 3 mil pessoas pararam a cidade em torno do féretro No fechamento do caixão um dos que juraram continuar a luta tinha um perfil aparentemente estranho à causa um exdelegado de polícia perseguidor de cativos católico tradicional e membro do Partido Conservador Mas Antônio Bento mostrouse pouco convencional ao criar uma organização que chamou de Caifazes Criou uma rede de pontos de apoio que funcionavam tanto em sacristias como em prostíbulos Treinou grupos de negros fugidos e ergueu refúgios nos caminhos percorridos por capitães do mato Promoveu a organização do quilombo do Jabaquara em Santos os atos preparatórios incluíram uma declaração municipal de abolição o que mostra o tamanho do apoio à causa Armou e venceu uma guerra Em 1887 o quilombo contava 10 mil habitantes metade da população da cidade e parte significativa dos 150 mil cativos paulistas contados pouco antes do movimento Quem podia se preparar para a libertação dos escravos o fez empregando os meios disponíveis Os empresários cada vez mais ricos de São Paulo ousaram Em julho de 1886 deixaram de lado o partidarismo para formar uma empresa sem fins lucrativos a Sociedade Promotora da Imigração que reunia liberais visconde do Pinhal conde de Três Rios barão de Sousa Queirós conservadores Elias Pacheco Chaves Antônio Prado Júnior e republicanos Jorge Tibiriçá e Martinho Prado Júnior A entidade tinha como objetivo promover por todos os meios a introdução de imigrantes e sua colocação em toda a província mediante auxílios e subsídios que forem determinados nas leis1 Como providência inicial o seu presidente o republicano Martinho Prado Júnior foi enviado para arregimentar imigrantes italianos E ele viajou à Itália como presidente de uma sociedade civil de empresários Nessa condição de simples cidadão negociou acordos com um governo estrangeiro estabeleceu bases contratou o agenciamento de interessados Na volta para São Paulo no início de 1887 o deputado Martinho Prado Júnior preparou um projeto de lei que transformava todos os acordos e contratos privados por ele negociados como empresário em lei provincial na qual o governo assumiria os acordos e sobretudo a conta a pagar Em suma os empresários reunidos na Sociedade Promotora da Imigração detinham poder suficiente para montar projetos por conta própria e impor esses projetos prontos ao governo As decisões nasciam na sociedade a organização era empresarial Já o Parlamento provincial em vez do papel subordinado ao Poder Moderador previsto na Constituição simplesmente legalizava as decisões mesmo que custassem muito caro As despesas do governo provincial com imigração saltaram de 223 contos em 1886 para 25 mil contos no final de 18872 A multiplicação por onze das despesas deu resultados imediatos Em 1886 havia 368 mil imigrantes na província3 e só no ano seguinte chegaram outros 321 mil4 No ano da Abolição 100 mil imigrantes desembarcaram no país quase o mesmo número de escravos libertados em São Paulo A Lei Áurea transformou no dia 13 de maio de 1888 boa parte das relações sociais do Brasil Do ponto de vista mais relevante na época 750 mil pessoas que até a véspera tinham a situação legal de cativos e não desfrutavam de nenhum direito civil passaram a ser cidadãos dotados de todos os direitos e garantias constitucionais Do ponto de vista econômico 750 mil cativos obrigados a entregar o produto de seu trabalho ao senhor tornaramse donos de sua força de trabalho e dos ganhos gerados por este mas também responsáveis pela obtenção daquilo que necessitavam para viver Do ponto de vista financeiro a lei só atingia um dos lados Os libertos não ganharam um único tostão com a alforria já os senhores se tornaram mais pobres porque tiveram cancelados os títulos de propriedade sobre os escravos perdendo o valor total que esses títulos tinham até a véspera No dia seguinte todos os implicados na mudança começaram a reorganizar a vida segundo a nova realidade legal Eventualmente exercendo o recém adquirido direito de ir e vir os novos cidadãos foram tentar ganhar a vida por conta própria Os exsenhores transformados em donos de bens de produção eventualmente sem trabalhadores precisavam encontrar mão de obra e meios para pagar por um trabalho antes realizado sem uso do dinheiro Simbolicamente a derrocada da escravidão significava mais que uma mudança econômica com ela se afirmava na prática o princípio iluminista da igualdade substantiva de todos os homens como fundamento da lei e da moralidade política e se derrogava do âmbito jurídico a instituição que era figura viva do princípio aristotélico pelo qual a moralidade do governo baseavase no reconhecimento das desigualdades naturais entre senhor e escravo O governo preso aos símbolos do Antigo Regime o mais alto dos quais era o próprio Poder Moderador teve grande dificuldade para lidar com a nova realidade de um mercado de trabalho Como não havia mais possibilidade de obter trabalho à força era preciso dinheiro para comprar o que requeria um volume muito maior de moeda na economia do que o existente no dia anterior à Abolição Um indicador dessa necessidade na região escravagista ligada ao Rio de Janeiro revelouse com as remessas de numerário feitas através das ferrovias Na Leopoldina os envios no primeiro semestre de 1888 quando se dava a comercialização da safra foram de 254 contos no segundo semestre mesmo sem colheitas saltaram para mil contos Na ferrovia de Campos que servia uma zona produtora de açúcar as remessas foram de 34 contos no primeiro semestre e 203 no segundo Na Central do Brasil apenas as remessas da capital saltaram de 509 contos para 38 mil contos de um semestre para outro Na média as remessas cresceram 565 entre um período e outro de 18885 Esse dinheiro começou a trafegar nas ferrovias que percorriam o grande bastião conservador do Império cuja produção cafeeira era drenada para o porto do Rio de Janeiro Além da província fluminense essa área englobava parte do vale do Paraíba paulista e boa porção de Minas Gerais e do Espírito Santo Era ali que se concentravam tanto o escravagismo como a exportação de café do país mesmo uma década depois de inauguradas as ferrovias paulistas no período de 1881 a 1883 o porto carioca escoou 729 do total das exportações de café6 Ainda na safra 188889 a situação não havia mudado as exportações de café pelo porto do Rio de Janeiro foram de 232 mil toneladas7 Mesmo com toda a modernização nos meios de financiamento em São Paulo as exportações pelo porto de Santos totalizaram 153 mil toneladas 40 menos que as da capital do país Além de concentrar escravos e produção de café a região acumulava recursos de todo o país ali carreados pelo governo Afora as poucas exceções de fronteira Rio Grande do Sul e Mato Grosso o então chamado Município Neutro a sede da Corte e do Poder Moderador era um centro de receitas e despesas públicas Do lado da receita havia a Alfândega mais importante do país que cobrava tanto direitos de importação como de exportação Seu movimento foi de 667 mil contos em 1887 Só esse dinheiro era mais que o dobro de toda a arrecadação das províncias brasileiras nesse ano que atingiu 32 mil contos Todavia nem mesmo essa vasta soma cobria as despesas do governo no pequeno território da Corte elas chegaram a 825 mil contos Para pagar a conta era necessário trazer de fora outros 16 mil contos de impostos ou o equivalente aos orçamentos provinciais somados de Rio de Janeiro São Paulo Pernambuco e Minas Gerais os quatro maiores da época No final das contas 625 dos 136 mil contos do orçamento nacional eram gastos no Rio de Janeiro Tal concentração ia além do processo de transformar poupanças em impostos O governo central ainda recolhia parte da poupança nacional restante por meio dos títulos de sua dívida Em março de 1889 o valor total captado através desses títulos em todo o país chegava a 381 mil contos8 dos quais nada menos de 324 mil contos ou 85 do total circulavam no Rio de Janeiro9 Desse modo a capital era o destino da maior parte da poupança nacional em decorrência das ações do governo para captar impostos e emitir títulos de dívida Essa concentração do dinheiro dos impostos e poupanças numa única região tinha uma consequência direta notada por Gustavo Franco O sistema bancário àquela época era bastante concentrado na capital onde estavam localizados cerca de 80 dos depósitos bancários10 Também o mercado de títulos de empresas mais importante do país estava na Corte Em maio de 1888 o valor total do capital das empresas com papéis negociados no Rio de Janeiro era de 410 mil contos quase quatro vezes mais que o do mercado de títulos paulista o segundo do país11 Nesse total os bancos tinham capital de 118 mil contos próximo aos 138 mil contos das ferrovias Tudo isso era a grande obra econômica do Império e o predomínio dos conservadores era a sua expressão política Uma vez que por décadas os destinos das duas partes andaram juntos os fazendeiros de café da região voltaram os olhos para o governo imperial no dia seguinte à Abolição em busca de remédio para seus males Tinham esperanças fundadas até porque o ministério estava em mãos do Partido Conservador De tal modo este estava identificado com a região que os deputados conservadores eram conhecidos como saquaremas os líderes do partido se reuniam na fazenda que um deles o visconde de Itaboraí possuía na cidade fluminense com esse nome Ali se produziu o núcleo do projeto de poder do partido assim definido por Ilmar Mattos Um permanente recomeçar e o eterno desfazer quer no que diz respeito ao monopólio da responsabilidade reivindicado pelo soberano quer no que se refere à transformação do proprietário de escravos e demais monopólios em classe senhorial recomeçar que produzia também um tempo particular o tempo saquarema12 A Abolição pôs fim a esse tempo lento recendendo aos valores do Antigo Regime com ares de eternidade fixados nos poderes monopolistas do soberano refletido na economia pelas transações sem dinheiro permitidas pelo monopólio sobre a produção dos escravos Depois da libertação dos escravos os antigos senhores tornaramse sôfregos tão necessitados de dinheiro como seus antigos escravos ou qualquer mercador E sofreram no novo tempo Mesmo com sua maior base política se acabando com a falta de dinheiro os condutores da política econômica do partido relutaram muito Custavam a acreditar que a necessidade de dinheiro estivesse submetida a algo tão prosaico como oferta e procura Temiam que aumentando a quantidade de papelmoeda em circulação estivessem falsificando a promessa real do valor estável da moeda diminuindo o valor em ouro das notas de papel pela inevitável queda do câmbio que se seguiria e destruindo a sacralidade do poder pessoal do monarca O dilema entre atender às necessidades da sociedade ainda que esta fosse a sociedade qualificada dos antigos senhores e a defesa dos monopólios do rei colocou o ministério exatamente na posição descrita pelo Manifesto Republicano de 1870 como um carro atado a dois locomotores cada qual puxando numa direção O resultado foi a imobilidade com longas e estéreis discussões parlamentares sobre a melhor forma de ajudar os fazendeiros sem prejudicar o compromisso régio com o valor da moeda ou sem romper as cadeias mercantilistas que os acorrentavam ao centro do poder Enquanto isso os fazendeiros penavam economicamente em meio à grandeza pois tinham fazendas gigantescas e cafezais semfim Todavia sem os títulos de propriedade de escravos não conseguiam empréstimos para pagar salários as leis a favor dos proprietários tornavam impossível cobrar empréstimos sobre fazendas de modo que não conseguiam crédito nem mesmo oferecendo toda a propriedade como garantia Com isso os grandes barões do Império foram quebrando um após outro Somente no dia 5 de junho de 1889 mais de um ano após a Abolição o imperador defenestrou o gabinete conservador Dois dias depois os liberais voltavam ao poder com um ministério chefiado pelo visconde de Ouro Preto Desde 1840 quando D Pedro II subira ao trono os saquaremas nunca haviam passado pelo dissabor de serem apeados do poder com maioria parlamentar como havia ocorrido com os liberais em 1841 e 1868 O golpe doeu e a primeira reação foi imediata O programa do gabinete liberal era direto fazer as reformas proposta pelos republicanos criando um Império mais federalista antes que derrubassem o regime Enquanto o visconde de Ouro Preto anunciava seu programa ao Parlamento um deputado muito conservador o padre João Manuel gritou no plenário Viva a República Abaixo a Monarquia Sem um único deputado no Parlamento os republicanos estavam no centro do debate O gabinete liberal queria fazer as reformas que eles propunham e os conservadores estavam indo ainda mais longe defendendo a derrubada do monarca que antes defendiam com unhas e dentes Ao longo de oito décadas de Reino e Império a política conservadora de erguer barreiras às mudanças políticas advindas da soberania popular e às mudanças econômicas em prol do trabalho livre ou favoráveis ao fim da cadeia de créditos mercantilista resultara em uma Nação Mercantilista com uma Constituição de duas soberanias Não havendo mais a escravidão para conservar nem o mercantilismo para sustentar os produtores escravistas o velho hábito de resistir a mudanças deu no que deu uma estagnação total com a elite mais relevante do Império se afogando Nos cálculos dos monarquistas restava ainda a simpatia dos brasileiros por seu monarca ilustrado e assim acenderam as esperanças da Coroa a fim de capitalizar em cima de tal simpatia com um baile para celebrar o brilho da monarquia Seis mil alegres aristocratas sacudiram os quadris na noite de sábado 9 de novembro de 1889 Na mesma noite seis modestos conspiradores foram indicados ministros de um governo que tentaria um golpe republicano Na sextafeira seguinte no dia 15 de novembro nenhum aristocrata apareceu para defender o regime e nenhum brasileiro pobre se incomodou minimamente com a sua derrocada Mas havia sido eliminada a peculiar barreira de duas soberanias que havia isolado o Brasil do progresso capitalista no Ocidente CAPÍTULO 36 Balanço do Império A IMPROVÁVEL FÓRMULA DE JOSÉ BONIFÁCIO JUNTANDO NUM ÚNICO PROJETO DE governo a monarquia do Antigo Regime e as forças iluministas locais acabou funcionando apesar de todas as indicações em contrário A Constituição mescla de projeto de parlamentares com um adendo imperial mantevese em vigência por 65 anos O híbrido sincrético e mestiço suportou tensões extremas desde as desastrosas decisões econômicas tomadas pelo primeiro imperador até as medidas de emergência dos homens da Regência Em meio a tudo o sistema foi se mostrando flexível permitindo acomodações entre os extremos do poder pessoal e do governo democrático Parte desse sucesso se deveu ao fato de que a organização geral das diversas formas e níveis constitucionais de governo foi no geral uma continuidade daquilo que a terra conhecia desde 1500 Havia o governo dos muitos povos indígenas os únicos conhecidos e obedecidos por parcela relevante da população Em 1890 o Censo nacional contou 128 milhão de índios ou 9 da população do país Por impreciso que seja esse número mostra que parte expressiva da população governava a si mesma pelo costume Essa população possivelmente controlava ainda a maior parte do território nacional Em 1890 havia apenas 641 municípios assim as vilas passaram a ser chamadas depois de 1889 no país a maior parte nas proximidades do litoral E em muitos municípios a população conhecia apenas a autoridade de governo de seus representantes eleitos regularmente No Império não aconteceu nenhuma ruptura na tradição das eleições locais nem no governo temporário dos eleitos As províncias instância intermediária de governo acabaram conhecendo uma realidade tão mesclada quanto a das soberanias na Constituição Uma vez que desfrutavam de umas tantas rendas próprias tinham condições de promover alguma atividade administrativa Desde a Regência as províncias contavam com uma assembleia de representantes eleitos que em doses variadas influenciavam os destinos locais Mas o poder de fato era exercido por um delegado do Poder Moderador que em geral permanecia poucos meses no cargo fosse para arrumar uma eleição fosse para arrumar a vida pessoal De qualquer modo a soma das partes era pouco maior que o puro arbítrio dos capitães coloniais Como se viu o governo central acabou sendo efetivamente composto pelos representantes dos dois soberanos o imperador e a Assembleia que tanto se digladiavam como se acertavam O Parlamento não demorou a funcionar conquistou poder e sempre soube achar uma maneira de participar da direção geral do país O ajuste promovido por D Pedro II transformando o ministério no ponto de encontro entre as duas soberanias acabou se mostrando efetivo para uma ação coordenada entre as partes Esse sistema teve capacidade para processar conflitos num ambiente de estabilidade jurídica Essa estabilidade foi maior no que se refere aos compromissos internacionais do país Desde a Regência houve consenso não só no que se referia a sua manutenção como ao estabelecimento de regras formais de atuação entre as duas soberanias Com isso os compromissos foram sempre acertados e honrados sobretudo no que se refere a finanças A política externa não conheceu fissura de nenhuma espécie mesmo no caso das guerras Num século de grande instabilidade na América do Sul a monarquia parlamentar brasileira acabou se constituindo em exceção Num ponto crucial também se registrou um desempenho relativamente positivo o da alfabetização O relativamente neste caso tem mais a ver com o ponto de partida do que com a comparação internacional A taxa de alfabetização passou de estimados 2 para 174 no fim do Império Tratase de um avanço mas o fato é que em 1890 vários países estavam próximos da alfabetização de toda a população Do mesmo modo o regime imperial conseguiu criar alguns cursos de ensino superior sobretudo de direito medicina e engenharia Apesar de toda a cultura do imperador não se fundou nenhuma universidade no período prolongando o atraso multissecular do país E a maior parte das grandes cidades contava no final do Império com tipografias nas quais eram impressos livros jornais e revistas O fato de o país ter eleições regulares e alternância partidária no poder ainda que no nível nacional fossem trocas comandadas apenas de cima incentivou o desenvolvimento de uma imprensa que poderia ser comparada aos modelos ocidentais anteriores ao sufrágio universal até meados do século jornais de tiragens baixas dependentes de publicidade oficial e voltados para a arregimentação eleitoral Mesmo na área territorial sujeita à autoridade dos três níveis de governo que seguiam as leis escritas os poderes efetivos eram inversamente proporcionais à dimensão Os governos locais dispunham de poucos recursos mas eram de longe os mais presentes na vida dos cidadãos Os governos provinciais tinham poucos recursos e poucas franquias sobressaindo apenas em situações específicas Já o governo central detinha uma imensa pletora de poderes conferidos pela lei e uma única figura a do imperador concentrava em si mais poderes que as demais instituições somadas Na prática contudo eram poderes que permitiam apenas como dizia o visconde de Uruguai impedir as mudanças e eram muito pouco adequados para ações transformadoras No que se refere aos serviços prestados à população o governo central contava na prática com os mesmos recursos dos vicereis tropas militares para garantir o poder alfândegas para cobrar impostos e transferir rendas para a sede Apenas no Rio de Janeiro o poder central tinha presença efetiva concentrando gastos e incentivando a economia local Assim os grandes processos nacionais dependiam muito pouco do governo como um todo levandose em conta os seus três níveis Em termos sociais frutificara a miscigenação iniciada com a aliança oferecida pelos Tupi Em 1890 o Censo registrou 44 de brancos embora seja difícil dizer o que isso significava 32 de pardos categoria herdada dos tempos coloniais e 14 de pretos agora que não havia mais escravos A composição multiétnica da sociedade guardava certa proporção com aquela de 1819 Outra unidade forte dada pela sociedade era quase milagrosa uma língua falada e entendida em todo o território por uma população fortemente analfabeta Tanto quanto a língua continuavam relevantes as uniões matrimoniais de forasteiros com mulheres locais agora envolvendo os imigrantes europeus que começaram a chegar nas últimas décadas do Império Quase ninguém escapava até mesmo o senador Taunay conservador e amigo pessoal do imperador ofereceu um dote ao pai e casouse com a índia Antônia enquanto lutava na Guerra do Paraguai e encerrou o casamento ao modo indígena quando voltou para casa Também era universal o catolicismo com as igrejas sendo as únicas oficinas de governo presentes em todos os pontos do território Mas era um catolicismo sincrético feito por padres seculares casados e empresários ritualístico e receptivo a influências das religiões indígenas e africanas Em termos populacionais essa sociedade pouco mais que triplicara de tamanho entre 1819 quando existiriam 44 milhões de habitantes e 1890 ano em que foram contados 143 milhões de brasileiros No âmbito da economia um efeito de longo prazo na atividade produtiva do Império foi o surgimento de significativas disparidades regionais de renda sobretudo no Nordeste onde a produção de açúcar continuou sendo a principal atividade Com todos os percalços esta mantevese competitiva internacionalmente até meados do século XIX Mas aí surgiram usinas mais avançadas com capacidade de moagem e produtividade muito superiores às dos engenhos desenvolvidos no século XVI Para se manter competitivos os produtores brasileiros teriam de investir para se modernizar Mas então toparam com uma série de barreiras a começar pela política cambial do governo toda voltada para tornar mais cara a moeda O sonho da circulação metálica a uma taxa de câmbio alta que perseguiam os conservadores gerou as seguintes consequências para o Nordeste segundo Nathaniel Leff Após a década de 1870 as variações da taxa cambial tornaramse as principais determinantes das variações do preço do açúcar em moeda local A situação do algodão foi parecida Neste produto também as variações na taxa cambial tornaramse muito mais importantes do que a mudança do preço em esterlinos na determinação dos preços em milréis Desta maneira parece ter se desenvolvido um processo de realocação de fatores do Nordeste para o Sudeste do açúcar para o café Em consequência as rendas foram empurradas para os níveis que ofereciam as melhores alternativas ou seja a agricultura de subsistência ou baixa produtividade1 A tais fatores somaramse outros assim descritos por Evaldo Cabral de Mello A ação governamental reforçou os mecanismos deflagrados espontaneamente pelo crescimento da produção cafeeira mediante uma política de centralização do crédito com o fito de privilegiar o grande comércio da praça do Rio de Janeiro e os interesses cafeeiros do vale do Paraíba A reforma de Itaboraí em 1853 que deu monopólio de emissão ao Banco do Brasil foi o principal instrumento de uma orientação financeira que terá acarretado a transferência para a praça do Rio de Janeiro de recursos anteriormente empenhados no comércio negreiro das províncias do Norte particularmente na Bahia onde fora mais vivo Daí que a terminação do tráfico não tenha criado na Bahia e em Pernambuco a euforia observada no Rio de Janeiro dos primeiros anos cinquenta e que abortasse o surto bancário que se havia feito sentir nas principais províncias nortistas nos anos quarenta Na transferência de capitais das províncias do Norte para o Rio tiveram importante papel as sucursais do Banco do Brasil denunciadas em 1866 por um conservador baiano Oliveira Júnior como fatalíssimas às províncias em que têm sido estabelecidas aptas apenas a sugar os capitais provinciais e transportálos para o Rio de Janeiro De 1853 a 1866 as sucursais emitiram 384 mil contos Significativamente a emissão do Norte 275 mil contos era quase o triplo da emissão do Sul 109 mil contos Pela mesma época estimava Souza Franco que o banco havia retirado das províncias um montante quase igual ao total das emissões feitas pelas agências aplicando nelas apenas um nono dos capitais recolhidos2 O banco do governo que recolhia poupança numa região para aplicar em outra não era o único instrumento de política pública para a drenagem de capitais numa região que precisava deles A política fiscal atuava na mesma direção e provocava reações como a do deputado paraense Costa Aguiar narrada por Evaldo Cabral de Mello Para resumir as conclusões de Costa Aguiar enquanto o Norte transferia 21 mil contos para os cofres gerais o Sul recebia 13 mil contos dos mesmos cofres A despeito da crise do açúcar e do algodão o Norte efetua remessas mais de quatro vezes superiores às realizadas pelo Sul3 Eram poucos os movimentos regionais que escapavam à estagnação Na Amazônia o crescimento das exportações de borracha imprimia certo dinamismo a uma economia que sofrera violenta depressão após a Cabanagem E em São Paulo acontecia uma curiosa conjunção de empreendimentos ferroviários acumulação de capital e republicanismo A primeira ferrovia construída com capitais locais foi a Companhia Paulista de Estradas de Ferro Ao ser inaugurada em 1872 o convidado de honra foi o expresidente de província Saldanha Marinho o homem que colocara o poder institucional a favor do empreendimento Naquela altura ele também era o principal líder do Partido Republicano condição suficiente para afastar as autoridades monárquicas da festa como queriam os acionistas A segunda a ser inaugurada foi a Companhia Ituana Os festejos foram cuidadosamente preparados para evitar problemas de maior monta O presidente da província João Teodoro participou de uma rápida cerimônia num dia A grande festa aconteceu no dia seguinte com a realização da Convenção de Itu na qual foi fundado o Partido Republicano Paulista Apenas a quarta ferrovia a Companhia Mogiana promoveu um baile pelo compasso imperial O marido da princesa Isabel o conde dEu fez uma visita de inspeção às obras E em 1875 o imperador Pedro II pôde afinal ser a grande estrela da inauguração da linha Mas logo os empresários paulistas deram mostras de que essas diferenças cerimoniais importavam menos que certos objetivos de negócio A institucionalização das ferrovias havia mostrado um caminho que eles souberam aproveitar Assim que o governo provincial começou a receber dividendos das ferrovias um grupo formado por empresários conservadores como Antônio Prado liberais o marquês de Três Rios republicanos Martinho Prado Júnior e até imigrantes Antônio Proost Rodovalho comerciante português conseguiu a aprovação de um projeto de lei provincial que dava garantias públicas para a abertura de um banco que fizesse empréstimos a agricultores com base na hipoteca de terras e benfeitorias Com a lei provincial em vigor os vários grupos conseguiram uma aprovação dos estatutos do banco nos meandros burocráticos do Poder Moderador que além de tudo resultou numa reforma que abriu pequenas brechas na lei de 1860 aquela que limitava a formação de empresas a conhecida Lei dos Entraves Assim foi lançado o Banco de Crédito Real que logo estava emprestando nada menos do que 65 mil contos de réis onze vezes o valor do orçamento da província de São Paulo A soma de todos os movimentos econômicos da nação durante o Império positivos e negativos foi realizada por Angus Maddison que calculou uma média a renda per capita no Brasil em 1820 e 18904 Para o primeiro ano chegou ao resultado de 670 dólares anuais para 1890 a renda foi de 704 dólares anuais Em outras palavras mostra claramente um período de completa estagnação com crescimento residual de 4 num período de 70 anos Com esse dado se pode passar à comparação do Brasil estagnado com o restante do mundo E nesse caso nenhuma comparação é mais significativa do que aquela com os Estados Unidos já realizada no cenário da virada do século XIX Apenas para relembrar em 1800 os Estados Unidos contavam com 5 milhões de habitantes ao passo que o Brasil tinha 44 milhões Nesse momento o porte das duas economias também era semelhante A partir daí no entanto foi se abrindo um fosso tanto no aspecto demográfico como no econômico Nos Estados Unidos a renda per capita mais do que triplicou entre 1820 e 1900 passando de 13 mil para 4 mil dólares 57 vezes a renda per capita brasileira A maior aceleração se deu no período posterior à guerra que pôs fim à escravidão A população de 35 milhões de habitantes em 1865 saltou para 63 milhões em 1890 um crescimento de 80 em apenas uma geração Apesar de tal incremento a população total dos Estados Unidos era então 45 vezes maior que a brasileira nesse momento a renda per capita cresceu 55 no mesmo período Boa parte desse crescimento se explica pela industrialização Em 1840 a agricultura era responsável por 68 do valor total da produção e a indústria por 12 meio século mais tarde em 1890 apenas 22 do valor da produção total vinham da agricultura enquanto 41 eram da indústria Era uma indústria apenas local desvinculada do setor de exportações A estrutura das exportações dos Estados Unidos não mudou quase nada ao longo do século XIX Em 1800 as vendas de produtos agrícolas correspondiam a 75 do total das vendas externas em 1890 a proporção havia aumentado para 78 Isso se devia ao fato de os Estados Unidos estarem se tornando o celeiro da Europa que também vivia transformações importantes Alemanha e Itália se unificaram como países quase simultaneamente no início da década de 1870 Tal processo implicou a derrocada de privilégios feudais e de nobreza o que levou à mercantilização em massa da produção agrícola assim como à expulsão em massa de agricultores Não à toa os dois países se transformaram nos maiores fornecedores de migrantes para a América Muitos iam para os Estados Unidos e passavam a cultivar em propriedades próprias os produtos que depois eram exportados para a Europa Mas outra parcela relevante da população rural mudouse para os centros urbanos e se transformou em proletariado industrial Assim essas nações recémunificadas em países seguiram o caminho aberto pela Inglaterra e a França na direção do capitalismo O crescimento foi rápido e o modo de produção dominou todo o Ocidente Esse domínio ocasionou a miséria do proletariado e o surgimento de alternativas para a organização da vida social Karl Marx analista dessa tendência de concentração de riqueza e destruição humana foi um dos principais formuladores da alternativa socialista A disseminação mundial do capitalismo trouxe além da miséria operária uma espiral de crescimento da renda per capita que foi registrada por especialistas nas mais diversas economias sobretudo a partir da década de 1870 Apenas entre 1870 e 1900 a renda per capita da Argentina mais do que dobrou passando de 13 para 27 mil dólares Em Portugal o crescimento entre 1870 e 1900 foi de 40 com a renda chegando a 14 mil dólares Até mesmo a Indonésia teve desempenho proporcionalmente melhor que a economia brasileira no intervalo entre 1820 e 1890 com a renda per capita passando de 614 dólares para 670 entre 1820 e 1900 Por maiores que sejam as imprecisões e a falta de compatibilidade entre os dados a tendência geral é clara o século XIX como um todo e o período imperial em particular foi um período de estagnação da economia brasileira e por outro lado de aceleração da economia mundial Foi portanto um período de acentuado atraso para o país na comparação com o mundo Esse foi o cenário encontrado pelos republicanos que chegaram ao poder III 18891930 Primeira República explosão de crescimento Descentralização pesada libera o setor privado e destrava os governos locais políticas ousadas transformam em uma década e meia a economia estagnada numa das que mais crescem no mundo com um sistema político regressivo em relação ao Ocidente A era do muro uma centralização dois resultados CAPÍTULO 37 Governo provisório e ditadura A INSTALAÇÃO DO GOVERNO REPUBLICANO FOI MARCADA POR TRÊS AÇÕES DE NATUREZA diversa uma lei um rito e um ato separados por poucas horas a partir da tarde de 15 de novembro A lei foi o decreto número 1 que proclamava a República como forma de governo a transformação das províncias em estados a união desses estados numa federação chamada Brasil E também dispunha que tudo que o governo decidisse seria provisório durando apenas até o momento em que representantes eleitos fizessem as constituições da nação e dos estados O decreto era lei escrita que marcava uma mudança de teoria Reconhecia um soberano único a vontade dos cidadãos expressa por seus representantes E também atendia à reivindicação federalista ampliando a distribuição desse poder no âmbito geográfico As extintas províncias eram inteiramente subordinadas ao centro os novos estados seriam entidades soberanas e dotadas de maior autonomia Como a lei escrita alcançava apenas a minoria de alfabetizados os novos donos do poder realizaram um rito capaz de comunicar a mudança à maioria analfabeta Assim que se confirmou o controle militar os membros do governo provisório apresentaramse à Câmara do Rio de Janeiro Era um procedimento ritual secular Nos tempos coloniais antes de assumirem o cargo os governadoresgerais vicereis ou capitãesmores seguiam até a câmara da capital de sua área de governo apresentavam suas ordens e pediam reconhecimento às autoridades locais eleitas Durante o Império a versão do ritual acontecia a cada abertura da sessão legislativa com a Fala do Trono e sua resposta uma voz para cada representante das soberanias constitucionais A apresentação aos representantes do poder popular era portanto um rito que muita gente entendia naquele tempo Depois da lei e do rito os novos governantes empenharamse num ato que marcasse a ruptura Na própria madrugada do dia 16 de novembro o monarca deposto e todos os seus familiares foram embarcados num navio rumo ao exílio D Pedro II estava prestes a completar 64 anos de vida e meio século de governo Amava o país e o servira E tinha plena consciência de que seu afastamento do território não era uma questão pessoal Havia uma relação definida constitucionalmente como sagrada e inviolável entre sua pessoa física e aquela de seus familiares e herdeiros com o exercício do Poder Moderador Por isso o navio que levava sua pessoa retirava da cena governamental poderes muito importantes A bordo seguia também o chefe da Igreja Católica no Brasil pois D Pedro II detinha privativamente o comando da Ordem de Cristo Desde 1418 o papado concedera a este o estatuto de chefe de cruzada e com ele toda a administração da Igreja no território dessa cruzada do qual o Brasil ainda era parte em 1889 Intitulado de Padroado por esse poder o comandante recolhia os impostos eclesiásticos o dízimo e podia gastar as receitas como quisesse Também incluía o comando administrativo da Igreja desde a criação de bispados até a nomeação de curas em aldeamentos de índios a permissão e o controle do funcionamento das ordens monásticas regulares a manutenção como próprios do governo de todas as propriedades da hierarquia e a supervisão da formação e das condições de trabalho dos padres entre outras competências O detentor do Padroado só não podia se imiscuir nas questões de fé Mesmo nesse campo porém tinha poderes para evitar decisões que não o agradassem pois sancionava a entrada em vigor das bulas papais na área de seu domínio E no sentido inverso a única decisão relevante de Roma era a escolha do bispo primaz mas apenas entre os nomes de uma lista enviada pelo comandante da Ordem de Cristo Para o exílio também seguia o chefe do Poder Moderador até a véspera a cabeça mística do reino a pessoa sagrada e inviolável O único homem com o poder pessoal de representar a nação e vigiar desde o alto o andamento dos demais poderes Aquele que estava acima da lei detentor de um poder que lhe permitia dar ordens e ser obedecido pelos muito subordinados sem poder ser contestado Que por isso mesmo era irresponsável e não podia ser processado Retirado fisicamente o detentor pessoal do Poder Moderador uma série de comandos que apenas ele podia executar deixavam de vigorar Era o imperador o único que podia nomear e demitir a seu inteiro gosto os ministros que exerciam o Poder Executivo Era ele quem convocava o Parlamento abria as sessões dissolvia a legislatura sancionava ou não as leis tendo imensa influência na vida do Legislativo Era ele quem nomeava e suspendia os juízes dos tribunais superiores E sua influência sobre o Judiciário acontecia também pelo poder pessoal da Graça que lhe permitia perdoar condenados ou conceder anistias Era ele quem controlava o Conselho de Estado órgão assessor do Poder Moderador Entre suas muitas capacidades estava a de autorizar ou não o funcionamento de sociedades anônimas no país de modo que a vida empresarial dependia do humor do imperante Era ele quem nomeava todos os presidentes de província os quais nomeavam todos os funcionários nacionais que nelas atuavam Através desse comando o governo central levou à vitória todos os candidatos que se apresentaram com seu apoio ao longo de meio século nunca o grupo posto no ministério pelo imperador havia perdido uma eleição Era ele quem controlava a presidência do Banco do Brasil por sua vez o grande controlador da poupança nacional e da política de crédito Todos esses poderes mudavam de dono com a partida do navio que conduzia D Pedro II ao exílio Mas ao contrário do que aconteceu quando seu pai renunciou e deixou o Brasil as franquias do Poder Moderador não ficaram apenas suspensas enquanto a direção da nação era entregue a regentes Todos os poderes que deixavam de atuar se concentraram no Governo Provisório com a partida e não apenas eles Como o Parlamento estava em recesso e o Legislativo só voltaria a funcionar na forma da prometida Assembleia Constituinte toda a capacidade de legislar no plano agora federal e não mais central também ficava concentrada nele Não bastasse isso o Governo Provisório comandava o Judiciário E claro exercia sozinho o Executivo Não era todo o governo no país Continuavam a funcionar no território os governos de costume dos povos nativos e os governos eleitos dos municípios como vinha ocorrendo desde séculos Essa era a base sobre a qual os novos donos do poder se propunham a instalar um novo formato de governo Como a promessa era de um governo concebido em conformidade com a soberania popular que elegia o governo das vilas o contraste era levemente amenizado Mas entre a promessa solene e o funcionamento efetivo do governo representativo havia um gigantesco caminho a ser percorrido A rigor desde o início da colonização essa era a primeira vez que ocorria tamanha concentração de poder num grupo tão pequeno de pessoas e sem leis para limitar sua autoridade Mas exatamente por se tratar de um grupo restrito de indivíduos havia um hiato entre as ordens que poderiam dar e sua pronta execução em todo o território a nova cabeça tinha ligações muito precárias com o gigantesco corpo da nação O chefe do governo marechal Deodoro da Fonseca tinha experiência como militar mas na política fora apenas presidente de província por indicação do Partido Conservador O ministro da Guerra Benjamin Constant fora apenas professor da Escola Militar um republicano inexperiente até mesmo no trato com a tropa Somente o ministro da Fazenda Rui Barbosa tinha experiência política fora deputado pelo Partido Liberal e ministro o único em todo o grupo a conhecer a direção do Executivo Esse grupo prometeu no primeiro dia que seria temporária a concentração de poder e que este seria repartido no futuro de acordo com a vontade dos agora cidadãos pois deixava de haver a condição de súdito os quais constituíam a única soberania da nação A diferença entre a promessa e o exercício do poder logo se manifestou Para começar era preciso tempo até que os cidadãos elegessem os representantes que fariam as leis e estas fossem colocadas em execução Na prática em todo esse intervalo deveria funcionar alguma espécie de governo o que requeria muito mais gente do que todos os militantes republicanos e todo o contingente militar Tal dificuldade inicial muito depressa foi percebida como oportunidade O golpe foi numa sextafeira e o imperador exilado no dia seguinte No domingo à tarde uma parte dos 53 fiéis pagantes de uma igreja que se intitulava Apostolado Positivista saiu em passeata pela cidade até a sede do governo onde teriam audiência com um membro expulso da congregação Benjamin Constant agora nomeado ministro da Guerra1 O motivo da expulsão fora a discordância de Benjamin Constant com a maior proposta política do Apostolado nos tempos da monarquia que o imperador ou sua herdeira reconhecendo as verdades científicas pregadas por Augusto Comte renunciassem ao trono em favor de um sucessor que governaria como ditador Este reuniria ainda mais poderes do que o imperador além de todos que lhe estavam reservados pelo exercício do Poder Moderador seria ainda um substituto do Legislativo baixando leis por decreto Além dessa concentração de poder os membros do Apostolado só admitiam algumas pouca restrições ao ditador Primeiro este deveria designar um herdeiro político evitando assim uma sucessão hereditária Segundo a cada três anos uma assembleia eleita se reuniria com a única finalidade de examinar as contas do governo Por fim o ditador seria responsável isto é poderia ser processado pelo Judiciário que ele mesmo nomeava e removia livremente Como nunca surgiu nenhum sinal de que D Pedro II fosse renunciar em favor de um ditador comtiano os membros do Apostolado continuaram fazendo seus encontros regulares nos quais se prestava um culto ao seu ídolo intelectual o filósofo francês Auguste Comte O advento do novo regime fez com que deixassem de lado a contenção anterior e se lançassem na lide política Desfilaram pelas ruas sob um estandarte que iriam entregar ao ministro com uma proposta estabelecer um regime no qual em vez da remoção do poder arbitrário do imperante caído conforme o programa de 1870 e a propaganda de quase todos os partidos republicanos cada antiga província tinha o seu fosse desconectado do carro do Estado o locomotor da soberania popular o poder do cidadão de escolher seu representante e se implantasse uma ditadura Justificavam isso com um manifesto Para nós é fora de dúvida que a monarquia seria eliminada porque a fraqueza dessa instituição proveio de antecedentes históricos como indicamos Vimos aproximarse este desfecho fatal com a segurança de quem espera a realização de um fenômeno astronômico cientificamente previsto menos a determinação do instante em que terá lugar porque os acontecimentos sociais não comportam a precisão matemática Mas a certeza é a mesma Apenas lamentamos que a mesma convicção não exista da parte do Chefe de Estado visto que muitos males seriam poupados à nossa Pátria e à Humanidade se ele nos isentasse do republicanismo democrático Qualquer que seja porém sua conduta estamos certos de que este republicanismo há de ser varrido da cena política para dar lugar à ditadura republicana e isso em futuro tanto mais próximo quanto mais cedo igual transformação operarse em França A sorte do mundo está em Paris2 Essa proposta mostrouse muito atrativa para aqueles que vinham de ser alçados ao poder sem jamais terem tido qualquer espécie de compromisso com a vontade popular Assim foi que o ministro da Guerra fez mais que receber os fiéis e relevar o fato de ter sido expulso do Apostolado Aceitou entusiasmado a sugestão que se seguia ao parágrafo da carta citado acima e que tinha a seguinte redação O governo da República que se inicia deve consubstanciar a nova fase em que entra a nossa Pátria adotando para a sua divisa a fórmula de Augusto Comte Ordem e Progresso Como era tempo de revolução o decreto que transformava o estandarte de um grupo obscuro em bandeira nacional foi publicado já na terçafeira dia 19 sem consulta de nenhuma espécie mesmo entre os republicanos que também tinham um projeto de bandeira Esse é o tipo de sinal que qualquer candidato ao poder é capaz de ler como Eis um governo que aceita sugestões Um dos primeiros a vislumbrar possibilidades com a apresentação de ideias ao gosto dos militares foi o ministro do Interior Aristides Lobo um conhecido jornalista republicano que a vida inteira defendera a soberania popular Mas antes de escrever a última crônica para o jornal ele mudou de ideia sobre o papel do povo no governo para o qual acabara de ser indicado como civil e representante republicano A cor do governo é puramente militar e deverá ser assim O fato foi deles deles só porque a colaboração do elemento civil foi quase nula O povo assistiu àquilo bestializado atônito surpreso sem conhecer o que significava3 Com isso o marechal Deodoro da Fonseca lembrouse que de fato chefiava o governo como ditador e permitiu que o ministro também arrancasse maiores quinhões de poder Em dois dias Aristides Lobo saiu de uma audiência com um decreto assinado pelo qual o marechal subordinava todos os governos estaduais ditos soberanos ao ministro como se este fosse um chefe de gabinete imperial que controlava as nomeações para as províncias E o ministro estreou os novos poderes mandando trocar nada menos que o governo de São Paulo o mais forte dos recéminstalados Assim a promessa da lei decretada no primeiro dia passou a correr riscos sob a investida de aventureiros Mas logo veio a reação dos defensores da soberania popular No dia 3 de dezembro um ministério inteiramente dividido tomou por 3 votos a 2 uma decisão importante nomeando a comissão preparatória do projeto de Constituição o primeiro passo para o cumprimento da promessa de transferir o poder do Governo Provisório na forma determinada pelos representantes eleitos O fiel da balança acabou sendo o ministro Benjamin Constant o mais conspícuo positivista do ministério Militar isento da obrigação de ganhar votos para chegar ao poder era a pessoa com quem os positivistas ortodoxos contavam para sagrar a almejada ditadura No entanto agora estava fazendo um percurso inverso ao do ministro do Interior Líder dos republicanos fardados Constant defendeu contra a pressão de muitos as eleições e a representação do povo pelo voto como mais adequados às peculiaridades brasileiras Mais do que aprovar o projeto ainda apoiou a nomeação para a comissão de dois autores do Manifesto Republicano de 1870 Joaquim Saldanha Marinho e Francisco Rangel Pestana que se juntaram ao republicano Américo Brasiliense e aos liberais Magalhães Castro e Santos Werneck E a decisão foi confirmada por um decreto do marechal Deodoro Os defensores da soberania popular tiveram muita sorte Quatro dias depois no dia 7 de dezembro aconteceu a posse do ministro da Agricultura Demétrio Ribeiro Ela demorou por um motivo político como muitos republicanos não confiavam nos partidários gaúchos simplesmente os deixaram de fora das articulações revolucionárias O maior líder local Júlio de Castilhos recebeu a notícia da vitória pelo telégrafo depois do fato consumado Mas deixaram um ministério reservado a um correligionário dele quando este chegasse à capital de navio Com apenas 26 anos Demétrio Ribeiro revelouse o homem dos sonhos dos apóstolos positivistas Sua posse foi recheada de discursos cuja ênfase era uma só a defesa explícita da transformação da ditadura provisória numa ditadura positivista real e permanente E tal proposta recebeu apoio numa série encadeada de discursos Saudando o ministro em nome da Armada o capitão Nelson de Vasconcelos e Almeida disparou a primeira salva A massa da nação já deu seu apoio à nova ordem Esse apoio só provém da confiança que inspirou o governo provisório por ter sido capaz de assegurar a ordem e progresso da pátria Nós agora fazemos os mais ardentes votos a fim de que concorrais com as vossas luzes para o estabelecimento de um governo definitivo governo que se resuma na concentração de todo o poder político nas mãos de um só homem de Estado Para termos uma República estável feliz e próspera é necessário que o governo seja ditatorial e não parlamentar4 Em seguida foi a vez de Tasso Fragoso representante do Exército Firmado nas lições dessa filosofia que estou certo vos inspiram vos recordamos o pensamento do Egrégio Filósofo quando sintetizou as qualidades características do verdadeiro governo força e responsabilidade5 O próprio ministro empossado encarregouse da carga final Se presentemente a opinião está em atividade se ela todos os dias tem ocasião de pronunciarse sobre os atos do governo parece que não deve haver ansiedade de consultarmos as urnas Senhores consideremos que as urnas se pronunciaram contra a República e a República se fez Um dos defeitos do regime eletivo está justamente nisso cada cidadão no momento em que leva seu voto às urnas supõe por este modo ter dado todas as manifestações de sua opinião Eu não teria tomado a posição que assumi de colaborador do governo se não fora a certeza de que o meu país se acha em condições de se adaptar também a um regime especial Se nós queremos construir a República devemos apoiarnos numa doutrina verdadeiramente orgânica conforme revela esta filosofia a que aludiram os cidadãos representantes do Exército e da Armada6 O aparecimento desse novo defensor da ditadura positivista tornou a divisão de objetivos do governo ainda mais acentuada No entanto apesar da pressão e com o apoio do elogiado Benjamin Constant o marechal Deodoro não sucumbiu ao canto que o tentava como ditador permanente No dia 21 de dezembro de 1889 publicou um decreto que marcava as eleições dos constituintes para setembro do ano seguinte A decisão de convocar eleições foi um divisor de águas Ela comprometia o Governo Provisório com o voto popular e um regime no qual o poder derivava dos eleitores soberanos como haviam pregado quase todos os republicanos ao longo do Império Os positivistas sem qualquer base social relevante para além do estrito círculo do governo provisório e da minguada seção republicana gaúcha engoliram a decisão Para evitar que eles tentassem reagir os republicanos indicados para a comissão constitucional trataram de iniciar o quanto antes os trabalhos E tomaram a decisão de se mudar todos com armas e bagagens para Petrópolis de modo a acelerar o projeto e criar visibilidade durante o longo período em que as eleições seriam preparadas e a ditadura do Governo Provisório fosse a única forma de poder Enquanto isso os ministros republicanos mais comprometidos com a propaganda decidiram reagir Mal eliminavam um poder arbitrário emergia um grupo no interior do governo para trazêlo de volta Para afastar o perigo empregaram a seu favor o fato de estarem trabalhando com um ditador suscetível para também arrancar dele alguns decretos Começaram a apresentar propostas de decisões que iam na direção contrária à da concentração ditatorial transferindo poderes do Estado para a sociedade CAPÍTULO 38 Reformas fundamentais COUBE AO MINISTRO CAMPOS SALES LEVAR PROPOSTAS INOVADORAS AO CHEFE DO Governo Provisório E a inovação nesse caso tinha a ver com uma alternativa iluminista jamais tentada no Brasil empregar a lei para restringir o poder do governo e ampliar o da sociedade Era um conceito quase impossível de ser entendido nos moldes do pensamento corporativo equivalia nos termos deste a fazer o governo cortar uma parte da cabeça para deixar as coisas a cargo do corpo social Ainda que com restrita capacidade de ação efetiva a soma de Constituição códigos partes das Ordenações do Reino que continuavam vigorando e decretos que formavam o conjunto das leis no regime imperial previa que a cabeça tivesse poder para velar com cuidado cada parte da vida de cada súdito pois essa supervisão constituía a essência da ação do monarca com poder uno e divino cuidando do bem comum O máximo de abandono desse poder conhecido pelo país independente haviam sido as transferências de poder para o Parlamento as esferas mais baixas de governo ou no período da Regência entre esferas de governo Campos Sales agiu com rapidez e de forma abrangente No dia 7 de janeiro de 1890 um mês e meio após a mudança de regime o governo publicou um decreto elaborado pelo ministro regulamentando a liberdade de culto no Brasil Com apenas seis artigos ele liquidou cinco séculos de tradição Os primeiros artigos delimitavam barreiras pétreas para a ação estatal proibia qualquer instância de governo de legislar ou regulamentar cultos religiosos permitia a qualquer pessoa ou grupo organizar cultos na esfera privada mas abertos ao público vedava o poder público de intervir nas formas escolhidas pelos cidadãos para organizar cultos Desse modo o Estado era retirado da esfera da religião E no breve artigo 4 determinava que fica extinto o Padroado com todas suas instituições recursos e prerrogativas Em uma linha acabava uma ligação entre a Igreja católica e o governo que vinha ininterruptamente desde 1418 As enormes consequências práticas dessa passagem do controle da Igreja do governo brasileiro para o Vaticano foram processadas em pouquíssimo tempo O governo transferiu para a administração privada do Vaticano não só o comando sobre o clero e a cobrança do dízimo mas também todos os aparatos de culto que faziam parte do patrimônio do Estado uma grande quantidade de propriedades conventos igrejas fazendas imóveis urbanos etc com todas as suas alfaias Além disso também se transferiu para o comando do Vaticano um grupo muito relevante de funcionários públicos os padres Estes formavam a rigor o único conjunto de funcionários efetivamente em ação por todo o país atuando em todos os setores da sociedade A privatização foi rápida e geral E Campos Sales ainda decidiu sobre uma série de atos antes comuns à Igreja e ao governo as certidões emitidas pelos padres eram documentos públicos e os registros clericais tinham validade civil Após ter cedido na esfera do culto o Estado reservou para si as uniões civis instituindo por decreto o casamento civil desvinculado do religioso Dessa vez porém houve reação Os padres passaram a pedir aos fiéis que casassem apenas na igreja evitando o pecado da cerimônia civil Em meio à polêmica Campos Sales apelou para a força publicando um decreto pelo qual o casamento civil deveria preceder o religioso sob pena de invalidação do último Em seguida vieram a secularização dos cemitérios e a instituição do registro civil de pessoas A aceitação também foi rápida geral e completa O Vaticano mandou pencas de padres estrangeiros treinados na obediência ao papa para assumir postoschave os padres brasileiros logo se acostumaram com a ideia de viver longe do governo os fiéis católicos continuaram indo à missa e às procissões os adeptos de outros cultos passaram a organizar suas comunidades e abrir seus templos A sociedade tolerante estava mais do que preparada para a nova realidade A reação à retirada dessa supervisão e controle governamentais foi bem mais amena do que na onda subsequente de decretos Nos primórdios do novo regime Rui Barbosa agiu como se fosse um ministro sem grandes ambições Discutia pouco e empregava seus conhecimentos de redator de leis apenas a pedido do marechal Deodoro Mas a modéstia era aparente Entre todos os ministros foi o que melhor soube cultivar as relações com o chefe do governo que com poderes ditatoriais podia fazer o que bem entendesse com seus auxiliares O valor desse relacionamento ficou claro no final de novembro de 1889 quando Deodoro teve mais uma crise de asma Achando que poderia morrer baixou um decreto definindo uma linha de sucessão O primeiro a assumir o poder seria Rui Barbosa seguido pelo militar Benjamin Constant No dia 17 de janeiro de 1890 os demais ministros se deram conta de quanto valia tal intimidade com o centro do poder Nessa data conheceram o teor de quatro decretos redigidos pelo colega lendo o Diário Oficial pois não haviam sido consultados Em tempos de ditadura tanto os membros de um pequeno clube podiam tornar sua bandeira aquela da nação como um ministro convincente podia introduzir alterações radicais nas relações entre governo e sociedade no campo da economia tendo como base apenas a sua boa relação com o general no comando Cada decreto mudava um mundo O primeiro tratava do lugar dos empresários na sociedade e foi promulgado com o número 164 Seu artigo primeiro tinha uma redação simples e direta As companhias ou sociedades anônimas seja civil ou comercial o seu objetivo podem estabelecerse sem autorização do governo Com essa única frase uma secular prerrogativa do governo central a de autorizar e regulamentar o funcionamento das empresas era declarada como algo fora do controle estatal e dependente apenas do livre arbítrio de cada cidadão Até a véspera uma sociedade anônima só podia começar a funcionar depois de redigir estatutos arranjar dinheiro para compor o capital deixar tudo isso esperando enquanto a papelada era mandada para a capital do país à espera da aprovação do Conselho de Estado e da permissão do governo tutelador para o início do seu funcionamento Com o decreto a decisão de transformar a poupança pessoal em investimento por meio de aplicação numa empresa tornavase o exercício livre de um direito do cidadão e ao governo cabia apenas registrar a papelada e verificar se estava de acordo com a lei O Estado deixava de considerar uma ameaça o detentor de poupança que tinha a intenção de investir Também deixava de supor que a decisão de investir era uma arte que estava além da capacidade dos súditos e portanto exigia supervisão da Coroa Só esse parágrafo já era uma espécie de Lei Áurea para os empresários mas havia mais Um dos artigos alterava a natureza da responsabilidade do empresário em relação ao modo como poderia ser processado A responsabilidade dos acionistas de empresas tornouse restrita ao capital aplicado nas ações Desse modo introduziase uma separação entre os investimentos numa empresa e a pessoa física do empresário algo que a legislação imperial vedava e com isso mantinha a dependência pessoal no centro da atividade econômica Essa separação fundamental foi estendida a todo tipo de empresa Valia também para as chamadas sociedades em comandita a forma de organização das pequenas empresas da época quase um pequeno fundo de investimentos Dessa maneira foi possível dissociar por inteiro o tratamento da pessoa jurídica do empresário e o da sua pessoa física ou em outro sentido isso colocava a empresa privada sob proteção da lei o que tornou possível aos pequenos empreendedores saírem da informalidade para fazer negócios em público Na mesma velocidade da privatização da Igreja católica o decreto acabava com um enquadramento secular A supervisão do governo sobre a atividade empresarial seguindo os princípios corporativistas vindos do Antigo Regime mantivera o mercado nas casas e o afastara da proteção pública A expressão particulares para se referir aos negócios oposta ao bem comum da supervisão imperial deixava de ter sentido Em seu lugar aparecia na lei a distinção entre a esfera privada a da livre ação empresarial e a pública a da lei que protege os negócios lícitos O segundo decreto do dia de número 165A incidia sobre o estatuto jurídico da propriedade agrária Desde o século XVI embora a terra fosse mercadoria vigorava a fórmula medieval segundo a qual não podiam ser executadas propriedades com atividades complexas engenhos ou grandes fazendas de café por exemplo Por causa disso havia grande dificuldade para aceitar essas propriedades como garantia de crédito O decreto de Rui Barbosa abria o caminho para que os proprietários agrários emitissem eles mesmos um título de penhor sobre a propriedade ou parte desta Tornavase possível assim que o penhor agrícola se realizasse num contrato direto entre o proprietário e o fornecedor de crédito e obrigatoriamente deveria ganhar registro público Assim o papel do Estado se resumia a garantir em público os negócios privados permitindo que qualquer pessoa pudesse ter acesso aos registros Agora os interessados em conceder empréstimos podiam tanto conhecer a situação creditícia de cada propriedade como executar os títulos em caso de inadimplência Rui Barbosa tinha clareza quanto ao objetivo do decreto Na essência a questão não é a da liberdade contra o privilégio mas da Lei de Torens contra as Ordenações do Reino1 Os resquícios do direito feudal sobre a propriedade de terra que o Brasil aplicava começavam a ser substituídos pelo direito comercial capitalista O terceiro decreto de número 169A regulamentava todas as hipotecas e as formas de sua cobrança Criava para vários títulos de propriedade a mesma situação legal dos bens agrícolas a possibilidade de que o proprietário emitisse um título de crédito sobre essas propriedades entregandoo em garantia de um empréstimo Casas joias bens móveis ou qualquer propriedade tornavamse assim instrumentos para a obtenção de crédito e objetos seguros para serem tomados como garantia pelos emprestadores Essa lei alterava os direitos sobre outras propriedades na mesma direção promovendo uma radical modificação do papel do Estado na área As Ordenações do Reino mantidas pelo Império como direito civil regiam os direitos de propriedade sobre objetos ao modo medieval lidavam com eles como se fossem posse assunto para chefes de unidades econômicas particulares cujo domínio sobre elas estava assentado na tradição Agora a propriedade das coisas adquiria caráter mercantil era definida em legislação claramente burguesa a propriedade passava a ser delimitada pela lei e a lei que garantia a propriedade era a mesma que a transformava em mercadoria plenamente alienável Mas o quarto decreto era ainda mais importante afrontava radicalmente fundamentos tidos como sagrados pelos pensadores do Partido Conservador da monarquia decaída Fazia isso ao regular o lugar legal do dinheiro na vida da sociedade brasileira Ao longo do Império as relações entre Estado e sociedade no que se refere ao dinheiro eram alocadas à esfera do poder pessoal do monarca que determinava como sagrado o valor da moeda na qual não cabia interferência dos súditos Rui Barbosa consciente da importância da mudança justificaria mais tarde o ato começando pelas emissões de dinheiro que ordenou Os auxílios em papelmoeda caíram sobre o mercado ávido como gota dágua indiferente Foi entre essas perplexidades e sob o aguilhão desses perigos que recorri à salvação possível em semelhante conjuntura assentar como os Estados Unidos tinham feito em circunstâncias análogas e sob a força de iguais necessidades a garantia do meio circulante sob os títulos da dívida nacional Essa instituição não tardou em se recomendar pela experiência imediata de seus efeitos às simpatias de todas as classes laboriosas como o maior acelerador que já se concebeu neste país da prosperidade do trabalho como o maior difusor do crédito o mais enérgico propulsor de nosso movimento industrial2 A legislação norteamericana a que ele se referia era o National Banking Act de 1863 A opção era justificada no mesmo texto pela análise que Mauá fizera da moeda de papel brasileira em sua época e que terminava propondo uma alternativa semelhante Essa legislação norteamericana criou uma moeda de dupla face o comércio exterior e as transações internacionais do governo impostos de importação e pagamentos de juros por exemplo passaram a ser realizados com um câmbio fixo em ouro Nas transações internas a moeda de papel não tinha lastro metálico e seu preço era flutuante Embora as duas moedas se chamassem dólar havia deságio ou ágio entre ouro e papel com o valor do último quase sempre flutuando abaixo do par As receitas alfandegárias do governo eram pagas pelos importadores em ouro O modelo aceitava a regulagem do volume de papelmoeda segundo os ritmos diferentes da oferta e demanda nos mercados interno e externo Admitia flutuações e distribuía seus riscos de maneira diversa Acentuava aqueles de importadores ao mesmo tempo que protegia as receitas governamentais advindas do comércio exterior assim como os produtores do mercado interno cujos preços mantinhamse estáveis na moeda de papel interna Rui Barbosa portanto queria retirar o governo da disputa por divisas no mercado como dizia o texto a medida desembaraçava o Tesouro das flutuações da praça e desembaraçava o movimento da praça das oscilações do Tesouro3 e obter recursos externos para o governo pagar suas dívidas diretamente na alfândega ao mesmo tempo que aumentava o fornecimento de dinheiro de papel para a economia pósescravidão O quarto decreto portanto foi inteiramente pensado como uma forma de transferir poderes antes exclusivos do Poder Moderador no caso a determinação da quantidade de moeda para o âmbito do mercado que a fixaria através de compras e vendas E fazia isso alterando a ordem de prioridades no lugar da estabilidade dos valores que interessava aos atacadistas importadores e financiadores externos do governo os melhores amigos do Poder Moderador o objetivo econômico central do governo passava a ser o de incentivar a produção capitalista no setor privado interno que ganhava margem monetária para correr riscos e moeda para liquidar as transações antes encerradas em cadeias de fiado dependência e lentidão Steven Topik resumiu a mudança de prioridades da política governamental começando por uma descrição dos grandes interesses em jogo Agricultores de produtos de exportação ou para o mercado interno tanto quanto industriais locais e banqueiros geralmente apoiam políticas monetárias que facilitem a obtenção do dinheiro e o crédito Uma queda do milréis protegia fazendeiros e industriais que vendiam no mercado interno na competição com os produtos importados4 Mas havia também representantes dos interesses exatamente contrários No outro lado da política monetária estavam importadores consumidores urbanos de produtos importados investidores estrangeiros e defensores dos tesouros imperial e provinciais Esses grupos pressionavam pela restrição do suprimento de dinheiro e preços estáveis A moeda valorizada significava que o governo tinha de pagar menos milréis por suas dívidas externas No balanço entre as pressões opostas os pratos da política imperial penderam para um lado A política monetária do Império dominada pela visão do Partido Conservador de dinheiro apertado e taxas altas de câmbio exceto nos poucos intervalos liberais favorecia pessoas ligadas aos produtos e capitais europeus5 Em termos políticos tratavase de uma aliança entre o governo central e os importadores em prejuízo dos produtores nacionais Uma aliança dessa espécie onde o governo atua contra os produtores do país só pode prosperar numa situação na qual o governo concebe a si mesmo como estando acima da sociedade e assim era o Poder Moderador como um dia havia sido o poder metropolitano A política de Rui Barbosa tinha o objetivo oposto daquele que até então dominara a esfera maior de governo no território E tal objetivo vinha a ser o mesmo do governo de qualquer outro país na era capitalista fomentar a riqueza da nação favorecer os produtores ligados ao mercado interno e transferir os riscos das oscilações cambiais para os importadores garantindo a renda dos produtores nacionais Seria na visão de Topik uma política monetária muito mais beneficiadora da produção interna que a do Império6 Por isso somando tudo que havia nos quatro decretos o dia 17 de janeiro de 1890 assinalou uma revolução no campo da economia Não ficou pedra sobre pedra da antiga política econômica imperial E a maior parte das mudanças consistiu em retirar o Estado da função de protetor de grupos amigos contra os riscos do mercado e na via inversa proteger pela lei a ação dos empresários atuando em ambiente competitivo antes relegados ao plano secundário da informalidade O choque foi imediato A reação da imprensa carioca foi violenta o ministério se dividiu a crise se instalou Acabou resolvida numa reunião que durou a noite inteira com o pedido de demissão dos civis que haviam defendido a ditadura positivista Demétrio Ribeiro e Aristides Lobo Demétrio Ribeiro foi substituído por Francisco Glicério e a paralisia no ministério foi substituída por uma atividade frenética O novo ministro inverteu o ritmo de uma decisão crucial tomada em sua pasta aquela de regulação legal e autorização de concessões para investimentos privados de infraestrutura Enquanto o Conselho de Estado era lento ele foi rápido limpou as gavetas e aprovou os projetos existentes O sentido de suas decisões foi o mesmo transferir atividades antes reservadas ao escrutínio do governo para a esfera privada Já Aristides Lobo foi substituído por Cesário Alvim tão prudente quanto os mais prudentes conservadores A primeira decisão importante de sua pasta foi o decreto que regulamentou a eleição dos constituintes E Alvim em vez de reformar e ampliar os poderes dos eleitores estreitou ainda mais as franquias e ampliou o controle de funcionários do governo sobre o pleito Todas as proibições imperiais inclusive a do voto dos analfabetos foram mantidas Com isso se criaram ritmos muito diferentes de mudança Enquanto as esferas da vida civil e da atividades econômica eram objetos de mudança radical na esfera da vida política foi mantida a tutela vinda do último período imperial restrição às franquias que as tornavam regressivas em relação ao Ocidente e manutenção da tutela dos funcionários sobre o eleitor Mas no geral o período de transição até a convocação da Assembleia Constituinte foi marcado por medidas legislativas que traziam mudanças substanciais em relação às Ordenações todas no sentido de aumentar os poderes da sociedade e diminuir a ingerência do governo na vida dos cidadãos Quando a Assembleia Constituinte começou a funcionar ficou clara uma nova divisão nas concepções de mundo Não havia nela ninguém que defendesse a monarquia nem a dupla soberania Mas também logo ficou evidente que nem todos os republicanos defendiam a soberania popular e o governo baseado em autoridades eleitas e responsáveis O incipiente conflito político entre positivistas e republicanos históricos transferiuse para o ambiente parlamentar embora este próprio ambiente já criasse uma situação difícil para os defensores de uma ditadura Ainda assim eles lutaram tentando fazer voltar para trás as mudanças econômicas de Rui Barbosa O presidente da Constituinte o senador paulista Prudente de Morais percebeu o perigo e impôs um ritmo de marcha forçada em dois meses entre novembro de 1890 e janeiro de 1891 a Constituição estava aprovada Trazia novidades importantes A maior delas era o reconhecimento de uma soberania única da qual derivam todos os poderes do governo divididos pela Carta segundo dois critérios De um lado havia os três poderes de outro as três instâncias de governo O reconhecimento de um único poder soberano derrogava o Poder Moderador na esfera da lei escrita e a desigualdade na esfera da teoria como valores aceitos para se fazer leis Já a redivisão territorial do poder soberano único aumentava muito a independência dos estados transformados em entes de governo com muito mais autonomia do que as províncias imperiais incluindo receitas tributárias a eleição dos governadores e de seus parlamentares Assim o Brasil ganhava uma Constituição que impunha o corolário maior do pensamento iluminista a soberania popular como fonte única de poder legítimo e a igualdade e universalidade como princípios lógicos para a criação de leis Assim em tese toda lei deveria ter abrangência universal todo poder legítimo derivaria do voto até a autoridade maior do Executivo o presidente da República deveria ser eleita pelos cidadãos A regra geral se invertia até a véspera a desigualdade expressa nas duas soberanias e o modelo moral da natureza que criava senhores e escravos era fundamento lógico do sistema legal e os hábitos igualitários que deram sentido à formação do Brasil ficavam relegados à esfera do costume desalinhados em relação à lei Agora as concepções de bons governos fundados na desigualdade eram postas fora da lei ainda que estivessem longe de desaparecer A própria existência de defensores da ditadura na Assembleia Constituinte era uma mostra clara de que por baixo da nova lei havia gente que defendia algo que agora estava fora da lei e restava apenas como costume informal a crença na superioridade de uns sobre outros na desigualdade nos arbítrios Mesmo deixando de ser regra constitucional esses valores continuavam sendo importantes e validados por leis menores A Constituição não derrogou leis que não a contrariassem desse modo ficaram valendo ainda partes relevantes das Ordenações do Reino e muita jurisprudência anterior Mas as prioridades foram invertidas Com teoria do bom governo e símbolos trocados para as fórmulas iluministas começava uma nova era de mudanças e resistências CAPÍTULO 39 Nova lei velhos costumes O MARECHAL DEODORO DA FONSECA ESTAVA COM 63 ANOS DE IDADE QUANDO assumiu a presidência da República Seu renome se devia a vitórias em combates na Guerra do Paraguai nos quais sobressaíra em bravura Como o grande líder do Exército após o conflito essa condição foi muito importante ao comandar a derrubada do Império Não era um neófito em política Militante do Partido Conservador fora indicado para a presidência da província do Rio Grande do Sul na qual a presença do Exército era a mais significativa no país um quarto de todas as tropas ali ficavam aquarteladas Enquanto chefe do Governo Provisório com todo o poder de governo reunido em suas mãos uno e indivisível como o do imperador deposto revelouse competente para regular a diversidade de opiniões dos ministros delegar poderes quando necessário arbitrar conflitos manter a autoridade Assim ganhou respeito e força no comando político Mas seria impróprio afirmar que conhecia a teoria da divisão de poderes que sustentava a mudança de regime Desde que passou a funcionar a primeira instituição com poder derivado da soberania popular a Assembleia Constituinte ou seja desde que efetivamente começou a valer a divisão de poderes clássica da organização iluminista o ditador passou a demonstrar um desconforto crescente Começou dando ordens verbais aos ministros que tinham relações com o Parlamento determinando orientações para os congressistas Estes continuaram a fazer o que queriam fazer exasperando ainda mais o marechal que passou das ordens verbais às escritas e registradas nas atas das sessões ministeriais mas nada mudou Deodoro aguentou o desgaste e soube empregar o melhor de seu aprendizado militar para ganhar força na disputa pelo cargo de presidente Como detinha o controle das forças armadas ele o usou como ameaça em várias ocasiões instilando um sentimento de temor na maioria do Parlamento onde conquistou o apoio dos congressistas conservadores No processo foi perdendo o apoio dos ministros civis Enquanto a Constituinte corria esses profissionais do poder acabaram criando uma imagem para cada ato que faziam por vontade do ditador e a contragosto Engolir a espada Porém quando a Constituição ficou pronta e a sua aprovação garantida pedirem demissão coletiva No dia da promulgação da Constituição o marechal Deodoro da Fonseca deixaria de ser ditador O comando do Executivo passaria a um presidente da República Para evitar o vazio de poder criouse um dispositivo legal determinando uma exceção o primeiro presidente seria eleito de modo indireto pelo Parlamento E nessa eleição o ditador Deodoro da Fonseca derrotou o parlamentar Prudente de Morais Desde o primeiro dia o governo do presidente Deodoro aquele que inauguraria a função de velar pelas instituições republicanas da soberania única e dos poderes divididos foi marcado por decisões que ao contrário do que acontecera no período de ditadura não eram exatamente inovadoras A interpretação do presidente sobre seu papel foi a de que afinal chegara a hora de deixar de lado a conciliação das divergências para agir de acordo com sua vontade pessoal como se imperador fosse Montou um ministério só com amigos obedientes O único com experiência política era o barão de Lucena uma espécie de tutor colocado pelo Partido Conservador para guiálo quando fora nomeado para os primeiros cargos políticos ainda no Império Saquarema empedernido o barão governava para sua facção e não ligou muito para a nova Carta reiterando o que lhe ditava o costume Sugeriu ao presidente que impusesse sua autoridade à nação como faziam os ministérios no regime decaído começando pela derrubada dos opositores nos estados e neles colocando aliados Para fazer funcionar o antigo mecanismo num molde legal que definia o governador como chefe de um poder soberano em sua área territorial aproveitouse uma brecha legal um artigo das disposições transitórias da Constituição mantinha o poder de nomear delegados do governo central no comando dos estados até que estes tivessem Constituição própria Ideia aceita pelo chefe o barão agiu Para mostrar quem mandava começou por São Paulo terra com mais republicanos no país mas também do candidato ao cargo que fora derrotado Na primeira semana no posto como delegado do presidente o barão de Lucena nomeou Américo Brasiliense para governador por carta Nela constava o seguinte trecho Fiquei convencido que a política exclusivista que em São Paulo se procurava fortalecer não era coisa agradável para a grande maioria dos paulistas convencido disso entendi que prestaria um serviço a essa bela terra pela qual sempre tive profunda simpatia proporcionandolhe ensejo de se habilitar convenientemente para a nova organização política que terá de firmar O vosso nome me foi citado como o mais idôneo para desempenhar a difícil tarefa de constituir a pátria paulista1 Na concepção do barão de Lucena a vontade do ministro substituiria com vantagem a escolha do povo paulista na determinação do que seria o bom governo mais que os eleitores ele sabia aquilo que seria agradável à maioria e por isso prestava o serviço essa era a linguagem dos atos decisórios do imperador de nomear o delegado que desempenharia a tarefa de constituir as leis em substituição aos representantes dos eleitores A primeira medida do novo governador foi a de montar ele mesmo a chapa dos candidatos à Constituinte Embora insuspeito de monarquismo Brasiliense agiu como faziam os antigos presidentes de província no Império para fabricar eleitos a seu gosto partidário Decidiu sobre candidaturas oficiais no palácio como se a indicação dos candidatos e o controle das urnas não tivesse nada a ver com partidos nem com a vontade dos cidadãos no novo regime Mesmo sendo republicano histórico o governador atentou mais do que contra a teoria Ignorou um costume democrático da agremiação que criara e que ele mesmo seguira enquanto esteve fora do poder Como nos tempos imperiais o Partido Republicano Paulista existia apenas na sociedade e o governo nada tinha a ver com suas decisões Os dirigentes eram eleitos em assembleias os candidatos eram indicados em convenções No ideal da propaganda e na letra da lei republicana essa deveria ser a regra nacional quando estivessem no poder O governador decidiu outra coisa em palácio ao modo imperial formou uma comissão de 20 membros para indicar os candidatos que apoiaria Dessa comissão faziam parte os dirigentes do antigo Partido Conservador como o barão de Jaguara e também do extinto Partido Liberal como o conde do Pinhal Entre os republicanos históricos apenas José Alves Cerqueira César Júlio Mesquita Luís Pereira Barreto e Martinho Prado Júnior A chapa palaciana venceu a eleição também no velho molde imperial O instrumento foi o de sempre prosseguindo na mesma toada agora nos municípios A perseguição que incluiu republicanos foi comandada por Martinho Prado Júnior Todos os candidatos oficiais foram eleitos nenhum dos líderes do partido que protestaram conseguiu algo Enquanto os costumes antigos ressuscitavam até mesmo entre os republicanos paulistas as intervenções de Rui Barbosa na economia abriam caminhos para os empresários e empreendedores locais Nesse caso a lei que conferiu aos cidadãos o poder de formar empresas sem autorização do governo somada às garantias de crédito e à maior oferta monetária provocaram uma mudança radical na dinâmica do setor privado Atualmente essa explosão ainda está sendo avaliada pelos econometristas E o motivo de ainda haver divergências sobre os números é que na época do Império a desconsideração do desempenho do setor privado pelos dirigentes das políticas públicas era absoluta Tanto quanto os costumes dos súditos analfabetos tudo que se referia aos interesses do mercado interno era invisível para o governo imperial Também por isso os dados apresentados em seguida são construções recentes mostrando tendências que foram por muito tempo ignoradas pelos historiadores habituados a lidar apenas com a documentação tradicional Esses números revelam uma tendência clara no mercado interno Depois de um século de imobilidade tudo começava a se mexer depressa Para começar apareceu dinheiro Em setembro de 1890 o papelmoeda em circulação crescera 35 em relação ao estoque de 17 de janeiro passando de 212 mil para 285 mil contos nesse período de apenas nove meses de vigência da nova lei O volume maior de dinheiro ajudou muitas pessoas com recursos a se enquadrarem como empresários formais Assim o mercado escondido nas casas particulares observado pelo frei Vicente do Salvador em 1625 encontrou afinal um caminho para funcionar sob a égide da autoridade pública Em São Paulo o número de bancos saltou de 5 para 22 entre 1889 e 1890 Os maiores destaques foram o Banco do Comércio e Indústria para o qual a família Prado a mais rica da cidade transferiu parte de seu patrimônio e de seus negócios ao ajudar a formar o capital de 34 mil contos o Banco de São Paulo onde sobressaíam os antigos membros do Partido Liberal como o conde do Pinhal e cujo capital inicial era de 29 mil contos e sobretudo o Banco União uma instituição emissora nos moldes republicanos e controlada pelos Morais Barros com capital de 112 mil contos No interior o Banco dos Lavradores de Campinas reuniu um capital de 39 mil contos Para efeito de comparação em relação aos recursos antes condenados à informalidade e que agora eram transferidos para empresas na forma da lei o orçamento do estado de São Paulo previa gastos de 4 mil contos em 1889 Com dinheiro na praça e bancos em funcionamento o crédito formal se multiplicou numa velocidade ainda maior Em São Paulo apenas no ano de 1890 os contratos de empréstimo dos bancos registrados em cartório cresceram de 317 mil contos de réis em 1889 para 773 mil contos de réis no ano seguinte ou seja um crescimento de 145 em um ano um ritmo sete vezes maior que o crescimento da moeda em circulação2 Quem pegou o dinheiro nos bancos Quase sempre empresários que resolveram ao mesmo tempo registrar suas empresas e usar o crédito tanto para aumentar o capital como para investir A fatia do leão dos novos créditos em São Paulo foi absorvida por indústrias organizadas como sociedades anônimas que saltaram de 4 para nada menos de 64 nesse ano3 E a multiplicação das ações encontrou tomadores mesmo num ambiente em que as maiores sociedades anônimas locais as ferrovias aproveitavam a oportunidade para lançar grandes lotes de novas ações para assim financiarem a rápida ampliação da malha viária E tudo isso não foi nada diante do que ocorreu em seguida Em 1890 e 1891 foram lançadas nada menos que 210 grandes sociedades anônimas de capital aberto em São Paulo Desse total 89 correspondendo a 424 dos lançamentos eram resultado da reorganização formal de negócios que não encontravam guarida legal sob a legislação imperial aquela que se orgulhava de proibir empresas e autorizar apenas uma dúzia de sociedades anônimas em todo o país Mas havia capital para lançar e colocar em funcionamento nada menos de 73 empresas novas a maior parte delas no setor industrial E não se tratava de um movimento apenas local No Rio Grande do Sul os bancos passaram de dois para dez ao longo do ano No Rio de Janeiro apesar da crise do café também havia movimento Em novembro de 1889 a capitalização total das sociedades anônimas era de 813 mil contos nos primeiros meses da República até outubro de 1890 chegou a 198 milhão de contos Parte do incremento era riqueza nova mas o grosso era efeito apenas da mudança de estatuto jurídico que incentivava a passagem da fortuna pessoal para a formal4 Mais crédito não significa mais produção o indicativo monetário poderia ser apenas de aumento de preços com os mesmos volumes de produção Entretanto a movimentação de mercadorias também indicava uma direção positiva Nas duas principais ferrovias de São Paulo a tonelagem do café transportado entre 1885 e 1890 registrou um crescimento de 30 na maior linha do estado a SantosJundiaí Mas esse grande crescimento nem se comparava ao das mercadorias transportadas para o mercado interno que aumentou nada menos de 99 em tonelagem portanto volume físico não financeiro no mesmo período Como resultado do aumento do transporte interno a fatia do café no movimento total da ferrovia caiu de 37 para 24 Na Companhia Paulista que cortava a maior região produtora do estado o crescimento do transporte de café foi de 36 ótimo resultado mas nada comparável ao aumento de 105 nos demais produtos Assim a porcentagem do café no movimento total caiu de 44 para 29 A importância do mercado interno revelouse ainda mais crucial no Rio de Janeiro Ali nem toda a montanha de crédito foi suficiente para evitar uma rápida queda da produção cafeeira que desaguava no porto carioca Em 1885 a Central do Brasil era a maior mas não a única transportadora do produto conduziu 172 mil toneladas de café volume 53 maior do que as 112 mil toneladas transportadas pela SantosJundiaí única ferrovia que levava cargas ao porto de Santos Cinco anos depois em 1890 os carrregamentos de café da Central do Brasil cairiam para 82 mil toneladas apenas 47 do volume registrado no período anterior Apesar dessa queda dramática o movimento total de cargas na Central do Brasil cresceu 13 de 429 mil para 483 mil toneladas o que foi possível apenas porque o volume das demais mercadorias saltou de 258 mil toneladas para 411 mil um crescimento de 60 no mesmo período No cômputo global o café representava 40 das cargas da ferrovia em 1885 e apenas 17 cinco anos depois Embora com menos detalhamento o mesmo crescimento pode ser entrevisto no restante do país O total das mercadorias transportadas pelas ferrovias brasileiras como um todo cresceu 25 apenas nos dois anos entre 1888 e 1890 passando de 163 para 203 milhões de toneladas5 Nada disso se deve ao mercado externo uma vez que entre 1889 e 1890 as exportações totais do Brasil decresceram passando de 1388 milhões de dólares para 1282 milhões6 Como nos tempos do marechal Deodoro esses dados estatísticos nunca chegavam aos homens que decidiam depois de promulgada a Constituição os atos de governo ainda levaram muito em conta velhos costumes agora à margem da lei e não o nítido progresso interno e tampouco uma inesperada crise externa No dia 19 de novembro de 1890 o banco Barings anunciou em Londres que estava suspendendo pagamentos devido a um problema com seus investimentos em títulos argentinos A notícia desencadeou uma crise no mercado de capitais inglês que afetou o valor dos títulos não só da Argentina mas de todos os países da região Mitchener e Weidenmier explicaram o processo de contágio Os investidores europeus venderam ou reduziram suas posições para todos os governos da América Latina como forma de diversificar seu risco regional o que provocou quedas dramáticas nos títulos7 Junto com a queda no valor dos títulos ocorreu uma drástica inversão nos fluxos internacionais de dinheiro na economia brasileira Em 1889 no auge das entradas o país absorveu 124 milhões de libras só de investimentos Com a crise ao longo de todo o ano de 1891 viriam apenas 540 mil libras8 Essa redução violenta tinha pouca relação com a situação interna da economia Deu se em toda a América Latina e teve proporções semelhantes em todos os países A razão era uma só o dinheiro deixava de vir porque os investidores ingleses precisavam dele em casa Em vez de emprestar os bancos estavam executando seus credores que se viram obrigados a repatriar os recursos A avalanche teve início ainda na gestão do ministro Rui Barbosa Ele tinha consciência do ponto onde o impacto seria mais forte com oferta drasticamente reduzida era mais que razoável imaginar um aumento de preço da libra esterlina para os detentores de milréis Sabia também quais eram os maiores candidatos a ficar com a conta os importadores Obrigados pelas novas leis a pagar impostos em ouro eles arcariam com toda a variação cambial para baixo sendo forçados a despender mais moeda nacional a fim de pagar a taxa alfandegária pelo valor da mercadoria em moeda estrangeira Essa penalização por outro lado seria um alívio para o próprio governo que receberia a moeda estrangeira comprada mais cara pelos importadores sem correr riscos e assim saldaria suas dívidas A rápida reação do ministro preparou um caminho para enfrentar a tempestade Restringiu as autorizações para as emissões dos bancos além de determinar um aumento na margem de segurança dos empréstimos bancários de olho nas taxas de juros Mas sobretudo o ministro provocou a fusão dos dois maiores bancos do país de modo a que formassem o Banco da República dos Estados Unidos do Brasil Foi nesse momento delicado que aconteceu a eleição do marechal Rui Barbosa foi demitido e um amigo do barão de Lucena acabou indicado para o cargo Tristão de Alencar Araripe era advogado civil e embora muito fiel e obediente não estava à altura das novas funções Mal e mal sabia imitar as atitudes dos ministros conservadores do Império diante das crises externas aumentar o impacto delas restringindo o crédito Nos tempos em que o Banco do Brasil dominava o circuito de crédito interno isso era feito com um simples aumento das taxas de desconto Como agora havia muitos circuitos de crédito privado em novos setores o ministro resolveu começar proibindo a venda de ações que considerava pura agiotagem como o visconde de Itaboraí meio século antes Forçado a voltar atrás depois de lhe explicarem que agora tal prática estava dentro da lei ele propôs ao presidente outra manobra da velha escola assim registrada em ata de reunião ministerial Conquanto entenda que o governo não deve cruzar os braços convém providenciar contra a agiotagem Sugere a propósito a ideia da nomeação de uma comissão de inquérito composta de pessoas competentes a fim de dar seu parecer sobre a matéria para que o governo providencie com segurança e eficácia9 Quando as pessoas competentes do mercado organizado segundo a lógica capitalista viram que lidavam com um amador atabalhoado foram arrancando favor atrás de favor sempre às custas do Tesouro e da ignorância do ministro Os importadores conseguiram se livrar dos pagamentos de taxas alfandegárias em ouro e assim o governo abriu mão do principal meio para acumular divisas ficando obrigado a pagar mais milréis por cada libra de sua dívida externa numa situação em que o câmbio caía Os donos de vários bancos conseguiram acesso a 26 milhões de libras esterlinas das reservas nacionais prometendo fazer bons negócios e devolver em seguida O ministro nem exigiu boas garantias de modo que o destino das reservas foi assim descrito num relatório oficial posterior A quantia segundo parece foi empregada no jogo da praça ou em negócios aleatórios10 Quando até mesmo o barão de Lucena percebeu o tamanho do desastre que estava sendo provocado por seu ministro assumiu ele mesmo o ministério Nessa altura contudo o Tesouro dilapidado tinha apenas um instrumento para cobrir os rombos as emissões diretas que saltaram de 298 mil contos no último dia da gestão de Rui Barbosa para 511 mil contos em junho de 1891 um aumento de 71 em seis meses Nos moldes da lei tais emissões se faziam em títulos que precisavam ser tomados por bancos emissores os quais emitiam a moeda que entrava em circulação O principal agente nesse circuito era o Banco da República dos Estados Unidos do Brasil sediado no Rio de Janeiro Como a economia cafeeira local estava em crise logo se esgotou a capacidade do comércio e da indústria locais de absorver dinheiro Com isso o único modo de o banco emitir mais passou a ser por meio da aquisição ou do lançamento de empresas fora da capital capitalizandoas em parte em seguida podia realizar grandes empréstimos para elas com o dinheiro que emitia na expectativa de que o mercado em rápido crescimento absorvesse tudo como acontecia sobretudo em São Paulo Como o mercado não absorveu a papelada sobrou uma saída para espertos vender todas as empresas inviáveis para o governo pelo valor de face Tanto o ministro quanto o presidente compraram a ideia Como era preciso dinheiro público para pagar a conta aventouse a solução de um empréstimo externo cuja garantia seriam as rentáveis ferrovias de propriedade do governo em especial a Central do Brasil que acabara de incorporar uma ferrovia privada paulista e ganhar o monopólio do transporte entre Rio de Janeiro e São Paulo O argumento era o de que o empréstimo estabilizaria o câmbio algo que ignorava as raízes mundiais do desaparecimento das libras esterlinas no mercado brasileiro Havia apenas um pequeno detalhe formal a nova Constituição exigia aprovação parlamentar para uma operação dessa espécie O marechal Deodoro mandou a papelada para o Congresso e aconteceu o inevitável algum deputado fez objeções no plenário outros resolveram estudar melhor o caso O marechal tomou a decisão como afronta a seu poder pessoal e agiu como achava que deveria fechou o Congresso no dia 3 de novembro de 1891 tornandose novamente ditador Tentou salvar o banco Mas como os tempos eram outros uma alteração pouco notada por ele no mecanismo constitucional entrou em ação No dia 23 de novembro o vicepresidente da República o também marechal Floriano Peixoto derrubou o presidente e tomou legalmente o poder CAPÍTULO 40 A esfinge FLORIANO PEIXOTO O SEGUNDO HOMEM A COMANDAR O PAÍS NOS MOLDES DA estrutura institucional que previa um presidente da República à frente do Executivo tinha como principais ativos para o exercício do poder uma longa carreira e uma grande habilidade Nascido em família modesta alistouse como soldado chegou a tenente e estava no Rio Grande do Sul quando se deu a invasão paraguaia de modo que participou dos primeiros combates da Guerra do Paraguai Lutou durante cinco anos e por seus atos de bravura acabou alcançando o posto de coronel Nesse posto teve participação no último ato do conflito comandando o grupo que abateu o líder paraguaio Solano Lopez Como outros comandantes militares mesclou as carreiras de soldado e político nos anos seguintes Militante do Partido Liberal foi indicado para a presidência da província de Mato Grosso Em função de seu vínculo partidário assumiu a chefia do Exército no gabinete do visconde de Ouro Preto em 1889 Era um posto de total confiança do ministério e Ouro Preto não teve nada do que reclamar do seu ministro até o dia 15 de novembro de 1889 quando afinal os atos do marechal lhe revelaram que aderira aos revolucionários republicanos empenhados em derrubar a monarquia Desse dia em diante tornouse homem de confiança do marechal Deodoro e o primeiro ocupante do cargo de vicepresidente da República Manteve essa confiança quando o presidente fechou o Congresso e se tornou ditador Porém com imensa discrição não apenas fez contato com republicanos atarantados com o ato como também teve acesso a informações sigilosas relevantes Com o Parlamento fechado a papelada que regularizava o emprego de dinheiro público e empréstimos externos para comprar o banco à beira da falência ficou pronta em apenas duas semanas Porém no dia em que enviou o decreto à gráfica Deodoro teve a mesma surpresa do visconde de Ouro Preto foi apeado do poder por seu vice com o apoio do Exército da Marinha e dos republicanos Nem o visconde imperial nem o marechal presidente revelaram qualquer decepção pelo fato de terem apostado num traidor Antes colocaram suas frustrações na conta de uma grande capacidade de Floriano para criar confiança com palavras e por meio dos atos explicitar outra interpretação para as mesmas palavras Assim que tomou posse da presidência da República no entanto Floriano lançou um manifesto pelo qual se comprometia com dois objetivos O primeiro Manter a inviolabilidade da lei que é ainda mais necessária em sociedades democráticas como um freio às paixões do que é necessária nos governos absolutos com tradição de obediência pessoal será para mim e meu governo sacratíssimo empenho como também sêloá respeitar a vontade nacional e dos estados em suas livres manifestações sob o regime federal1 O segundo objetivo foi assim expresso A administração da Fazenda com a mais severa economia e a maior fiscalização da renda do Estado será uma das minhas maiores preocupações Povos novos e onerados de dívidas nunca foram felizes e nada aumenta mais as dívidas do Estado que as despesas sem proporção com os recursos econômicos da nação2 Pelas palavras portanto Floriano Peixoto se mostrava conhecedor dos princípios iluministas e se propunha a agir como um governante dessa espécie Também se afirmava como seguidor da doutrina das despesas controladas do governo um princípio que servia tanto para o regime antigo como para o novo Depois da deposição do companheiro de farda um segundo ato deu sentido às palavras Floriano suspendeu a impressão do decreto pelo qual o governo comprava os ativos do banco e evitou os empréstimos externos e um aumento ainda maior da dívida do governo em moeda estrangeira Como defensor das novas regras que separavam público e privado deixou que o banco que embora agente do governo era privado entrasse em liquidação O ato tinha relação muito direta com a segunda grande promessa de seu governo O processo de falência colocou em risco as fortunas imperiais aplicadas no banco que até então resistiam à debacle da produção cafeeira fluminense entre os acionistas contavamse 21 barões 18 viscondes e 3 condes Embora a derrocada do banco estivesse de acordo com as novas instituições republicanas não deixou de ser uma notícia trágica para gente acostumada a ter a saúde de suas finanças favorecida pela ação governamental e se tornou fonte de um rancor mudo contra o regime O que perdeu de um lado o presidente ganhou de outro A pronta ação no caso do banco fez com que os republicanos que apoiaram o novo presidente dessem em seguida um passo importante o Parlamento aprovou o mandato do marechal embora a Constituição indicasse expressamente a necessidade de convocar novas eleições e em seguida entrou em recesso por cinco meses deixando a direção do país em crise inteiramente nas mãos do empossado Estava passando um cheque em branco para o presidente agir sem o freio às paixões dos governos absolutos mas os atos seguintes de Floriano Peixoto mostraram que os parlamentares delegavam e sumiam de cena de modo consciente Assim como o marechal Deodoro o novo presidente do país resolveu consolidar a sua autoridade pelo método da derrubada dos governos estaduais Os alvos eram nada menos que 19 dos 20 governadores ficaria de fora o governador do Pará Lauro Sodré único que não apoiara o golpe de Deodoro Dessa vez como não havia a brecha legal a derrubada seria frontalmente contrária à inviolabilidade da lei que o presidente jurara defender com sacratíssimo empenho O conflito entre a letra da lei e o costume imperial da derrubada de presidentes de província foi assim descrito por Francolino Cameu e Artur Vieira Peixoto biógrafos do presidente Proclamada a República colocado em pleno vigor o regime presidencial federativo autônomos os Estados era de se esperar que aqueles que tomassem para si governar as unidades da federação fossem um pouco mais independentes tanto mais quanto não eram nomeados pelo centro mas eleitos pelo voto popular ou pelos congressos legislativos Mas o hábito estava feito e o hábito forma uma espécie de segunda natureza Com pequenas e honrosas exceções o costume de achar bom todo ato praticado pelo governo central continuava a produzir seus maléficos efeitos3 A frágil soberania dos eleitores de cada estado e o modesto poder dos governadores recémempossados foram triturados por atos que afrontavam a letra da lei O presidente da República agiu como os ministros imperiais derrubando os 19 governadores E foi apoiado em cada ato pelos republicanos que escreveram a lei inclusive os de São Paulo que ainda por cima pegaram em armas para afastar Américo Brasiliense que fora nomeado por Deodoro A derrubada permitiu a Floriano Peixoto colher outros frutos de poder Em março de 1892 13 generais e almirantes assinaram um manifesto contra as deposições de governadores O presidente decretou estado de sítio demitiu todos e aproveitou para prender e deportar sem julgamento um magote de civis entre os quais o jornalista José do Patrocínio e o poeta Olavo Bilac Estes encontraram um defensor em Rui Barbosa que entrou no recémcriado Superior Tribunal Federal com um pedido de habeas corpus para soltar quem havia sido preso ilegalmente O órgão máximo do Judiciário também mudara de estatuto com a nova Constituição deixara de ser subordinado ao Poder Moderador para se transformar em poder independente com juízes dotados de mandatos invioláveis Mas a mudança formal não eliminou o costume da secular dependência ao rei no Judiciário de modo que também ali o hábito persistiu sobre a letra da Constituição em vez de dar sentença os juízes pediram audiência a Floriano tentando saber o que pensava o governante do alto O presidente emitiu uma frase enigmática Não sei amanhã quem poderá dar habeas corpus aos ministros do tribunal No fim apenas um juiz foi favorável ao pedido enquanto os demais declararam o tribunal incompetente para julgar atos do presidente da República A persistência do costume imperial ajudou muito a que se consumassem as derrubadas de presidentes estaduais à margem da legalidade Com isso a impressão geral dos brasileiros passou a ser a de que o novo regime era apenas uma roupa nova para ideias muito antigas Por outro lado isso também fez com que pouca gente notasse a evolução da economia onde os acontecimentos obrigavam o presidente da República a contrariar sua promessa de contenção de despesas Os anos de Floriano Peixoto como presidente de novembro de 1891 a novembro de 1894 testemunharam o acirramento das diferenças entre o crescimento do setor privado brasileiro e a situação das finanças do governo federal o termo pelo qual a instância central de poder passou a ser designada na República A monetização da economia estava de fato servindo de instrumento para um aumento acelerado da produção e por causa dela até das receitas do governo Mesmo com a transferência da cobrança de alguns tributos para os estados determinada pela Constituição as receitas federais cresceram de 153 mil contos no último ano do Império para 345 mil contos ao longo de 1893 um aumento de 120 Da mesma forma as contas comerciais externas iam bem As exportações subiram de 285 milhões de libras esterlinas em 1889 para 31 milhões na média do período 189294 Como as importações se mantiveram relativamente estáveis por todo o período registraramse saldos comerciais Já as contas de capital foram muito afetadas pela crise mundial Os investimentos de capital foram de 54 milhões em 1890 a crise eclodiu bem no final do ano caíram para 600 mil libras em 1891 e se mantiveram nesse patamar daí por diante Somando comércio e capital o fluxo geral das transações externas se inverteu o superávit médio de 2 milhões de libras anuais dos últimos anos do Império se transformou num déficit de 760 mil libras anuais no período seguinte A consequência inevitável era a desvalorização da moeda Cada mil réis comprava 226 pence em 1890 no ano seguinte passou a comprar apenas 144 e o poder de compra flutuou em torno de 11 pence em 1892 e 1893 Como o governo ficara sem reservas ainda na gestão de Deodoro que forneceu libras baratas para os estrangeiros que tiravam o dinheiro do país o marechal Floriano foi obrigado a adquirir libras caras para saldar as dívidas externas Assim a situação de desvalorização cambial atingia negativamente as contas do governo federal Todavia essa mesma desvalorização tinha dois efeitos Ao encarecer as importações conferia uma proteção competitiva aos produtores nacionais que foram abrindo brechas no mercado Quanto aos exportadores era ainda maior o efeito positivo da desvalorização quanto maior esta mais eles ganhavam em moeda nacional Na média os cafeicultores de São Paulo receberam 37 milréis por saca em 1890 e 532 milréis no ano seguinte com acréscimo de 432 Como a produção também aumentou a renda total do setor cresceu nada menos de 71 Nos anos seguintes os aumentos de renda foram proporcionais à desvalorização Assim as tendências opostas das contas do governo e das contas do setor privado se ampliavam E não havia lugar em que os sofrimentos para alcançar o equilíbrio fossem maiores que no Rio de Janeiro Ali o mercado privado de títulos financeiros havia na prática desaparecido caindo 91 entre 1890 e 1892 Mas era ali também que estava o centro do movimento financeiro do governo carente de instrumentos para reagir emitindo títulos a fim de cobrir as maiores necessidades de caixa para saldar os débitos externos que cresciam em proporção maior que as receitas Floriano enfrentou o problema afastandose da sua política de austeridade com os recursos públicos Estatizou o banco privado que estava na lona e o fundiu ao Banco do Brasil O novo banco se tornou ao mesmo tempo dono de muitos ativos sobretudo ferrovias e empresas de navegação e instrumento dócil para a emissão de dinheiro não mais para monetizar a economia em favor do setor privado o objetivo de Rui Barbosa mas para cobrir os rombos do orçamento Essa situação de sinais opostos entre o desempenho do setor privado e o do setor público chegou quase ao paroxismo num estado brasileiro o Rio Grande do Sul Do ponto de vista da economia era um dos estados que mais vinham crescendo após a mudança de regime As vendas do charque o principal produto gaúcho saltaram de 256 mil para 357 mil toneladas entre 1889 e 1892 um crescimento de 48 Banha e couros tiveram desempenho ainda melhor A valorização da atividade empresarial permitiu a fundação de 30 sociedades anônimas num prazo muito curto O setor mais beneficiado foi a produção de tecidos com a criação de indústrias capitalizadas Já no ano da sua fundação 1891 as três maiores empregavam 2 mil operários sendo também mais importantes usuárias de trabalho livre na economia local Mas o estado estava dividido por conflitos políticos Em 1891 o maior líder republicano local Júlio de Castilhos forçara a aprovação de uma Constituição estadual de forte cunho positivista concentrando muitos poderes no Executivo o Legislativo estadual tinha apenas a função de verificar contas e as leis eram decretadas pelo governador permitindo a reeleição permanente do governador e restringindo o poder dos governantes municipais Como Júlio de Castilhos apoiara explicitamente a ditadura de Deodoro acabou apeado do poder pelos militares que estavam com Floriano Isso o levou a desencadear uma campanha efetiva de oposição aos indicados do Rio de Janeiro A instabilidade se acentuou muito com governadores subindo e caindo em ritmo frenético Em meio ao turbilhão emissários do presidente da República começaram a ter encontros discretíssimos com Castilhos Ao mesmo tempo nem mesmo os militares colocados no governo estadual pelos ministros militares que não eram positivistas nem defensores de uma ditadura conseguiam ser obedecidos pelos militares positivistas aquartelados no estado Numa tentativa de restabelecer o comando os ministros militares nomearam o visconde de Pelotas para governar o estado Ele fora o chefe de Floriano durante toda a Guerra do Paraguai seu padrinho político no Partido Liberal depois dela e contava com o respeito de muita gente Mas assim que tomou posse passou a ser hostilizado por militares que deviam os seus postos de comando ao presidente da República e que o instavam a renunciar em favor de Júlio de Castilhos inimigo aberto e declarado das posições liberais Pelotas preferiu renunciar em favor de Joca Tavares também veterano do Paraguai Já o comandante militar do estado nomeou Júlio de Castilhos que no mesmo dia renunciou e indicou Vitorino Monteiro para o cargo O estado ficou com dois governadores mas só o castilhista recebeu um telegrama de apoio e promessas de ajuda do presidente da República Júlio de Castilhos foi ao Rio de Janeiro acertouse com Floriano e retornou ao governo em janeiro de 1893 e as escaramuças violentas entre os partidários de cada governador se transformaram em guerra civil aberta a partir de março Por mais que fosse perito na dissimulação dos seus objetivos Floriano Peixoto não era o único militar capaz de interpretar sinais de guerra O almirante Custódio de Melo saído do Ministério da Marinha começou a ler documentos secretos e chegou a conclusões semelhantes às do visconde de Ouro Preto e do marechal Deodoro da Fonseca sem trair explicitamente sua palavra o presidente havia de fato derrubado o visconde de Pelotas cuja indicação contara com o apoio de Custódio de Melo Como ainda era almirante este reagiu com atos militares desencadeou uma revolta da Armada e colocou uma frota a serviço dos adversários de Júlio de Castilhos Floriano Peixoto também sabia lutar Mandou para o desterro Rui Barbosa quando este tentou defender os revoltosos comandou pessoalmente a defesa armada os canhoneios entre fortes do Exército leais a Floriano e os navios comandados por Custódio de Melo se tornaram diários no Rio de Janeiro expulsou a esquadra para o mar arrancou dinheiro dos paulistas para comprar outra esquadra Para pagar tudo isso emitiu como nunca Tornouse autoridade sem contraste um ditador de fato Era além de comandante o propagandista do figurino do sonho positivista de um ditador Fornecia uma imagem para todos os brasileiros pensarem soluções fortes para problemas agudos Mas não era ditador e sim um presidente da República com mandato Navegando na fronteira desses papéis opostos cumpriu seu melhor papel esfinge CAPÍTULO 41 Presidente eleito EM MAIO DE 1893 POUCO ANTES DA REVOLTA DA ARMADA OS PARLAMENTARES elegeram pela terceira vez o senador Prudente de Morais para o comando do Senado Seu discurso de agradecimento foi bastante direto Republicano dos tempos de propaganda dos tempos em que neste país era crime dizerse republicano naquela época a minha grande ambição o meu sonho de patriota era ver proclamada a República na minha pátria Vi o meu sonho ser realizado vi a minha ambição ser satisfeita Mas digoo com mágoa tenho ainda uma ambição maior que aquela ver o regime republicano traçado pela Constituição de 1891 realizado ver a República elevarse pelo estabelecimento da paz da ordem da garantia de todos os interesses e todos os direitos do cidadão Minha maior ambição na atualidade permitamme a expressão é tornar a República Federativa do Brasil numa realidade real1 Naquela altura haviam se passado 58 anos desde a eleição de Diogo Antônio Feijó até então a única ocasião em que o chefe do Executivo fora escolhido através do voto pelos cidadãos brasileiros Agora havia algo em favor do pretendente o suporte de toda a estrutura jurídica da nação Por outro lado havia também uma constante histórica tal estrutura era recente e abstrata e ainda não se convertera em costume para o cidadão Pior ainda a intenção de fazer coincidir as instituições republicanas e a realidade nacional competia diretamente com outro projeto o de Floriano Peixoto A competição começou em 3 de junho quando o líder do governo na Câmara Francisco Glicério enviou ao presidente um bilhete no qual dizia que talvez Prudente fosse candidato Recebeu a resposta de que embora ele não se opusesse ao indicado talvez Júlio de Castilhos fosse um nome melhor O ruído aumentou no dia 8 de julho de 1893 quando uma centena de parlamentares fundou o Partido Republicano Constitucional e marcou uma convenção para indicar Prudente de Morais como candidato à presidência da República No dia 6 de setembro eclodiu a revolta da Armada menos de um mês antes da convenção marcada para o dia 23 Assim o embate de ideias na convenção se fez ao som dos bombardeios na cidade Os dois projetos opostos para o comando do país foram expostos com toda a crueza Aristides Lobo o ministro que havia considerado o povo bestializado no momento da Proclamação da República era agora senador e florianista Elaborou uma pesada argumentação contra a eleição assim registrada na ata O senador diz que a falta de delegados na convenção e sua oportunidade são questões conexas A falta de delegados é por demais sensível e grave porque nas condições atuais a convenção é inoportuna O presidente da República carece de toda a força para sem tardanças sufocar a revolta contra o governo legal A apresentação de candidatos ao cargo que ocupa vem enfraquecêlo pois parecerá à opinião tão perversamente trabalhada e tanta vez facilmente desviável que não se confia nele em absoluto e que seus amigos desejam substituílo Julga que provocar ou dar volume a tal suposição é quase um atentado contra a República cuja defesa está confiada a seu braço É patente que haja conveniência para adiar a eleição e pasma que haja quem o ponha em dúvida Pretenderse marcar dia fixo para que um homem que se haja investido pela situação de todo o prestígio é incompreensível da parte dos homens públicos Se o movimento perdurar nem as eleições para os cargos supremos da nação talvez se possam realizar Adiese a convenção É a salvação pública que o exige2 Assim o movimento militar se transformava em programa político a favor da continuidade permanente do poder ditatorial A força para sufocar pelas armas seria razão muito maior do que a regra legal que fixava uma data para o término do mandato do governante Os eleitores antes definidos pelo orador como bestializados seriam agora pessoas facilmente desviáveis pouco confiáveis e a quem não se deveria pedir opinião O contraargumento veio do senador baiano Manuel Vitorino A convenção é oportuna e reclamada pelo estado revolucionário A luta entre a autoridade legal e a revolta gira em torno deste eixo o poder a 15 de fevereiro de 1894 Constituído um novo poder nesta data cai a luta A designação de um candidato a presidente da República não desprestigia o atual chefe da nação Pela Constituição ele deve deixar o cargo e as altas funções no ano vindouro Se testemunharmos que há um homem honesto respeitador da lei que ocupou o posto em que foi colocado até o último dia do seu mandato tendo presenciado a eleição de seu sucessor e cercado de todas as garantias a expressão da vontade popular teremos dado a este homem o maior prestígio perante o país inteiro Que querem todos Que em vez de se dizer Às armas se diga Às urnas Há na convenção muitos amigos que devem contribuir para que os homens do mar não continuem a enganar a boafé de alguns afirmando que o presidente da República quer perpetuarse no poder e que o veto à eleição é um sinal franco de semelhante aspiração Entremos na vida normal A escolha de candidatos é uma bandeira de paz com que se acena à revolução3 Depois de ardorosas discussões no dia 25 de setembro Prudente de Morais acabou sendo indicado como candidato a presidente da República e Manuel Vitorino como candidato a vicepresidente A candidatura marcou o início de outro enfrentamento agora político um candidato em disputa pela regra constitucional e um presidente com adeptos que apelavam para a união em torno do chefe o qual necessitaria de poderes excepcionais para vencer numa situação excepcional Uma luta entre um candidato à presidência nos moldes da Constituição e um candidatomarechal revestido de poderes de exceção Floriano Peixoto governava sem Parlamento com estado de sítio censura à imprensa nomeação de governadores e o controle do sistema financeiro Essa concentração constituía a base tanto do comando prático como da argumentação de Aristides Lobo e o presidente se esmerou para produzir fatos nesse sentido Entre esses fatos estava o abandono de sua promessa de austeridade com os recursos públicos Floriano Peixoto imprimiu um dinheiro que o governo não tinha para financiar a guerra interna nos meses seguintes à revolta da Armada as emissões sem lastro chegaram a 151 mil contos de réis ampliando em 27 o total de dinheiro em circulação Ao longo de 1894 o déficit do governo federal saltou de 95 no período 189192 para monumentais 292 do orçamento Mas os efeitos dessa emissão e desses gastos não foram totalmente desastrosos porque o emprego de dinheiro na economia havia mudado com o fim da escravidão e a implantação das instituições republicanas Entre estas uma se tornava realidade efetiva a soberania dos estados O ano de 1893 foi também aquele em que os governos estaduais passaram a contar com um reforço em suas receitas próprias transformandose em administrações de fato capazes de gestão econômica Era uma novidade secular Desde os tempos da tomada pelo governo central das capitanias hereditárias no início do século XVIII esse nível de governo se tornara quase um apêndice do centro A situação que durou dois séculos só mudou quando com o dinheiro de impostos vários governadores mostraram alternativas regionais inovadoras de gestão Em Minas Gerais o governo estadual conseguiu ao mesmo tempo triplicar o investimento em ferrovias e preparar o projeto para a construção de uma nova capital Belo Horizonte que seria a primeira cidade planejada do país Na Bahia o governo incentivou a cultura do cacau ao mesmo tempo que fortalecia a rede bancária estadual Em Pernambuco o governador empregou a arrecadação para reforçar um esquema de financiamento que afinal permitiu a introdução de usinas para substituir os engenhos Na região amazônica havia um crescimento exponencial das exportações de borracha a uma média de 205 anuais desde a proclamação da República A taxação sobre as exportações permitiu que o governo paraense implantasse uma rede pública de ensino um instituto para distribuir terras a pequenos lavradores um programa de atração de imigrantes subsídios para transformar a região bragantina em zona produtora de alimentos o que incluía a construção de uma ferrovia local Em São Paulo os maiores investimentos do governo foram nas áreas da educação e do saneamento A Escola Normal que formava professores fora instalada na gestão de Prudente de Morais logo após a mudança de regime Todos os sucessores investiram no projeto possibilitando a instalação de uma rede escolar com ensino gratuito e de qualidade As despesas com educação saltaram de 400 contos de réis em 1889 para 29 mil contos em 1893 Em cinco anos foram construídos 25 grupos escolares o número de vagas quadruplicou em relação ao Império e as mulheres encontraram um posto de trabalho bem pago não apenas como professoras mas na própria direção da rede Além disso o governo investiu nas primeiras instituições de saúde pública do estado e no saneamento das maiores cidades além de criar empresas públicas de abastecimento de água Na direção inversa da atuação dos governos estaduais que acentuava as mudanças econômicas e prestava serviços públicos à população havia dois casos Primeiro o do estado do Rio de Janeiro onde os primeiros governadores republicanos enfrentaram a queda de receita decorrente das perdas na produção de café por meio da distribuição de cargos públicos para os aliados em dificuldades O resultado foi a falência do governo estadual traduzida nos desastres de sempre salários atrasados dívidas repudiadas inexistência de apoio político A situação se tornou tão caótica que nem foi preciso fazer derrubada após a deposição de Deodoro O indicado por este deixou o governo por conta própria e os três sucessores legais simplesmente recusaram o cargo Floriano precisou catar à força alguém para cumprir a missão e que sobreviveu poucos meses na função O segundo estado com problemas era o Rio Grande do Sul A luta sangrenta pelo poder teve reflexos diretos na produção privada As fábricas de tecidos tiveram de suspender a produção incontáveis vezes tanto por combates como por falta de matériaprima As vendas de charque caíram pela metade As exportações de banha baixaram de 69 mil toneladas em 1892 para 44 mil toneladas em 1894 A produção de couro entrou em declínio do qual nunca se recuperaria Ainda assim a lista de projetos dinâmicos e próprios de cada região superava em muito a dos problemas e contrastava com a situação do governo federal Neste a única novidade advinda da mudança de regime fora a passagem dos funcionários mais conspícuos dessa esfera os padres para a administração do Vaticano Todo o mais permaneceu como dantes sem modernização das atividades nem atualização dos procedimentos As emissões sem lastro para financiar as despesas da guerra levaram a uma tensão ainda maior entre a situação do governo federal e aquela do restante do país setor privado mais governos estaduais e locais dessa vez envolvendo os próprios setores públicos federal e estaduais Floriano Peixoto foi atrás de libras esterlinas emprestadas para comprar navios de guerra capazes de enfrentar aqueles que o almirante Custódio de Melo levara para os federalistas Não conseguiu porque o governo era cliente de risco devia muito e gastava mais que arrecadava Então um representante do governo de São Paulo que apoiava o presidente apesar de tudo ouviu a história Passou adiante o recado e o governador paulista que dispunha de um orçamento com muitas receitas num estado repleto de vendedores de café que recebiam em libras esterlinas e melhor de um governo sem qualquer endividamento externo Por isso o governador não encontrou dificuldade para adquirir uma frota no exterior Sem alternativas o presidente aceitou passando assim a depender dos republicanos que também apoiavam Prudente de Morais Com isso as tensões inerentes à mudança da lei e ao enquadramento dos costumes atingiam o grau do paroxismo E começaram também a ganhar expressão simbólica de outra maneira aqueles que até a véspera eram tidos como os mais virtuosos da sociedade os nobres brasileiros próximos ao imperador viramse perdidos numa realidade na qual o objetivo explícito da política econômica era permitir o desenvolvimento do capitalismo e da indústria Se não tinham mais lugar como representantes do bem alguns monarquistas souberam se adaptar à realidade vazando suas perdas em forma estética Em outubro de 1893 enquanto os canhões troavam na capital leitores da Gazeta de Notícias começavam a desfrutar da obra de um legítimo monarquista saquarema O visconde de Taunay após renegar o casamento com a índia Antônia nos tempos da Guerra do Paraguai e retornado à Corte havia sido senador do Império pelo Partido Conservador Com o advento da República continuou monarquista defendendo os interesses da família imperial junto ao governo republicano Como tantos de sua classe se vira na contingência de aplicar seu dinheiro de acordo com os conselhos dos banqueiros do novo regime e perdera parte significativa de sua fortuna Escrevendo para ganhar dinheiro começou a publicar sob pseudônimo um folhetim intitulado O Encilhamento O romance tinha um herói para o qual quase ninguém ligava e um bandido satânico que embora exilado continuava sendo vilipendiado Ah o Rui Que homem que cabeça Estava assentando os alicerces de assombrosa e inabalável prosperidade O que cumpria era não lhe perturbarem os planos Acompanhálo cegamente de olhos cerrados Tomara de repente lugar entre os mais abalizados financeiros do globo coisa de meter inveja à própria Inglaterra4 Esse agente maléfico havia introduzido no Brasil o inferno da sociedade capitalista republicana descrito da seguinte forma pelo narrador Papel bancário era a verdadeira carta do baralho Não se o atirava fora porque o povo bestializado ali estava para pagar dócil ou inconsciente 100 ou 200 de taxa alfandegária Ninguém queria ficar igual ao vizinho A questão era alcançar cabedais os meios de ostentar luxo andar em belas carruagens fazer praça de gozo e dissipação vencer triunfar5 Feito o mal o castigo era inevitável Essa cruel e asquerosa época do encilhamento terá dilatada repercussão na vida brasileira derivando de hábitos e aspirações de todo modo contrários às inflexíveis leis econômicas que dificilmente hão de ser desarraigadas de nosso organismo moral Donde provém senão desse centro miasmático a absorção do indecorosíssimo e frenético jogo que se implantou penetrando no seio das melhores famílias como uma nojenta lepra que ameaça tudo contaminar e destruir Só muita energia muita consciência do dever muita força de vontade e valente patriotismo por parte daqueles que dirigem este pobre Brasil poderão nos atalhar de tantos males6 Não faltavam disjuntivas radicais Império e República escravidão e igualdade como princípio organizador das leis estabilidade ou progresso como objetivo da nação mercantilismo ou capitalismo eram as que mais ressaltavam na comparação entre os dois regimes Mas também havia aquelas próprias da República ditadura ou eleição governo pelo hábito ou pela lei ampliação ou limitação dos poderes do Estado crise do setor público federal e progresso do setor privado Com tudo isso não era de estranhar que os cidadãos fossem sensíveis às ideias do visconde perdidos entre o que seria moralidade separação do bem e do mal do vício e da virtude no novo regime Um mundo ruía depressa o outro ainda não estava firme Floriano Peixoto conseguiu o milagre de não ser decifrado em meio a esse conflito Era apoiado pelos republicanos paulistas e usava as armas financiadas por eles para implantar um regime ditatorial no Rio Grande do Sul aproveitando tudo isso para solapar ao máximo as eleições que se avizinhavam Nesse intuito valia tudo até o emprego de um instrumento autoritário inaugurado na ditadura do marechal Deodoro a censura férrea à imprensa Todos os telegramas enviados do Rio de Janeiro eram controlados por militares e os governadores estaduais inclusive o de São Paulo se encarregavam de providenciar que fossem publicadas como verdade factual as versões oficiais sobre todos os assuntos gaúchos Só se admitiam coberturas em branco e preto com os federalistas sendo enquadrados como revoltosos monarquistas e os positivistas como republicanos progressistas Não foi difícil portanto para o governo federal incluir o noticiário sobre a eleição e os candidatos no rol dos assuntos proibidos Restava aos cidadãos apenas a opção de se informarem por vias informais pelas conversas de políticos que iam e vinham da capital pelas palavras de prefeitos agora o chefe do executivo municipal começava a ser separado da delegação dos vereadores eleitos e vereadores O candidato Prudente de Morais se manteve firme assim como os seus apoiadores Dispunham de uma única arma o calendário fixado na legislação Bem no fim do prazo previsto em fevereiro de 1894 a censura foi levemente abrandada o suficiente para se informar de modo eufemístico que haveria uma eleição para presidente esta foi realizada em 1o de março e apuradas as urnas Prudente de Morais foi eleito com 291 mil votos Até a posse foram mais seis meses de tensão nos quais nem mesmo as vitórias do governo federal e de seus aliados gaúchos nos combates amainaram a censura da imprensa ou a pressão dos partidários do marechal Prudente de Morais continuou mantendo a confiança no calendário No dia 3 de novembro tomou o trem para o Rio de Janeiro Na estação da Central do Brasil só o esperava um político Francisco Glicério o construtor de sua candidatura Pegaram uma carruagem de aluguel foram almoçar no hotel Nos dias seguintes Floriano Peixoto recusou todo e qualquer pedido de audiência Por fim no dia 15 de novembro a esfinge desvela o segredo a seu modo Um representante secundário entrega o cargo ao sucessor O Marechal de Ferro achara demais afrontar o calendário mas jamais pensou em apoiar o sucessor O novo presidente inicia o mandato com as seguintes palavras Assumindo hoje a presidência da República obedeço à resolução da soberania nacional solenemente enunciada no escrutínio de 1o de março A cadeira republicana seria afinal ocupada por um republicano plenamente consciente da teoria por trás da organização do regime Um republicano que visava a coincidência entre a lei escrita ele mesmo liderara a transformação dessa teoria no conjunto de leis que se chamava Constituição e o coração pois tinha o costume da democracia CAPÍTULO 42 A arte de ensacar demônios NO DIA 15 DE NOVEMBRO DE 1894 O JORNAL O Estado de S Paulo publicou um editorial que partia da seguinte constatação É hoje o quinto aniversário da República É hoje também o dia em que o marechal Floriano Peixoto passa o governo do Brasil às mãos do Sr Prudente de Morais Seria impossível comemoração mais solene para a data Porque uma substituição regular tranquila perfeitamente constitucional do primeiro magistrado da nação é coisa que pela primeira vez se vê na história do Brasil D Pedro I foi forçado a abdicar D Pedro II banido O marechal Deodoro deposto O princípio da autoridade estava atacado de uma enfermidade que parecia incurável O marechal Floriano Peixoto quebra o encanto e chega triunfalmente ao termo legal de seu governo Caso se considere ainda que desde 1549 o ocupante do cargo executivo mais alto na administração do território era designado o ato daquele dia representava uma novidade multissecular mas não uma novidade absoluta na vida política brasileira Desde 1532 os vereadores eram eleitos e entregavam seus cargos ao final do mandato e essa regra imperava em todos os agora municípios A prática local enfim se espraiava para o todo As sucessões regulares nas vilas permitem entender as razões do sucesso da aposta de Prudente de Morais no sentido de que o marechal que deixava o cargo iria obedecer ao calendário constitucional embora tivesse poderes acumulados admiradores que o queriam ditador e até uma eventual vontade de ficar Floriano não se julgou capaz de vencer a luta caso rompesse com o estabelecido na lei O máximo que se permitiu foi extravasar com deselegância a frustração Segundo Luiz Felipe DÁvila Floriano preparou para seu sucessor um último constrangimento público O marechal não compareceu à cerimônia enviando seu ministro da Justiça Cassiano do Nascimento para representálo Constrangido ele transmitiu o cargo e saiu às pressas do palácio Prudente então deuse conta de que ele estava abandonado parecia uma casa malassombrada poeira nos móveis lixo nos cantos papéis rasgados no chão Pior que isso os estofos dos móveis do salão foram rasgados a baioneta O novo presidente transformou o descalabro de Floriano em ato público Mandou abrir as portas do palácio à multidão Em poucos momentos os salões fervilhavam de gente e fervilhavam também os comentários1 Em meio à multidão e ao alvoroço daqueles que nunca tinham visitado o prédio do governo Prudente de Morais comandou a primeira reunião do ministério E depois relatou todos os sentimentos numa carta ao amigo Bernardino de Campos A nova situação inaugurase sob bons auspícios Recebi adesões de todas as partes de todos os estados inclusive militares As nuvens vão desaparecendo e tornando claro o horizonte Você não imagina o que fizeram o major e sua gente até a última hora2Abrir portas chamar gente ganhar adesões fazer desaparecer nuvens clarear o horizonte para o futuro Prudente via tudo isso como parte de sua missão que sintetizou para o amigo Soltar o demônio da revolução é fácil Difícil é recolhêlo É o que fazemos agora cumprindo nosso dever cívico Em vez de concentrar poder Prudente de Morais abriu mão dele Suspendeu o estado de sítio em todo o país menos na região dos combates e a vida da maioria dos cidadãos voltou ao normal Mandou soltar todos os prisioneiros sem processo trouxe de volta os exilados como Rui Barbosa A política adquiriu certa normalidade Acabou com a censura à imprensa e apareceram nos jornais as grandes barbaridades da guerra civil e seus milhares de degolados Até quando não fazia nada ensacava demônios Desde o século XVIII o ato inaugural de um ocupante da instância executiva central era a troca em massa dos comandos da instância intermediária Tratavase de um hábito tão arraigado que os dois primeiros ocupantes da presidência não hesitaram em efetuar as derrubadas de governadores Prudente de Morais fez simplesmente o que a Constituição determinava deixou no governo quem estava e deu um sinal claro de que as regras do mandato e da eleição valeriam também para os estados conforme o desenho da federação republicana Com isso afastou muitos demônios para longe da capital e ajudou na implantação efetiva da autonomia nessa esfera intermediária de governo Esse princípio valeu até mesmo para o Rio Grande do Sul cuja Constituição tinha princípios opostos aos das crenças do presidente e da Constituição federal Ao negociar a pacificação do estado Prudente de Morais aceitou a Carta positivista e o papel ditatorial reservado a Júlio de Castilhos obtendo com isso um acordo rápido Este coincidiu com a morte de Floriano Peixoto em junho de 1895 Com o marechal desapareceu a grande esperança dos positivistas numa ditadura nacional e as diferenças de concepção entre estes e os demais republicanos adquiriram uma dimensão mais de âmbito regional A rápida estabilização política permitiu abrir muitas janelas na administração do governo federal Prudente de Morais mandou vender parte da frota naval aumentada pelo conflito cortou despesas de forma cautelosa e conseguiu que o déficit do governo central voltasse ao que era no início da crise internacional em 1891 Isso lhe permitiu conter as emissões Sem estas estabilizou o câmbio no patamar baixo em que estava mas acumulou divisas para o pagamento da dívida externa ainda que isso custasse muito em moeda nacional Em decorrência dessas medidas as últimas economias regionais ainda em crise se recuperaram Após anos de perdas a produção do Rio Grande do Sul passou a se expandir Santa Catarina e o Paraná menos afetados retomaram a produção industrial em ritmo mais forte No Rio de Janeiro a produção de café se estabilizou e novas atividades econômicas possibilitaram um início de regularização das finanças estaduais A situação do setor privado na capital do país começou a melhorar com o avanço da indústria especialmente no setor têxtil Como sabia que precisava além de governar conquistar corações Prudente de Morais aproveitou o momento para lidar com símbolos pois sabia falar nessa linguagem que os analfabetos que embora não pudessem votar eram cidadãos soberanos podiam entender Até então a linguagem ritual do poder girava toda ao redor do costume imperial da sacralidade decorrente da colocação no ápice do poder da pessoa coroada a cabeça do corpo místico Para realçar tal crença havia todo um cerimonial cujo palco era o palácio imperial Embora situado num lugar visível era inacessível a quase todos Só entravam nele seres especiais os homens da Corte Mesmo estes tinham acessos diferenciados estar com o monarca que transitava em ambientes muito fechados dentro do palácio fechado era como estar com um deus O imperador quando precisava encontrar mais gente no geral o fazia fora do palácio Prudente de Morais criou rituais que iam no sentido oposto o de transformar as cerimônias públicas em prestação de contas aos cidadãos na qual o governante se explicava ao soberano popular Assim em agosto de 1895 anunciou o término do conflito gaúcho num discurso para milhares de pessoas feito da sacada do palácio Com isso mudou o sentido do ato de governar transferindoo das esferas elevadas para aquela dos cidadãos que o haviam elegido Foi o primeiro governante republicano a ganhar alguma popularidade Essa alteração do ritual afetou até mesmo o exercício do poder privativo que lhe era reservado constitucionalmente a chefia do Executivo Pela regra ministros eram subordinados e podiam ser demitidos a qualquer momento Mesmo assim tratou de criar com seus subordinados uma relação diferente da tradicional obediência cega e leal que antes caracterizava o poder pessoal Prudente de Morais encorajava os ministros a exporem pontos de vista opostos ao seu buscando consenso Ficou conhecido o caso do ministro do Exterior Carlos de Carvalho que contrariou lealmente na frente de todos os colegas uma determinação presidencial para que se resolvesse por arbitragem a invasão inglesa da ilha de Trindade Em vez de se sentir diminuído em sua autoridade o presidente aceitou o caminho proposto pelo ministro com uma frase que ficaria famosa Curvome às suas razões que talvez estejam com a verdadeira razão E de fato estavam já que o ministro resolveu o caso bem depressa por meio de uma mediação Todavia um assunto pessoal alterou as circunstâncias do seu governo No dia 10 de novembro de 1896 Prudente de Morais foi submetido a uma delicada operação na bexiga procedimento então de altíssimo risco Transmitiu o governo temporariamente ao vice Manuel Vitorino Este defendera a candidatura de Prudente num momento difícil em pleno governo Floriano Mas se elegeu para um cargo que embora sem substância própria atraía os descontentes com o poder Dando ouvido a estes Manuel Vitorino viu no afastamento do presidente uma chance de mostrar suas qualidades pessoais de governante Em vez de continuar a linha de atuação do titular afastado temporariamente trocou quase todo o ministério deixando nele apenas um homem fiel ao titular Bernardino de Campos o ministro da Fazenda E em busca de uma oportunidade resolveu aproveitar um pedido de intervenção num conflito local em Canudos feito pelo governador do seu estado a Bahia para reanimar fantasmas Antônio Moreira César fizera carreira no governo Floriano Peixoto Primeiro foi encarregado de comandar as derrubadas dos governadores de Sergipe e da Bahia missões que cumpriu abrindo fogo contra a população Na revolução federalista como governador militar de Santa Catarina ganhou fama assim descrita por seu biógrafo A bestialidade humana não ficará circunscrita aos fuzilamentos no quilômetro 65 da ferrovia CuritibaParanaguá nas fortalezas de Santa Cruz de Anhatomirim e Araçatuba ambas em Santa Catarina A bestialidade humana que existe no cérebro de certos caudilhos e seus comandados fez com que chafurdassem no gozo da prática do hediondo espetáculo de expor carótidas e vísceras humanas ao ar livre3 Os 185 fuzilamentos ordenados por ele geraram a alcunha de TremeTerra Após a pacificação Prudente de Morais não removeu o coronel do estado deixouo ali para ser cobrado pelos parentes das vítimas para olhar de frente os fantasmas dos mortos que produzira Respondeu com silêncio sempre se recusando a dar explicações Quando afinal recebeu ordens para voltar os fantasmas estavam em sua cabeça como conta Euclides da Cunha Embarca com seu batalhão num navio mercante em pleno mar com surpresa de seus próprios companheiros prende o comandante Assaltarao sem que houvesse o mínimo pretexto a suspeita de uma traição um desvio de rota adrede disposto para o perder e a seus soldados O ato seria absolutamente inexplicável se não o caracterizássemos como aspecto particular da desorganização psíquica em que se encontrava4 Ficou remoendo seus fantasmas interiores até ser convocado por Manuel Vitorino para quem fora indicado pelos florianistas que frequentavam os grupos que se aliaram ao vicepresidente Assim a intervenção em Canudos foi revestida pela imprensa do grupo como parte de um enredo o heroico coronel estaria sendo enviado para combater um perigoso bastião monarquista estabelecido nos sertões da Bahia Em ação Moreira César era um comandante militar assombrosamente ágil Levou apenas cinco dias entre 3 e 8 de fevereiro de 1897 para embarcar o 7o Batalhão de Infantaria num navio no Rio de Janeiro desembarcar em Salvador colocar todo o material num trem e levar os 1300 homens e todos os apetrechos até Queimadas a estação ferroviária mais próxima de Canudos Dali mandou engenheiros para estudarem os caminhos e condições No dia 17 entrou na vilasantuário de Monte Santo e cinco dias depois partiu rumo a Canudos A despeito de toda essa eficiência não estava bem de saúde Na saída de Monte Santo sofreu uma crise de epilepsia Outras foram se sucedendo pelo caminho Assim a autoridade encarregada de tratar com um sertanejo apresentado pela imprensa como louco monarquista aproximavase de seu alvo já lutando duramente com fantasmas interiores e acessos epiléticos No dia 3 de março avistou Canudos e ordenou um ataque imediato sem reconhecimento No meio da luta foi alvejado Enquanto agonizava à noite suas tropas se dispersaram Mil e quinhentos homens bem armados foram dizimados por sertanejos mal armados Na manhã do dia 4 de março momento da morte do coronel Prudente de Morais reassumiu a presidência da República Desembarcou sozinho diante do Palácio do Catete a sede recémadquirida pelo vice Por dois dias governou sob pesadas críticas daqueles que sonhavam com fantasmas e ainda com o ministério herdado do vice Então chegou por telégrafo a notícia de que o Treme Terra estava morto A reação foi violenta No Rio de Janeiro foram empastelados três jornais pouco depois num atentado contra o visconde de Ouro Preto último chefe do gabinete da monarquia um grupo liderado pelo filho de Benjamin Constant assassinou o jornalista Gentil de Castro Até parlamentares florianistas foram às ruas Brígido Tinoco biógrafo de Nilo Peçanha descreve Nilo Peçanha num comício imputa ao presidente o erro de mancomunarse com a caudilhagem monárquica Volta a falar na sacada de O País onde faz a apologia de Moreira César vítima do fanatismo aliado à politicagem de brasileiros desnaturados Alcindo Guanabara é aclamado pelo populacho em frente à redação da República José do Patrocínio e Paula Nei incitam as massas das janelas de A Cidade do Rio Francisco Glicério acusa Prudente de encastelarse no silêncio ante o sacrifício de Moreira César e outros bravos5 Foram necessários quatro dias para controlar a fúria popular no Rio de Janeiro E a paz só veio depois que o presidente recebeu uma comissão de manifestantes que vinha lhe pedir a implantação do estado de sítio pela primeira vez em seu governo Antônio Barreto do Amaral registrou a resposta Respondeu Prudente de Morais não ser necessária a providência pois sentiase forte e prestigiado pela opinião pública o que era suficiente para a defesa da pátria6 Mas não se esqueceu de cuidar da defesa armada O envio da expedição havia sido um ato de Estado O Exército conhecera uma derrota e não havia como evitar uma retaliação A única coisa que Prudente de Morais podia escolher era o modo de fazer isso E ele conduziu a situação sem o apelo à suspensão dos direitos constitucionais Para isso teve de enfrentar muitos que se consideravam seus aliados O primeiro deles foi o ministro da Guerra Francisco Argolo indicado pelo vice na interinidade e muito ligado aos jacobinos Cabia a ele comandar a reação armada mas incluía nesse comando atos como mandar cartas assinadas a jornais com críticas aos procedimentos do governo Foi removido e o presidente providenciou a organização de uma expedição militar com 7 mil homens comandada pessoalmente pelo novo ministro da Guerra Carlos Machado Bittencourt com o objetivo de aniquilar Canudos Seria no entanto uma ação militar bem diferente daquelas efetuadas no governo Floriano por causa de um importante detalhe Sem estado de sítio nem derrubada de governadores o campo de batalha tornouse um espaço aberto para a imprensa o que fez toda a diferença A campanha foi coberta por repórteres de modo que as notícias iniciais fundadas na hipótese de um poderoso bastião monarquista foram ganhando outro caráter o noticiário do massacre de uma população civil pobre sem nenhum vezo ideológico pelas armas da nação Tal mudança ocorreu por exemplo com Euclides da Cunha Quando morreu Moreira César ele era um dos jacobinos que escrevia editoriais virulentos em defesa da tese do bastião monárquico No dia da morte de Antônio Conselheiro que cobriu como testemunha e repórter escreveu Sejamos justos há alguma coisa de grande e solene nessa coragem estoica e incoercível no heroísmo soberano e forte dos nossos rudes patrícios transviados e cada vez mais acredito que a mais bela vitória a conquista real consistirá em incorporálos amanhã em breve definitivamente à nossa existência política7 A janela da imprensa mantida aberta por Prudente de Morais produziu também efeitos políticos À medida que reportagens como essa foram publicadas outros fantasmas desapareceram e positivistas perderam poder Parlamentares que antes iam às ruas contra o presidente pediram desculpas e aderiram a ele Retomando o controle do Parlamento o presidente conseguiu fazer o sucessor Os poucos positivistas restantes se reagruparam em torno de Júlio de Castilhos que rompe com o governo federal No Exército porém a oposição ainda se manteve forte No dia 5 de novembro de 1897 Prudente de Morais foi ao Arsenal de Marinha receber o marechal Carlos Machado de Bittencourt o ministro do Exército que comandara as ações em Canudos e retornava vitorioso O presidente enfrentou uma situação já conhecida nenhuma autoridade para o receber na hora de subir a bordo Na saída apenas o ministro e um oficial acompanhavam Prudente de Morais O trio atravessa uma multidão de militares e populares que gritam vivas ao marechal Floriano A banda ataca o Hino Nacional para encobrir a manifestação De repente um homem se destaca pula na frente do presidente e saca uma garrucha Com a arma quase encostada no coração do presidente pressiona o gatilho A arma falha Tenta de novo Nova falha O ministro se atira no agressor e recebe uma facada mortal Outros presentes o dominam enquanto o presidente é arrastado para longe A cidade fervilha em boatos acerca de um golpe de Estado em andamento Prudente de Morais toma uma decisão faz questão de ir ao velório e de carregar o caixão do homem que salvara sua vida desfilando diante de uma multidão calculada em 30 mil pessoas reunida no cemitério Até a viúva do marechal pedelhe que desista O representante eleito pela soberania popular acredita na força da opinião para se defender A essa altura o boato que se espalha é outro Pelo velório circula a versão de um milagre assim narrada por Silveira Peixoto De que lado o soldado apontou a pistola pergunta Adelaide a mulher de Prudente Aqui do lado direito Você viu o que há ali no bolso Prudente leva a mão ao bolso indicado Retiraa Vem com a mão uma imagem de Nossa Senhora da Aparecida Olhaa comovido Fui eu que a pus aí diz Adelaide8 A versão do milagre se torna popular e funda um mito de santidade e coragem que transporta Prudente de Morais para o mundo da veneração popular Até mesmo historiadores insuspeitos de adesão a crendices como Edgar Carone descrevem a mudança como quase sobrenatural Na saída do cemitério o presidente é aclamado sua carruagem é acompanhada pelo povo a imagem de ódio e repúdio contra Prudente de Morais desaparece tornandose ele um ídolo É essa multidão que à noite dirigese para os jornais jacobinos empastelando as redações9 Prudente de Morais soube capitalizar o sentimento para sua crença Saiu do velório e divulgou um manifesto para a nação que terminava assim A nobre indignação popular manifestada naquele trágico momento as inequívocas provas de apoio e solidariedade dadas ao presidente da República fortalecemme a convicção de que posso contar com o povo brasileiro para manter com dignidade e desassombro a autoridade de que estou investido pelo seu voto espontâneo e soberano10 E pôde A popularidade de Prudente de Morais tornouse um sustentáculo perceptível de um projeto distinto da luta contra fantasmas transformar o brasileiro pobre no dono do país incluílo na existência política da nação republicana na posição de locomotor único que pregavam a propaganda e as palavras do presidente agora inteligíveis para muitas pessoas Os últimos demônios são postos no saco Com eles recolhidos Prudente de Morais efetivamente chegou ao ponto que desejou um republicano com lugar no coração dos brasileiros Depois do atentado passou a ser aplaudido por uma multidão onde quer que andasse Como sentia esse contato como obrigação como parte da prestação de contas que um detentor de mandato deve aos cidadãos que lhe conferiram o mandato respondia com simpatia e sua popularidade aumentou ainda mais E assim o ano de 1898 caracterizouse por ser um momento de transição com três tempos tempo passado para o sonho nacional de uma ditadura positivista tempo presente para uma concepção da presidência da República derivada da vontade popular e tempo de futuro para um candidato peculiar à sucessão CAPÍTULO 43 Primeira década alternância e mercado COM A ESCOLHA DE CAMPOS SALES PARA SUCEDER PRUDENTE DE MORAIS firmavase o princípio da alternância no comando do Executivo central Tal como vereadores e autoridades municipais vinham fazendo por séculos o exercício do poder seria exercido por um período limitado findo o qual o governante transmitia o cargo a um sucessor eleito Além disso começava a se consolidar também a divisão de poderes O modelo do governo federal com a separação entre Executivo com mandato único e sem reeleição e Legislativo eleitos mais um Judiciário com nomeações técnicas e mandatos invioláveis acabou se reproduzindo em muitas constituições estaduais De acordo com o mesmo princípio começou a se disseminar uma separação na esfera municipal com a criação de um cargo de prefeito eleito Ainda que restrita ao Rio Grande do Sul havia também a constitucionalização da tendência oposta Ali a Constituição reunia poderes imensos nas mãos de uma pessoa que podia ser reeleita quantas vezes conseguisse Além de comandar o Executivo o autocrata governava por decretos indicava os parlamentares e comandantes dos executivos municipais controlava as nomeações para o Judiciário e dirigia o partido que sustentava tudo isso Uma vez que a Constituição federal exigia a realização de eleições estas tinham como única função sagrar a sabedoria do ditador No entanto descontada a exceção a regra geral se fixava depressa pois mais do que a letra de uma lei a alternância tinha relação com o costume secular dos governos locais E a realidade da primeira década republicana mostrou razoável substância do princípio permitindo alternância real de projetos dos presidentes da República Deodoro governou como um presidente que ouvia o gabinete mas viveu às turras com o Parlamento Floriano Peixoto fora o mais próximo do que poderia ser um ditador positivista nos moldes da nova Constituição Governara o tempo todo com estado de sítio censura à imprensa nenhuma oposição no Parlamento intervenção nos governos estaduais tropas na rua Mas não julgou possível ultrapassar o limite de seu mandato de modo que tudo pôde ser revertido no dia seguinte comprovandose a flexibilidade do sistema Prudente de Morais norteavase por um ideal que reafirmou em momentos simbólicos como o anúncio da candidatura o discurso da posse as falas na administração durante as crises e os discursos populares quando enfim teve amplo público afirmava ser alguém que governa a nação como representante eleito dos cidadãos Convicto disso media seu poder como sendo derivado da força da opinião em outras palavras teria tanto mais poder quanto mais tivesse apoio da sociedade No momento da posse tal convicção era pouco mais que uma idiossincrasia pessoal Poucos acreditavam naquele momento que resultaria em poder efetivo de mando convergência de pontos de vista apoio para as medidas do governo e sobretudo vitórias reais contra adversários políticos Ao longo do caminho a crença do presidente foi deixando de ser apenas dele desembocando no movimento praticamente inédito na vida brasileira em que as multidões se identificavam com o governantecidadão em manifestações públicas e na repercussão pela imprensa Todo esse conjunto de vitórias políticas era construído com os valores opostos aos predominantes no Império Para os teóricos brasileiros do regime monárquico o rei representava a nação por contraste em relação aos súditos Quanto maior a distância entre a Coroa civilizada o rei vestido de cetro coroa e murça de penas de papo de tucano e a sociedade bárbara maior o esplendor maior a qualidade do rei como representante da nação Prudente de Morais recolocou a questão da identidade entre o representante e os membros da nação entre governante e governados A ligação de ambos pela força da opinião igualava as partes e o apoio popular aparecia para ele como a prova de que tinha razão contra todas as evidências em favor da desigualdade como fundamento da atividade de governar Aproximandose do povo Prudente de Morais arrastou uma fronteira No tempo do Império a lei definia os modos opostos da igualdade e desigualdade como soberanias distintas e as escaramuças fronteiriças entre ambos os modos se expressavam na política oficial hierarquizadora Com a República porém veio um novo enquadramento colocando a igualdade como norma legal e relegando o princípio da desigualdade à esfera do costume com a exceção gaúcha que não deixava de ser muito relevante Assim como três séculos de legislação feita para manter a desigualdade não eliminaram os costumes brasileiros uma década de legislação iluminista nem sequer arranhou o fato de que as teorias de governo fundadas na desigualdade estavam entranhadas não só nos conceitos mas nas práticas cotidianas de governantes e agentes sociais Tal como o Império a República não fora exatamente uma revolução um movimento no qual um princípio se impõe a outro por meio da força Comandada por pessoas que até a véspera eram quase marginais na vida política regular conseguiu impor sua autoridade ampliando fronteiras dominando em parte alguns espaços dividindo outros com aliados que propunham ditaduras dependendo ainda de conservadores ou dos raros liberais que haviam exercido poder no regime decaído Com tudo isso também a República ia na prática levando adiante o princípio formador da nação proposto por José Bonifácio colaborando em prol de um amálgama de materiais diversos transformando paulatinamente o heterogêneo em homogêneo Assim como os presidentes tinham interpretações variadas de seus cargos também os efeitos das mudanças republicanas concentradas sobretudo num novo modo de fazer a lei escrita e cuidar de sua execução revelaramse muito diversos nos vários setores da vida social A área que estava conhecendo maiores mudanças era a produção econômica e esta salientavase pelas disparidades regionais Na primeira década republicana o maior crescimento ocorreu na Amazônia entre 1890 e 1900 a população do Amazonas cresceu 70 e no Pará 371 O valor das exportações de borracha sextuplicou entre o final da década de 1880 e o final do século ainda que o dado seja impressionante cabe lembrar que no período ocorreu uma grande desvalorização cambial de modo que as vendas quase não cresceram quando expressas em libras esterlinas Mas a sextuplicação da renda em milréis teve efeitos imensos no crescimento do mercado interno Em 1897 o Amazonas exportou 37 mil contos e importou 15 mil No Pará as exportações foram de 116 mil contos e as importações não chegaram a um terço desse valor 33 mil contos2 O movimento permitiu a acumulação de capitais internos traduzida na instalação de um sistema bancário sólido com capital realizado de 22 mil contos3 Do lado material Belém e Manaus ganharam casas e equipamentos urbanos à altura da riqueza de alguns de seus habitantes Parte das rendas internas foi apropriada pelos governos estaduais O orçamento do Pará de 32 mil contos em 1888 saltou para 25 mil contos uma década depois Com esses recursos os governos criaram uma rede pública de ensino e financiaram a distribuição de terras a produtores por meio de um programa destinado a atrair migrantes e imigrantes São Paulo foi outra região de grande progresso com uma característica peculiar embora houvesse crescimento de exportações este acontecia em ritmo menor do que o aumento do mercado interno local Um indicador simbólico é a distribuição demográfica A capital do estado onde não se plantava café tinha 47 mil habitantes em 1887 e contava 240 mil em 1900 ou seja quintuplicou no breve intervalo de 13 anos Apenas para abrigar esses novos moradores foram criadas 26 sociedades anônimas no setor da construção civil mais uma dezena de empresas ligadas a grandes empreendimentos imobiliários Ao lado da explosão na construção civil registrouse forte aumento de toda a indústria na primeira década republicana Como notou Flávio Saes a indústria da cidade de São Paulo ganhou nova dimensão nos anos 1890 O setor têxtil era o mais expressivo e as maiores indústrias da capital eram a Anhaia com 620 operários no Bom Retiro a Industrial de São Paulo com 320 operários na rua Florêncio de Abreu e a fábrica de Jutas Santana de Álvares Penteado com 920 operários no Brás4 Outro ramo industrial importante foi assim descrito por Wilson Suzigan A maioria das grandes fábricas que estavam funcionando em São Paulo no ano de 1907 eram as mesmas que haviam sido fundadas nos anos 1890 Grande Fundição do Brás 1892 Companhia Mecânica e Importadora de São Paulo 1890 Lingerwood Manufacturing 1868 em Campinas e 1889 em São Paulo Craig Martins 1895 e Arens Irmãos 1890 Essas empresas empregavam entre 100 e 353 operários e produziam principalmente máquinas agrícolas ferramentas e implementos agrícolas pequenos motores a vapor equipamentos de transporte e peças e estruturas de ferro para construções5 Com isso a cidade se tornou basicamente um centro industrial com 30 mil operários fabris na virada do século E a capital servia de base para uma acelerada expansão de mercados Os dados do setor de transportes são claríssimos a respeito do maior crescimento do mercado interno As cargas de outras mercadorias que não o café pelas principais ferrovias do estado conheceram enorme incremento em tonelagem na primeira década republicana 140 na SantosJundiaí 471 na Companhia Paulista 19 ao ano Todas essas expansões eram bem mais aceleradas que a da produção de café que também era acentuada Apenas entre 1890 e 1898 esta cresceu 78 Era um ritmo de expansão semelhante ao da população do interior do estado que aumentou 65 entre 1890 e 1900 E no caso do café a produção final nem era o mais importante Ao longo da década de 1890 o número de cafeeiros plantados em São Paulo saltou de 106 milhões em 1890 para 220 milhões em 1900 um crescimento de 108 superior ao da produção6 O crescimento da produção cafeeira paulista foi de tal monta que alterou a divisão do mercado mundial do produto Em 1890 todos os demais países além do Brasil produziram 41 milhões de sacas de café7 em 1898 a produção desses países foi de 44 milhões com aumento de 75 na década um décimo do ritmo paulista Como resultado o café produzido em São Paulo que representava 34 da produção mundial em 1890 passou a ocupar 41 do mercado Para completar o balanço da economia paulista na década inicial da República resta o setor público no qual se destacava o governo estadual Após o aumento advindo das novas normas constitucionais em 1893 as receitas foram ano a ano acompanhando a produção de café até alcançar cerca de 42 mil contos em 1898 Como proporção da receita federal os impostos arrecadados em São Paulo representavam por volta de 3 na época do Império e passaram para algo em torno de 12 a partir de 18938 Esse crescimento não foi suficiente para inverter a tendência global e São Paulo continuou exportando dinheiro de impostos para a federação ao longo de toda a década Mas as receitas estaduais tiveram um efeito importante permitiram um emprego novo do dinheiro público com alta concentração de investimentos em capital humano As despesas com educação saúde imigração e segurança quase sempre visando a melhoria das condições de formação da população representaram em 1896 62 dos gastos totais do estado As obras públicas investimento em infraestrutura totalizaram 35 dos gastos no mesmo ano9 Era uma diferença radical com relação ao papel do Estado nos tempos do Império A implantação de uma política pública de educação fez com que finalmente o número de crianças na escola crescesse em proporção bem maior que a população infantil Do mesmo modo os investimentos em hospitais e saneamento tornaram viável o início do controle das epidemias Em suma a economia de São Paulo passou por um crescimento extraordinário ao longo da primeira década republicana É nesse cenário que cabe analisar o comportamento do setor financeiro Em 1898 os depósitos totais nos bancos do estado eram de 188 mil contos dez anos depois atingiram 581 mil contos um aumento de 209 número menor do que os melhores indicadores de produção física10 E os bancos conseguiram empregar esses depósitos com uma produtividade crescente no mesmo período o total dos créditos de curto prazo saltou de 223 mil para 107 mil contos multiplicandose por cinco Esse melhor emprego dos recursos deveuse especialmente aos bancos brasileiros a fatia deles no mercado de crédito passou de 422 em 1889 para 874 em 1895 deixando apenas 126 para as filiais de instituições estrangeiras Além da maior eficiência os bancos nacionais também criaram novos mecanismos de crédito de longo prazo algo em torno de 17 mil contos em 1897 e continuaram a investir em ações de empresas os investimentos representavam entre 97 e 14 mil contos das carteiras de aplicações entre 1892 e 1898 Com isso o crédito total em São Paulo cresceu de 223 mil para 1184 mil contos entre 1889 e 189811 um crescimento de 54 vezes ao longo da década ou uma média de expressivos 19 a cada ano igual à do transporte de mercadorias despachadas pela Companhia Paulista de Estradas de Ferro Os indícios em todo o país apontavam na mesma direção Em Minas Gerais apesar do ritmo lento de crescimento demográfico no setor têxtil foram criadas cinco grandes indústrias na primeira década republicana A Cedro Cachoeira maior indústria do estado produziu 435 mil metros de tecidos em 1882 e 3 milhões de metros em 189812 Foram instaladas as primeiras siderúrgicas e a malha ferroviária triplicou nessa década13 Concluída em 1897 a construção de Belo Horizonte a cidade contava 12 mil habitantes no dia da inauguração Na Bahia começava a exportação do cacau que ajudou a impulsionar a economia ao mesmo tempo que as usinas de açúcar pernambucanas traziam a maior produção local a um novo nível de competitividade No Paraná e em Santa Catarina apesar dos problemas durante a luta federalista o nível da produção local também registrou uma alta marcada No CentroOeste tiveram início os investimentos na melhoria do rebanho com as primeiras importações de gado zebu da Índia Em apenas dois espaços brasileiros os sinais não eram totalmente positivos No Rio Grande do Sul a recuperação econômica após o conflito foi rápida A produção de charque saltou de 18 mil toneladas em 1896 para 285 mil em 1898 As vendas de banha praticamente dobraram entre 1894 e 189614 Mas esse crescimento não veio acompanhado de igual incremento na infraestrutura a malha ferroviária teve crescimento zero durante a década além de ter sido bastante prejudicada pelos combates Já o estado do Rio de Janeiro foi aos poucos se recuperando da depressão causada pela adaptação dos cafeicultores ao trabalho livre em 1899 a safra chegou ao mesmo patamar de 1889 mas a essa altura o estado começava a receber as primeiras grandes indústrias sobretudo no setor têxtil As novas fontes de receita permitiram um início de estabilização na crise crônica da administração estadual Por fim na economia do Distrito Federal o setor privado se reorganizara inteiramente na década Com 500 mil habitantes na virada do século tinha o dobro da população de São Paulo Era de muito longe o maior centro industrial do Brasil além de ser o mais variado em produção e o mais avançado em tecnologia Com a passagem do Império para a República houve uma grande mudança na composição das relações de financiamento da economia e o comissário de café desapareceu como figura central da burguesia comercial Porém como a capital continuava sendo o grande porto importador do país surgiram fortunas ligadas a uma mescla de comércio de importação transporte e distribuição cuja figura símbolo eram os Guinle oriundos das empreitadas de obras ferroviárias para a indústria de base e a administração do porto de Santos O mais amplo indicador da atividade econômica no mercado interno é o movimento das principais ferrovias que partiam do Rio de Janeiro um crescimento de 82 anuais nas cargas excluído o café da Central do Brasil entre 1890 e 1895 no auge da crise Já na Leopoldina os dados referemse a um período maior entre 1885 e 1899 as cargas totais foram multiplicadas por 42 Os produtos distribuídos pelas ferrovias tomavam o lugar do café como centro dos negócios da capital Levandose em conta as economias das regiões ressalta o desenvolvimento do mercado no país A consolidação dos dados quantitativos em âmbito nacional ainda está por se fazer mas os poucos e precários dados existentes apontam na direção de um crescimento forte da produção interna durante a década inicial do regime republicano O único indicativo nacional da produção têxtil refere um aumento no número de fusos instalados que passaram de 79 mil em 1883 para 280 mil em 1898 Além disso apenas 31 dos fusos contabilizados em 1883 pertenciam a empresas organizadas como sociedades anônimas contra 61 da segunda contagem Bem mais consistentes são os dados do setor de transporte A malha ferroviária brasileira passou de 95 mil para 147 mil quilômetros uma expansão física de 54715 algo só possível com grandes investimentos de capital Já as cargas transportadas tiveram crescimento ainda maior de 19 milhão para 39 milhões de toneladas um incremento de 10516 Quaisquer que sejam as limitações desses dados para sustentar generalizações de argumentos não há como negar que o quadro era de crescimento muito acentuado em algumas regiões e menos forte em outras a paralisia imperial fora rompida depressa Vale ainda notar que a grande maioria dos dados apresentados aqui referese ao crescimento da produção física e não ao valor da produção e tem ainda outra característica foram quase todos produzidos a partir do último quarto do século passado quando a história econômica baseada em estatísticas começou a se difundir muito no mundo e um pouco no Brasil A agregação de dados como esses leva a conclusões como a de Stephen Haber que atribuiu a mudança no padrão de crescimento às mudanças legais implantadas por Rui Barbosa As mudanças de regulamentação nos mercados de capital permitiram que eles funcionassem melhor As reformas diminuíram os custos de monitoramento permitiram a empresários mobilizar capital em grupos muito maiores que os de suas relações pessoais17 CAPÍTULO 44 Primeira década sertão e capitalismo OS DADOS REFERENTES À PRODUÇÃO NO MERCADO INTERNO MOSTRAM NO LADO DO capital a presença de uma espiral de acumulação Tal indicação também poderia levar a uma suposição bastante razoável os capitalistas estariam acumulando porque agora podiam explorar os trabalhadores livres E isso remete a questão a um ato ocorrido antes do advento da República ou seja ao fim da escravatura A Abolição foi radical Os 750 mil cativos libertados em 1888 representavam 5 da população do país naquele momento Porém mesmo sendo uma mudança de grande magnitude ela não implicou necessariamente a conversão do liberto em trabalhador assalariado Não há nenhum indício numérico relevante de que os exescravos viraram assalariados passando a contribuir como mão de obra para a acumulação capitalista Um número intuitivo diz tudo os 750 mil escravos de 1888 formavam um contingente 25 vezes maior que o dos 30 mil operários industriais de São Paulo em 1901 No sentido inverso o da concepção de que os exescravos viramse condenados ao desemprego e à incapacidade de se enquadrarem na produção econômica ainda que fora do regime de trabalho assalariado também não há indício relevante de que os recémlibertos tenham encontrado obstáculos insuperáveis para sobreviver mesmo que relegados à pobreza muitas vezes extrema Como não viraram assalariados nem desapareceram como produtores econômicos aptos a prover sua subsistência resta então a pergunta que espécie de trabalho encontraram para sobreviver O predomínio do uso da noção de economia de subsistência levou muitos estudiosos a supor que a abolição apenas ampliou o fosso entre o setor que produzia riquezas e uma massa condenada à subsistência sem acumulação Mas o abandono dessa noção permite uma nova mirada que pode começar com a análise das condições de trabalho na agricultura cafeeira aquela que concentrou o maior contingente de cativos libertados Um dos pioneiros em analisar tal situação empregando novos conceitos foi Delfim Netto que notou duas modalidades contrastantes de organização laboral Há uma profunda diferença econômica entre colonato e parceria No colonato o empresário executa de fato seu papel assumindo os riscos do negócio Tratase de exploração tipicamente industrial em que o empresário recebe remuneração residual e o trabalhador recebe a paga por seu trabalho quer a colheita corra bem quer não quer o preço do café esteja alto quer esteja baixo Na parceria o empresário transformase em simples rendeiro e procura dividir o trabalho de direção e planejamento com o trabalhador rural que assume de fato a categoria de empresário Nessa qualidade ele recebe mais se a colheita for bem ou se os preços forem bons ou recebe mal em caso contrário mas não há garantia de remuneração para nenhuma das partes1 Empregando a linguagem da economia clássica ele distingue aquilo que na linguagem marxista marca duas eras a da agricultura capitalista na qual o proprietário compra trabalho e se apossa do resultado deste sob a forma de mais valia e outra a agricultura précapitalista onde o empresário atua como rentista e o trabalhador é um empreendedor associado nos riscos e nos resultados Em cada era o trabalho se coloca de maneira distinta Na agricultura capitalista impera o trabalhador assalariado na forma anterior proprietário e trabalhador dividem os riscos e os ganhos segundo convenção contratual entre as partes Existem muitos estudos posteriores a respeito da convivência produtiva dessas duas formas historicamente diversas de organizar a produção no início da república Entre eles destacamse as análises de Hebe Mattos que ajudam a entender o processo num dos grandes centros do cativeiro a economia do estado do Rio de Janeiro Segundo essa autora a substituição do trabalho escravo acabou sendo resolvida da seguinte forma Apesar da propriedade da terra aparecer como fundamento básico das novas relações de trabalho surgidas após a escravidão apareceram novas relações de trabalho especialmente o aforamento e a meação ao lado da generalização do trabalho familiar inclusive pela maioria dos proprietários2 Essas formas não monetárias de trabalho foram combinadas com uns poucos pagamentos em espécie O pagamento em dinheiro a trabalhadores diaristas não era uma forma estranha tendo se difundido na última década do século XIX como uma solução de expediente diante da realidade da extinção do trabalho escravo que se combinou com a parceria para garantir a continuidade da exploração agrícola3 Outros estudos agora sobre a economia cafeeira de Minas Gerais revelam a mesma espécie de integração entre salários e parceria mas de modo ainda mais complementar como notou João Heraldo Lima Com duas carpas anuais o lucro do fazendeiro seria superior àquele que se obteria por meação Se ele pretendesse fazer em lugar de duas três carpas anuais seu lucro por arroba não seria maior que aquele obtido na parceria onde em geral o número de carpas não passava de duas por ano Dada a baixa produtividade tudo passava a depender dos salários e do número de carpas O ajuste dessas duas variáveis é que determinaria qual dos dois sistemas seria o mais rentável4 A linguagem econômica do ajuste entre variáveis coloca com a naturalidade de uma decisão de simples escolha algo que não é nada simples Em primeiro lugar racionaliza uma possibilidade de escolha também para o outro lado da equação o do trabalho nesse caso a descrição só é simples quando há abundância de trabalhadores que também optavam entre uma e outra espécie de oferta Assim supõese que no lado do trabalho também havia grande flexibilidade É uma verdade de grandes consequências históricas e culturais Mostra que os sertanejos não só estavam aptos para lidar com o mercado como também transitavam sem dificuldade cultural da situação de pessoas ligadas a estruturas de fiado e contratos de risco para o mundo da moeda salário e capitalismo Em termos históricos por trás da naturalidade da linguagem econômica se mostram duas eras econômicas convivendo sem grandes problemas de fronteira O mais esclarecedor aqui seria o recurso à noção de amalgamento Nessa altura a coexistência de uma organização do trabalho baseada em acordos entre empreendedores de um lado e em trabalho assalariado de outro estava presente em diversos espaços brasileiros E tal convivência muitas vezes levava os empresários a tomar decisões racionais que nem sempre requeriam a forma historicamente mais recente do trabalho assalariado Se é certo que a combinação de trabalho assalariado e capital aquela que caracteriza o capitalismo ia predominando tanto na indústria como no setor do transporte ferroviário e em muitos serviços não é tão evidente que o arranjo tradicional tenha deixado de se mostrar competitivo em outras áreas da economia Para entender o motivo disso é necessário relembrar que arranjos como a parceria eram basicamente sociedades de negócio entre produtores independentes A figura do empreendedor era a base da produção no mercado interno do Brasil Figura que perseguia o lucro num mercado quase sem moeda Figura presente em um vasto espaço intermediário chamado sertão tão próprio do Brasil como o termo terra de lei especial não escrita como a lei dos nativos lei do sertão5 Tal combinação de papéis na produção mercantil chegava a extremos de aparência até mesmo paradoxal Barbara Weinstein encontrou já no século XX o seguinte arranjo entre índios Tupi do povo Mundurucu e comerciantes de borracha A ignorância dos Mundurucu em relação ao mercado permitia que o comerciante comprasse a borracha a preços muito inferiores a seu valor comercial Não obstante os Mundurucu conseguiam restringir suas relações com os comerciantes a maior parte dos membros da tribo que participavam da extração da borracha o fazia em apenas parte do tempo três meses o que lhes permitia manter o vínculo com a comunidade tribal6 O caso é bastante ilustrativo Do ponto de vista formal as trocas entre comerciantes e indígenas resultam da alienação mutuamente aprovada de excedentes a troca contratual Caso sejam aplicadas a esse exemplo as normas do costume Tupi é evidente que se trata de uma decisão de produzir excedentes e nesse caso não há dúvida especificamente para a troca O fato de não haver dinheiro é apenas um detalhe cultural no caso Os nativos preferiam produzir a borracha em seus domínios e manter esses domínios era um objetivo racional maior até mesmo do que obter em quantidade algo que não lhes interessava o dinheiro O exemplo mostra também até onde ia a capacidade dos Tupi de produzirem excedentes para a troca para muito além da subsistência Nesse caso eram capazes de competir vantajosamente com seringueiros alocando mercadorias produzidas nas formas de seu governo tradicional para mercado no qual havia abundância de capital A lógica dessa troca entre formações sociais e de governo muito diversas fica mais clara quando essas relações de produção e troca são pensadas com auxílio do conceito de capital comercial assim definido por Karl Marx Qualquer que seja o regime de produção que sirva de base para produzir os produtos lançados na circulação como mercadorias seja o comunismo primitivo a produção escravista a produção pequenocampesina ou pequeno burguesa o caráter dos produtos como mercadoria é sempre o mesmo Os extremos entre os quais o capital comercial serve de mediador constituem para ele fatos dados A única necessidade é que nos extremos existam mercadorias e tanto faz se a produção é mercantil em toda sua extensão ou lança raros excedentes7 A eficiência nesse tipo de arranjo de produção sustentado pelo capital comercial depende fundamentalmente do cumprimento da palavra empenhada entre o detentor de capital comercial e o produtor seja qual for o modo de produção E isso acontecia nos arranjos entre os comerciantes e os Mundurucu de tal modo que o negócio era racional para ambos cada qual segundo seus pressupostos culturais O exemplo amazônico pode ser ainda mais ilustrativo Não apenas era mais racional para detentores de capital comercial trocar com os Mundurucu para ter mais lucro como muitas e muitas vezes a produção nos moldes sertanejos tradicionais do aviamento do fornecimento fiado de meios e compra da produção feita pelos empreendedores sertanejos que arcavam com o risco era muito mais eficiente que o uso de capital para adquirir trabalho assalariado Na imensa maioria das tentativas analisadas por Barbara Weinstein de produção de borracha com base no trabalho assalariado esta mostrouse bem menos rentável até mesmo num caso extremo de emprego intensivo de capital em 1898 a companhia inglesa Rubber Estates of Pará comprou uma propriedade com 13 milhão de seringueiras 25 mil rotas de coleta abertas e produção de 293 toneladas de borracha no ano anterior Segundo a estudiosa seus planos básicos eram Já na primeira reunião de acionistas anunciaram seu plano de reformar inteiramente o sistema de extração e de comercialização da borracha nos seringais da companhia através da simplificação das relações de produção Em primeiro lugar a empresa iria dispensar a presença do intermediário que habitualmente recolhia a produção dos seringueiros e a entregava no depósito central visando uma maior porcentagem de lucros Em segundo lugar e mais importante pretendia transformar os seringueiros em trabalhadores assalariados que deixariam de ter direito sobre a borracha que extraíam Segundo os diretores a vantagem dessa inovação era irrefutável uma vez que o seringueiro era por demais independente e absorvia parcela muito grande dos lucros8 Em tese isto seria a passagem para o capitalismo clássico um novo arranjo dos meios de produção eliminando a precariedade do capital comercial e a independência dos produtores impondo o trabalho assalariado e criando receita em decorrência da extração de maisvalia sobre esse salário O problema foram os resultados A produção despencou para menos de 60 toneladas um quinto do que se obtinha com o método antiquado dos brasileiros e empacou nesse patamar baixo O caso se repetiu com muitos outros estrangeiros A sequência de fracassos levou a reflexões e apenas uns poucos reconheceram a superioridade competitiva do sistema tradicional como neste caso narrado por Weinstein Um magnata norteamericano da borracha escreveu que o obstáculo principal parece ser determinadas condições existentes em áreas enormes fracamente povoadas e negligentemente administradas as quais são extremamente desfavoráveis para estrangeiros que ali invistam seu dinheiro Concluía relutantemente o autor que o aviador por mais que seus métodos pareçam primitivos e devastadores estava mais bem preparado para lidar com as condições que o estrangeiro ainda que provido do mais abundante capital9 Todavia esse reconhecimento de que o emprego do capital para comprar trabalho assalariado era pouco competitivo com os empreendedores independentes na organização da produção e a compreensão da racionalidade dos arranjos do aviamento foram mais a exceção do que a regra Bárbara Weinstein apresenta duas outras explicações para fracassos Ashmore Russan gerente da Brazilian Rubber Trust resumiu sua longa lamentação a respeito do colapso da firma com uma recomendação Temo que não há mais nada a fazer senão utilizar chineses ou malaios que trabalham por salário em qualquer situação em que sejam postos Já um investidor de Denver com todo sarcasmo declarava haver descoberto a situação ideal para os problemas de mão de obra na Amazônia uma força de trabalho de macacos treinados10 Como naquela realidade os macacos saíamse melhor do que os homens ideais o amálgama amazônico ganhou para sempre uma face cabocla baseada em decisões racionais sobre a lucratividade dos empresários num ambiente de competição As relações entre a acumulação capitalista acelerada ou desenvolvimento dos mercados e a produção tradicional de empreendedores deixaram uma marca peculiar no cenário econômico da primeira década de regime republicano A fronteira do capital mudou radicalmente com seu avanço mas aquilo que parecia ser uma formação socioeconômica tradicional e inerte dos sertões se vista a partir da noção de economia de subsistência mostrou na óptica de estudos que dispensaram a noção quase de imediato a sua capacidade vinda desde os tempos coloniais de reagir aos estímulos de mercado mesmo mantendo a forma tradicional das relações entre empreendedores Tal ajuste se deu tanto no sentido positivo nas regiões em que havia abundância de capital como no sentido negativo naquelas em que prevalecia a escassez de capital No Nordeste os investimentos em usinas coincidiram com os períodos de seca A realidade do trabalho ali não conheceu as oportunidades da convivência com maiores capitais como notou Robert Levine Quando depois da Abolição os preços do açúcar continuaram a cair a vida do trabalhador tornouse ainda mais precária Para os diaristas cujas fileiras haviam engrossado desmedidamente com a entrada de exescravos recentemente libertados o salário real caiu quase à metade se comparado com a média de meados do século11 Mas no período houve uma consolidação daquele amalgamento que virou a regra em todo o Brasil Os elos básicos da nova cadeia ganharam vários nomes regionais Na Amazônia os empreendedores eram chamados aviados os comerciantes aviadores No interior do Nordeste proprietários e vaqueiros ou agregados no litoral plantadores ou donos de usinas e diaristas No sertão pecuário do CentroOeste e parte de Minas Gerais fazendeiros e boiadeiros No Brasil todo havia parceiros meeiros camaradas uma leva de nomes para uma mesma função sócio na empreitada agrícola dividindo riscos e lucros com um adiantador de meios Com três quartos da população morando no campo todas essas relações econômicas se resolviam ainda ao largo dos governos ou dito de outro modo apenas entre pessoas na sociedade O costume revitalizouse agora que a lei não proibia mais os arranjos formais necessários para o capitalismo Esse gigantesco conjunto de relações produtivas era tido pelos teóricos do governo imperial nos tempos da escravidão como anárquico improdutivo e incapaz de reagir ao mercado e de progresso A retirada da trava da escravidão permitiu o contato dos arranjos consuetudinários com relações mais próximas da produção capitalista e aquilo que os dados econômicos quantitativos revelam sobre o comportamento do capital e do trabalho na primeira década republicana não cessa de surpreender mas as surpresas ajudam a entender a amplitude da aceitação de Prudente de Morais CAPÍTULO 45 Primeira década amálgamas e incrustações O REORDENAMENTO LEGAL ESCRITO PROMOVIDO PELA REPÚBLICA PERMITIU UMA rápida expansão das empresas Alterouse o patamar da produção assim como o do trabalho assalariado Ambas as mudanças contudo não eliminaram os seculares arranjos informais que se tornaram mais produtivos em contato com o dinheiro Esse processo de mútua influência positiva ocorreu em escala menor em outras áreas Uma delas foi na esfera da palavra escrita que foi deixando de ser um privilégio de agentes do governo ou de seu entorno A alfabetização em massa logo passou a ser promovida nos estados que tiveram maiores aumentos de receita Começou a se tornar cada vez mais comum a cena de crianças uniformizadas a caminho das escolas públicas Tal fenômeno coincidia com o fato de que muitos imigrantes vinham alfabetizados ou pelo menos conheciam a importância da educação para os filhos dada a realidade de seus países de origem E alguns fundaram escolas particulares em suas comunidades ampliando ainda mais o emprego da escrita sobretudo no Sul O Rio Grande do Sul logo se tornou o estado com as maiores taxas de alfabetização do país e isso num contexto em que por motivos ideológicos o governo estadual não investia no ensino superior A existência de um público leitor levou ao crescimento de outro negócio o da imprensa Até a República a regra do jornalismo brasileiro foi a mesma do Ocidente até meados do século XIX assim descrita por Michael Schudson O jornal político era a regra prática e o padrão comum Os jornais partidários dependiam de políticos não apenas para ter capital mas para a manutenção obtida via publicidade oficial quando o partido estava no poder1 Tudo isso levava conforme o autor a um circuito econômico modesto Os jornais eram caros Cada exemplar custava seis centavos quando a diária de um trabalhador valia oitenta Além disso exemplares avulsos só podiam ser comprados na redação A assinatura era a forma usual de venda e custava entre oito e dez dólares por ano Não é de se estranhar que a circulação fosse limitada usualmente entre 1 mil e 2 mil exemplares mesmo nos maiores jornais metropolitanos A leitura ficava confinada à elite e o conteúdo do jornal ao comércio e à política2 Nesse contexto do jornalismo partidário e do jornalista faztudo o prelo era a tecnologia dominante em todo o Ocidente e a imprensa do Brasil Imperial não destoava muito do padrão mundial No país havia eleições e troca de partidos no poder Da mesma forma que nos Estados Unidos ou na Europa só votava uma minoria de eleitores homens o que explicava a limitação elitista dos jornais partidários Desse modo havia no país as condições básicas para a sobrevivência dos jornais partidários Com sorte arrancavase dinheiro suficiente do governo durante a maré no poder para sobreviver na oposição ainda que em condições precárias Muitas cidades no Brasil tinham jornais e as tiragens eram semelhantes às dos jornais partidários nos Estados Unidos Mas essas tiragens deixaram de ser semelhantes desde o surgimento quase ao mesmo tempo de um conjunto de avanços em meados do século XIX a impressora rotativa o telégrafo as ondas imigratórias e as comunicações rápidas por ferrovia O jornalista Benjamin Henry Day combinou tudo isso numa fórmula inaugurada em 1833 um jornal para ser vendido nas ruas por apenas um centavo Além de custar um sexto do preço dos concorrentes não era feito para ser comprado na redação Lotes de cem exemplares eram vendidos por 67 centavos para aqueles que se dispusessem a pagar adiantado e tentar ganhar 33 centavos revendendo o jornal na rua ou por 75 centavos para aqueles que levassem o maço a crédito Em poucos dias as ruas estavam lotadas de vendedores de jornais Foi um choque notado por Henry B Turner Nenhum jornalista de publicação de elite imaginavase descendo tão baixo a ponto de ter vendedores apregoando manchetes na rua3 Não bastasse isso o jornal ainda trazia anúncios de si mesmo convidando pessoas a anunciar nele Quando os concorrentes acordaram tiveram de correr atrás do sucesso instantâneo do jornal The Sun logo conhecido como penny paper jornal de um centavo E estavam muito atrasados as vendas do líder logo chegaram a 19 mil exemplares diários Estava iniciada a revolução assim descrita por Michael Schudson Estamos tão completamente acostumados à ideia de notícia ou ao próprio jornal que se torna difícil perceber quão dramática foi a mudança trazida pelos penny papers Até então um jornal trazia informações para partidos políticos e homens de negócio a nova imprensa vendia o jornal como produto destinado a um público amplo e também vendia o acesso a esse público leitor para anunciantes Já o produto vendido para os leitores eram as notícias um produto original em muitos aspectos Em primeiro lugar a ideia era apresentar de maneira agradável e sem partidarismo eventos importantes do mundo As notícias de um jornal podiam ser diretamente comparadas às de seus concorrentes o que obrigava a descrições acuradas4 Essa transformação aconteceu no Brasil com o advento da República muito especialmente no Rio de Janeiro Para começar havia uma concorrência forte duas dezenas de títulos de jornais diários Os maiores impressionaram até mesmo o jornalista francês Marc Leclerc que esteve na cidade na época São providos de uma organização material poderosa e aperfeiçoada vivendo principalmente de publicidade organizados acima de tudo como uma empresa comercial e visando penetrar em todos os meios e estender o círculo de seus leitores para aumentar o valor de sua publicidade Em torno deles está a multidão multicolor de jornais de partidos que longe de serem bons negócios vivem de subvenções e só são lidos se o homem que os apoia está em evidência ou é temível5 Os dois maiores jornais eram o Jornal do Commercio e a Gazeta de Notícias além deles O País o Diário de Notícias e o Jornal do Brasil também podiam ser enquadrados na mesma categoria Os quatro primeiros passaram incólumes pela mudança de regime graças à estrutura econômica o Jornal do Brasil fundado em 1891 já nasceu com grande capitalização Essa era a elite sobrevivente O restante da imprensa da cidade padeceu com a mudança de regime pelo simples motivo de que o grande fornecedor de meios o governo retirouse do mercado O fim das trocas partidárias do Império significou também o término das subvenções que mantinham os pequenos jornais Para sobreviver estes foram buscar recursos com métodos não exatamente castiços Leclerc os descreveu Consistiam na publicação nas colunas ineditoriais sob o título de A Pedidos de libelos infames de ataques anônimos contra figuras públicas ou privadas e instituições publicações essas pagas pelos interessados entre os quais não raro se encontra a polícia Este recanto malafamado dos jornais onde o leitor levado por uma curiosidade malsã deita o olhar em primeiro lugar é um ponto gangrenado do corpo social6 Em São Paulo o líder de mercado era O Estado de S Paulo cuja circulação vinha conhecendo um aumento significativo Em 1888 quando Júlio Mesquita passou a trabalhar na publicação a tiragem girava em torno de 2 mil exemplares e havia 902 assinantes Em 1893 as tiragens já eram de 7 mil exemplares e a rentabilidade de 203 a participação nos lucros paga ao jornalista permitiu lhe começar a adquirir o controle do jornal Na virada do século a tiragem alcançou 14 mil exemplares O número de páginas de publicidade saltou de 1190 em 1894 para 1634 em 1898 um aumento de 38 em apenas quatro anos A mudança da escala do jornalismo partidário para aquela do jornalismo de massa trouxe para o Brasil a mesma espécie de noticiário que se tornava comum no Ocidente Em vez de escrever para adeptos os jornalistas passaram a escrever para pessoas dispostas a se informar muito pagando pouco E nesse tipo de jornal da primeira década republicana a figura que marcou a passagem de um modelo a outro foi a do cronista que anda pela cidade observa o comportamento de indivíduos ou grupos e relata o que lhe chama a atenção Logo um tipo específico de cronista ganhou a simpatia do público o do profissional assalariado capaz de descrever com simpatia as figuras populares a narrar por escrito culturas tradicionais que até então não haviam merecido registro escrito no Brasil Lima Barreto no Rio de Janeiro Valdomiro Silveira em São Paulo com seus casos caipiras Simões Lopes Neto no Rio Grande do Sul foram alguns deles Assim começava o processo de amalgamento de culturas antes inteiramente separadas nas letras Começava pelos jornais modernos que circulavam no mercado mas esses registros eram quase nada se comparados à maciça literatura feita ao modo tradicional em geral por funcionários públicos ou eruditos amadores A marca de estilo era tão secular quanto os arranjos produtivos informais afirmarse como pessoa elevada e descrever os demais brasileiros quase todos como um rebotalho em termos morais e físicos Desde o final do Império essa literatura ganhou um verniz científico conferido não só pelos adeptos da ditadura positivista Eruditos de toda espécie importaram textos correntes na Europa que definiam o progresso da civilização como indo do homem primitivo para o homem ocidental Adaptavam essa ideia com grande facilidade identificando o narrador como o desenvolvido o brasileiro como o primitivo e a miscigenação como produtora de decadência Isso marcou também as grandes interpretações sobre o período Monarquistas como o visconde de Taunay apresentaram as mudanças institucionais e a política monetária expansionista da República como um truque financeiro uma jogatina bolada pelo cérebro maquiavélico de Rui Barbosa que só causava misérias e não gerava riqueza E o título do seu folhetim acabou ganhando um grande fôlego histórico Até hoje continua vivo toda vez que se emprega a expressão encilhamento para resumir o período Nesse caso não se trata apenas de uma visão tornada obsoleta com o desenvolvimento das técnicas econométricas A interpretação continua viva porque no caso da primeira década republicana ainda subsistem dificuldades para avaliar com clareza o quanto foi crescimento real da produção inclusive no sertão e o quanto se devia apenas a um efeito inflacionário A expansão monetária foi real no período A quantidade de moeda era de 211 mil contos em 1889 e girava em torno dos 600 mil contos durante a administração de Prudente de Morais tendo praticamente triplicado em uma década Não bastasse a maior quantidade de moeda também aumentou a velocidade de seu emprego O fornecimento de crédito pelos bancos paulistas no mesmo período foi multiplicado por 53 passando de 223 mil contos em 1889 para 1184 mil em 1898 Mas também não resta dúvida de que a produção real aumentou no período assim como o registro formal de produções já existentes por meio dos mecanismos legais criados pelo novo regime Para complicar ainda mais as contas atuais ocorreu outro fenômeno econômico de grande amplitude Milréis compravam 27 pence em 1889 e apenas 6 em 1898 Com isso as importações se tornaram quatro vezes e meia mais caras no período Essa mudança significava tanto proteção para a indústria local como eventualmente inflação derivada da impossibilidade de evitar certas compras no exterior No comércio exterior parece pouco razoável atribuir o crescimento no mercado interno a um aumento no valor das exportações em 1889 foram de 285 milhões de libras esterlinas em 1897 de apenas 259 milhões Embora favoráveis ao Brasil os saldos comerciais foram pouco relevantes Como desde a crise de 1890 os fluxos de capital eram negativos em escala maior que os saldos comerciais a balança com o exterior também era negativa o que exclui a hipótese de crescimento derivado de investimentos estrangeiros Com tantos dados para avaliar ainda falta chegar a uma conta aceitável que separe crescimento da produção e simples elevação nominal de preços por um motivo substantivo até hoje não se conseguiu calcular com precisão suficiente um índice nacional de inflação isto é crescimento nominal de preços menos crescimento real da produção Por outro lado também remonta ao período a percepção da necessidade desse tipo de supervisão pelo governo Bernardino de Campos ministro da Fazenda de Prudente de Morais tinha aguda consciência da precariedade dos instrumentos aferidores do governo brasileiro sobretudo no campo da estatística No Brasil os poderes públicos o comércio e a indústria sentem a cada passo embaraços e prejuízos por falta de estatística que é o fundamento seguro sobre o qual deve repousar a administração econômica e meio mais profícuo para atingir maior prosperidade Os trabalhos de estatística que aparecem no país são organizados nas praças estrangeiras que utilizamse desses instrumentos em proveito próprio por conseguinte em prejuízo dos produtores nacionais É lamentável não se conhecer nem mesmo as riquezas das propriedades rurais de todo o país7 Sem contar com tais instrumentos Prudente de Morais teve de seguir o seu instinto de governar para a maioria Fez isso diminuindo os próprios poderes a fim de ampliar os da sociedade em que confiava suspendeu o estado de sítio a censura as intervenções nos estados a intromissão em disputas locais e as restrições que tolhiam os cidadãos Assim construiu sua imensa popularidade mais fácil de entender na linha do progresso real da economia do que pensando com os argumentos de seus contrários monarquistas O fato é que partindo de uma situação crítica no primeiro dia de governo ganhou apoio maciço Ao longo de 1898 por onde andava era aplaudido No dia 15 de novembro o homem que tomara posse sozinho passou a faixa presidencial diante de uma multidão aglomerada na porta do palácio Sua primeira caminhada ao retomar o papel de cidadão comum entre o palácio e a pensão onde agora se hospedaria a poucos quarteirões da sede do poder consumiu horas de cumprimentos de brasileiros entusiasmados Antes de entrar no quarto foi chamado para a sacada onde oradores se revezaram em mais umas tantas horas de discursos todos aplaudidos pela multidão nas calçadas Os banquetes de homenagens ocuparam mais três dias O percurso entre a pensão e a estação ferroviária de onde partiria para São Paulo levou duas horas entre aplausos A viagem durou um dia e meio pois havia multidões em todas as estações no caminho Havia 10 mil pessoas na estação em São Paulo com 240 mil habitantes participou de um banquete com dezenas de brindes O último foi de Júlio Mesquita diretor de O Estado de S Paulo Prudente de Morais transformou uma república de ódios numa república de progresso e justiça Eis aí seu serviço Em resposta Prudente de Morais reafirmou as suas convicções Esforceime sempre por cumprir meu dever no honroso mandato que me confiou o sufrágio da nação Estou satisfeito porque as manifestações populares e provas de apreço corroboram aquela afirmação da própria consciência nacional De parte a generosidade de que se revestem tais manifestações estas constituem a melhor recompensa aos esforços que empreguei até o sacrifício para servir à República Na impossibilidade de agradecer pessoalmente aos meus concidadãos recorro a vosso jornal para apresentar a todos os protestos de um sincero reconhecimento e profunda gratidão8 Dito isso voltou para Piracicaba e reassumiu a banca de advogado Dali como tantos outros cidadãos brasileiros começou a acompanhar um presidente que se revelava para a maioria dos cidadãos apenas no momento da posse algo só possível porque a República também legislou para trás Embora o hábito trouxesse a alternância no poder a letra da Constituição sagrara o atraso em relação ao Ocidente construído no final do Império o voto do analfabeto tradição secular foi proibido e o atraso seria necessariamente cada vez maior Era uma tentação e tanto voltar atrás CAPÍTULO 46 Campos Sales e o plano regressivo ENQUANTO PRUDENTE DE MORAIS RECEBIA APLAUSOS E OS INTERPRETAVA COMO reconhecimento de que o cidadão e o presidente da República representados e representantes se irmanavam na soberania popular e o capitalismo se expandia mesclandose ao sertão o seu sucessor Campos Sales tomava posse publicando um manifesto no qual se lia o seguinte trecho Elevado a este posto de honrosa confiança e incomensurável responsabilidade aprazme acreditar que o que pretendeu o voto popular foi colocar no governo da República o espírito republicano na sua acentuada significação E esse intuito é naturalmente presumível dada a índole de nosso regime que com a responsabilidade unipessoal preferiu eliminar a política de uma coletividade para concentrála na pessoa da suprema autoridade em quem reside constitucionalmente o critério que dirige delibera e aplica1 Era uma interpretação radicalmente diferente tanto do papel do eleitor soberano como daquele do presidente eleito Em vez de delegar poder a um presidente que governa como representante como pregava a teoria iluminista e acreditava Prudente de Morais o novo presidente concebia o processo eleitoral como aquele pelo qual o eleitor renuncia à política e concentra poderes numa autoridade elevada ao grau de suprema autoridade Nada disso estava na letra da lei nem no costume republicano Tratavase claramente de uma interpretação do emprego da escrita para criar um significado próprio e interessado para um modo de exercer o cargo de presidente da República Mais ainda era uma interpretação que fora apresentada ao eleitorado por um caminho tão sutil que merece ser refeito em detalhes A interpretação de Campos Sales começou a ser elaborada em junho de 1897 quase dois anos antes da posse Nesse momento o então governador de São Paulo recebeu uma carta de Bernardino de Campos o ministro da Fazenda do presidente Prudente de Morais Ele detalhava o modo pelo qual o governador havia se transformado em sucessor escolhido por um grupo Seu nome surgiu das esperanças dos políticos que rodeiam o governo como centro de aspirações pela ordem constitucional sustentada por um republicano histórico de nome feito e capacidade comprovada Nenhum dos senões opostos aos outros nenhuma suspeição possível nenhuma contestação a não ser de ordem geográfica A Prudente dirigime francamente por não dever agir sem ele e tive calorosa aprovação Lembrou o nome de Rosa e Silva para a vice presidência como boa aliança2 A lista de argumentos favoráveis começa pela biografia política Campos Sales havia sido até então bem mais que um simples militante formal da causa republicana Filho de um tropeiro metido com a Revolução de 1842 fora ele mesmo tropeiro quando jovem e republicano de primeira hora Arranjou dinheiro e ajudou a manter o jornal do partido A Província de S Paulo Foi deputado provincial e nacional pelo partido ministro da Justiça do primeiro governo provisório senador e governador de São Paulo Além de apresentar a biografia como ativo político o ministro detalha como este foi convertido em algo maior pela ação do presidente da República e do Parlamento tal histórico havia gerado a candidatura para o cargo de presidente aceita pela maioria dos detentores de mandato E Prudente de Morais se encarregara ainda da articulação para encontrar um vicepresidente capaz de arregimentar votos em todo o Norte e Nordeste do país Assim Prudente de Morais fazia o contrário de seu antecessor buscava consenso no Congresso casa maior dos representantes eleitos apoiava o mecanismo de transformar o consenso em unidade aplainava o terreno para que houvesse uma boa dose de firmeza entre os políticos e apoio dos eleitores para que funcionasse o mecanismo da troca de mandatário pela via do sufrágio ainda incerto como hábito Tudo isso feito o escolhido teria uma estrada mais do que tranquila para percorrer caso aceitasse a indicação Campos Sales claro não pronunciou uma palavra contra o presidente nem contra as forças políticas que o apoiariam Tampouco disse algo em público que levasse alguém a suspeitar que pudesse ter outras ideias para o governo que não aquelas que Bernardino de Campos mencionava como sendo as que moviam aqueles que o apoiavam Ao receber a carta do ministro fazia menos de um mês que Campos Sales enviara uma outra privada a uma pessoa que não era exatamente bemvista por Prudente de Morais Joaquim Murtinho que por indicação do vice interino Manuel Vitorino havia ocupado o Ministério da Viação e escrevera um relatório publicado em 1897 criticando a condução da economia cujo ministro era exatamente Bernardino de Campos Na carta Campos Sales dizia nada menos que o relatório era um verdadeiro plano de governo Como um mês depois essa afirmação iria adquirir outro peso vale a pena examinar o argumento do relatório que se baseava numa premissa fundamental Não podemos como muitos aspiram tomar os Estados Unidos como tipo para o nosso desenvolvimento industrial porque não temos as aptidões superiores de sua raça força que representa o principal papel no progresso industrial deste país3 Para o Brasil o ideal econômico deveria ser outro A supremacia do industrialismo poderá trazernos grandes males sociais deixandonos talvez a forma mas fazendo com certeza perder a substância da nossa liberdade4 A insistência na indústria seria prejudicial A nossa organização industrial tem seguido nestes últimos tempos uma marcha anômala irregular e profundamente viciosa A ideia errônea e antissocial de que da grandeza industrial de nossa pátria depende sobretudo nossa libertação cada vez mais completa dos produtos da indústria estrangeira foi provocando a aspiração de estabelecer empresas industriais de todos os gêneros para realizar aquele desideratum pseudopatriótico5 Em vez disso uma política econômica sadia deveria se voltar para preservar a verdadeira fonte da riqueza brasileira A febre industrial acarreta para a agricultura perturbações de tal ordem que esta principal fonte de nossa riqueza está sob a ação de uma crise profunda e de difícil solução A atração que a vida da cidade exerce sobre os operários a ação que os lucros grandes e rápidos das indústrias exercem sobre os capitais e sobre os braços são outras tantas causas da drenagem que sofre a agricultura de seus elementos mais importantes de produção Acrescentese a isso a elevação dos salários produzida entre outras coisas pela carestia de vida e o hábito de uma existência mais confortável e por isso mesmo mais dispendiosa por parte dos operários6 O trabalho assalariado e o capital a vida urbana e a riqueza na visão de Murtinho deveriam ser combatidos pela seguinte razão A agricultura a indústria e os serviços custeados pela União deveriam ser as três árvores produtoras de nossa riqueza Só a agricultura porém produz na realidade Os serviços custeados pela União de um lado e a indústria do outro lado transformaramse em parasitas7 Para resumir no lugar de industrializar aumentar o mercado enriquecer a nação o objetivo da ação econômica do governo deveria ser o de evitar os males do capitalismo a atração da vida urbana os lucros da indústria a elevação dos salários uma existência mais confortável Tudo isso para que a marcha da agricultura não fosse perturbada uma vez que aí estava a verdadeira fonte da riqueza Essa era uma noção com história como se nota pela comparação com as palavras de François Quesnay escritas no século XVIII Os trabalhos da indústria não multiplicam as riquezas Os trabalhos da agricultura compensam os custos pagam a mão de obra do cultivo propiciam ganhos aos lavradores e além disso produzem as rendas dos bens de raiz Os que compram as obras da indústria pagam os custos da mão de obra e o ganho dos mercadores mas essas obras não produzem nenhuma renda a mais8 Já no século XIX nunca é demais repetir essa era uma posição obsoleta em economia a se julgar pela análise de Karl Marx Para os fisiocratas o trabalho agrícola é o único trabalho produtivo porque é o único que cria maisvalia eles não reconhecem outra forma de maisvalia além da renda da terra Segundo os fisiocratas a agricultura fornece matéria para toda a produção social O operário industrial não acrescenta matéria mas se limita a modificar sua forma por isso não acrescenta valor à matéria Para os fisiocratas também o lucro não é mais que uma espécie de salário de categoria superior pago pelos proprietários de terra Nesta concepção o proprietário de terras aparece como verdadeiro capitalista como elemento que se apropria do trabalho excedente Deste modo o sistema feudal se apresenta reproduzido e explicado na descrição da produção burguesa e a agricultura aparece como único setor que realiza produção capitalista9 Joaquim Murtinho era um fisiocrata com pedigree descendente do bispo Coutinho do visconde de Cairu do visconde de Itaboraí Renovava a ideia de que o governo deveria agir contra o capitalismo montante Não mais em nome da escravidão mas contra a indústria e o trabalho assalariado Para tanto seu projeto tinha como ponto básico a contenção da moeda emitida nos primeiros anos do regime que via como criadora das indústrias que não deveriam existir A emissão forçada se faz às cegas impelida pela especulação pelo jogo e por todas as loucuras da bolsa Daí a massa de papelmoeda inconversível ligando a indústria ao crédito não sendo mais a necessidade de uma indústria que provoca a emissão mas a emissão que solicita a criação de indústrias sem razão de ser10 Os males se multiplicariam até a danação Organizaramse empresas de todas as espécies na esperança de que imediatamente o Brasil se tornaria um grande país industrial Em breve tempo a ilusão dissipouse deixando ver bem claro que os capitais não se haviam multiplicado que o crédito havia caído e que os recursos distribuídos para cada empresa eram absolutamente insuficientes para seu desenvolvimento11 Assim o que parecia riqueza se revelaria como pobreza Uma grande soma de capital circulante havia se transformado em capital fixo imobilizandose em máquinas e edifícios e ficando assim improdutivo durante muito tempo ou inutilizandose para sempre Essa imobilização improdutiva e essa inutilização definitiva de capitais acarretaram como consequência o empobrecimento do país e perturbações graves de nossas condições financeiras12 A confusão entre indústria capitalismo jogo e loucura falsa riqueza enfim era outra noção com história Mas história caipira de seus chefes de escola Como o visconde de Cairu no início do século XIX como o visconde de Itaboraí em meados desse século e como o visconde de Taunay de sua época Joaquim Murtinho entendia o investimento em fábricas e bens de capital não como incremento para a produção mas como imobilização improdutiva e por isso identificava a acumulação capitalista o progresso industrial e do trabalho assalariado com pura ficção numérica falso desenvolvimento Em plena virada da produção brasileira para o capitalismo ele queria colocar a força do governo central a serviço da reação da volta ao passado para satisfazer o conceito aristotélico de que a natureza era a única produtora de valor e a desigualdade o fundamento da moral Assim até mesmo as precárias condições do nascente proletariado urbano lhe pareciam hábito de uma existência mais confortável e por isso mesmo mais dispendiosa por parte dos operários Depois de receber a notícia de sua escolha para a presidência Campos Sales guardou total sigilo de sua admiração por esse tipo de pensamento pelo simples e razoável motivo de que as ideias contra o progresso capitalista não faziam parte da propaganda republicana nem passavam pela cabeça da imensa maioria daqueles que construíam e levavam adiante sua candidatura a começar do seu grande eleitor o presidente da República O apoio obtido por meio da articulação nacional capitaneada por Prudente de Morais era de tal ordem que não restava a menor dúvida sobre quem seria o vencedor da eleição Por todo o país deputados escreviam cartas a seus apoiadores locais que iam convencendo vereadores a convencer eleitores a votar no candidato A imprensa noticiava tudo isso e era o que bastava Com tanta gente apoiando Campos Sales nem precisava se mexer Seu único ato para se mostrar como candidato ao eleitorado foi o de participar de um banquete no teatro São José em São Paulo no dia 31 de outubro de 1897 Ali leu um discurso com alguns pontos que eram típicos de republicanos históricos Ele defendeu por exemplo o sistema federativo O sistema federativo caracterizase pela existência de dupla soberania na tríplice esfera do poder público Suprimir um só dos órgãos dessa soberania equivale a destruir o próprio sistema13 Logo a seguir porém vinha uma frase que trazia uma alusão significativa Em todos os regimes representativos seja uma monarquia ou uma república seja presidencialismo ou parlamentarismo nenhum governo pode dispensar uma maioria no corpo legislativo por meio da qual se estabeleçam relações de harmonia entre os poderes A diferença quanto à forma consiste em que no governo de gabinete o Parlamento exerce uma influência direta e preponderante sobre o Executivo e isso conferelhe até certo ponto a partilha da função governamental No regime presidencial porém o Executivo atua com completa independência de tal sorte que o Legislativo igualmente soberano no exercício de suas funções não governa nem administra14 O destaque na versão impressa do discurso foi colocado pelo próprio Campos Sales que sabia exatamente o que estava realçando a máxima dos conservadores dos tempos do Império que vale a pena relembrar A citação era parte do lema do Partido Conservador em defesa dos poderes pessoais e arbitrários de D Pedro II a célebre máxima do visconde de Itaboraí O rei reina governa e administra Campos Sales não era imperador por isso dizia querer apenas governar e administrar Sabia que deposto o monarca havia cessado o reinar Por isso não tocou no assunto Mas no que de fato interessava empregou a citação para definindo sua visão de presidência buscar aquilo que buscavam os conservadores do regime que depusera limitar o poder derivado da soberania popular e de seus representantes no Parlamento e ampliar o espaço de atuação do ungido republicano Essa ideia de uma hierarquia entre poderes com um governante posto no alto e os representantes populares bem abaixo era clara Declaro que não sou daqueles que entendem que o depositário unipessoal do poder seja propriamente um chefe de partido Qualquer que tenha sido a sua posição anterior nas lutas políticas o cidadão uma vez eleito passa a ser o chefe do Estado Ele deixa a superintendência dos interesses exclusivos do partido para assumir as altas gestões dos negócios gerais da comunidade Aquele que é elevado ao governo pelo voto popular deixa na arena ardente das lutas e das paixões o incessante conflito dos interesses e das opiniões para levar para as regiões serenas da aplicação só os grandes ideais15 A Constituição republicana não falava em nada disso contendo apenas a fórmula corrente de afirmar o povo como soberano e o voto como instrumento dessa soberania Falava em três poderes iguais e independentes mas o futuro ocupante da cadeira pretendia recriar a hierarquia da dupla soberania do Império com a cadeira presidencial fazendo as vezes de trono O Congresso como todos os corpos legislativos tem necessidade de que sua iniciativa seja esclarecida e mesmo a certos respeitos dirigida O poder que pela natureza de suas prerrogativas se acha em condições de esclarecer e dirigir é o Executivo16 Esse era o cerne do discurso no qual só havia umas poucas platitudes sobre finanças O restabelecimento do equilíbrio financeiro depende antes de tudo do civismo e clarividência daqueles que têm a responsabilidade da direção dos destinos da nação Assegure o Executivo a ordem e a paz e dêlhe o Legislativo o seu apoio com austera firmeza na execução de um plano que deve começar com a mais severa economia e estará feito um caminho para o crédito nacional17 O candidato nada disse contra a indústria a riqueza o conforto dos assalariados o desvio de capitais da agricultura Também não fez a menor crítica a Prudente de Morais e a todos que o apoiavam Ninguém ligou muito para as afirmações até porque o atentado contra Prudente de Morais cinco dias depois era o tema preferencial das conversas Coube ao próprio Campos Sales mostrar que o discurso era importante e parte de um plano uma década mais tarde quando já deixara a presidência da República O agrupamento político que levantava minha candidatura era o mesmo que apoiava o governo do senhor Prudente de Morais com quem me achava em desacordo em questões de princípio e de forma Era um dever de lealdade portanto falar diretamente ao eleitorado para definir com clareza minhas ideias e denunciar com sinceridade minhas intenções Eu previa também que desse procedimento resultariam consideráveis vantagens para a ação governativa Foi assim que elaborei meu manifesto Ninguém teve dele conhecimento antes de sua leitura Quem se propõe a consultar opiniões alheias sujeitase sempre a modificar as suas e era isso que eu queria evitar18 As opiniões alheias não eram apenas de pessoas que poderiam sugerir mudanças no texto Eram também as do eleitorado que teria sido diretamente informado sobre as posições do candidato Assim os vagos trechos do discurso foram reinterpretados pelo autor como sendo a apresentação de uma plataforma eleitoral aprovada pelos votos da soberania popular Para Campos Sales os eleitores foram às urnas não para eleger um representante a quem delegavam o exercício do poder para defender seus interesses mas para renunciar a esses interesses alienar todo o poder político e elevar o eleito a culminâncias de onde poderia governar e administrar acima da vontade dos eleitores dos grupos que o elegeram e do Congresso Como previsto ele se elegeu no dia 1o de março de 1898 E com o apoio de Prudente de Morais governou muito antes mesmo de reafirmar sua crença como ungido no discurso de posse CAPÍTULO 47 O caranguejo e a ostra DEPOIS DO BANQUETE CAMPOS SALES FICOU MUDO DEIXANDO O PRIMEIRO PASSO efetivo de seu plano para duas semanas antes das eleições no dia 14 de fevereiro de 1898 quando escreveu a seguinte carta pessoal e reservada ao presidente Prudente de Morais Confirmo o que já pensava sobre o crédito estrangeiro Aí está toda a agravação de nosso mal financeiro Nosso ponto de partida o único com resultados definitivos será ou seria uma vasta operação no estrangeiro Não julgue entretanto desesperadora ainda que opressiva a nossa situação Em conversa com o Rodrigues Alves disselhe que veleidades à parte devemos tentar o empréstimo no estrangeiro dando como garantias as rendas de nossas alfândegas Não sei se na lei do orçamento existe autorização para o empréstimo com garantia se não existir seria preciso pedila e obtêla do Congresso custe o que custar Julgo indispensável adotar as bases de um plano nesse sentido para oferecer aos banqueiros londrinos e provocar seu pronunciamento Se V entender que é necessária a ida de alguém à Europa para tomar informações estudar as oportunidades e aplicar os meios para uma informação que resolva o problema eu desde já me proponho a fazer a viagem a título de passeio sem caráter oficial e guardada com a mais completa reserva sobre seu fim oculto1 Segundo o diagnóstico de Campos Sales o problema central da economia brasileira seria a falta de crédito externo para o governo federal Deixava bem claro que não era uma situação fatal apenas opressiva Propunha uma solução curiosa ao presidente que este adotasse o projeto do candidato como se fosse seu ou seja que mudasse o rumo da própria gestão em benefício do sucessor Era um pedido e tanto ao seu grande eleitor Prudente de Morais ainda com nove meses de mandato escrever aos banqueiros para que considerassem o empréstimo aprovar custe o que custar uma lei autorizando o governo a oferecer as rendas da alfândega como garantia algo que nunca havia sido necessário nos empréstimos externos brasileiros nem mesmo nos piores momentos da Regência Por fim ofereciase para negociar ele mesmo o empréstimo para a nação como um emissário sem caráter oficial e deliberadamente com um fim oculto Em suma Campos Sales se propunha a governar sem ser governo ganhar algo politicamente e deixar a conta para o presidente do qual discordava totalmente no modo de conduzir a nação Se fosse pensar como o marechal Floriano que o antecedeu Prudente de Morais poderia muito bem deixar a carta sem resposta fazer o que bem entendesse até o último dia Teria bons motivos para negar até porque era uma proposta dura de engolir O presidente seguia uma política econômica oposta à solução oferecida pelo sucessor Era contrário a resolver os problemas de caixa do governo com base em créditos externos Fazia questão de deixar isso sempre claro Sua mensagem presidencial de 1897 definia assim a política financeira de seu governo As dificuldades financeiras do país quando provêm como entre nós de uma crise que surgiu depois de uma transformação política radical não podem ser removidas de chofre mas devem ser combatidas por um trabalho demorado e incessante2 Sendo interna a causa maior do problema assim também seria a solução O Tesouro tem solvido os maiores compromissos que sobre ele pesavam de sorte que tendem a desaparecer os encargos de caráter extraordinário que até agora tem sido o maior embaraço para o equilíbrio3 Podia perfeitamente fazer mais do mesmo suportar a tempestade até desaparecerem progressivamente as ondas de pressão sobre o Tesouro sem recorrer a empréstimos externos como vinha conseguindo fazer até mesmo nos momentos de maiores dificuldades que ultrapassara Era uma política viável que vinha sendo cumprida sem maiores sobressaltos Porém como não via a presidência como cargo para desempenho da vontade unipessoal do presidente da República e sim como delegação provisória de um soberano permanente o cidadão cujo interesse deveria ser sempre consultado em primeiro lugar avaliou o pedido do sucessor com outros olhos Considerando legítimo que um presidente eleito tivesse opções próprias para administrar e cabia a ele levar isso em conta pelo bem da nação Prudente de Morais deixou de lado as próprias razões em benefício da razão maior Concordou em preparar o caminho para a administração do sucessor em tudo aquilo que pudesse Por isso decidiu apoiar as propostas de Campos Sales com plena consciência do preço que pagava E determinou ao ministro da Fazenda Bernardino de Campos que atendesse à sugestão do candidato enviando cartas aos banqueiros indicando o interesse no empréstimo Dois dias depois de receber o pedido de Campos Sales para viajar como negociador apoiouo em nome da continuidade Porém em vez de mandar um presidente eleito como negociador secreto tornou oficial a viagem só não pagaria a conta da negociação oculta proposta pelo sucessor Bernardino e eu aceitamos com a melhor vontade a vossa sugestão não poderemos ter agente melhor e mais autorizado que o futuro presidente que agirá em nome e no interesse do atual governo do seu governo e da República4 Dessa maneira o eleito que não falou o que pensava para eleitores e apoiadores com apoio de seu grande eleitor e ainda guardando reserva sobre o que pensava do modo com que este governava empenhou sua palavra de governante em Londres numa sala revestida de mogno do banco Rothschild Com isso tomou afinal partido a favor de interesses bastante claros Pelo acordo conhecido como funding loan o presidente eleito conseguiu consolidar a dívida externa brasileira e receber dinheiro suficiente para não ter de pagar prestações nos três anos seguintes Em troca obrigavase a muita coisa comprometiase por escrito a fazer com que o governo atuasse de modo a que a taxa de câmbio passasse de 6 para 12 pence Em outras palavras prometia que o governo agiria para fazer uma libra investida no Brasil no dia do acordo se transformar em duas libras por ação da política do governo brasileiro afora o lucro que o investimento pudesse colher no caminho Era promessa suficiente para inverter a tendência de uma década de divisas escassas Ainda em 1898 ano em que Campos Sales firmou o acordo e governou por apenas 45 dias os investimentos diretos e os empréstimos estrangeiros para agentes privados aumentaram 801 passando de 43 milhões de libras para 776 milhões5 Só esse movimento permitiu um saldo nas contas brasileiras com o exterior de 23 milhões de libras algo que não acontecia desde 1889 Também premiou o banqueiro que lhe dava dinheiro Deulhe garantias reservadas a falidos o governo empenharia a sua principal receita as rendas da alfândega do Rio de Janeiro que podiam ser sequestradas em caso de inadimplência Para que esses escolhidos ganhassem outros tinham de ser punidos O presidente eleito comprometeuse a aumentar durante seu governo os impostos cobrados dos cidadãos fazer cessar os contratos de emissão de moeda ainda existentes conseguir saldos orçamentários em milréis e incinerar toda a moeda representante desses saldos Em suma o governo com folga de caixa iria arrancar mais dinheiro real sob a forma de impostos arrecadados de cidadãos e empresas ao mesmo tempo que reduzia a quantidade de dinheiro para esses cidadãos produzirem e pagarem esses impostos Num discurso pronunciado em Londres após assinar o acordo o futuro presidente fez questão de deixar claro o modo como via as posições relativas dos cidadãos que representava e dos ingleses nas palavras de seu portavoz oficial Disse que nosso patriotismo é em geral de vaidade somos o primeiro povo do universo não precisamos do concurso do mundo Mas não há povo com espírito de ordem para formar a solidariedade nacional e nós vivemos em revoluções com sacrifício de nossa coesão Os povos modernos que têm o bom senso de aprender não devem se envergonhar de pedir para a cultura europeia os mestres que lhes ensinam ciência transformam os métodos de trabalho organizam as instituições mais profundamente nacionais6 Fazia assim eco às ideias de seu futuro ministro da Fazenda sobre a fraqueza do povo brasileiro chamado a pagar a conta Armado do dinheiro que não teve vergonha de pedir voltou ao Brasil e escreveu um manifesto de posse no qual se despedia da condição de cidadão e se apresentava como um presidente dotado de todos os atributos do antigo Poder Moderador como o homem que reina governa e administra a pessoa de suprema autoridade Elevado a este posto de honrosa confiança e incomensurável responsabilidade aprazme acreditar que o que pretendeu o voto popular foi colocar no governo da República o espírito republicano na sua acentuada significação E esse intuito é naturalmente presumível dada a índole de nosso regime que com a responsabilidade unipessoal preferiu eliminar a política de uma coletividade para concentrála na pessoa da suprema autoridade em quem reside constitucionalmente o critério que dirige delibera e aplica7 Se o candidato relutava com o reinar não se pode dizer o mesmo do presidente Campos Sales fez questão de deixar claro que a tal elevação pelo voto só valia para o presidente e que os demais representantes eleitos da nação deveriam se portar apenas como auxiliares menores no cumprimento da palavra nacional empenhada em Londres ato sobre o qual jamais dissera uma palavra a parlamentares apoiadores ou eleitores O atual momento assinalase pela imprescindível necessidade de franca e resoluta cooperação do Legislativo para que seja adotada e posta em execução uma política financeira rigorosamente adequada às necessidades do Tesouro Aí está o ponto culminante da administração Espero muito do patriotismo do Congresso federal e da austeridade do caráter brasileiro para tornar efetivas as providências reclamadas por nossa situação Empenhei a responsabilidade do meu governo na fiel execução do acordo financeiro celebrado em Londres Mais do que minha responsabilidade está empenhada nisso a própria honra nacional8 Disso decorria uma série de prioridades listadas com grande clareza Em primeiro lugar vinha a política financeira rigorosamente adequada às necessidades do Tesouro e não da nação O ponto culminante da administração seria arrumar as contas do governo A parte que ficara com a conta o setor privado entrava no discurso não como sendo constituída de eleitores soberanos e seus representantes mas como objeto do arranjo feito Por isso agora só valiam para ajudar o Tesouro Os cidadãos que alienaram o poder na eleição deveriam na gestão entrar com austeridade do caráter ou seja pagar a conta Já os representantes eleitos deveriam esquecer os eleitores e fazer leis para tornar adequada a situação do Tesouro Na mensagem ao Congresso enviada dois meses depois da posse Campos Sales ecoou a ideia de que a administração era uma esfera reservada privadamente ao presidente como representante do bem comum tal como o Poder Moderador havia conferido ao monarca e que tal poder não deveria ser perturbado pelos parlamentares definidos como na teoria conservadora imperial como representantes apenas dos interesses menores dos particulares A presente sessão legislativa se instala sob os favoráveis auspícios de uma época de completa tranquilidade que assegura preciosa calma de espírito àqueles a cujo patriotismo cabe promover o bemestar e o progresso da nação brasileira aplicando sobretudo a sua sábia solicitude ao estudo dos graves problemas da administração que devem constituir a suprema preocupação do atual momento9 Um parlamentar reagiu Rui Barbosa que lutara para destruir as prerrogativas do Poder Moderador passou a escrever uma série de artigos intitulada Resposta à Fala do Trono a fórmula pela qual os parlamentares do Império respondiam ao discurso de abertura da sessão pelo imperador Ele atacou de frente a concepção de uma presidência com poderes imperiais pregada por Campos Sales Se este se definia como pessoa da suprema autoridade o jornalista o definia como aquele a quem entre todos os compatriotas a competência divina conferiu o benefício da primogenitura na geração dos ungidos do povo permitindolhe o cimo dessa dignidade que ombreia com os tronos10 E descrevia deste modo a forma como exercia o poder Suas convicções não ousaríamos dizer suas prevenções formamlhe em torno do espírito uma esfera impenetrável cuja ressonância interior o preserva dos rumores externos Como a pérola na estreita avareza de sua concha insensível à pressão do elemento azulado que o circunda impermeável às correntes da vida submarina que a envolve seu ideal definitivo vive ali em introspecção desafiando as mutações exteriores11 Rui Barbosa aludia diretamente ao lugar neutro definido na teoria conservadora para o Poder Moderador assim resumido por Camilo Torres Todas suas atribuições giram em torno da necessidade de um poder neutro que mantivesse em equilíbrio a máquina do Estado12 Para tanto ocuparia um lugar especial O rei era a chave da abóboda a pedra de fecho sustentando o edifício13 Rui Barbosa também não perdoou a concepção conservadora formulada pelo visconde do Uruguai segundo a qual o aparato do Estado deveria servir aos interesses próprios da administração algo possível com a concepção do corporativismo e a prevalência do Poder Moderador em detrimento da nação Administração nada mais Madrasta ingrata e seca a política inimiga dos espíritos construtores não competirá jamais com a administração mãe inesgotável de seios generosos e opulentos a cujo leite se nutrem os povos grandes e os grandes condutores de povos Nossos antecessores não sabiam aritmética e queriam governar com o ritmo dessa harmonia que embala os intelectuais O que nos faltava era aprender a contar Se a Monarquia tivesse estudado tabuada não teria caído Ainda bem que a República despertou em tempo e foi bater na porta da escola onde ensinam compridamente as quatro operações aos povos endividados Deramnos ali a cheirar libras esterlinas e saímos guardalivros provectos Verdade é que ficaram no prego as alfândegas Mas em compensação os nossos credores estão garantidos e o Tesouro nacional conhece hoje correntemente as quatro regras essenciais Chegou ao poder a vez de experimentar a ataraxia dos filósofos a perfeita quietude da alma Não lhe venham turvar as agitações da imprensa e da tribuna14 O governo colonial insensível ao sertão dava lugar ao governo federal infenso aos interesses da sociedade vistos como menores ou particulares ao modo imperial E Rui Barbosa não parou por aí Sobre a política econômica que o próprio presidente via como destinada a colocar os brasileiros em posição subordinada com relação ao gênio inglês foi mais direto ainda O termômetro exclusivo da política de uma nacionalidade não pode ser o contentamento de seus credores Atualmente o governo brasileiro está hipnotizado por seus credores londrinos Quando eles batem palmas o Catete põese em festa e todos nos derretemos em gáudio porque meia dúzia de folhas europeias refletindo a satisfação de seus credores mimoseiam o presidente atual com alguns cumprimentos Um tal espetáculo humilha e revolta Esqueçamse os credores internos Reduzamse à miséria e à esterilidade os serviços mais essenciais Tanto melhor Na razão direta desses golpes contra os interesses mais vitais do país terá crescido a margem para a dívida externa A respeito de alguns dos supremos interesses da Nação a mensagem se ressente de uma indiferença de uma sovinaria de uma glacialidade que não seriam talvez tamanhas na boca do estrangeiro se já corresse por suas mãos o governo desta terra15 A prática no entanto comprovaria a relativa inutilidade do Parlamento diante dos planos de isolar o governo central das pressões dos interesses brasileiros numa ostra e estabelecer a partir daí uma política que combinava recessão favorecimento dos interesses estrangeiros e um sistema eleitoral à prova do povo teoricamente soberano Contrariando a letrada lei o costume de um governo central que agia contra os interesses dos locais o caranguejo da metáfora do frei Vicente do Salvador era renomeado ostra e logo ganharia estatuto de teoria política CAPÍTULO 48 A pérola hereditária JOAQUIM MURTINHO FOI CONVIDADO POR CAMPOS SALES PARA IMPLANTAR O programa que delineara em 1897 Logo no primeiro relatório como ministro da Fazenda vangloriouse de estar atingindo vários objetivos patrióticos Em primeiro lugar acabar com o esbanjamento A pseudoabundância de capitais produzidos pelo papelmoeda promoveu a criação de um semnúmero de indústrias e desenvolveu de modo extraordinário a atividade agrícola Daí o estabelecimento de indústrias artificiais e a organização agrícola para a produção exagerada de café dois fatores da desvalorização de nossa produção O emprego de capitais e operários em indústrias artificiais representa um verdadeiro esbanjamento da fortuna nacional1 O meio de evitar tal esbanjamento era a sua política de restringir o volume de dinheiro em circulação na economia As grandes emissões que excitaram a febre dos negócios desenvolvendo os canais da circulação monetária invadiram os campos destruindo a calma a prudência e a sabedoria no espírito dos agricultores infiltrandolhes a ambição das grandes fortunas realizadas com rapidez2 Tal afã febricitante que geraria produção excessiva até na ponderada agricultura contaminavaa com produção improdutiva A emissão de curso forçado alargando de modo brusco a circulação e gerando prontamente grandes lucros pela especulação que desenvolve gera um estado especial de espírito uma verdadeira nevrose caracterizada pela mania de grandezas por um otimismo exagerado por um arrojo invencível que suprime toda a prudência e todo o critério Nessas condições a emissão de curso forçado traz em sua própria natureza os elementos de sua ruína Os negócios inventados por ela são em geral improdutivos não criam nenhum valor novo3 Se na agricultura a situação era de nevrose a ser curada na indústria seria de vício a ser escarmentado Enquanto se opera lenta e gradualmente a metamorfose industrial em nosso país não temos outro recurso senão pedir a nosso vicioso sistema industrial uma compensação dos prejuízos que ele causa às rendas da União4 O adjetivo vicioso remete a Aristóteles para quem a economia que lida com dinheiro era além de artificial imoral Tal como Aristóteles e apesar da extinção do trabalho escravo o único virtuoso para o filósofo Joaquim Murtinho tinha como virtuosa a economia que não pagava salários não era capitalista e além disso deveria ser brasileira O que caracteriza uma indústria natural não é o fato de ter sua matériaprima importada ou não Uma indústria onde a mão de obra representa o papel principal no custo de produção deve ser considerada atualmente artificial no Brasil mesmo que toda a matériaprima exista entre nós A indústria de artefatos de borracha estaria evidentemente neste caso5 A volta ao patamar anterior ao salário seria a forma de reconstruir a verdadeira riqueza nacional O método para chegar lá seria a destruição da indústria artificial que apenas retiraria riqueza natural da agricultura prudente Uma vez destruída tal aberração aumentariam as exportações dos produtos dos setores naturais que produziram mais riqueza que o esbanjamento com produção local Os capitais empregados nas indústrias artificiais que contribuem para redução da nossa importação se fossem empregados em indústrias naturais deveriam produzir na exportação renda suficiente para cobrir essa diferença na importação e ir além A produção nas indústrias artificiais não representa um resultado econômico os seus lucros exprimem apenas impostos sobre as outras produções os capitais nelas empregados não são fatores mas antes agentes parasitários da riqueza pública Eis como as emissões criando indústrias artificiais contribuem para a diminuição da riqueza nacional6 Atualmente é muito difícil entender uma política econômica feita com tais conceitos vindos da Antiguidade e apenas atualizados pelas crenças mercantilistas de que a riqueza se obtém por meio do acúmulo de saldos comerciais Mas Joaquim Murtinho seguia uma tradição brasileira da qual se orgulhava Nos relatórios jamais deixava de louvar seus inspiradores Naquele de 1900 depois de citar profusamente o visconde de Itaboraí escreveu O programa de valorização foi sustentado com calor e convicção pelos estadistas mais notáveis do Império7 E o ministro fez realmente aquilo que se propunha inspirado nessa tradição Entre 1889 e 1897 o transporte de cargas nas principais ferrovias brasileiras crescera a uma média anual de 11 passando de 189 para 429 milhões de toneladas A inversão de tendência foi violenta Em 1900 o total das cargas movimentadas no conjunto das ferrovias do país havia caído para 387 milhões de toneladas uma diminuição de 103 em três anos voltando ao patamar de 18958 Há indícios claros de que foi uma queda seletiva atingindo mais a produção interna do que a exportável Isso se vê no volume das cargas de café em comparação com o restante da produção transportada nas ferrovias paulistas Embora a proporção do café no total declinasse progressivamente desde o início da década de 1880 a tendência se inverteu nos últimos anos da década seguinte passando de 19 em 1895 para 34 em 1900 concentrandose nos dois últimos anos do período nos quais a queda no transporte de produtos para o mercado interno rondou os 30 Enquanto a produção privada interna apanhava o governo passou a viver na bonança Por conta do empréstimo as despesas caíram de 889 mil contos em 1898 para 330 mil contos em 1901 uma queda de monumentais 63 As receitas do governo federal tiveram um comportamento oposto apesar da grande recessão Foram de 425 mil contos em 1898 e passaram para 468 mil contos em 1901 com um crescimento de 10 no período E o crescimento das receitas se fez ainda com uma distinção clara O governo abaixou a alíquota de muitos impostos de importação sua principal fonte de receita Com isso os produtos estrangeiros geraram 181 mil contos em 1899 valor que representava 48 do total das importações e apenas 137 mil no ano seguinte apenas 36 do valor das importações O favor aos estrangeiros custou caro aos brasileiros Toda a folga financeira do governo foi empregada para queimar moeda de papel O total de moeda em circulação no país caiu de 780 mil contos em 1898 para 699 mil em 1900 uma queda de 104 em dois anos Com tanta pressão sobre a produção nacional eclodiu uma crise no ponto óbvio os bancos que tinham menos dinheiro para trabalhar e muito mais demanda de crédito por parte de clientes em dificuldades A crise estourou em 1900 e teve dois efeitos relevantes No Rio de Janeiro mercado dominado pela circulação de recursos públicos acabou levando à estatização do Banco do Brasil Vitória do governo Em São Paulo o maior mercado privado de crédito brasileiro o resultado foi assim descrito por Anne Hanley A política econômica do ministro da Fazenda Joaquim Murtinho provocou uma forte recessão que gerou uma crise bancária em setembro de 1900 O resultado mais conspícuo do pânico foi uma acentuada reversão na posição relativa dos bancos domésticos e estrangeiros na economia paulista Antes da crise os bancos nacionais tinham a parte do leão do mercado depois dela os bancos estrangeiros começaram a dominar Acusações da época sugerem que os bancos estrangeiros provocaram a crise para se beneficiar dela afinal o momento de pânico beneficia os sobreviventes que ficam em posição mais forte para absorver a clientela prejudicada9 O ministro considerou a ajuda do gênio inglês para punir os negócios artificiais do crédito e da indústria paulistas como uma vitória em seu plano expondo o seguinte argumento contra os queixosos no relatório de 1900 As leis naturais se executam apesar dos clamores dos que não as conhecem À medida que a massa de papel foi se reduzindo seu valor foi se elevando e o câmbio foi o termômetro dessa elevação Ao câmbio de 7 nossa circulação de 788 mil contos valia 197 milhões de libras ao câmbio de 10 os 703 mil atuais já valiam 289 milhões o que quer dizer 92 milhões a mais na circulação nacional Esses milhões de esterlinos com que enriquecemos a circulação no país são os que os nossos críticos não veem ou fingem não ver através das cinzas dos bilhetes destruídos nas fornalhas O que eles não viram é o que todos sentem comparando o valor da fortuna de cada um agora com o que ele representava no ano passado10 Um exemplo muito simples ajuda a entender melhor o argumento Imagine se um brasileiro que aceitou por uma libra esterlina em 1898 os 334 milréis que ela valia no câmbio baixo então vigente Teria trocado papel sem valor intrínseco pelo ouro mais puro Depois ele teria deixado bem guardada sua preciosa libraouro enquanto o ministro agia Três anos depois em 1901 com a moeda valorizada trocou a libra novamente por moeda nacional recebendo 211 milréis ou 33 menos moeda de papel do que três anos antes Enquanto a posse do ouro o deixou mais pobre um evento extraordinário se dava na via inversa Imaginese o sujeito que vendeu uma libra de ouro em 1898 recebendo 334 milréis Suponhase que ele também deixou guardado o dinheiro de papel Três anos depois ao trocar suas notas por ouro os mesmos 334 milréis compravam 157 libra esterlina Teria então um lucro em ouro de 57 nesse intervalo de três anos Graças à política do ministro os bancos estrangeiros de São Paulo como todos os aplicadores externos não precisariam fazer mais do que isso para enriquecer Mas aproveitaram também para comprar muitos negócios de brasileiros que ardiam nas fogueiras purificadoras ateadas pelo ministro Por todo o período a brutal recessão provocou gritos e gemidos entre os brasileiros Houve protestos formaramse partidos as falências se sucederam a vida piorou Mas a casca que protegia o elemento azulado no centro do poder não foi sequer abalada enquanto a recessão prosseguia uma grande pérola se produzia O programa econômico era preâmbulo de um plano maior Campos Sales concebera seu modelo de governo com base no antigo trono imperial Fundarao no dinheiro de Londres e escutava apenas a opinião de Londres porque só dali poderia receber apoio para governar contra os interesses dos produtores e do progresso brasileiro que ele e seu ministro consideravam falso e perigoso A sobrevivência relativamente pacífica do presidente no poder era também a prova de que o governo federal podia naquele momento agir contra o interesse econômico da sociedade ou em termos políticos que o governo federal não representava a sociedade não governava em nome do eleitor soberano seguia as normas do tal depositário unipessoal de todo o poder representante apenas de si próprio mas amigo do gênio inglês que ganhava com isso No entanto Campos Sales queria ir muito além do próprio mandato Precisava transformar o controle em sistema Na monarquia o sistema que garantia o controle pelo centro era legal o rito de sagração pelas urnas do ministério escolhido se fazia de modo aberto seguindo os passos descritos por Nabuco de Araújo o imperador detentor do Poder Moderador escolhia os ministros que nomeavam delegados partidários como presidentes de província Estes faziam as derrubadas e assim controlavam o resultado da eleição Nada disso afetava o rei nem seu trono pois todos os males eram praticados por súditos e todas as vitórias eram da Coroa tuteladas pelo partido que fosse A vontade popular aparecia como algo ruim a tutela como estabilidade A pérola saída da ostra foi a recriação conceitual desse modelo para o regime republicano e deixou a casca em 1900 A doutrina foi claramente expressa por Campos Sales e baseada em sua política econômica Entendi dever consagrar meu governo à obra puramente de administração separandoa dos interesses e das paixões partidárias para só cuidar da solução de um problema que constituía o oneroso legado de um longo passado11 O acordo da dívida visto como dever de honra e solução fundava mais um passo na tentativa de imitar o Império agora para recriar o papel estatal de agente eleitoral máximo Para fazer isso nos moldes da federação Campos Sales adotou o seguinte argumento Julgo azado o momento para se tomar a Constituição da futura Câmara como ponto de partida para a agremiação de forças úteis que constituam um grande partido de governo exclusivamente voltado para as questões de administração12 A inversão era completa no lugar de representantes eleitos pelos cidadãos soberanos para defender seus interesses o Parlamento deveria ser dominado por uma agremiação de forças comandadas pelo presidente da República visto como detentor pessoal e soberano de todos os poderes políticos da nação com a tarefa de apoiarem tudo aquilo que este mesmo presidente via como útil Em benefício dessa utilidade os representantes eleitos do povo teriam o dever de agir até mesmo contra os interesses dos cidadãos ao modo dos funcionários do Império Campos Sales considerava essa obediência como ordem e a representação de interesses da sociedade contrários ao Estado feitas por parlamentares como assédio às eminências do poder público13 Para colocar isso em prática adotou uma interpretação específica do federalismo republicano Nos tempos do Império unitário decaído o poder dos delegados do poder central que fabricavam vitórias eleitorais era considerado opressivo pelos propagandistas da mudança de regime Na República do depositário unipessoal o mesmo controle do resultado das eleições poderia ser obtido num regime que ele considerava de plena liberdade graças a uma nova combinação A verdadeira força política que no apertado unitarismo do Império residia no poder central deslocouse para os estados A política dos estados isto é a política que fortifica os vínculos entre os estados e a união é pois na essência a política nacional É lá na soma dessas unidades autônomas que se encontra a verdadeira soberania de opinião O que pensam os estados pensa a união14 Essa interpretação produz uma ausência muito significativa Segundo ela a verdadeira soberania antes concentrada no trono estaria agora nas unidades autônomas que pensam e transmitem esse pensamento para a união Nesse esquema há um locomotor que é desatado do carro do Estado a soberania do cidadão eleitor Para o presidente que concentrava poderes esse era o gesto que faltava para completar o plano de recriar o Império pelo costume e destruir o capitalismo advindo com a República um acordo entre o presidente da República e os governadores dos estados para construir a maioria do Congresso maioria esta dedicada a servir como partido da administração Em vez de representar a sociedade e trazer sua voz para o governo os eleitos deveriam funcionar como instrumento de difusão do detentor unipessoal da vontade soberana preocupados unicamente com os elevados interesses da administração comunicando tal sabedoria para a sociedade inerte O sistema conhecido até hoje como política dos governadores exigia mais que nos tempos imperiais Para ser colocado em prática necessitava a subordinação ao poder central dos governadores agora supostamente soberanos e eleitos pelo voto e que os parlamentares igualmente eleitos fossem reduzidos ao papel de correia de transmissão entre um e outros Assim como na Constituição imperial não constava o parlamentarismo que a prática acabou impondo a Constituição republicana fundavase no pressuposto de uma única soberania a do povo que escolhe os seus representantes Mas o escolhido pelo soberano empregando habilmente a escrita tentaria agora recriar o domínio do centro como um costume João de Scantimburgo pensador monarquista contemporâneo não deixou de comentar a situação com fina ironia Palpita é inegável no fundo das instituições políticas brasileiras republicanas uma nostalgia do Poder Moderador15 A prática mostraria o quão reveladora pode ser uma ironia CAPÍTULO 49 Governo central reacionário NO DIA 20 DE JULHO DE 1901 O EXPRESIDENTE PRUDENTE DE MORAIS TEVE UM encontro com seu ex ministro da Fazenda Rodrigues Alves agora governador de São Paulo Este anunciou que seria o sucessor de Campos Sales na presidência o primeiro escolhido nos moldes da política dos governadores E foi além O resultado da segunda parte da conversa foi narrado desta maneira por Afonso Arinos O governador paulista recebeu amistosamente seu antigo chefe e dele soube que dissentindo dos processos políticos do presidente da República iria oporse às candidaturas oficiais Depois de ouvilo com toda a deferência Rodrigues Alves observou sorrindo Agradeçolhe o aviso mas você vai perder Por que tem tanta certeza indagoulhe Prudente Em resposta sempre sorrindo bateu com a palma da mão na poltrona em que estava sentado e disse Por causa dessa cadeira Eu estou sentado nessa cadeira Quem nela se senta não pode ser vencido dentro do estado1 A frase tinha um significado histórico profundo assinalando um significativo retrocesso no tempo político Para que tal dimensão reacionária seja entendida na íntegra é preciso examinar o conteúdo da conversa sobretudo a parte das candidaturas oficiais Eram uma referência às candidaturas do Partido Republicano Paulista aos parlamentos e cargos executivos O governador comunicava ao expresidente que a decisão sobre quem controlaria os nomes nessas chapas seria o dono da cadeira em que estava sentado e essa era a novidade da conversa Até ali a elaboração das chapas de candidatos acontecera por uma via bem diferente Formados na oposição ao regime monárquico os vários partidos republicanos não tinham como prometer cargos de governo para os seus militantes nos anos iniciais Atuando apenas na sociedade eles adaptaram os seus métodos a essa situação A democracia interna estava presente em todas as esferas de organização diretórios locais elegiam seus dirigentes os quais elegiam as direções provinciais que elegiam os membros da Comissão Permanente depois denominada Comissão Central órgão máximo da direção Com a proclamação da República houve um aumento explosivo na oferta de postos estatais para militantes desde a presidência da República até os pequenos cargos em cidades do interior e aí passaram a valer as indicações partidárias Tal realidade provocou modificações profundas na estrutura dos diversos agrupamentos republicanos estaduais A mudança mais radical aconteceu no Partido Republicano Riograndense como notou José Ênio Casalecchi O Partido Republicano RioGrandense abandonou a partir de 1889 o comportamento democrático de encaminhar decisões através de assembleias Entre 1889 e 1923 dois próceres dominaram o partido e nesse período o PRR jamais se reuniu As grandes e pequenas decisões da política local estiveram nas mãos de Júlio de Castilhos 18891897 e Borges de Medeiros 18971923 que acumularam em todo o período o governo do Estado e a chefia do partido Nesse período a fraude foi costumeira no alistamento eleitoral na apuração dos votos no uso dos dinheiros públicos nas campanhas políticas na ação de capangas e da Brigada Militar acrescida do controle do eleitor pela inexistência de voto secreto2 Essa conjunção de controle pessoal e simultâneo do partido e do governo de fim da democracia interna no partido e de fraude nas eleições não havia acontecido em São Paulo como argumenta Joseph Lowe Dentro do PRP as disputas entre facções eram em grande parte neutralizadas pela continuidade assegurada pela Comissão Permanente órgão intermediário entre o governador e os coronéis A comissão também representava os diferentes interesses regionais dentro do estado provendo a intermediação necessária na distribuição de empregos e recursos necessários a obras públicas Além do mais legitimava a transferência de poder de um governador para o seguinte Pelo menos nos primeiros anos do regime podia também interceder junto à câmara estadual em defesa de políticas específicas além de em comum acordo com o governador proceder à indicação de nomes para o preenchimento de cargos3 Em vez de uma burocracia partidária incrustada no Estado como ocorria no Rio Grande do Sul a Comissão Permanente que dirigia o Partido Republicano Paulista continuava sendo eleita e operando fora do governo e as instâncias partidárias surgidas no período da propaganda mantiveramse inclusive com a proibição de acúmulo de cargos no Executivo e na direção partidária Portanto Rodrigues Alves comunicou a Prudente de Morais que chegava ao fim essa era da separação entre direção do partido e governo assim como a independência da direção partidária o governador faria ele mesmo as indicações para a Comissão Permanente A vida do partido seria controlada desde o comando do estado o lugar da militância e da sociedade na instituição seriam agora subalternos e o resultado das eleições uma decorrência do domínio do cargo de governador Mais ainda o governador relatou a Prudente de Morais que fazia isso por orientação de Campos Sales Este na presidência estava executando no plano nacional o mesmo processo Mais tarde Campos Sales justificaria o passo com todas as letras Em regra sou infenso às grandes reuniões para deliberar sobre assuntos que pela sua natureza se relacionem com a direção ou orientação que se deve imprimir a um determinado momento político Esta é uma função que pertence a poucos e não a uma coletividade4 A mudança ia na mesma direção daquela dos republicanos gaúchos Embora nos tempos de juventude e oposição Campos Sales tenha tido comportamento de democrata partidário quando no poder passou a considerar como anarquia até mesmo as tentativas de políticos eleitos para traduzir os interesses da coletividade em decisões políticas E o afirmava com todas as letras não há perigo maior do que a violência brutal do voto para ameaçar os interesses da administração5 Daí a decisão de transferir ao governo o controle do resultado eleitoral Explicitado o teor da decisão que o presidente espraiava do nível federal para o estadual extinção dos resquícios de democracia partidária e submissão do partido ao dono do governo é esclarecedor acompanhar a evolução do mesmo tema o das relações entre governos e partidos políticos numa realidade mais ampla a da vida política ocidental Nesse escopo mais geral o cientista político Isidro Molas traça um quadro histórico dessa relação que começa na Inglaterra do final do século XVIII A sociedade ficava representada por certos cidadãos eleitos através de sufrágios restritos Isso limitava a escolha entre aqueles que possuíam grande fortuna pessoal ou maior formação intelectual de modo que ficava afastada a possível ingerência dos setores econômica e culturalmente mais débeis ou menos racionais Tais representantes sem nenhuma sujeição que não fosse à sua razão individual eram portavozes não de seus eleitores mas da totalidade ou seja da nação Eram deputados que logo constituíam frações políticas no seio dos parlamentos ao agruparemse ao redor de certos líderes Suas diferenças eram fluidas ideologicamente pouco consolidadas e socialmente pouco acentuadas6 Uma importante mudança inicial teria ocorrido com as ampliações do direito de voto com pioneirismo dos Estados Unidos Cronologicamente o aparecimento dos partidos políticos como organizações extraparlamentares aconteceu a partir da terceira década do século XIX Nos Estados Unidos os partidos começaram a se estruturar durante o governo de Andrew Jackson entre 1829 e 1837 A necessidade de canalizar os sufrágios populares num momento de aumento da imigração e alargamento do censo eleitoral está na base da formação dos partidos norteamericanos Andrew Jackson elevou a princípio sistemático o spoil system dando ao candidato vitorioso a possibilidade de distribuir grande número de cargos públicos entre os componentes de suas hostes7 Essa mescla de eleições e distribuição de cargos governamentais se difundiu para a GrãBretanha A divisão parlamentar entre tories conservadores e whigs liberais iniciada no século XVII não existia na sociedade nem gerara uma estrutura partidária Os grupos contavam com as clientelas pessoais que os whips chefes de cada facção arregimentavam com recursos que iam da corrupção à promessa de cargos Mas a partir da reforma eleitoral de 1832 os partidos se desenvolveram Por iniciativa dos whigs criaramse sociedades destinadas a inscrever eleitores nos partidos8 A ampliação do eleitorado na década de 1870 trouxe uma nova organização para a vida partidária nas democracias ocidentais Com o sufrágio universal os núcleos parlamentares tiveram de readaptar suas organizações para manter em novas condições a direção política da sociedade O voto universal dava aos setores até então excluídos a possibilidade de organizaremse para se contrapor à força econômica e social dos demais setores Então competindo com os antigos grupos políticos surgirão novos partidos Não serão mais partidos criados no seio do Estado mas fora dele animados pelo propósito de chegar a governar para realizar seu programa Nesse caso o peso dos parlamentares ainda que importante será menor em contrapartida aumentará o poder do pessoal permanente seja da burocracia ou dos filiados9 Assim na virada para o século XX se completaria o processo O sufrágio universal combinado com a liberdade de associação alterarão fundamentalmente os regimes liberais e os converterão em democracias políticas transformando os partidos políticos num novo sistema Sufrágio universal democracia e partidos se vinculam em sua origem histórica10 A comparação entre o caso brasileiro e esse sumário evolutivo geral explica o adjetivo reacionário aposto ao funcionamento do governo com a adoção da política dos governadores ela foi um passo decisivo para voltar a reduzir o espaço da soberania popular do poder dos cidadãos de controlar os destinos dos partidos políticos e dos governos recolocando tudo sob o domínio do governo como deixara de ser nas democracias mais avançadas A marcha a ré que começara com a exclusão imperial do voto dos analfabetos ampliavase com o recuo no controle dos partidos políticos pela sociedade Não se tratava apenas disso Outro cientista político Robert Michels traça uma distinção importante entre a primeira fase do processo do voto limitado e da representação diluída no Parlamento e a última da sociedade controlando o Estado pelo voto A burguesia vitoriosa dos Direitos do Homem realizou a República mas não a democracia As palavras Liberdade Igualdade e Fraternidade podiam ser lidas nos portais de todas as prisões francesas Houve revolução mas foi preciso esperar pelo estabelecimento de uma democracia11 Esse tempo de espera duraria até a implantação do voto universal Michels nota que a passagem da República para a democracia vinda na esteira dessa mudança trouxe um dilema essencial para os conservadores Um conservador não obtém representação pela divulgação de suas verdadeiras crenças ou buscando aqueles que pensam como ele Um partido de aristocratas que apelasse apenas para os membros de sua classe ou às pessoas com interesses econômicos idênticos não elegeria um único membro para o Parlamento Um candidato conservador que se apresentasse declarando aos eleitores que não os julga capazes de tomar parte ativa na definição dos destinos do país e que por isso deveriam ser privados de seu direito ao sufrágio seria um homem de sinceridade incomparável mas politicamente insano Se quiserem encontrar um caminho para o Parlamento só dispõem de um método descer à arena eleitoral com democrática humildade e tentar convencer os eleitores de que têm os mesmos interesses que eles Assim um aristocrata é obrigado a assegurar sua eleição em virtude de um princípio que abjura Todo seu ser exige autoridade a manutenção de sufrágios restritos a supressão do direito universal de votar vistos como ameaças a seus privilégios12 No Brasil a política dos governadores foi moldada segundo os princípios aristocráticos dos conservadores que não julgavam os eleitores capazes de tomar parte ativa na definição dos destinos do país Destinavase a reservar tal domínio para quem se pensava como aristocrata encastelado no comando Essa ação conservadora baseada numa interpretação republicana da teoria política que justificava o Poder Moderador transformouse na arma com a qual os conservadores que em economia combatiam o capitalismo tentavam evitar o movimento histórico ocidental da democracia desfavorável aos ideais de superioridade que fundam a consciência conservadora Embora reacionária a política foi implantada na conversa entre os dois políticos Rodrigues Alves encerrou o assunto mostrando os nomes que como governador iria impor ao partido Prudente de Morais saiu da audiência com o governador e seguiu direto para uma reunião com os políticos de seu grupo agora alijado da direção do partido Rodrigues Alves mandou nomear os membros da Comissão Central como ficou conhecido o organismo reformado Prudente de Morais ajudou a redigir o manifesto do Partido Republicano Dissidente Além dele oito dos 22 deputados federais paulistas 21 deputados estaduais dois senadores estaduais e representantes em 80 dos 172 municípios do estado assinaram o texto onde se lia Nós dissentimos da orientação do presidente da República do governador do estado e da maioria da Comissão Central Eles dissentem das crenças do partido e de suas tradições E explicava a razão central da ruptura O brasileiro é de índole fundamentalmente democrática Suas tradições o demonstram os fatos de sua vida social o confirmam Todos os movimentos políticos verdadeiramente populares que se deram nos tempos coloniais bem como em sua vida de nação independente tiveram um caráter acentuadamente democrático A monarquia jamais pode lançar fundas raízes na alma nacional13 Por isso apresentava a mudança de regime como vinda da sociedade para o governo Em várias províncias organizouse o Partido Republicano Em todas o espírito popular esclarecido e emancipado cada vez mais afastavase da Monarquia e evocando as tradições democráticas voltavase cada vez mais para a República Por isso quando o Exército e a Armada obedecendo as sugestões de seu patriotismo fizeram a revolução de 15 de Novembro a alma nacional sentiu fortes vibrações de espontâneo entusiasmo As novas instituições foram em toda a parte acolhidas pelo povo com francas manifestações de entusiasmo O poder teria trazido problemas à democracia partidária Aumentado de elementos novos embora republicanos sinceros o partido foi aos poucos se desorganizando Afastouse das normas partidárias profundamente democráticas que faziam repousar a autoridade de sua direção sempre acatada jamais desobedecida na vontade da coletividade e não no querer pessoal de alguém14 Campos Sales indicado pelos republicanos teria chegado ao poder num momento em que havia dois partidos nacionais e prometera fortalecer esse sistema no dia de sua posse No lugar de cumprir a promessa teria feito outra coisa A existência de dois partidos contrariava suas aspirações de mando incontrastável sua ambição de se tornar árbitro supremo da política nacional aspirações e ambições que seu comportamento claramente denunciava Sob o pretexto de congraçar todos os republicanos de fazer uma política de largos horizontes procurou afastar todos os homens do partido que o elegeu capazes no seu conceito de se oporem a suas tendências absorventes e chamou aqueles do partido adversário que acreditou poderem prestarlhe apoio incondicional A partir daí teria empregado o Estado para eliminar a democracia Interferiu diretamente na constituição do Congresso Nacional Influiu de modo ostensivo na verificação de poderes de deputados e senadores Essa conduta significava o mais evidente atentado contra a soberania nacional a nulificação completa das eleições a negação absoluta do regime democrático cuja base é o sufrágio popular15 E isso tudo com apoio dos republicanos paulistas O Partido Republicano de São Paulo dolorosamente sentia as acusações provocadas pelo desvio político de seu antigo chefe Não alimentava mais ilusões a respeito as alturas do poder haviam conturbado a alma do propagandista republicano Entretanto o partido calava generoso a sua condenação e procurava com cautela evitar que de seus representantes partisse a oposição no Congresso Federal Extintas as razões de cautela nasceria o partido com um ponto central no programa A verdade do regime republicano repousa na pureza da representação popular E como esta só pode se realizar pelo voto depende do livre pronunciamento das opiniões por meio de eleições legítimas16 Mas o próprio ato de nascimento do partido já marcava seu dilema A partir daquele momento havia uma ruptura radical entre República e Democracia O governo agia para manter a vida política na forma primeva da República sem controle do voto pela sociedade a fim de impedir a evolução rumo à democracia Eduardo Kugelmas analisou da seguinte forma o resultado do passo atrás em relação ao Ocidente O mais grave era a extraordinária rigidez do sistema e seu caráter excludente Para os marginalizados do clube oligárquico só havia a alternativa da submissão ou da explosão Fazendo da letra liberal democrática da ordenação legal uma farsa e do sufrágio uma pantomima o sistema era refratário a qualquer aumento de participação política e a uma verdadeira expansão da cidadania17 Como o sistema era rígido e refratário todos os que acreditavam na sinonímia entre República e Democracia tiveram sua carreira política interrompida justamente no único estado que conseguira avançar na organização de partidos políticos que fossem mais que uma extensão do Estado uma força da sociedade Excluídos da política formal encontraram os meios possíveis de reagir na sociedade CAPÍTULO 50 Fosso ATÉ A VÉSPERA DA SAÍDA DO PARTIDO REPUBLICANO PAULISTA O GRUPO DISSIDENTE poderia ser considerado uma força política relevante um expresidente da República dois exgovernadores senadores deputados prefeitos vereadores Mas no dia seguinte como logo eles se deram conta eram políticos sem nenhum futuro eleitoral Ainda assim tentaram Primeiro retomando um espaço que conheciam desde os tempos da propaganda a imprensa canal de comunicação que só ficava fechado nos tempos excepcionais de estado de sítio e censura e que serviu para mostrar o tamanho da cisão política Com os dissidentes ficaram José Alves Cerqueira César exgovernador e casado com uma irmã do presidente Júlio Mesquita já dono de O Estado de S Paulo deputado estadual e casado com uma sobrinha de Campos Sales Além disso os primeiros ataques diretos pela imprensa foram assinados por Alberto Sales irmão do presidente militante histórico do partido e empresário que jamais aceitara cargos no governo após a mudança de regime Com tal história seus artigos revelavam certo pessimismo Nossos antecedentes históricos são conhecidos e não precisam ser aqui amplamente narrados Todos sabem o que foi o regime colonial em que por alguns séculos vivemos Todos se recordam ainda dos ouvidores dos capitãesmores dos governadoresgerais dos vicereis do absolutismo desbragado das autoridades das impertinências da administração das exigências do fisco e da tutela grosseira e feroz com que vivemos durante todo aquele longo e penoso período que foi um verdadeiro cativeiro e que matou em nós todo o sentimento de independência todo o espírito de iniciativa toda a coragem cívica1 Nem mesmo os momentos da independência eram vistos com melhores perspectivas Entramos no Império com o regime parlamentar de importação que funcionou aqui por mais de sessenta anos Por fim descrentes com um regime que nada fazia e que ia pouco a pouco depauperando a nação corrompendo os costumes e cavando cada vez mais o abismo de nossa miséria moral fizemos a revolução de 15 de novembro que derrubou o Império e proclamou a República recebendo igualmente de importação o regime presidencial Assim teria ocorrido o inevitável Tanto um como outro estão em completo desacordo com o caráter nacional Nós todos sabemos melhor do que ninguém o que somos Não temos força de vontade firmeza de resolução coragem individual confiança em nós mesmos e em nossos próprios esforços Não empreendemos nem perseveramos em coisa alguma Faltanos em absoluto crença em nossa própria força somos excessivamente tímidos fracos e medrosos Temos é verdade umas poucas qualidades morais que nos elevam frente a outros povos Somos muito comunicativos muito expansivos e afáveis A nossa casa é a casa de todos e a nossa hospitalidade é proverbial2 Tanto num regime como no outro haveria uma sociedade fraca e um Estado forte Assim chegava ao cenário atual e sua proposta de mudança O que é preciso fazer em um país como o nosso onde o Estado é tudo e o indivíduo é nada Enfraquecer de certo modo o Executivo e fortalecer o indivíduo Se o indivíduo fosse forte a federação por si bastaria para resolver o problema garantindo o equilíbrio do sistema Dadas porém as condições de nosso caráter nacional e tendo em vista nossos antecedentes históricos é bem de verse que o desequilíbrio há de ser fatal e o aparelho há de viver das oscilações do indivíduo que ocupe a cadeira de presidente da República Não fizemos a revolução de 15 de novembro para sair da ditadura imperial e cair na ditadura presidencial3 Essa forma de apresentar a questão com uma separação completa entre o indivíduo e o Estado sem instâncias intermediárias era bastante recente e fazia grande sucesso entre os conservadores desde que Gustave Le Bon publicara A psicologia das massas em 1895 O livro era a tentativa de reagir a uma mudança que aterrorizava o autor O direito divino das massas está em via de substituir o direito divino dos reis4 Essa era então uma ameaça muito real à concepção conservadora segundo a qual uma minoria graças à superioridade intrínseca de seus componentes deve exercer a dominação sobre a maioria O modo que o escritor francês encontrou para atualizar essa crença foi assim descrito por Gabriel Cohn Toda a análise de Le Bon está construída no sentido de demonstrar o caráter irracional impulsivo e mesmo regressivo da ação das massas Pelo mero fato de tomar parte numa multidão organizada isto é de uma associação de indivíduos com vista a alguma ação um homem desce vários graus na escala da civilização Isolado ele poderia ser um indivíduo cultivado na multidão é um bárbaro ou seja uma criatura que age por instinto5 Assim embora muito mais ligado à sociedade que seu irmão presidente Alberto Sales tinha pouca confiança no futuro pois temia tal como o irmão a barbárie das multidões Esse dilema também estava claramente presente no artigo de Júlio Mesquita publicado no dia 27 Não há liberdades populares no regime presidencial A opinião pública está como que metida num túnel ao qual se tivessem fechado as duas saídas Faltalhe o ar faltalhe a luz vai morrendo aos poucos numa asfixia dolorosa que punge e revolta todas as consciências Ou a revisão se faz ou a República desaparece Custe o que custar precisamos sair disso6 Aqui há uma diferença um termo que chama a atenção na frase opinião pública Esse termo tem uma história política assim descrita por Gabriel Cohn A noção original de público poderia ser entendida como congruente com uma contraelite de uma minoria seleta contestadora do Antigo Regime em nome de sua reivindicação de portadora legítima da opinião pública Em consonância com as transformações provocadas pela plena emergência da sociedade capitalista de mercado operase uma mudança importante Consiste na interpenetração crescente das noções anteriormente opostas de público e massa com a redefinição correspondente da noção de opinião Nesse ponto a noção de elite passa a ser entendida como parcela minoritária da categoria híbrida público de massa7 O termo estava adquirindo novo significado histórico porque ajudava a fundar outro modo de pensar o equilíbrio na relação entre o indivíduo e o Estado que Alberto Sales entende como estruturalmente desequilibrada com predomínio absoluto do Estado A formulação oposta a Le Bon foi proposta quase no mesmo momento por Émile Durkheim que em 1893 publicara A divisão do trabalho social Novamente Gabriel Cohn explica a diferença Durkheim formula uma complexa dinâmica entre o Estado o indivíduo particular e os grupos secundários que devem se intercalar entre ambos se o equilíbrio social deve ser alcançado Dados apenas o homem privado e o Estado este absorve a individualidade daquele esta última por sua vez também corre perigo quando exposta sem controle à ação dos agrupamentos menores de que o cidadão faz parte Por outro lado o Estado não pode ser oriundo imediatamente da multidão desorganizada dos particulares sob pena de perder sua autonomia e sua condição de área privilegiada da consciência coletiva aquela onde se pode formular ideias claras dos interesses coletivos É apenas pela articulação harmoniosa da tríade Estado grupos intermediários indivíduo privado que se atinge um salutar equilíbrio8 Refletindo a importância dessa diferença na época no dia 2 de janeiro de 1902 o articulista Paulo Egydio publicou em O Estado de S Paulo um artigo cujo argumento se baseava na diferença entre o conceito de multidão ao modo de Le Bon e a noção durkheimiana de opinião O que é público O sentido deste vocábulo não deve ser confundido com a palavra multidão O público é uma coletividade puramente espiritual uma disseminação de indivíduos fisicamente separados de uma coesão toda mental Na multidão operase um feixe de contágios psíquicos promovidos por contatos físicos e por isso ela tem alguma coisa de animal Quando em nossas sociedades civilizadas se desenham correntes de opinião pelas quais os homens firmes e tenazes irresistivelmente impelidos arrancam dos parlamentares e governos a consagração de leis e decretos esses fortes movimentos sugestivos não se produzem em praça pública Os indivíduos sugestionados não se acotovelam não se veem não se ouvem mas leem cada qual o mesmo jornal9 Como bemsucedido dono de jornal Júlio Mesquita também foi encontrando os pontos positivos de sua nova situação através dessa diferença Em artigo publicado no dia 29 de julho de 1901 ele anunciava um caminho Por hoje preciso apenas afirmar que os recentes e sabidos acontecimentos da política do estado não influíram para que eu tomasse essa posição pela revisão Eles foram quando muito a oportunidade que se me ofereceu e que mais dia menos dia teria de oferecerse para que eu pudesse dizer com franqueza e em público aos meus chefes e a meus correligionários o que há muito em particular lhes tenho dito as apreensões que me torturam e as esperanças que me animam e me obrigam a não desertar A minha atitude não é uma surpresa para os companheiros nem o Custe o que custar temos de sair disto um grito de rebeldia É pura e simplesmente o desabafo natural de quem já não pode e acha que não deve ouvir e murmurar baixinho Isso não pode isso não deve ficar assim10 Era um primeiro passo Visando expulsar da vida política um grupo Campo Sales conseguira também libertar um dono de jornal para fazer aquilo que era imperativo numa publicação moderna organizar ideias e informações dividir esperanças e angústias em público Pensar para os leitores não para o governo Mas não era exatamente um caminho fácil pois Campos Sales fundador e diretor do jornal que agora era do contraparente também tinha planos claros com relação à imprensa Tão claros que não se envergonhou ele mesmo de contar um dia Ao assumir o governo da República faltava ao governo um órgão de vasta circulação em que pudesse apoiar sua política descortinar os seus intuitos preparar a opinião e defender seus atos Nesta situação só restava recorrer às colunas das gazetas industriais abertas à concorrência O meu governo ia ser necessariamente um governo de combate teria de se empenhar em lutas tremendas destruir vícios que levavam à paralisia da administração afrontar a coligação de interesses feridos impor severas restrições à despesa pública dar novo rigor ao regime tributário Era inevitável e fatal o recurso à imprensa industrial11 O emprego sistemático de recursos públicos para comprar e controlar a opinião teria uma finalidade precisa Os governos veemse forçados a agir para evitar a ação funesta dos que tentam criar falsas correntes de opinião O ataque ao poder é o mais estimulante atrativo à simpatia pública Ao encetar minha administração não era a deplorável situação em que se encontrava o país que teria de indicar aos escritores desta escola a atitude a tomar O que ia sim dar estímulo e vibração à sua atuação de jornalistas despertarlhes arrebatamentos de patriotismo era simplesmente a auri sacra fames Não corrompi a imprensa Acatei sempre a que merecia respeito do público Tive porém a mágoa profunda de encontrar jornais e jornalistas desviados de sua grandiosíssima missão e que pareciam menos dispostos a ser instrumentos benéficos de opinião12 É curioso o julgamento embutido nesse argumento A opinião pública quando não nasce do Estado é falsa Esse juízo acarreta outro para o presidente era inclusive de boa moral o emprego ilegal de recursos públicos Mantenho ainda agora a convicção de legitimidade do ato perante a moral social Debaixo de instituições que tiram da opinião a origem de todo poder e que com ela devem viver só resta fatalmente ao governo o recurso ao jornalismo industrial13 As matérias prógoverno não eram as únicas pagas na imprensa brasileira Também havia aquelas que anunciavam outros tempos outros grandes desafios para a democracia que começava a se difundir pelo mundo ocidental em lugar da República e que o presidente queria desinstalar da República que comandava No dia 28 de agosto de 1902 o mesmo O Estado de S Paulo publicou o manifesto de lançamento do Partido Socialista Brasileiro que principiava com as seguintes palavras A história das sociedades humanas é a história da luta de classes Tomando o partido de uma dessas classes o programa tinha um ponto central Contra a exploração dos patrões a exigência dos assalariados Depois de notar que a tendência ao socialismo era avassaladora o manifesto pedia mudanças na atitude dos patrões burgueses Melhor serlhesia não se contraporem à massa que é irreprimível no seu atuar crescente14 O manifesto terminava com um programa com os seguintes pontos principais criação de um imposto sobre a renda o fim dos impostos indiretos sufrágio universal para homens e mulheres maiores de 18 anos jornada de trabalho de oito horas cidadania para os imigrantes ensino fundamental obrigatório igualdade de ganhos para homens e mulheres adoção do divórcio neutralidade do Estado nos conflitos entre capital e trabalho liberdade efetiva de reunião e imposto progressivo sobre heranças Era enfim a pauta dos partidos socialdemocratas dos países de capitalismo avançado numa altura em que esses partidos eram mais influentes que os comunistas O líder do partido Everardo Dias lembra das dificuldades de militar em torno dessa ideia no Brasil da época Era preciso agir com muita precaução e prudência para não incorrer em perseguições policiais e prisões Basta lembrar que tendose reunido um grupo de antigos militantes socialistas em meados de abril de 1893 para estudar a maneira de comemorar o Primeiro de Maio em São Paulo foram denunciados e presos sendo os estrangeiros transferidos para o Rio onde penaram nove meses de detenção enquanto os nacionais além de presos foram espancados15 No campo eleitoral onde de fato se obtinha poder a partir da sociedade os dissidentes conheceram diretamente essa espécie de tratamento já na primeira eleição disputada como lembra o próprio Dias As leis eleitorais não facilitavam a entrada de qualquer militante proletário tanto no Congresso Nacional como nas câmaras municipais Estavam feitas de tal forma que nem mesmo possantes agrupações oposicionistas mal podiam obter alguma representação Isto tornava muito precária a atuação partidária16 Desse modo a ação do governo federal centrada na ostra do poder arbitrário foi chegando até a base da sociedade em vez de juntar o governo agia para separar No lugar do capitalismo pelejava para a volta da produção natural e seu domínio na agricultura Mas fazia isso numa sociedade que apesar da recessão tornavase cada vez mais complexa e era capaz de produzir uma voz inteiramente nova Um livro marcaria esse salto Os sertões de Euclides da Cunha Em resenha publicada originalmente no Correio da Manhã do Rio de Janeiro no dia 3 de dezembro de 1902 o crítico literário José Veríssimo concluía com palavras que se tornariam famosas A guerra de Canudos é para o senhor Euclides da Cunha um crime A campanha em si pareceme pareceume desde o primeiro dia mais do que um crime um erro crasso imperdoável Não faltam na nossa história sinais de ininteligência nenhum porém tamanho Crime ou crimes haverá apenas no cerco final conforme os conhecíamos pela divulgação oral ou por algum escrito de pouco valor e os narra agora com vingadora veracidade o autor de Os sertões17 Atingindo um ponto nevrálgico a obra trazia uma mudança nos padrões de julgamento Cinco anos antes da sua publicação no calor dos combates o arraial e seus habitantes haviam sido apresentados ao público como revoltosos no livro apareciam como vítimas de um massacre Essa mudança de avaliação tocava planos profundos da vida do país no intervalo entre fato e romance era parte do drama histórico central do tempo oscilante entre duas ordens divergentes de valores produtoras dos julgamentos opostos Para entender esse drama podese partir de uma formulação jurídica da própria época elaborada pelo deputado Artur Orlando Na Roma dos imperadores o direito público existe fora e acima do indivíduo este não tem meio legal algum para se pôr ao abrigo contra o que for decidido e ordenado na esfera do direito público Ora suponhamos que o imperador que encarna em si a soberania ordena em virtude desta soberania tal ato que violará os direitos de um cidadão romano segundo o direito que rege o Império não há nem poderia haver remédio legal e a soberania representada pelo imperador não poderá encontrar obstáculo No direito anglosaxônico pelo contrário o cidadão tem direitos imprescritíveis inalienáveis que a autoridade não pode infringir que devem ser salvaguardados ao mesmo tempo dos ataques dos particulares e das violências dos poderes públicos Perante os princípios do direito romano o soberano não encontra obstáculos à sua vontade perante os princípios do direito americano os direitos do cidadão estão ao abrigo da ação da soberania mesmo coletiva A nossa Constituição marca o meiotermo entre esses princípios opostos de um lado o ideal de um direito superior à vontade dos indivíduos do outro a supremacia do maior número Assim é preciso evitar que com uma Constituição vazada no direito anglosaxônico estejamos a legislar como se ainda vivêssemos sob o império da legislação romana Em matéria de direitos e liberdades costumase discorrer como se aos poderes políticos coubesse regular de um modo absoluto as relações entre os particulares e a autoridade pública18 Do ponto de vista do direito romano Antonio Conselheiro e seus seguidores seriam rebeldes e o Estado teria o direito de violar todos os seus direitos inclusive o direito à vida sem que pudessem opor qualquer forma legal de obstrução Esse era o quadro legal do Império traduzido na legislação civil das Ordenações herdada da época medieval E ela ainda não havia sido revogada no Brasil naquilo que havia de mais essencial a definição dos direitos do cidadão e a formulação de um código civil que regulasse o exercício desses direitos como leis escritas Esse o fosso Em vez de narrar a partir dele como um caranguejo ou uma ostra Euclides da Cunha julgava os fatos interpretandoos pelos conceitos do direito americano o Estado teria invadido a esfera dos direitos inalienáveis do cidadão Antonio Conselheiro e dos membros do seu grupo cometendo um crime ainda que tal definição de crime não constasse da lei Essa era a nova régua apresentada por Euclides da Cunha esse o ideal de uma democracia em contraste com a República regressiva da política dos governadores Daí o grande salto da narrativa os analfabetos de Canudos eram tratados como sujeitos na luta como cidadãos vítimas do Estado e não como súditos sem capacidade de discernir nem direito de se defender contra os atos do Império E daí o espanto seria essa massa pensada por escritores desde a colônia como composta de súditos sem palavras e sem direitos os cidadãos da República com todos seus direitos inalienáveis Nesse momento Campos Sales foi julgado pela opinião pública na medida do possível José Maria Bello narrou seus últimos momentos na presidência Imensa vaia acompanhoulhe o trajeto à estação da estrada de ferro onde embarcaria para São Paulo A sua vaidade muito teria sofrido com a ruidosa manifestação de hostilidade pública tão em contraste com as aclamações que quatro anos antes recebera Prudente de Morais Mas devia estar tranquila sua consciência de administrador Depois do longo e penoso sacrifício exigido da comunidade brasileira transmitia uma casa em ordem com a escrita equilibrada Degradarase ainda mais a política republicana com a política dos governadores aviltarase a significação democrática do Parlamento diluíramse as derradeiras esperanças no livre jogo das instituições representativas seu confessado suborno à imprensa como que oficializara a corrupção jornalística à sombra de seu plano de extrema deflação monetária tinham feito excelentes negócios banqueiros estrangeiros e especuladores nacionais19 Fez um sucessor Rodrigues Alves E indicou um ministro da Fazenda Leopoldo de Bulhões cujas crenças econômicas não haviam mudado um milímetro desde os tempos em que era deputado florianista A política financeira que devemos seguir é a que inspirou sempre os estadistas da monarquia reduzir o quanto possível a massa de papelmoeda fazer economias a fim de equilibrar o orçamento estudar os meios de voltarmos à circulação metálica20 Assim pensava o ministro e assim fez o governo Para entender como o fosso foi rompido só resta um caminho acompanhar o surgimento de uma alternativa desde o nascimento na opinião da sociedade passando pelas instâncias inferiores de governo e desaguando no cenário nacional CAPÍTULO 51 O plano do café sociedade e legislativo estadual AUGUSTO FERREIRA RAMOS NASCEU EM CANTAGALO NO RIO DE JANEIRO EM 1860 Era engenheiro de formação e professor desde 1894 da Escola Politécnica onde começou como lente da cátedra de mecânica geral e máquinas A partir de 1897 passou para as cátedras de mecânica elementar e tecnologia rural1 Enquanto desenvolvia projetos e dava aulas aprimorouse muito em estatística num tempo em que esta era uma ferramenta de análise corriqueira no exterior mas quase desconhecida no Brasil mesmo no Ministério da Fazenda Com o tempo foi abordando um desafio nada fácil naquele tempo determinar o preço do café Muitos abordavam a questão por métodos empíricos e havia poucos aptos a discutir o assunto Entre estes estava seu irmão Francisco Ferreira Ramos também engenheiro e colega da Politécnica que um dia rememorou os companheiros de conversa Tínhamos por companheiros um grupo de apóstolos do roteamento de terra que discutiam calorosamente a questão Deste grupo faziam parte Alexandre Siciliano Olavo Egydio de Souza Aranha Siqueira Campos Veiga Filho e Arnaldo Vieira de Carvalho Foi dali que surgiu a ideia da limitação de novas plantações pelo doutor Augusto Ramos e de consultas aos municípios sugeridas por mim2 Todos os membros do grupo tinham uma biografia interessante O líder era Carlos Botelho filho mais velho do conde do Pinhal Nascido em Piracicaba em 1855 formouse em medicina em Montpelier voltou para o Rio de Janeiro em 1880 casouse com Constança Filgueiras contra a vontade do pai com quem rompeu e mudou para São Paulo no ano seguinte3 Militante republicano tinha ideias próprias a respeito do exercício da medicina Instalouse num grande casarão na rua do Gasômetro ponto de ligação entre o centro e o bairro popular do Brás Morava no andar de cima e no térreo mantinha uma movimentada clínica equipada para grandes cirurgias onde atendia gratuitamente Vindo o novo regime mesmo sem deixar o republicanismo mantevese afastado dos governos Em 1892 na esteira do crescimento da cidade realizou um empreendimento urbano inovador comprou uma chácara com vários alqueires na beira do antigo caminho das tropas para Santos Ali criou um jardim zoológico com animais brasileiros enviados do sertão por seu amigo Cândido Rondon e espécimes estrangeiros obtidos em troca de animais brasileiros remetidos a vários zoológicos europeus E abriu uma empresa dedicada ao lazer de massa com entrada paga e muita propaganda tendo como principal atração o zoológico Cada animal que chegava merecia divulgação em anúncios de jornais os quais ressaltavam também as demais atrações do parque banda de música barcos para remar no lago restaurantes acessíveis Casais de namorados alugavam barcos e podiam ao menos conversar a sós sem controle das famílias já o parque tornouse um dos locais preferidos para as fotos de noivos no dia do casamento O segundo nomeado do grupo Alexandre Siciliano nascera em San Nicola Arcella na Calábria em 1860 com 9 anos veio para Piracicaba onde um tio se estabelecera como comerciante e já tinha trazido seu irmão mais velho4 Em 1881 casouse com Laura Augusta de Melo Coelho uma das treze filhas do fazendeiro Frutuoso Coelho Dotado para a mecânica associouse ao irmão e a Evaristo Conrado Engelberg Juntos projetaram uma máquina de beneficiar café que foi um sucesso de mercado ao ponto de a patente ter sido vendida nos Estados Unidos A essa altura sua fama de fabricante tinha se espalhado por entre a parentela da mulher Uma das irmãs de Laura Maria Melo Coelho era casada com João Paulino de Arruda Botelho sobrinho do conde do Pinhal Dessa forma a fama empresarial de Alexandre Siciliano chegou a investidores de calibre Em 1890 com o crédito dos tempos de Rui Barbosa ele vendeu ações de uma empresa que pretendia criar para vários investidores Juntou 5 mil contos de reis5 e montou a Companhia Mecânica Importadora de São Paulo Warren Dean descreveu a empresa Foi construída em grande escala a maior que São Paulo já vira incluía uma fundição uma seção de máquinas uma serraria uma carpintaria e uma olaria Produzia vagões de estradas de ferro máquinas agrícolas pontes para ferrovias e postes6 Além de produzir a empresa importava equipamentos mantendo um escritório em Londres7 Wilson Suzigan anotou as atividades de comércio exterior Importava carvão coque ferrogusa ferro fundido barras e chapas de aço canos cimento arame comum e farpado ladrilhos e tijolos refratários8 A combinação de capacidade local de produção com os negócios de importação fez a empresa crescer depressa tornandose um dos pontos vitais da industrialização de São Paulo Antonio Francisco Bandeira Júnior que publicou um livro sobre a indústria paulista em 1901 classificou a empresa como um dos mais importantes estabelecimentos da América do Sul por causa dos mais de 600 operários todos de sexo masculino que produziam os mais aperfeiçoados e modernos maquinismos inclusive quaisquer máquinas para a lavoura9 Já Olavo Egydio de Sousa Aranha nascera em 1862 e era casado com Vicentina de Souza Queirós10 uma das filhas do barão de Souza Queirós um dos grandes empresários paulistas na época do Império Ele mesmo era campineiro e os negócios da família incluíam importantes participações acionárias com direito a cargos de direção na Companhia Paulista de Estradas de Ferro Banco do Comércio e Indústria Banco de São Paulo e Companhia Mogiana Manuel Pessoa de Siqueira Campos era banqueiro e um dos acionistas do Banco de Crédito Real11 O quinto da lista Arnaldo Vieira de Carvalho nascera em Campinas no ano de 1867 era um dos médicos mais conhecidos da cidade e professor na escola de medicina Veiga Filho era advogado professor da faculdade de direito e um dos primeiros defensores das ideias socialdemocratas no Brasil12 Além disso também gostava de estatística tendo escrito vários artigos pelos quais tentava estimar o total da riqueza paulista e brasileira naquele tempo não existia sequer a noção de PIB De todos era o único que fazia política partidária sendo deputado estadual do PRP O ambiente no qual o grupo desenvolveu suas ideias foi o da grande recessão do governo Campos Sales Desde que a política econômica começou a fazer efeito vieram reações na forma de mobilização Em 1898 pulularam os clubes da lavoura para canalizar os protestos dos cafeicultores e logo surgiu o Partido da Lavoura para expressar os protestos em voz mais alta As reações dos produtores de café também foram muitas congressos encontros debates e propostas buscando fórmulas para sair da crise foram surgindo umas atrás das outras O grupo manteve uma existência informal nesse ambiente de debate até que em janeiro de 1902 resolveram se transformar na Sociedade Paulista de Agricultura pedindo registro de seus estatutos numa audiência na Secretaria da Agricultura13 Não se tratava de uma formalização inocente Como relembrou Francisco Ramos a sociedade tinha uma ideia para defender o plano para limitar a produção de café e um foco para atuar a consulta aos fazendeiros nos municípios começando pela base social mais ampla Os métodos empregados também eram claros trabalhar no universo da opinião pública incentivando o debate de ideias por meio da imprensa Enquanto Augusto Ramos escreveria para O Estado de S Paulo e para o Jornal do Commercio do Rio de Janeiro Francisco Ramos concentraria as publicações no Correio Paulistano focando na organização de encontros nos municípios e debates iniciais da proposta No dia 8 de maio de 1902 Augusto Ramos estreou como colunista em O Estado de S Paulo Mereceu um tratamento reservado para poucos publicar uma série de artigos sobre um único tema em vários dias consecutivos Já no primeiro artigo revelaria uma convicção muito grande no uso da estatística como ferramenta capaz de proporcionar novo enquadramento a todo o drama vivido pelos cafeicultores Não mais se enxergarão nuvens no horizonte hoje tão sombrio de nosso futuro econômico Sobre a larga estrada comercial que se rasgará entre o produtor e o intermediário brilhará em todo seu esplendor o sol da estabilidade estatística e o cimento impecável da reciprocidade de interesses como um selo sagrado vinculará por um acordo tácito os esforços de ambas as partes no levantamento gradual das cotações14 O drama que o sol da estabilidade estatística transformaria em glória era nada menos do que o equilíbrio entre a oferta e a demanda do café e sua expressão brasileira de disputa de preço entre cafeicultores e importadores A série de artigos tinha um título único que enfatizava o resultado esperado Valorização do café E o artigo inicial trazia um resumo dos passos para tal transformação começando pelo enfoque no mercado mundial e no longo prazo É necessário o exame da situação mundial do café em toda sua complexidade e latitude seja no tocante à produção seja quanto ao consumo ou quanto a preços não somente no passado e no presente como no terreno de fundadas e positivas previsões nos dez anos que hão por vir15 Em seguida vinha a novidade conceitual oferta e procura eram definidas como tendências matemáticas que apenas se equilibravam estatisticamente no longo prazo e no contexto do mercado mundial O Brasil deveria se aproveitar desse conhecimento para planejar o volume de produção e ganhar o máximo possível com a produção de café Eram duas premissas incomuns no debate corrente No entendimento de então oferta e procura eram o resultado de um embate momento a momento cujo resultado seria o preço em Santos em consequência a média estatística não passaria de uma abstração Planejar a produção no longo prazo e pensando no mercado mundial era algo que não fazia sentido com esse conceito pontual de preço Dessas premissas inovadoras resultava uma proposta de solução que começava com um passo simples e de fácil compreensão uma lei que proibisse por algum tempo o plantio de novos cafezais através da suspensão compulsória ou da cobrança de impostos Essa lei segundo Augusto Ramos seria um primeiro sinal para o mercado mundial do predomínio da nova realidade do equilíbrio estatístico e da produção controlada A suspensão das plantações não produziria um efeito puramente moral significaria positivamente um efeito estatístico Poderseia dizer em tal ano a colheita não será maior do que tanto com a mesma segurança com que hoje dizemos que em 1901 entraram em Santos 8 milhões de sacas Eis o remédio que eu indico à lavoura remédio suave natural reparador lógico infalível É indispensável e urgente adotá lo16 Para Augusto Ramos o efeito estatístico positivo seria imediatamente entendido por agentes internacionais importantes que mudariam de atitude É preciso que nos convençamos os importadores diretos de nosso café as grandes casas de Nova York de Londres e do continente europeu têm tanto interesse como nós em que se elevem os preços do artigo Confiados em que teriam curta duração as baixas de 189697 realizaram grandes compras Mas nos anos seguintes a produção aumentou e a necessidade de amparar os preços foi determinando novas aquisições Hoje os estoques são de 11 milhões de sacas Além de não desejarem negociar hoje por 35 francos o café que lhes custou mais que isso os importadores precisam sustentar os preços e por isso compram em Santos17 Portanto estariam prontos para ler positivamente o sinal Não basta que não se plante um cafeeiro durante cinco anos é necessário é indispensável que os possuidores do estoque tenham absoluta certeza de que assim se fará É indispensável que assim se convençam a fim de perderem quaisquer receios sobre o futuro de suas reservas a fim de poderem operar com inteira segurança cobertos de surpresas administrativas Conquistada a confiança deles em nossa deliberação o grande estoque perderá quase imediatamente sua catadura agressiva Era uma ameaça passará a ser uma reserva Perderá seu caráter de volume volverá a ser um valor Ninguém mais terá pressa de alienar e o recolhido no interior dos armazéns transformase em depósito precioso frente à carestia inevitável num futuro matematicamente projetado18 A questão central era inteiramente de confiança em dois sentidos Para os leitores visados a confiança de que o conhecimento estatístico traria uma nova aliança política na qual passariam da posição de explorados para a de exploradores Para os atacadistas a confiança na atitude de longo prazo do Brasil pois o artigo não especificava quem seria o agente produtor dessa confiança Pelo contrário dizia com todas as letras que espécie de conhecimento já não produzia a mínima confiança A universalidade moderna já não comporta Aristóteles E a arte de governar só pode ter possibilidade de êxito na escolha judiciosa por parte de governantes de auxiliares de provada competência nos departamentos que lhes são confiados19 Fundado no contraponto entre uma política feita com conhecimentos ultrapassados colocavase a si mesmo como um técnico da sociedade capaz de formular políticas muito melhores que as do ministro no poder Essa ideia foi recolocada de maneira ainda mais acentuada no terceiro artigo da série quando analisou os métodos de controlar o mercado que presidiam as políticas de Joaquim Murtinho Alguns argumentam que a superprodução acabará por si mesma sem necessidade de nenhuma intervenção restritiva Mas acaba como Não podendo ser pelo aumento repentino do consumo será pela diminuição da produção A superprodução cessaria mas conservando as cotações num nível sempre baixo A carência de outro derivativo para nosso trabalho obrigaria a acompanhar as necessidades do mundo com a cotação indefinidamente baixa Quando mais tarde São Paulo exausto de trabalho esgotadas suas terras modificado talvez seu clima desse balanço a meio século de esforços e lutas veria coberto seu território de pequenos lavradores empobrecidos sem recursos para instruir seus filhos Teríamos sacrificado o privilégio de nosso solo um privilégio que deveria nos dar uma fortuna para na melhor das hipóteses oferecer ao mundo por alguns cêntimos a menos um café que sem o menor sacrifício e com plena indiferença nos pagaria melhor20 Enquanto atacava a política do governo em São Paulo Augusto Ramos encontrou fôlego para contestar também uma alternativa defendida pelo republicano histórico exflorianista e senador fluminense Quintino Bocaiúva uma intervenção no mercado de café na qual o governo compraria toda a produção incentivando o crescimento desta e empregando a posição dominante do Brasil para derrubar os exportadores e depois para aumentar os preços no mercado internacional Como tal posição era mais corrente no Rio de Janeiro foi tratada nos artigos escritos para o Jornal do Commerrcio com forte sarcasmo E hoje levantamse vozes que nos vêm a gritar Devemos produzir mais É preciso esmagar nossos concorrentes Mas então nosso fim é produzir dinheiro com o café ou simplesmente produzir mais café Não queiramos fazer de nossos cafezais de nosso campo de trabalho um truste exclusivamente destinado a quem nos quer fazer mal Seria além de odioso um truste de imbecis um truste capaz somente de perder dinheiro21 Esses dois contrapontos tornam muito claro que Augusto Ramos pensava a produção econômica com o sentido capitalista de criação de um máximo de Riqueza das Nações conforme sua paráfrase de Adam Smith e criticava com veemência o viés fisiocrata a visão da produção econômica como máximo aproveitamento da riqueza produzida pela natureza seja pelo laissez faire termo fisiocrata em farta voga na época seja pelo monopólio mercantilista como preferia o senador Quintino Bocaiúva Os artigos de Augusto Ramos despertaram certo interesse e sua proposta de criação de um novo imposto chegou até a ser debatida em comissões da Assembleia estadual sem grande sucesso fraqueza que tinha a ver com uma situação que parecia de desespero infinito na altura dos debates estava terminando a colheita de uma safra de 11 milhões de sacas de café que obrigaria a um aumento ainda maior dos estoques mundiais Então no dia 24 de agosto de 1902 aconteceu uma grande geada que destruiu cerca de um terço das plantas do estado além de prejudicar seriamente a produção dos cafeeiros no ano seguinte Numa única manhã todos os cálculos sobre uma superprodução foram revirados e o assunto do imposto foi inteiramente deixado de lado Mas os dias de setembro foram passando e um novo incômodo foi se revelando Pela teoria dominante sobre oferta e procura a do ministro Murtinho e de muitos outros a patente redução da oferta deveria se refletir de imediato em aumento nos preços Não foi preciso muito tempo para que os vendedores descobrissem que a teoria não estava sendo comprovada na prática Pelo contrário mesmo com a queda na produção futura os preços continuavam a cair Com isso muita gente coçou a orelha será que os preços do café não seriam determinados pelo equilíbrio a longo prazo do mercado Será que o nível de estoques mundiais tinha relação com os preços no mercado à vista Será que oferta e demanda teriam de ser definidas de outra forma Será que não estava na hora de adotar outra abordagem Assim o que parecia ser uma posição diletante de repente ganhou importância As discussões pelo interior acabavam quase sempre angariando o apoio de fazendeiros e comerciantes para a ideia e estes iam pressionar os vereadores a base democrática do sistema político Os vereadores faziam o pouco que podiam enviavam moções de apoio para a Assembleia E assim o projeto abandonado ressuscitou em boa hora No dia 30 de outubro de 1902 em meio às discussões na Assembleia Legislativa sobre o orçamento do estado o deputado Rubião Júnior líder do PRP apresentou a proposta de implantar o imposto sobre novos cafeeiros plantados em São Paulo como emenda pessoal sem apoio oficial do partido nem respaldo das comissões parlamentares A grande vantagem dessa apresentação que parecia modesta estava no fato de entrar imediatamente em votação sem passar pelos ritos e trâmites obrigatórios das leis ordinárias O deputado Rubião Júnior argumentou que os deputados deveriam ser sensíveis à lógica que impulsionava a ideia O projeto é indicado pela opinião geral tanto dos interessados no país como fora dele No inquérito que se procedeu neste estado por iniciativa da Sociedade dos Agricultores em que todos os municípios foram consultados por intermédio de seus representantes mais autorizados as câmaras municipais e chegouse ao resultado que a quase totalidade dos municípios cafeeiros era por este alvitre Além disso há a opinião manifestada por revistas e jornais sobre este assunto22 O projeto saído do grupo pequeno e multiplicado pelos jornais chegara aos eleitos de governos municipais e agora ganhava amplitude estadual ao ser aprovado A ideia se transformava em prática e se multiplicava CAPÍTULO 52 O plano do café os estados OS PRIMEIROS MESES DE VIGÊNCIA DA NOVA LEI EM 1903 COINCIDIRAM COM A revisão de todos os dados estatísticos por Augusto Ramos que concluiu ter subestimado o volume dos estoques Sendo homem fiel a seus dados não teve pejo em voltar ao debate com uma revisão de suas propostas Antes afirmara convicto que a limitação das plantações seria sinal suficiente para equilibrar o mercado Agora sem abandonar a fé no equilíbrio estatístico apresentava uma situação mundial muito mais negativa do que aquela anterior à lei É impossível conseguirmos nos próximos cinco ou seis anos um equilíbrio entre oferta e procura pelo aumento do consumo1 Ainda assim considerava possível manter o objetivo inicial de organizar o mercado e fazia questão de mostrar o quanto isso se distinguia dos processos mercantilistas que vicejavam na economia e no pensamento brasileiros Não se trata de concentrar todo o produto em uma só mão e imporse o preço que se entender Esse meio tem sido empregado muitas vezes na história dos povos mas de modo irregular e em prazos curtos recebeu o nome de açambarcamento e funciona somente em privilégio de um indivíduo ou grupo A concentração comercial tem outra estrutura e é de molde permanente É sempre o remate de uma competição encarniçada é mais que um tratado de paz é um acordo entre os competidores da véspera os quais reconhecendo o quão ruinosa era a luta dos que vendiam com prejuízo acabam por entenderse para auferir lucros2 Para obter o mesmo efeito de controle do mercado nessas condições seria preciso muito mais ajuda e vinda de fora já que os produtores brasileiros não teriam força Não permitem as condições atuais dos lavradores que eles se abstenham de vender seus produtos e portanto o único meio de resolvermos satisfatoriamente o problema consiste em arranjarmos um capitalista que de acordo conosco vá comprando e retendo toda a produção até que desapareça o estoque estrangeiro e fiquemos nós e o capitalista senhores do mercado Haveria vários modos de associar as partes Este capitalista pode ser um banqueiro um sindicato estrangeiro ou pode ser constituído pelos estados cafeeiros chefiados pelo governo da União E era assim porque a operação deveria ter a finalidade essencial do lucro ainda que ele agora admitisse o governo como parte do negócio entre capitalistas algo que não fazia parte das ideias apresentadas no ano anterior Qualquer que seja a forma adotada é essencial para que a operação seja exequível que os cafés acumulados pelo sindicato ou pelos estados coligados possam ser vendidos dentro de um prazo determinado quando se equilibrem a oferta e a procura3 Para acelerar esse prazo e diminuir os riscos da operação o sindicato ou o capitalista deveria ter uma garantia É indispensável que durante um prazo conveniente conservemos limitada a nossa produção Desse modo o futuro possuidor dos estoques acumulados seja o sindicato sejam os estados ficará garantido de reaver o capital que no mesmo café houver empatado e portanto não relutará hoje em empenharse no negócio A garantia funcionaria contra um risco essencial Se organizada a resistência deixarmos livre a produção é claro que estimulados pelos altos preços do café os produtores ampliarão suas lavouras e de tal modo aumentarão as colheitas e com elas o estoque da resistência de tal modo que não haverá no mundo dinheiro para as compras e a combinação desmoronará causando a ruína geral Sem garantir a moderação nas colheitas a resistência será irrealizável e inútil o esforço para agremiar capitais4 Havendo a garantia da moderação na produção como premissa para a operação Augusto Ramos imaginava que esta poderia funcionar sem modificar os mecanismos de mercado Ao sindicato que se propuser a pagar por nossa produção preços determinados concederemos uma certa quantia por saca durante o prazo do contrato O comércio continuará livre como agora operando como bem entender Ninguém será obrigado a vender ao sindicato o café que possuir ou de cuja colocação estiver encarregado Poderá vender a quem quer que seja sendo certo que se não encontrar comprador o sindicato por este preço o comprará se lhe for oferecido5 O artigo seguinte começava com uma simulação estatística do mercado nos primeiros anos de ação do sindicato Aplicada convenientemente a lei paulista e com a adoção dela por outros estados poderemos contar que a média da produção será de 135 milhões de sacas nos próximos anos Organizada a resistência nessas bases poderíamos contar que teríamos um aumento de estoque nos dois ou três primeiros anos depois dos quais somente estacionada a produção começaria ele a decrescer Serão necessários oito anos até que o reequilíbrio se restabeleça6 O artigo ainda trazia o projeto de um contrato capaz de atuar nessas condições abrangendo partes como o governo federal como representante de um acordo entre os estados produtores de café e um grupo de investidores privados Estabelecido o acordo com as premissas expostas nos artigos anteriores os produtores não teriam nenhuma obrigação de vender mantendose o mercado livre Mas como o esboço de contrato previa a entrada do governo essa presença exigia cuidados jurídicos Para evitar que o sindicato corresse o risco da superprodução interna o governo se obrigava a impedir que as exportações excedessem as 125 milhões de sacas Para que não houvesse o risco de o sindicato manipular preços o governo teria o direito de nomear fiscais e intervir nas operações de venda Os artigos de Augusto Ramos coincidiram com a realização em Minas Gerais de um congresso sobre a produção brasileira Seria mais um dos muitos conclaves realizados por empresários não fosse um fato importante a ação de um governador para reunir as ideias dispersas que circulavam no país como alternativa à política do governo federal Francisco Sales nascera em Lavras no ano de 1863 começou a cursar direito em São Paulo em 1881 e a militar no Clube Republicano da faculdade Formado tornouse um conferencista famoso na região natal o que se revelou mais do que suficiente para o lançar na carreira política após a mudança de regime Faltavam republicanos para tudo de modo que Sales virou deputado estadual com 28 anos secretário no governo mineiro com 32 prefeito de Belo Horizonte com 36 deputado federal com 37 e governador de Minas no ano em que completou 40 anos Comandava o estado a partir da recéminaugurada capital Belo Horizonte construída a partir de um plano urbanístico inovador com ruas largas e avenidas mais largas ainda rede sanitária espaços abertos Uma de suas primeiras atitudes como governador foi a de organizar um Congresso Comercial Industrial e Agrícola ainda em 1903 E fez questão de dar um sinal relevante entregando a presidência a João Pinheiro uma figura peculiar Filho do imigrante italiano Giuseppe Pignataro funileiro e de Carolina Augusta de Morais filha de um professor em Caeté ele nasceu na cidade do Serro em 1860 Perdeu o pai aos 10 anos mudouse para a cidade da mãe foi adotado e educado por padres juntamente com o irmão José que se tornou sacerdote Descobriu cedo que não tinha vocação para a batina e tratou de ganhar a vida dando aulas para sobreviver e juntar dinheiro a fim de estudar direito em São Paulo para onde se mudou em 1883 Pagou os estudos primeiro com o salário de zelador da Escola Normal depois como professor de história da mesma7 Como Francisco Sales João Pinheiro retornou a Minas depois de formado para fazer propaganda republicana Mas trabalhou nesta a seu modo nos intervalos dos empreendimentos que fazia para sobreviver Tanto quanto as ideias republicanas esses empreendimentos serviam para que João Pinheiro formulasse propostas políticas A vida empresarial fornecialhe lições que fazia questão de repetir a amigos como Pandiá Calógeras Ah meu caro amigo nunca plantastes batatas Caí nessa asneira uma vez cultivei uma quarta de chão obtive uma colheita estupenda remetia nuns balaios e fui pessoalmente ao Rio de Janeiro vender meus formosos tubérculos salvo seja É ainda com ódio que me lembro da peregrinação humilhante de português em português batateiros de profissão Como tinham o cérebro também estufado de batatas me disseram desaforos e não me quiseram comprar a linda mercadoria Ofereceram preço vil e afinal me obrigaram a entregar a colheita quase dada8 Essas lembranças não tornaram o descapitalizado batateiro um admirador das cadeias de endividamento mercantilistas a forma de capital comercial que dominava a economia brasileira a partir dos atacadistas do Rio de Janeiro Mas também não chegaram ao ponto de apagar a chama empresarial Quando veio a República ia completar 29 anos e estava de casamento marcado em São Paulo com Helena de Barros sua exaluna Em 21 de janeiro de 1890 quatro dias antes do casamento foi nomeado vicegovernador de Minas vinte dias depois da nomeação e duas semanas após o casamento em 11 de fevereiro tornouse governador do estado pois o titular Cesário Alvim renunciou para ser ministro de Deodoro Ficou no cargo até junho ao ser eleito para a Constituinte Teve o primeiro filho em dezembro quando participava da comissão de 21 deputados que permitiu a rápida elaboração da Carta Com o golpe de Deodoro e a tomada do poder por Floriano afastouse da política Enquanto os filhos nasciam com regularidade João Pinheiro tornouse industrial Aproveitando as possibilidades de crédito da política de Rui Barbosa abriu uma empresa de cerâmica em Caeté que logo ganhou nome no mercado de materiais sanitários enquanto o proprietário arranjava tempo para ser vereador na cidade As manilhas para esgoto que fabricava passaram a ser vendidas em várias partes do país e a lhe dar ideias sobre o sentido da atividade política vislumbrando um outro modo de encarar a atividade Há a política estéril e a política fecunda Substituamos a política das competições sem objetivo pela emulação fecunda do trabalho Cumpre que o criador e o industrial mais inteligentes possam ver seus méritos reconhecidos e proclamados9 Assim João Pinheiro era uma raridade num país onde o pensamento conservador condenava a atividade empresarial e industrial como fruto da ambição ele via nela com base em sua experiência como empresário uma fonte capaz de conferir sentido ético à atividade política A formulação peculiar encontrou eco João Pinheiro tornouse um político influente no estado mesmo sendo apenas um vereador de cidade do interior Dessa condição o retirou Francisco Sales ao convidálo para presidir o Congresso O governador tinha um projeto assim descrito por Claudia Viscardi Francisco Sales queria contemplar a tese da limitação das plantações em prol da qual havia organizado o referido evento10 Os artigos de Augusto Ramos foram publicados na semana anterior ao Congresso Comercial Industrial e Agrícola que teve lugar na semana de 13 a 19 de maio de 1903 Mas nem o apoio do governador nem os artigos foram suficientes para impedir que o conclave sagrasse outras teses nascidas no Rio de Janeiro mas muito capazes de conquistar a simpatia de um industrial mineiro A capital federal continuava sendo o maior centro industrial do país E ali a reação à política de Campos Sales foi liderada pelos empresários industriais Um dos maiores Jorge Street já em 1900 tornouse diretor da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional No início era uma entidade com muita história e pouca capacidade de ação Fundada em 1827 para divulgar ideias e técnicas produtivas ganhou algum brilho no segundo reinado quando D Pedro II reforçou o aspecto literário da instituição dando palpites em sua revista Com o advento da República e o fim do patronato da entidade sobrara pouco mais que o nome Street fez as coisas mudarem depressa Em 1902 conseguiu a adesão de Inocêncio Serzedelo Correia militar e exministro da Fazenda Os dois haviam articulado uma fusão da entidade com o Centro Industrial de Fiação e Tecelagem de Algodão e estavam organizando o Centro Industrial do Rio de Janeiro no momento em que se deu o Congresso mineiro Levaram para este ideias que exporiam logo em seguida com clareza num manifesto escrito em 1904 e cujo argumento central era a formação de um mercado interno Se cada indústria sob o ponto de vista técnico tem seus interesses particulares há em todas um interesse comum que cada vez mais se avoluma e que consiste em garantir o consumo interior das especialidades que são e devem ser produzidas no país Nessa pugna colossal estão empenhadas todas as nações e nela carecemos também nós industriais brasileiros empenharnos11 O manifesto também deixava claro o método para garantir essa finalidade Para reagir é necessário que o Brasil faça como fizeram os Estados Unidos a Rússia e recentemente a França o abandono cada vez mais completo do livre câmbio pelo entusiasmo cada vez mais apaixonado em favor da proteção do trabalho nacional12 Além de saber o que desejavam os empresários sabiam quais eram os defensores da política que estavam combatendo O comércio sim este se aproxima mais do socialismo de estado quando pede ao governo câmbio alto para baratear os produtos estrangeiros importados13 A pauta marcava claramente uma disputa No setor privado entre os interesses dos comerciantes importadores que visavam produtos estrangeiros baratos e os dos industriais interessados em produzir esses bens no país Do ponto de vista histórico era uma disputa entre o capital industrial emergente e o capital comercial declinante em suma entre capitalismo e mercantilismo João Pinheiro pensava como o grupo do Rio de Janeiro Não se fez de rogado e derrotou a principal tese do governador que o convidara Porém como bom mineiro sem criar a menor animosidade John Wirth assim resumiu o percurso da tese vencedora A discussão estendeuse a muitos assuntos mas o propósito inicial deste esmerado encontro era chegar a um consenso sobre o café O Comitê Preparatório selecionou proposições que diversos comitês de estudos elaboraram antes da abertura das discussões O grupo de Pinheiro trabalhava pela disciplina do mercado por impostos e fretes diferenciais O Comitê de Café aceitou essa proposição mas sugeriu também que a valorização uma política de comercialização baseada em apoio a preços mínimos fosse utilizada juntamente com outros estados produtores e a união Esta teoria se coadunava com o pensamento paulista mas não foi adotada pelos delegados14 A capacidade de convencimento tinha a ver com uma atitude revelada no discurso de encerramento João Pinheiro fez nele outra profissão de fé relativa às relações entre governantes e governados A visão da grandeza e riqueza da terra de Minas Gerais se faz ao mesmo tempo em que a das altas qualidades morais de seus filhos aconselhando e sendo aconselhados governando e sendo governados ensinando e ao mesmo tempo aprendendo governo que se quer dirigir pela opinião opinião que deseja ser útil ao governo tal é o espetáculo novo que os mais natos representantes de um povo inteiro oferecem ao discutir os mais graves interesses como se fora em íntima discussão de família15 Lembrava Prudente de Morais mas também servia como uma luva para a situação A frase foi proferida por um político acostumado a governar segundo esse princípio e ouvida por um governador de estado que vira sua proposta mais importante ser derrotada Francisco Sales não tomou a decisão pública como ofensa pessoal Continuou tratando João Pinheiro com a maior atenção Os paulistas saíram felizes sabiam que havia um governador simpático a suas teses e também aprenderam a encontrar aliados no Rio de Janeiro E trataram de acelerar a marcha de seu projeto Poucos dias depois do congresso mineiro Alexandre Siciliano apresentou numa reunião da Sociedade Paulista de Agricultura um esboço de contrato entre o governo federal e um eventual sindicato de investidores Dentre as novidades as maiores eram o aumento da obrigatoriedade de compra de café para 16 milhões de sacas anuais e sobretudo uma cláusula pela qual o governo remuneraria o sindicato com uma comissão por saca vendida Dessa forma atingido um preço de mercado que fosse a soma do preço mínimo com a comissão o café teria de ser vendido por esse preço Essa cláusula era fundamental para evitar a retenção excessiva de café e a manipulação dos mercados externos pelo sindicato O projeto foi aprovado e o autor saiu dando entrevistas para divulgálo ao longo das quais o projeto de Augusto Ramos acabou também ficando conhecido como Plano Siciliano Em 24 de agosto de 1903 o industrial publicou um artigo em O Estado de S Paulo realçando a vantagem de sua proposta O sindicato terá maiores vantagens comprando o mínimo de café possível pois quanto menor o capital imobilizado maior será seu lucro por consistir este unicamente no prêmio que lhe será pago por cada saca exportada16 O projeto o parecer da Sociedade o artigo do jornal e as entrevistas foram reunidos num livro de divulgação Depois do livro vieram os debates grupos de cafeicultores de todo o estado eram convidados a fazer reuniões locais nas quais ratificavam a ideia Assim o plano que começara em um artigo passara por debates municipais tornarase lei estadual estivera em debate num congresso em outro estado ganhara a simpatia de um governador ia se ampliando até conquistar outro apoio fundamental CAPÍTULO 53 O plano do café o mercado internacional EM 1904 O PARTIDO REPUBLICANO PAULISTA INDICOU JORGE TIBIRIÇÁ PIRATININGA como candidato a governador Fundador do partido mantiverase fiel à direção o tempo todo de modo que não apresentava nenhuma rusga aos olhos dos conservadores Mas não era um político tradicional Para começar tinha formação acadêmica era doutor em agronomia com título obtido em Genebra era também empresário rural e casado com a herdeira de um quinhão importante de uma ferrovia Além disso era monarquista Tudo isso compôs um governador peculiar cuja rotina foi assim descrita por Rodrigo Soares Júnior Jorge Tibiriçá avesso a cerimoniais continua a vida da família no palácio De dia executa sua tarefa metodicamente atento ao encaminhamento dos papéis e às conferências que precisa entreter com deputados senadores altos funcionários e políticos Terminado o horário do expediente consagrase exclusivamente à família preocupado com a educação dos filhos A administração do palácio pertence exclusivamente a dona Ana Tibiriçá A velha dama paulista que não perdeu os sentimentos monárquicos e reverencia as velhas praxes imperiais exige ordem Na hora que terminava o despacho do dia o governador tratava de fazer um passeio a pé pela cidade em companhia do ajudante de ordens Usualmente de fraque bengala e chapéu perambulava lentamente respondendo ao cumprimento dos transeuntes De volta ao palácio esperava o jantar e depois retiravase para seus aposentos para se entreter com dona Ana Entre os tópicos que alimentavam a conversa estavam os comentários que ela sempre interessada pelos assuntos políticos fazia dos jornais do dia Aconselhava o marido a responder trechos que considerava injustos pelas colunas dos jornais amigos Jorge lia e quase sempre respondia Isso não merece resposta Terminada a sessão de palestra o governador se preparava para seu infalível passeio noturno a ida a uma confeitaria onde tomava alguns copos de chope Dava uma boa gorjeta para o garçom não deixar pires acumulados na mesa Às nove horas no mais tardar retornava ao palácio De manhã estava de volta ao gabinete em cuja entrada viase um desenho intitulado A eloquência oficial que mostrava um personagem lendo longas tiras de papel para uma audiência bocejante e enfadada1 Se a candidatura dele resultou da larga capacidade de suportar a eloquência oficial o período de governo foi marcado por aquilo que o interessava e que pode ser medido pela escolha dos principais auxiliares Para a secretaria da Agricultura que cuidava dos assuntos relacionados ao café escolheu Carlos Botelho o decidido apoiador de todo o plano de valorização do café para a secretaria da Fazenda convidou Albuquerque Lins concunhado de Olavo Egydio outro membro do grupo reunido em torno da ideia para a pasta da Justiça chamou Washington Luís casado com uma parente de Prudente de Morais Cada um deles encarregouse a seu modo de preparar o estado para uma mudança Carlos Botelho reestruturou a política de imigração cuidando de oferecer pequenas propriedades a imigrantes e assim atraiu os primeiros japoneses Washington Luís trouxe instrutores franceses para treinar a polícia ao lidar com cidadãos tornou estáveis os cargos de delegado de polícia e dos juízes estaduais Albuquerque Lins foi atrás de contatos financeiros no exterior Mas o que de fato interessava mal passou pelos jornais Ainda em 1904 Augusto Ramos foi dispensado de dar aulas na Escola Politécnica Recebeu do governador a missão de estudar melhor suas propostas fazendo uma viagem às zonas produtoras concorrentes do Brasil Assim que começou a preparar a viagem Augusto Ramos percebeu que os seus artigos de jornal tiveram o condão de arregimentar apoios importantes Ao contrário da maioria dos estudiosos brasileiros da época que protestavam contra a exploração dos produtores nacionais pelos compradores estrangeiros ele dizia que uma aliança com estes deveria ser a base da política de valorização Bastou informar discretamente que estaria viajando a fim de desenvolver tal aliança para que aparecessem compradores estrangeiros dispostos a ajudar A maior empresa alemã do mercado era a Theodor Wille Os sócios brasileiros escreveram cartas para a matriz e de lá saíram outras recomendando Augusto Ramos a produtores e correspondentes de todo o Caribe Uma das grandes compradoras norte americanas era a Marcus Mason de Nova York os gerentes brasileiros escreveram para lá e a resposta foi a melhor possível assim expressa pelo próprio Augusto Ramos O próprio presidente E O Shernikov abriume como só se faz a um amigo as portas de entrada de fazendas e engenhos em todos os países visitados2 Com esse apoio entre o final de 1904 e o primeiro semestre de 1905 Augusto Ramos visitou os principais compradores de café nos Estados Unidos junto aos quais colheu dados estatísticos preciosos Depois atravessou o México de trem e a cavalo percorreu a Guatemala El Salvador Nicarágua Costa Rica Venezuela e Porto Rico Foi às fazendas anotou meticulosamente todos os dados sobre custos de produção métodos de preparo preços de venda nas várias etapas do processo situação das políticas econômicas qualidade da mão de obra a exceção foi a Colômbia que não percorreu por causa dos movimentos revolucionários que perturbavam o país Na volta preparou um relatório secreto para o governador Publicado apenas em 1907 com o título A indústria cafeeira na América espanhola fora redigido para responder uma pergunta caso o Brasil fizesse uma política de valorização do café haveria o risco de os demais produtores elevarem a produção de modo a se aproveitar da situação ganhando às custas do esforço brasileiro e tornando inútil o projeto A resposta era detalhada pela análise caso a caso das condições locais de produção nos países concorrentes Depois disso vinham as conclusões gerais que começavam com a comparação entre uma estrutura de trabalho arcaica e métodos tecnológicos modernos A indústria cafeeira da América espanhola seguiu o mesmo caminho percorrido pela indústria cafeeira do Rio de Janeiro Há de chegar ao mesmo fim A crise a teria de pronto aniquilado se não fosse a admirável evolução industrial do beneficiamento pela via úmida despolpando a massa toda de café e obtendo um gênero sem rival A produção cafeeira dos nossos concorrentes está pois votada ao estacionamento na melhor das hipóteses3 A capacidade trazida pelo capital não compensava os problemas com o trabalho e a política O que ainda mantém a indústria cafeeira hispano americana é o salário baixo permitindo um custo de produção igualmente baixo embora mais elevado em geral que o do café brasileiro Elevese o salário e desaparecerão as fazendas Quando esta limitação para a produção não bastasse haveria para completar a obra um fator de poderosa influência a situação social e política de quase todos aqueles povos Onde campeia o abuso o despotismo interesseiro e o desprezo pela propriedade as humilhações e vexames a que todos são voltados a sujeitarse a outros é baixa a capacidade de atração de capitais4 Somados os fatores a vantagem final da produção brasileira era clara O Brasil está colocado na vanguarda de todos os países produtores tanto no que concerne à quantidade como em relação à organização da indústria e seu aparelhamento A indústria cafeeira em nosso país especialmente em São Paulo é uma verdadeira maravilha sem rival no mundo5 Além do relatório secreto Augusto Ramos produziu um livro publicado ainda em 1905 sob o título de Valorização do café Estudo sobre o projeto de Alexandre Siciliano Apesar da homenagem pública ao companheiro de ideias a obra trazia uma portentosa atualização do pensamento do próprio autor viabilizada pela qualidade dos dados estatísticos que recolhera na viagem O norte conceitual de todo o projeto continuava sendo o mesmo da primeira apresentação em O Estado de S Paulo dois anos antes a consideração de que o equilíbrio entre oferta e procura de café só podia ser determinado pelo conhecimento de um equilíbrio estatístico em prazos longos Mas aquilo que era um argumento acima de tudo conceitual se transformara depois da viagem numa sequência de argumentos ancorados em dados reais O primeiro deles era a estrutura de longo prazo do comportamento do mercado Tratandose de colheitas anuais como as de trigo milho arroz fumo e algodão o remédio seria moderar as plantações durante um ano para que se estabelecesse um equilíbrio entre estoque e consumo O café no entanto é uma planta que requer de cinco a seis anos para se formar determinando o emprego de considerável capital que deve ser empregado não somente no cuidado das plantas mas também nas instalações necessárias tais como edifícios maquinismos mecanismos de transporte etc Não é possível portanto solver uma crise originada por excesso de produção de café de um ano para outro nem também é possível aumentar sensivelmente o suprimento de café em tempo menor que sete ou oito anos6 Também continuava de pé o pressuposto de que esse equilíbrio não era apenas uma questão regional mas mundial Os dados relevantes para a análise desse equilíbrio vinham no livro sob a forma de tabelas estatísticas elaboradas a partir dos dados obtidos durante a viagem Para expurgar as variações sazonais dos cálculos de produção e consumo Augusto Ramos empregou médias móveis de cinco anos uma sofisticação muito incomum na época A primeira dessas tabelas apresentava a produção mundial além da participação do Brasil nesse cenário no período de 1870 a 1905 Os números mostravam dois processos claros Nesse intervalo a produção havia mais que dobrado passando de 73 para 164 milhões de sacas Mas esse crescimento era desproporcionalmente distribuído entre os países A produção de todos os demais países mantinhase estacionária em torno de 4 milhões de sacas ao passo que a produção brasileira saltara de 55 para 124 milhões de sacas Como resultado dos dois processos combinados a participação brasileira aumentara de 45 para 76 de todo o mercado mundial Mais ainda o grosso desse salto acontecera na década anterior entre 1895 e 1905 a participação brasileira passara de 59 para 76 do mercado mundial A segunda tabela montada por Augusto Ramos mostrava que o aumento da produção vinha acompanhado de um crescimento do consumo em todo o mundo no período 18801905 Mais ainda permitia entrever uma constância no incremento do consumo num período que conhecera duas tendências opostas de preços forte alta entre 1885 e 1896 e fortes baixas daí até o momento do estudo Os números sustentavam uma afirmação Por essa tabela se vê que no meio de todas as vicissitudes atravessadas e não obstante os altos preços mantidos durante longo período o consumo de café esteve sujeito a um constante aumento garantindo um certo acréscimo na produção7 Se a primeira tabela mostrava a construção de uma posição dominante do Brasil e a segunda uma tendência positiva para o mercado a terceira relacionava a produção e o consumo com estoques e preços conduzindo diretamente ao dado fundamental havia necessidade imperiosa de um estoque para manter o equilíbrio entre oferta e procura A razão para a estocagem vinha dos próprios ciclos da produção as safras do café são irregulares variando de acordo com o clima e a produção anterior Esse fato era demonstrado em números A tabela mostrava que os estoques mundiais se mantiveram elevados mesmo no período de preços altos anteriores a 1897 E cresceram violentamente quando começara a baixa passando de 4 milhões de sacas em 1897 para 123 milhões em 1904 caindo pela primeira vez no ano seguinte para 113 milhões Como proporção do consumo mundial nos mesmos períodos os estoques subiram de 32 em 1897 para 78 em 1904 e desceram para 71 em 1905 Depois de considerar produção consumo e estoques Augusto Ramos entrava na análise dos preços Essa análise considerava a existência de um nível obrigatório de estoque por ele estimado em 50 do consumo mundial Tal obrigatoriedade fundava uma suposição importante quando os estoques atingiam esse patamar seus detentores o mantinham mesmo em caso de forte alta de preços como ocorrera no período 18851887 pois seria mais lucrativo reter que vender Inversamente o café comprado na baixa era estocado para garantir a continuidade do preço no varejo A combinação das duas tendências resultava na estabilidade desses preços ao longo do ciclo de alta e baixa o preço no varejo permanecera quase constante tanto na Europa como nos Estados Unidos Assim o estoque servia para equilibrar oferta e procura no longo prazo equilíbrio esse expresso pela estabilidade do preço no varejo Toda essa análise era quase inteiramente estranha aos formuladores das políticas brasileiras Eles empregavam conceitos de ajuste entre produção e consumo que perto do refinamento do método de Augusto Ramos eram extremamente toscos A teoria de Joaquim Murtinho e Leopoldo Bulhões supunha ajustes automáticos entre oferta e procura pelo preço à vista praticado nos portos brasileiros ignorando as tendências de longo prazo e o papel dos estoques para regular a combinação de oferta instável com demanda ascendente Todo o projeto de Augusto Ramos com base em novos conceitos estatísticos os mesmos empregados pelos investidores que detinham o estoque trazia também novas soluções igualmente baseadas em projeções estatísticas dessa vez relacionando o futuro do mercado com as tendências históricas mostradas pela análise do passado E começava esse passo com uma avaliação da produção futura brasileira Com referência à produção brasileira foram taxadas proibitivamente as novas plantações em São Paulo há mais de dois anos tendo de continuar em vigor a mesma lei até 1907 Consequentemente a produção brasileira não pode aumentar nos próximos nove anos8 O texto escrito para publicação imediata mantinha em reserva a conclusão do relatório da viagem pela qual também os concorrentes não teriam capacidade de aumento rápido da produção Dessa forma o raciocínio previa uma produção mundial estável Por isso todas as projeções para o futuro se faziam com uma combinação de produção média estável de 16 milhões de sacas anuais e aumento de 25 anuais no consumo taxa menor que a tendência histórica nas duas décadas anteriores Tais pressupostos embasavam as projeções futuras o estoque mundial de café aumentaria em 1906 caindo lentamente nos anos seguintes Seguindo a proporção os estoques chegariam a 50 do consumo em 1910 quando então os preços deveriam sofrer um aumento acentuado Ao fim da safra de 191011 30 de junho de 1911 o consumo total terá atingido 18 milhões de sacas e os estoques estariam reduzidos a 6 milhões isto é um terço do consumo Os preços se elevariam a mais de 100 francos9 Mas essa alta não era a que interessava ao estudo Pelo contrário o objetivo do projeto era a estabilidade Por isso o preço que se queria era outro Também foi calculado estatisticamente com base no custo médio do café ao longo dos vinte anos anteriores para um comprador francês o que mostra que ele também recebera estatísticas de outros mercados Tomemos a média e vejamos o justo preço do artigo 81 francos por 50 quilos O Brasil no entanto se contentaria com menos 70 a 75 francos10 Essa seria a renda dos produtores brasileiros caso o café fosse comprado por capitalistas estrangeiros e transformado em estoque regulador a ser colocado no mercado nas condições estabelecidas pelo projeto de Alexandre Siciliano liberação automática das vendas quando o preço fosse atingido Assim ficava acabado um plano concebido e forjado na sociedade brasileira e que ganhara consistência à medida que passava por críticas que resultavam em aperfeiçoamentos e no apoio de produtores dispersos autoridades municipais congressos nacionais Daí se institucionalizara um pouco através do Legislativo paulista Agora recebia forma acabada graças ao apoio de um governador Mas o que de fato interessava não era o conhecimento do passado mas a viabilidade para o futuro No trabalho essa viabilidade aparecia apenas como projeções estatísticas supondo o mercado controlado pelos detentores do estoque A primeira e mais atraente suposição era a da compra do café por um preço 50 maior do que o praticado no mercado à vista em Santos naquele momento que era de 50 francos e passaria a 75 Mas havia duas condições hipotéticas essenciais para a operação ser bem sucedida um comprador com dinheiro para pagar e um governo capaz de garantir o controle da oferta pelo prazo mínimo de seis anos Naquele momento havia apenas uma regulamentação punitiva de aumento da produção em um estado Todo o mais era pura esperança A realização do negócio representado pelo projeto oferecerá incalculáveis vantagens para ambas as partes interessadas11 No momento em que o relatório foi redigido a maior dificuldade era a de encontrar alguma relação entre o emprego da palavra governo na proposta e a realidade brasileira No papel era fácil aplicála com o sentido de um sócio essencial do negócio que daria a segurança necessária para a operação ao entrar com as garantias de contenção da produção durante um período mínimo de seis anos Lendo o relatório o mais plausível ator nesse papel o governador Jorge Tibiriçá sabia muito bem que nenhum investidor estrangeiro de porte chegaria ao ponto de confiar seriamente nessa definição Mas então os fados da política operaram milagres CAPÍTULO 54 O plano do café oportunidade quase milagrosa AINDA ENQUANTO AUGUSTO RAMOS SE PREPARAVA PARA PARTIR EM VIAGEM NO final de 1904 o senador José Gomes Pinheiro Machado solicitou uma audiência ao presidente Rodrigues Alves Filho de um sorocabano que fugira para o Rio Grande do Sul na revolução de 1842 ele ganhara muito dinheiro comprando mulas na campanha gaúcha e revendendoas na feira de Sorocaba Assim mantinha fortes ligações com os negócios paulistas Já os laços políticos eram mais tênues Depois de formado voltou para casa e foi um fiel militante do Partido Republicano Riograndense Seguia todas as orientações do ditador Júlio de Castilhos incluindo a de se tornar senador Depois da morte de Castilhos passou a seguir as ordens do ditador herdeiro Borges de Medeiros mas agora com luzes próprias Como o novo ditador era um político local e o senador tinha bastante experiência na política da capital Borges de Medeiros delegoulhe ampla autonomia no cenário nacional Pinheiro Machado soube aproveitar Por seu mérito havia se tornado vice presidente do Senado cargo que implicava outras fidelidades Jamais afrontou o presidente da República como faziam outros políticos positivistas Desenvolveu com isso um estilo muito próprio Morava numa mansão no morro da Graça1 Saía de manhã e durante o dia andava pela cidade com trajes peculiares casaca durante a semana ou bombachas nos finais de semana invariavelmente acompanhadas de botas de montar de salto alto chapéudechile gravata bem laçada presa por uma pérola colarinho engomado e lustroso cabelos longos soltos na nuca a bengala com uma figura de unicórnio engastada em marfim Enquanto perambulava ia convidando quem achava interessante no caminho para jantar em sua casa Quando chegava lá no começo da noite a sala estava cheia Mandava botar a mesa serviase em primeiro lugar Às vezes não havia comida para todos e então se providenciavam porções extras de farofa Depois do jantar ia para a sala de visitas e conversava até a chegada do fiel Jouvin seu parceiro diário de bilhar Enquanto os dois taqueavam reinava o silêncio só interrompido por aplausos ao anfitrião invariável vencedor das partidas Ali gestara uma ideia adequada a seus modos finórios que foi testar na audiência presidencial O registro da conversa de raposas foi detalhado por Rodrigues Alves em seu diário íntimo Apareceume em uma manhã o general Pinheiro Machado que deume conhecimento de suas intenções Achava bom o Campos Sales já tinha sido presidente precisava de uma reparação pelo modo como saiu era paulista mas indicado por um amigo de outro estado por certo a indicação não me molestaria2 Em seguida vinha o essencial o não dito Não acreditei na sinceridade do Pinheiro Machado e a minha primeira impressão foi que ele queria inutilizar São Paulo ou os candidatos paulistas seja para favorecer o Rui Barbosa de quem se mostrava íntimo ou ao menos para dividirnos no estado porque ele conhecia a sua política e sabia muito bem das tendências contrárias a Campos Sales vindas do seu seio3 Mesmo vislumbrando a manobra o presidente da República não teve como evitála Pinheiro Machado saiu da conversa com o presidente para as entrevistas com jornalistas e logo havia uma candidatura na praça Melhor ainda o candidato lançado não hesitou em vestir a carapuça Ao ler o seu nome nos jornais lembrado por alguém desvinculado do presidente Campos Sales mostrouse nas nuvens em carta a um amigo Só num caso serme ia permitido aceitar uma segunda eleição o de que minha indicação viesse a ser o resultado inequívoco de um movimento espontâneo e generalizado da opinião do país fora da esfera de influência oficial ou dos intuitos das facções A não ser isto nada Ora uma intervenção embora velada do presidente seria bastante para fazer suspeitar da espontaneidade deste movimento Ao Rodrigues Alves só cabe uma atitude se porventura for lançar minha candidatura a mais completa e escrupulosa abstenção4 Campos Sales ignorava em nome da esperança no movimento espontâneo a regra que ele mesmo lançara a sucessão era assunto de exclusiva competência do dono da cadeira presidencial após consultas aos donos de algumas cadeiras de governador Deixandose embalar pelo sonho da volta colaborou para diminuir muito a margem de manobra do depositário unipessoal na sucessão O expresidente era vaidoso mas não cego Na total ausência do movimento generalizado de opinião a seu favor em 5 de março de 1905 escreveu a Pinheiro Machado A questão das candidaturas presidenciais segundo penso já está bastante clara para que possamos tomar resoluções definitivas É fato agora conhecido que Jorge Tibiriçá em decidida solidariedade com o grupo oficial que o rodeia manifestou por carta a Rodrigues Alves suas simpatias pela candidatura Bernardino de Campos Agora sabese que Rodrigues Alves é hostil à minha candidatura está claro que não indago os motivos e que se nesse sentido não age a descoberto vai entretanto autorizando calculadas indiscrições Diante dessa fase imprevista ao menos para mim temo que meu nome possa servir para agitações Não procurei afastar meu nome desde o primeiro momento porque como os amigos me indicaram cheguei a crer talvez por demais confiadamente que ia no movimento iniciado por V Exa uma manifestação real e espontânea da opinião nacional Confesso que não deixava de encherme de grato desvanecimento por ver aí a consagração de minha conduta no governo Uma vez sob o estímulo de interesses de outra ordem se abre o litígio e aprazme darme por vencido sem combate Ponhome fora da liça5 O atilado Pinheiro Machado alegando estar perdido nalguma coxilha comprando animais levou mais de um mês para responder e retrucou pedindo que seu candidato não desistisse oficialmente pelo menos até quando voltasse da viagem Ainda no interior conseguiu organizar manifestações de apoio ao candidato em vários estados Uma delas essencial foi a dos acadêmicos de direito em São Paulo As palmas e vivas dos estudantes tiveram o efeito desejado Campos Sales não tornou pública a renúncia e continuou no papel de candidato não oficial já sabendo que jogava contra o presidente magoado pela hostilidade dele à candidatura Pinheiro Machado foi às nuvens No dia 6 de maio foi entrevistado em Santos a bordo do navio que o levava de Porto Alegre ao Rio de Janeiro Toda a entrevista foi uma defesa da candidatura de Campos Sales sem deixar de criticar o presidente Sou absolutamente contrário à escolha do presidente da República feita pelo seu antecessor Este deve manter a mais completa e estrita neutralidade e deixar que o país se manifeste livremente6 Todos os atores importantes no cenário Rodrigues Alves Jorge Tibiriçá Campos Sales e Pinheiro Machado sabiam perfeitamente que a candidatura Campos Sales era inviável Mas não puderam evitar o efeito temido pelo presidente Rodrigues Alves desde o dia em que conversara com Pinheiro Machado havia de fato uma divisão em São Paulo Mas também eram matreiros de modo que Jorge Tibiriçá resolveu dar o troco para Pinheiro Machado na mesma moeda indicou ele mesmo outro paulista para a presidência Bernardino de Campos E este estreou como candidato também pela imprensa No dia 26 de junho de 1905 uma entrevista sua virou manchete de O País jornal carioca que apoiava o governo Apresentou seu programa com as seguintes palavras A situação do Estado é boa urge atender o povo É evidente que o ideal republicano não é chegarmos à situação de termos o Estado próspero e uma população miserável é obtermos uma situação onde a prosperidade do Estado seja o expoente da prosperidade da população O que é preciso para isso Ora que na indústria pastoral na indústria fabril e nas extrativas que o resultado do trabalho reverta para elas permitindo uma vida melhor e a acumulação de reservas7 Com relação ao câmbio Bernardino propunha uma medida imitativa Poderíamos admitir talvez um mecanismo semelhante à Caixa de Conversão argentina8 Essa caixa comprava moeda estrangeira a preço fixo emitindo títulos de papel para a circulação interna algo que soava como música para os defensores da valorização do café Para completar Bernardino propunha que a ação do Estado na esfera federal se deslocasse para as áreas da educação e da infraestrutura inclusive sugerindo formas de reforma agrária para alcançar as novas metas de desenvolvimento nacional Como notou Américo Lacombe Dizia simplesmente que no Brasil tudo estava errado estava tudo torto necessitando de completa e urgente reorganização Uma refusão tão profunda nas bases econômicas do país uma reforma tributária e administrativa tão ampla que sem o dizer indicava uma próxima reforma constitucional O exame foi feito de uma maneira tão áspera que assustou ao mundo político9 A existência de duas candidaturas paulistas era um sinal claro não haveria presidente da República saído de um estado dividido Pinheiro Machado leu o sinal e tomou o trem para Minas Gerais onde conversou com o vicepresidente Afonso Pena pensando em apoiálo como candidato Ainda segundo Américo Lacombe Pena objetou ao general Pinheiro que o modo por que compreendia os deveres do cargo além de antigas relações pessoais com o presidente da República não permitiam que ele se tornasse um centro de oposição10 Apesar do recado claro da lealdade ao presidente Pinheiro Machado começou a trabalhar quase abertamente pela candidatura de Afonso Pena como se ela fosse de oposição Em 27 de julho de 1905 Pinheiro Machado anunciou em público a candidatura Mas Afonso Pena na carta em que comunicou o fato ao governador mineiro Francisco Sales avisou Pinheiro Machado quer evitar a conflagração que virá fatalmente se o Dr Bernardino de Campos for eleito presidente11 Pensando como se a candidatura de Bernardino de Campos fosse séria Pinheiro Machado tratou de preparar as maiores adesões que conseguisse entre elas a indicação de Nilo Peçanha governador do Rio de Janeiro e conhecido florianista para a vicepresidência Mas era também vaidoso de seu papel como construtor de uma presidência de modo que não percebeu certos detalhes fundamentais nem mesmo quando Afonso Pena falava em lealdade ao presidente frase cujos fundamentos eram desconhecidos pelo senador O presidente Rodrigues Alves deixou Pinheiro Machado aparecer à vontade com as apresentações públicas de candidaturas e os palpites sobre o que deveria fazer um presidente Mas fez o que devia conhecendo as pretensões do senador Já em fevereiro de 1905 ainda quando o arauto visitava as coxilhas Campos Sales nem havia escrito a carta de renúncia e Bernardino de Campos não era candidato mandou um emissário de confiança a Barbacena para uma conversa reservada com Bias Fortes um dos líderes do Partido Republicano Mineiro Após a reunião este escreveu a Afonso Pena O doutor Lamounier aqui esteve ontem e afirmoume que o Dr Rodrigues Alves não cansa de falar na sua candidatura Entende o Dr Rodrigues Alves que o Lauro Muller era um bom candidato mas que é moço ainda Diz o Lamounier estar o presidente aflito que se aclare a situação a favor de sua candidatura por ficarem afastadas as de Campos Sales e Bernardino com as quais se conformaria só por imposição da maioria que julga difícil ou senão impossível12 Duas semanas depois em 15 de março o próprio Rodrigues Alves escrevia a Afonso Pena Tinha conseguido que meu estado não se adiantasse de modo que eu pudesse na ocasião própria conhecendo as correntes animar a que fosse mais indicada A atitude do Pinheiro Machado fazendo uma agitação intempestiva perturbou essa expectativa O seu fim era evidentemente contrariar a corrente que ele supunha estabelecida para o estado de Minas e direi melhor em torno de seu nome É provável pois que haja muitas dificuldades a vencer e daí a necessidade de procurarmos guardar uma certa conformidade de vistas evitando divergências e acalmando ressentimentos13 Cinco meses depois o presidente e o candidato mineiro continuavam mantendo conformidade de vistas Ao receber todo o apoio de Pinheiro Machado comunicou o sucesso ao presidente da República a quem tinha sido fiel o tempo todo Quando soube que a isca tinha sido mordida o presidente teve o prazer de dar a fisgada No dia 13 de agosto de 1905 o presidente Rodrigues Alves escreveu a Bernardino de Campos Há dois dias dãome conhecimento da adesão definitiva de Minas à candidatura do Dr Afonso Pena Parece agora que o melhor será o Sr fazer pronunciamento pelo Dr Pena com a promessa de interessar os seus amigos no mesmo sentido Poderá fazer diretamente esta comunicação dando conhecimento à imprensa do que houver decidido Penso que este arbítrio não lhe causará muito pelo que me recordo que quando o ouvi sobre a candidatura Pena à vicepresidência referiuse a ele em termos muito lisonjeiros Assim terá a vantagem de concorrer para que se dê em favor da referida candidatura uma unanimidade que afastará o caráter que querem lhe dar de oposicionista ao atual governo Peçolhe que converse a respeito com o Dr Tibiriçá14 Em apenas dois dias o pescador virou pesca No dia 16 de agosto o governador Jorge Tibiriçá declarou seu apoio a Afonso Pena Quase na mesma hora a Comissão Central do Partido Republicano Paulista informava que daria total apoio à decisão de seu indicado à presidência Todos pensavam que era Bernardino de Campos Mas nesse mesmo dia ele fez vazar para O Jornal de São Paulo os termos de uma carta enviada ao presidente da República pela qual enaltecia seu papel na candidatura vencedora Nela tece o Sr Bernardino de Campos os maiores elogios à correção do Sr conselheiro Rodrigues Alves neste delicado assunto salientando sua imparcialidade face aos dois candidatos ele e o Sr Campos Sales apresentado pelo senador Pinheiro Machado quando de toda gente eram conhecidas suas simpatias pessoais pelo Sr Afonso Pena15 De repente o candidato de oposição ganha todo o apoio da situação e Pinheiro Machado se vê na gaiola Até mesmo jornais informados como O Estado de S Paulo passaram recibo da desinformação atarantada Mas surpresa Quando a coligação formada pelo Sr Pinheiro Machado se tornara poderosa invencível como procederam o Sr Rodrigues Alves o Sr Tibiriçá a Comissão Central Procuraram conquistar a opinião nacional Tiveram a hombridade de provar o quanto eram sinceros Deviam sustentar seu candidato até o fim É o que lhes sugeria a honra Mas não Preferiram abandonálo ferido em sua honra maltratado perdido Digam o quanto disserem que ele renunciou A verdade não pode ser encoberta16 A verdade no caso é que num único golpe derase o milagre havia um candidato a presidente da República sagrado e quase eleito que também sabia tirar proveito do que não falou como Campos Sales havia feito com suas ideias econômicas Afonso Pena não tinha falado uma palavra sobre o Plano de Valorização do Café Sagrado candidato continuou mudo a respeito Mas a candidatura era o sinal estava na hora de colocar em prática o plano CAPÍTULO 55 O Convênio de Taubaté A PRIMEIRA INFORMAÇÃO DE QUE A VALORIZAÇÃO DO CAFÉ ESTAVA PASSANDO DA fase das teses e conceitos para a luta real veio em 16 de agosto de 1905 o mesmo dia em que o governador Jorge Tibiriçá anunciou em público a adesão à candidatura de Afonso Pena O autor do aviso foi o senador estadual Siqueira Campos membro da Sociedade Paulista de Agricultura São Paulo por si só não pode resolver o problema da valorização do café Precisa recorrer à ajuda de outros estados para poder enfrentar aqueles que especulam sobre o café Nesse sentido o governo no estado está mandando emissários aos governos do Rio de Janeiro e de Minas para se entenderem sobre um modo de estabelecer uma ação conjunta1 Oito dias depois um jornal da cidade de Juiz de Fora O Farol inadvertidamente dava um furo Na edição do dia 24 de agosto anunciava a partida de José Monteiro Ribeiro Junqueira deputado federal e presidente da companhia de eletricidade CataguasesLeopoldina rumo à cidade de Taubaté a fim de trabalhar no plano de valorização do café com delegados de São Paulo e Rio de Janeiro2 Afora esse pequeno vazamento a reunião prévia dos emissários aconteceu em total segredo mas suas deliberações repercutiram em vários pontos Logo após a conversa os parlamentos estaduais passaram a aprovar leis Em Minas Gerais o governador Francisco Sales conseguiu passar uma delas em apenas duas semanas como mostrou Marcos Martins de Oliveira Foi aprovado o projeto que autorizava o governador a entrar em acordo com o governo federal e outros estados cafeeiros para adoção de medidas que tivessem por fim elevar o valor do produto regularizar sua exportação e normalizar o seu comércio Além disso houve a disposição que lançava um imposto proibitivo sobre as novas culturas transformada na lei número 400 de 13 de setembro de 19053 Rodrigues Alves sabia que leis não dão em árvores e entendeu o sinal mineiro a implantação do programa de valorização do café estava em curso Era uma descoberta amarga Repetiase com sinal trocado a ingrata surpresa que o presidenteeleitor Prudente de Morais tivera com o programa do presidente eleito Campos Sales Com pouco mais da metade do mandato cumprida Rodrigues Alves estava vendo se armar uma manobra para lhe impor à vista de todos uma política econômica oposta à que defendia em público Não fez como Prudente de Morais que engoliu o sapo para que o governo da nação tivesse continuidade Mandou a banda tocar na rua pediu ao amigo e companheiro no antigo Partido Conservador imperial Antônio Prado para atacar o projeto de valorização do café pela imprensa O mais rico empresário de São Paulo se entendeu com o maior jornal do país o Jornal do Commercio do Rio de Janeiro Assim o anúncio da resistência foi um verdadeiro petardo No dia 23 de setembro de 1905 O Estado de S Paulo reproduziu a reportagem publicada no dia anterior na capital do país A primeira pergunta era um pedido de opinião sobre o projeto de valorização do café que o governo de São Paulo adotou e que está servindo de base para acordos iniciados com os governos de Minas e do Rio de Janeiro4 A resposta de Antônio Prado foi direta Penso que estão completamente iludidos os que julgam ter encontrado remédio para a crise da lavoura cafeeira com esses processos Sobre a proposta correlata de desvalorização cambial foi igualmente duro Pode parecer que o produtor vendendo sua mercadoria em ouro lucra mais com a baixa do câmbio Porém são tais as oscilações cambiais que o lucro quase sempre desaparece A interpretação foi inequívoca essa seria a posição do governo e do presidente da República Até então um tiro como esse sempre fora fatal em toda a República ninguém ousara desafiar a autoridade do dono da cadeira ainda mais em guerra aberta Mas dessa vez seria diferente No mesmo dia da entrevista com Antônio Prado o jornal publicava um sinal de que o plano de valorização continuava valendo um artigo do industrial Alexandre Siciliano discutindo a estrutura do contrato a ser firmado e que permitiria a compra do café Era uma discussão importante porque faltava ainda um detalhe essencial saber quem seria o governo sempre citado nos planos mas nunca especificado No dia 25 de setembro de 1905 os senadores estaduais paulistas começaram a discutir um projeto autorizando o poder executivo do estado a entrar em entendimento com os governos dos estados interessados na cultura de café para a adoção de medidas que assegurem a valorização do produto5 E já na segunda sessão apareceu o desenho completo de uma medida que fazia parte do projeto mas também não fora especificada uma mudança na política cambial brasileira O encarregado de apresentar a medida foi o senador Luiz de Toledo Piza e Almeida Nascido em Capivari Luiz de Toledo Piza era advogado e dividia o tempo entre os negócios da Companhia Antarctica Paulista a direção do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo em cuja revista publicava trabalhos sobre os primeiros anos da vila a cátedra de economia política da Escola Normal6 e a direção do Correio Paulistano o principal concorrente de O Estado de S Paulo7 Por conta própria ele aproveitou as discussões da autorização para negociar a questão do café e introduziu nela um adendo na sessão de 26 de setembro de 1905 Devo remeter ao Senado nos próximos dias uma indicação para que se dirija ao Congresso Nacional uma representação no sentido de se adotar na legislação financeira do país uma medida idêntica à que a Argentina adotou em 1891 e cujos resultados têm sido os mais eficazes8 Na Argentina a medida fora adotada em meio a um turbilhão ocasião em que o país se tornara o centro da crise mundial ao não honrar o pagamento de suas dívidas Era uma ideia simples o governo criou uma instituição que comprava e vendia moeda estrangeira e títulos cambiais pelo preço de mercado do dia então apenas 42 da cotação oficial do peso A compra era paga com notas de papel que podiam ser trocadas de volta pela mesma cotação Além de simples o mecanismo revelouse muito eficiente Como a Argentina mantinha saldos comerciais positivos havia moeda estrangeira disponível para ser comprada E como não havia limite para as compras que eram pagas com mero papel impresso pelo governo ninguém apareceu para especular contra o mecanismo vendendo ouro O êxito do esquema permitiu que a Argentina saísse depressa da crise combinando emissão de papelmoeda e estabilidade cambial pois não faltaram portadores de moeda lastreada em ouro para vender A taxa de juro baixou o crédito se ampliou e o crescimento econômico voltou a ser explosivo como antes O senador Toledo Piza registrou as diferenças com admiração Hoje a República Argentina está inteiramente na comunhão econômica de todos os países adiantados do mundo ao passo que nós estamos no mais absoluto isolamento A Argentina goza de uma folga extraordinária ao passo que nós somos oprimidos por uma insuportável deficiência de capital9 Também não deixou de notar de onde viria a resistência para sua sugestão Desde já responderei à primeira objeção que se oferecerá e que é a mais grave é aquela que se contém no parecer de todos os nossos economistas e financeiros e se repete ultimamente nos relatórios do ministro da Fazenda que sendo tal processo uma quebra de padrão monetário ele representa uma falência interna uma falta de fé nos contratos Este argumento nada prova uma vez que o resgate gradual do papel não é outra coisa senão uma quebra parcializada do padrão monetário Quando o governo contrai um empréstimo para resgatar parte do papel ele resgata pelo preço corrente na praça não pelo estalão monetário Nessas condições dáse a falência parcial a falsa fé com relação àquela parcela por pequena que ela seja subtraída à circulação10 Toledo Piza tinha portanto uma noção bastante exata das resistências à sua proposta que ia no sentido oposto ao dos principais ensinamentos de toda a vasta escola derivada da tradição conservadora do Império guia de todos os ministros do partido e lei pétrea das duas últimas administrações republicanas no poder a correspondência entre determinada quantidade de ouro e outra de milréis expressa numa lei de 1846 era a promessa sagrada do soberano a base da credibilidade de todos os contratos o objetivo final de toda a política econômica Tudo o que acontecia na realidade no dia a dia dos mercados nas trocas efetivas entre os agentes deveria ser subordinado a esse norte único fixo invariável o governo estava empenhado em garantir a promessa da troca da moeda nacional por ouro na quantidade prometida Esse objetivo não significava apenas adesão ao padrãoouro Era uma adesão numa proporção determinada no valor fixo de 27 pence por milréis Como essa possibilidade não se realizava na prática do mercado a culpa era jogada sobre a moeda de papel fonte de todos os erros morais e não apenas monetários O mecanismo argentino chamado de caixa de conversão dividia o problema em duas metades De um lado o país mantinha a paridade legal Porém em vez de um norte absoluto passou a tratála como questão de conveniência Acima da cotação legal foi posto o objetivo da estabilidade a caixa comprava e vendia pelo valor de mercado abaixo do oficial Quando julgasse oportuno o governo poderia dar passos na direção da coincidência entre o valor de mercado e o valor legal da moeda A criação de um padrão estável ainda que não o da lei funcionando sem que a paridade legal tivesse sido abolida gerava uma diferença fundamental Havia a vantagem da taxa relativamente fixa e previsível mesmo numa moeda inconversível Mas sendo uma taxa mais baixa do que a prevista em lei permitia o estudo de cada um dos fatores paridade e câmbio estável de maneira isolada Assim se descortinava um mundo novo inclusive para o Brasil anunciado pelo senador Se fizéssemos uma operação desta natureza teríamos a possibilidade de avaliar nosso café aqui internamente avaliar nosso trabalho avaliar as remunerações sem as possibilidades das oscilações que têm ocorrido Nós produtores de café não estaríamos isolados do esforço conjunto de toda a nação O produtor de borracha teria as mesmas vantagens que nós bem como os produtores de outras matérias exportáveis Nessas condições não é possível que por preocupações meramente teóricas deixemos de realizar um passo que não nos traz risco nenhum11 As vantagens da caixa de conversão não seriam apenas setoriais uma vez que não tinham a mesma natureza da compra de estoques de café Elas serviriam para aumentar a renda de todos os exportadores brasileiros Seria um caminho nacional não um trabalho regional E também um caminho para alianças políticas Lançada numa casa de políticos a ideia em poucos dias foi vista como o ovo de Colombo empolgando o Senado paulista Toledo Piza transformou a empolgação numa curta emenda que previa representar ao Congresso Nacional sobre a conveniência e oportunidade de serem adotadas medidas tendentes à fixação definitiva do câmbio a exemplo do que se fez na República Argentina12 Com a aprovação da emenda dois instrumentos concorreriam para mudar a situação a compra do estoque de café visando aumentar a renda dos produtores e um mecanismo cambial capaz de manter essa renda no Brasil e em moeda nacional impedindo a alta das taxas de câmbio No entanto ainda restava um problema Se o investimento em estoque desse certo e a renda dos produtores de café e de todos os exportadores nacionais crescesse haveria mais riqueza nacional Mas para onde iria essa riqueza Uma das aplicações mais óbvias para ela seria no próprio setor cafeeiro mas isso ficava explicitamente de fora das cogitações pois continuaria valendo a proibição de plantar O senador Toledo Piza tinha uma resposta Devemos cogitar de fazer do paulista além de um povo laborioso agrícola um povo comercial um povo industrial porque a indústria não é mais que a aplicação do comércio à produção a indústria é a transformação dos produtos naturais a elaboração exigida sobre os requintes de consumo além daquilo que a natureza oferece13 Mas a natureza estava trazendo requintes inesperados para a batalha como notou Thomas Halloway Excluídos acidentes como geadas o tamanho de cada safra pode ser aferido oito a nove meses antes observando em setembrooutubro a abundância relativa da floração Assim os paulistas tiveram aviso prévio de que a nova safra seria muito grande as estimativas preliminares para a safra 19061907 foram em torno de 12 milhões de sacas Mas ao longo dos meses seguintes uma combinação incomum de condições climáticas e fatores biológicos foi elevando as previsões14 As estimativas só tornavam mais agudas as incertezas e patético o ritual político oficial que se cumpria com sua coreografia lenta No dia 13 de outubro de 1905 no Cassino Fluminense teve lugar o banquete político para a apresentação pública do ungido Afonso Pena A mesa principal era um prodígio de união Pinheiro Machado no centro o vicepresidente e futuro presidente à sua direita o governador Nilo Peçanha à esquerda e todos os ministros do presidente Rodrigues Alves na mesa principal O encarregado do discurso de apresentação era ninguém menos que o exministro Joaquim Murtinho que propagou a seguinte versão do programa econômico do candidato A coligação republicana não é papelista pensa que o programa econômico e financeiro tem como ponto fundamental de sua solução a fixidez de nossa moeda Sem fixidez da moeda não há cálculo nem previdência possível A indústria o comércio todo o trabalho nacional ficam sujeitos à incerteza A transformação do papelmoeda em papel conversível eis o primeiro dever da República na esfera financeira e econômica Problema de solução lenta e difícil para aqueles que o encaram pelo prisma da realidade problema de solução rápida e fácil para aqueles que o enxergam pelo prisma da fantasia os que pregam a conversão imediata e fixam o câmbio para esta conversão e assentam assim esta operação em uma desonestidade por parte do Estado Assim meus senhores se esta fantasia pudesse se realizar ela modificaria de tal forma os contratos que ninguém poderia calcular a grandeza da catástrofe que pesaria sobre o comércio e sobretudo sobre a produção nacional15 Afonso Pena que sabia muito bem por que Toledo Piza dizia exatamente o contrário de tudo isso fez o que devia no ritual falar muito e não dizer nada A transcrição da infinidade de platitudes consumiu cinco colunas maciças nos jornais Sobre economia falou pouco Para a solução do importante e complexo problema monetário estão estabelecidas bases seguras nas leis Em tais reformas a sabedoria do homem de Estado consiste em deixar de lado as quimeras e contar exclusivamente com os fatos reais De uma boa situação financeira decorrem corolários práticos da maior importância para o progresso nacional Nos tempos modernos essa é a questão por excelência que preocupa a atuação dos governos e estadistas16 Depois disso como notou a edição do dia 27 de outubro de O Estado de S Paulo o Sr Afonso Pena recolheuse aos bastidores Foi a Minas esperar a eleição do dia 1o de março e meditar acerca do que terá de fazer17 Enquanto o candidato fechavase em copas Jorge Tibiriçá ganhava novos motivos para rir cada vez que contemplava a sua caricatura predileta aquela da Eloquência Oficial Sem fazer discursos estava pronto para desencadear novos atos Depois da aprovação das medidas legislativas prévias em São Paulo Minas Gerais e no Rio de Janeiro veio a avalanche federal No Congresso o deputado federal Cândido Rodrigues articulador político do governador paulista realizou uma manobra reservada para veteranos na Câmara dos Deputados aproveitou a discussão do orçamento para introduzir uma emenda que como disse Afonso Arinos autorizava o presidente da República a entrar em acordo com os estados cafeeiros a fim de regular o comércio de café e diziase expressamente promover a sua valorização dando garantias às operações de crédito realizadas para tal fim18 A emenda foi aprovada tornando legais os gastos que o futuro presidente fosse fazer em nome do plano no ano vindouro Findos os preparativos veio a chamada de Jorge Tibiriçá para o ato inaugural da guerra CAPÍTULO 56 A guerra o front parlamentar DOMINGO 25 DE FEVEREIRO DE 1906 DEZ DA MANHÃ O TREM LEVANDO O governador Jorge Tibiriçá encosta na estação de Taubaté Recebido com foguetes e bandas de música o governador e a sua comitiva embarcam em carruagens e cruzam a cidade embandeirada e enfeitada Param todos na casa do coronel Marcondes de Matos onde às onze da manhã é servido o primeiro banquete do dia Em seguida as autoridades visitam um asilo o hospital e a sociedade de apoio às artes Às seis da tarde voltam à estação para receber os governadores de Minas Gerais e do Rio de Janeiro que chegam num trem especial Às sete horas começa o segundo banquete do dia na casa do coronel Leite Findos os discursos e brindes os governadores e os negociadores se acomodam num salão fechado às nove da noite Apenas na segundafeira os jornalistas conheceriam o resultado da reunião que se estendeu até as três e meia da madrugada No comunicado à imprensa com o texto do acordo além das assinaturas dos governadores havia as dos técnicos que o elaboraram entre eles Augusto Ramos criador do plano que depois de circular na sociedade nos municípios e nos legislativos estaduais agora se tornava compromisso oficial de três governos estaduais Pelo Convênio de Taubaté esses governos anunciavam que tomariam para si três responsabilidades básicas comprar café por um preço entre 55 e 65 francos por saca de café tipo 7 naquele momento antes da colheita da safra o preço estava em 38 francos cobrar um imposto de 3 francos por saca para cobrir as despesas do programa criar um serviço de propaganda do café brasileiro no exterior Para levar adiante o programa os signatários autorizavam o governo paulista a contratar um empréstimo de até 15 milhões de libras dando como garantia a arrecadação dos três impostos estaduais a serem criados Até aí assuntos de competência de governos estaduais Mas o texto ia além O artigo oitavo previa a razoável hipótese de que os eventuais fornecedores do dinheiro não se contentassem com a garantia dos impostos estaduais e exigissem o aval da União caso se torne necessário o endosso ou fiança da União para as operações de crédito serão observadas as disposições do art 2o parágrafo 10 da lei 1452 de 30 de dezembro de 1905 Era a emenda atiladamente introduzida no orçamento pelo deputado Cândido Rodrigues criando o caminho legal para a hipótese aventada no texto O mesmo artigo dizia mais sobre o eventual empréstimo Se contratado deveria ter um emprego exclusivo Será aplicado como lastro para a Caixa de Emissão Ouro e Conversão criada pelo Congresso Nacional para a fixação do valor da moeda Essa era uma flagrante invasão de competência Os governadores presentes eram todos políticos experientes Sabiam perfeitamente que não podiam dizer ao Congresso Nacional que fizesse essa ou aquela lei Mas também sabiam que sem pressão o Parlamento manteria a política econômica tal e qual vinha sendo executada Daí a eloquência oficial mas havia um sentido O Convênio de Taubaté não visava apenas comprometer os governos estaduais com a compra de café a determinado preço Era também uma demonstração explícita de que os governadores se reuniam para lutar contra a política econômica existente no Congresso Nacional A reunião aparatosa com bandas banquetes discussões e tratado tinha a finalidade de apresentar essa pauta ao público De apelar para a opinião pública no sentido de forçar os parlamentares na direção almejada pelos governadores A reunião pública mostrava também que a união não era pontual o texto do acordo era de adesão a um programa claro e concatenado discutido por vários anos e aceito politicamente Enfim reunia hostes importantes de um lado e a presidência reuniu as do outro No dia seguinte ao evento o presidente indicou o ministro Leopoldo de Bulhões como interlocutor para tratar com o futuro presidente Afonso Pena A primeira carta de Bulhões ao presidente de 27 de fevereiro de 1906 foi logo ao ponto Em Taubaté discutese a valorização do café O movimento paulista é um protesto contra tudo que se tem feito para melhorar a situação financeira e condenar a alta do câmbio Agora querse a estabilização da taxa e um grande empréstimo para lastro da emissão conversível dois coelhos mortos conversão do papelmoeda e ao mesmo tempo valorização do café Quebra de padrão é falência já dizia Robert Peel em 1819 A grande diferença que ele notava entre a Inglaterra e os outros estados é que esta nunca havia violado seus compromissos sua honestidade1 Achou pouco e voltou à carga no dia seguinte cobrando posição do eleito O futuro presidente da República em sua plataforma sobre a política financeira afirma sua continuidade Pois bem Três governadores de estado reúnemse em Taubaté e decretam um empréstimo de 15 milhões alteração do padrão monetário emissão Os telegramas de apoio chovem uma convocação do Congresso é anunciada o apoio das bancadas prometido Estaremos no mundo da lua2 Mais um dia na quintafeira seguinte ao Convênio com Afonso Pena significativamente mudo enquanto os governadores faziam barulho os brasileiros foram as urnas para eleger um presidente da República Como na época demorava a contagem de votos a confirmação do resultado somente veio mais de uma semana depois Só aí o presidente agiu Em 14 de março Rodrigues Alves negou o pedido de convocação extraordinária do Congresso para debater os projetos apoiados pelos governadores As discussões só começariam em maio data próxima demais ao início da colheita da monumental safra já estimada em 20 milhões de sacas muito além de qualquer outra jamais colhida E na data da abertura do Parlamento o presidente foi claro em sua mensagem Não é fenômeno econômico singular o da baixa do preço do café por excesso de produção Nunca providência legislativa alguma foi considerada eficaz para levantar de pronto o preço das mercadorias Medidas provisórias de caráter comercial ou especulativo podem agitar por um tempo o mercado e produzir um movimento animador nos preços mas a situação assim criada não subsistirá3 O Convênio pretendia regular a oferta sem alterar os preços nos mercados de consumo O presidente considerava a hipótese fantasiosa e o desastre certo Não há quem não tenha pela lavoura a cuja classe pertenço o mais decidido interesse Devese atender a seus reclamos com critério sem a preocupação de lisonjeála afagando esperanças exageradas e irrealizáveis Medidas imprudentes poderão produzir o efeito negativo de restringir o consumo de café provocar reações hostis dos países que o recebem e levar os nossos mercados à ameaça de agitações4 Outro objetivo do Convênio também era uma taxa de câmbio baixa O presidente defendia o contrário como verdade única em teoria econômica É um desacerto pensar que a lavoura do país não pode prosperar sem câmbio baixo e uma corrente tem se formado em favor da ideia de uma taxa que a beneficie As estatísticas demonstram ao contrário que com taxas melhores que as atuais a lavoura tem vivido e prosperado O bom câmbio é sinal de crédito de bemestar e prosperidade e todo o esforço do governo tem consistido em eleválo Não será prudente abandonar essa tendência nem perturbar um trabalho que se firma em métodos financeiros já consagrados5 Declarada a guerra os parlamentares seriam juízes não apenas de concepções opostas expressas por escrito o que era novidade na vida brasileira mas também de atos econômicos fundamentais que ocorreriam em seguida assim que a safra chegasse aos portos Como o tempo era curto os defensores do projeto foram rápidos para avaliar a situação com pouco mais de um mês de conversas no plenário e nos bastidores perceberam diferenças na avaliação de cada parte do projeto havia uma tendência a aprovar antes como lei nacional a parte do texto do convênio que autorizava os governos estaduais a comprar café cobrar impostos e pedir empréstimos Nada disso tinha qualquer implicação federal até porque um aval da União teria de ser aprovado de forma separada Já a aprovação da Caixa de Conversão seria bem mais complicada O projeto foi dividido segundo essa tendência Em apenas dois dias Senado e Câmara aprovaram as leis que tornavam nacional o apoio à intervenção no mercado de café Além dos efeitos práticos de dar maior sustentação legal às compras a vitória parlamentar mostrava depois de muitos anos que a teoria do Legislativo submisso aos interesses da administração era mais uma afirmação sobre um momento do que uma verdade de longo prazo O round seguinte da luta tornou ainda mais evidente a distância Os debates em torno da aprovação da Caixa de Conversão foram de fato discussões em torno de visões de mundo opostas Houve várias expressões destas mas uma mostrouse significativa Até por motivos familiares por ser um conservador com real tradição bisneto do visconde do Uruguai um dos maiores teóricos conservadores do Império e neto de Paulino de Souza que fora presidente do Senado o deputado Paulino de Souza era adversário exemplar do projeto O discurso pelo qual justificou seu voto contrário contém um resumo essencial do modo como um conservador via a economia naquele momento Na base do raciocínio estava o conhecido dogma O padrão é uma medida em ouro pela qual os particulares estão obrigados a receber o papel em suas transações Se diminuirmos essa medida indiscutivelmente há quebra no padrão quebra da equação estabelecida entre o numerário ouro e o papel emitido pelo governo6 E a quebra desse padrão equivalia a fazer desabar o mundo A alteração do padrão é a alteração de todos os preços é o amanhã incerto é a desordem permanente A moeda não cumpre mais seu papel essencial não garante mais a transformação de bens presentes em bens futuros equivalentes O padrão que é a medida em ouro de todos os valores inclusive do próprio papelmoeda tem como primeira condição e condição essencial a invariabilidade em todas as épocas A unidade da moeda deve ser absoluta no tempo e no espaço sob pena de não haver certeza nas transações7 Essa relação fixa esse pilar do mundo deveria ser também a base única do conhecimento teórico sobre economia e o norte moral dos governantes Dizer que se pode ao talante do legislador alterar a taxa legal isto é o valor da moeda conforme as condições do país aconselharem é avançar uma proposição prática e cientificamente inadmissível8 O abandono desse norte era visto como atentado à razão e à justiça O bom governo jamais poderia agir assim e daí o discurso passava da teoria para a história defendendo os últimos bons governos Se houvesse força maior isto é impossibilidade absoluta de o governo manter os compromissos assumidos seria necessário afrontar com coragem uma situação tão dolorosa Mas estamos nesta situação Olhemos para 1897 e para a situação atual situação cheia de esperanças à qual chegamos pelos sacrifícios que foram solicitados da nação e que esta tem suportado tão nobremente9 Mas dos sacrifícios teria resultado a bonança econômica O valor da exportação tem aumentado o comércio reanimase a situação bancária é muito mais sólida os negócios incontestavelmente renascem Nós tivemos a coragem de afrontar a situação em que o país se viu naqueles dias de incerteza aceitamos o funding loan e o cumprimos rigorosamente10 Depois de tudo isso a proposta da Caixa de Conversão só podia ser vista como flerte com o caos Podemos comprometer com fantasias arriscadas uma situação cheia de esperanças faltar aos compromissos mais solenes que uma nação pode assumir Alegase conveniência ou interesse público Não conheço interesse público maior que o da justiça segundo o qual o credor não pode repudiar suas dívidas Não conheço interesse maior para um país que sustentar seu crédito ainda que à custa dos maiores sacrifícios11 Depois de mostrar a teoria e defender o bom governo o deputado passou a argumentar sobre o atendimento dos interesses da sociedade Começava pela indústria A nossa indústria não produz para o mercado estrangeiro não lucra portanto com a moeda depreciada Em geral são indústrias de transformação Têm portanto de importar as matériasprimas além das máquinas de que carecem as quais são todas fabricadas no estrangeiro além do carvão que no dizer de um escritor é a segunda matériaprima de todas as indústrias Tudo tem pois a lucrar com a apreciação do câmbio que além disso determina uma diminuição do custo de produção12 Os assalariados também ganhariam A alta do câmbio favoreceu também os operários uma das classes mais dignas de interesse do legislador A carestia da vida consequente à elevação de todos os preços determinada pela desvalorização da moeda mais do que qualquer outro é sentida pelo operário que vive de jour en jour ganhando cada dia apenas o suficiente para ter o teto e a alimentação A lentidão com que os salários acompanham os preços faz com que as classes laboriosas sofram com a depreciação da moeda13 A política de elevar o câmbio também beneficiaria os compradores de produtos importados o governo federal os estados e os municípios Também desejam a subida no câmbio todos os que têm pagamentos no exterior Achase em primeiro lugar o Tesouro federal Foi a extraordinária depreciação da taxa cambial fazendose sentir nas grandes remessas do Tesouro que tornou em 1898 tão grave e insustentável a situação orçamentária À medida que o câmbio melhora mais fáceis tornamse os nossos pagamentos no exterior O mesmo acontece com os demais estados e algumas municipalidades14 Os próximos na lista de beneficiados vinham de fora É igual o benefício para todas as empresas constituídas com capitais estrangeiros Entre essas avultamse as estradas de ferro Ao lado desses interessados achamse aqueles que importam ou compram gêneros no exterior15 Somando tudo a valorização era o melhor Ela atende à maioria da nação Ponderemos o seguinte o valor da importação em 1904 foi desprezando as frações de 500 mil contos Ao câmbio de 16 compramos com essa soma produtos equivalentes a 334 milhões de libras esterlinas Se subisse a 27 teríamos mercadorias equivalentes a 56 milhões E como esses produtos importados são em grande parte gêneros de primeira necessidade que interessam à alimentação e ao vestuário bem se pode compreender quanto interessa à vida e ao conforto de todas as classes sociais a valorização da moeda16 Entre os beneficiados estariam também todos os produtores do mercado interno É preciso desfazer um equívoco A produção nacional não se limita ao que se exporta nem é essa a produção mais importante É preciso distinguir a produção para o consumo interno e para o consumo externo O primeiro que não lucra com a depreciação da moeda mas com a valorização apresenta proporções muito maiores17 Contra todos esses interesses beneficiados com a política existente apenas um pequeno grupo lucraria com a Caixa de Conversão Apenas desejam a depreciação da moeda nacional os que produzindo para o mercado externo recebem em ouro as suas mercadorias Estes querem o papel depreciado porque pela mesma quantidade de ouro recebem uma quantidade muito maior de papel18 Além de pequeno estaria também iludido A valorização da moeda diminui o custo da produção para o fazendeiro e a proteção que lhe dá o câmbio baixo é passageira pois só pode durar enquanto todos os outros preços especialmente os salários não se levantam no mesmo nível Assim pois o câmbio baixo a todos prejudica ao passo que uma ascensão lenta e moderada a todos aproveita19 Por tudo isso valia a pena pensar num futuro baseado na reiteração do passado Os defensores do novo projeto e das quimeras perigosas e funestas que o constituem acoimam de obsoletas essas opiniões Atribuem ao espírito atrasado e à rotina aquilo que é fruto do saber da experiência e do bom senso Por minha parte foram esses os princípios que aprendi na história financeira de meu país Sempre os defendi com a mais firme convicção de meu espírito Hei de sempre pugnar por eles enquanto tiver voz na representação nacional20 A defesa da lei levou à expressão de posições simetricamente contrárias como a defendida por outro deputado fluminense José de Barros Franco Júnior representante do estado nas negociações que levaram ao Convênio de Taubaté A oposição começava já no modo de se definir Em vez de se apresentar em nome da ciência e da moral Franco Júnior se colocava no papel de empresário e de observador empírico Não encaro este assunto do ponto de vista doutrinário Homem prático lavrador representante nesta casa de um estado que quase exclusivamente vive do seu trabalho rural pergunto como simples observador completamente alheio aos princípios científicos de qualquer ordem mesmo porque não me sobra tempo para me dedicar a esses estudos esses trabalhos pergunto é ou não imprescindível fixar o câmbio tendo em vista os fenômenos que têm se dado desde longa data21 Ao modo de Augusto Ramos em vez das verdades científicas o deputado preferia se guiar pelas observações estatísticas Se observarmos os dados estatísticos veremos que nos últimos 40 anos a taxa de 27 pence só foi atingida cinco vezes e dessas cinco vezes apenas num ano foi a taxa média o que quer dizer que ela nunca foi a taxa permanente22 Para Franco Júnior os fatos tinham valor muito maior que a paridade legal Essa é a taxa real Não quebra o padrão a lei quem quebra são os acontecimentos Quem faz o valor da moeda é a riqueza do país quem faz o valor da moeda é a diferença na troca dos valores internacionais A lei não eleva nem abaixa o câmbio essa é a verdade23 A Caixa de Conversão e não a lei da paridade seria o instrumento adequado para lidar com a realidade E seria uma instituição justa por sua finalidade impedir a continuidade das altas cambiais e assim garantir renda aos produtores que também não estariam interessados em receber em moeda estrangeira Os três governadores ao firmar o convênio tiveram o intuito de defender o principal produto de nosso país dar remuneração ao trabalho do proprietário agrícola de modo a não desanimálo e enriquecer o país Mas de que isso valeria a nós outros lavradores se houvesse uma elevação do câmbio Nada pois todas as nossas relações são satisfeitas em papel24 Da mesma forma que seu oponente Franco Júnior listou os interesses que deixariam de ser prejudicados pelo câmbio alto É um fato que não se pode negar todos os lavradores são prejudicados É o Pará o Amazonas com a borracha São as terras de cana de Pernambuco Alagoas Sergipe São o fumo e o cacau da Bahia O café do Espírito Santo Minas Gerais Rio de Janeiro e São Paulo O mate do Paraná e do Mato Grosso Os couros do Rio Grande do Sul E o Brasil todo com a indústria pecuária pois esta é nacional25 Os interesses amplos beneficiados pelo câmbio baixo iriam muito além da agricultura Quando digo produtores sintetizo todos quantos neste país trabalham desde as classes liberais até as classes que vivem lavrando os campos Todos precisam de uma medida cambial que signifique a verdade do momento26 Para o deputado todos esses amplos interesses seriam satisfeitos com o câmbio proposto e eventualmente um câmbio mais baixo poderia significar mais progresso Foi com o câmbio de 6 que se plantaram 500 milhões de pés de café que dão hoje ao Brasil incontestável predominância no mundo inteiro Foi com este câmbio que se criou a maior parte das fábricas no território nacional E tanto elas dependem dele que quando o câmbio ultrapassou a taxa de 15 vieram os fabricantes pedir ao Congresso um aumento nas taxas alfandegárias27 Somando tudo Franco Júnior chegava a uma conclusão pesada capaz de gerar um tumulto devidamente registrado nos anais Nós produtores somos no Brasil 19 milhões contra 1 milhão na capital da República o Sr Barbosa Lima e outros Srs deputados dão apartes O Sr presidente faz soar os tímpanos28 Acalmados os ânimos o deputado prosseguiu Peço a atenção dos senhores deputados para o seguinte cálculo do prejuízo que teve a classe agrícola do país que tiveram os 19 milhões em 20 milhões e as vantagens que teve o Tesouro Nacional com a subida do câmbio Para este remeter à Europa 75 milhões de libras teve a lavoura um prejuízo de 12 milhões de libras29 Apesar dos exageros retóricos o ponto era claro o câmbio elevado seria de interesse do Tesouro e de interesse dos importadores localizados na capital Por causa disso o projeto teria um significado histórico Senhores em 1888 o Brasil conseguiu sua emancipação social Em 1889 conseguiu sua emancipação política Em 1906 vai conseguir sua emancipação econômica30 Seria a vitória da opinião da sociedade contra a opinião do governo A opinião brasileira está representada por 19 milhões de brasileiros Não está somente na raiz do cafeeiro pois está também no algodoeiro no cacaueiro está em todas as manifestações do trabalho nacional Como isso interessa a todos os estados da República estou convencido de que todos almejam que este projeto se converta em lei para a felicidade de todo o país31 Os deputados e senadores foram se agrupando e foi ficando claro que a maioria estava mudando de lado passando a apoiar a Caixa de Conversão de fato aprovada por 115 votos a 25 no dia 8 de outubro de 1906 CAPÍTULO 57 A guerra o quebrador de ossos DUAS SEMANAS ANTES DA ASSINATURA DO CONVÊNIO DE TAUBATÉ NO DIA 9 DE fevereiro de 1906 o secretário da Agricultura de São Paulo Carlos Botelho requisitou um funcionário da Escola Politécnica para desempenharse de comissão a lhe ser confiada como dizia a pequena nota de O Estado de S Paulo que registrou o fato1 A secretaria da escola anotou no seu prontuário a natureza oficial da missão Designado comissáriogeral substituto do governo do estado de São Paulo na Bélgica2 Uma semana mais tarde o jornal adiantaria outro ponto Foi nomeado comissáriogeral para imigração no norte da Europa o Sr Francisco Ferreira Ramos lente da Escola Politécnica3 Pouca gente estranhou o fato de a Bélgica não vir a ser exatamente um centro de fornecimento de imigrantes para o Brasil de modo que os registros continuaram sendo telegráficos O do dia 22 dizia A bordo do vapor alemão Prinz Waldemar seguiu ontem para a Europa o Sr Dr Francisco Ferreira Ramos comissário de imigração em Antuérpia4 A julgar pela nota seguinte ele já estaria no destino em abril O Sr secretário da Agricultura solicitou ao da Fazenda a remessa de 500 libras esterlinas em favor do Dr Francisco Ferreira Ramos para despesas com os serviços de seu cargo5 O primeiro contato de Ferreira Ramos parece ter sido com o estatístico M Laneuville no Havre na França6 Juntamente com ele fez as necessárias atualizações de seus dados e as notícias do que trazia eventualmente chegaram ao conhecimento de atacadistas de café na cidade Da França o brasileiro seguiu para a Bélgica onde encontrou um importante interlocutor Nascido em 1851 Edouard Bunge era filho de um comerciante de Antuérpia Começou a carreira como vendedor percorrendo os Estados Unidos por seis anos antes de entrar como sócio da empresa familiar aos 24 anos Decidiu então arriscar a sorte na Argentina onde abriu uma filial da companhia em 1884 O grande sucesso do negócio na América o levou a um patamar elevado em seu país de origem Estimulado pelo rei Leopoldo II criou a Companhia Real BelgoArgentina para fazer uma ligação regular entre a Argentina o Brasil e Antuérpia7 Na virada do século Bunge organizou praticamente toda a exploração imperialista do Congo Belga transformado numa fonte de matériasprimas Isso não o impediu de expandir os negócios no Brasil entrou no mercado de café em 1905 comprando uma empresa de armazenagem em Santos Por força de tudo isso tinha ótimos contatos no mundo financeiro europeu Francisco Ferreira Ramos encontrou nele um dos primeiros interlocutores capazes de eventualmente financiar a operação de valorização Iniciaram juntos as prospecções encontrando ressonância na França mas não demorou para que chegassem à conclusão de que se tratava de uma operação em escala mundial que exigiria articular os maiores atacadistas do planeta Por mais que tentassem sozinhos não iriam a lugar algum Só havia uma pessoa capaz de comandar a façanha mas o problema era a fama dessa pessoa Herman Sielcken nascera em Hamburgo na Alemanha em 1847 filho de um pequeno padeiro Com 21 anos empregouse numa empresa que o enviou à Costa Rica em menos de um ano estava em São Francisco na Califórnia trabalhando como comprador de lã Passou a maior parte dos seis anos seguintes percorrendo os amplos espaços entre as Montanhas Rochosas e o Pacífico visitando sitiantes e criadores Numa dessas viagens a diligência capotou Sielcken quase morreu ficou com sequelas permanentes nas costas e decidiu mudar de vida Em Nova York virou caixeiro de uma loja de cristais e porcelanas e casouse com Josephine Chabert filha do dono de um pequeno restaurante Mas a regularidade da loja e da vida de casado logo aborreceu Sielcken de modo que acabou se empregando como vendedor na empresa Crossman Brothers que vendia de tudo Ali conseguiu ser nomeado comissário para a América do Sul e logo nos primeiros meses de viagens arranjou ótimos pedidos que cessaram de repente levando os donos do negócio à conclusão de que o viajante havia morrido em algum lugar inóspito Então num belo dia Sielcken apareceu na loja como se nada tivesse acontecido Colocou sobre a mesa um grande pacote e disse São encomendas muito maiores que as esperadas como resultado de minha viagem E acho que uma pessoa que trabalha tão duro e tão bem como eu merece ser sócio da empresa8 Seu patrão George Crossman ficou lívido Era um homem muito austero embora dono de uma firma de certo porte vivia modestamente Segundo o New York Times a simplicidade de sua vida se refletia nos bens pessoais uma casa modesta e móveis ordinários9 Mas Crossman cedeu ao pacote do vendedor ambicioso e não se arrependeu Sielcken tornouse sócio em 1881 multiplicou os negócios na América do Sul e transformou a empresa correta num leão do mercado que quebrava os ossos e arrancava a carne de concorrentes mesmo à custa de condenações em processos judiciais movidos pelos derrotados Com esses métodos obteve o controle de siderúrgicas e de uma ferrovia do Kansas disputandoas na justiça com os proprietários Sielcken nunca desistiu do café Era um dos maiores importadores e atacadistas trabalhando sobretudo com a mercadoria do Brasil onde tinha contatos desde os tempos de viajante Queria dominar o mercado mesmo sendo um mercado no qual o líder era um gigante A Arbuckles vendia café desde 1859 e não ganhara a posição à toa John Arbuckle filho de escoceses inventou o empacotamento e a venda no varejo de café torrado e moído além de investir obsessivamente em inovações A empresa atuava tanto no atacado como no varejo vendia doces para acompanhar o café e em 1896 resolveu acrescentar o açúcar a seus produtos Com essa última estratégia John Arbuckle arranjou um inimigo feroz Henry Havemeyer que dominava a venda de açúcar no varejo Este reagiu e proporcionou a Sielcken a tão sonhada oportunidade de tentar reinar O anúncio da sociedade entre os dois mereceu uma reportagem do jornal New York Times Os homens do açúcar retaliam na qual se dizia A American Sugar Refining contratou os serviços de Herman Sielcken como executivo e diretor de seus negócios de café10 O novo executivo comprou uma empresa em Ohio que distribuía o café Lion e começou a vender em todos os lugares em que atuava a Arbuckles mas com preços menores Nos anos seguintes os dois grupos travaram uma luta sem tréguas que só acabou quando os reis do açúcar admitiram a derrota e venderam a empresa para Sielcken por uma pequena fração do que valia Então como por mágica a companhia passou a dar polpudos lucros Sentindose logrado Havemeyer iniciou um processo contra o novo dono e os seus métodos Mas além do dinheiro acabou perdendo o processo e a essa altura Sielcken já era chamado de o rei do café Na virada do século o padrão de vida de Sielcken era outro Em Nova York morava no luxuoso hotel Waldorf Astoria onde volta e meia sua mulher reunia amigas e fechava o salão de baile para festas de caridade Mas sua disposição de jogar duro nos negócios permanecia imensa Continuou empenhado em manobras para controlar o mercado norteamericano de café especulando com notícias e estoques Nessas manobras não economizava adjetivos Segundo Thomas Holloway distribuiu em 1903 uma circular que negava a capacidade intelectual dos brasileiros E ficaria conhecido pelo tratamento desumano que dispensava aos empregados por suas manipulações no mercado e pelo desrespeito aos brasileiros11 A fama gerada por esse comportamento fazia de Sielcken alguém perfeito para ser atacado como bandido em especial no Brasil onde tantos criticavam a violenta exploração dos produtores locais pelos tubarões do mercado internacional Todavia ao contrário desses críticos Francisco Ferreira Ramos procurou essa gente até por motivos filosóficos Como seu irmão estava convencido de que os atacadistas existentes e o maior deles era Sielcken seriam os principais aliados do plano brasileiro Havia um sólido motivo para isso a dor no bolso Caso o preço do café caísse muito com a gigantesca safra algo mais que previsível seria quase certa a entrada de novos atacadistas no mercado Quem tivesse dinheiro poderia comprar café a preços menores que os das sacas estocadas e revender com lucro por preços que levariam à falência os atacadistas existentes Assim o apoio ao projeto brasileiro seria eventualmente a opção menos pior para Sielcken Ferreira Ramos conseguiu marcar um encontro com Sielcken na Alemanha em sua residência de verão na estação termal de BadenBaden Era uma casa à altura de um rei num parque de 80 mil metros quadrados a mansão principal de Mariahalden tinha 27 mil metros quadrados e havia ainda mais quatro vilas para visitantes além de um balneário privativo ao lado da casa principal num jardim onde se cultivavam 170 espécies diferentes de roseira Tanta opulência clamava por admiração de modo que o número de convidados girava em torno dos vinte todos os dias Nas noites de lua o jantar era servido ao ar livre ao som de uma orquestra completa especialmente formada para entreter os comensais com boa música Durante o dia a programação incluía passeios pelo parque com destaque para conversas à sombra dos pinheiros especialmente importados do Oregon para dar magnificência à paisagem Nesse ambiente o rude rei do café praticamente desaparecia Surgia em seu lugar um cavalheiro de bons modos que apreciava contar sobre suas aventuras nas pradarias norteamericanas ou os naufrágios nas costas da América do Sul O único e discreto sinal de negócios no local eram os mensageiros que iam e vinham da agência local do correio Como Sielcken dormia apenas cinco horas por noite da uma às seis da manhã fazia o trabalho sozinho longe das vistas dos hóspedes sem secretárias nem ajudantes Com a chegada de Ferreira Ramos o tempo de trabalho aumentou Embora os diálogos entre os dois nunca tenham vindo à tona o jornal New York Times resumiu os conceitos das conversas e do acordo de Mariahalden Os produtores brasileiros argumentavam que a safra era produto de condições climáticas excepcionais e que nos próximos anos elas seriam menores seriam necessários pelo menos doze anos até que as plantas se recuperassem do esforço Herman Sielcken comerciante financista e acima de tudo identificado há 35 anos com o comércio brasileiro era um dos poucos que acreditava que o café era o único produto agrícola cujo mercado poderia ser estabilizado que a produção excedente poderia ser mantida fora do mercado sem desastres e gradualmente vendida quando a demanda requeresse A história do acordo ficou famosa em Wall Street Ele ouviu a teoria dos produtores de São Paulo e só não concordou com o preço pelo qual os estoques deveriam ser comprados12 Antes de falar do pouco com o que Sielcken não concordou é preciso saber do muito com o que ele concordou ao ouvir o plano brasileiro de controle do mercado A ideia elaborada por Augusto Ramos afinal encontrava um interlocutor à altura Sielcken aceitou de imediato o enfoque estatístico o enquadramento geral da compra de excedentes a formação de um grande estoque central pelo Brasil a regulagem do mercado por um longo prazo a partir desse estoque nos preços atuais do varejo a sindicalização para atrair vários atacadistas ideia de Alexandre Siciliano a fixação antecipada dos objetivos e dos parâmetros de preços Tudo isso literalmente caía dos céus para Sielcken realizar seus desejos Por isso as discussões se restringiram às diferenças relevantes O dono do roseiral queria lucros máximos e por isso não via o menor sentido em pagar pela safra mais do que conseguiria obter explorando a superprodução Ele insistia em comprar barato para vender caro Já para os brasileiros a posição era clara só valia a pena correr riscos se os produtores ganhassem mais Mas havia território para aplainar as divergências Existiam grandes vantagens na proposição feita por um governo interessado em seus governados os quais eram donos de mais da metade do café produzido no mundo não era um concorrente direto não envolvia disputas entre atacadistas e isso valia muito Todas as tentativas anteriores de regular o mercado haviam fracassado porque nenhum comprador isolado era capaz de controlar os estoques mundiais Essa era a solução que vinha com a contrapartida de um risco governos mudam e uma mudança de posição do governo poderia transformar o ganho certo em prejuízo monstruoso o que ocorreria por exemplo se o governo saísse vendendo na hora errada ou para as pessoas erradas Demorou muito pouco tempo para que os dois acertassem o compasso Sielcken se comprometeu a arranjar o dinheiro necessário para o governo paulista comprar todo o excedente Mas pelo seu preço estimado para baixo com a safra gigantesca em torno de 55 centavos de dólar por librapeso ou 80 do que o governo paulista prometera pagar pelo Convênio de Taubaté A diferença um presente para os agricultores que ficasse por conta dos paulistas Para quem não tinha nenhum centavo nas mãos isso era muito mais do que Ferreira Ramos poderia desejar Além de acertar a compra os dois acertaram as vendas O negociador brasileiro reafirmou que o estoque financiado pelos atacadistas não poderia ser empregado contra os cafeicultores o que requeria um mecanismo de supervisão do estoque Como os brasileiros também não queriam que os atacadistas retivessem café além do limite do preço estatístico era preciso controlar também esse ponto Para satisfação de ambos acordouse que a supervisão caberia a um comitê de sete membros dos quais apenas um indicado pelo governo paulista que se incumbiria das regras para a venda assim que o mercado atingisse patamares de preço considerados razoáveis Acordo firmado Sielcken passou a mandar telegramas freneticamente Relatando as condições conseguiu dinheiro de atacadistas amigos e inimigos ao redor do mundo entre os quais Bunge o alemão Theodor Wille e os irmãos Arbuckle Cada um que entrava no negócio procurava seus banqueiros e pedia um empréstimo com o próprio aval em condições boas o suficiente para esses banqueiros nem olharem direito o nome do comprador do café o governo paulista para quem o empréstimo era transferido Herman Sielcken tinha assim como Jorge Tibiriçá a noção exata de timing a oportunidade de controlar o mercado por muitos anos seria um prêmio apenas no caso de um único comprador reter todo o estoque da safra gigantesca que começava a chegar ao porto de Santos Também sabia que esse prêmio cobiçado não seria deixado por aí de graça E enquanto fazia sondagens e organizava o grupo percebeu que as adesões e as promessas de dinheiro vinham de várias partes do mundo menos dos banqueiros dos atacadistas ingleses Arguto como era Sielcken não demorou para perceber que ali estava a concorrência que em torno deles se juntavam os interessados na baixa na oportunidade de comprar muito barato a safra para concorrer com os atacadistas estabelecidos Resolveu então atacar primeiro Na página 2 da edição do dia 27 de julho de 1906 de O Estado de S Paulo três dias após a aprovação do Convênio de Taubaté no Parlamento com um título muito discreto aparecia um comunicado com a seguinte apresentação O Sr H Seilckmen sic da firma Crowsman sic Seilckmen sic de Nova York dirigiunos a seguinte circular sobre a momentosa questão do café13 Seu nome era tão pouco conhecido que saiu grafado errado Mas o texto atirava pesado A propósito da valorização do café e da projetada defesa no Brasil de seu principal produto agrícola tem surgido por toda parte largas discussões e entre outros argumentos se tem alegado que os srs Rothschild os banqueiros do governo brasileiro são inteiramente contra este plano que consideram contrário a todo método financeiro da época Sem perder tempo argumentava É realmente admirável que sejam tão numerosos os ataques ao plano brasileiro sobretudo partindo das rodas financeiras quando os esforços de todos os estados nada mais representam senão obter do governo proteção eficaz para interesses reais em um momento em que ela se torna necessária para seu principal produto Esta ação do Brasil em prol de seus produtores não significa um simples auxílio à sua agricultura mas uma proteção necessária à sua própria vitalidade O quebrador de ossos dizia com todas as letras que estava pronto para esmagar a tradição secular que prendia as finanças internacionais do Brasil a seu barão banqueiro Iria montar um monopólio de mercadorias para romper a cadeia financeira inglesa Estava se juntando ao governo paulista para arrancar esse intermediário do mercado e tomar sua parte no butim E ainda dizia que depois do banquete ambos iriam palitar os dentes com os ossos da presa A passagem das palavras aos atos não levou nem uma semana No dia 1o de agosto de 1906 uma quartafeira um representante do Brasilianische Bank für Deutschland apresentou ao governador paulista um contrato enviado da matriz por ação de Sielcken Por meio dele abria um crédito de 1 milhão de libras esterlinas pelo prazo de um ano Para as práticas bancárias do tempo as garantias eram mínimas o governo paulista emitiria bônus em valor igual ao do empréstimo para serem vendidos pelo banco Com o dinheiro em caixa o governo paulista assinou o primeiro cheque comprou a primeira saca de café pelo preço prometido no Convênio Era o primeiro tiro de uma guerra total como bem lembrou Thomas Holloway Os planejadores da valorização sabiam que uma vez consumada a operação o estado ficava comprometido a levála adiante por todo o anosafra Se houvesse falta de fundos que obrigasse o estado a paralisar as compras antes do tempo previsto tudo estaria perdido tanto as reservas de café que já houvessem sido adquiridas quanto o dinheiro investido14 Era tudo ou nada Jorge Tibiriçá sabia o que estava deflagrando ao assinar o primeiro cheque mas não tinha a menor noção de como a guerra iria acabar Ele só possuía 15 do dinheiro de que precisava e emprestados por um ano quando seus planos de batalha indicavam um mínimo de seis anos de combate Mas a luta global já estava aberta CAPÍTULO 58 A guerra a batalha dos cheques A PARTIR DO PRIMEIRO CHEQUE ASSINADO O PROBLEMA PARA A ASSOCIAÇÃO ENTRE os produtores de café o governo paulista e os especuladores que apostaram na ideia passou a ser um só conseguir dinheiro A solução também era uma só apresentar um plano e obter empréstimos junto aos donos do dinheiro Este começou a aparecer em contagotas nem sempre nas melhores condições Delfim Netto mostrou as condições de uma das primeiras remessas Sobre o adiantamento fornecido pelos grandes torradores norteamericanos o estado de São Paulo pagaria 6 de juros e 3 de comissões anuais Sobre este custo incidia ainda o juro do capital levantado pelo próprio estado de São Paulo Vemos assim que o café deveria ser recolocado no mercado com a maior brevidade para impedir a realização de prejuízos1 Eram condições para negócios de grande risco e era disso mesmo que se tratava Francisco Ferreira Ramos o comissário do Convênio de Taubaté na Europa e portanto o encarregado de arranjar dinheiro em nome do governo paulista lembra as dificuldades que passou Ainda em 1906 tive de tratar da warrantagem de 1 milhão de sacas de café em Anvers com um grupo de capitalistas apoiados pelo Banco Nacional da Bélgica e com Edouard Bunge Fui obrigado a defender o crédito do estado contra os ataques a ele dirigidos por uma formidável campanha organizada pela especulação baixista na imprensa na tribuna e pelo telégrafo na Europa e na América do Norte Tão bem dirigida era essa campanha que vários capitalistas e banqueiros do consórcio de Anvers começaram a hesitar para fornecer capital a São Paulo2 A discussão foi tensa O mais receoso de todos o barão de Ampin fez bruscamente uma pergunta Se o café nada valer amanhã São Paulo por si só é capaz de garantir a nossa dívida Então o Sr Wegimont antes que eu pudesse usar a palavra respondeu Senhores um povo com 3 milhões de habitantes produz 16 milhões de sacas de café em um ano Tal povo merece não apenas nossa confiança mas nossa admiração Essas palavras foram saudadas com aplausos e a questão se resolveu3 Resolveuse mas não acabou Logo em seguida os argumentos baixistas ressoaram no Parlamento do país O governo belga foi interpelado por deputados para explicar o concurso do Banco Nacional da Bélgica o primeiro banco de um país a prestar o seu apoio ao governo do estado de São Paulo nesta operação Graças à simpatia do governo belga a questão foi resolvida a nosso favor Então o ministro De Capelli me disse O plano concebido pelo governo paulista é inteligente e novo Os senhores estão nos dando lições de como proteger nossa produção4 Num cenário muito mais decisivo o ministro reproduziu uma constatação que começara a surgir em artigos de jornal e conversas entre empresários em 1902 o plano concebido por Augusto Ramos era muito convincente a ponto de levar à assinatura de cheque ou concessão de avais para empréstimos Por outro lado não só os conservadores brasileiros tinham restrições ao plano argumentos semelhantes eram brandidos no mercado financeiro internacional Como resumiu o New York Times os banqueiros viam o plano para controlar a oferta como um despropósito econômico5 Como raros eram os banqueiros influentes que pensavam de outro modo apenas uma porta se manteve aberta para Francisco Ramos Apesar das garantias que o governo paulista oferecia os banqueiros europeus menos o barão Schroeder exigiam o endosso da União como uma garantia6 Quando afinal começaram as compras não só tal garantia inexistia como o banqueiro do governo brasileiro estava em campanha aberta contra o projeto como assinalou Pierre Denis A valorização tinha inimigos poderosos que não eram apoiados apenas pelo Jornal do Commercio Havia a imensa autoridade de lorde Rothschild que censurava severamente o esquema paulista seja por considerar a valorização um experimento perigoso seja por ser hostil à Caixa de Conversão7 A disputa no Parlamento brasileiro reproduziuse em âmbito global os principais fornecedores de dinheiro do mundo incluindo o maior deles e banqueiro do Brasil desaconselhavam os investidores a apostarem na ideia Em consequência no início o dinheiro apenas pingava Na hora decisiva o governador Jorge Tibiriçá contava com pouco mais do que a fé assim expressa em carta ao senador Pinheiro Machado Nós vamos ter uma safra abundante cuja colheita está em andamento É pois o momento oportuno para nossa intervenção Se não aproveitarmos a circunstância excepcional para organizarmos nossa resistência teremos perdido uma ótima oportunidade Os exportadores apoderarseão dessa grande safra por preço mínimo refarão seus estoques e nos colocarão na impossibilidade de valorização no próximo ano Por isso é absolutamente necessário que a valorização aproveite a safra atual8 O governador agiu de acordo Na falta de dinheiro e como parte do absolutamente necessário fez um acordo com os donos das ferrovias quase todos interessados no sucesso do plano convencendoos a restringir o transporte de café para Santos e com isso ia ganhando tempo Mas não fazia milagres Ao longo de 1906 conseguiu recursos para comprar apenas 25 milhões de sacas ou 15 da safra Concentrava as compras em Santos e nos cafés superiores o que provocou considerações ponderáveis de seus aliados Os governadores de Minas Gerais e do Rio de Janeiro eram sócios do negócio respondendo a apelos dos cafeicultores e empresários do estado Quando perceberam que não estavam acontecendo compras dos cafés de seus estados deixaram de cobrar os impostos que pagariam as despesas pelas compras Os cafeicultores também notaram um problema Minas Gerais e o Rio de Janeiro produziam sobretudo cafés de tipos inferiores que não estavam sendo comprados e protestaram com razão Já os cafeicultores de São Paulo perceberam que podiam vender no Rio de Janeiro e deixar de pagar impostos aumentando seu lucro A falta de recursos fazia o primeiro grande estrago Para sorte de Jorge Tibiriçá desde 15 de novembro o presidente da República era Afonso Pena e no Ministério da Fazenda estava Davi Campista o deputado que liderara a defesa do projeto no Parlamento Campista chefiou as tensas negociações que levaram a um aditamento no Convênio Minas Gerais e o Rio de Janeiro deixaram de se comprometer com empréstimos e pagamentos da dívida mas passaram a cobrar os impostos O governo de São Paulo arcaria sozinho com as compras e os riscos Em janeiro de 1907 como havia entrado algum dinheiro as compras passaram a ser feitas no Rio de Janeiro com os preços equalizados A pressão aumentou mas o mesmo não se deu com o fluxo de cheques Em 13 de maio de 1907 com o cofre quase vazio e ainda muito café para comprar Jorge Tibiriçá anunciou à boca pequena que ia arrendar a Estrada de Ferro Sorocabana para quem desse mais dinheiro No dia seguinte de manhã um telegrama com a notícia foi aberto em Londres por um elegante senhor que tomava o café em seu hotel Seu nome era Percival Farquhar e seu currículo incluía uma variedade notável de atividades vereador em Nova York com acusações constantes de compra de votos e violência na campanha especulador ferroviário em Cuba onde desembarcou na esteira das tropas norteamericanas que invadiram a ilha dono de ferrovias na América Central proprietário da empresa que explorava eletricidade no Rio de Janeiro cuja concessão obteve em meio a violentas disputas com o grupo Guinle graças ao apoio de ministros amigos Farquhar agia com a rapidez crucial para os grandes especuladores No mesmo dia arrancou 200 mil libras do Bank of Scotland e levantar dinheiro britânico para apostar contra os Rothschild não era algo simples O diretor do banco que arranjou o dinheiro o conselheiro Balfour também era diretor da ferrovia inglesa que operava em São Paulo além de aliado dos Rothschild Mas aceitou por se tratar do pedido de um escocês e os dois ainda comemoraram com um jantar na Saint Andrews Society Segundo Charles Gauld a explicação do banqueiro foi tipicamente britânica Como presidente do conselho do banco não me permiti lembrar que era também presidente do conselho da ferrovia9 Depois de obter recursos nas hostes adversárias do governo paulista Farquhar convocou os seus dois secretários atravessou o canal da Mancha e foi buscar o resto do montante em Paris O último banco que visitou foi a Société Générale que tinha coberto alguns investidores franceses na valorização Ali o diretor Louis Dorizon gostou da ideia mas alegou que a agenda de emissões do banco estava sobrecarregada O caso parecia perdido até que ocorreu um evento assim narrado por Charles Gauld Farquhar passou dias ansiosos Seu tempo estava se esgotando De repente num sábado de manhã Dorizon telefonou e pediulhe que fosse imediatamente ao banco Explicou que havia sido agendada uma emissão de ações da Westinghouse para segundafeira mas coisa incrível os banqueiros de Pittsburgh forçaram a falência da empresa na sextafeira para se apoderar dela No mesmo dia Dorizon substituiu o lançamento pelo da Sorocabana Graças a esse inacreditável golpe de sorte Farquhar ganhou a corrida Triunfante telegrafou para seu procurador em São Paulo na quarta feira 22 de maio este se encontrou com o governador e assinou o contrato10 Era um alívio que permitiu atingir 7 milhões de sacas adquiridas Mas como ainda faltava café para comprar a saída foi pedir ajuda ao governo federal um empréstimo de 3 milhões de libras esterlinas para adquirir o que faltava e rolar as dívidas mais incômodas da manutenção do estoque O presidente acedeu e enviou o pedido ao Parlamento lembrando que estava de acordo com a lei aprovada em 1905 O Parlamento aceitou mas os debates foram violentos Até aquele momento o governo federal não havia gasto nem um centavo com tudo o que estava acontecendo O pedido de São Paulo era de um dinheiro emprestado de todos os brasileiros com garantias de pagamento Assim havia dois problemas a serem discutidos a natureza do pedido e as garantias de pagamento O senador Barata Ribeiro representante do Distrito Federal embora industrial e com posições econômicas que não eram conservadoras analisou a questão da seguinte forma A situação lisonjeira e feliz à qual São Paulo deve pela maior parte suas forças é devida principalmente ao concurso eficaz que lhe prestou sempre o governo da nação desde o Império concurso que o representa nos orçamentos nacionais com muitos milhares de contos de réis quando os demais estados cafeeiros e a generalidade daqueles do Norte figuram apenas pelas sombras da miséria em que se debatem11 A afirmação sobre os favores fiscais do Império contrariava fatos mas o empréstimo para uma unidade da federação ajudava a tornar o argumento verossímil A apresentação da situação de um favor inconfessável sustentava outra parte do argumento esta relacionada ao futuro Basta lerse a mensagem do governo daquele estado para se verificar que este empréstimo não será pago12 Outro caminho a seu ver seria mais realista Só obrigaria a União a acorrer favoravelmente à solicitação de São Paulo dando em vez de emprestar o dinheiro E dando para que não se iludisse a nação com a falsa promessa de que tal dinheiro voltaria a seus cofres e porque tal doação ao menos lisonjearia nossa vaidade indígena pela certeza de que com ela resgataríamos o estado da crise agônica em que está sua lavoura13 Dar seria melhor porque o dinheiro contribuiria para um desastre inevitável O senhor governador de São Paulo removeu do país produtor para os países mercadores de café o que a seu juízo representava superprodução para que esses países soubessem que temos muito café para vender E feito isso em sua cadeira governamental ouviu o longo ruído da corte que festejava o aparecimento do Messias econômico deleitandose com a ideia de ter retirado 8 milhões de sacas de café quando não fez mais que antecipar a remessa de café para vender para colocálo nas mãos da especulação bolsista nas praças comerciais14 O discurso do senador lidava com expectativas mas relacionadas a uma questão real Com o empréstimo o governo paulista concluiu a compra da safra de 1906 e o café foi enviado ou para a Europa ou para os Estados Unidos de acordo com a origem do dinheiro emprestado Ainda assim não estava tudo acabado como estabelecia o plano era preciso manter esse café armazenado até que se manifestasse uma alta nos preços prevista para 1909 para só então ele começar a ser vendido com lucro Entretanto o governo paulista precisava ir pagando os juros dos empréstimos ou esta era a aposta jogar o café no mercado com grandes prejuízos Sendo um governo que vivia da mão para a boca a suspeita do senador corria também no mercado europeu A tradução de um artigo de um analista francês publicada por O Estado de S Paulo dá conta da situação No mercado quase que só há baixistas uns poucos por interesse e muitos por um sentimento de amorpróprio que nos surpreende Ambos procuram forçar a baixa porque pretendem havendo as grandes liquidações do governo adquirir o gênero por um bom preço É uma esperança muito legítima mas é sempre perigoso falar de herança no leito do enfermo que muitas vezes desilude aqueles que contavam com a sua morte Não querem ver que nem mesmo para o consumo não há mais o necessário mas que há mesmo tendência para vender o que não existe nos negócios a termo15 As expectativas nas quais o senador fundava suas opiniões e os baixistas os seus cheques eram as mesmas Mas os fatos sobre os quais as expectativas se aplicavam já perceptíveis em 1907 eram outros A safra desse ano foi de apenas 8 milhões de sacas metade do consumo mundial justificando o uso dos estoques e com os especuladores da alta vendendo o café que não existe no mercado real em mercados a termo Mas o preço continuou baixo e assim permaneceu até 1908 Em maio desse ano o governador Jorge Tibiriçá entregou o governo do estado de São Paulo ao sucessor o secretário da Fazenda Albuquerque Lins que comandara as operações Apostara muito no projeto de Augusto Ramos e dos empresários que trouxera para o governo Na saída do cargo deixava muitas fichas em jogo O novo governador começou fazendo um balanço de tudo para os cidadãos outro sinal de que o tempo era mais de contas e reavaliações do que de enfrentamentos Na abertura dos trabalhos da Assembleia entregou aos parlamentares um relatório no qual em vez de discorrer sobre um orçamento falava sobre um balanço a forma de contabilidade das empresas não dos governos Mas havia sentido nisso16 No balanço eram apresentados os ativos do estado propriedades imobiliárias avaliadas em 113 mil contos dívidas a receber 227 mil contos dinheiro em caixa e outros valores Somando tudo os ativos do governo paulista chegavam a 562 mil contos de réis O mais importante dos bens aparecia na rubrica Valor dos cafés armazenados com um montante de 271 mil contos de réis ou nada menos que 495 do total dos ativos No entanto para manter estocado o café foi obter recursos emprestados gerando um passivo Este era contabilizado na rubrica Dívida proveniente de adiantamentos e saques feitos contra remessas de café e empréstimos contraídos para o serviço de defesa do café no valor de 291 mil contos ou 53 do total do passivo A diferença entre o valor do café lançado como ativo e o das despesas para manter esse café expressas no passivo mostrava um prejuízo contábil de 20 mil contos de réis Ou seja caso o estoque fosse vendido pelo preço indicado no balanço o governo estadual teria um prejuízo nesse valor com a guerra em que se metera Esses números podem ser comparados a um terceiro para dar uma dimensão do que significavam A arrecadação tributária de São Paulo fora de 42 mil contos Sendo assim o café estocado custara o equivalente a 69 anos de receitas estaduais Já o prejuízo contábil se fosse realizado equivaleria a 49 dos recebimentos anuais Pouco depois o governador enviou outro relatório destinado ao presidente Afonso Pena Junto ia um pedido dessa vez para que a União avalizasse um empréstimo destinado a consolidar todas as dívidas do estado num novo empréstimo de modo que ele foi enviado para o Congresso17 Era um retrato ainda mais completo da situação O governador informava o tamanho exato do estoque paulista naquele momento 6994920 sacas distribuídas por vários portos na Europa e na América do Norte Do total de 84 milhões de sacas compradas haviam sido vendidas 14 milhão Como se constata no confronto com o balanço mesmo depois das vendas as dívidas superavam o valor do estoque O relatório também indicava algo sobre as proporções dos investimentos de cada participante no plano A operação acumulara uma dívida de 1278 milhões de libras das quais apenas 233 milhões vinham de empréstimos concedidos ao governo paulista Nada menos que 1045 milhões de libras esterlinas ou 82 do total haviam sido levantadas pelos especuladores reunidos por Francisco Ramos e Herman Sielcken nas condições em que puderam nem sempre as mais favoráveis O passo à frente não mudou os argumentos do debate parlamentar sobre o pedido de aval Os positivistas gaúchos e muitos parlamentares do Distrito Federal lideraram as críticas dessa vez com um novo aliado o deputado mineiro Pandiá Calógeras Ele exprimia uma expectativa sobre o futuro como se fosse certa A crise é fatal A próxima colheita avultada como vai ser vai formar além do estoque do governo de São Paulo um novo estoque este quase igual ao que determinou a política intervencionista o que dará lugar a uma crise inevitável em dois anos Não sei com que direito se pode exigir que o Brasil inteiro se torne responsável pelos erros da lavoura paulista porque em São Paulo e só em São Paulo se desenvolveram de forma tão inconsiderada as plantações18 Para Calógeras a crise seria também decorrente do esquecimento de verdades seculares Uma vez abandonados os princípios sãos da verdadeira doutrina econômica nada pode entravar o desdobramento sucessivo deste fenômeno de alucinação coletiva19 Mas o aval foi aprovado e com ele foi possível realizar o empréstimo que consolidava não só as dívidas mas também a associação profunda entre o governo do estado brasileiro que produzia mais da metade do café do mundo e era agora dono de um estoque equivalente a pouco menos da metade do consumo mundial e banqueiros assim detalhados por Thomas Holloway No empréstimo de 15 milhões de libras para a consolidação da dívida a J Henry Schroeder de Londres entrou com 10 milhões dos quais 2 milhões foram fornecidos pelo National City Bank de Nova York A Société Générale de Paris e o Banque de Paris et Pays Bas emprestaram os cinco restantes20 A lista traz o nome daqueles que apostaram no projeto e deixa entrever um grande perdedor Desde o empréstimo para o reconhecimento da Independência brasileira em 1825 até esse momento haviam se passado 83 anos Por todo esse longo período o Banco Rothschild teve o monopólio do financiamento do governo central brasileiro Os negócios ingleses se beneficiaram muito dessa situação os brasileiros nem tanto Mas agora chegara a concorrência nesse restrito mercado e vinha com novidades A principal garantia do empréstimo para o governo paulista não foram as suas limitadas receitas e sim o estoque de 7 milhões de sacas com o qual literalmente o café se transformava em reserva internacional em valor muito acima daqueles conseguidos pela suada política de restrição monetária nacional do funding loan Como parte do acordo foi nomeado um comitê para gerir o estoque assim descrito por Thomas Holloway A composição do comitê de sete membros mostra que as maiores empresas ainda estavam envolvidas no negócio Francisco Ferreira Ramos foi nomeado representante do governo de São Paulo com poder de veto Os outros membros do comitê eram o visconde de Touches de Havre Edouard Bunge de Antuérpia um representante da Société Générale de Paris o barão Bruno Schroeder um representante da Theodor Wille de Hamburgo e Herman Sielcken de Nova York21 Os bancos eram os novos quartéis da guerra e o comitê gestor o EstadoMaior Chegara a hora da batalha final CAPÍTULO 59 A guerra brasileiros contra brasileiros PARA UMA PESSOA O ACORDO DE CONSOLIDAÇÃO DA DÍVIDA JÁ ERA UMA VITÓRIA IMENSA Augusto Ramos no primeiro artigo intitulado Valorização do café escrito seis anos e meio antes do acordo no dia 8 de maio de 1902 fizera um vaticínio Não mais se enxergarão nuvens no horizonte hoje tão sombrio de nosso futuro econômico Sobre a larga estrada comercial que se rasgará entre o produtor e o intermediário brilhará em todo seu esplendor o sol da estabilidade estatística e o cimento impecável da reciprocidade de interesses como um selo sagrado vinculará por um acordo tácito os esforços de ambas as partes no levantamento gradual das cotações1 Entre a concepção inicial e o resultado do acordo aconteceu muita coisa tanto no Brasil como no mundo Mas quase tudo o que ele previra se realizou Havia um acordo entre o maior produtor de café e os maiores atacadistas mundiais com o objetivo de usar os estoques controladores e uniformizar os preços O sol da estabilidade estatística brilhara os preços se comportaram tal como previsto As cotações subiram e o selo sagrado do lucro dividido unia as partes Os empresários que se juntaram em torno da ideia entraram cada qual com sua parte os produtores com o estoque os atacadistas com o dinheiro e o governo de São Paulo atuou como o armazenador fiel e controlador dos preços Estes eram os ganhadores os premiados pelos novos conceitos pelos riscos de negócios e pelos projetos de desenvolvimento a eles associados E ganhavam dinheiro à custa dos que apostaram contra uma parte dos atacadistas internacionais os financiadores de apostas na baixa os analistas de mercado e os governos que duvidaram do plano Encerrada a fase das apostas e iniciado o ciclo de alta e estabilização do mercado faltava apenas que os perdedores adaptassem suas antigas concepções à nova realidade No grupo dos que antes duvidavam os primeiros a se adaptar foram os investidores e especuladores do mercado financeiro Concluído o empréstimo de consolidação os bancos participantes lançaram títulos lastreados nele A lista dos bancos credores deixava claro que havia capacidade financeira para sustentar a manutenção do estoque no longo prazo e portanto a compra desses títulos seria agora um negócio seguro e lucrativo E como foi acentuada a procura pelos títulos o mercado financeiro passou a reforçar ainda mais a situação dos valorizadores Outros que reviram as suas convicções foram os atacadistas que nas palavras do cronista francês apostaram na morte do moribundo na liberação dos estoques retidos a preço baixo pelo governo paulista Quando se deram conta de que não haveria venda descontrolada de café por um governo paulista falido foram obrigados a repassar os números e viramse numa situação muito desagradável Ao longo de 1908 o consumo superara a produção em mais de 1 milhão de sacas provocando uma redução dos estoques no mundo para 13 milhões de sacas das quais sete milhões eram de propriedade do governo paulista e estavam sob controle do comitê o que era um problema para quem agora precisava comprar café Sabiam que não adiantava esperar bondades de um grupo onde estava Herman Sielcken E tinham certeza de que ninguém plantara café nos últimos tempos de modo que haveria um mínimo de quatro anos até que novos cafezais começassem a produzir Como as opções ficaram escassas só restava pensar seriamente em comprar um pouco do café estocado pelo governo paulista pagando em dinheiro o preço da aposta errada Como notou Delfim Netto a equação entre oferta e procura obedecia a novas regras e gerava novos preços no atacado mundial Ficou evidente que o estado de São Paulo poderia manter por muito tempo fora do mercado o estoque de café adquirido enquanto a situação melhorava pois o suprimento anual era inferior à procura Esses fatos provocaram uma inversão das expectativas e o preço do café passou de uma média de 628 cents por librapeso no segundo semestre de 1908 para 797 cents por librapeso no primeiro semestre de 19092 Era a última previsão estatística de Augusto Ramos que se realizava a reversão do mercado aconteceria três anos depois da compra O efeito dessa mudança de expectativas gerou também uma reversão na situação daquele que até a véspera era visto como insano por muitos críticos o governo paulista O aumento nos primeiros meses de 1909 foi de 26 Aplicado ao valor de balanço do estoque paulista de 1908 o café comprado por São Paulo valia agora 341 mil contos de réis 50 mil contos a mais que as despesas declaradas no mesmo balanço A transformação da posição contábil era radical Antes do empréstimo o prejuízo contábil equivalia a 49 do orçamento estadual com a alta o lucro contábil passou a equivaler a 785 das receitas totais do estado ou 119 das receitas ordinárias A continuação do ciclo de alta e a sequência de vendas foram confirmando que a operação seria altamente lucrativa Em 1918 ao ser paga a última parcela da dívida e governadores ainda levantaram dinheiro sobre ela no meio do caminho o governo paulista era dono de 3 milhões de sacas livres de ônus nada menos de 29 do total de sacas compradas em 1906 ou 43 das estocadas em 1908 Essa mudança radical no mercado mostrouse inexorável na distribuição de prêmios sob a forma de lucros para quem acreditou na valorização e punições sob a forma de prejuízos para os que duvidaram dela Algo semelhante poderia se passar na esfera da política com os defensores da ideia sendo premiados com poder e os que apostaram contra ela sendo punidos com a perda dele caso o sistema fosse tão competitivo como o mercado Mas o Brasil era um país no qual ainda persistia um hábito encarar as eleições nacionais como um ritual comandado desde o centro Nos tempos do Império para sagrar com a maioria o partido escolhido para comandar o ministério nos tempos da República sobretudo após a política dos governadores para sagrar o indicado pelo presidente da República Também Afonso Pena pensava dessa forma e tinha já um sucessor aprovado pelo governo de São Paulo João Pinheiro o governador de Minas Gerais Mas o acaso interveio com a morte de Pinheiro em outubro de 1908 Afonso Pena voltouse então para um amigo de toda a vida Rui Barbosa Acontece que esse amigo também julgava que uma eleição presidencial não deveria ser um simples ritual de unção Por isso em vez de aceitar um encontro no qual seria convidado preferiu escrever uma carta explicando por que não cabia ao presidente a função de ungidor Um candidato à Presidência deve ser proposto por um movimento de opinião pública por um partido político ou por um estado da União O atual presidente da República ocupa a cadeira não tanto por expressão de seu valor pessoal aliás indiscutível quanto como encarnação do princípio que recusa ao chefe do Estado o direito de iniciativa ou deliberação na escolha de seu sucessor Nós o negamos ao Dr Rodrigues Alves e não podemos deixar de negálo hoje3 E arrematava com uma mescla de conselho e alerta de problemas Reflita meu caro amigo entre no íntimo de si mesmo e aconselhado por este fundo resistente de bom senso honra e patriotismo que a política o mais das vezes não consegue extinguir nos homens substancialmente honestos como você exonerará o seu governo a sua carreira pública a sua consciência de uma responsabilidade inútil e funesta Ela lhe amargurará os dois últimos anos de administração4 O presidente preferiu não seguir o conselho Tentou indicar um sucessor para João Pinheiro no governo de seu estado mas foi derrotado pela ala conservadora do partido que emplacou Venceslau Brás filho de um chefe local conservador no Império e seguidor das ideias do pai Com isso um governo estadual caiu nas mãos de críticos da política do presidente da República Afonso Pena tinha esperanças fundadas na visão tradicional da unção de que poderia passar por cima da diferença e indicar um continuador da vitória econômica que ajudara a construir E isso porque o governador de São Paulo Albuquerque Lins lhe dera carta branca para lidar com a sucessão Aproveitando o apoio o presidente o consultou sobre o nome do ministro da Fazenda o mineiro Davi Campista que foi aprovado Com isso pelo figurino tradicional tinha nas mãos grandes trunfos o apoio de São Paulo para um político mineiro Em janeiro de 1909 comunicou isso ao novo governador de Minas Gerais pedindo que cumprisse seu papel de acordo com o figurino tradicional anunciar o nome que receberia o apoio de São Paulo e com tudo isso permitiria que o próprio presidente colhesse o apoio dos demais estados Mas o anúncio não veio e o presidente interpretou mal o silêncio Tanto Venceslau Brás como os conservadores mineiros tinham sido postos na posição de optar por um mineiro com apoio de São Paulo e dentro das regras da sucessão ritual Mas isso significaria sacrificar as convicções conservadoras abaladas com a implantação de um novo modelo de desenvolvimento econômico por mecanismos contra os quais todos haviam lutado Dessa vez quem interpretou corretamente o silêncio foi Pinheiro Machado que passou a misturar demonstrações de lisonja ao presidente com insinuações sobre a candidatura do ministro da Guerra o marechal Hermes da Fonseca gaúcho e amigo dos positivistas No dia 14 de maio de 1909 ao ler uma entrevista do líder conservador Bias Fortes o presidente ficou sabendo que os conservadores mineiros haviam decidido rifar a candidatura de seu compatriota progressista para apoiar o marechal com total apoio de Pinheiro Machado Em apenas três dias a articulação apareceu por inteiro com um grupo parlamentar apoiando o nome do marechal Hermes Nesse mesmo dia 17 Afonso Pena cumpriu dolorosamente o seu dever Convocou o ministro da Guerra que sempre jurara lealdade e que jamais iria ser candidato a eloquência oficial A conversa segundo Américo Lacombe foi penosa Afonso Pena estranhamente revestido de nobre serenidade disse que saberia cumprir seu dever até o fim que jamais negara aos militares o direito de serem candidatos mas negavalhes o direito de empregar a força para obterem esses cargos ou impor candidatos Nesse momento o presidente empalidecendo terrivelmente sentiuse mal O ex ministro da Guerra de pé reverente esperou que o presidente se refizesse e saísse amparado5 Dali o presidente iria para a cama sofrendo muito mais que as dores vaticinadas por Rui Barbosa Este reagiu a seu modo publicando um artigo no qual descrevia a situação como resultado de um método ritual anacrônico e propunha outro modo de encarar uma eleição Vivemos habituados os políticos dessa terra a supor que o Brasil se resume ao círculo estreito onde nos movemos São efeitos de um costume vicioso Seria mister começarmos a contar com a opinião pública o povo a vontade nacional Déssemos nós o rebate de uma campanha que teria o intuito de manter ao país o direito de eleger o chefe do Estado e ainda que todos os governadores se achassem contra nós uma candidatura verdadeiramente popular verdadeiramente nacional a candidatura de um homem sério digno e benquisto reunindo nos estados todos os elementos dissidentes e no país todos os homens de opinião havia de se impor e prevalecer6 Reaparecia em sua integridade o desafio dos não conservadores na República não mais havia o amparo da lei para o uso do poder pessoal da Coroa para se colocar acima do soberano direito do cidadão de eleger o representante que o governava Mas a praxe sobrevivera como hábito inveterado dos políticos todos acostumados a se considerar no alto pairando num círculo acima dos demais cidadãos E esse costume ritual serviria aos positivistas e conservadores para conquistar poder político depois de se engajarem contra as instituições econômicas que estavam se mostrando vencedoras no mercado Tentando se contrapor a isso Rui Barbosa propunha uma campanha política que falasse diretamente com o eleitor que apelasse à sua vontade soberana ao seu direito de escolher Vinte anos de República não haviam sido suficientes para fazer isso de modo que a proposta era apresentada como novidade Teríamos então pela primeira vez o espetáculo do povo brasileiro concorrendo efetivamente às urnas para nomear seu primeiro mandatário Mas quando não o tivéssemos ao menos vencidos o seríamos com honra que é melhor que vencer sem honra e salvar princípios que se devem salvar sempre ainda quando se perca tudo o mais A eles se acha ligada a minha consciência a minha tradição São compromissos que representam a minha vida inteira Se eu os quebrasse reduzir meia a meus olhos próprios a um trapo7 Enquanto isso a candidatura de Hermes da Fonseca recebia adesões de peso o vicepresidente indicado foi Venceslau Brás Para Afonso Pena era outro ato de traição Sua doença foi piorando e morreu em menos de um mês no dia 14 de junho de 1909 Assumiu o vice Nilo Peçanha cujo primeiro ato foi mostrar o que pensava de economia para o Ministério da Fazenda indicou Leopoldo de Bulhões o mesmo que atacara o plano de valorização do café quando ministro de Rodrigues Alves A campanha de Rui Barbosa foi a primeira a ser organizada no Brasil com o intuito de convencer os eleitores Foi lançada em convenção realizada num teatro com grande plateia e sagrada por delegados eleitos nos municípios Prosseguiu com comícios de rua promovidos por defensores da ideia e explorados pela imprensa Foi arrematada por uma viagem que reuniu multidões em torno do candidato e plateias que assistiam a conferências que expunham o programa de governo A grande bandeira era a defesa do voto secreto A exigência de nossa moralização eleitoral consiste em extinguir radicalmente a publicidade no voto No dia em que tivermos estabelecido o recato impenetrável da cédula eleitoral teremos escoimado a eleição das suas duas grandes chagas a intimidação e o suborno A publicidade é a intimidação do votante O segredo sua independência Para a conquistarmos cumpre tornar obrigatório absoluto indevassável o sigilo do voto8 Era a forma possível de apresentar a defesa da soberania popular sem defender a ampliação do voto para todos os homens o padrão da época e fez imenso sucesso Por todo lado apareceram cidadãos dispostos a apostar na ideia de que eles deveriam escolher o presidente da República Já a campanha do marechal Hermes foi concebida segundo o molde ritual republicano um banquete para a leitura da plataforma em recinto fechado lido para os apoiadores da unção As posições conservadoras ficaram mais que claras Não sou dos que aplaudem movimentos prematuros de opinião nem poderia sêlo porque pertenço à escola conservadora Em matéria financeira julgo perigosas quaisquer inovações precipitadas Os últimos governos mesmo em luta com as consequências de erros de natureza política e administrativa que perturbaram a marcha normal dos negócios públicos têm se preocupado sempre com a valorização do meio circulante O regime metálico é a nossa maior aspiração9 Os programas de uma e outra campanha eram o de menos Rui Barbosa conseguiu levantar a torcida O eleitor soberano compareceu para votar Sua vontade foi processada com os muitos instrumentos que o governo tinha para controlar eleições todos velhos conhecidos derrubadas força bruta pressão direta na escolha de quem podia votar falsificação de atas etc Rui Barbosa perdeu mas aproveitou para denunciar as violências deixando claro que a vontade do eleitor fora falseada e declarando ilegítimo o vencedor Dois padrões se estabeleciam Do lado conservador a clara noção de que os erros de fato nas previsões catastróficas feitas a partir de seu dogma metálico não significariam necessariamente a perda de poder político do lado dos derrotados na eleição ficava claro que haveria um longo caminho para transformar as eleições presidenciais em expressão da vontade do eleitor Mas ao menos houve uma vitória parcial dali em diante os eleitores passaram a considerar a hipótese de escolherem eles mesmos o vencedor Assim que passaram no teste político ainda no governo Nilo Peçanha os conservadores resolveram fazer o de sempre tentar anular as mudanças na economia e fazer voltar atrás o capitalismo As bases para o ataque foram cuidadosamente preparadas por Leopoldo de Bulhões Logo depois da posse mandou uma mensagem ao presidente propondo um novo destino para as reservas brasileiras acumuladas no Fundo de Garantia da Caixa de Conversão Sugeria que em vez de sustentar o câmbio baixo estável de 15 pence fossem empregadas com outra finalidade aquela prevista na lei de 1846 que marcava o padrão metálico brasileiro em 27 pence O Fundo de Garantia realizava este efeito tonificador acumulava ouro em depósito e à medida que o depósito ia aumentando transformava em aproximações progressivas a data do troco por ouro ou da reabilitação completa do meio circulante10 Julgando que essa interpretação anulava a necessidade de manter a estabilidade cambial passou a acumular dinheiro na Caixa de Conversão Os depósitos eram de 56 milhões de libras no final de 1908 o movimento cambial total de operações com moeda estrangeira no Brasil fora de 59 milhões de libras nesse mesmo ano Bulhões fez chover dinheiro contábil na base de acertos de contas com o Banco do Brasil e o Tesouro transferiu 94 milhões de libras dessas fontes para a Caixa de Conversão entre setembro e dezembro de 1909 elevando seus depósitos a 143 milhões de libras Pelas regras da Caixa o equivalente em milréis foi entregue aos fornecedores das libras Com isso o Banco do Brasil ficou com uma montanha de milréis em depósito e a necessidade de comprar libras no mercado para honrar seus compromissos nessa moeda Adiado para depois da vitória eleitoral o grande ato foi assim descrito no Parlamento pelo deputado Josino de Araújo O Banco do Brasil não empregou seus recursos para comprar ouro permitindo que o fizessem os bancos estrangeiros E era natural que os bancos estrangeiros tendo conhecimento de que a opinião do ministro da Fazenda era favorável à alta e o deputado Calógeras admite com sinceridade que essa razão psicológica pode ter contribuído em favor da alta levando em conta esta opinião publicamente revelada do ministro dizendo que as condições do Brasil autorizavam maior taxa fizeram muito legitimamente seu negócio isto é trataram de comprar ouro por menor preço para vendêlo para a Caixa de Conversão por preço certo Era uma operação que podiam tentar com total segurança graças à posição inerte do banco oficial11 Em bom português o governo brasileiro preparou o terreno para uma manobra especulativa explicitamente para que lucrassem os bancos estrangeiros que haviam perdido com a valorização do café e tivessem prejuízos os produtores brasileiros que ganharam com ela Em abril de 1910 no momento em que o Banco do Brasil mais precisava de divisas e a Caixa de Conversão estava abarrotada daquelas que lhe foram tiradas entraram libras esterlinas no país como há muito não se via Em apenas 45 dias entre o início do mês e 13 de maio investidores estrangeiros depositaram 6 milhões de libras mais que o movimento de todo o ano de 1908 e receberam os milréis equivalentes pela taxa de 15 pence Assim o total dos depósitos ultrapassou 20 milhões de libras Pela lei o câmbio podia então flutuar Só então o Banco do Brasil entrou no mercado e fez o possível para elevar a cotação comprou um quarto da produção de borracha da Amazônia em milréis para tornar ainda mais abundante a oferta de libras Depois foi comprando libras com cotações cada vez mais altas que chegaram a 18 pence em novembro A essa altura aqueles investidores estrangeiros que receberam 16 milréis por cada libra que depositaram em abril podiam comprar 1203 libras O banco oficial trabalhava para esse sucesso Mas a grande guerra era para arrancar o dinheiro que iria pagar essa conta e o alvo central eram os produtores de café de São Paulo Eles deveriam desovar o grosso da safra bem na época em que a pressão chegava ao auge Se vendessem como sempre em libras receberiam apenas 133 milréis por cada uma 27 milréis a menos que a cotação de abril Pagariam a conta da manobra especulativa ganhariam menos do que os fornecedores de libras teriam de lucro Mas então os cafeicultores receberam uma providencial ajuda O governo paulista tinha agora reservas de café e graças a elas acesso a créditos no exterior Não se sabe exatamente o que foi acertado entre o governo paulista e seus banqueiros internacionais mas o fato é que no momento em que os cafeicultores paulistas mais precisavam de empréstimos em moeda nacional para resistir ao cerco e deixar suas letras de câmbio tão guardadas como os milréis entesourados pelos bancos federais o socorro chegou Veio de uma fonte assim descrita por Cincinato Braga O Banco Agrícola Francês com sede em São Paulo e com ligações legais com o governo do estado ofereceu seus recursos para atenuar a situação da praça12 Os investidores estrangeiros vendo que não estava sendo possível comprar café com seus lucros preferiram ir comprando as libras baratas que estavam disponíveis no mercado graças à manobra altista do governo federal Como o café não ajudou na manobra a especulação se esgotou e a conta em vez de recair sobre os produtores de café como previa o plano original ficou para o maior especulador como mostra Winston Fritsch Em 22 de setembro de 1910 o ministério completamente desligado da opinião geral decidiu não alterar a taxa do Banco do Brasil Apesar das extraordinárias perdas de reservas que a posição gerou foi teimosamente mantida até o dia 15 de novembro A esta altura a sustentação da taxa superestimada custou quase todos os créditos em moeda forte do banco e algo em torno de três quartos das reservas londrinas do Tesouro13 Ao contrário do teste político o teste econômico da política conservadora levou a uma derrota acachapante que doeu apenas em suas teorias O dinheiro jogado fora era do governo do qual eles continuariam donos e a conta ficava para os contribuintes federais que não apitavam na hora de pagar Dessa forma os testes brasileiros se acabaram havia uma nova realidade econômica positiva de longo prazo fundada em conceitos novos e visando o desenvolvimento do capitalismo com medidas consensuais CAPÍTULO 60 Capitalismo no topo da velocidade do mundo A RESISTÊNCIA DO PLANO DE VALORIZAÇÃO DO CAFÉ AOS ATAQUES VINDOS DE dentro e de fora do Brasil fez com que se tornasse um ponto de referência assinalando um antes e um depois na história econômica do país como se vê nesta análise de Carlos Peláez e Wilson Suzigan Durante a valorização do café a economia brasileira experimentou pela primeira vez uma taxa de crescimento real per capita superior à dos Estados Unidos A taxa foi provavelmente maior que 2 ao ano Com base em qualquer dos indicadores de preços podese concluir que a economia cresceu rapidamente1 Afirmações como essa mostram o momento a partir do qual volta a existir certo consenso entre os econometristas A unanimidade anterior para recordar era aquela referente aos 70 anos do Império como sendo um período de total estagnação da economia no qual a renda per capita permanecera inalterada Agora a unanimidade se dá nas circunstâncias de uma economia em crescimento com taxas superiores às dos Estados Unidos o que merece outro tipo de comparação Em seu livro O capital no século XXI o econometrista Thomas Piketty distingue períodos uniformes na evolução econômica dos países do Ocidente como um todo2 Um desses períodos de 1820 a 1913 tem como característica principal o fato de que a economia teria passado por uma profunda transformação decorrente da disseminação do capitalismo As revoluções burguesas teriam rompido os limites da aristocracia e dos impedimentos estamentais para a acumulação do capital Com o domínio deste sobre o trabalho assalariado desencadeouse uma espiral de crescimento cujo resultado aparece com toda a sua potência nos números apresentados no livro O ritmo de crescimento da produção econômica passou de 05 para 15 ao ano enquanto o crescimento demográfico subiu de 04 para 06 Em consequência dessas duas tendências o crescimento da renda per capita ganha uma velocidade exponencialmente maior do que o conhecido desde a préhistória de 01 ao ano no período denominado por Piketty de o longo século XIX o crescimento das economias capitalistas salta para 09 anuais Esses números relativos às economias do Ocidente como um todo dão uma dimensão comparativa para a análise do caso brasileiro Sair de um patamar de crescimento da renda per capita próximo a zero e alcançar em apenas 16 anos um ritmo de crescimento muito superior ao da média do crescimento mundial e até mesmo da nação ocidental mais bemsucedida naquele período histórico não era um evento trivial Tal ruptura significava uma mudança de eras uma passagem acelerada do mercantilismo para o capitalismo do Antigo Regime dos monopólios da era do capital comercial e dos governos que os mantinham para a acumulação de riqueza nos mercados O comparativo mundial também evidencia outro ponto A alteração radical de comportamento da economia brasileira ocorreu num mesmo período evolutivo da economia ocidental como um todo Mas não foi uma revolução trazida de fora e sim uma revolução construída aqui dentro No plano mais básico o papel mundial do Brasil continuou o mesmo nesse período exportador de café e outras matériasprimas agrícolas No que se refere à inserção global da economia brasileira não se deu nenhuma mudança estrutural entre o período de estagnação e o de crescimento acelerado O marco da mudança de padrão é claro o Plano de Valorização do Café Não é um marco da exportação mas do desenvolvimento interno do país Mesmo continuando a ser um produtor cafeeiro o Plano de Valorização colocou o Brasil em outra posição no mundo a começar pela autoria Era um plano inteiramente elaborado no Brasil e por brasileiros Mas foi capaz de despertar a atenção de investidores mundiais Mais que isso foi considerado tão bom que um governo sem recursos conseguiu captar no exterior os recursos para pagar a conta Mas sobretudo conseguiu mudar radicalmente as relações financeiras e econômicas da economia brasileira Desde a Independência o Brasil era fundamentalmente um devedor de recursos Mais precisamente uma nação cujo governo central vivia preso à sua dívida externa e fazia isso até mesmo com consciência pedindo ajuda ao gênio inglês para permanecer atado a seu banqueiro e para manter desatados do capitalismo os seus cidadãos Jamais acumulara reservas significativas isto é reservas não atreladas às dívidas O Plano de Valorização do Café mudou a situação O governo de São Paulo tornouse senhor de um estoque de mercadorias no exterior a contrapartida da dívida para com aqueles que haviam fornecido o dinheiro para as compras Logo ficou claro que o estoque valia muito mais do que a dívida Com isso o estoque passou a ser um passe para levantar dinheiro quase uma reserva internacional líquida Essa passagem da posição de devedor temeroso para a de dono do próprio nariz financeiro foi uma decorrência do Plano a despeito de todo o esforço do Banco Rothschild detentor do monopólio sobre as dívidas do governo federal do Brasil A derrota foi tripla para o banco perda da ascendência sobre a política econômica brasileira perda dos ganhos de monopólio sobre o financiamento dos entes públicos e perda de oportunidades no financiamento do comércio exterior Essa última pode ser medida de maneira muito direta Os financiadores do Plano de Valorização do Café eram originários sobretudo de quatro países Bélgica França Alemanha e Estados Unidos Em 1905 esses quatro países adquiriram 65 dos produtos exportados pelo Brasil e venderam 24 dos produtos importados pelo país3 Em 1913 vitorioso o investimento compraram 61 dos produtos uma proporção menor que antes do Plano mas venderam 46 dos produtos importados pelo Brasil quase o dobro da proporção anterior à associação Isso ocorreu em parte à custa da GrãBretanha Antes do Plano de Valorização em 1905 esse país fornecia 272 das importações brasileiras em 1913 a proporção havia decrescido para 23 Mas a grande queda registrouse nas compras dos produtos brasileiros pelos ingleses em 1905 estes adquiriram 18 das exportações brasileiras em 1913 essa proporção havia caído para apenas 12 um terço a menos que no período anterior A transformação das posições de mercado e das finanças permitiu outra mudança interna de longo prazo O Plano de Valorização do Café não foi feito para produzir mais café e continuou em vigor a proibição de novas plantações mas como bem colocou Augusto Ramos visava produzir mais riqueza no Brasil a partir do café Todo o forte crescimento nacional não em um estado mas em toda a economia brasileira que se seguiu ao êxito do plano era basicamente um crescimento do setor industrial em ritmo muito maior que o da agricultura Uma tradução direta dessa prioridade republicana de duas fases uma por ocasião das medidas tomadas por Rui Barbosa outra depois do Plano é visível na proporção de equipamentos importados para a produção industrial no total das importações brasileiras Um indício de que o crescimento industrial teve início antes da mudança de regime é o aumento dessa proporção da compra de equipamentos nos últimos anos do Império de apenas 1 em 1880 ela mais que dobrou até 1889 quando atingiu 264 A mudança de regime ocasionou imediata acentuação da tendência com as importações de equipamentos para a indústria subindo para 55 do total das importações A partir daí registrouse um lento declínio com queda para 34 em 1897 A recessão provocada por Campos Sales golpeou com força essa espécie de investimento em 1901 apenas 17 das compras no exterior foram de equipamentos industriais menos do que nos últimos anos do regime monárquico Ao longo do governo Rodrigues Alves o patamar foi se recuperando e chegou a 3 em 1905 ainda bastante inferior ao da primeira década republicana A Política de Valorização do Café permitiu não só retomar o crescimento mas estabilizálo num nível elevado até 1913 último ano antes da Primeira Guerra Mundial o evento que encerraria o longo século XIX quando as importações de equipamentos foram de 28 milhões de libras esterlinas um recorde histórico de volume representando 42 do total das importações Desse modo tornase compreensível o modo pelo qual o regime republicano como um todo foi encontrando o caminho para o desenvolvimento A passagem da estagnação secular da monarquia para a dinâmica republicana acelerada num ritmo de crescimento superior ao das economias ocidentais está muito mais relacionada às mudanças internas do que ao cenário externo Essas transformações podem ser entendidas por meio de uma exposição de Augusto Ramos redigida em 1910 com outros colaboradores do plano em especial o ex deputado José de Barros Franco Enquanto buscava capitais e supervisionava a implantação de um novo empreendimento a construção do bondinho do Pão de Açúcar obra tida como visionária e sem sentido econômico na época Augusto Ramos voltou ao combate contrapondose à política do ministro Leopoldo de Bulhões Seu argumento começava com a observação de que no mais fundo dos sertões havia unidades produtivas uniformes O Brasil é um vastíssimo campo de trabalho dividido em regiões constituídas por núcleos economicamente autônomos mas entre si ligados por indissolúvel solidariedade Essa solidariedade prende entre si as várias regiões constituindo uma dilatada federação econômica5 Além da uniformidade nos laços internamente se organizavam segundo várias modalidades de associação de trabalho e capital Nas regiões genuinamente agrícolas qualquer de seus núcleos é constituído em geral por uma propriedade central seja simples sítio fazenda ou usina rodeada de operários assalariados ou de empreiteiros ou ainda de arrendatários que mediante um acordo com o proprietário lhe cultivam a terra em troca de uma remuneração6 Dada a concordância entre as partes havia produção com receitas variadas Sempre que se tornou possível um contrato capaz de vincular os riscos e proventos das duas partes interessadas esse contrato foi aceito de comum acordo por ambas Assim a cana produzida é paga por um preço frequentemente ligado à produção do açúcar o café é cultivado a meias em vários estados o milho à terça etc7 Na época Augusto Ramos era o único a reconhecer a produção do sertão secularmente organizada por acordos entre produtores independentes firmados entre empreendedores e empresários como uma formação essencialmente ligada ao mercado visando enriquecimento e acumulação sem a qual tudo definhava Cada vez que por inviável ou por um acidente qualquer fechava a porta um destes estabelecimentos os operários viamse atirados à miséria como imediatos participantes da sorte de seus patrões8 Além de responderem a estímulos de mercado e não por serem produtores restritos ao mínimo de subsistência esses conjuntos se constituíam eles mesmos em peças importantes para outros mercados O conjunto dessas grandes figuras de nossos campos patrões e operários constitui também a grande classe dos consumidores9 Essa estrutura que produz e consome constituía a base do mercado interno brasileiro numa cadeia de trocas Cada região no limite de sua importância fornecese do produto das outras e nelas encontra outros tantos consumidores O charque do Rio Grande caminha semanalmente até o extremo Norte semeando seus contingentes de porto em porto e de lá enviando de retorno as mercadorias de que carecem os rio grandenses Pernambuco e outros estados do Norte despejam em Santos três quartas partes do açúcar que ali se consome maior contingente fornecendo ainda ao Rio de Janeiro e tanto Santos como o Rio de Janeiro retrucam com o que sabem produzir as regiões ao redor10 Dessas trocas internas da produção rural resultaria a prosperidade nas grandes cidades As cidades do litoral arvoradas naturalmente em entrepostos do interior recebem produtos exportáveis e para o interior enviam os que das outras regiões lhes são destinados sendo tributárias das lavouras cuja boa ou má sorte partilham como membros da mesma família e construtores do mesmo edifício Perguntese ao negociante do Rio Grande do Paraná de São Paulo por que prospera ou definha e ele invariavelmente responderá porque estão em alta ou em baixa o café o charque o mate o fumo ou o açúcar11 Esse conjunto comandado desde os sertões era o centro da vida econômica nacional com o comércio externo absorvendo apenas as sobras O centro de todo o sistema ninguém o contestará é a lavoura este formigueiro de gente que em todos os sentidos revolve os vargedos e as encostas de nosso território e do seio arranca produtos de toda sorte que movimentando os entrepostos derramamse cruzando em viagem pelo país inteiro e indo transbordar sobre o exterior e ali motivando a importação12 Também diferentemente da imensa maioria de seus contemporâneos ele via nesse complexo produtivo interno de trocas com o sertão o âmago de todos os interesses econômicos relevantes do país São produtores todos e todos consumidores Sendo avaliada em 90 a nossa população agrícola em relação à nacional é evidente e absolutamente incontestável que prejudicar a produção agrícola do Brasil igualmente prejudicará a pelo menos 85 dos brasileiros13 A partir dessas considerações ele criticava violentamente as justificativas do ministro Bulhões para especular com a alta do câmbio centradas no barateamento do custo de vida nas grandes cidades pela facilidade de importar alimentos Um economista sensato jamais se lembraria de lançar mão da valorização do câmbio para baratear a vida da população Revolver os cantos todos do país ferir suas classes fundamentais levar a perturbação a milhares de famílias indo sacudilas e despojálas até o mais remoto dos sertões sob pretexto de baratear a vida das populações do litoral seria positivamente uma obra de insensatos não fora o resultado de um enorme erro de apreciação O artifício deve ser condenado in limine por ser monstruosamente iníquo14 Com todas as letras ele deixava claro que o objetivo do ministro vinha a ser o mesmo de todos os pensadores conservadores desde o início do século anterior combater a indústria A causa do mal se houvesse nisso um mal é o nosso desenvolvimento industrial Será um mal necessário A não ser nas classes abastadas não se consomem no Brasil senão produtos de fabricação nacional15 O mesmo processo tem uma interpretação mais recente proposta por Wilson Cano Há uma crescente integração do mercado nacional com predominância cada vez maior da economia paulista Essa integração é ao mesmo tempo reveladora de um específico sistema de trocas interregionais de São Paulo para o resto do país aumentam continuamente as exportações de produtos industriais ao passo que as importações paulistas vão cada vez mais se constituindo de matériasprimas e de gêneros alimentícios demonstrando claramente uma relação estrutural de comércio típica de centroperiferia As importações provenientes de outras regiões supriam parcialmente a economia de São Paulo com alimentos e outros bens de consumo industrializados ou não passavam agora gradativamente a abastecer a economia paulista de gêneros alimentícios que eram escassamente ou dificilmente produzíveis em São Paulo açúcar minérios madeiras animais de corte etc16 Embora apresente o mesmo mecanismo de formação do mercado as trocas entre regiões essa explicação tem um foco diverso concentrase na indústria paulista afinal o tema do seu trabalho Isso é bem mais palatável ao entendimento por não se afastar da secular tradição de concentrar as significações no caranguejo Nesse caso com ferramentas atuais separar a formação da indústria da formação de um mercado interno o moderno do arcaico inclusive do ponto de vista geográfico Wilson Cano tem total razão sobre a natureza do crescimento trazido após 1906 com a industrialização acelerada sobretudo em São Paulo resultando de aumento das trocas com o restante do país Mas antes de entrar de vez nesse período vale a pena tentar responder à pergunta central deste livro com apoio tanto das suas ideias como das ideias de Augusto Ramos que relação há entre o surto de desenvolvimento econômico e os governos O plural aqui é mais necessário do que nunca começa na própria esfera mais alta de governo A passagem da Monarquia para a República se fez com uma reforma muito profunda nessa esfera o Poder Moderador foi eliminado e suas franquias distribuídas tanto para outras esferas de governo como para a sociedade Com isso a estrutura do governo federal era uma versão bastante desidratada da pletora de poderes imperiais Os governos estaduais ganharam parte do que foi retirado do centro porém o mais significativo foi o fim da intervenção do governo nas decisões econômicas dos cidadãos O governo central teve seu papel reduzido a uma entidade de registro legal e supervisão Isso terminou com a restrição do mercado às casas particulares como vinha ocorrendo desde os tempos de frei Vicente do Salvador e permitiu que compradores e vendedores atuassem em mercados públicos Impuseramse assim as formas capitalistas uma esfera privada de produtores e outra pública de um governo que dá suporte aos negócios privados É essa a rede de conceitos que Augusto Ramos aplica à formação brasileira e com ela mostra o capitalismo surgindo nas relações entre de um lado industriais e operários urbanos e de outro produtores independentes do sertão ligados ao capital comercial Não como relações mediadas pelo governo mas antes mediadas pelo interesse na riqueza Sociologicamente falando mostra duas estruturas que embora de composição diversa conseguiam se entender em prol de um objetivo comum apesar das diferenças sociais inerentes à acumulação de riqueza Nesse sentido o desenvolvimento que se registrou após o plano de sua autoria é apresentado como uma realidade favorável às duas partes mas que precisa ser defendida da ação do governo central no sentido contrário ao desenvolvimento É apresentado também num jornal como havia sido apresentado o seu projeto A despeito de todos os problemas o regime republicano trouxera alternância no poder As sucessões aconteceram pela regra marcada na Constituição impondose o cumprimento dos mandatos É certo que tais sucessões obedeciam mais ao ritual de sagração de um ungido pelo alto em conformidade com as noções de República da maioria conservadora do que por decisão do eleitor soberano o que estaria mais de acordo com o conceito de democracia Mas também é igualmente certo que apesar da tentativa por parte de Campos Sales de reforçar o modelo da sagração os primeiros mandatários adotaram abordagens muito diferentes no poder Houve variedade tanto do papel de presidente em relação aos outros poderes e à sociedade quanto dos objetivos de política econômica Com isso as gestões presidenciais apresentaram grau muito maior de alternância real na condução do país do que os antigos ministérios imperiais Também houve efetiva redistribuição de poderes entre a esfera federal e a estadual Mesmo com as imensas diferenças de recursos até mesmo o estado mais pobre contava com capacidade orçamentária bem maior do que nos tempos em que era província Em nível estadual também se registrou essa variedade de opções no poder desde a ditadura quase explícita no Rio Grande do Sul até a ousadia dos estados aliados em torno do Plano de Valorização do Café Tal variedade se refletia no leque de serviços públicos oferecidos com o dinheiro arrecadado Com raras exceções a prestação regular de serviços de educação segurança pública saneamento e suporte a investimentos produtivos acabou sendo na prática reservada aos estados limitandose a federação àquilo que fazia nos tempos do Império inclusive no que se refere ao funcionalismo Nos municípios porém é que a variedade mostrouse muito maior Começaram a se destacar os mais ricos os centros do comércio eou da indústria capazes de prover infraestrutura urbana e até de lazer Mas em todos mantevese a tradição secular das eleições e dos governos eleitos assim como da solução de todo tipo de problemas e isso ainda era quase toda a atividade de governo na maior parte do território brasileiro onde havia mercado e as tais unidades agrícolas descritas por Augusto Ramos Enfim em relação aos tempos coloniais quando predominou a aliança entre TupiGuarani e portugueses num primeiro momento e a miscigenação geral depois do ouro o Plano de Valorização do Café trouxe uma mudança radical tornando a relação entre o industrial que produzia e o sertanejo que consumia esses produtos o elemento crucial para o crescimento da economia brasileira agora sob a forma de um mercado interno capaz de por si mesmo alimentar a espiral de acumulação Augusto Ramos o homem que formulou essa visão era um empresário privado interessado na riqueza da nação autor de um plano que resultara de fato em produção de riqueza comandada pelo setor privado e arrancada em momentos favoráveis de diversas instâncias de governo mas também em luta direta com o governo central na maior parte dos oito anos decorridos entre a concepção inicial e a concretização bemsucedida do plano O sucesso não se media pelo governo mas pelo fato de o setor privado ter colhido efetivamente os frutos do crescimento Cálculos de econometristas indicam que a soma dos tributos recolhidos por todas as instâncias de governo nessa época giravam em torno de 6 do PIB ou inversamente que o setor privado ficava com 94 do valor da produção nacional Os parcos 6 do setor público tinham de ser divididos Em termos de distribuição dos recursos entre as esferas de governo a União ficava com cerca de 35 do PIB os estados com 2 e os municípios com 05 Eram governos pequenos no tamanho modestos nas oficinas que se distribuíam inversamente à riqueza os municípios prestavam muitos serviços para muita gente os estados concentravam um pouco mais a clientela e o governo federal servia a uns poucos Mas essa composição também era um indicativo de problema Assim como o derrotado ministro não conseguiu fazer o crescimento voltar atrás o setor privado não teve forças para fazer o governo andar para a frente CAPÍTULO 61 19101918 tempos excruciantes I HERMES DA FONSECA FOI O PRIMEIRO POSITIVISTA A CHEGAR À PRESIDÊNCIA DA República por meio de eleições Resolveu passar os seis meses entre o pleito e a posse na Europa acompanhando manobras militares na Alemanha Planejou uma volta com estilo no início de outubro de 1910 embarcou no encouraçado São Paulo que fazia sua viagem inaugural A embarcação representava um grande salto tecnológico era o navio de guerra mais avançado da época com uma dúzia de canhões de 10 polegadas o navio mais poderoso da frota inglesa possuía apenas dez couraça de 24 centímetros de espessura no mais poderoso encouraçado inglês eram 18 centímetros Tanto poder de fogo contudo requeria destreza o coice dos canhões era tão violento que exigia ordem precisa de disparos havia comportas a serem manobradas de modo coordenado as quatro turbinas deviam ser controladas com cuidado As novas tecnologias influenciavam até o relacionamento entre os tripulantes todos marujos especializados e obrigados a conviver em espaços apertados Em vez da secular tradição de alojamentos e refeitórios separados para oficiais e marinheiros todos partilhavam um único ambiente No dia 25 de outubro o encouraçado aportou no Rio de Janeiro ao lado de seu gêmeo o Minas Gerais Cada um deles custara o equivalente a 1 milhão de sacas de café A manobra de atracagem foi acompanhada pelos apitos e tiros de saudações de uma verdadeira frota de belonaves estrangeiras ali presentes para abrilhantar a festa de posse de alguém que apreciava as demonstrações militares O navio projetava uma imagem de orgulho poderio modernidade à altura de uma elite que se pensava como civilizada Depois de desembarcar o marechal foi conhecer a máquina de governo que comandaria Em sua ausência coubera ao senador Pinheiro Machado formar o ministério Ele ainda providenciara a criação de um partido de apoio o Partido Republicano Conservador O senador também conheceu o primeiro problema de governo derivado do entusiasmo por afinal exercer o poder que tanto almejara Pelas regras da política dos governadores o governador do Amazonas Antônio Bitencourt amigo pessoal do presidente Nilo Peçanha arranjara votos para o futuro presidente Mas o senador Pinheiro Machado tinha outros planos Conseguiu que o Exército substituísse o comandante militar da região trocando um general pelo coronel Pantaleão Telles que foi encarregado de dar um ultimato ao governador para que deixasse o cargo Era uma retomada da velha praxe das derrubadas agora com um novo agente a força militar nacional à qual pertencia o presidente Várias reações foram aumentando o custo da manobra Pela imprensa o general deposto protestou contra o uso político do Exército Ao receber o ultimato o governador telegrafou ao presidente Nilo Peçanha que sem saber de nada garantiu que o governador estava seguro Bittencourt negou se a deixar o cargo O coronel mandou bombardear a cidade atingindo entre outros edifícios a Santa Casa e a igreja dos Remédios Nas ruas as tropas investiram contra os soldados da polícia estadual Cônsules estrangeiros negociaram a entrega do poder Assim que soube de tudo Nilo Peçanha denunciou a manobra no Parlamento e exigiu que os ministros militares depusessem o coronel e voltassem tudo atrás A sangrenta e desastrada intervenção foi uma má notícia temporária para o marechal prestes a tomar posse mas reveladora de que a derrubada imperial estava de volta duas décadas após a extinção do regime monárquico continuava sendo uma prática muito cara aos positivistas Já outra má notícia era de longo prazo o fracasso da manobra especulativa contra o plano do café tinha custado não apenas as reservas mas toda a capacidade do governo federal para influir na economia Nos próximos anos mal e mal pagaria as contas Bastou uma semana de governo do marechal para explodir o conflito Na noite de 22 de novembro após sessão de açoite de um marinheiro num dos encouraçados o radiotelegrafista João Cândido desencadeia o motim Os marinheiros assumem o controle dos dois encouraçados e do cruzador Bahia A frota comandada pelo novo almirante manobra com grande precisão Pelo rádio é transmitida a única exigência dos amotinados o fim dos castigos físicos na Marinha A notícia corre na capital e como se trata de uma cidade com meios modernos de comunicação um jornalista consegue subir a bordo Colhe declarações do líder da revolta já alcunhado de Almirante Negro Isso de almirante é uma miséria Nunca despi minha blusa de marinheiro Sou marinheiro e hei de morrer marinheiro dentro deste ou de outro navio E me orgulho de dizer tal coisa Luto apenas para que as carnes de um servidor da pátria só sejam cortadas pelas armas dos inimigos nunca pela chibata de seus irmãos Não nos queixamos de trabalho que tanto fatiga nem da miséria que ganhamos pois aqui não se vem para encher o bolso A chibata avilta É castigo para animais ou escravos O soldado é um pouco mais que isso1 A cidade aplaude o marinheiro negro que falava como cidadão de uma República onde todos tinham direitos O Parlamento também aprova uma anistia solene aos marinheiros e João Cândido se torna herói popular Vencedor João Cândido devolve o comando dos navios intactos Enquanto isso oficiais das marinhas de todo o mundo presentes na baía avaliam o desempenho da Armada brasileira impotente para reagir às manobras dos amotinados Essa visão de fora torna ainda mais duro o problema de dentro o convívio entre cidadãos estava entranhado tanto no projeto dos navios modernos como na mente do simples marinheiro que sabia comandar tudo mas não na mente dos oficiais formada na lógica do Antigo Regime na separação radical entre senhor e escravo que justificava o uso da chibata Essa lógica antiquada emergia agora num cenário novo e cruel para o governo federal Com o capitalismo e a igualdade formal entre os cidadãos a ação governamental teria de dar conta de uma nova configuração social na qual não bastava mais reafirmar uma velha ordem aquela que separaria um governo no alto e uma sociedade muito abaixo A estreia do marechal nessa seara não se limitou a obedecer a lei no caso a da anistia A maior parte dos oficiais e muitos políticos conservadores reagiram na forma da lei civil vigente que trazia resquícios das seculares Ordenações as quais não reconheciam cidadania nem direitos de nenhuma espécie dos súditos contra o Estado Com apoio superior os oficiais atacaram Marinheiros foram submetidos a maustratos em massa Diante de um protesto na ilha das Cobras os navios iniciaram o bombardeio enquanto o presidente decretava estado de sítio Morreram 550 dos 600 marinheiros que estavam na ilha 22 líderes da revolta mesmo anistiados foram presos numa cela sem janelas na qual os oficiais jogaram cal depois de trancarem a porta Dois dias depois quando foi aberta só restava um vivo João Cândido Levado para um hospital escapou de ser embarcado com outros 200 marinheiros num navio civil que zarpou rumo ao Norte Durante a viagem muitos acabam fuzilados outros jogados ao mar Os sobreviventes foram despejados nus nas barrancas do rio Amazonas Tudo isso só foi possível mantendo censura à imprensa o que impediu por meses a discussão do caso João Cândido foi processado e expulso da Marinha2 Era um sinal dos tempos Depurada das exigências de cidadania a força militar tornouse o principal instrumento dos positivistas no governo federal O figurino repetiuse em muitos estados candidatos derrotados em eleições estaduais alegavam fraudes solicitavam a intervenção federal que vinha sob a bandeira do salvacionismo sempre resgatando militares e massacrando civis Em Pernambuco para impor como governador o ministro da Guerra general Dantas Barreto foi preciso transformar Recife em praça de guerra o Exército o conduziu ao palácio em meio a tiroteios e morticínios malgrado o irrelevante fato de ele ter perdido a eleição Na Bahia foi pior ainda o general comandante da praça enviou um ultimato ao governador para que renunciasse em uma hora Diante da recusa repetiuse em escala ampliada a tática inaugurada em Manaus pelos indicados de Pinheiro Machado A cidade foi bombardeada e centenas de pessoas morreram em meio a grandes incêndios O Supremo Tribunal Federal garantiu a volta do governador ao palácio o que só provocou a continuidade do massacre até que o escolhido do governo o ministro do Interior tomasse posse Em Alagoas os mesmos métodos colocaram no governo Clodoaldo da Fonseca militar e primo do presidente e as vítimas chegaram ao milhar No Ceará a mesma coisa o governador foi deposto a bala pelo Exército registrandose centenas de mortes Como o empossado não conseguiu estabilidade cinco governadores se revezaram no posto nos cinco anos seguintes durante os quais em meio às guerras se percebeu o sinal oposto o crescimento econômico chegava ao mais fundo do sertão Cícero Romão Batista era o típico padre secular dos tempos do Império filho de família pobre e empreendedor Em 1873 tornouse pároco no arraial de Juazeiro que nem sequer era vila Em março de 1889 começou a se espalhar a notícia de um milagre feito pelo padre uma hóstia transformada em sangue Embora atraísse fiéis a história não caiu bem entre os seus superiores No Brasil a Igreja Católica havia passado da alçada do governo para a do Vaticano e os novos responsáveis não apreciavam santos de casa fazendo milagre após um inquérito o milagre foi negado e o padre proibido de administrar sacramentos Este voltase então para aquilo que lhe é permitido fazer negócios e política Do lado econômico a força de seu prestígio é suficiente para fixar pequenos produtores ao redor do vilarejo que vira um centro de abastecimento regional e núcleo de produção de algodão Como político ele se envolveu na guerra civil iniciada pela intervenção no estado a mando do marechal Hermes e obteve vitórias locais sendo nomeado prefeito do recémcriado município de Juazeiro do Norte Como administrador acelerou o progresso capitalista na região que se refletia na movimentação em sua casa uma fila permanente na porta sempre aberta na qual se viam candidatos em busca de voto ingleses compradores de algodão comerciantes atacadistas do Recife pedintes de favores políticos e romeiros que afluíam de todos os lados para conhecer o santo milagreiro O progresso veio tão depressa que nem a hierarquia da Igreja podia mais ignorar tanto movimento Em 1916 o bispo do Ceará recebeu ordem para excomungar o padre Cícero em vez disso preferiu criar uma paróquia restaurar em parte as ordens do padre e obter o controle financeiro do santuário A partir daí o padre voltou a rezar missas e pregar do púlpito Além da indústria o turismo religioso tornouse fonte de renda da cidade que progredia depressa Esse progresso fundado na ação e na autoridade locais em meio a uma incerteza quase completa sobre aquilo que seria governo nas situações estaduais criadas pelo salvacionismo aconteceu também em outras localidades como por exemplo Campina Grande na Paraíba Caruaru e Petrolina em Pernambuco e Juazeiro e Feira de Santana na Bahia Também em São Paulo uma derrubada começou a ser armada Havia um candidato hermista o senador Rodolfo Miranda Havia uma desculpa oficial a necessidade de empregar o Exército para colaborar no massacre dos índios Caingangue Havia a possibilidade de que a eleição fosse de fato conflituosa o governador Albuquerque Lins aliado de Rui Barbosa a ponto de ser o vice em sua chapa tinha o controle do partido e até um sucessor de coração Olavo Egydio colaborador no Plano de Valorização do Café desde o primeiro minuto depois senador Mas em São Paulo o peso de certos fatos econômicos influía na política Em 1911 a cotação do café era 53 superior à de 1907 Com isso o estoque de café do governo ficava avaliado em 216 milhões de libras esterlinas e a dívida sobre ele era bem menor que os 15 milhões de libras iniciais o que proporcionava larga margem de crédito para o governo Além disso como não se plantava café em São Paulo o imenso lucro dos cafeicultores não retornava à produção agrícola e em sua maior parte acabava aplicado em bancos que se viram cheios de dinheiro para emprestar aos empresários e os industriais eram aqueles que mais tomavam empréstimos para ampliar os negócios Desse modo a indústria vinha crescendo de forma explosiva e não apenas aquela para o mercado local Nos 10 anos entre 1897 e 1907 a venda de tecidos das indústrias paulistas para outros estados brasileiros saltou de 274 contos para 15 mil contos as vendas de chapéus foram de mil contos para 24 mil contos as de solas de 164 contos para 17 mil contos O restante das exportações industriais de 1897 estava agrupado numa única rubrica alfandegária com valor de 234 contos Em 1907 vários itens já haviam sido discriminados desse grupo calçados com vendas no valor de 54 mil contos aniagem 27 mil contos cerveja 12 mil contos3 O indicador mais claro da mudança eram os depósitos bancários que dobraram entre 1906 e 1910 passando de 918 mil contos para 1846 mil contos Esse incremento quantitativo provocou uma mudança qualitativa assim descrita por Anne Hanley Após 1906 os bancos domésticos se transformaram em verdadeiros intermediários institucionais Essa mudança é crítica para o desenvolvimento econômico porque reduz a importância dos laços pessoais na obtenção de capital Com a intermediação impessoal um empreendedor precisava agora muito mais de uma boa ideia e um sólido plano de negócios que de conexões pessoais para obter dinheiro4 Tudo isso eram interesses do setor privado motor do desenvolvimento que os políticos levaram em conta O próprio Olavo Egydio achava má estratégia abrir espaço para uma disputa e se dispôs a abrir mão do governo seu grupo resolveu ressuscitar o expresidente Rodrigues Alves convidandoo para ser governador numa chapa única Ele convenceu os conservadores que convenceram Rodolfo Miranda a desistir em troca da indicação de um terço dos deputados Com o apoio nas mãos o expresidente foi ao Rio de Janeiro e negociou um acordo de não intervenção com os hermistas e o presidente afinal acertado em 8 de janeiro de 1912 Uma semana depois aconteceu o tradicional banquete de sagração do candidato que dessa vez sagrava um acordo de substância Nele o expresidente Rodrigues Alves agora falando como futuro governador fazia um mea culpa sobre o Plano de Valorização do Café Deve ser considerada como um dos maiores acontecimentos dos últimos tempos a solução dada neste estado ao problema da valorização do café não só pela audácia do empreendimento como pelo volume considerável dos valores envolvidos no conjunto da operação Não tive a fortuna de estar de acordo com algumas das ideias que se entrelaçaram no encaminhamento daquela solução sem que esta divergência pudesse significar desapreço aos que a promoveram5 Depois mostrou a grande vantagem de ser um conservador aderiu por completo à mudança já efetuada e aos homens que tiveram de lutar contra ele para realizar a mudança pois tudo agora seria irreversível e digno de conservação Tão digno que agora os reconhecia como aliados enquanto os defensores da política conservadora anterior eram convidados a rever também suas posições Os que assim raciocinam estão persuadidos que as opiniões por mim manifestadas sobre a Caixa de Conversão e a valorização do café não podem explicar a minha convivência política com os homens públicos que tiveram a responsabilidade por essas grandes providências e as executaram É um desacerto de apreciação Instituições fundadas em lei à sombra delas foram criadas numerosas relações de direito fizeramse contratos levantaramse empresas industriais foram contraídos compromissos de várias espécies como sem grave ofensa ao critério dos que dissentiram com mágoa de algumas das indicações formuladas recear que ação deles possa no governo exercerse no sentido de não acatar uma situação geral daquela natureza6 Com isso tornouse líder nacional da adesão dos conservadores às novas realidades da regulação do mercado de café do câmbio baixo e da emissão de moeda em níveis que levassem em conta a expansão do mercado interno e testemunha do crescimento da indústria Em torno desse novo programa conservador formouse a chapa para a sucessão presidencial Dessa vez o mesmo Venceslau Brás que abandonara Afonso Pena abandonou o marechal Hermes e Pinheiro Machado Como estava se tornando tradição na República na forma de uma surpresa o vicepresidente ganhou o apoio do presidente por sua fidelidade que acabou no dia da sagração Venceslau Brás descartou os positivistas que ajudara a colocar no governo prometendo aos governadores que não haveria derrubadas nem apoio a intervenções ditatoriais nos estados A paz conservadora permitiu inclusive um progresso real inusitado no dia 1o de janeiro de 1916 foi promulgado o primeiro Código Civil brasileiro a lei destinada a marcar a regulação estatal das relações entre as pessoas e destas com o Estado Ele começaria a valer um ano depois tempo necessário para que juízes estudassem a nova lei e jogassem fora as centenárias versões das Ordenações do Reino e dos alvarás régios dos tempos coloniais que ainda funcionavam como leis válidas no Brasil Mas a mudança coincidiu com a total erradicação das forças políticas sensíveis a mudanças no papel do governo como aquelas trazidas pelo Programa de Valorização do Café O massacre pelos conservadores foi impiedoso Os jovens colaboradores de Afonso Pena tiveram suas carreiras cortadas Davi Campista foi mandado para a Noruega como embaixador o presidente da Câmara Carlos Peixoto e o líder parlamentar do governo James Darci foram excluídos da política ainda no governo Hermes da Fonseca A partir da exclusão de Francisco de Sales o governador que assinara o Convênio de Taubaté o Partido Republicano Mineiro passou a ser controlado com mão de ferro a partir do palácio de governo Em São Paulo Rodrigues Alves mostrou que o convívio com os criadores do Plano de Valorização não incluía sua transformação em autoridades na esteira da escolha de Venceslau Brás expulsouos do Partido Republicano Paulista interveio para transformar a Comissão Permanente em extensão do palácio e fez um sucessor pensando na própria candidatura a presidente Assim enquanto perdiam a capacidade de intervir na economia os conservadores usaram o monopólio político para se perpetuarem no governo central e se consolidarem nos governos estaduais a ditadura positivista gaúcha passava a ser a única nota destoante Com cada locomotor puxando de novo para um lado como nos tempos da decadência imperial os choques entre uma sociedade cada vez mais moderna e um governo aferrado ao arcaísmo foram se repetindo em escala ampliada Em 1917 eclodiu em São Paulo uma greve geral que mobilizou centenas de milhares de operários de milhares de empresas em torno de um conflito trabalhista e o governo paulista comportouse como agente conservador atarantado Os operários queriam mais salários os patrões queriam mais trabalho Começaram a aplainar suas diferenças com uma pauta de negociação Já o governo queria ordem e agiu com violência com a polícia matando um operário no Brás e prendendo lideranças que eram importantes para negociar A greve se expandiu e os tumultos aumentaram até que as partes privadas encontraram um caminho fazer as rodadas de negociação na sede de O Estado de S Paulo jornal cujas posições eram favoráveis aos grevistas e deixar o governo de fora da conversa Sem a presença do intermediário incômodo as diferenças se acertaram em um dia Mas o acordo foi muito difícil de ser implementado na parte que envolvia o governo As razões mais diretas podem ser encontradas no diário íntimo do governador Altino Arantes no qual ele registrou as seguintes definições Minhas impressões sobre o movimento grevista que acabáramos de assistir do manifesto mentiroso e francamente ameaçador que os jornais da manhã ou melhor que O Estado de S Paulo divulgara assinado por uma intragável Liga de Defesa Operária e de outros indivíduos veementes a conclusão a se tirar era que no fundo de toda essa injustificável agitação o que havia era nada mais nada menos que uma clamorosa exploração política contra o governo do Estado e contra a ordem Os inimigos eram aliás bem conhecidos e nesse caso não se ocultaram convenientemente O seu reduto estava no Estado de S Paulo e os seus antecedentes parlamentaristas monarquistas ou militaristas autorizam plenamente a convicção de se terem convertido à causa socialista ou mesmo anarquista7 Vendo as complexidades da sociedade capitalista pela óptica de uma antiquada noção de ordem o governador Altino Arantes misturou todos os agentes sociais capitalistas no mesmo balaio e deu ordens processar o jornal e os jornalistas prender ilegalmente operários e expulsar os estrangeiros do país aumentar o gasto de dinheiro público no jornal oficial do governo para fazer campanha contra os desordeiros Tinha a mesma visão das relações entre governantes e governados herdada das Ordenações e empregada no tratamento cruel dos marinheiros da Revolta da Chibata com leves nuances de atualização Na via inversa o mundo privado continuou se relacionando entre suas partes para transformar a sociedade a despeito do governo CAPÍTULO 62 19171930 tempos excruciantes II NO DIA 12 DE NOVEMBRO DE 1917 O ARGUTO JORNALISTA JÚLIO MESQUITA ESCOLHEU para tratar em sua coluna Boletim Semanal da Guerra um tema que parecia marginal a tomada do poder pelos bolcheviques na Rússia Mais que isso atribuiu importância decisiva ao evento Se o mundo atual fosse o mesmo de pouco antes da guerra diríamos sem hesitar que a Rússia caminha a passos gigantes para uma ditadura para o mando severo e merecido de um general ousado e feliz Mas como não podemos sondar os mistérios do vastíssimo tumulto em que se forja a transição para um mundo novo e diferente não dizemos nada Suceda o que suceder tanto na Rússia como em toda parte existe latente o que na Rússia explodiu o mundo que há de vir por mais imperfeito que seja há de ser melhor que este que arde e se consome ao fogo inextinguível da própria maldade que o criou1 A oscilação entre passado e futuro valia também para a avaliação do papel do líder da revolução Lênin Suponhamos que o caso de Lênin é o de uma infâmia comum Perderá ele sem demora todo o prestígio perante os fanáticos que até este trecho da jornada cegamente o seguiram Mas se este agitador a soldo do inimigo de repente se emancipa e se nos revela um sincero impulsionado por uma paixão alta e nobre Nesta hipótese que não é nenhum sonho o leitor percebe facilmente que de todas as nações em guerra a Alemanha há de ser a primeira vítima da arma de dois gumes que imprudentemente manejou2 É muito raro um jornalista se debruçar sobre um evento lateral de um conflito mundial e nele vislumbrar uma era nascendo in fieri mas foi o que ocorreu nesse caso a revolução de massas de fato se tornou parte crucial do mundo que resultou das fornalhas da guerra Chegara ao fim o longo século XIX durante o qual o Iluminismo havia sido a teoria mais prestigiosa de organização dos governos Desde meados do século XIX desenharase a alternativa socialista que fundada na constatação do custo humano do capitalismo exigia outra espécie de governo Nos esboços iniciais de Karl Marx a estatização dos meios de produção e uma ditadura comandada pelo proletariado seriam o caminho para melhorar radicalmente a vida social O herdeiro por ele designado e editor dos volumes finais de O capital publicados após a morte de Marx Karl Kautsky juntamente com Edward Bernstein conheceram os efeitos do sufrágio universal e dos partidos de massa e conceberam a alternativa socialdemocrata na qual caberia ao Parlamento colocar o Estado no papel de regulador das relações entre capital e trabalho mantendo mercado e democracia Essa opção vinha se tornando dominante em vários países da Europa sobretudo na Alemanha e nos países nórdicos A vitória de Lênin revirou o jogo A alternativa revolucionária atraiu a atenção da Europa pósconflito e passou a ser defendida por novos teóricos num momento em que os sobreviventes do prolongado conflito mundial tentavam encontrar caminhos para um futuro menos tétrico No Brasil do governo federal e dos governos estaduais apesar da sua participação no conflito ao lado dos vencedores a discussão teórica sobre novas formas de organizar o governo foi vista como algo remoto confuso e desprovido de sentido Os consolidados rituais de sagração eleitoral se mantiveram inalterados com Rodrigues Alves sendo eleito presidente em 1918 Mas ele faleceu antes de tomar posse e Rui Barbosa foi lançado como candidato Aceitou desde que não fosse candidato oficial de governos Como tal hipótese era inconcebível para a elite política uma candidatura foi providenciada a de Epitácio Pessoa Embora estivesse na Europa discutindo o tratado de paz em nome do país obteve apoio de todos os governadores e da quase totalidade do Parlamento Rui Barbosa lançouse então em sua segunda campanha civilista Dessa vez seria uma campanha exclusiva da sociedade contra as candidaturas gestadas e paridas no interior dos palácios de governo Marcou a sua posição a partir de duas conferências de relevância simbólica uma para o capital na Associação Comercial do Rio de Janeiro outra para o trabalho dirigindose a uma plateia de operários no Teatro Lírico O tema de ambas era comum o lugar do governo na sociedade Para os empresários Rui Barbosa propunha uma nova era nas relações deles com o governo No lugar daquelas vigentes marcadas pelos pressupostos muito arcaicos de tutela estatal ele pregava o fim da fusão perversa de negócios particulares não privados mas particulares mesmo como eram considerados no Antigo Regime e pelos conservadores com o dinheiro público nos moldes mercantilistas do favor As belezas do presidencialismo brasileiro escorraçaram dos augustos laboratórios da legislação republicana o talento a eloquência a verdade Baixaram de legislatura em legislatura naqueles recintos consagrados à caricatura da soberania nacional o nível da capacidade e do decoro da independência e da respeitabilidade poluíram a vida parlamentar de chagas inconfessáveis de segredos tenebrosos de máculas sem nome Na publicidade lado a lado com os grandes órgãos onde se guarda a herança do pudor abriamse as casas de mancebia política teúda e manteúda com o dinheiro público donde saem à praça tais quais messalinas transfiguradas no Carnaval em gênios anjos e deidades as mais feias culpas do governo engalanadas como as mais finas joias da palavra É a corrupção das consciências exercida não à penumbra das alcovas como os vícios pudendos pelos libertinos mas à luz da publicidade Todo mundo conhece nomeia e censura todos os que compram e os que vendem3 E foi claro não haveria virtude porque os votos não falariam a verdade da soberania do eleitor A convenção de fevereiro venceu e vencerá Vencerá e venceu como vence o mal quando o bem capitula Venceu e vencerá como vencendo estava a barbárie alemã Venceu e vencerá como não teria vencido e não haveria de vencer se o nojo contra ela na sociedade brasileira pudesse reanimar de repente as urnas eleitorais e arrancar delas o sentimento nacional num voto onde pela primeira vez nesse regime se reconhecesse a expressão da verdade4 As relações com o Estado também foram o foco da conferência feita para os operários Mas nesse caso tratavase em vez de diminuir de aumentar a área de atuação governamental o que exigia daquele senhor às vésperas de completar 70 anos uma revisão das próprias crenças a começar da noção de direitos individuais A concepção individualista dos direitos humanos tem evolvido rapidamente com os tremendos sucessos deste século para uma transformação incomensurável nas noções jurídicas do individualismo restringidas agora por uma extensão cada vez maior dos direitos sociais Já não se vê na sociedade um mero agregado ou justaposição de unidades individuais mas uma esfera orgânica em que a esfera do indivíduo tem por limites inevitáveis de todos os lados a coletividade5 Essa mudança o levava a mudar de campo Estou senhores com a democracia social Quando trabalha para distribuir com mais equanimidade a riqueza pública em obstar a que se concentrem nas mãos de poucos somas tão enormes de capitais que praticamente acabam por se tornar inutilizáveis e inversamente quando se ocupa em desenvolver o bemestar dos deserdados da fortuna os socialistas têm razão E não têm menos razão quando se trata de imprimir à distribuição de riquezas normas menos cruéis e lança os alicerces deste direito operário onde a liberdade absoluta dos contratos se atenua quando necessário seja para amparar a fraqueza dos necessitados contra a ganância dos opulentos6 E dizia com toda a franqueza como isso se faria Não há neste mundo quem embrulhe a questão social com a observância dos contratos livremente celebrados entre capital e trabalho Quando se fala em medidas reclamadas pela questão social o que se cogita não é em cumprir tais contratos mas em dar fora desses contratos acima deles sem embargo deles por intervenção da lei garantias direitos remédios que contratualmente o trabalho não conseguiria do capital7 Em seguida relacionava os pontos nos quais se daria a intervenção do Estado acima dos contratos casas de operários trabalho de menores jornada de trabalho previdência social higiene no trabalho licençamaternidade acidentes de trabalho situação especial do trabalho agrícola seguro de vida trabalho noturno Essa pauta teria futuro formando o núcleo da intervenção estatal nas relações de trabalho nas décadas seguintes Ao mesmo tempo ele criava um curioso argumento para não tomar o caminho do comunismo Nomes há que atuam como espantalhos Capitalismo é um deles Não acrediteis que todos os males do sistema econômico predominante no mundo venham de que os meios de produção estejam com detentores de capitais Os operários não melhorariam se em vez de obedecer a capitalistas obedecessem aos funcionários do Estado socializado8 Também nessa conferência Rui Barbosa analisou posições dos políticos adversários como fora o caso dos conservadores criticados na conferência para os empresários Dessa vez os adversários escolhidos foram os positivistas Quereis ver o que são meus acusadores Assombraivos em o apreciar no discurso do senador riograndense que tomou a si na baixa comédia da Convenção a tarefa de reduzir a pó a minha entrevista com o Correio do Povo de Porto Alegre sobre a revisão constitucional Nessa oração em que o espírito reacionário corre parelho com a insensibilidade à vida contemporânea nos declara peremptoriamente o situacionismo borgista que o Estado não pode intervir com suas leis nas discórdias entre o capital e o trabalho senão como garantia da ordem9 Empregando como critério a realidade do mundo transformado pela guerra que colocara no centro do pensamento sobre governos a questão das relações entre capital e trabalho Rui Barbosa fez uma campanha clara para a sociedade mas incompreensível para os conservadores e positivistas que monopolizavam o controle do governo federal Para ambos a atividade de governar equivalia essencialmente a manter a ordem pensada esta como o reconhecimento de uma hierarquia na qual o governo estivesse acima dos interesses e inversamente a sociedade abaixo do Estado Essa concepção vinda do Antigo Regime que mal e mal propiciara brechas para o desenvolvimento do capitalismo na sociedade agora se via às voltas com um mundo que pensava na regulação da riqueza Uma rápida mirada sobre a ação administrativa de Epitácio Pessoa ajuda a entender a combinação Desde o primeiro momento havia problemas que ele mesmo narrou Quando assumi o governo em 1919 era tal o estado do Tesouro que ao aproximarse o fim do primeiro mês verifiquei que não tínhamos com que pagar a tropa e o funcionalismo público Preso da maior angústia enviei um emissário ao governador de São Paulo Pedilhe 8 mil contos que ele enviou prontamente Foi o que nos valeu10 Em meio a esta penúria para realizar sua maior ideia a participação do governo federal em obras contra as secas nordestinas o ministro da Viação José Pires do Rio teve de ser criativo Embora seu ministério gastasse 53 do orçamento a margem de manobra era mínima quase tudo estava comprometido com a infraestrutura que sustentava a posição econômica do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul No primeiro caso o governo geria a Central do Brasil maior ferrovia do país a Estrada de Ferro de Teresópolis a Estrada de Ferro de Maricá a Estrada de Ferro Vitória a Minas cuja inauguração nas palavras do próprio ministro teve como resultado abrir à economia do maciço central de Minas as possibilidades decorrentes de um melhor escoadouro de suas produções para o porto do Rio de Janeiro cujo centro comercial muito mais que Vitória facilita a exportação da produção11 o próprio porto do Rio de Janeiro o canal de Macaé a Campos o Loide Brasileiro empresa de navegação com sede na capital e até serviços locais como as autarquias que cuidavam do abastecimento de água da capital12 No caso do Rio Grande do Sul estavam as ferrovias e o porto de Rio Grande Não se tratava de acidente pois a mesma concentração de gastos se repetia em outros ministérios especialmente os militares No todo a ação efetiva do governo federal era ainda a mesma dos tempos imperiais captar impostos no país e gastar de maneira concentrada em duas unidades da federação não à toa aquelas nas quais predominava o positivismo acentuadamente influente entre funcionários federais O ministro só obteve condições para os gastos no Nordeste quando transferiu ao governo estadual gaúcho o controle das ferrovias e dos portos E foi tudo o que o governo federal conseguiu fazer o que era nada perante as mudanças que aconteciam na sociedade Uma dessas mudanças torna ainda mais claro o contraste Na noite de 15 de fevereiro de 1922 abrindo a Semana de Arte Moderna Menotti Del Picchia leu o seguinte trecho Este é o estilo que esperam de nós os passadistas para enforcarnos um a um nos finos baraços dos assobios de suas vaias Para eles somos um bando de bolcheviques da estética correndo a 80 por hora no rumo da paranoia Somos o escândalo com duas pernas o cabotinismo organizado em escola Julgamnos uns cangaceiros da prosa do verso da escultura da pintura da música amotinados na jagunçada do Canudos literário da Pauliceia Desvairada Aos nossos olhos riscados pela velocidade dos bondes elétricos e dos aviões choca a visão das múmias eternizadas pela arte dos embalsamadores Cultivar o helenismo como força dinâmica de uma poética do século é como colocar o corpo seco embalsamado em bandas de um Ramsés ou de Amnésis para governar uma república democrática onde há fraudes eleitorais e greves anarquistas Aos discóbolos de Esparta opomos Friedenreich13 Essa imagem rompia com outra secular Canudos anarquistas e o craque do futebol Friedenreich faziam parte ao mesmo tempo do fundo do sertão e do mais moderno do mundo É desse ponto de vista que se avalia o modelo secular o modelo do Antigo Regime da Ordem como era vista pelos conservadores Até aquele momento essa era a visão da norma do caranguejo pela qual os moradores do Brasil apareciam como desviantes seja na versão acolhedora de Gregório de Matos seja no horror do conde de Assumar ou na ostra de Campos Sales No discurso modernista pelo contrário a autoridade do alto é definida pela presença de figuras mumificadas o governo central de corte colonial que não se liga com a sociedade vibrante nem ajuda a produzir riqueza As virtudes são fruto da metrópole onde signos europeus celestes e sertanejos se misturam na modernidade como misturada era a população brasileira há séculos esperando por esse momento Assim o modernismo criava a primeira imagem estética da nação como era vista a partir da sociedade Vinha daí o projeto de transformar a fala popular em norte da língua a arte popular em padrão da arte erudita o brasileiro em centro da nação derrubando o modelo secular que o enquadrava como desvio do padrão europeu de nobreza Para além das representações o mundo econômico moderno o mundo saído da Primeira Guerra Mundial continuava a existir no país ao largo do governo federal Na esfera estadual marcou presença em duas unidades da federação Uma delas foi São Paulo onde os conservadores deram início a uma versão própria de política estatal para o café A guerra dispersou em campos opostos os financiadores do estoque regulador A alta após o programa havia gerado um novo ciclo de produção inclusive no Brasil a partir de 1915 surgiram novas plantações e em 1918 a produção superava o consumo mundial O governo de São Paulo comprou o excedente por sua conta No ano seguinte uma geada monumental provocou a quebra na produção e um aumento de preços tão grande que todos os estoques inclusive o restante do café comprado em 1906 foram vendidos com altos lucros A euforia levou a mais plantações Logo ficou claro que havia mais capacidade de produzir que o consumo mundial a mesma situação da virada do século Pensando nos lucros de antes os governantes estaduais resolveram que era hora de comprar e estocar café eles mesmos eliminando do negócio o sócio atacadista Conseguiram dinheiro emprestado no exterior criaram um banco estatal para operar as finanças da operação e foram às compras com seus funcionários Parecia o mesmo negócio mas a nova posição do governo mudava muita coisa Na estrutura que antes havia se mostrado eficaz todo o café fora comprado estocado e vendido sem a intervenção direta do governo no mercado ou nas vendas quem comprava distribuía pelo mundo e estocava eram os agentes privados pois se tratava de uma aliança entre produtores e distribuidores limitandose o governo a atuar como intermediário aliado Agora se tratava de uma operação governamental para subordinar uns e outros ao dono estatal do estoque o que gerava um perfil estratégico bem diverso Já nas compras iniciais o governo privilegiou aliados políticos deixando claro aos produtores que o mercado nem sempre seria o critério para as aquisições Diante disso os atacadistas internacionais reconheceram que havia um novo e forte concorrente no mercado e em vez de confiar nele saíram atrás de outros fornecedores Os produtores estrangeiros por sua vez sentiramse tentados a plantar também uma vez que alguém lá fora sustentaria preços com dinheiro público Ao longo da década de 1920 essa atitude manteve o crescimento da economia local mas não a unanimidade política Em 1926 os dissidentes expulsos duas vezes do Partido Republicano Paulista por Rodrigues Alves formaram o Partido Democrático cujo programa era uma versão mais amena daquele proposto por Rui Barbosa O que o caracterizava porém era a qualidade da propaganda cartazes anúncios em jornais eventos e comícios pediam o voto secreto e mudanças na forma de administrar Encontraram aliados O Rio Grande do Sul foi a segunda unidade da federação a sofrer mudanças no governo estadual Até o início da década de 1920 a ditadura positivista fora uma mistura similar ao governo federal monopólio político violento e timidez administrativa Com resultados modestos na economia local cujo principal produto era a carne que vinha fazendo fortunas na Argentina e no Uruguai desde a virada do século quando houve o processo de industrialização passando da charqueada de mercado local e baixa qualidade para os frigoríficos A mistura de ditadura infraestrutura precária não houve melhoria da rede ferroviária local e predomínio dos charqueadores atrasou a mudança gaúcha até 1917 Enquanto ela não veio os pecuaristas vendiam as melhores reses e faziam as maiores compras nos países vizinhos deixando o gado de baixa qualidade para os charqueadores locais enquanto os ditadores positivistas reafirmavam a posição de que o governo não deveria intervir na economia Em consequência o estado registrou crescimento abaixo da média nacional inclusive na indústria A arrecadação do governo era relativamente pequena 20 mil contos anuais no período da Primeira Guerra contra 80 mil contos em São Paulo A administração das ferrovias e do porto a partir do início da década de 1920 melhorou drasticamente a posição do governo gaúcho A arrecadação sextuplicou até 1925 chegando a 120 mil contos Na esteira disso os positivistas acusaram o influxo de uma nova alternativa para o problema da realocação do papel do Estado Em 1922 Benito Mussolini deu um golpe e tomou o poder na Itália à frente do Partido Fascista cuja ideologia central pregava o Estado nacional como fonte do progresso e da superioridade do país lutando em meio a um cenário internacional marcado por disputas selvagens Desse modo a ação política visava a união nacional assim como a administração da luta de classes por meio da intervenção do Estado a fim de aumentar a produção capitalista O cimento da união seria a força e o próprio partido adquiria acentuadas características militares Influenciados por tais ideias os positivistas gaúchos sobretudo no Exército iniciaram seguidas tentativas de assalto armado ao poder Embora alegassem na propaganda que eram democratas diziam que as eleições falseavam a vontade do eleitor os métodos de administração eram obsoletos e havia incapacidade técnica nos governos eleitos queriam na verdade atualizar o velho ideal da ditadura positivista pregando agora um governo revolucionário no sentido que lhe dava Mussolini Socialista de origem o ditador italiano empregou o termo da linguagem bolchevique para justificar o projeto de substituir o sistema democráticorepresentativo por uma ditadura Tal versão caiu como uma luva para dar um novo sentido às ideias comtianas de afastar do poder os políticos substituindoos por técnicos como queriam os defensores da ditadura positivista O aumento da importância dos governos estaduais na economia local desse modo aconteceu apesar das crenças diversas Enquanto essas duas alternativas se desenvolviam com bases políticas e administrativas próprias em estados importantes o governo federal continuava na mesma toada administrativamente uma versão desidratada do que fora no Império politicamente um monopólio conservador garantido pela manipulação cada vez mais violenta das eleições A despeito disso a vida nacional seguia adiante a economia continuava avançando Ao longo da década de 1920 o crescimento manteve o mesmo ritmo elevado desde o Plano de Valorização do Café acima dos 7 anuais com a indústria crescendo a um ritmo de dois dígitos Mas em 1929 o impasse ganhou outra ordem O crescimento do comércio internacional que fazia girar a roda da dinâmica econômica transformouse em seu oposto de um momento para outro A crise foi violenta e rápida As exportações brasileiras desabaram de 94 milhões de libras esterlinas em 1929 para 65 milhões no ano seguinte Nesse período os conservadores no governo federal fizeram o que estavam acostumados a fazer ou seja tentaram evitar qualquer mudança o que acentuou ainda mais a crise Os positivistas do Rio Grande do Sul conseguiram o apoio dos democratas de São Paulo e até dos conservadores mineiros para remover o governo federal paralisado há décadas Uma nova era começava o que torna oportuno um balanço da era que se encerrava CAPÍTULO 63 18891930 um balanço PARA SE AQUILATAR AS TRANSFORMAÇÕES OCORRIDAS NO BRASIL ENTRE A PROCLAMAÇÃO da República e o momento em que Getúlio Vargas tomou o poder o melhor é recorrer aos números disponíveis apesar de toda a imprecisão que ainda guardam Para começar os relativos à população De 143 milhões de pessoas em 1890 passou a 305 milhões em 1920 crescendo 113 nessas três décadas1 Não houve Censo em 1930 o de 1940 apontou uma população de 41 milhões de pessoas com crescimento de 36 no intervalo de 20 anos bem menos acentuado que no primeiro intervalo Não é fácil calcular a distribuição dessa população entre a cidade e o campo Um modo mais intuitivo de avaliar essa distribuição é o exame da relação entre a população das 10 maiores cidades do país e a população total Em 1890 essa proporção era de 74 da população total Em 1920 chegava a 10 Em 1940 estava na casa de 11 Tanto quanto se pode inferir de dados tão precários o período entre 1889 e 1920 foi de considerável aumento da população das grandes cidades em relação ao restante do país e essa mudança evoluiu de maneira bem menos atenuada nas duas décadas seguintes Outra maneira de entender as mudanças é examinar a relação entre o número de operários e o de trabalhadores agrícolas Em 1900 o contingente dos primeiros representava 64 dos trabalhadores no campo em 1920 essa proporção havia dobrado chegando a 1282 Embora os dados não sejam comparáveis por virem de fontes diferentes os diversos censos industriais revelam clara tendência de crescimento da indústria O primeiro desses censos em 1907 listou 325 mil fábricas no país Aquele de 1912 relacionou nada menos de 94 mil estabelecimentos industriais O Censo oficial de 1920 registrou 133 mil indústrias No primeiro censo industrial o cálculo era de 151 mil operários em 1920 foram contabilizados 275 mil operários3 A tendência de crescimento fica clara E os dados relativos a setores ligados à indústria podem fornecer indicativos indiretos do crescimento Um deles é o do consumo de energia elétrica Em 1900 ainda nos primórdios do emprego dessa fonte de energia ele foi de 16 Gwh4 Dez anos depois em 1910 atingiu 245 Gwh Em 1920 saltou para 775 Gwh e o crescimento continuou no mesmo ritmo ascendente chegando a 1367 Gwh em 19305 Outro dado nacional é o da quantidade de objetos postados anualmente pelos Correios6 De 50 milhões de itens em 1890 passou para 278 milhões em 1900 depois atingiu 543 milhões em 1910 e 642 milhões em 1920 Chegou a 21 bilhões em 1929 volume que só seria superado em 1935 No período o maior investimento em infraestrutura ocorreu no setor ferroviário Em 1890 havia 99 mil quilômetros de linhas férreas no Brasil7 Em 1900 as linhas estendiamse por 153 mil quilômetros Em 1910 chegaram a 213 mil quilômetros em 1920 a 285 mil quilômetros Em 1930 atingiram 32 mil quilômetros mais do que o triplo do momento da mudança de regime Outro indicador de desempenho é a tonelagem das mercadorias transportadas pelas estradas de ferro Em 1904 foram 43 milhões de toneladas8 Em 1910 69 milhões Em 1920 165 milhões Em 1929 25 milhões seis vezes mais que no momento inicial mostrando que as cargas de mercadorias cresceram em volume bastante superior à quilometragem das linhas Por fim uma série importante para avaliar o crescimento da indústria é a importação de equipamentos industriais Nesse caso notamse oscilações de acordo com as conjunturas que não deixam de ser significativas Em 1889 ano da mudança de regime essas importações alcançaram o valor de 631 mil libras esterlinas9 Com a política de Rui Barbosa a elevação foi muito forte atingindo 138 milhão de libras em 1891 A partir do ano seguinte e até 1896 oscilaram em torno de 900 mil libras anuais Caíram para o patamar de 600 mil libras até 1899 Nos dois anos de maior recessão no governo Campos Sales as importações recuaram a 410 mil libras abaixo do nível de 1883 A retomada ocorreu no governo de Rodrigues Alves em 1905 atingiram 891 mil libras o mesmo nível de 1895 Em 1907 primeiro ano do Programa de Valorização do Café chegaram a 16 milhão de libras esterlinas e foram subindo até chegar a 29 milhões de libras esterlinas em 1913 A guerra afetou duramente as importações que retrocederam aos níveis do Império E mesmo após o fim do conflito os investimentos foram limitados girando em torno de 11 milhão de libras esterlinas até 1923 A partir daí cresceram com força atingindo de novo o patamar de 28 milhões de libras em 1929 Para efeito de comparação vale a pena registrar o desempenho do principal produto de exportação o café Em 1890 foram vendidas 51 milhões de sacas10 que renderam 178 milhões de libras esterlinas em 1900 as vendas atingiram 98 milhões de sacas enquanto a receita caiu para 144 milhões de libras Em 1910 o volume foi menor que aquele de dez anos atrás 97 milhões de sacas mas as receitas aumentaram para 267 milhões de libras Em 1920 foram exportadas 115 milhões de sacas no valor de 404 milhões de libras Em 1930 o país vendeu 15 milhões de sacas e obteve 414 milhões de libras Houve crescimento mas em ritmo bem menor que a indústria ou os transportes Para além da economia outro dado é relevante a alfabetização Os cálculos foram feitos por Alberto Carlos Almeida a partir dos dados oficiais em 1890 apenas 174 da população brasileira eram alfabetizados11 Em 1920 a taxa subiu para 288 alcançando 398 em 1940 E nesse caso devese levar em consideração que o crescimento da população em idade escolar atingiu nada menos que 315 ao ano no primeiro intervalo caindo para 15 ao ano no segundo o que torna ainda mais relevante o esforço realizado pelo regime republicano em seus anos iniciais Em termos absolutos o número de alfabetizados passou de 24 milhões em 1890 para 16 milhões em 1940 multiplicandose por 67 A escolha de dados mostrando volumes físicos ou valores em moeda forte todos retirados das estatísticas oficiais do país não é casual propiciando um vislumbre do aumento da produção e dos pontos de mudança social Isso é muito importante no caso da economia pois permite um entendimento sem que se recorra a valores em moeda nacional e sem o emprego dos índices de preços reajustados cuja imprecisão sustenta interpretações disparatadas sobre o período mesmo entre econometristas Assim se pode focar melhor naquilo que muitos estudos econométricos começam a revelar com clareza cada vez maior sobre o período e que as interpretações clássicas não permitiam alcançar o padrão de crescimento da economia brasileira mudou com a República Comparada com o passado imperial a economia deixou para trás a estagnação ao iniciar o desenvolvimento capitalista E comparado com o mundo o Brasil deixou a posição de atraso crônico mostrando uma economia não só vigorosa mas das que mais cresceu no período Os números assinalam a combinação de duas tendências dinâmicas Uma era a do comércio internacional perceptível no desempenho positivo do principal produto de exportação Outra e em ritmo ainda mais forte era a do crescimento do mercado interno sobretudo nos setores da indústria e de serviços como os transportes Ou seja as oportunidades oferecidas pelo crescimento do comércio internacional foram aproveitadas e desencadearam um surto de crescimento do mercado interno A indústria vendia para o sertão o sertão vendia para a cidade e essas trocas iam constituindo esse mercado interno impulsionadas pela capacidade de explorando o cenário internacional exportar café e importar equipamentos industriais Certamente ainda resta muito para tornar mais consistentes os números que poderiam detalhar melhor o processo em especial na primeira década republicana As discussões ainda estão longe de terminar Tal como os hábitos as visões ideológicas continuam arraigadas e sempre haverá quem não acredite nos indicativos numéricos preferindo se aferrar a crenças tradicionais e explicações prestigiosas A confusão pode durar sobretudo quando se entra na seara central deste livro o papel dos governos nesses resultados econômicos E a carência de dados tem um significado muito relevante no entendimento do papel dos governos no período A influência da noção de economia de subsistência adotada por todos os clássicos gerou uma interpretação que enfatizava demais o quadro externo do comércio internacional crescente como fonte única do dinamismo econômico E a isso se juntavam as afirmações sobre a inércia das relações produtivas internas pois afinal esse é o corolário da noção de economia de subsistência A partir daí se constrói uma interpretação na qual se concebe a ação governamental como incapaz de vencer a estagnação pressuposta na definição de subsistência e toda a política é vista pelo aspecto da persistência de grupos no poder A comprovação numérica de uma dinâmica interna ainda mais acelerada que a externa tem para a análise desse período uma decorrência similar à da época colonial mais do que buscar novas explicações tratase de recolocar o problema Em vez de ser uma continuidade do atraso cabe explicar a ruptura e o desenvolvimento capitalista que marcam o período associados à exportação agrícola O novo enfoque do problema muda também a forma de se entender o papel dos governos e nesse sentido é essencial o plural governos Tanto quanto a noção de economia de subsistência impede a visão da dinâmica efetiva do desenvolvimento no sertão uma secular elaboração imagética mostra a realidade brasileira como decorrente de uma dupla formação o governo central como parte ativa centro do dinamismo econômico da política civilizada e da esfera letrada e o sertão imobilizado na economia de subsistência bárbaro em política e analfabeto portanto incapaz de articular formalmente o seu lugar no mundo Em termos simbólicos essa imagem de Brasil é herança direta da visão de mundo corporativista portuguesa que mostrava o governo central como cabeça pensante e o restante da sociedade como corpo obediente com funções especializadas Até o Império essa grande metáfora derivada também das imagens de senhor e escravo fulcro da concepção de governo aristotélica inspirou a organização do sistema governamental e das instituições civis das leis que regiam as relações entre governados Toda a ação do governo central na colônia e no Império pautouse pela reiteração dessa distância O grande empenho nesse sentido foi a manutenção seja do analfabetismo generalizado seja do mercado como instituição marginal que relembrando a definição de frei Vicente do Salvador no século XVII acontecia nas casas mas não nas ruas A principal diferença na passagem para a vida de país independente fora de nuance Enquanto os governos coloniais fundavamse na crença de uma soberania monárquica única o governo imperial sustentouse admitindo a fórmula das duas soberanias mas forcejando o tempo todo para subordinar a soberania do eleitor Na via inversa o espaço da soberania popular aumentou em relação ao da colônia mas não o suficiente para impelir as instituições centrais da economia na direção do capitalismo ou da democracia se pensada a partir da progressiva implantação do voto universal e de eleições que obrigassem o governo à vontade do eleitor soberano O emprego da noção de economia de subsistência permitiu que essa grande imagem corporativadualista fosse aplicada também ao período republicano A falta de dados numéricos no campo da economia nesse momento ajudou a manter a essencial impressão de uma falta de dinamismo no sertão Havia base real a regressão no sistema eleitoral reforçava a continuidade do papel apenas ritual das eleições comandadas pelo governo central e a soma gerava o foco interpretativo da continuidade do atraso Mas a realidade numérica agora visível é de ruptura do padrão de desenvolvimento o que leva a buscar fatores de ruptura também no lugar do governo como promotor de desenvolvimento A primeira e mais evidente ruptura promovida pelo regime republicano foi a abolição do Poder Moderador a autoridade central arbitrária e irresponsável Com isso se promoveu muito rapidamente uma inversão fundamental entre costume e lei no que se refere à economia Durante a colônia e o Império o viver pelo mercado e o empreendedorismo foram costumes gerais mas praticados num ambiente legal que relegava tudo isso a um plano marginal Em parte o governo central governo federal no período republicano mudou radicalmente esse cenário já em seus primeiros dias Depois dos decretos de Rui Barbosa em 1890 o governo renunciou ao papel de interventor vigilante na vida econômica e criou as condições legais para que empresários pudessem atuar com liberdade No lugar de desviantes que fugiam da tutela da autoridade puderam agir sob a égide da lei Bastou esse ato para que os empresários se libertassem do confinamento de sua atividade à casa isto é a seus negócios pessoais e oferecessem os produtos de suas empresas agora pessoas jurídicas legalizadas no mercado agora uma instituição capaz de funcionar com apoio da lei A mudança fez toda a diferença para os industriais e financiadores do sistema de crédito que atuavam na direção do capitalismo A organização formal de uma empresa era necessária para juntar capital próprio ou por meio de crédito agora legal com os bancos privados se multiplicando tanto em empresas pessoais quanto em sociedades anônimas antes o capital de risco só podia ser reunido com autorização do governo Portanto a legislação que retirava o governo de seu papel tutelar ajudou muita gente a ir para o mercado legal Essa nova realidade explica as empresas os produtores mas fica ainda uma pergunta quem eram os novos compradores os consumidores Uma figura simbólica criada por Monteiro Lobato serve de exemplo Quando o Jeca Tatu piraquara do Paraíba e maravilhoso epítome de carne onde se resumem todos os característicos típicos da raça vem a falar com o fazendeiro cujas terras anda parasitando seu primeiro movimento após prender nos lábios um palhão de milho sacar o rolete de fumo e dar uma cusparada é sentarse jeitosamente sobre os calcanhares Nos mercados para onde leva a quitanda domingueira é de cócoras como um faquir de Brahmaputra que vigia o feixinho de palmito e o cacho de brejaúva O que ali costuma mercar vale todo um tratado Vive num corrupio de barganhas nas quais exercita uma astúcia nativa Pesa nos destinos econômicos do país com o polvilho azedo de que é fabricante tendo amealhado mais de 200 milréis em prata no fundo da arca12 A crônica define muita coisa sobre o sertanejo e seu duplo papel na economia do período De um lado vai ao mercado como consumidor maior da produção industrial de outro como empreendedor e também produtor independente que pesa nos destinos econômicos do país como fabricante Tudo isso sem deixar de ser um epítome da raça um sertanejo acabado Jeca Tatu é a versão da Primeira República dos milhões de sertanejos que eram produtores independentes donos dos meios de produção e das mercadorias responsáveis eles mesmos pela comercialização Essa imagem microscópica de um tipo geral facilita o entendimento de uma diferença Nos termos das análises fundadas na noção de economia de subsistência Jeca Tatu poderia ser visto como mais uma prova da falta de dinâmica da vida sertaneja mais um exemplo de analfabeto que tem a astúcia nativa como única arma de sobrevivência Monteiro Lobato no entanto cria um personagem que apesar de sertanejo é não apenas fabricante como também pessoa capaz de acumular dinheiro depois das trocas no mercado ou seja como empresário que lucra com sua produção Enfim o mercado não lhe era estranho Novidade republicana se há na descrição é que não era mais um mercado que corria apenas nas casas Jeca Tatu já vende no mercado público não entrega polvilho na venda e recebe produtos fiados como fora obrigatório por séculos Nesses tempos anteriores por mais que barganhasse seria difícil para Jeca Tatu terminar o domingo levando milréis para acumular no fundo da arca Aí está a segunda mudança promovida pelo governo federal republicano imprimir dinheiro de papel em quantidade suficiente para que até as trocas no sertão se servissem dele para acumular saldos Jeca Tatu tinha astúcia nativa suficiente para guardar o resultado de seu trabalho em dinheiro em vez de se manter como cliente cativo de um comerciante capaz de fazer fiado Assim se percebe que industriais e sertanejos melhoravam ambos de vida quando o mercado se desenvolvia e que ambos apoiassem o progresso republicano Também se deduz disso que os intermediários comerciantes talvez não apreciassem tanto essas mudanças trazidas pela indústria e pelo dinheiro já que perdiam o controle de clientes pelas cadeias de fiado e com elas boas oportunidades de lucros Por aí se vê também que o motor do crescimento da economia foram as trocas no setor privado entre industriais e produtores independentes muito mais relevantes para o crescimento nesse período que os trabalhadores assalariados ainda que estes tivessem um peso crescente Esse simples exemplo torna compreensível a maioria dos números gerais do período sem apelar para a noção de economia de subsistência Industriais levavam produtos ao mercado assim como os Jecas Tatu Ambos realizavam trocas com resultados satisfatórios que se refletiam em crescimento Enfim eles compunham agora que a lei incentivava empresas um setor privado pujante Eram complementares no desenvolvimento agora que as instituições criadas com o afastamento da tutela permitiam essa relação Industriais queriam mercado e o encontraram em Jecas Tatu que há séculos sabiam lidar com os estímulos do mercado para conduzir suas vidas Mas restava uma diferença relevante entre as partes os industriais ganhavam com a formalidade e a possibilidade de trabalhar dentro da lei o Jeca Tatu dependia ainda da astúcia nativa daquilo que aprendera no costume da palavra falada A igualdade real só era possível com algo que apenas quem estava fora do sertão podia fornecer letras e direitos Um século e meio de governos iluministas no Ocidente havia mostrado que o princípio da igualdade perante a lei que começara como ideia constitucional acarretava necessidades que iam além da formalidade Foi parte da política desses governos de um lado a universalização da escrita por meio de escolas e de outro a dos direitos políticos com avanço progressivo rumo ao sufrágio universal que em alguns países ia se completando com o voto feminino Tais políticas permitiam que o Estado processasse os interesses da sociedade como um todo o que exigia que se organizasse para atuar em realidades cada vez mais complexas E no período do pósguerra a oferta dessa capacidade operacional se convertera na principal fonte de disputas políticas no Ocidente Essa decorrência institucional do capitalismo que os sertanejos estavam impedidos de construir por si mesmos não aconteceu pela ação dos governos republicanos O país manteve o retrocesso eleitoral do Império com a exclusão do voto dos analfabetos e foi lentíssimo na criação de leis civis adequadas à realidade contratual da ação econômica da população sertaneja Apenas na escolarização houve avanços que não se deram por causa do governo federal Ainda que dentro desses limites ocorreram outras mudanças A ruptura republicana gerou mais do que uma nova institucionalização econômica favorável ao desenvolvimento Houve também ainda nos tempos do Governo Provisório reformas que reduziram outros poderes de intervenção a mais importante das quais foi a privatização na esfera religiosa com o fim do Padroado Com isso diminuiu muito a capacidade de intervenção administrativa da esfera governamental A Constituição de 1891 fez o resto nos moldes iluministas inverteu as posições entre lei e costume retirando do cenário legal o soberano arbitrário e relegando ao costume a ação de seus muitos defensores que passaram a ir infiltrando seu modo de ver no cenário institucional Outra ruptura se deu na amplitude da esfera intermediária de governo Desde a época colonial as capitanias perderam poderes e o Império preservou a subordinação das províncias A transformação dos estados em governos formalmente soberanos apesar de todas as idas e vindas logo ganhou substância própria Todas as funções modernas de Estado presentes no período vieram dos governos locais Foram estes os únicos a criar redes de prestação de serviços para os cidadãos escolas segurança pública saneamento saúde Essas redes de serviços em grau variado permitiram uma nova forma de diálogo entre governantes e governados Os governos estaduais passaram a funcionar como processadores dos interesses internos e como prestadores de serviços com pretensão universal Com isso afinal os moradores do sertão passaram a contar com o apoio de algo mais do que a autoridade local democrática que eles mesmos compunham No sentido inverso houve o processamento da pressão vinda da sociedade ainda que dentro dos estreitos moldes políticos das franquias eleitorais e das eleições rituais Talvez o mais conspícuo exemplo de mudança construída nesse formato seja aquele mostrado na implantação do Plano de Valorização do Café Vale notar que toda a sofisticada tentativa de uma política governamental visando acelerar o crescimento econômico foi concebida no âmbito privado e elaborada inicialmente na sociedade Passou a interessar os governos de baixo para cima câmaras municipais assembleias estaduais governos estaduais e começou a ser implantada na esfera federal por intermédio do Parlamento Em todo o processo o governo federal fez oposição cerrada enquanto pôde Mesmo depois de tudo aprovado seus únicos atos efetivos foram um aval e um empréstimo logo liquidado ou seja pouco mais do que apoio institucional Em 1910 o ministro fiel ao anticapitalismo dos conservadores imperiais ainda gastou todas as reservas internacionais do país para tentar reverter as mudanças O Plano de Valorização do Café sobreviveu apesar de tudo O Parlamento foi o centro da articulação do acordo nacional que permitiu a sua implementação centrado menos no apoio aos exportadores de café do que no aumento das rendas trazido pelo câmbio baixo algo que também interessava aos industriais como proteção do mercado e aos sertanejos como atividade econômica Os governos dos estados nos quais se plantava café contribuíram ainda para o enquadramento legal além de cobrarem impostos No final a operação acabou recaindo sobre o governo de São Paulo que não só auferiu lucros extraordinários como soube apoiar a transferência dos ganhos dos cafeicultores para o financiamento por meio do setor privado de crédito de uma forte expansão do setor industrial Dali a lição se espraiou aos governos estaduais que passaram a ver com outros olhos seu papel na sociedade exatamente a exigência do pósguerra Falta muito para ir além de sugestões como essas e se chegar a explicações mas os indícios apontam para a natureza do fenômeno desse período a ser explicado muito mais desenvolvimento com menos poder central Para concluir com números vale notar que o tamanho do setor público em relação ao total da economia não mudou com as novas funções das esferas descentralizadas A proporção calculada por econometristas para a primeira década do século se manteve a soma dos tributos recolhidos por todas as instâncias de governo no final da década de 1920 girava em torno dos mesmos 6 do PIB ou inversamente o setor privado ficava com 94 do valor da produção nacional Em termos de distribuição dos recursos entre as esferas de governo para relembrar a União ficava com cerca de 35 do PIB os estados com 2 e os municípios com 05 Sendo assim parece pouco razoável pensar na radical transformação republicana a partir da secular imagem do caranguejo ou de suas atualizações dualistas Mas o mesmo não vale para o período seguinte no qual estas ganharam nova substância PETROBRÁS PETRÓLEO BRASILEIRO SA 100000 CR OBRIGAÇÃO AO PORTADOR IV 19302017 A era do muro uma centralização dois resultados O emprego do governo central como diane nas transacções externas permite um crescimento maior que a mídia internacional em tempos de economia fechada mas sua manutenção leva a resultados pífios na era global ORDEM E PROGRESSO CAPÍTULO 64 Centralização com sentido O DECRETO INICIAL DAQUELES QUE CHEGARAM AO PODER EM 1930 TRAZIA diferenças e continuidades importantes em relação ao primeiro decreto republicano de 1889 A principal diferença estava na reorganização dos poderes a começar da assinatura Quem decretava era o chefe do governo provisório portanto o depositário unipessoal do poder na terminologia de Campos Sales As instituições políticas foram organizadas em torno desse comando pessoal O decreto abolia os poderes legislativos em todas as instâncias desde as câmaras municipais até o Congresso nacional Também abolia toda a autonomia local os estados passariam a ser dirigidos por interventores nomeados pelo chefe do governo provisório e os municípios por interventores designados pelos interventores estaduais A única obrigação desses governantes com a sociedade seria a de dar publicidade na amplitude que as condições locais permitam de seus gastos O único direito da sociedade para limitar atos do governo seria através de recurso para o chefe do governo provisório Era o figurino de sonhos da ditadura positivista com todo o poder de executar e legislar concentrado na figura do ditador que iria reinar governar e administrar Nem mesmo o imperador que acumulara maiores poderes discricionários D Pedro I antes da abertura do Parlamento se comparava com isso afinal ele governou com câmaras e poderes municipais autônomos No capítulo das continuidades a lista era extensa O decreto reconhecia a validade da Constituição de 1891 em todos os pontos que não contrastassem com o decreto continuavam a valer a forma federativa de organização do país todas as leis estaduais e municipais toda a dívida pública inclusive de estados e municípios todos os direitos civis e todos os contratos privados Além disso o decreto mencionava explicitamente que os poderes concentrados no chefe do governo provisório só seriam válidos até que fosse instalada uma Assembleia Constituinte embora não marcasse data para sua convocação O chefe do governo provisório chamavase Getúlio Dorneles Vargas e tinha 48 anos de idade no momento em que se revestiu de todos esses poderes Filho de um militante positivista e agente político do governo castilhista na cidade gaúcha de São Borja toda sua formação foi marcada por essa filosofia Estreou na vida pública como redator de O Debate órgão financiado montado e mantido pela ditadura local segundo o seu biógrafo Lira Neto Teve oficinas compradas e reativadas para rodar o novo jornal com apoio financeiro de dirigentes do Partido Republicano e chancela política de Borges de Medeiros e Pinheiro Machado O próprio Borges costumava descer pessoalmente à redação de O Debate situada a poucas centenas de metros do palácio para conferir os artigos de fundo e certificarse que as diatribes seriam publicadas com a virulência desejada1A filosofia necessária para sustentar as diatribes era simples e assim resumida num editorial do jornal Para manter o equilíbrio na sociedade assegurandolhe a tranquilidade a paz e harmonia tornase necessário o estabelecimento de um poder superior que lhe dite normas e as faça seguir Daí a indispensável existência do Estado conduzido por governos fortes e capazes que guiem os destinos coletivos2 Tais ideias estavam de acordo com a crença comtiana do grupo positivista segundo a qual a democracia fundavase na ideia metafísica de representação a ser superada pela ciência Por isso a ditadura baseada na ciência seria uma forma de governo na qual a técnica tomaria o lugar da política com os positivistas monopolizando o exercício do poder Mas a carreira política de Vargas começou numa época de mudança do governo construído segundo tal ideal uma de suas primeiras tarefas como adestrado servidor do regime foi defender na Assembleia estadual a reviravolta econômica pela qual passava a ditadura local depois de três décadas pregando a limitação do governo estadual gaúcho a umas poucas funções além da reserva de máximo espaço para a iniciativa privada Como parte dessa filosofia Borges de Medeiros sempre dizia que os investimentos em infraestrutura deveriam ser feitos pela União o conceito que era repetido por todos os partidários Mudou de ideia quando o governo gaúcho passou a cuidar de portos e ferrovias e o líder na Assembleia não demorou a difundir a nova diretriz Encarregado de criar a argumentação para renegar o passado Getúlio Vargas acabou se transformando em defensor efetivo de que o governo desempenhasse outro papel na economia Embora formado nos rigores do autoritarismo positivista Getúlio Vargas foi bem além da escola Eleito deputado federal em 1923 apanhou bastante quando tentou defender em plenário o regime ditatorial de seu estado mas compensou a desvantagem com a atuação nos bastidores a favor do regime e com a atenção que dedicou à imprensa escrita e aos novos meios de comunicação Alcançou destaque suficiente para ser escolhido para o cargo de ministro da Fazenda de Washington Luís se tornando um dos raríssimos gaúchos a chegar a esse nível de mando Deixou o posto para substituir Borges de Medeiros que deixava o poder após duas décadas à frente do governo estadual Aproveitou a posse para marcar um novo estilo convidou centenas de políticos de todo o país montou uma grande festa pública e mandou filmar tudo e exibir as cenas para as multidões que frequentavam as sessões de cinema No governo do estado tratou com civilidade as oposições deixando de lado o tradicional método da bala A contratação de um grande empréstimo externo numa ditadura que quase não prestava conta de seus gastos permitiulhe acumular muitos meios partidários que incluíam armas jornais favoráveis e agentes políticos E empregou esses meios para se tornar candidato de uma coligação que tinha o apoio dos governos de Minas Gerais e da Paraíba competindo contra a chapa indicada pelo presidente da República e por todos os demais estados Deulhe o nome de Aliança Liberal e um programa de três pontos anistia aos perseguidos políticos voto secreto e mudança nos métodos políticos Era quase o mesmo programa de Rui Barbosa em 1908 mas agora endossado por uma pessoa que nunca acreditara nele O resultado eleitoral foi igual ao de todas as campanhas disputadas desde os tempos do Império perdeu o candidato sem apoio do alto Vargas reagiu como todos os perdedores desde a primeira campanha de Rui Barbosa queixandose da falsificação da vontade popular pela compressão vinda do governo Mas a campanha coincidiu com um imenso abalo na economia mundial A crise financeira eclodira no final de outubro de 1929 quando se formavam as chapas para a disputa presidencial Acelerouse no primeiro trimestre do ano seguinte época em que se realizaram as eleições Depois destas o governo federal continuou ignorando solenemente o problema E ignorou porque seu programa tinha como foco o secular objetivo econômico conservador garantir um valor fixo da moeda com base no padrãoouro Por conta disso recusouse a mexer na política de câmbio e a lidar com a política do café Enquanto isso o mundo desabava As exportações brasileiras caíram de 948 para 366 milhões de libras entre 1928 e o final de 1932 A principal fonte de receita do governo o imposto de exportação teve uma queda de 56 entre 1929 e 1931 O comércio internacional que sustentava o crescimento de todas as economias do mundo desde o início do século XIX sofreu derrocada ainda maior caindo a um quarto do que era em 1929 em apenas quatro anos Levou apenas sete meses para que a inércia danosa do governo federal em meio a toda essa devastação transformasse o candidato derrotado no ditador que acumulava todo o poder Explorando a paralisia do presidente Getúlio Vargas reuniu apoio para um golpe Ele veio do Partido Democrático de São Paulo de políticos tradicionais de vários matizes e de um grupo de exmilitares conhecidos como tenentes Definiamse como revolucionários mas pelo termo entendiam apenas o apreço a métodos técnicos de comando e ao afastamento dos políticos tradicionais a receita tradicional positivista revisada após o êxito dos fascistas italianos Com apoio de tais grupos Getúlio Vargas chegou ao poder Seu primeiro foco não foi ideológico mas pragmático de alguém muito preocupado com a crise Depois de fracassos iniciais escolheu para o Ministério da Fazenda um advogado que praticamente nada sabia de economia mas que tinha qualidades muito apreciadas até mesmo por um economista de forte viés teórico como Mario Henrique Simonsen Oswaldo Aranha percebeu em 1931 que cabe ao governo articular os mercados em época de crise Se isso é intervenção danese o laissez faire Pôs em prática entre 1931 e 1934 uma política econômica altamente intervencionista e nacionalista mas que era recomendável no quadro da Grande Depressão3 Essa política teve dois pilares fundamentais um relacionado aos fluxos financeiros e o outro aos fluxos comerciais da economia Na primeira vertente não havia muita opção as reservas brasileiras caíram de 31 milhões de libras esterlinas a quase zero em apenas dois anos durante os quais o país tentou manter a condição de pagador sempre adimplente dos débitos externos Dada a realidade Oswaldo Aranha fez o que podia estatizou as operações de câmbio tornando o Banco do Brasil o único agente autorizado a comprar e vender divisas Com isso transferiu ao governo federal poderes secularmente exercidos por agentes privados O Estado se tornava o único agente e portanto capaz de controlar os fluxos financeiros externos da nação Esse poder foi empregado segundo critérios que não eram os do mercado pagava o que podia com o dinheiro de que dispunha inclusive no que se refere a mercadorias Armado de tais poderes o ministro passou a lidar com segunda vertente de intervenção relativa aos fluxos comerciais E os grandes atos nessa seara se fizeram no mercado de café O problema não era de quantidade o volume das exportações do produto pouco caiu entre 1928 e 1932 de 138 milhões de sacas para 119 milhões Mas o preço despencou arrastando consigo as divisas recebidas 679 milhões de libras esterlinas em 1928 e apenas 262 milhões quatro anos depois A queda no mercado presente deuse em circunstâncias delicadas para o mercado futuro mais precisamente na política de estoques A crise aconteceu num momento de transição de ciclos do mercado semelhante ao da primeira década do século quando se fez o Plano de Valorização do Café Em 1906 o Brasil produzira 133 mais café do que o consumo mundial excedente usado para formar o estoque regulador que estabilizaria o mercado nos anos seguintes4 A partir da compra do Plano de Valorização a proporção entre oferta brasileira e consumo foi caindo devido à proibição de novas plantações chegando a um mínimo de 915 em 1916 Essa relação caiu porque o número de cafeeiros em produção cresceu apenas 5 entre 1900 e 1915 com a produção se tornando insuficiente para acompanhar o crescimento do consumo5 Após o final da Primeira Guerra com a previsão de um novo ciclo de crescimento foram sendo autorizadas novas plantações Assim o número de cafeeiros cresceu 56 entre 1915 e 1929 e quase 30 desse crescimento deviase a plantações posteriores a 1923 quando ficou claro que a produção instalada seria insuficiente para abastecer um mercado em expansão Apenas em 1927 quando os novos pés entraram em produção a oferta brasileira passou a superar o consumo mundial Justamente em 1929 a proporção entre oferta brasileira e o consumo mundial voltou a um nível semelhante ao de 1906 ou seja a 151 do consumo Era hora de formar o estoque para garantir a estabilização do mercado nas décadas seguintes nas quais os novos cafeeiros produziriam Mas dessa vez seria diferente Houve uma violenta queda do consumo contrariando a tendência de crescimento lento e constante Essa tendência mesclada com aumento aos saltos da produção sustentava todas as hipóteses de estabilização a longo prazo do mercado por meio de estoques reguladores Todavia devido à queda no consumo já em 1930 os estoques passaram a representar mais de dois anos da demanda global Criouse assim um problema triplo excesso de produção queda de preços e do consumo desequilíbrio completo na gestão a longo prazo dos estoques Oswaldo Aranha atacou os três problemas de uma vez colocou o governo como comprador da produção presente comprador dos estoques físicos passados de posse do governo paulista arcando com as dívidas e vendedor de café para o exterior Depois de séculos de inação o governo central entrava diretamente no apoio à produção nacional Para todos os envolvidos era pegar ou largar arcando com prejuízos Todos pegaram Os cafeicultores passaram a receber menos pelo produto e a pagar mais impostos ao governo mas tinham para quem vender O detentor do estoque o governo paulista teve de entregar o produto por menos que lhe custara mas entregou junto os títulos de dívida Os compradores estrangeiros tiveram de comprar do único vendedor que restara no mercado o governo federal Controlando os movimentos de divisas e do mercado físico de café Oswaldo Aranha soube aproveitar a passagem para suas mãos das dívidas com a formação do estoque de café Como se tornou o único devedor relevante do país o governo federal podia jogar com a situação Em meio a moratórias no mundo inteiro Aranha conseguiu reescalonar com desconto toda a dívida externa brasileira pagando apenas 33 do valor dos débitos anteriores6 Desse modo converteu um desequilíbrio de 28 milhões de libras esterlinas nas contas externas brasileiras comércio mais capital em equilíbrio já no ano de 1932 Graças às medidas extremas de intervenção do governo federal o Brasil conseguiu equilibrar sua situação externa num período muito curto bem antes de muitos países inclusive os Estados Unidos Na frente interna a disposição para comprar café com moeda nacional permitiu que a renda dos produtores em moeda nacional caísse bem menos do que aconteceria se a solução se desse a preço de mercado E a compra foi possível porque se fez apenas com moeda nacional Além do equilíbrio a política de intervenção teve outro poderoso efeito interno O Produto Interno Bruto caíra 21 em 1930 no ano seguinte enquanto se operavam as primeiras intervenções a queda foi de 33 A partir de 1932 antes ainda do total equacionamento das intervenções a economia retomou o crescimento puxado pelo mercado interno uma vez que esse foi o ano de maior queda na receita de exportações E como a redução fora maior na agricultura que na indústria em 1933 este setor superou a produção rural e se tornou o mais importante da economia Mas vale notar que isso aconteceu num ano em que a produção industrial atingiu um nível levemente superior ao de 1928 ou seja antes da crise o setor industrial já era muito relevante na economia A partir de 1933 o crescimento industrial manteve um ritmo de incremento mais forte que os outros setores retomando o padrão que com exceção da recessão conservadora da virada do século vinha desde a proclamação da República As intervenções do governo federal foram fundamentais para manter o modelo de industrialização anterior fundado na troca de produtos agrícolas no mercado externo por equipamentos industriais e nas trocas internas entre o sertão e as cidades que formavam o mercado interno O processo antes realizado como aproveitamento de oportunidades no comércio internacional e políticas cambiais ganhou outra forma Controlando com mão de ferro o destino das divisas o governo federal conseguiu fazer com que as compras de equipamentos industriais crescessem a partir de 1933 mesmo em circunstâncias de importações restritas O ritmo desse crescimento foi o possível o valor dos equipamentos industriais importados em 1939 ainda era inferior ao dos anos posteriores ao Plano de Valorização do Café e o recorde de 1913 não chegou a ser quebrado em todo o período7 Mas a obra estava feita o governo central passara a desempenhar um papel completamente distinto Durante séculos fora pouco mais que um posto aduaneiro mais preocupado com as próprias receitas do que com qualquer outra coisa Nesse figurino houve longos períodos de progresso tanto nos tempos coloniais como nas primeiras décadas republicanas Tais surtos ocorreram basicamente por causa da inação da incapacidade do governo central de isolar as relações entre o Brasil e o mundo de modo que empresários podiam se aproveitar das brechas para crescer Nos primeiros séculos governando a si mesmos e estabelecendo alianças além de realizar negócios com os vizinhos ou a África na República encontrando parceiros no exterior para sustentar o mercado de café Apenas no período do Império graças à confluência de concentração de poder dívida externa e contração monetária o governo central funcionara efetivamente como um muro um isolante entre o mercado interno e a situação internacional uma barreira aos avanços da época que impedia a chegada do capitalismo e o crescimento da economia No quadro criado com a crise de 1929 a pronta resposta do governo provisório recriou o muro Só que dessa vez era um muro muito eficaz em meio à devastação do comércio internacional ele impediu que a queda geral se transferisse para o mercado interno criando as condições para que o governo federal logo retomasse a política ativa de desenvolvimento industrial baseada no controle do câmbio e das licenças de importação Tal mudança fez diferença no cenário interno Com ela o governo federal tornouse uma instância capaz de influenciar positivamente o desenvolvimento da economia E também um governo atento a outras mudanças A Grande Depressão alterou a dinâmica social do trabalho como na prática haviam se interrompido os fluxos migratórios toda a mão de obra para a indústria e os serviços passou a ser buscada no mercado interno Começou então a fase de migração maciça de nordestinos para o Sudeste em especial para São Paulo estado que continuou aumentando sua participação na economia nacional no mesmo ritmo de antes pois ali seguia vigorando a lógica de crescimento iniciada com o Plano de Valorização do Café e fundada na possibilidade de importar máquinas industriais a partir dos saldos do café Desse modo o crescimento da economia começou a acontecer numa combinação até então inédita na história brasileira um cenário internacional de retração do comércio e um cenário local de dinamismo Dessa vez o muro entre o país e o mundo assegurava taxas de crescimento do mercado interno bem maiores que as do mercado mundial Apesar da boa relação com as demais economias essas taxas de crescimento eram inferiores às do período anterior e se tornaram ainda menores a partir do início da Segunda Guerra em 1939 CAPÍTULO 65 A sonhada ditadura AO REDOR DO MUNDO A ADAPTAÇÃO DAS ECONOMIAS À DESAGREGAÇÃO DO COMÉRCIO internacional se fez com base na ação dos Estados nacionais e deu origem a uma série de nacionalismos Na União Soviética a ditadura de Stálin foi justificada com a tese do socialismo num só país a revolução mundial deixava de ser o principal objetivo dos socialistas que se concentrariam na manutenção do governo nacional já instalado Como a influência de Moscou era grande os partidos comunistas de todo o mundo acabaram por se tornar agências de relações exteriores desse governo nacional cujo inimigo maior seriam os adeptos do socialfascismo assim definido por Stálin O fascismo é a organização de combate da burguesia que se apoia no auxílio ativo da socialdemocracia A socialdemocracia é objetivamente a ala moderada do fascismo1 Disso decorreu todo um conjunto de ataques à democracia assim como o fortalecimento do fascismo Sob influência de Moscou o Partido Comunista alemão adotou como prioridade a denúncia da socialdemocracia e a pregação da iminência da revolução Um dos líderes da Revolução russa Trótski expulso do partido e exilado por se opor à ideia do socialismo num só país era um dos poucos que via as coisas de modo diferente Passou a defender uma frente única de comunistas e socialdemocratas na Alemanha com o seguinte argumento expresso em novembro de 1931 No fundo da situação mundial que está longe de ser pacífica a situação da Alemanha se destaca com nitidez Os antagonismos políticos atingiram neste país uma gravidade inaudita Está chegando o momento em que a situação tem que se transformar em revolucionária ou contrarrevolucionária A tomada do poder pelos nacionalsocialistas significará a exterminação da elite do proletariado alemão A obra infernal do fascismo italiano parecerá quase uma experiência humanitária em comparação do que poderia fazer o nacionalsocialismo alemão2 O assalto à democracia a partir de dois extremos que se definiam como revolucionários de um lado os comunistas soviéticos e de outro os fascistas italianos e os nacionalsocialistas alemães marcou profundamente a situação mundial especialmente a partir da tomada do poder na Alemanha pelos nacionalsocialistas Nesse período mesmo os países que preservaram a democracia como sistema de governo viram tolhidas as possibilidades de tal sistema enfrentar com êxito a crise econômica Foi o que ocorreu nos Estados Unidos e na Inglaterra as economias ficaram em recessão até que acabaram encontrando um caminho nas ideias de Keynes que defendia o aumento dos gastos públicos para compensar em parte os efeitos da depressão econômica No entanto tais ideias só se tornaram a base da política dos Estados Unidos com o New Deal do presidente Roosevelt a partir de 1933 A recuperação foi lenta o que foi interpretado muitas vezes como falência do modelo político democrático Getúlio Vargas estava entre aqueles que nesses tempos turbulentos pensavam estar inaugurando uma nova era pósdemocrática com seu regime e o rápido êxito de sua política de intervenção na economia contribuiu para reforçar suas concepções autocráticas herdadas da formação positivista O sucesso econômico o levou a ampliar o escopo das ideias positivistas Para tanto fez largo uso da obra de Oliveira Viana na qual encontrou os argumentos que permitiram recriar no ambiente republicano positivista no qual se formara uma vertente que se somava aos ideais monárquicos de centralização por meio de um Estado interventor e dominado por uma elite que contrastaria com a sociedade O cerne do argumento fora explicitado por Oliveira Viana na obra Evolução do povo brasileiro publicada em 1923 A obra que os nossos estadistas da Independência e do Império empreendem é verdadeiramente ciclópica Eles são forçados a renovar tudo tanto os métodos da política como o aparelho de governo do período colonial e o fazem com capacidade admirável E a sua atuação durante os quase setenta anos do Império pode ser resumida numa frase sintética uma luta heroica e contínua em prol da unidade nacional contra a formidável ação dispersiva dos fatores geográficos O mecanismo centralizador que constroem encheria de surpresa os velhos políticos coloniais É uma edificação possante sólida maciça magnificamente estruturada constringindo rijamente nas suas malhas resistentes todos os centros provinciais e todos os nódulos de atividade política do país nada escapa nem o mais remoto povoado do interior à sua compressão poderosa3 O autor tornouse ídolo de Vargas e foi convidado para o governo para transformar a ideia em objetivo Porém sendo Vargas um político bastante realista no princípio não deixou que as convicções autoritárias turvassem a sua capacidade de tomar decisões Embora fosse de fato um ditador nem por isso a concentração de poderes lhe permitia agir tão bem e tão depressa em política como agira na área econômica onde praticamente não houve oposição aos atos de Oswaldo Aranha Na área política a organização institucional do governo provisório havia de um lado ampliado a margem de ação discricionária do Executivo mas de outro reduzira de maneira drástica os instrumentos para equilibrar a diversidade de posições na sociedade Fechado o Parlamento canceladas as eleições anulados os poderes locais num país de extensão gigantesca a margem para acomodações de posições diversas ainda que não divergentes se tornara mínima O único meio que restara para essa finalidade eram as nomeações para os cargos ministeriais no nível federal e dos interventores no âmbito estadual Esse era o recurso mais relevante para a operação cotidiana de acomodação da sociedade ao governo e Vargas dele lançou mão com frequência no princípio alternando bastante as indicações Na maioria das vezes contentava políticos tradicionais que iam fazendo as composições necessárias para manter o apoio Outras vezes recorreu aos tenentes que sendo neófitos logo tratavam de empregar o cargo para formar uma base de apoio político em geral juntando os interessados que aparecessem vindos de fora dos círculos tradicionais de poder Aqueles que demonstravam mais aptidão reuniam forças suficientes para governar os mais desastrados acabavam se tornando um problema Também se abriam novos caminhos como a tentativa de recriar as estruturas clientelistas na realidade do capitalismo A primeira ação efetiva nesse sentido foi a promulgação de um decreto que organizava sindicatos patronais e de trabalhadores para defender perante o Governo da República e por intermédio do Ministério do Trabalho Indústria e Comércio os seus interesses de ordem econômica jurídica higiênica e cultural4 Assim começava a ação para retirar as relações entre capital e trabalho do âmbito privado subordinandoas ao arbítrio do Executivo ditatorial e não à lei Esse primeiro esboço teve efeito quase nulo na dinâmica política de modo que as tensões com os tenentes acabaram levando os muitos políticos eleitos que apoiaram Getúlio Vargas no que se referia à reforma dos processos políticos a interpretar a frase como sinônima de realizar eleições para a Assembleia Constituinte prevista no decreto inicial do governo Os primeiros comícios em prol da ideia tiveram lugar em São Paulo Em seguida políticos da capital federal resolveram organizar um comício no Rio de Janeiro para o qual receberam autorização do ministro da Justiça Todavia os tenentes cariocas reunidos no Clube Três de Outubro mandaram avisar que impediriam o ato ainda que tivessem de usar a força Então o ministro da Marinha proibiu o comício O jornalista José Eduardo Macedo Soares dono do Diário Carioca expressou sua opinião num editorial A rapaziada do Clube Três de Outubro está querendo construir um arranhacéu com palitos A finalidade do clube é sustentar pela violência um regime de poderes discricionários que o Sr Getúlio Vargas planeja prolongar no país Para organizar a ditadura não podia contar com os democratas Tenta por isso um sistema militarista que se aproveita da legenda de heroísmo e abnegação dos antigos revolucionários e do interesse e ambição dos novos5 A resposta não tardou a redação em pleno centro da cidade foi atacada por tropas do Exército que vararam a fachada a tiros e destroçaram metodicamente todos os móveis menos um a cadeira do diretor na qual cravaram uma bala de fuzil Dias depois o presidente recebeu uma comissão de tenentes chefiada por Pedro Ernesto nomeado interventor no Distrito Federal e em cujo gabinete estava lotada parte dos soldados atacantes Ele foi direto ao assunto Chegado o momento em que Vossa Excelência sente a necessidade de atos de força como nos parece ter chegado tem o apoio de todos nós Apoiaremos de modo absoluto o governo de vossa excelência como ditador A resposta também foi direta Sois a vibrante mocidade civil e militar que não quer ver a revolução se afundar no atoleiro das transigências dos acordos entre os falsos pregoeiros da democracia6 Os pregoeiros da democracia que não queriam se atolar numa ditadura agiram Os ministros gaúchos ligados ao federalismo e os mineiros com maiores pudores eleitorais pediram demissão Pior foi em São Paulo onde o interventor nomeado o tenente João Alberto conseguiu a proeza de juntar politicamente os membros do Partido Democrático que apoiara a revolução com seus adversários do Partido Republicano Paulista O governo federal conseguiu evitar rupturas radicais no Rio Grande do Sul e em Minas Gerais mas perdeu o controle em São Paulo Em maio substituiu João Alberto por Pedro de Toledo há anos afastado da política O cálculo por trás da nomeação seria típico de Getúlio Vargas escolher alguém que deve o cargo ao nomeante e que lhe seria grato e fiel A hipótese falhou o interventor nomeou um secretariado formado por defensores da Constituinte e estes foram à luta A derrota militar desse movimento em 1932 não impediu que o ditador visse o essencial naquele momento os tenentes de fato não podiam construir um arranhacéu com palitos de modo que ele mesmo se transformou num pregoeiro da democracia Para começar entregou o governo de São Paulo de porteira fechada aos vencidos Armando Sales de Oliveira do Partido Democrático implementou um programa que começava por ampla reforma fiscal Os impostos sobre produção e consumo típicos do capitalismo passaram a formar a base da receita substituindo o precário imposto de exportação que sustentara o governo paulista no período anterior Mas outro ato de seu governo teve um papel histórico em 1933 fundou a Universidade de São Paulo a primeira a funcionar efetivamente no Brasil quase quatro séculos depois da primeira universidade instalada no continente Até então nenhum governo central regional ou local conseguira fundar uma nem a iniciativa privada reunira recursos para tanto Assim voltava a existir competição entre regimes de governo no interior do país Getúlio Vargas sabia o que isso significava conviver de novo com as formalidades do regime eleitoral que ele desprezava mas que também sabia manobrar Por isso reforçou os poderes em outras searas Sempre atento aos novos meios de comunicação em 1932 promulgou um decreto que permitia a veiculação de publicidade no rádio Ela não era proibida por isso o decreto funcionou como um avanço do governo ditatorial sobre uma área antes inteiramente privada Decretos seguidos foram estendendo os poderes de intervenção até que o Executivo passou a ter um programa diário em rede nacional arrebanhando a maior audiência do país Ao mesmo tempo reforçando velhos métodos forneceu meios para que Assis Chateaubriand fosse comprando jornais país afora os quais formariam a primeira rede de comunicação de abrangência nacional sempre muito atenta às indicações do Catete Em 1934 a Constituinte foi eleita e elaborou uma Carta no figurino tradicional da soberania popular e com uma série de inovações importantes O capítulo tributário uma versão ampliada da reforma fiscal paulista criava novas fontes de receitas para os governos quase todas baseadas em atividades do mercado interno A medida acabava com a secular dependência do Tesouro em relação às receitas do comércio exterior e abria espaço para a continuidade do crescimento do mercado interno A Carta também formalizava os direitos de trabalhadores quase todo o programa de Rui Barbosa em 1919 estava lá A novidade era acompanhada da constitucionalização do papel do Estado como intermediário entre patrões e trabalhadores Com isso um setor antes privado passava a ser tutelado pelo governo como nos tempos imperiais Nesse mesmo ano Getúlio Vargas tornouse presidente de uma República na qual o governo federal contava com poderes bastante ampliados para enfrentar a crise tudo dentro dos princípios seculares de representação nacional e do princípio quase cinquentenário de soberania única do eleitor De uma República na qual havia indícios da retomada de um crescimento econômico baseado na indústria com os empresários investindo em novos setores como a metalurgia crescimento anual de 24 a partir de 1933 química 299 anuais material de transporte 39 anuais e cimento 16 anuais As primeiras siderúrgicas estavam sendo construídas contribuindo para a formação de uma indústria de base local capaz de substituir a importação de bens de produção O presidente podia se limitar a colher os frutos da situação favorável mas era adepto de ideias específicas sobre seu tempo E mais uma vez foi encontrar justificativas nos argumentos de Oliveira Viana Em 1930 este publicou o livro Problemas de política objetiva todo baseado na convicção de que a democracia representativa estava em extinção no mundo O mais grave o mais absurdo o mais anacrônico preconceito de nosso tempo é a crença na competência onisciente dos parlamentos na sabedoria infusa dos homens que em virtude do mecanismo do nosso sistema representativo acontecem chegar ao poder Esse estado de espírito é já evanescente nos centros parlamentares e governamentais do velho mundo O traço mais distintivo que o observador recolhe ao estudar os processos de elaboração legislativa modernamente adotada pela quase unanimidade das democracias contemporâneas é que nenhuma lei é hoje obra exclusiva dos parlamentos Por toda parte a competência técnica vai substituindo a competência parlamentar Essa evolução tão sensível em toda a Europa é assinalada mesmo na Inglaterra a Inglaterra dos parlamentos onipotentes Hoje o centro da gravidade da vida política não é mais o Parlamento e sim o gabinete7 Essa mirada peculiar para o trabalho do Parlamento liberal inglês indicaria um caminho para o Brasil mas distinto da subordinação das comissões técnicas ao poder dos parlamentares britânicos a assessoria técnica deveria substituir o mecanismo da representação abrindo caminho para a extinção do Parlamento E a supressão das eleições seria necessária para criar governos populares capazes de alcançar um objetivo maior Dar às nossas instituições legislativas e administrativas uma feição pragmática que torne possível o estabelecimento de um verdadeiro regime de opinião de um sistema de governo realmente popular intérprete real dos interesses do povo e infinitamente muito mais democrático do que aquele que há cem anos estamos procurando realizar pelo sistema representativo pela prática da soberania das urnas pelo sufrágio universal pela eleição direta pela representação das minorias pela atividade legislativa das assembleias parlamentares8 Com isso os brasileiros iriam superar os velhos liberais ingleses e buscar um objetivo mais elevado e mais adequado ao país equiparandose aos alemães A liberdade e a democracia não são os únicos bens do mundo há muitas coisas a serem defendidas em política além da liberdade como sejam a civilização e a nacionalidade que muitas vezes acontece que um governo nem liberal nem democrático pode ser não obstante muito mais favorável ao progresso de um povo na direção daqueles dois objetivos Em nenhum povo o sentimento dessa verdade tem sido mais vivo do que no povo alemão O alemão divinizou o Estado Este é para ele a expressão suprema da nação organizada O alemão tem a religião do Estado o culto da autoridade obedeceo e obedecendoo fálo com um sentimento equivalente ao que ele põe na obediência aos dogmas de sua religião9 A reforma centralizadora dos primeiros anos de governo fora importante mas continuava aquém do ideal de estimação de Getúlio Vargas Para chegar aos níveis de poder central que desejava era preciso uma situação como a que levara Hitler ao poder a ação de comunistas O Brasil conhecera lutas operárias um partido socialista e até mesmo um pequeno partido comunista fundado em 1922 Todos atuavam no movimento operário mas sem subordinação direta a Moscou e às teses estalinistas A situação mudou quando Luís Carlos Prestes um dos líderes tenentistas mudouse para a União Soviética em 1931 Três anos depois por pressão da Internacional Comunista foi aceito no Partido Comunista brasileiro Tinha alguma popularidade suficiente para que fosse criada a Aliança Nacional Libertadora uma frente que reunia uns poucos extenentes descontentes com o domínio dos políticos após a volta das eleições e o fim das vias de acesso direto ao poder A ALN apresentou um programa fundado na ideia de um governo popular elegeu Prestes presidente de honra e começou a organizar comícios Em julho de 1935 o presidente ouviu do embaixador inglês que Prestes entrara ilegalmente no país acompanhado de militantes enviados de Moscou com o objetivo de tentar um golpe de Estado e que um espião inglês infiltrado fornecia informações regulares sobre o grupo10 Em vez de usar as informações para prender os líderes Getúlio Vargas vislumbrou uma oportunidade para aumentar os próprios poderes Decretou o fim da ANL com estardalhaço mostrando que esta era parte do perigo comunista Na ilegalidade Prestes continuou com o plano de tentar um golpe confiando em seu prestígio A tentativa dos comunistas de tomar o poder em novembro de 1935 resumiuse a dois episódios dominados em um dia Mas forneceu o combustível político de que Vargas necessitava para fundar um governo autoritário Decretou estado de sítio censurou a imprensa prendeu sem processo Em menos de duas semanas conseguiu do Parlamento uma ampliação de poderes que o tornava ditador quase sem contraste Misturando discursos em cadeia nacional de rádio difusão controlada de informações pela imprensa e prisões sem processo em massa foram 7056 em seis meses11 criouse o caldo de cultura necessário para que se disseminasse a ideia de uma ameaça incontrolável Torturas violentas e mortes nos cárceres forneciam o material para novas versões pelo tempo que foi possível O tempo do mandato estava se esgotando as campanhas eleitorais para a sucessão foram para as ruas Tudo isso ia tornando mais complicada a renovação regular dos poderes excepcionais do presidente Para contornar a situação foi preciso recorrer a um falso plano comunista escrito por um militar amigo mas apresentado ao país como prova última de que só uma ditadura resolveria a situação Em 10 de novembro de 1937 o próprio Getúlio Vargas desencadeou o golpe No mesmo dia promulgou uma Constituição cujo primeiro artigo dizia que Todo poder emana do povo e é exercido em nome dele e no interesse em seu bemestar O exercício cabia ao ditador o maior direito do cidadão era o de representar a ele pedindo clemência O mecanismo da representação era substituído pelo da competência técnica fundada na dependência do Executivo Todos os cargos eletivos passavam a ser ocupados por gente nomeada pelo ditador menos o de vereador eleito por pequenos colegiados Voltava aos tempos de ditador e da maior concentração de poder arbitrário acontecida até então no Brasil Pela primeira vez o mecanismo da eleição de representantes funcionando desde 1532 nas cidades era quase todo eliminado na lei permanente O projetado Legislativo nunca foram convocadas eleições seria formado por representantes na Câmara e por técnicos indicados no que seria um Conselho Federal ambos subordinados a um Conselho de Economia Nacional constituído por técnicos incumbidos pelo ditador de fazer o orçamento E tudo isso apresentado pelo regime por meio de uma onda avassaladora de propaganda oficial produzida com métodos modernos Destinada a funcionar num ambiente de rígida censura e total compressão política divulgava a imagem de Getúlio Vargas como um pai benéfico de um povo desamparado a versão renovada da Cabeça Mística do corporativismo Em termos administrativos a grande alteração foi o aumento da intervenção estatal nas relações entre capital e trabalho Entidades de patrões e empregados foram classificadas como órgãos técnicos com a finalidade de colaborar com os poderes públicos no desenvolvimento da solidariedade entre classes A ideia de que era impossível o entendimento entre as partes e que apenas o ditador paternalista resolvia o problema resultou nos mais de 900 artigos da Consolidação das Leis do Trabalho Mal teve início a sonhada ditadura o cenário na qual se baseava o do declínio inevitável da democracia representativa foi se mostrando pouco adequado aos fatos Aos poucos os Estados Unidos e a Inglaterra foram enquadrando o fascismo e o nazismo como inimigos piores que a União Soviética Moscou por sua vez assinou em 1939 um tratado com a Alemanha nazista permitindo que esta invadisse a Polônia aliada da Inglaterra Era uma nova guerra mundial que somente começaria a se definir em 1941 quando os alemães atacaram a União Soviética levandoa para o lado dos aliados Assim se confirmou de maneira ampliada a aliança pregada por Trótski no início da guerra uma união mundial contra os regimes autoritários de direita Diante disso Getúlio Vargas deixou as afinidades ideológicas de lado e retomou o pragmatismo negociando a entrada do Brasil na guerra ao lado dos aliados Até mesmo Francisco Campos o autor do texto da Constituição de 1937 soube avaliar as consequências antes mesmo do fim do conflito A Constituição de 1937 caducou Nossa organização política foi montada em torno de ideias que não resistiram ao teste da luta O Sr Getúlio Vargas já pensou demais em si mesmo É tempo de ele pensar um pouco no Brasil12 Dessa vez contudo não havia margem de manobra Em outubro de 1945 o ditador foi deposto pelas próprias forças armadas pois até estas haviam se convencido da impossibilidade de manter uma ditadura num cenário mundial em que as democracias com apoio do Brasil haviam se mostrado vitoriosas CAPÍTULO 66 Democracia populista O MUNDO QUE EMERGIU DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL FOI CONCEBIDO PELO presidente norte americano Franklin Roosevelt e por seus auxiliares de modo a que estivesse baseado em instituições reguladoras da política e da economia internacionais A Organização das Nações Unidas cuidaria dos aspectos gerais cada nação entraria com um representante e um voto numa assembleia uma fórmula defendida em vão por Rui Barbosa em Haia no ano de 1907 mas um núcleo formado pelos vencedores da guerra o Conselho de Segurança teria poder de veto sobre as decisões No campo econômico a instituição central seria o Fundo Monetário Internacional responsável pelo fornecimento de créditos para manter em equilíbrio o sistema Tendo lutado na guerra ao lado dos vencedores o Brasil tinha o direito de participar desse processo O candidato nato a representar o país nessas conversas era o chanceler Oswaldo Aranha que tinha acesso direto aos teóricos ao redor do presidente norteamericano Mas Aranha foi demitido por Vargas em 1944 justamente quando a vitória aliada estava à vista e começavam as discussões para o pósguerra Mesmo afastado o prestígio do exchanceler foi suficiente para que presidisse as primeiras assembleias da ONU tendo papel ativo na primeira grande decisão da instituição a criação do Estado de Israel Ao afastar o leal colaborador Getúlio Vargas sabia que retirava de cena um concorrente com potencial para o suplantar Em seguida manobrou para se manter vivo em maré adversa Também sabia que seu investimento na ditadura não seria bemvisto no novo contexto mundial Ao negociar a participação brasileira na guerra Vargas havia obtido recursos para a instalação de uma grande siderúrgica que virou o símbolo da opção que passara a orientar o governo a aposta na ampliação do muro estatal erguido na década de 1930 incrementando a participação direta do governo na economia por intermédio do setor industrial Por isso antes mesmo do final da guerra além da siderurgia foram criadas empresas estatais nas áreas de mineração química e transportes O desenho do muro construído após 1930 foi reavaliado no contexto de instituições democráticas mas sua restauração acabou facilitada pelo sucessor do ditador deposto o presidente José Linhares Este recorreu a seus conhecimentos jurídicos para graças a emendas na Constituição de 1937 nomear interventores nos estados convocar eleições simultâneas para a presidência da República e uma Assembleia Constituinte Com isso o país ganhou tempo não foi necessário esperar o Parlamento aprovar a nova Carta para depois escolher um presidente mas acabou premiando aqueles que haviam ocupado cargos governamentais durante a ditadura E estes logo mostraram que o muro estatal não servia apenas para controlar a economia de forma ditatorial como acontecera em meados da década de 1930 Muitas mudanças faziam sentido mesmo após a guerra Eurico Gaspar Dutra o candidato à presidência favorecido pelo exditador e os partidos que este organizara fizeram maioria no Parlamento Todos ganharam passagem privilegiada para a nova realidade Haviam começado como agentes do governo discricionário e contrário ao sistema representativo mas se tornaram políticos com potencial de voto e aprenderam a viver sem os cacoetes positivistas tal como fizera Vargas O cinismo da autoridade técnica deu lugar ao bom comportamento dos ungidos em eleições de sagração surgindo um conservadorismo efetivamente capaz de ir além das atas falsificadas da época da ditadura positivista gaúcha ou dos banquetes conservadores anteriores a 1930 Em 1945 votaram 6 milhões de eleitores Como a população brasileira em 1940 era de 41 milhões de habitantes o contingente eleitoral girava em torno de 14 da população total Essa proporção era próxima à da última eleição imperial na qual votaram analfabetos a de 1879 Bem menor do que nas democracias em que o sufrágio era universal mas o suficiente para legitimar o pleito As novidades do voto feminino e do voto secreto ajudavam nesse sentido impedindo as falsificações grosseiras da soberania popular A adaptação de conservadores e positivistas ao secular modelo representativo nascido dos governos locais era um progresso ainda que relativo pois a exclusão dos direitos políticos dos analfabetos refletiuse diretamente no desenho institucional que veio em seguida às eleições A Constituição de 1946 tinha nove títulos contra cinco da Carta de 1891 Quase todo o acréscimo estava em novas atribuições do Estado em relação com a sociedade Pela organização e minudência do tratamento a descrição dessas atribuições feita caso a caso lembrava mais as antigas Ordenações do Reino com suas ordens desiguais tão a gosto de conservadores e positivistas do que as cartas iluministas fundadas no princípio da igualdade No que se refere à organização começava tratando do alto o poder federal passava pelas instâncias intermediárias dos estados e municípios e trazia um rápido capítulo com os direitos do cidadão mantendo a proibição de voto dos analfabetos Até aí tudo semelhante à Constituição de 1891 Em seguida vinha um título dedicado à ordem econômica definindo poderes amplos para o governo federal a começar pela possibilidade de ação nos mercados A União poderá mediante lei especial intervir no domínio econômico e monopolizar determinada indústria ou atividade A intervenção terá por base o interesse público e por limite os direitos fundamentais assegurados nesta Constituição O governo federal também ficava com o monopólio das riquezas do subsolo e da concessão de licenças de exploração além da capacidade de distribuir concessões em especial na área de comunicações A Carta também consagrava o papel do governo como intermediário obrigatório nas relações entre trabalhadores e patrões por meio da Justiça do Trabalho instância que tornava quase sem valor os acordos diretos entre os agentes privados que produziam Por isso havia uma lista minuciosa de direitos constitucionais a serem tutelados pelo governo desde a duração da jornada de trabalho até a participação nos lucros das empresas Esse detalhamento prolixo poderia levar a supor que o governo federal agora desfrutava de uma situação inversa à do período anterior passando a ter autoridade efetiva sobre todo o território do país e todas as classes da sociedade Basta uma rápida mirada para pontos pouco detalhados da Carta para se perceber certas nuances Pelo artigo 156 a lei facilitará a fixação do homem no campo estabelecendo planos de colonização e de aproveitamento das terras públicas Para esse fim serão preferidos os nacionais e dentre eles os habitantes das zonas empobrecidas e os desempregados Os estados assegurarão aos posseiros de terras devolutas que tenham morada habitual preferência para aquisição até 100 hectares A Carta afirmava portanto que as posses seculares não valiam nada e que as terras eram públicas ou seja do governo Não bastasse os direitos trabalhistas detalhados para a população urbana eram negados aos sertanejos O mesmo se dava com os direitos políticos Assim a maioria da população era excluída Tudo isso dava novo sentido à antiga metáfora do corporativismo ou à sua versão dual do caranguejo litorâneo e do sertão ignoto e fora do mundo do conhecimento O progresso capitalista e o mundo urbano eram enquadrados como filhos da tutela governamental e cercados de privilégios ao passo que o sertão se mantinha separado e inferiorizado Essa recriação modelava o momento populista Antes de lidar com o tema populista vale a pena mostrar algo das relações entre sertão e cidade naquilo que interessa ou seja nas relações entre os seculares produtores independentes e o capitalismo do pós guerra Há um estudo de Antonio Candido intitulado Parceiros do Rio Bonito feito no período imediatamente posterior à aprovação da nova Constituição Ele revela a permeabilidade entre a cultura caipira como então era chamada a cultura sertaneja em São Paulo e o capitalismo A relativa indiferenciação social no período anterior ao capitalismo é substituída pela estrutura mais complexa sobrepondo o fazendeiro que emprega trabalho assalariado a seu parente sitiante muitas vezes com tantas terras quanto ele mas trabalhandoas pessoalmente que por sua vez se sobrepunha aos agregados sem estabilidade Nas três camadas encontramos a presença da cultura caipira mas na intermediária se localizaram suas manifestações mais típicas visto como a superior tende com o tempo a se desligar dela acompanhando a evolução dos núcleos urbanos e a inferior nem sempre possui as condições de estabilidade1 Assim a cultura secular não só convivia com o capitalismo avançado como ainda tinha possibilidades conscientes de sobrevivência Pequenos lavradores sitiantes ou parceiros embora arrastados cada vez mais para o âmbito da economia capitalista e para a esfera de influência das cidades procuram ajustar se ao que se poderia chamar de mínimo inevitável de civilização procurando por outro lado preservar o máximo possível das formas de equilíbrio Daí a qualificálos como grupos que aceitam da cultura urbana os padrões impostos aquilo que não poderiam recusar sem comprometer a sua sobrevivência mas rejeitam os propostos os que não apresentam força incoercível2 Apesar dessa capacidade dos nativos e sertanejos de conviver sem problemas com um capitalismo industrial já avançado a Constituição de 1946 recriou diferenças típicas da imagem corporativista mantinha tanto os governos indígenas como as vastas populações dos sertões à margem do direito de propriedade e à margem da lei de uma economia produtiva Enquadrava a produção sertaneja como economia informal economia do costume tal como nos tempos da colônia ignorando que apesar do tratamento ideológico era uma economia de empreendedores e essencial para o mercado nacional formal Mesmo sem direitos essa grande parcela da população continuou sendo a maior consumidora de produtos industriais e a maior fornecedora de produtos para os centros industriais e de serviços As trocas entre essas partes isoladas tanto do mercado externo quanto da ação do governo federal continuaram sendo aquelas que geravam a dinâmica de crescimento da economia Ainda para esse período recente a aplicação da noção de economia de subsistência continua gerando cenários que não se adequam aos números embora estes já existissem em abundância As observações qualitativas de Antonio Candido indo para muito além dessa noção normativa são muito mais compatíveis com o cenário atual quando mostram a total complementariedade e compatibilidade entre a formação social secular do sertão e a economia capitalista Com essa imagem em mente se pode entender que a reconstrução da tutela no populismo era menos uma exigência do progresso que uma recriação da tradição A incorporação política era uma possibilidade óbvia mostrada pela história da gestão municipal que voltava para as mãos dos governos representativos depois do curto lapso de interrupção ditatorial A incorporação civil era fácil com a simples transformação do direito de posse em direito de propriedade A medida teria provavelmente um efeito econômico ainda maior do que o trazido pelas medidas de Rui Barbosa tanto o mercado de crédito como o de bens logo entrariam na esfera da produção capitalista uma vez que as populações estavam mais que preparadas para tanto Mas nada disso aconteceu a letra da lei embora com preâmbulo iluminista repunha o ideal corporativo de tratar cada parte do corpo social de um modo de criar hierarquias de negar a igualdade A única mudança real trazida pela Constituição de 1946 ocorreu em outra área A alínea r do artigo 5 que definia os poderes da União previa a incorporação dos silvícolas à vida nacional É uma definição curiosa na medida em que os índios desde a Constituição imperial eram tecnicamente cidadãos brasileiros No momento em que a Carta foi escrita eles ainda dominavam a maior parte do território do país embora esse espaço estivesse restrito à Amazônia e ao CentroOeste pois o avanço da agricultura no Sul e no Sudeste durante a primeira metade do século XX ocasionara nessas regiões a devastação das populações nativas e a tomada de seus territórios Como sempre os índios eram agentes efetivos da produção de excedentes e faziam rodar a economia nacional embora nesse aspecto a produtividade industrial tenha aberto um fosso muito maior Por isso a breve menção na Carta era melhor do que nada abria caminho para que o Estado iniciasse uma política para garantir aos povos indígenas o controle das terras que ainda ocupavam um projeto republicano conduzido a duras penas pelo pioneiro Cândido Rondon Somando tudo afinal a elite conservadora incrustada no governo central conseguira se adaptar um pouco mais ao país onde estava instalada O muro pós 1930 já não era mais o lugar apenas dos caranguejos o mercado já não existia apenas nas casas O governo central deixava de ser na economia uma instância apenas de captação de impostos aduaneiros em política se enraizava nos interesses da população agora minimamente expressos no voto Mas o fim da ditadura não significou o fim da pretensão de superioridade conservadora nem a adesão a uma identidade nacional caipira ou multiétnica Na lógica de José Bonifácio não deixava de representar um passo no amalgamento que faria a unidade da nação se tudo desse certo E o tudo certo se concentrava na manutenção dos mecanismos de controle dos fluxos externos da economia que permitiam um crescimento econômico acima da média mundial A razão de ser do muro passou muito bem pela primeira prova prática no novo regime As expectativas de retomada do comércio mundial nas bases multilaterais pensadas por Roosevelt logo se revelaram irrealistas como notou Sergio Besserman Viana Não havia equilíbrio possível nas condições de mercado Os Estados Unidos haviam crescido 11 em média ao ano entre 1940 e 1945 enquanto a Europa e o Japão tiveram parte de suas populações dizimadas suas economias desarticuladas e seus parques produtivos em parte destruídos A volta ao multilateralismo era prematura Foi necessário o malogro da conversibilidade do esterlino em 1947 para que se medisse a natureza e amplitude de um desequilíbrio que se anunciava duradouro3 O reconhecimento desse desequilíbrio ocasionou uma alteração de métodos e cronogramas Os Estados Unidos passaram a bancar a recuperação das economias destruídas pela guerra enquanto a União Soviética expandia o regime comunista para seus vizinhos Começava a Guerra Fria que daria continuidade ao cenário mundial de crescimento baseado mais nos mercados internos do que nas oportunidades internacionais apesar da manutenção do desenho institucional do multilateralismo Dessa vez a reação brasileira foi imediata No campo econômico foi fácil voltar atrás com o fim da breve experiência de liberação da venda de divisas e com a retomada do monopólio estatal e do controle das licenças de importação No campo político o ajuste à Guerra Fria se fez com a proibição das atividades do Partido Comunista Brasileiro após um período igualmente breve de legalização Com isso cessou a discussão interna o muro estatal era tão necessário na nova fase mundial quanto na ditadura que o reforçara como reação à crise de 1929 O governo federal passava a ser o controlador efetivo das estreitas portas do comércio e do movimento financeiro internacionais do país Todos os agentes econômicos que precisavam circular por esses caminhos teriam ainda de acender velas nos altares da burocracia federal A lógica geral do processo ainda era a mesma por trás do Plano de Valorização do Café trocar produtos agrícolas por equipamentos de produção industrial Mas a sua execução não tinha mais nada a ver com os mecanismos de mercado agora era processo discricionário uma vez que o controle das portas estreitas do comércio internacional exigia muito do governo federal Do ponto de vista operacional o controle dos fluxos externos ampliouse com o monopólio de compra dos principais produtos agrícolas de exportação café açúcar cacau e mate eram adquiridos por autarquias em moeda nacional Isso apresentava uma dupla vantagem reduzia a pressão nas portas e dava mais poder de fogo ao governo federal na hora das vendas O governo federal era ainda o maior estocador mundial de café mas agora sua ação para forçar preços funcionava como subsídio de concorrentes externos de modo que a posição foi se deteriorando ao longo do tempo Era um sacrifício para a agricultura afastada das portas mas elemento crucial na administração dos fluxos No sentido das importações na maior parte do tempo as licenças resultavam de processos arbitrários que favoreciam o setor industrial Além de permitir o acesso a equipamentos as portas estreitas criavam uma quase obrigatória reserva de muitos mercados para a produção nacional mesmo havendo produção mais barata no exterior Porém como essa era mais ou menos a situação das principais economias do mundo as reclamações eram mais protocolares que qualquer outra coisa Mesmo os Estados Unidos os únicos de fato capazes de sustentar o multilateralismo muitas vezes tinham de se curvar ao realismo nacional Para vender produtos de suas indústrias no Brasil financiavam até mesmo projetos contrários a seus interesses globais Além da siderurgia boa parte dos investimentos estatais no setor industrial em especial na área elétrica contou com financiamento de longo prazo dado ao governo brasileiro por agências norteamericanas algo muito bemvindo num ambiente de escassez que se estendia ao lado financeiro das transações externas Nessa seara a luta era mais dura ainda Os fluxos de capital eram controlados a contagotas Toda hora faltava dinheiro para equilibrar a balança A cada soluço nos preços do café havia choradeira dos importadores dos empresários que precisavam remeter capital dos credores do governo que ficava ainda maior quando se recorria às emissões de moeda nacional para fabricar milagres e gerar inflação Em meio a tantos solavancos o resultado foi positivo Ao longo das décadas de 1940 e 1950 permaneceu a tendência iniciada com a República o crescimento da indústria manteve um ritmo muito superior ao das demais atividades especialmente a agricultura Como a partir de 1947 passou a existir um cálculo do PIB essa medida deixou de ser marcada por imprecisões estatísticas A média anual do período era superior a 7 o que colocava a economia brasileira entre as mais dinâmicas do planeta Tudo num cenário de crescimento próximo a zero do comércio internacional As exportações brasileiras foram de 11 bilhão de dólares em 1947 em 1962 de 12 bilhão de dólares Apenas num ano excepcional 1951 chegaram a 17 bilhão de dólares Foi exclusivamente graças a um extremo esforço discricionário que se manteve a dinâmica da economia O bom desempenho deviase quase que apenas ao crescimento do mercado interno justificando o desenho institucional do muro Mas o próprio sucesso teve suas consequências A sociedade mudava de cara Para manter esse elevado ritmo de crescimento sem o recurso a imigrantes cresceu a migração originária da região produtiva mas desprotegida pela lei para aquela na qual se concentravam os privilégios concedidos ao trabalho formal Sua marca maior foi a vinda de nordestinos para o Sudeste sobretudo São Paulo Pelas regras toda essa gente ao mudar do sertão para a cidade ganhava direitos aumentando as pressões sobre o sistema político Nos primeiros anos a maior fonte de oposição vinha dos prejudicados pelos privilégios concedidos à indústria no acesso às divisas como os importadores e os investidores estrangeiros que precisavam remeter lucros E a posição deles era expressa por economistas que atualizavam a antiga posição fisiocrata anti industrial em ortodoxia financeira Essa crítica ao arbítrio governamental era ampliada com medidas no âmbito interno que provocavam grandes desequilíbrios nas relações produtivas e que se tornaram uma tentação para políticos em busca de popularidade rápida Getúlio Vargas elegeuse com facilidade em 1950 e quis deixar uma imagem que fosse além daquela de ditador como um pai dos pobres democrata Como seu governo andou meio de lado e o mandato estava acabando apelou para a elevação do salário mínimo em 100 por decreto seguida pela adesão do Executivo a uma proposta da oposição que criava uma empresa estatal monopolista na área de petróleo Essas foram fontes relevantes da perda de apoio político entre empresários seguida da perda do controle do Congresso o que levaria ao gesto do suicídio Mesmo um grande solavanco como esse não alterou o rumo geral do período O que parecia uma crise impossível no governo interrompido pelo suicídio de Vargas foi superado com facilidade quando Juscelino Kubitschek soube se aproveitar da recuperação no cenário internacional para alargar as portas da felicidade industrial atraindo o capital estrangeiro de risco para a montagem da indústria automobilística Ao mesmo tempo construiu Brasília rompendo a secular ligação entre sede do governo e sede da região importadora do país em clima de Bossa Nova e modernismo Rasgou estradas de rodagem pelo sertão onde foi erguida a nova capital viabilizando a rapina das posses dos moradores e tornando urgente um mínimo de igualdade entre os brasileiros Tudo isso exigiu um comportamento muito heterodoxo no controle das portas em tal medida que aconteceu um milagre em 1960 pela primeira vez em toda a história do Brasil um candidato de oposição ganhou uma eleição para a chefia do Executivo Seu nome era Jânio Quadros e tinha como programa uma administração econômica mais ortodoxa Tomou posse com extrema minoria no Parlamento quatro quintos dos parlamentares eleitos eram dos partidos que apoiavam as administrações anteriores Logo tomou uma medida histórica a criação do Parque Nacional do Xingu primeira terra delimitada para os índios na República Não teve tempo para muito mais Tentou reverter a desvantagem com uma manobra política heterodoxa uma renúncia para forçar um golpe de Estado e acabou indo contar sua história em bares como cidadão comum O vicepresidente João Goulart chegara ao cargo por artes da política Não tinha nada a ver com o renunciante nem com seu programa pois era parte do espectro ideológico oposto Enfrentou o mesmo problema do antecessor bases parlamentares exíguas Ao fim e ao cabo o Partido Social Democrático o PSD que controlava o governo desde 1945 conduziu as negociações que levaram ao parlamentarismo e à manutenção da agremiação no comando do país graças a sua base parlamentar Mas a coisa desandou As portas seletivas para o exterior se tornaram inoperantes em meio a conflitos de todo tipo No lado econômico a produção industrial caiu e a inflação aumentou No lado político havia a pressão por direitos que foi apoiada por João Goulart as chamadas reformas de base com a reforma agrária em primeiro lugar entraram na pauta Tratavase de algo muito razoável num país no qual o sertão sempre ficara de fora do desenho do poder central Mas para ser favor custava dinheiro num momento em que o governo federal tinha as contas no bagaço bem ou mal a questão que elegera Jânio Quadros ia se mostrando pertinente Tudo isso levou a um impasse CAPÍTULO 67 Ditadura militar e seus paradoxos NÃO RESTA DÚVIDA DE QUE A OPOSIÇÃO RADICAL À PROPOSTA DAS REFORMAS DE BASE e a perseguição mais uma vez aos comunistas estava na base da deposição do presidente João Goulart Tal constatação além de factual serve muitas vezes como elemento explicativo de cunho ideológico para analisar o regime que veio em seguida Mas certas nuances devem ser levadas em conta Na manhã do dia 2 de abril de 1964 o país tinha três presidentes precários e um potencial No Rio Grande do Sul o presidente Goulart aguardava os acontecimentos Nas primeiras horas do dia em Brasília o Congresso Nacional decretara vago o cargo maior do país e indicara o presidente da Câmara Ranieri Mazzilli para ocupar o posto No Rio de Janeiro o marechal Costa e Silva falava em nome do Supremo Comando da Revolução como autoridade de fato Na mesma cidade o marechal Castelo Branco tentava viabilizar sua indicação para a presidência Jango deixou o país mas a situação de múltiplo comando perdurou por quatro dias durante os quais não houve reação popular de monta Quem acabou resolvendo tudo foram os parlamentares os mesmos que haviam resolvido a crise que se seguiu à renúncia de Jânio Quadros em 1961 com o parlamentarismo e também os problemas do parlamentarismo com o plebiscito de 1962 que restaurou o presidencialismo Uma das primeiras providências de Ranieri Mazzilli foi nomear os comandantes militares como ministros trazendo os para o governo institucional Por causa dessa capacidade de manobra muitos dos que apoiaram o movimento militar para acabar com a carreira dos políticos iam se tornando políticos Logo teriam motivos maiores para se preocupar No dia 7 de abril na casa do deputado Joaquim Ramos encontraramse os próceres do PSD Juscelino Kubitschek Amaral Peixoto José Maria Alckmin e Negrão de Lima O marechal Castelo Branco lá chegou acompanhado do senador pessedista Luís Viana Filho No registro do marechal ficou apenas a afirmação de que se comprometera a cumprir a Constituição e o Ato Institucional No relato de Juscelino e de todos os políticos o marechal entrou na conversa como candidato afirmando que respeitaria a Constituição e as eleições aconteceriam na data marcada outubro de 19651 O fato é que o marechal saiu da conversa como candidato firme à presidência inclusive aceitando como vice o homem de confiança de Juscelino José Maria Alckmin Para fazer valer o acordo o Congresso aprovou nada menos que sete reformas constitucionais em apenas quatro dias A maior vitória dos defensores do arbítrio foi a promulgação de uma versão mais branda do Ato Institucional no 1 pelos ministros militares em nome do governo Ela aumentava os poderes do presidente em detrimento dos do Parlamento Como prova desses poderes foram cassados os mandatos de 40 parlamentares No dia seguinte 11 de abril o Congresso elegeu Castelo Branco presidente para terminar o mandato de Jânio Quadros Castelo Branco recebeu 261 votos incluídos 36 vindos da bancada do PTB o partido de João Goulart e também o sufrágio do senador Juscelino Kubitschek Apenas 72 deputados por motivo de consciência se abstiveram Completavase assim um ritual Não deixa de ser curioso indagar por que ele foi realizado Apesar de terem o comando de fato os vitoriosos preferiram submeter o escolhido a limitações em troca da unção pública E tudo isso seguiu um roteiro histórico Os governadoresgerais se apresentavam perante as câmaras o primeiro imperador e os constituintes lutaram pelo reconhecimento mútuo de suas posições relativas como detentores de duas soberanias nas cerimônias de abertura da sessão parlamentar os republicanos se apresentaram perante a câmara do Rio de Janeiro no momento da vitória Getúlio Vargas fugira à regra mas em 1964 os militares recuperaram a tradição com um fim preciso Queriam de fato um mandato uma forma de evitar que o ungido se sobrepusesse à instituição armada como ditador Nesse sentido adotavam um costume secular dos analfabetos a rotação dos eleitos nas câmaras municipais sempre impedira ditaduras locais O ritual de unção também se justificava por dois outros motivos ajudou a criar consenso interno nas forças armadas e revestiu imediatamente de alguma legitimidade alguém que passava a ser presidente da República numa situação constitucional Mas não seria um presidente qualquer Para empregar a linguagem de Campos Sales seria um depositário unipessoal pelo qual se eliminava a política de uma comunidade para concentrála na pessoa de uma suprema autoridade E para mostrar que era pessoa de suprema autoridade uma das providências do presidente Castelo Branco foi cassar os direitos políticos de Juscelino Kubitschek Era um sinal de que como diziam os conservadores sobre o imperador havia alguém que reina governa e administra Alguém que saberia colocar os interesses da administração acima da política como diria o visconde do Uruguai e repetiria Getúlio Vargas em seu diário A proximidade das eleições faz com que as conveniências vão se sobrepondo aos interesses da administração É o mal que volta2 Renovada a velha crença dos conservadores agora que reinstalavam um poder acima da representação da soberania dos cidadãos expressa no voto um mal estaria sendo afastado e um novo bem se instalaria a partir de uma ação técnica que se sobreporia às conveniências dos eleitores uma situação que o monarquista João de Scantimburgo nomeava como nostalgia do Poder Moderador Antes de entrar na articulação desse novo bem cabe aqui uma mirada sobre o mundo Ao longo dos primeiros anos do pósguerra a situação mundial havia gerado com exceção dos Estados Unidos políticas semelhantes àquelas adotadas no Brasil Andrew Terborgh assim resumiu as opções europeias A situação após a Segunda Guerra Mundial fortaleceu as posições trabalhistas na Europa e deu poder a partidos de esquerda com bases operárias Em troca da moderação nos pedidos de aumento salarial os governos mantiveram compromissos com o pleno emprego e o desenvolvimento econômico Esses acordos limitaram o poder das autoridades monetárias para eliminar déficits externos o emprego de contração monetária para equilibrar as contas externas destruiria a acomodação entre capital e trabalho Como consequência os países europeus adotaram controles cambiais e o resultado foi que uma rede de pagamentos internacionais tão benéfica para o comércio mundial antes de 1914 não se desenvolveu nos anos 503 Nada muito diverso do que aconteceu no Brasil Mas então o cenário do comércio mundial começou a mudar Em 1957 seis países europeus Alemanha Itália França Bélgica Holanda e Luxemburgo se reuniram para criar o Mercado Comum Europeu Países que nos séculos anteriores viviam em guerra só entre França e Alemanha houve quatro grandes conflitos nos dois séculos anteriores abriram mão de parte da soberania nacional algo inédito em termos históricos Na base econômica da união estavam isenções tarifárias para a circulação de produtos industriais entre os países proteção tarifária em defesa da produção agrícola dos membros e adesão à conversibilidade das moedas nos termos do tratado de Bretton Woods O realinhamento provocou uma aceleração imediata no crescimento do comércio internacional invertendo uma tendência que vinha desde 1929 Nos primeiros anos do pósguerra o crescimento interno das economias era maior que o do comércio internacional Entre 1960 e 1963 as taxas de crescimento do comércio internacional se igualaram às dos mercados internos A partir daí começaram a superálas rapidamente em taxas superiores a 8 anuais Em suma inverteuse a situação que levara em 1930 à criação do muro que protegeu o desenvolvimento do mercado interno brasileiro Voltou o tempo das oportunidades no comércio internacional Japão Coreia e Cingapura países com possibilidades menores nos tempos de isolamento foram os primeiros a se aventurar nas novas ondas A nova frente de oportunidades estava aberta apenas para empresas pois os Estados continuaram sendo nacionais Para uma nação se aproveitar delas teria de ter outro papel em vez de defender fronteiras precisaria incentivar as empresas que atuam fora das fronteiras nacionais comprando e vendendo no comércio internacional e no sentido oposto defender os setores mais fracos do assédio de competidores internacionais Esse era o sentido da ação europeia e das nações asiáticas com Cingapura e Japão à frente que se lançaram atrás das oportunidades abertas pelo crescimento do comércio internacional Um sinal evidente de que os pressupostos mundiais que justificavam o muro brasileiro como fator de desenvolvimento econômico não eram mais os mesmos Mas também um sinal que fazia pouco sentido para os novos donos do poder Os militares assumiam o comando de uma economia que crescia ininterruptamente com taxas altas maiores que a média mundial havia setenta anos Um período tão longo de progresso em meio a um Ocidente que conhecera duas guerras mundiais e uma grande crise afetando os países mais desenvolvidos não era pouco a economia brasileira era naquele momento uma das que apresentavam maior crescimento no mundo no período entre 1890 e 1960 Em períodos diversos do cenário internacional a fórmula brasileira fora a mesma incentivar a indústria local e com isso obter uma taxa de crescimento do mercado interno maior do que a do setor exportador Também fazia parte da experiência brasileira a manutenção de um sistema político que se baseava no emprego do governo central como fornecedor de meios para o controle dos resultados eleitorais sistema este que fora herdado intacto do Império e já tinha 120 anos de existência além de ter sobrevivido à mudança de regime A rigor o rito militar de fusão com o Parlamento era uma aposta na continuidade desse controle uma defesa contra a ameaça que o voto significava para os controladores dos recursos políticopatrimoniais do centro Por isso os novos donos do poder sequer consideraram ler os eventos do mundo ao modo dos primeiros republicanos como indicador de que valia a pena descentralizar poder permitir o incremento de fluxos internacionais confiar na imagem modernista de ligação entre sertão e vanguarda buscar oportunidades novas no mundo Nesse contexto entrou em funcionamento a administração acima da política do novo regime comandada por técnicos Dois funcionários públicos federais de carreira se encarregaram da condução da política econômica Otávio Gouveia de Bulhões ministro da Fazenda e Roberto Campos ministro do Planejamento Eram ambos discípulos de Eugênio Gudin economista conservador que passara as duas décadas anteriores criticando a inflação brasileira e tendo poucas palavras para explicar o desenvolvimento Com a mudança do regime as ideias dos três sobre inflação passaram a nortear as ações do governo e foram expressas no Programa de Ação Econômica do Governo A inflação era apresentada como resultado da inconsistência da política distributiva concentrada em dois pontos principais 1 no dispêndio governamental superior à retirada do poder de compra do setor privado sob a forma de impostos ou de empréstimos públicos ii na incompatibilidade entre a propensão a consumir decorrente da política salarial e da propensão a investir associada à política de expansão do crédito às empresas Dentro deste quadro encontramse as três causas tradicionais da inflação brasileira os déficits públicos a expansão do crédito às empresas e as majorações institucionais de salários em proporção superior à do aumento da produtividade4 Havia um fator próprio do âmbito público e mensurável na argumentação os gastos governamentais acima das receitas e financiados por emissão de moeda Já os outros dois fatores são até hoje de quase impossível quantificação além de confundirem a esfera do governo e a dos mercados No caso do crédito às empresas o lado financeiro do capital privado no processo o termo expansão leva a supor facilidade para capitalizar empresas em geral num país onde o fiado e a informalidade eram muito presentes e a capitalização dos empreendimentos muito baixa até as grandes empresas eram familiares por falta de opção Mais imprecisa e impossível de quantificar até hoje era a afirmação de que uma das causas da inflação estaria nos aumentos do salário mínimo em proporção maior que o aumento da produtividade A maior parte do trabalho produtivo brasileiro naquele momento ainda era realizada pelo modo secular por produtores independentes tipo Jeca Tatu no sertão ou em associação entre eles e outros empresários parceiros meeiros diaristas etc O trabalho assalariado ainda estava restrito a uma minoria e o salário mínimo afetava uma minoria nessa minoria Nesse cenário a proposição de que o aumento do salário mínimo gerava inflação era no mínimo imprecisa em termos quantitativos Mas essas eram as causas vistas pelos novos agentes de um Executivo com poderes muito reforçados e portanto capazes de colocar a administração acima da política Agiram para atacar as causas que viam e vieram os resultados Para resolver o impasse dos gastos públicos o governo retirou poder de compra dos agentes privados num ritmo inaudito Thomas Skidmore resume As rigorosas medidas de arrecadação de impostos resultaram em significativa elevação da receita federal Ela passou de 78 do PIB em 1963 para 83 em 1964 depois para 89 em 1965 e 111 em 1966 A combinação com o corte de despesas reduziu o déficit público de 42 do PIB em 1963 para 16 em 19655 O governo federal estava longe de ser um gigante mesmo após o processo de 34 anos de concentração de poderes no período pós1930 Era ainda um governo que absorvia uma parcela relativamente modesta da produção total ou seja o setor privado continuava sendo o centro do processo de crescimento A grande mudança do regime militar foi promover uma forte estatização expandindo a presença do governo federal na economia Em apenas três anos a instância central de poder passou a abocanhar uma fatia da riqueza nacional 43 maior E essa foi a parte menor da retirada de recursos do setor privado O governo criou fundos compulsórios sobre o trabalho o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço dinheiro retirado de trabalhadores e empregadores que era administrado pelo governo transferiu compulsoriamente para a esfera federal todos os ativos do setor de previdência com a criação do INPS subordinou o novo instrumento das cadernetas de poupança a um banco oficial o BNH transformandose no dono do crédito imobiliário em todo o país Ao mesmo tempo reorganizou a estrutura jurídica e ampliou sua atuação direta como gestor de empresas Antes de 1964 apesar de o setor público federal ser relativamente modesto o governo tinha uma empresa monopolista no setor de petróleo a Petrobras financiada por impostos gerais tornarase operador da maior parte das ferrovias com a criação da Rede Ferroviária Federal controlava a maior mineradora a Companhia Vale do Rio Doce a maior siderúrgica a Companhia Siderúrgica Nacional e os maiores bancos Banco do Brasil Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico Caixa Econômica Federal comprava com poderes monopolistas as produções agrícolas exportáveis sobretudo a do café E como conseguiu muito dinheiro novo tratou de ampliar a atuação como empresário criando a Telebrás telecomunicações a Eletrobrás energia elétrica e a Siderbrás siderurgia Antes de 1964 havia 12 estatais em três anos tornaramse 44 A mudança efetiva de estrutura aconteceu também na área financeira A criação do Banco Central e uma lei de organização do sistema financeiro permitiram o surgimento de algo parecido com um mercado de capitais autônomo Mas logo este estava a serviço de seu principal beneficiário o próprio governo que passou a ter condições de captar poupança privada para cobrir seus déficits por meio de títulos indexados à inflação as ORTN Em suma os agentes do poder agora discricionário empregaram seu poder para ampliar enormemente o governo federal Ao modo que vinha dos séculos os interesses da esfera central se confundiam com o bem comum e aqueles da sociedade eram apresentados como interesses particulares Assim eram pensados os interesses nos termos do Antigo Regime a separação entre público aquilo que a lei define e privado a esfera de liberdade para além da lei não cabe bem para explicar a nova etapa de concentração de poder pela ditadura Com esse alerta se entende melhor um duplo prejuízo no setor privado Do lado do capital no setor privado os resultados foram inauditos Durante a gestão de Castelo Branco a indústria cresceu menos que a média do PIB brasileiro algo que era constante apenas até o final da década de 1870 e depois ocorrera apenas com a recessão de Joaquim Murtinho o ídolo de Eugênio Gudin Do lado do trabalho as coisas foram ainda piores O governo federal aproveitou seu peculiar modo de ver os salários como elemento inflacionário para estatizar algo que antes era parte do jogo econômico do mercado transformou reajustes salariais em norma governamental decretando reajustes abaixo da inflação algo só possível num país com sindicatos oficiais e uma lei que proibia greves Desse modo capital e trabalho foram subordinados ao governo federal o grande beneficiado pela política A obra de concentração econômica teve como paralelo a concentração política Do ponto de vista das instâncias de governo a esfera federal se tornou proporcionalmente muito maior que as estaduais e municipais Do ponto de vista da distribuição de poderes o Executivo federal adquiriu um enorme domínio sobre o Parlamento No que se refere à distribuição de poderes entre o eleitor soberano e a autoridade a concentração foi ainda maior Em 1966 a competência para eleger governadores e prefeitos das principais cidades do país foi retirada dos eleitores e transferida ao presidente da República uma concentração maior do que no Império e pouco menor do que ocorrera no Estado Novo Junto com essa concentração veio outra o governo definiu por decreto a existência de dois partidos um do governo e dos favores estatais outro da oposição e das dores sociais Com isso as eleições que restaram para deputados estaduais federais e prefeituras de cidades pequenas as fontes históricas do poder representativo se tornaram de novo mais rituais de sagração do que pleitos competitivos A grande expansão de poderes do governo federal no âmbito interno foi montada para realizar certos objetivos externos assim resumidos por André Lara Resende A restrição do balanço de pagamentos era diagnosticada como séria limitação ao crescimento Para superála o PAEG propunha uma política de incentivos à exportação uma opção pela internacionalização da economia abrindoa ao capital estrangeiro promovendo a integração com os centros financeiros internacionais e o explícito alinhamento com o sistema norte americano da Aliança para o Progresso6 A política de incentivos à exportação estava na base de todos os projetos nacionais bemsucedidos no mundo num momento em que o comércio internacional crescia mais que as economias locais Os países que cresciam incentivavam empresas que vendiam fora do país a entrar em outros mercados Mas na versão brasileira essa parte do projeto ficou apenas no papel O objetivo de exportar mais foi logo deixado de lado pelo regime militar durante o governo Castelo Branco as exportações brasileiras se mantiveram na média histórica de 12 bilhão de dólares sempre bem abaixo do recorde de 1951 Com o Brasil fora da vida democrática ocidental e fora das trocas econômicas internacionais ascendentes apenas a cultura acabou sendo o campo que recebia novidades e logo expressava o choque entre o andamento otimista do mundo após a retomada do comércio internacional expresso nessa área pelo rock o movimento hippie os protestos estudantis tudo transmitido quase em tempo real via satélite televisão rádio e a opressão interna O descompasso foi interpretado por grupos políticos que se inspiravam no exemplo de Fidel Castro para sustentar projetos de derrubada do regime pelas armas Assim como a tentativa de Prestes em 1935 ou a pregação do perigo comunista pelos golpistas de 1964 a guerrilha foi o combustível que o governo empregou para atalhar as sobras relevantes do poder dos cidadãos Em 1968 com o pretexto de combater a guerrilha o Ato Institucional no 5 determinou o fechamento do Congresso a pena de morte a censura à imprensa enfim a pletora de poderes discricionários dos autoritários republicanos Mantevese no entanto o rito de sagração em 1969 o Congresso foi reaberto para eleger um novo ditador com mandato A política econômica ficou nas mãos de um mesmo homem entre 1967 e 1973 Antônio Delfim Netto um novo tipo de tecnocrata era professor de economia da Universidade de São Paulo Mais ligado ao mundo da produção paulista do que ao das finanças federais ele introduziu pequenas variantes no modelo sobretudo na atenção às exportações em especial do setor industrial Em 1967 quando assumiu as exportações foram de 14 bilhão de dólares na média estagnada de todo o período pós1930 em 1973 ao deixar o cargo haviam alcançado 62 bilhões de dólares mais do que quadruplicaram aproveitando a onda de crescimento do comércio internacional O café pela primeira vez desde a Independência deixava de ser o principal produto de exportação e pela primeira vez desde a proclamação da República deixava de ser a fonte maior da expansão do mercado interno ordenando as trocas com o exterior A indústria aparecia agora como um eventual novo passe para a criação de oportunidades num mercado mundial no qual o comércio crescia em proporção superior às economias locais no qual empresas privadas atuando internacionalmente tomavam o lugar dos governos nacionais como centros dinâmicos de acumulação de riqueza Mas ao mesmo tempo o poder discricionário e autoritário do governo federal chegara ao máximo CAPÍTULO 68 O muro e a Grande Muralha NO DIA 15 DE MARÇO DE 1974 ERNESTO GEISEL TOMOU POSSE COMO ditadormandatário em um momento crucial da conjuntura mundial primeiro em agosto de 1971 os Estados Unidos haviam tomado a histórica decisão de renegar os acordos de Bretton Woods rompendo a promessa de trocar notas de dólares por determinada quantidade de ouro Terminava ali a crença na relação entre metal e papelmoeda que sustentara as relações entre moedas nacionais durante séculos Toda a moeda passava a ter valor apenas fiduciário um valor que dependia somente da credibilidade no que estava impresso no papel O Brasil conhecia essa forma de moeda desde o Império Gênios como o barão de Mauá souberam interpretar as vantagens dessa realidade contra a então avassaladora crença metalista dos conservadores A constatação de que o câmbio era um preço e não um valor estável permitiu a política monetária de Rui Barbosa que mudou a face do crescimento na República O mesmo conceito esteve na base da Caixa de Conversão criada com o Plano de Valorização do Café que permitiu a industrialização acelerada E também foi aproveitado por Getúlio Vargas em 1930 quando da proteção do mercado nacional A globalização da moeda fiduciária trouxe consequências importantes para o Brasil Com ela todas as moedas podiam ser desvalorizadas e desaparecia o elemento de proteção para o país em relação às grandes economias praticantes de câmbio fixo a grande oportunidade a favor do país explorada pela Caixa de Conversão no Plano de Valorização do Café Além disso a decisão transformou uma montanha de papel impresso que podia ser trocado por ouro numa massa de moeda de reserva e os Estados Unidos ganharam a monumental taxa de senhoriagem embutida na diferença Como todas as grandes economias seguiram os Estados Unidos no abandono do padrãoouro houve um aumento potencial gigantesco de instrumentos de liquidez no cenário internacional O fluxo de divisas entre nações voltou ao que era no século XIX um atrator para negócios entre nações pois agora além do comércio haveria um crescimento dos instrumentos de crédito para facilitar transações Era mais que uma oportunidade para o Brasil rever a política de monopólio estatal nas transações com divisas estabelecida no vórtice da crise de 1929 Em segundo lugar a Conferência de Estocolmo promovida em 1972 pelas Nações Unidas teve como tema as ações do homem sobre o meio ambiente e sua conclusão foi de que se estava chegando ao limiar da capacidade de reposição do equilíbrio natural o aquecimento global era uma das consequências visíveis desse processo Para lidar com a questão foram tomadas várias medidas entre as quais a criação do primeiro programa mundial de meio ambiente Assim começou a surgir um consenso científico e a percepção de que se tratava de um problema global que teria de ser resolvido por todas as nações e todos os homens ao mesmo tempo Tal constatação implicava a revisão de um pressuposto conceitual comum aos iluministas e aos marxistas a noção de natureza como algo inesgotável um repositório do qual se pode sacar tudo gratuitamente e ao infinito Todos os princípios fundadores do capitalismo e do socialismo se estruturavam em torno dessa noção Terceiro outro sinal de mudança radical no mundo só aparecia em ambientes isolados e comunidades fechadas Em outubro de 1969 foi efetuada a primeira transmissão de mensagens entre computadores No mesmo mês aconteceu a primeira interligação de computadores entre a Universidade de Stanford e a da Califórnia No mês seguinte já estava em funcionamento uma rede de quatro computadores entre centros universitários que seria o embrião da Internet Em 1973 aconteceu outro evento relevante GrãBretanha Irlanda e Dinamarca passaram a fazer parte do Mercado Comum Europeu Além da mera ampliação isso marcou uma alteração do escopo do projeto original começava a ser desenhado o mapa para a cessão de competências cada vez mais relevantes dos membros do grupo para a entidade supranacional Era uma inovação extraordinária no convívio entre nações permitindo que rivalidades seculares dessem lugar a convivência pacífica e respeito a tratados institucionais Esse conjunto de sinais anunciando novas perspectivas mundiais era forte o suficiente para permitir apostas ousadas de líderes nacionais No início da década de 1970 embora a China comunista fosse o país mais populoso do mundo sua economia não se destacava pela pujança o PIB em números absolutos era menor que o do Brasil e a renda per capita muito menor Era também uma economia fechada em si mesma há milênios isolada do mundo Quando os faraós ainda erguiam pirâmides os chineses iniciavam a maior obra de construção de todos os tempos uma muralha para separar a sua civilização da barbárie circundante Foram precisos longos quatro séculos de contatos diretos com o Ocidente para que afinal os chineses concebessem a hipótese de um mundo formado por nações com iguais direitos e governos Em 1949 o Império milenar e o imperador considerado o elo entre os mundos terreno e divino foram derrubados O líder MaoTseTung fez o que pôde para mudar as coisas acordos com a União Soviética reeducação da elite burocrática fuzilamentos em massa envolvimento em duas guerras com os Estados Unidos Ao fim e ao cabo constatou com humor que só conseguira mudar alguns quarteirões na periferia de Pequim e jogou uma cartada radical Enviou sinais aos Estados Unidos e em 1971 Henry Kissinger então assessor de segurança nacional do presidente Richard Nixon fez uma viagem secreta à China No ano seguinte o próprio Nixon trocou apertos de mão com o camarada Mao indicando que a muralha seria aberta de dentro para fora O governo comunista da China foi o primeiro a decidir que o socialismo num só país era uma possibilidade sem futuro Dali em diante ainda que o Partido Comunista mantivesse o controle monopolista da política o objetivo central da nação seria o da integração na economia global Para seguir adiante a China passou a admitir a entrada de empresas estrangeiras e mais importante a criar um setor privado nacional capaz de atuar além das fronteiras nacionais seguindo a receita que começava a se tornar norma Era um projeto mais que incerto na medida em que o país não tinha legislação apropriada sobre propriedade nem tradição democrática e tampouco empresas empenhadas em negócios internacionais Porém como a iniciativa de abertura refletia a tendência mundial na direção da integração logo apareceram os negócios Por fim a posse de Ernesto Geisel coincidiu com um sinal que não podia ignorar reunidos na OPEP os países produtores de petróleo quadruplicaram o preço da mercadoria Como esta era vendida para todo o mundo os produtores passaram a receber quatro vezes mais e a aplicar a maior parte desses recursos em compras no exterior Com isso os fluxos financeiros mundiais sofreram uma aceleração muito maior que a das economias nacionais ou mesmo do comércio internacional Os bancos acumularam montanhas de dinheiro em depósitos e como tinham de aplicar os recursos dos petroclientes foram atrás de ativos e clientes interessados em dinheiro tornandose eles mesmos financiadores internacionais De modo abrupto desaparecia o gargalo na disponibilidade de crédito que havia marcado as décadas anteriores assim como a época em que apenas agências de governo financiavam projetos de longo prazo Agora havia abundância de dinheiro no mercado internacional Esse conjunto de sinais que apontavam uma nova configuração mundial chegou ao Brasil num momento em que os dados da sua economia também podiam ser lidos de modo otimista por um ditador A tal ponto que o crescimento da economia entre 1970 e 1973 foi batizado pelos entusiastas do regime como milagre brasileiro em todos esses anos a taxa de crescimento do PIB foi superior a 10 em 1973 chegou mesmo a 143 com o setor industrial batendo nos 166 Tal sucesso foi visto como prova do acerto da opção de aumentar a participação do governo central na economia marca do regime Num cenário de três gerações de crescimento alto quase ininterrupto olhar para dentro fazia sentido Mas Ernesto Geisel era um autocrata militar um homem da tradição conservadora além de nacionalista Diante do novo panorama mundial desdenhou até mesmo das muralhas milenares que estavam sendo destruídas Quando mirou o lado da economia interna vislumbrou um futuro glorioso Os conservadores sempre cultivaram uma visão muito peculiar do próprio papel no sucesso da nação Essa concepção era reforçada pelo argumento oficial demolido pela econometria de que o crescimento brasileiro acontecera depois de 1930 ou seja após o momento em que o governo central passara a desempenhar papel relevante no crescimento econômico Esse modo de entendimento era adequado para quem considerava a nação dividida entre uma elite com formação técnica e capacidade de pensar e um povo analfabeto e incompetente De quem supunha estar fazendo o milagre brasileiro Uns poucos números demográficos embalavam o orgulho A fatia da população urbana saltara de 31 em 1940 para 44 em 1960 Em 1970 a parcela dos brasileiros que moravam em cidades tornouse majoritária chegando a 56 da população total doze pontos percentuais de aumento em apenas uma década Tudo isso dava margem a duas suposições plausíveis para um ditador uma a de que o controle monopolista das transações com divisas por parte do governo era um fator de grande crescimento e outra de que a centralização de poder na ditadura ajudara a acelerar ainda mais o progresso graças ao predomínio das decisões técnicas sobre as escolhas errôneas do povo e de seus representantes políticos pouco qualificados Uma visão como essa leva obrigatoriamente a deixar de lado alguns aspectos na equação do progresso nacional Em primeiro lugar a distribuição do resultado da produção social entre aqueles que trabalham Até a ditadura o processo mais relevante dessa distribuição era o que formava um mercado interno crescente baseado nas trocas entre os produtores independentes do sertão a maioria da população rural que consumia produtos da indústria e os capitalistas da cidade onde se consumiam produtos rurais Esse era um processo quase automático que vinha acontecendo desde os tempos coloniais com os mercados funcionando nas casas os negócios realizados sem nenhuma intervenção do governo Por muito tempo tudo acontecera sem necessidade de regulação e sem solavancos Como resultado as rendas no sertão continuaram a crescer no período republicano mas em proporção menor que o incremento dos ganhos dos trabalhadores urbanos Assim à medida que apareciam as oportunidades as pessoas iam se mudando para a cidade A intervenção governamental se resumia à definição do salário mínimo instrumento que afetava cada vez mais gente mas não a maioria da população que continuava no campo onde não valiam as regras de reajuste Tal equilíbrio automático pelas regras de mercado foi rompido com a ditadura uma necessidade decorrente da violenta retirada de recursos da sociedade para o governo central Os reajustes de salário abaixo da inflação trouxeram um resultado direto uma queda violenta nos rendimentos dos mais pobres Em 1960 a metade mais pobre da população tinha 174 do total da riqueza nacional em 1970 sua fatia desse bolo era de 149 ou seja 15 menor Já os 20 mais ricos aumentaram sua participação de 549 para 652 A redução da renda dos mais pobres se espalhou do teto assalariado para o piso sertanejo mas numa proporção muito difícil de ser medida dado o caráter informal ou seja fora da proteção do Estado e das estatísticas oficiais dessa produção Uma medida indireta desse impacto é a própria forma que tomou a migração para as cidades No período anterior à ditadura havia os tradicionais subúrbios mescla do urbano e do rural nas franjas da cidade eles se transformaram nas periferias a versão urbana empobrecida de economia informal que ia da posse do barraco até o bico no trabalho No sentido oposto a medida era a nova organização do sertão O trem foi substituído pelas rodovias como elemento facilitador de uma penetração territorial que alcançou até mesmo a Amazônia Tratores e motosserras derrubaram a mata como nunca antes na maioria dos casos para colocar no lugar pastos e gado Tudo isso era visto como progresso como eliminação da parte da sociedade e da economia que não estava na esfera de influência do governo federal ao mesmo tempo que este era pensado como único elemento construtor da nação Com base em sua única experiência empresarial à frente da empresa estatal que monopolizava a produção de petróleo Geisel se tornou um entusiasta tanto do planejamento como das grandes possibilidades que pareciam surgir do controle estatal da economia Diante das mudanças no plano internacional o ditador decidiu seguir numa direção cujo pressuposto central era tão simples que parecia simplório a ação do governo federal sustentara o crescimento do país a conjuntura externa trazia a grande oportunidade de acelerar ainda mais esse crescimento interno levando a economia adiante por meio da ampliação em escala da mesma receita que dera certo ou seja a de desenvolver o mercado interno em ritmo maior do que o restante do mundo tudo comandado por alguém que tinha poderes de ditador e fixação por enquadrar subordinados O fato mais relevante contra a ideia o crescimento do comércio internacional em escala maior que os mercados internos nacionais foi ignorado e a ideia colocada em ação O instrumento de Geisel chamavase Plano Nacional de Desenvolvimento Nele havia previsão para construir ao mesmo tempo tudo o que faltava para o país virar uma grande potência usinas nucleares empresas petroquímicas siderúrgicas mineradoras indústria pesada novas ferrovias e rodovias energias alternativas ao petróleo hidrelétricas centros de pesquisa e o mais que a imaginação permitia colocar numa folha de papel Como todos os planos ousados o PND deixava de lado detalhes como custos exatos viabilidade disposição dos agentes Através dele e sob o comando de Mário Henrique Simonsen na área econômica o governo federal passaria a exercer domínio quase absoluto sobre os grandes agentes privados recorrendo ao método autoritário usual dava proteção e dinheiro em troca de obediência As tarefas privadas foram determinadas nos moldes das campanhas militares O governo escolheu a parte que tocaria por si mesmo como empresário e a criação de empresas estatais virou prática corriqueira era em média mais do que uma empresa nova por semana ao final da gestão havia nada menos de 440 novas empresas estatais Esse era considerado o centro da economia restando as margens para o setor privado Em vez de aguardar a atuação de empresários que abrissem mercados o governo passou a dizerlhes de que forma iriam investir o dinheiro que de resto já estava disponível Havia regras prontas para tudo O setor petroquímico seria formado por empresas com capital dividido em partes iguais entre o Estado um grupo privado nacional e uma empresa multinacional e assim foi feito As indústrias de bens de capital seriam formadas pela expansão de grupos nacionais O programa do álcool substituto do petróleo seria controlado pela Petrobras e realizado por grandes empresas agrícolas Os problemas que surgiam iam sendo resolvidos com o que estivesse à mão pouco importando os custos Se não havia mercado para os projetos logo vinha uma oferta de dinheiro sob a forma de subsídios Em 1970 os subsídios admitidos oficialmente eram 08 de todo o PIB em 1980 essa porcentagem havia quase quintuplicado com o governo gastando nada menos que 36 do PIB nos mais variados campos desde a criação de grandes empresas de bens de capital até a plantação de seringueiras passando pelo programa do álcool ou a produção de filmes Assim os investidores privados tornavamse mera extensão da vontade nacional de crescer cuja única representação era o governo central De onde vinha tanto dinheiro Em vez de integrar o país nas oportunidades que se abriam no mundo o ditador resolveu limitar essa integração a um ato que não apenas servia aos planos de expansão do Estado como mantinha o isolamento do país o próprio governo se encarregava de tomar os empréstimos no mercado externo Como diria um dos justificadores da opção Carlos Langoni era uma oportunidade imperdível de aproveitar o que pareciam ser erros dos países desenvolvidos Quase todos os países importadores de petróleo desenvolvidos ou subdesenvolvidos precisaram decidir como lidar com o severo desequilíbrio em suas contas externas produzido pelo choque do petróleo Nesse ponto os padrões divergiram os países desenvolvidos escolheram se ajustar prontamente reduzindo seus déficits em conta corrente ainda que a custa de um menor crescimento Em contraste a maioria dos países subdesenvolvidos decidiu financiar o desequilíbrio externo pela via do acesso ao renovado mercado financeiro internacional Entre 1974 e 1978 as taxas de juro reais eram negativas em 1 Em outras palavras havia literalmente fundos subsidiados emprestados a taxas menores que a inflação uma oferta que ninguém podia recusar Os países subdesenvolvidos pensavam ter encontrado a pedra filosofal1 Assim se formou a corrente da felicidade O governo ditatorial fazia planos envolvendo empresas estatais e o setor privado As estatais pegavam dinheiro no exterior O governo fazia o câmbio entregando moeda nacional às estatais e usando os dólares emprestados a elas para pagar a conta do petróleo Continuava comprando as principais produções agrícolas em moeda nacional mantendo o controle sobre as divisas restantes O resultado financeiro da operação aparecia como dívida externa Ela era de 52 bilhões de dólares em 1970 o equivalente a dois anos de exportação Cresceu para 171 bilhões em 1974 após o aumento do petróleo o que representava 21 anos dado o aumento das exportações no intervalo Depois subiu sem parar até atingir 499 bilhões de dólares em 1979 último ano do governo Geisel quando equivalia a 33 anos de exportações Na óptica de Ernesto Geisel a obra era um sucesso O objetivo do Plano Nacional de Desenvolvimento era o de empregar capital externo emprestado pelo governo federal para aplicar nas empresas estatais nacionais isolando o Brasil dos fluxos internacionais de mercadorias Pela avaliação de Dionísio Dias Carneiro no que se refere aos resultados do governo Geisel o objetivo foi cumprido Talvez o aspecto mais surpreendente do governo Geisel tenha sido a rapidez com que as medidas lograram reduzir o coeficiente de importação da economia Em 1974 as importações correspondiam a cerca de 12 do PIB Em 1978 o coeficiente importado já era de 7252 Importações proporcionalmente menores em relação ao todo da economia significavam também um muro com portas mais estreitas entre o Brasil e o mundo O atingimento dessa meta era visto como potência em construção de tal porte que permitia afinal remover alguns dos poderes concentrados na figura do ditadorpresidente Havia inclusive razões políticas para tal abertura O primeiro teste real da eleição transformada em puro ritual de legitimação do regime após o AI5 deuse em 1972 com a vitória arrasadora da ditadura A mistura de censura com propaganda ufanista carreou quase 80 dos votos para o partido governista e o ditador da época deixou o governo com uma taxa de popularidade quase da mesma magnitude Durou pouco A retomada dos seus poderes pela soberania popular começou logo em seguida pois apenas ditadores acreditam em sagração permanente pelas urnas Em 1974 os eleitores votaram maciçamente em candidatos a senador da oposição era o sinal possível da desaprovação popular do regime Se fossem uma democracia e uma eleição para valer cairia o governo Como não eram os ganhos de poder pela sociedade foram outros Em 1976 foi abrandada a censura prévia a jornais e revistas No mesmo ano pulularam manifestações estudantis por todo o país Dois anos depois foram decretadas greves operárias apesar da proibição legal e revogadas as disposições arbitrárias do AI5 Em 1979 foi decretada uma anistia permitindo a volta ao país de centenas de exilados Os sinais de dentro também não foram ouvidos e o sonho virou um gigantesco pesadelo No auge do endividamento e da infinidade de obras em andamento em 1979 os produtores da OPEP aumentaram ainda mais o preço do barril de petróleo o patamar de 12 dólares em 1978 foi sendo elevado continuamente até atingir 29 dólares em 1980 Se a adaptação ao primeiro choque do petróleo havia sido difícil o segundo exigia medidas drásticas Em vez de repetir os métodos moderados de adaptação ao aumento de 1974 quando as taxas de inflação superaram algumas vezes as taxas de juros possibilitando os empréstimos subsidiados que haviam atraído o Brasil muitos países desenvolvidos tomaram a decisão radical de provocar uma recessão por meio do aumento das taxas de juros Foi o que ocorreu na Europa nos Estados Unidos e no Japão A taxa de juros real inglesa por exemplo passou de 166 ao ano em 1978 para 415 em 1979 e 739 em 1980 As taxas nominais passaram de 20 Ainda na etapa de concepção planejamento e concretização o movimento de marcha forçada econômica promovido pelo governo ditatorial viuse submetido ao crivo das contas feitas com as novas taxas de juros O castelo de cartas ruiu de imediato O governo federal agora tinha muito buraco comercial para cobrir muito juro para pagar muita dívida vencendo E com quem ficaria a conta Claro que com o setor produtivo nacional agora formado por centenas de estatais endividadas muitas sem a menor perspectiva de faturar nem sequer uma fração dos empréstimos tomados pelas empresas privadas que ainda tivessem lucro e pelos cidadãos que pagavam impostos Quem receberia Os países que haviam apostado na globalização e preparado as suas empresas para aproveitar as novas oportunidades CAPÍTULO 69 Cuidando da franguinha JOÃO BAPTISTA FIGUEIREDO TOMOU POSSE EM MARÇO DE 1979 COM UM MANDATO estendido para seis anos Oficial de cavalaria tinha certo pendor para metáforas cruas e diretas Comunicou as seguintes ordens ao ministro Antônio Delfim Netto O Brasil é uma franguinha o Geisel fez botar um ovo de avestruz Tua missão é costurar a franguinha Metáforas de mau gosto raramente sintetizam situações complexas Mas essa de alguma forma ajuda a encaminhar o entendimento dos problemas brasileiros nos tempos subsequentes A frase traz um sujeito pessoal que teria feito uma reforma o Geisel É proferida por outro sujeito que está no mesmo papel de demiurgo delegando a missão a um auxiliar Ambos os sujeitos são pensados como detentores de poderes muito grandes com relação ao corpo dilacerado da nação Um dos modos de entender o tamanho desses poderes no momento em que a frase foi pronunciada é medir sua concentração nessas figuras pessoais Embora tivessem passado pelo ritual de unção no Congresso e aceitassem a limitação temporal de um mandato ambos detinham poderes discricionários que apesar da abertura em andamento eram bem extensos Ao longo do regime militar tais poderes foram sendo acumulados aos poucos após serem retirados da esfera da sociedade dos demais poderes nacionais das instâncias descentralizadas de governo de outros agentes privados da economia e por meio da incorporação de franquias de exceção Começando pela sociedade o poder retirado foi basicamente o de intervir nos destinos da nação por meio do voto em outras palavras a soberania geral perdeu atribuições para o arbítrio pessoal O eleitor deixou de escolher o presidente da República os governadores estaduais e os prefeitos das principais cidades Os únicos representantes que continuaram a ser eleitos foram os parlamentares mas as franquias do Legislativo também foram muito limitadas e transferidas ao ditadorpresidente Parlamentares não podiam criar partidos políticos não podiam legislar sobre gastos nem mesmo elaborar os orçamentos os seus mandatos podiam ser cassados arbitrariamente pelo chefe do Executivo e nem sequer tinham acesso a informações sobre a gestão financeira do governo Processo semelhante ocorreu nas esferas locais de governo Passaram dos eleitores para o poder pessoal do ditadorpresidente a indicação dos governadores de estado embora sujeitos a um ritual de sagração dos prefeitos das capitais e das então chamadas áreas de segurança nacional um eufemismo para qualquer cidade importante A concentração incluía ainda os poderes retirados de várias outras competências e concentrados de maneira permanente na instituição crucial do AI5 legislar por decreto em matérias de âmbito federal estadual e municipal decretar o recesso do Congresso suspender os direitos políticos de qualquer cidadão remover funcionários inclusive juízes por decreto suspensão do habeas corpus censura à imprensa prisão sem processo No campo dos resultados econômicos a medida mais direta de concentração de meios na esfera central de poder é a da arrecadação de tributos pelo governo federal como porcentagem do total da riqueza nacional Nos tempos do governo descentralizado do início da República o governo federal arrecadava algo estimado em 4 do PIB A partir da década de 1930 com toda a centralização essa proporção oscilou em torno de 6 com a carga tributária total ficando ao redor de 10 No final da década de 1970 a carga tributária total havia mais que dobrado passando a representar algo em torno de 25 do PIB Toda a concentração se deveu ao governo federal cujas receitas atingiram 1945 do PIB em 1979 Ao longo de todo o regime militar a arrecadação dos estados se manteve em torno dos 5 e a dos municípios em torno de 1 do PIB Essa concentração de riqueza e meios nas mãos do governo federal compunha apenas uma parcela de seu poderio de intervenção na área econômica aquele cuja contabilidade entrava no Orçamento da União As 440 estatais do governo ficavam parcialmente fora dessa conta competindo diretamente com o setor privado pelos recursos econômicos produtivos Também ficavam fora da conta recursos de crédito nas mais diversas formas como subsídios e empréstimos especiais consignados em orçamentos separados só os primeiros superavam 2 do PIB na virada para os anos 1980 Igualmente faziam parte dos poderes as reservas legais de determinadas áreas da economia petróleo riquezas minerais telecomunicações e energia eram setores nos quais tudo dependia de autorização do governo federal No setor financeiro continuava valendo o monopólio da compra e venda de divisas que vinha desde 1930 Era monopólio do governo a administração dos fundos de previdência e das cadernetas de poupança ainda que esses recursos fossem teoricamente privados Apenas os bancos estatais tinham capacidade para realizar empréstimos de longo prazo O governo federal captava ainda poupança privada através da emissão de títulos da dívida pública No campo das relações entre capital e trabalho o governo detinha os monopólios de determinar os reajustes salariais por lei autorizar e controlar o funcionamento de sindicatos controlar a Justiça do Trabalho fazer cumprir a lei que proibia greves controlar os preços de venda de milhares de produtos por simples portarias Esse era o instrumental que permitira ao ditador gestar o ovo de avestruz com dinheiro externo e esperança de riqueza Antes de terminadas as obras que iriam gerar a abundância nacional por meio da ação estatal aconteceu o diálogo entre o presidente e seu ministro E o ministro encarregado da missão entendeua do modo que interessava ao chefe piadista Não se tratava de aliviar as dores da franguinha mas de preparála para alimentar o avestruz do governo federal O sucesso em estreitar as portas de importação e exportação em manter sob estrito controle as portas do muro entre o Brasil e o mundo apareceu mas sob a forma de um fracasso irremediável No lugar de ganhos na produção interna superiores às despesas para instalar tal produção havia uma realidade inevitável a captura de parte desses ganhos pelo governo que financiava as obras e os pagamentos aos credores externos que haviam financiado a instalação A elevação dos preços do petróleo em 1979 provocou a necessidade de mais idas e vindas de dinheiro e mercadorias pelas portas estreitas do muro Num sentido saíam os recursos para pagar o petróleo 606 milhões de dólares em 1973 25 bilhões em 1974 4 bilhões em 1978 62 bilhões em 1979 95 bilhões de dólares em 1983 Os recursos para saldar essa despesa adicional poderiam vir de maiores exportações brasileiras mas era a diminuição da necessidade de importar e comerciar com o exterior que justificava o plano O desempenho das exportações foi previsivelmente muito inferior ao crescimento das importações de petróleo 62 bilhões de dólares em 1973 79 bilhões em 1974 12 bilhões em 1978 152 bilhões em 1979 219 bilhões de dólares em 1983 A diferença entre os gastos ampliados com petróleo e o menor crescimento de exportações só deixou uma saída ao governo federal buscar mais recursos no exterior Como resultado a dívida externa só cresceu passando de 125 bilhões de dólares em 1973 para 171 bilhões em 1974 435 bilhões em 1978 50 bilhões em 1979 e 813 bilhões de dólares em 1983 Em decorrência disso as portas dos fluxos internacionais mais estreitas ficaram instáveis por causa dos fluxos de capitais muito aumentados No centro de toda essa instabilidade estava o governo federal comprometido com o endividamento e pressionado pelos credores externos De 1980 em diante toda a política econômica resumiuse a tirar mais da franguinha para alimentar o avestruz governamental que devia ao mundo pelo dinheiro para as obras do milagre Para tanto o governo recorreu a diversos métodos O primeiro instrumento heterodoxo fora aplicado pelo próprio Delfim Netto pouco depois da conversa com Figueiredo fixação prévia dos índices de indexação da economia em 45 Como houve um pequeno erro na previsão 45 de correção por estimativa e 110 de inflação real em 1980 os ativos dos credores internos o maior dos quais era o próprio governo foram reduzidos à metade já os devedores do governo que tanto precisava de dinheiro tiveram suas dívidas reduzidas na mesma proporção O ato trouxe à luz o parceiro gêmeo da dívida externa a inflação Nos mesmos anos dos indicadores mostrados anteriormente eis seu comportamento 156 em 1973 269 em 1974 497 em 1978 773 em 1979 211 em 1983 Dessa maneira a inflação se tornou o principal meio pelo qual o governo federal passou a extrair riqueza da franguinha para pagar as contas O sonhado método seria o aumento da arrecadação uma vez que se previa um crescimento da economia da ordem de 10 anuais em média Mas a realidade era que os tempos do crescimento contínuo da economia começavam a ficar para trás O incremento do PIB teve o seguinte comportamento com os números do PIB da indústria entre parêntesis 14 166 em 1973 90 78 em 1974 48 61 em 1978 72 69 em 1979 e 31 104 em 1981 28 61 em 1983 O desastre estava feito Assim se tornou crônica a queda de desempenho da economia brasileira em relação ao mundo que crescia com a globalização Por meio de inflação e recessão fazendo aumentar a distância que separava as duas realidades o ministro foi arrancando do setor privado o alimento para o avestruz Os instrumentos para manter o setor privado pagando a conta do desequilíbrio financeiro do governo federal foram se tornando cada vez mais violentos congelamentos de preços confiscos moratórias No lado de lá do muro as apostas no posicionamento dos governos como incentivadores das empresas privadas as únicas capazes de atuar em âmbito global para que buscassem oportunidades nas trocas internacionais foram se mostrando vencedoras Na década de 1970 o comércio internacional cresceu num ritmo superior ao dobro do crescimento das economias nacionais O impacto das crises do petróleo interrompeu um pouco o processo mas a retomada da tendência anterior foi clara entre 1985 e 1990 a média do crescimento das economias nacionais foi de 39 contra 58 do comércio internacional A tendência acelerouse ainda mais no quinquênio seguinte 27 para as economias nacionais 61 para o comércio internacional Já o Brasil foi ficando para trás Em 1973 o país era a economia que mais crescera no mundo nas oito décadas anteriores a República permitira o aproveitamento das oportunidades num mundo de comércio aberto e com elas houve retomada do crescimento como nos tempos coloniais a revolução de 1930 criara as condições para o crescimento num mundo fechado Então o pagamento da conta do muro que separava o Brasil da globalização era mais que justificado naquele cenário as taxas de crescimento internas haviam ficado muito acima da média mundial Agora a situação se invertia Enquanto o muro brasileiro ampliado levava a dívidas externas desequilíbrio da economia interna e taxas pífias de crescimento médio os sinais do mundo continuavam indicando outras direções Ao longo da década de 1980 outros Estados nacionais Grécia Portugal e Espanha aderiram ao projeto europeu de criação de um ente supranacional formando uma massa crítica suficiente para ensaiar um passo mais ousado a criação da Comunidade Europeia e de uma moeda única o euro Tudo visando ampliar a escala das trocas internacionais diminuir custos e aumentar a competitividade de cada economia No Brasil porém a ditadura ampliara as barreiras deixando a conta para a nação Sair dessa situação só era possível com a diminuição dos poderes concentrados no governo federal A ditadura manteve a mesma marca de busca de legitimidade do modelo positivista gaúcho que lhe deu origem e que Getúlio Vargas não copiou em seu período como ditador pleno uma concessão à ideia metafísica da representação através da manutenção de mandatos e da realização de eleições No projeto dos construtores do sistema essas eleições deveriam ser como eram as do Império pura sagração da sabedoria do alto nunca expressão da soberania vinda de baixo Para tanto o sistema partidário fora ordenado com a criação do partido do regime e do partido contrário ao regime Cada eleição portanto deixava de ser um ritual de escolha livre dos cidadãos para se tornar um ritual de aprovação do regime Tal concepção tornava imperiosa a intervenção do governo no pleito Cada candidato que se apresentava em seu partido por mais humilde que fosse era um portavoz do Estado na sociedade Apresentavamse com cargos oficiais favores do governo ou outros signos da opulência daquilo que representavam Mostravam aos eleitores a eficácia da ditadura desde a colocação de um time local num campeonato nacional de futebol até obras faraônicas tudo servia a esse propósito Assim revestiam o lado adversário com a danação de Getúlio Vargas Aos amigos tudo aos inimigos a lei Os opositores eram presos perseguidos afastados dos favores condenados à miséria Eram se tanto as vozes da sociedade condenada a viver em sua miserável inferioridade No entanto a falta de alternativas levou o ditadorpresidente a iniciar a devolução de poderes ao eleitor soberano O passo seguinte à anistia de 1979 foi a recuperação pelos cidadãos do direito de eleger governadores estaduais em 1982 O eleitorado deu um recado claro colocando oposicionistas nas principais cadeiras São Paulo Minas Gerais Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul Em todos esses estados havia alguma condição para colocar em prática políticas alternativas sobretudo na área social Com elas foi se tornando cada vez mais claro que os tempos do regime autoritário estavam contados Mas o regime ainda tinha força derivada do fato de que o governo federal distribuía dinheiro público como instrumento de obtenção de aliados políticos notícias favoráveis eleitores desavisados O Estado era explicitamente patrono de um partido político Com o declínio da capacidade de se legitimar cada vez mais o regime dependia desses instrumentos patrimonialistas para se manter no poder Nesse contexto preparou a sagração indireta do novo mandatário pelo Congresso onde manobras de toda espécie o Executivo podia indicar por decreto um terço do Senado por exemplo garantiriam uma maioria A situação mudou quando milhões de brasileiros saíram às ruas em 1984 reivindicando eleições diretas para presidente Uma emenda que viabilizaria a ideia foi derrotada no Parlamento mas o movimento popular se mostrou suficiente para que o oposicionista Tancredo Neves acabasse eleito para suceder o piadista Figueiredo em 1985 A mudança aconteceu com a presidência da República caindo no colo do sempre governista apoiava o regime desde 1964 José Sarney que tomou posse no lugar do titular doente e falecido logo em seguida Embora a muitos parecesse pequena a mudança abriuse espaço para esperanças As primeiras eleições da nova fase aconteceram sob o marco de uma decisão simbólica em 1985 os analfabetos recuperaram o direito de votar depois de 104 anos de proibição Com a implantação do sufrágio universal o Brasil voltava a se equiparar a todas as democracias do Ocidente e a outras tantas do Oriente sem qualquer abalo no funcionamento do sistema pois afinal haviam sido os analfabetos da colônia que ensinaram os letrados a votar e governar como representantes eleitos As esperanças de reversão do quadro tenebroso da economia explodiram no momento da campanha para a eleição da Assembleia Constituinte por causa do êxito temporário da primeira tentativa de controlar a inflação num golpe o que rendeu a eleição em massa de políticos criados na estrutura do regime militar filhos dos favores explícitos do governo Os trabalhos dos constituintes tiveram início no momento em que o plano fracassou mas não as esperanças no futuro Ainda pagando a pesada conta de manutenção do governo ainda sob a pesada influência dos investimentos estatais na sagração de aliados o Brasil recomeçou a pensar com influência do soberano eleitor em seu destino CAPÍTULO 70 Pasturo A DITADURA ENTREGOU O GOVERNO FEDERAL DE PORTEIRA FECHADA NAS CONDIÇÕES lastimáveis em que estava um futuro que era cada vez mais passado um passado que tinha cada vez menos futuro Mais do que os erros estratégicos em relação às circunstâncias mundiais o crescimento econômico baixo a dívida externa e a inflação a reinstauração de um governo minimamente democrático exigia a superação de desafios que iam bastante além de recuperar o desempenho produtivo A extrema concentração de instrumentos econômicos permitira que os governos militares mais acentuadamente o governo federal mas também os estaduais e as prefeituras atuassem não apenas em seus campos tradicionais mas também na esfera do mercado através das empresas estatais Esse tipo de atuação econômica se caracteriza pelo emprego de capital e trabalho em empreendimentos que visam o lucro Mas faz isso de forma muito diversa dos empresários comuns No setor privado o capitalista precisa acumular previamente o necessário para entrar na atividade gasta sua poupança ou convence alguém com dinheiro a se associar Contrata trabalho produz vende Remunerase pelo lucro quando este existe Se perde o prejuízo é dele eou de quem empatou capital Já os governos entram nessa atividade de outra forma Captam a poupança de empresários e trabalhadores via impostos além de contraírem dívidas Ou seja retiram da poupança geral da sociedade os recursos que investem transferindoos para funções diferentes daquelas típicas de governo Remuneramse tanto pelo lucro como pelo aumento geral da arrecadação de impostos Quando perdem o prejuízo é socializado a conta não fica para quem investiu mas vai para todos Se há dinheiro pelo pagamento dos prejuízos com recursos públicos se não há por meio da emissão de dinheiro algo fora do alcance dos empresários privados Para obter os recursos que lhe permitiram atuar no mercado a ditadura brasileira duplicou a retirada de poupança da sociedade por meio de impostos desviando muito dinheiro para funções outras que não as tradicionais As duras marcas desse processo apareceram já no período de acumulação ainda antes do fracasso dos empreendimentos Ao longo dos 75 anos entre 1889 e 1964 a economia brasileira foi uma das que mais cresceu no mundo Além de crescer distribuiu os frutos desse crescimento de forma razoavelmente equilibrada O governo central custava relativamente pouco mesmo depois de acumular novas funções econômicas em 1930 Com isso restava nas mãos do setor privado muita riqueza partilhada entre empresários que tinham lucro trabalhadores que recebiam salários e os produtores autônomos do sertão que constituíam a maioria da população em todo o período Após 1964 o governo central formou sua base de capital empresarial retirando recursos desses três setores Dos detentores de capital o governo conseguiu dinheiro suficiente para controlar os mecanismos financeiros de investimento Em 1974 os bancos estatais responderam por 75 dos empréstimos de longo prazo e no ano seguinte as empresas estatais não financeiras aplicaram 203 de todo o capital investido por empresas no país tomando assim uma fatia dos empresários privados Do lado dos trabalhadores que recebiam salário o dinheiro veio sobretudo dos impostos dos recolhimentos compulsórios e da política de reajuste salarial que retirava dinheiro dos trabalhadores em benefício do capital Como resultado da violenta compressão houve uma enorme queda real nos rendimentos do trabalho entre 1964 e 1974 a perda de poder aquisitivo do salário mínimo que fornecia a base para todos os reajustes foi de nada menos de 42 A perda no lado do sertão dos produtores independentes que até então formavam a base do mercado interno pode ser medida com outros números Para relembrar em 1960 56 dos brasileiros viviam e sobreviviam no campo Em 1980 apenas 32 dos brasileiros moravam nas zonas rurais e essa proporção cairia para 22 em 1991 Houve assim um êxodo maciço para as cidades Até a década de 1960 essa migração era regulada pelo equilíbrio entre as atrações urbanas e as oportunidades próprias para que os Jeca Tatu ganhassem a vida como produtores e ficassem mais ricos ainda que em ritmo menor que os trabalhadores urbanos A mudança de padrão promovida pelo regime militar foi de outra natureza distributiva A entrada na atividade empresarial se fez com o governo federal retirando renda da sociedade como um todo não apenas de capitalistas e assalariados mas também da grande massa expulsa do sertão Luiz Aranha Correa do Lago resume É particularmente impressionante a concentração nas mãos dos 5 mais ricos e dos 1 mais ricos No primeiro caso sua participação na renda passa de 2834 em 1960 para 341 em 1970 e 398 em 1972 Em contraste os 50 mais pobres recebiam 174 em 1960 e passaram a auferir apenas 149 em 1970 e 113 em 19721 A migração para as cidades transformava produtores independentes rurais em trabalhadores precários nas periferias urbanas com menor participação na riqueza e com menos oportunidades de sobreviver como empreendedores Tudo isso se refletiu no coeficiente de Gini criado especialmente para medir os níveis de desigualdade social Em 1960 esse índice era de 0497 no Brasil Em 1970 chegou a 0562 o que já indica um aumento na concentração de renda Em 1972 o índice atingiu 0622 e mantevese nesse patamar elevado até o final da década de 1980 De novo embora o grau de concentração de recursos no topo promovido pelo regime militar não seja específico do desenvolvimento do capitalismo no Brasil ele marca o período da intervenção do governo federal nas atividades empresariais Durante sete décadas vinha ocorrendo o desenvolvimento capitalista com patamares elevados de acumulação sob o comando do setor privado e seus capitalistas ambiciosos mas mantendo um arranjo com o trabalho assalariado e os produtores independentes do sertão que resultava numa distribuição da riqueza por toda a sociedade de tal ordem que comparada ao que se implantou na ditadura era bastante justa A desigualdade de renda foi apenas uma das consequências da entrada do governo no mundo dos negócios Outra não menos relevante foi o fato de que essa decisão exigiu uma repartição interna de esforços estatais que não se mostrou nada favorável aos serviços tradicionais Em termos proporcionais atividades como educação ou saúde passaram a contar com menos recursos o que levou à degradação desses serviços para a população Para completar o governo fez maus negócios a partir da década de 1970 Investiu no mercado nacional num tempo em que outras nações apostavam na abertura para o mercado mundial Investiu na estatização num momento em que os maiores ganhos estavam vindo de empresas privadas que atuavam em mais de um mercado nacional Investiu com dinheiro emprestado de alto risco imaginando que as vantagens seriam eternas e acabou derrubado pela mudança de rumos Num resumo bruto nos tempos em que se evidenciou o fracasso da onda empresarial estatal o governo central no fim da ditadura mais lembrava o que havia sido o governo central imperial pomposo no todo e ineficiente no que interessava Em vez da almejada economia líder em desenvolvimento havia outra marcada pelo atraso estrutural Não se sabia exatamente quão caro era esse governo pois a população pagava a conta sobretudo pela via da inflação descontrolada resultado do pagamento das dívidas públicas com papel impresso Quão ineficiente também ninguém sabia em decorrência de uma série de distorções internas correção monetária subsídios preços controlados reservas de mercado tabelamentos etc que tornavam impossível a comparação com as economias do restante do mundo No contexto mundial a oportunidade de repensar o papel do país com base em uma nova Constituição coincidiu com o avanço cada vez maior do comércio internacional O processo ganhava força para romper muros derrubar barreiras de imensas economias fechadas Em 1986 Mikhail Gorbatchev assumiu o comando da União Soviética Com treze anos de atraso em relação à China impôs de maneira acelerada uma abertura econômica criando às pressas um setor privado Ao contrário do que ocorreu na China porém também promoveu uma abertura política para a democracia Tudo isso acelerou muito o processo de trocas econômicas e a adoção de regras políticas estáveis entre nações num processo já então conhecido como globalização Todos que queriam crescer retiravam barreiras para aproveitar a proliferação de oportunidades internacionais Esse se tornara o grande dilema dos construtores da abertura política Além das contas a pagar tinham de lidar com um evidente atraso no posicionamento do país como um todo Nesse cenário o deputado Ulysses Guimarães líder da oposição nos anos duros fiador do novo regime e homem com poder para dirigir os trabalhos da Constituinte optou por um caminho peculiar para o retorno a um regime constitucional democrático um caminho tão peculiar que precisa ser explicado à luz da história Desde 1500 até 1987 o Brasil conhecera sete padrões de leis escritas Em primeiro lugar as Ordenações do Reino Embora sendo lei escrita regiase inteiramente pelos moldes do Antigo Regime No lugar de incluir as regras que valiam para todos estabeleciam regras gerais para os vulgares e privilégios particulares para as pessoas de qualidade fidalgos clérigos nobres e o rei Quanto mais alto na escala maiores os benefícios menores as penas e os deveres Por isso a aplicação da lei se fazia com o sentido de manter diferenças que a natureza criara vistas pela metáfora do corporativismo e aplicadas com a noção dos direitos adquiridos Nesse todo a igualdade era apenas a parte reservada para os súditos no ponto mais baixo da escala social aqueles que não tinham nenhum direito adquirido Por isso a lei não era igual para todos e apenas aplicada nas partes que se referiam a cada um Sendo a colônia espaço de plebeus as Ordenações foram a legislação vigente no território durante todo o período colonial mas somente as partes que se aplicavam a eles Como muitas dessas partes eram de fato incentivadoras do empreendedorismo na área econômica contendo instituições favoráveis à igualdade de oportunidades heranças e dotes por exemplo e à organização de governos representativos nas vilas aquelas em vigor como lei comum no Brasil acabaram sendo adotadas após a Independência Apesar da Constituição os títulos só aos poucos foram sendo substituídos por legislação nova num processo que durou até 1916 quando foi votado o Código Civil O que de fato valia eram as partes que se adequavam aos costumes as leis que davam certo Apenas a partir da Independência o Brasil conheceu constituições A primeira delas a de 1824 foi promulgada para dar conta da expansão das ideias iluministas procurando amalgamar os princípios da universalidade da lei e da igualdade dos cidadãos com as tradições do corporativismo Com seu ambíguo emprego de duas soberanias permitiu ao fim e ao cabo que o Poder Moderador comandasse rituais de sagração nas eleições nacionais fazendo coexistir uma base de governos democráticos dos nativos e representativos governos e câmaras locais com o arbítrio da Coroa Os conservadores exploraram cada aspecto da ambiguidade estrutural para tentar deter os espectros do capitalismo e da igualdade perante a lei sobretudo aqueles que definiam poderes arbitrários para o monarca por outro lado os defensores dos princípios iluministas tentavam abrir brechas a partir do Parlamento representante da soberania popular A primeira Constituição republicana de 1891 extinguiu o poder arbitrário na lei Ainda que com limitações para o exercício efetivo da soberania popular mantendo o atraso com relação ao Ocidente que se acentuara no final do Império permitiu a implantação de muitas instituições fundadas na universalidade e na liberdade em especial no âmbito dos negócios Mesmo convivendo com a resistência dos costumes autocráticos conservadores elas permitiram uma transformação radical na organização dos governos locais e no desenvolvimento econômico O muro estatal erguido após 1930 trouxe consigo um período de grande oscilação no que se refere às leis gerais Em apenas 33 anos entre 1934 e 1967 o país conheceu nada menos que quatro constituições cada uma delas retrato das oscilações entre aspirações democráticas e desejos autoritários Duas tiveram duração muito curta a de 1934 vigorou por três anos a de 1937 por oito anos As que duraram mais 20 anos a de 1946 e 21 anos a de 1967 sofreram emendas violentas parlamentarismo e legalização do regime militar a primeira atos institucionais e reformas a segunda Todas essas Constituições e todas as fases de ditadura no período haviam deixado claro o problema fundamental garantir que os governos sobretudo o governo central ficassem efetivamente subordinados à soberania dos eleitores embora fossem discricionários na operação do muro Ou seja que a lei fosse de fato para todos e não uma para os de baixo e outra para aqueles no poder Que a relação entre as partes fosse de igualdade e não de favorecedor e cliente Com raríssimas e honrosas exceções os ocupantes do governo central pensaram em si mesmos como os governantes nos tempos coloniais como pessoas muito acima dos demais moradores como iluminados obrigados a agir em nítido contraste com a gente comum ao redor Assim foram os ditadores do regime militar e o que entregaram não foi o produto de seu sonho técnico mas uma nação dilacerada pela concentração econômica e política de um lado e de outro pelo fracasso na produção e na gestão tudo isso expresso no lastimável estado do governo central Em função disso a fim de alcançar um equilíbrio Ulysses Guimarães buscou implantar um projeto constitucional que tinha como eixo básico a afirmação de direitos das mais variadas espécies vistos como forma de proteção contra o arbítrio Embora não sendo um objetivo constitucional clássico foi o caminho seguido Em vez de um conjunto de normas gerais afirmações apenas das leis que seriam iguais para todos buscouse a máxima participação de modo que desejos sociais de justiça ficassem gravados na lei maior do país Uma comissão de notáveis colheu previamente tais desejos na sociedade Quando os representantes eleitos se reuniram para discutir o texto constitucional encontraram todo esse material recolhido E recorreram a uma metodologia de trabalho inversa à das Cartas anteriores previamente esboçadas por especialistas comissões temáticas cuidariam de esboçar trechos diferentes levando em conta as sugestões Depois disso os trechos seriam votados em plenário Para se ter uma ideia do resultado basta o exame do Título II da Carta uma declaração dos direitos fundamentais dos brasileiros algo inexistente nas Constituições anteriores Ali são listados nada menos de 78 direitos fundamentais 10 direitos sociais e 34 direitos dos trabalhadores afora os direitos políticos Tal extensão só se tornou possível com o apelo à variedade Alguns direitos são expressos por princípios gerais do tipo todos são iguais perante a lei ou homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações típicos das Cartas iluministas Outros estabelecem uma relação normativa de tutela entre a sociedade e o Estado obrigando este a atuar numa série de áreas da vida prática O Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita a todos os que comprovarem insuficiência de recursos ou O Estado promoverá na forma da lei o direito do consumidor como supridor de meios e inversamente retirando responsabilidades dos cidadãos para que a tutela seja possível Os procedimentos de responsabilização do Estado pela atuação em áreas práticas da vida social são repetidos em quase todos os demais capítulos Eles vão definindo simetricamente direitos para a sociedade e obrigações tutelares para o Estado Dois casos típicos e essenciais A saúde é direito de todos e dever do Estado ou A educação direito de todos e dever do Estado e da família O termo família traz uma lembrança importante para avaliar esse tipo de procedimento constitucional O legislador lembrouse vagamente de que existe o costume que o cidadão é responsável que a sociedade tem vida própria Mas essa menção é uma exceção na quase totalidade dos casos o texto faz uma reserva de áreas para a atuação do Estado e simetricamente retira da sociedade do ponto de vista político e do setor privado do ponto de vista econômico um papel substantivo na área a que se refere o texto Mas os detalhamentos legais foram além dessas assimetrias concernentes a temas práticos Para se chegar a um número tão alto de direitos foi preciso elevar a situação de grupos sociais muito particulares ao estatuto de merecedores da consideração constitucional Um caso típico Às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação A lista das transformações de casos particulares em preceito geral é imensa No caso dos direitos trabalhistas até mesmo dilemas de conjuntura se transformaram em direito constitucional como por exemplo a proteção contra a automação na forma da lei o segurodesemprego o fundo de garantia o décimo terceiro salário a jornada de oito horas e aquela de seis para quem trabalha em turno contínuo Por todo o texto vão surgindo afirmações de interesses muito particulares como obrigação geral nomeados pelas mesmas palavras que vinham desde o tempo das Ordenações direitos adquiridos A maior parte dessas disposições aparece nas garantias a servidores públicos Entre os 22 direitos a eles garantidos para além de todos os direitos gerais estão detalhes que vão desde o período de validade de um concurso público dois anos prorrogáveis por mais dois até uma amarração completa dos vencimentos de todos os funcionários ao salário dos juízes do Supremo Tribunal Federal a obrigação do Estado de dar aumentos reais periódicos ou regras detalhadas para o acúmulo de cargos públicos Aberta a porteira muitos passaram Há casos quase folclóricos como a garantia constitucional para os donos de cartórios Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado por delegação do Poder Público para uma instituição pública de ensino em particular O Colégio Pedro II localizado na cidade do Rio de Janeiro será mantido na órbita federal ou um caso microscópico É assegurado o exercício cumulativo de dois cargos ou empregos privativos de médico que estejam sendo exercidos por médico militar na administração pública direta ou indireta Criouse assim uma ambiguidade estrutural Há normas gerais segundo a tradição iluminista mas também enorme quantidade de normas que definem tutelas do governo sobre determinadas atividades além de um número ainda maior de normas que regulamentam interesses particulares Tal ambiguidade sustenta uma pergunta mas afinal o que mesmo se universalizou Seria o caso de repetir aqui muito brevemente algumas referências à doutrina portuguesa do corporativismo Tal doutrina se baseava numa noção de justiça formulada a partir da metáfora de um corpo cuja saúde depende do reconhecimento das funções específicas de cada parte Tal reconhecimento se faria com o soberano dando a cada um o seu o direito adquirido inclusive em dinheiro Esse modo de pensar não levava em conta o fato de que era necessário arrecadar e equilibrar contas Como se viu no Advertimento dos meios mais eficazes e convenientes que há para desempenho do patrimônio real escrito por Baltazar de Faria Servetim no distante ano de 1607 para criticar esse tipo de procedimento Ordinariamente os conselheiros fazem uma descrição das grandes virtudes que há de ter o Príncipe como há de ser justo temente a Deus misericordioso liberal afável prudente e valoroso Tratam mui difusamente da conveniência do Rei ter muitas rendas grandes riquezas e tesouros e dizem muitas outras coisas que servem somente para pintar um perfeito Príncipe e uma perfeita República São especulativos não considerando mais que a bondade dos fins sem darem regra de como se hão de achar os meios para estes fins se alcançarem2 O ideal de legislar para fazer justiça e pensar tal justiça caso a caso em cada parte do corpo acabou sendo mais presente no texto da nova Constituição do que as instruções de como achar os meios para alcançar esses fins Mas havia sentido nos comandos contraditórios Eles garantiam não só uma reserva de espaços para o setor público como retiravam o controle da ação estatal das esferas do Executivo e do Legislativo A lógica da decisão sobre a parte válida dos comandos contraditórios pode ser eventualmente entrevista na já citada análise das relações entre a cabeça coroada e o corpo social feita por Xavier e Hespanha Uma vez que a doutrina corporativista estabelecia como núcleo dos direitos do rei o respeito à justiça este ficava obrigado a observar o direito quer como núcleo de comandos dever de obediência à lei quer enquanto instância geradora de direitos particulares dever de respeito dos direitos adquiridos A derrogação de um direito adquirido fosse a propriedade de bens a posse de ofícios ou expectativas ligadas a estes era possível apenas em sede judicial Dito isto já se vê como os tribunais como instância de salvaguarda da justiça e da defesa dos direitos adquiridos de cada um ocupam na esfera do Antigo Regime uma função constitucional determinante3 Essas breves rememorações ajudam a vislumbrar um híbrido que não é mais o original corporativo com o rei no alto e os privilegiados abaixo aquele que serviu de molde tanto para as Ordenações do Reino como para a Constituição imperial Dessa vez a cabeça é formada pelos princípios constitucionais iluministas e o corpo pelas normas que reservam áreas para a ação estatal e pelas garantias constitucionais a pequenos grupos privilegiados que passam a ter direitos adquiridos garantidos pela lei geral e defensáveis na justiça Tratase agora portanto de outra universalidade Não são universais apenas os princípios gerais mas universal é o clientelismo o atendimento a setores inteiros da vida social ou o respeito às exceções particulares e não privadas gravadas na lei E o juiz passa a ser aquele que dá a cada um segundo o seu e não mais o aplicador da norma universal embora tenha o maior de todos os poderes no molde corporativo Por isso tal imagem de híbrido talvez seja melhor definida pela expressão de José Bonifácio como mais um passo no lento amalgamento dos metais diversos na composição de um todo brasileiro único Dessa vez com o domínio do moderno princípio da soberania popular servindo de abrigo para diversas soberanias particulares corporativas aparentemente postas em posição subalterna Em apenas um ano essa peculiar disposição constitucional foi submetida a um teste não previsto por seus autores Na primeira eleição direta para presidente da República em 1989 os brasileiros escolheram Fernando Collor de Mello cujo programa pregava a reforma do Estado brasileiro e a abertura da economia para a globalização Ulysses Guimarães foi apenas o sétimo colocado no primeiro turno do pleito Essa determinação do eleitor soberano mostrou um descompasso imediato entre a Carta recémaprovada e o objetivo nacional escolhido nas urnas Vale a pena notar a natureza desse descompasso toda a vida brasileira estava legalmente estatizada Qualquer mudança dependia de autorização Qualquer corte significativo nos gastos estatais era agora quase impossível pois exigiria uma reforma constitucional e a chancela do Poder Judiciário convertido em defensor dos direitos adquiridos fixados no texto até mesmo contra determinações do Poder Legislativo Também não deixa de ser relevante notar que a globalização avançava a passos céleres Em 1989 durante a campanha presidencial moradores de Berlim demoliram o muro que dividia a cidade símbolo da divisão entre capitalismo e socialismo na Guerra Fria A Alemanha Oriental foi incorporada pela Ocidental as nações do bloco comunista voltaramse para a Europa e em 1991 a própria União Soviética se desfez A Rússia adequouse à economia de mercado as demais nações foram atrás de oportunidades globais Quem ganhou imediatamente foi outra integração Em 1992 foram criados a União Europeia que expandiu a soberania extranacional para a cidadania e o euro a moeda única que tomaria o lugar de seculares moedas nacionais Ao longo da década seguinte o número de paísesmembros chegaria a 28 em boa medida pela absorção das nações que haviam sido satélites da União Soviética Esse também foi o período no qual a China emergiu como grande potência econômica Apesar de o controle político continuar nas mãos do Partido Comunista o crescimento todo era fundado no setor privado que começava a se expandir para além das fronteiras nacionais num ritmo bastante superior aos 10 anuais da média dos dois setores Até mesmo o mais jeca dos eleitores brasileiros dava mostras de perceber um fosso aumentando entre 1985 e 1990 a média do crescimento das economias no mundo foi de 39 contra 58 do comércio internacional A tendência acelerouse ainda mais no quinquênio seguinte 27 para as economias nacionais 61 para o comércio internacional Enquanto isso o Brasil vivia um pesadelo econômico O crescimento interno passou a depender dos azares da conjuntura indo e vindo com oscilações fortes 79 em 1985 01 em 1988 32 em 1989 41 em 1990 47 em 1993 As taxas de inflação variaram entre o mínimo de 15 em 1987 e o máximo histórico de 1782 em 1989 Herdando tal recorde e tendo prometido aos eleitores que iria romper o muro brasileiro Collor recorreu aos métodos heterodoxos típicos dos desesperados confisco de poupanças fechamento de setores inteiros da economia estatal cinema por exemplo empréstimos compulsórios O resultado em termos de desenvolvimento foi uma recessão brutal acompanhada de surtos inflacionários Houve também tragédias novas A abertura da economia para a competição internacional inviabilizou milhares de indústrias que deviam sua existência ao muro sobretudo nos setores que haviam apostado nos planos de Geisel como o de bens de capital e investido para abastecer um mercado interno maior A concorrência com o mundo obrigou os sobreviventes a se adaptar ou morrer e gerou desemprego Por outro lado registraramse também ganhos efetivos O Brasil teve papel fundamental na criação do Mercosul a primeira iniciativa relevante para o país se posicionar no mundo global Também conseguiu participação importante nas discussões sobre meio ambiente hospedando a Rio 92 a tentativa inicial de se alcançar uma solução da mesma natureza que o problema em âmbito global e para além dos Estados nacionais Também ocorreu ligeira diminuição do papel do Estado na economia com as privatizações de portos e ferrovias No processo se revelou o valor das proteções constitucionais a muitos setores particulares dadas pela Constituição Cada mudança exigia uma reforma constitucional seguida de batalhas judiciais movidas pelos detentores de direitos adquiridos que se sentiam prejudicados Nessa luta veio à luz a parte híbrida do próprio presidente enquanto abria a economia de um lado alimentavase com a ração do avestruz corporativista de outro A corrupção maciça agora que havia democracia veio à luz levando multidões às ruas em protesto e por fim ao próprio impedimento do presidente Mas a abertura econômica prosseguiu CAPÍTULO 71 Desencalhe reencalhe O VICEPRESIDENTE DE FERNANDO COLLOR ERA ITAMAR FRANCO UM POLÍTICO COM fama de estatista paroquial e nacionalista Como presidente porém soube realizar as promessas maiores embutidas no mandato recebido Contra as próprias afinidades privatizou a Companhia Siderúrgica Nacional tida como o grande símbolo do governoempresário que promovia o crescimento do país A empresa continuou a produzir como se nada tivesse acontecido O presidente não dava murro em ponta de faca Trocou três vezes de ministro da Fazenda por falta de resultados até colocar no cargo o chanceler Fernando Henrique Cardoso que não tinha experiência anterior no Executivo nem na gestão econômica Àquela altura o país completava uma década de desgovernos na área mas acumulara alguns resultados a dívida externa voltara a um patamar administrável as contas públicas tinham um mínimo de ordem a sociedade estava exausta da inflação E o Plano Real lançado no final de fevereiro de 1994 conseguiu o milagre depois de três décadas de inflação crônica e uma década de hiperinflação os preços da economia foram estabilizados Dessa vez não apenas como um golpe temporário A diferença se fez com o esforço subsequente para impedir gastos do governo sem receitas prévias inclusive com cortes no aparato estatal e abertura da economia Os métodos arbitrários e os poderes excepcionais do governo federal começaram a ser domados Foram os resultados obtidos nesse sentido que embasaram a campanha que levou Fernando Henrique Cardoso a ser eleito presidente da República em primeiro turno nas eleições de 1994 E também o cerne do que veio a seguir Como talvez não acontecia desde os tempos de Prudente de Morais o fundamental era recolher demônios Os demônios nesse caso tinham duas emanações Uma delas surgia na obra de rescaldo de remoção dos esqueletos de dívida pública que vindos desde a ditadura estavam espalhados pelos mais diversos itens dos orçamentos nacional e estaduais Para que não se transformassem em focos inflacionários era necessária uma operação de saneamento capaz de tornar quantificáveis e registradas na forma de dívida as promessas de pagamento sem a devida cobertura de receitas Na frase do encarregado da tarefa o ministro da Fazenda Pedro Malan no Brasil as incertezas da economia não são as do futuro mas as do passado A tarefa de saneamento foi bastante ampla Atingiu o governo federal exigiu entre outras medidas assumir as dívidas de todos os estados e a renegociação delas obrigou a limpar os balanços recapitalizar bancos e empresas públicas mudar os critérios de registro contábil do próprio governo criar a Lei de Responsabilidade Fiscal que tornou os administradores públicos responsabilizáveis em caso de gastos fora de padrão Sem a inflação e os fantasmas tudo isso resultou na contabilização das contas a pagar sob a forma de dívida pública que chegou a 213 do PIB em 1989 e a 252 em 1993 devido aos processos da era Collor que geraram canos aos credores Daí em diante o total de débitos teve um crescimento contínuo 279 em 1994 293 em 1998 356 em 2002 Esse aumento da dívida aconteceu apesar de forte aumento da carga tributária Ela representava 256 do PIB em 1993 passou para 279 no ano seguinte chegou a 293 em 1998 e atingiu 356 em 2002 O governo custava caro para os brasileiros mas o impacto foi absorvido porque havia esperanças oriundas de outra frente de combate aos demônios A segunda fonte de emanação de demônios era a crença de que reservas constitucionais para o governo central no campo da economia equivaliam a progresso e inversamente que abrir a economia para o exterior seria perder oportunidades de crescimento Nesse ponto é esclarecedor seguir o argumento proposto por Thomas Piketty em seu livro O capital no século XXI que divide em dois o período que vai de 1913 a 2012 tendo como marco de corte a década de 1970 No século como um todo o crescimento da produção mundial seria de 3 ao ano para um crescimento demográfico de 14 anuais com a renda per capita mundial crescendo portanto 16 ao ano No período que vai de 1913 até a década de 1970 essa tendência mundial se reflete na economia brasileira que teve um dos melhores desempenhos em termos de crescimento econômico per capita de todo o planeta Todavia a partir da década de 1970 há um descolamento entre o ritmo mundial e o local No cenário mundial a grande mudança é o aumento exponencial da atuação de empresas mundiais em mercados regulamentados por Estados nacionais Essas empresas passaram a ser a maior fonte de acumulação de riquezas e de fortunas privadas em todo o mundo Sua peculiar forma de distribuir a riqueza obtida sob a forma de dividendos sobre os lucros faz com que os resultados se transformem em estoque de riqueza dos mais ricos nos países em que estão sediadas Os dados para os países mais ricos do planeta Estados Unidos Alemanha Reino Unido Japão Canadá França Itália e Austrália revelam uma linha clara assim enunciada por Piketty Há uma tendência de longo prazo no conjunto dos países ricos entre as décadas de 1970 e 2010 No início da década de 1970 o valor total da riqueza privada subtraídas as dívidas era de entre 2 e 35 anos da renda nacional em todos os países ricos de todos os continentes Quarenta anos mais tarde no início dos anos 2010 a riqueza privada representa entre 4 e 7 anos de renda nacional também em todos os países estudados A evolução geral não deixa dúvida alguma além das bolhas estamos assistindo à volta triunfal do capital privado nos países ricos1 Uma afirmação como essa poderia levar a supor que o fenômeno da acumulação de riqueza pelo setor privado estaria limitado aos ganhos da globalização pelos países ricos em detrimento dos menos desenvolvidos Mas a parte seguinte do livro traz estatísticas comparadas de distribuição de riqueza em diversas economias inclusive de países ricos menores Suécia ou com menor renda per capita Índia Indonésia África do Sul China Argentina e Colômbia A conclusão é igualmente uniforme As ordens de grandeza obtidas para a parcela do centésimo superior na renda nacional das nações pobres ou emergentes são a princípio extremamente próximas das observadas nos países ricos Durante as fases de maior desigualdade em particular ao longo da primeira metade do século XX o centésimo superior detinha em torno de 20 da renda nacional nos quatro países considerados Índia África do Sul Indonésia e Argentina Nas fases de maior igualdade ou seja entre os anos 1950 e 1970 a parcela do centésimo superior caiu para níveis de 612 de acordo com o país A partir dos anos 1980 assistimos a uma recuperação mais ou menos generalizada da parcela do décimo superior2 A tendência vale inclusive para a China Na China observamos um forte aumento da parcela do centésimo superior na renda nacional ao longo das últimas décadas mas que partiu de um nível relativamente baixo quase escandinavo em meados dos anos 1980 menos de 5 da renda nacional para o centésimo superior O aumento das desigualdades chinesas foi muito rápido após o movimento de liberalização da economia nos anos 1980 e durante o crescimento acelerado dos anos 19902000 mas de acordo com nossas estimativas a parcela do décimo superior situase em torno de 1011 da renda nacional3 E também para a Suécia A Suécia não é o país estruturalmente igualitário que costumamos imaginar A concentração de riqueza na Suécia por certo atingiu nos anos 197080 o ponto mais baixo observado em nossas séries históricas mas ela aumentou sensivelmente desde os anos 198019904 Os dados evidenciam uma tendência relativamente universal de concentração de riqueza no setor privado a partir da década de 1970 tanto nos países ricos como nos hoje chamados emergentes Tal uniformidade não exclui nem mesmo os antigos países socialistas que conseguiram redirecionar suas economias visando o aumento da atividade produtiva Aqui caberia uma inferência para além do campo da economia A lista de países que apresentam a mesma tendência de acumulação de riqueza no setor privado abrange variantes políticas expressivas regimes dominados por um partido único como a China governos predominantemente socialdemocratas como a Suécia países com o Estado grande como a França ou a Itália que alternaram políticas conservadoras e de esquerda sem que isso afetasse a tendência de concentração a Alemanha onde se alternam os socialdemocratas e os conservadores o Japão majoritariamente dirigido por forças centristas o Reino Unido e os Estados Unidos onde os conservadores neoliberais se alternaram no poder com os trabalhistas e os democratas tanto uns quanto outros incapazes de alterar a tendência geral Em outras palavras o processo de globalização se tornou impositivo porque foi carreando para si todos os Estados nacionais independentemente das opções políticas ou ideológicas locais Ter um setor privado forte atuante no mundo inteiro capaz de competir em escala mundial passou a ser a regra do jogo Manter o isolamento os apanágios nacionais o mercado fechado as regras idiossincráticas tornouse a marca dos perdedores o caso do Brasil nesse período A obra de desencalhe desse isolamento prejudicial inaugurada em 1990 e continuada no mandato popular seguinte tinha um ponto fulcral remover as barreiras que reservavam ao governo federal seja por administração direta ou por meio de empresas estatais o domínio monopolista de uma série de atividades econômicas Cada quebra de monopólio exigiu a privatização de empresas estatais ou uma ou mais reformas constitucionais pelas quais afinal o setor privado ganhava autorização para investir capital de risco No primeiro caso o destaque ficou com o setor de telecomunicações Em 1994 o país mal tinha telefones fixos para uma minoria da população a transmissão de dados entre computadores dependia de uma morosa empresa estatal com monopólio estendido inclusive a transmissões privadas Com a privatização esse quadro foi alterado justamente no período em que a Internet e os celulares se tornaram os meios relevantes de comunicação e em menos de uma década todo o setor foi modernizado No segundo caso o modelo de sucesso foi a privatização da estatal Vale do Rio Doce Também em menos de uma década ela deixou de ser o braço provincial de um governo local para se tornar uma grande empresa mundial de mineração passando inclusive a controlar ativos no exterior Um terceiro modelo de sucesso foi aplicado no caso do petróleo Rompido o monopólio estatal da empresa governamental foi possível atrair empresas e capitais do mundo inteiro Num primeiro momento elas vieram trazendo capitais de risco para explorar o potencial de muitas reservas sobretudo na plataforma continental À medida que se livrava de esqueletos do passado e deixava de atuar em áreas nas quais não conseguia ser empresário eficiente o governo federal passou a dispor de mais recursos para cuidar das áreas prioritárias E nenhuma delas deu um resultado maior que a educação em 2002 último ano da gestão de Fernando Henrique Cardoso o número de crianças na escola fundamental passou de 83 em 1994 ano de estreia no governo para 99 Esse era um sinal maior de uma tendência geral de melhoria de todos os indicadores sociais mortalidade infantil caiu de 471 de cada mil nascidos vivos em 1990 para 344 em 2002 expectativa de vida aumentou de 66 anos para 686 entre 1991 e 2000 distribuição de renda o índice de Gini caiu de 0636 em 1989 para 06 em 1995 e 058 em 2002 porcentagem de alunos no ensino superior renda do trabalho proporção de homicídios Ao mesmo tempo foram implantadas duas políticas de importância histórica A maior reforma agrária da história brasileira seguida de uma política de crédito para a agricultura familiar permitindo a diminuição no ritmo de esvaziamento do sertão a proporção da população rural caiu apenas dois pontos percentuais de 24 para 22 entre 1991 e 2000 Ao mesmo tempo implantouse uma política efetiva de demarcação de terras indígenas uma dívida de cinco séculos começava a ser resgatada o que fez com que essa população passasse a crescer Outra inovação fundamental a partir das experiências de Ruth Cardoso graças ao emprego de métodos modernos de informática teve início com o programa Bolsa Escola a transferência direta de renda do Estado para a população mais pobre sem os tradicionais intermediários clientelistas Tudo isso levou a população brasileira a acreditar que a democracia estava de fato ganhando um significado maior A democracia secular como sistema de representação nos municípios e também secular nos parlamentos estava afinal deixando de ser o instrumento de sagração do chefe dos executivos estaduais e sobretudo do nacional para se tornar um mecanismo substantivo de representação Os programas prometidos aos eleitores por Collor foram bem ou mal cumpridos Aqueles de Fernando Henrique Cardoso em grau muito maior também E as eleições de 2002 apresentaram uma escolha promissora Luiz Inácio da Silva o Lula tinha uma biografia que era um retrato da transformação da vida do brasileiro pobre da época inclusive no que se refere a oportunidades de ascensão social Nascido em 1945 em Garanhuns Pernambuco migrou para São Paulo aos 7 anos A mãe carregou os filhos para São Paulo atrás do marido que viera antes numa viagem num caminhão pau de arara que durou 22 dias Começou a trabalhar vendendo laranja no cais de Santos e catando siri no mangue Entrou na escola pública na qual foi alfabetizado Mudouse com a mãe para São Paulo e aos 14 anos passa a trabalhar com carteira assinada como operário metalúrgico Com 19 anos de idade um acidente com o torno mecânico o fez perder o dedo mínimo da mão esquerda Em seguida em 1966 foi trabalhar numa grande indústria a Villares onde mais tarde fez carreira como sindicalista Em 1973 recebeu formação da central sindical norteamericana AFLCIO e começou a a se destacar no meio sindical propondo o fim da CLT e fazendo oposição às tradicionais lideranças vindas do varguismo Tornouse um líder efetivo ao comandar as primeiras greves em mais de uma década enfrentando a dura repressão do regime militar Em 1980 Lula acumulara prestígio suficiente para ser a grande figura em torno da qual gravitavam os grupos que fundaram o Partido dos Trabalhadores Foi reforçando a imagem de seu partido e a sua por meio de candidaturas a cargos majoritários governador de São Paulo em 1982 e quatro vezes candidato a presidente da República a partir de 1989 Apenas uma vez se elegeu nesses anos para deputado constituinte em 1986 Teve atuação relativamente apagada pela qual permitiu manter a CLT contra a qual tanto havia lutado Mas era um líder partidário incontestável e de um partido que fazia duras críticas ao programa de Fernando Henrique Cardoso As críticas do PT fundavamse na análise do processo de globalização feita a partir da disjuntiva direitaesquerda de uma Guerra Fria já encerrada na repartição entre capitalismo e socialismo o governo seria neoliberal enquanto a alternativa petista era apresentada como sendo de esquerda e priorizando os pobres e o Brasil Já o candidato foi para a televisão contando da fome pela qual passara e prometendo acabar com ela através de um programa chamado Fome Zero Ganhou as eleições e foi muito pragmático trocou o programa de seu partido por uma ampliação do Bolsa Escola que passou a se chamar Bolsa Família e foi apresentado como presente paternalista do presidente Ganhou imensa popularidade mas não apenas por isso Manteve a política econômica do governo anterior o que lhe garantiu apoio de empresários mas interrompeu as reformas no Estado o que lhe assegurou o apoio dos funcionários públicos e dos interesses corporativistas Como logo vieram anos muito bons para as exportações brasileiras o crescimento econômico embora modesto para os padrões anteriores aos da década de 1980 chegou a ser alentador aumentando tanto o nível de emprego como a renda dos trabalhadores Tudo isso o transformou num líder que efetivamente cumpria as promessas feitas aos mais pobres As pesadas marcas sociais deixadas como herança pela ditadura pareciam estar sendo curadas O prestígio do presidente era de tal ordem que foi reeleito no primeiro turno em 2006 apesar de um processo por corrupção aberto contra os principais líderes de seu partido e alguns aliados no governo Nesse cenário ainda dominado pelo otimismo vem outra notícia econômica relevante em 2007 a intensificação das pesquisas petrolíferas implantada com o fim do monopólio estatal do petróleo levara à descoberta de gigantescas reservas na plataforma marítima brasileira tão grandes que poderiam impulsionar um novo surto de progresso do país Mas veio uma crise mundial em 2008 e tudo voltou para trás A resposta do governo foi atualizar os pressupostos nacionalistas do governo Geisel valia a pena cercar essas reservas por um muro protetor investir nelas como um monopólio nacional e carrear os lucros maiores para o interior da nação Toda a máquina relacionada a essa espécie de pensamento foi posta para girar as regras para o petróleo foram mudadas no meio do jogo com uma legislação que colocou o governo brasileiro como detentor exclusivo do comando e a estatal do setor como agente obrigatória sócia reguladora de todos os passos da exploração petrolífera Ao mesmo tempo reforçouse o programa pelo qual determinadas empresas nacionais teriam o monopólio de fornecimento de equipamentos e serviços ainda que estes custassem muito mais do que no mercado internacional Linhas de financiamento subsidiadas com dinheiro público foram abertas não só para essas empresas mas também para outras indústrias locais Tudo isso aumentou a estima de empresários que sentiam desconforto em competir nas circunstâncias de abertura progressiva para o mundo global e que agora eram favorecidos pelo dinheiro público As mudanças se estenderam ao campo político Para aprovar tudo no Parlamento o governo apresentou uma perspectiva de tal abundância futura que seria necessário mudar as leis Primeiro para garantir o financiamento da educação e da saúde bastaria parte dos ganhos os rendimentos restantes seriam colocados em um fundo soberano a ser criado A reação brasileira foi ampliar muito todos os tipos de crédito a fim de evitar o contágio maior de uma recessão que se espalhava pelo mundo Além do setor da construção civil um dos grandes beneficiários foi a indústria automobilística Com isso atenuouse o impacto da crise mundial e a popularidade do presidente garantiu a eleição da candidata proposta por seu partido Dilma Rousseff que se tornou a primeira mulher a presidir o Brasil Em sua gestão as políticas de gasto público prosseguiram em ritmo acelerado mesmo depois de passada a onda recessiva internacional Para manter a roda do gasto foi preciso ir ultrapassando limites primeiro o da prudência logo em seguida o das formalidades implantouse a chamada contabilidade criativa que permitiu a retomada da prática de ocultação dos esqueletos financeiros Mesmo com os truques a percepção de que havia problemas nesse modelo acabou derrubando o crescimento econômico Ainda assim Dilma Roussef conseguiu se reeleger em 2014 Todo o investimento público havia sido feito com o pressuposto de receitas proporcionadas por um patamar de preço do barril de petróleo da ordem de 120 dólares No entanto ao longo de 2015 esse patamar foi baixando até se estabilizar em 30 dólares fazendo ruir o castelo de sonhos do crescimento como nos tempos de Geisel Ficou para o país como antes a obrigação de pagar o preço da aposta perdida contra a globalização Esse preço vinha dessa vez como prejuízo gigantesco da estatal de petróleo falência dos empresários que se associaram à aposta rombo nas contas públicas que toda a população precisaria cobrir e uma gigantesca recessão de magnitude muito maior que a de 1929 Pior ainda com o agravante de ser uma recessão apenas brasileira levando o perdedor para muitas casas abaixo na economia globalizada Não bastasse isso acabou emergindo à luz toda a parte perversa do investimento clientelista a empresa estatal não apenas aceitou como incentivou a aprovação legal do plano contratou privilegiados a preços sabidamente mais caros dos que poderia pagar de outra forma os privilegiados pagaram pelo privilégio e os recebedores da propina estavam no governo federal e no sistema político que aprovou o plano Além da aposta perdida o método era o único possível para alcançar um objetivo protecionista quando já não havia sentido econômico para isso no mundo Tudo isso levou as pessoas de novo às ruas o Congresso acabou por votar um novo impedimento de presidente e em 2016 Michel Temer assumiu a presidência da República apresentando um plano chamado Ponte Para o Futuro Por ele comprometiase a fazer o governo federal controlar seus gastos num patamar suportável Ao mesmo tempo procuradores concentravam investigações sobre o setor privado tido por muita gente como o único responsável pela situação Com isso numa sociedade dominada por costumes igualitários e globalizados o corporativismo luta para sobreviver no poder para manter a imagem hierárquica como modelo O amálgama das leis aos costumes está ainda em processo e como será deste ponto em diante já não é mais história POSFÁCIO Quintafeira 20 de abril de 2017 DIANTE DE MIM ESTÁ UMA EDIÇÃO DA HISTÓRIA DO BRASIL DO FREI VICENTE DO Salvador Esse livro sempre fica à mão porque era de minha mãe Carmen Pires do Rio Caldeira formada em História e muito capaz de instilar no filho a paixão pelo passado do país Acabo de concluir o capítulo anterior e continuo a escrever aqui em parte porque a História do frei me traz recordações e reflexões para dividir com você amável leitor Há uma questão de tempos um da história outro da vida real As passagens entre eles podem ser muito bruscas Há exatos 38 anos lá pelas cinco da tarde passei na casa de meus pais Fui visitar minha avó Odila que estava se recuperando de uma fratura no fêmur Desci as escadas na companhia de minha mãe nos despedimos Fui para o lançamento de um livro do Celso Favaretto meu professor de filosofia no colegial sobre a Tropicália Encontrei amigos decidimos ir a uma festa Ninguém sabia direito chegar ao lugar algo que naquele tempo se resolvia com a consulta a guias de ruas Como estava passando quase na porta da casa de meus pais parei para consultar um Mal abro a porta encontro minha tia Molly irmã de minha avó aos gritos Tua mãe morreu Um acidente horrível Atarantado saio pela porta pensando em avisar os amigos Não consigo pronunciar frase nenhuma O longo pesadelo da ausência que hoje completa 38 anos começara Só agora consigo escrever sobre isso E penso realmente é preciso tempo para contar a história para o vivido ser narrado de um modo que faça sentido Sempre fui muito cuidadoso com esse preceito tentando escrever apenas sobre aquilo que já assentou Desta vez fui além abri uma exceção entrei onde não devia a área contaminada pelo presente ou pior ainda pelas expectativas em relação ao futuro Governantes cuidam melhor do presente com sua obrigação de resolver os problemas do dia economistas se arriscam pelo futuro porque o veem como resultado de proposições que consideram científicas Historiadores que trazem a narrativa até o presente podem apenas falar de vagas sensações de movimentos tectônicos que um dia podem ou não virar terremoto E falo dessas intuições apenas para que fique a certeza de que esta narrativa sobre os séculos se desdobrará em eventos que a modificarão Alguns certamente terão acontecido entre o momento em que estas linhas são digitadas e o momento em que serão percorridas por seus olhos leitor Nesse intervalo muito terá acontecido e muito mais virá a seguir Sinto tensão nos encontros entre diversas placas Até os papas sabem que existe o risco de uma catástrofe global afetando a vida no planeta como um todo Esse é um risco e tanto porque só pode ser eliminado com uma mudança no modo de pensar a atividade humana que abandone os ideais iluministas Todos Adam Smith ou Marx e o leque inteiro de seus seguidores Deixarão de ter sentido tanto a noção de natureza como um repositório infinito e gratuito para o proveito humano como a noção de que todo valor econômico está na marca deixada pelo trabalho no objeto natural Isso é de fato novo totalmente novo e assusta Sobretudo aqueles cuja identidade humana está baseada na acumulação e começam a sentir o pânico pelo que terão de enfrentar A negação das evidências científicas não chega a ser uma solução Os sinais econômicos de um encerramento do ciclo de aproveitamento do cenário internacional como oportunidade para maiores ganhos são cada vez mais evidentes ao menos se formos pensar como o velho Marx um dia alguém não aceita um crédito e aí a onda se espalha pelo planeta Foi difícil conter as consequências em 2008 pode ser mais difícil adiante Sim leitor Não sei o que vai acontecer Apenas espero que este pobre escrito tenha ajudado você a pensar em algo mais acabado do que pude fazer Por isso tenho confiança no futuro no país nos cidadãos todos iguais empenhados na busca conjunta na diversidade que ensina e em governos que levem isso em conta para nos levar adiante NOTAS BIBLIOGRÁFICAS PARTE I 15001508 CAPÍTULO 1 COSTUMES E PROBLEMAS DE ESCRITA 1 Pierre Clastres A sociedade contra o Estado São Paulo Cosac Naify 2003 p 212 2 Jorge Caldeira A teoria do valor Tupinambá em Idem Nem céu nem inferno São Paulo Três Estrelas 2015 pp 2122 CAPÍTULO 3 GOVERNO PORTUGUÊS TEORIA ESCRITA E IGREJA 1 Aristóteles Política Brasília Editora da UNB 1997 p 18 2 De potestate civili n 8 in Obras completas de Francisco Vitória Madri BAC 1960 3 Angela Barreto Xavier Antonio Manuel Hespanha A representação da sociedade e do poder em José Matoso org História de Portugal Lisboa Estampa 1998 v 4 p 125 4 Ibid pp 12930 5 Ibid p 142 6 Ibid p 130 CAPÍTULO 6 GOVERNOGERAL 1 Regimento de Tomé de Sousa em Viagem pela história do Brasil seção documentos CDRom São Paulo Companhia das Letras 1997 2 Ibid 3 Ibid 4 Ibid 5 Manuel da Nóbrega Diálogo sobre a conversão do gentio 1556 em Serafim Leite org Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil São Paulo Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo 195657 v 2 p 337 6 Ibid p 450 CAPÍTULO 7 GOVERNO FRANCÊS CORPO E ESPÍRITO 1 Ferdinand Denis Brasil São Paulo Belo Horizonte Edusp Itatiaia 1980 p 58 2 Carta de Luís de Góis a d João III em Documentos interessantes v 1 São Paulo Archivo do Estado 1917 p 11 3 Charles W Baird History of the Huguenot emigration to America Nova York Dodd Mead Company 1885 v 1 pp 3233 Trad do autor 4 Ibid pp 3940 5 Ibid p 42 6 Jean de Léry Viagem à terra do Brasil 1578 São Paulo Martins Edusp 1972 pp 159 17172 7 Carl Gustav Jung O símbolo da transformação na missa Petrópolis Vozes 2011 p 34 8 Sérgio Buarque de Holanda Olga Pantaleão Franceses ingleses e holandeses no Brasil quinhentista em Sérgio Buarque de Holanda dir História geral da civilização brasileira São Paulo Difusão Europeia do Livro 1960 t 1 v 1 p 156 9 Nicolas Durand de Villegagnon Carta aos de Genebra Paris 6 de julho de 1560 apud Frans Leonard Schalwijk O Brasil na correspondência de Calvino Fides Reformata 1 2004 pp 10128 10 Sérgio Buarque de Holanda Olga Pantaleão op cit pp 15657 11 Ibid 12 Montaigne Ensaios livro I cap 23 13 Ibid 14 Ibid CAPÍTULO 8 ALIANÇA GERAL 1 Serafim Leite org Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil op cit v 2 2 Alvará de 20 de março de 1570 3 Joseph C Miller A dimensão histórica da África no Atlântico açúcar escravos e plantações em A dimensão atlântica da África II Reunião Internacional de História da África Rio de Janeiro São Paulo CEAUSP SDGMarinha Capes 1997 pp 2526 4 Frei Vicente do Salvador História do Brasil Rio de Janeiro São Paulo Versal Odebrecht 2008 cap 3 fl 6 5 Ibid 6 Ibid CAPÍTULO 9 GOVERNOS DA ESPANHA 1 Blas Garay Prologo em Nicolas del Techo Historia de la Provincia del Paraguay de la Compañia de Jesus Madri La Uribe 1897 p 20 2 Carta do superior Nicolás Durán ao padre Francisco Crespo in Anais do Museu Paulista 1922 v 1 t I p 170 3 Ibid pp 17980 4 Cédula Real de 12091628 em Ibid p 182 5 Archivo General de las Indias Charcas 30 R 1 n 1 bloque 2 6 Testemunho de fatos ocorridos no Paraguai Anais do Museu Paulista 1922 p 256 CAPÍTULO 10 GOVERNOS DA HOLANDA 1 Betty Wood The origins of American slavery Nova York Hill and Wang 1997 pp 99100 Trad do autor 2 Niels Steensgaard Violence in the rise of capitalism Review A Journal of the Fernand Braudel Center v 2 n 5 p 257 Trad do autor 3 Eric Williams From Columbus to Castro The History of Caribbean 14921969 Nova York Vintage Books 1984 p 112 Trad do autor CAPÍTULO 12 GOVERNO CENTRAL E ECONOMIA 1 Bartolomeu Lopes Carvalho Manifesto ao Rei em Juarez Donizete Ambires Os jesuítas e a administração de índios em São Paulo dissertação de mestrado FFLCHUSP p 195 CAPÍTULO 13 GOVERNOS LOCAIS E COSTUMES 1 Apud Jorge Caldeira O banqueiro do sertão São Paulo Mameluco 2006 v 2 p 37 2 Rae Jean Dell Flory Bahian society in the midcolonial periods the sugar planters tobacco growers merchants and artisans of Salvador and Reconcavo tese de doutorado University of Texas Austin 1978 p 172 Trad do autor 3 Ibid p 146 CAPÍTULO 14 POLÍTICA MISERÁVEL E CARANGUEJO 1 Frei Vicente do Salvador op cit cap 2 fl 4 2 Ibid 3 Ibid 4 Ibid 5 Evaldo Cabral de Mello Rubro veio o imaginário da restauração pernambucana Rio de Janeiro Nova Fronteira 1986 p 194 CAPÍTULO 15 BRASILEIROS 1 José Miguel Wisnik Introdução em Poemas escolhidos de Gregório de Matos São Paulo Companhia das Letras 2011 p 13 2 Frei Vicente do Salvador op cit cap 3 fl 6 3 Ibid CAPÍTULO 16 GOVERNOGERAL NO SERTÃO 1 José Ferreira Carrato Igreja iluminismo e escolas coloniais São Paulo Nacional Edusp 1968 p 13 2 Carta de Artur de Sá e Menezes a D Pedro II apud Jorge Caldeira O banqueiro do sertão São Paulo Mameluco 2006 v 2 p 481 3 Patente dada por Artur de Sá e Menezes a Manuel de Borba Gato em Ibid p 489 4 Carta de Bento Fernandes Furtado em Ibid p 493 5 Afonso de E Taunay Prefácio em Pedro Taques de Almeida Paes Leme Nobiliarquia paulistana histórica e genealógica São Paulo Martins sd v I pp 1516 6 José Francisco Rocha Pombo História do Brasil Rio de Janeiro Benjamin de Aguila sd v 5 pp 454 501 CAPÍTULO 17 OS FAVORES DA CABEÇA 1 Arquivo Nacional da Torre do Tombo ms 1607 2 Antonio Manuel Hespanha Ângela Barreto Xavier op cit p 236 3 Ibid p 130 4 Ver Jorge Caldeira A nação mercantilista São Paulo Editora 34 1999 pp 173268 CAPÍTULO 18 OURO E REDISTRIBUIÇÃO DOS GOVERNOS NO TERRITÓRIO 1 José Antonio Caldas Notícia geral de toda esta capitania da Bahia desde o seu descobrimento até o ano de 1759 Salvador Tipografia Beneditina edição facsimilar 1951 p 63 2 Ibid p 71 CAPÍTULO 19 RIQUEZA E EMPREENDEDORES 1 Fréderic Mauro A conjuntura atlântica e a independência do Brasil em Carlos Guilherme Mota org 1822 Dimensões São Paulo Perspectiva 1986 p 44 2 José Jobson A de Arruda O Brasil no comércio colonial São Paulo Ática 1980 p 612 3 João Luís Ribeiro Fragoso Homens de grossa aventura Rio de Janeiro Arquivo Nacional 1992 p 23 4 Tais proporções encontradas por Nathaniel Leff são muito semelhantes àquelas da primeira década do século atual Em 2008 o mercado interno representava 867 do PIB nacional 5 Iraci del Nero da Costa Arraia miúda um estudo sobre os não proprietários de escravos no Brasil São Paulo MGSP 1992 pp 1156 6 Francisco Vidal Luna Herbert S Klein Economia e sociedade escravista Minas Gerais e São Paulo em Vv Aa Escravismo em São Paulo e Minas Gerais São Paulo Edusp Imesp 2009 p 197 7 Francisco Vidal Luna Herbert S Klein Evolução da sociedade e economia escravista de São Paulo 17501850 São Paulo Edusp 2006 p 197 CAPÍTULO 20 GOVERNOS LOCAIS E COSTUMES NA MINERAÇÃO DO OURO 1 Luciano Figueiredo Barrocas famílias a vida familiar em Minas Gerais no século 18 São Paulo Hucitec pp 2526 CAPÍTULO 21 COSTUMES E LEI CIVIL APÓS O OURO 1 Karl Marx O capital México Fondo de Cultura Económica 1978 v 1 p 52 2 Thomas Piketty O capital no século XXI Rio de Janeiro Intrínseca 2014 pp 35354 3 Muriel Nazzari O desaparecimento do dote São Paulo Companhia das Letras 2001 p 28 4 Ibid pp 26465 5 Lúcia Maria do Amaral Azevedo Martha Maria do Amaral e Azevedo A família brasileira Anais do II Congresso LatinoAmericano de Psicologia Jungiana Rio de Janeiro Paulus 2001 pp 31318 6 Francisco Vidal Luna Herbert S Klein Economia e sociedade escravista op cit pp 197200 7 Dicionário Morais Silva Ed facsimilar Rio de Janeiro 1813 v 2 p 29 8 Dicionário Houaiss Rio de Janeiro Objetiva 2002 p 1334 9 Hebe Maria de Castro Mattos Ao sul da história São Paulo Brasiliense 1987 p 110 10 Ibid p 111 11 Marquês do Lavradio Apud Caldeira Jorge A nação mercantilista São Paulo Editora 34 1998 p 304 PARTE II 18081889 CAPÍTULO 22 TEORIA DOS GOVERNOS UMA REVOLUÇÃO 1 Fernando A Novaes Portugal o Brasil e o antigo sistema colonial São Paulo Hucitec 1995 pp 142 43 2 Apud C R Boxer A idade do ouro São Paulo Nacional 1963 p 279 3 JeanJacques Rousseau Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens São Paulo Nova Cultural 1999 p 61 4 Ibid p 94 5 Ibid p 110 6 Ibid p 112 7 JeanJacques Rousseau Do contrato social São Paulo Martin Claret 2013 p 27 8 Ibid p 75 9 Norberto Bobbio O modelo jusnaturalista em Norberto Bobbio Michelangio Bovero Sociedade e Estado na filosofia política moderna São Paulo Brasiliense 1996 pp 4445 10 JeanJaques Rousseau Do contrato social São Paulo Abril Cultural 1973 p 75 11 Aristóteles Política op cit p 27 12 Adam Smith A riqueza das nações São Paulo Abril Cultural 1981 p 53 13 Ibid p 285 14 Ibid p 286 15 Ibid p 290 CAPÍTULO 23 REINO COLONIAL SONHO DE REAÇÃO 1 Joaquim José da Cunha de Azeredo Coutinho Análise da justiça do comércio de escravos com a costa da África em Idem Obras econômicas São Paulo Companhia Editora Nacional 1966 p 233 2 Ibid p 236 3 Ibid p 246 4 Ibid pp 24142 5 José da Silva Lisboa Princípios de economia política São Paulo Pongetti 1956 p 118 6 Ibid p 121 7 John Luccock Notas sobre o Rio de Janeiro Belo Horizonte São Paulo Itatiaia Edusp 1975 p 383 CAPÍTULO 25 A CONSTITUIÇÃO DE 1834 1 Jorge Caldeira A nação mercantilista op cit p 288 2 José Bonifácio de Andrada e Silva Representação à Assembleia Geral Constituinte do Império do Brasil sobre a escravatura em Jorge Caldeira org José Bonifácio de Andrada e Silva São Paulo Editora 34 2002 p 202 3 Ibid p 36 4 Antônio Carlos Ribeiro de Andrada discurso na sessão de 26 de junho de 1826 em Marcelo Bueno Mendes Antonio Carlos na formação do pensamento político constitucional brasileiro Curitiba Juruá Editora 2017 p 168 CAPÍTULO 26 DANDO PARA SI MESMO 1 Visconde de Cairu Observações sobre a franqueza de indústrias e o estabelecimento de fábricas no Brasil em Antonio Penalves Rocha org Visconde de Cairu São Paulo Editora 34 2001 p 226 2 Ibid p 221 3 François Quesnay Cereais em François Quesnay São Paulo Nova Cultural 1996 p 302 4 Ibid p 306 5 Karl Marx Teorias de la plusvalia Madri Alberto Corazón 1974 v 1 p 278 6 Ibid p 30 7 Carlos Pelaez Wilson Suzigan História monetária do Brasil Brasília Editora da UNB 1981 p 150 CAPÍTULO 27 PODERES EM CONFRONTO 1 diplomata austríaco 2 Apud Jorge Caldeira Mauá empresário do Império São Paulo Companhia das Letras 1995 p 104 3 Ibid p 106 4 Ibid p 126 CAPÍTULO 28 REGÊNCIAS E LIDERANÇAS 1 Jorge Caldeira org Diogo Antonio Feijó São Paulo Editora 34 1999 p 22 2 Ibid p 104 3 Ibid p 109 4 Ibid p 123 5 Ibid p 68 CAPÍTULO 29 EXECUTIVO ELEITO 1 Apud José Murilo de Carvalho org Bernardo Pereira de Vasconcelos São Paulo Editora 34 1999 CAPÍTULO 31 MAUÁ E A REAÇÃO 1 Apud Jorge Caldeira Mauá empresário do Império São Paulo Companhia das Letras 1995 p 242 2 Ibid p 245 3 Ibid p 266 4 Ibid p 267 5 Ibid p 268 6 Ibid p 269 7 Apud Jorge Caldeira Júlio Mesquita e seu tempo São Paulo Mameluco 2014 v 1 p 64 8 Carlos Manuel Pelaez Wilson Suzigan História monetária do Brasil Brasília Ed da UNB 1981 p 100 CAPÍTULO 32 O ARBÍTRIO ILUSTRADO 1 Anais da Câmara dos Deputados 06071853 2 Instruções do imperador ao ministério organizado pelo marquês de Paraná 691853 Biblioteca Nacional Seção de manuscritos 3 Eduardo Kugelmas O jurista e a Coroa em Idem org Marquês de São Vicente São Paulo Editora 34 2002 p 49 4 Ibid p 87 5 Ibid p 205 6 Ibid p 206 7 João Camillo de Oliveira Torres A democracia coroada teoria política do Império do Brasil Petrópolis Vozes 1964 p 89 8 Paulino José Soares de Sousa visconde do Uruguai Do poder administrativo ou da administração sua divisão em José Murilo de Carvalho org Visconde do Uruguai São Paulo Editora 34 2002 pp 131 32 9 Ibid p 437 10 João Camillo de Oliveira Torres A democracia coroada op cit pp 7172 11 Ibid 12 Ibid 13 Braz Florentino Henriques de Sousa Do poder moderador ensaio de direito constitucional contendo a analise do titulo V capitulo I da Constituição política do Brasil Recife Tipografia Universal 1864 p 469 14 Ibid p 507 15 Ibid p 536 CAPÍTULO 33 REPUBLICANOS 1 Discurso de Nabuco de Araújo na Câmara dos Deputados 1771868 em Joaquim Nabuco Nabuco de Araújo Um estadista do Império sua vida suas opiniões sua época 18661878 Rio de JaneiroParis Livraria Garnier 1927 t 3 p 121 2 Ibid 3 Ibid 4 Ibid 5 Ibid 6 Ibid 7 George C A Boehrer Da monarquia à república história do partido republicano do Brasil 1870 1889 Rio de Janeiro Ministério da Educação e Cultura Serviço de Documentação sd p21 8 Manifesto republicano apud Jorge Caldeira Júlio Mesquita e seu tempo São Paulo Mameluco 2015 v 1 p 115 9 Ibid p 116 CAPÍTULO 34 OCASO 1 Raffaele Romanelli Electoral systems and social structures a comparative perspective em Raffaele Romanelli org How did they become voters The history of franchise in modern European representation Holanda Kluwer Law International 1998 p 4 2 Arnaldo Testi The construction and deconstruction of the US electorate in the age of manhood suffrage 1830s1920s em Raffaele Romanelli org op cit p 389 3 Kenneth F Warren org Encyclopedia of U S campaigns elections and electoral behavior California SAGE 2008 pp 82223 4 Tracy Campbell Deliver the vote a history of election fraud an American political tradition 17422004 Nova York Carrol Graf 2005 p 77 5 Leticia Bicalho Canedo Les listes electorales et le processus de nationalization de la citoyennete au Brésil 18221845 em Raffaele Romanelli org op cit p 196 6 Carlos Dardé Manuel Estrada Social and territorial representation in Spanish electoral systems 18091874 em Raffaele Romanelli org op cit p 153 7 Manuel Loff Electoral procedings in Salazarist Portugal 19261974 formalism and fraud em Raffaele Romanelli org op cit p 230 8 Birgitta BaderZaar From corporate to individual representation the electoral systems of Austria 1861 1918 em Raffaele Romanelli org op cit p 311 9 Lars I Andersson How did they become voters Sweden after 1866 em Raffaele Romanelli org op cit p 349 10 Jaap Talsma Accomodation and conflict traditional politics religion and social relationships in the Dutch electoral process em Raffaele Romanelli org op cit p 375 11 I G C Hutchison The electorate and the electoral system in Scotland c1800c1950 em Raffaele Romanelli org op cit p 420 12 Arnaldo Testi The construction and deconstruction of the US electorate in the age of manhood suffrage 1830s1920s em Raffaele Romanelli org op cit p 389 13 Discurso de Cansansão de Sinimbu na Câmara dos Deputados 20121878 Anais de 1878 v 1 p 105 em Organizações e programas ministeriais regime parlamentar no império 3 ed Brasília Instituto Nacional do Livro 1979 p 177 14 Decreto n 3029 de 911881 em Nelson Jobim Walter Costa Porto orgs Legislação eleitoral no Brasil do século XVI a nossos dias Brasília Senado Federal 1996 v 3 p 214 15 Ibid p 217 16 Ibid 17 Decreto n 7981 de 291 1881 Manda observar as instruções para o primeiro alistamento dos eleitores a que se tem de proceder em virtude da lei n 3029 de 9 de janeiro corrente ano em Nelson Jobim Walter Costa Porto orgs op cit p 237 18 Decreto n 3029 91 1881 Reforma a legislação eleitoral em Nelson Jobim Walter Costa Porto orgs op cit v 3 p 217 19 Ibid p 218 20 Ibid p 219 CAPÍTULO 35 FIM 1 Escritura de constituição da Sociedade Promotora da Imigração reconhecida em São Paulo em 2 de julho de 1886 e no Rio de Janeiro em 22 de dezembro em Helena da Silva Prado In Memoriam Martinho Prado Junior 18431943 São Paulo se 1944 pp 36971 2 Cincinato Braga Problemas brasileiros magnos problemas econômicos de São Paulo Rio de JaneiroSão Paulo Livraria José Olympio Editora 1948 p 254 3 Maria Silvia C Beozzo Bassanezi et al Atlas da imigração internacional em São Paulo 18501950 São Paulo Editora UNESP 2008 p 21 4 Cálculos realizados com base em Wilson Cano Raízes da concentração industrial em São Paulo São Paulo DIFEL 1977 p 36 5 Quadro no 1 E F Leopoldina suprimentos fornecidos à lavoura em Rui Barbosa Obras completas Anexos ao relatório do ministro da Fazenda 1891 Rio de Janeiro Ministério da Educação e Saúde 1949 v 18 t 2 p 143 6 Gustavo H B Franco Reforma monetária e instabilidade durante a transição republicana Rio de Janeiro BNDES 1983 p 22 7 Affonso de E Taunay História do café no Brasil no Brasil imperial 18721889 Rio de Janeiro Departamento Nacional do Café 1939 v 6 t 4 p 256 8 Rui Barbosa Obras completas Relatório do ministro da Fazenda Rio de Janeiro Ministério da Educação e Saúde 1949 v 18 t 3 p 251 9 Quadro no 7 Estado da dívida interna fundada até 30 de setembro de 1890 em Rui Barbosa Obras completas Anexos ao relatório do ministro da Fazenda 1891 Rio de Janeiro ministério da Educação e Saúde 1949 v 18 t 4 p 462 10 Gustavo H B Franco A primeira década republicana em Marcelo de Paiva Abreu org Dionísio Dias Carneiro et al A ordem do progresso cem anos de política econômica republicana 18891989 Rio de Janeiro Campus 1992 p 17 11 Rui Barbosa Obras completas Anexos ao relatório do ministro da Fazenda 1891 Rio de Janeiro Ministério da Educação e Saúde 1949 v 18 t 2 p 157 12 Ilmar Rohloff de Mattos O tempo saquarema a formação do Estado imperial São Paulo Hucitec 1990 p 284 CAPÍTULO 36 BALANÇO DO IMPÉRIO 1 Nathaniel H Leff Subdesenvolvimento e desenvolvimento no Brasil reavaliação dos obstáculos ao desenvolvimento econômico Rio de Janeiro Expressão e Cultura 1991 v 2 p 26 2 Evaldo Cabral de Mello O Norte agrário e o Império 18711889 Rio de Janeiro Brasília Nova Fronteira Instituto Nacional do Livro 1984 pp 9899 3 Ibid p 255 4 Angus Maddison Monitoring the world economy 18201992 Paris OECD Development Centre 1995 p 25 PARTE III 18891930 CAPÍTULO 37 GOVERNO PROVISÓRIO E DITADURA 1 Câmara dos Deputados O apostolado positivista e a República Brasília Editora Universidade de Brasília 1981 p 6 2 Fragmento de texto de Miguel Lemos e R Teixeira Mendes em Câmara dos Deputados O apostolado positivista e a República op cit pp 5051 3 Aristides Lobo Cartas do Rio Diário Popular São Paulo 18111889 em José Murilo de Carvalho Os bestializados o Rio de Janeiro e a República que não foi São Paulo Companhia das Letras 1987 p 9 4 Apud Jorge Caldeira Júlio Mesquita e seu tempo São Paulo Mameluco 2015 v 1 p 228 5 Ibid p 229 6 Ibid p 229 CAPÍTULO 38 REFORMAS FUNDAMENTAIS 1 Rui Barbosa Obras completas Anexos ao relatório do ministro da Fazenda 1891 Rio de Janeiro Ministério da Educação e Saúde 1949 v 18 t 4 p 23 2 Ibid v 18 t 2 pp 5253 3 Ibid 4 Steven Topik The states contribution to the development of Brazils international economy 1850 1930 Hispanic American Historical Review Nova York 1985 v 65 2 pp 203228 5 Ibid p 208 6 Ibid p 209 CAPÍTULO 39 NOVA LEI VELHOS COSTUMES 1 Carta do barão de Lucena ao Dr Américo Brasiliense de Almeida Melo 531891 Revista do Arquivo Municipal São Paulo v 67 maio 1939 p 217 2 Anne G Hanley Renato Leite Marcondes Bancos na transição republicana em São Paulo o financiamento hipotecário 18881901 Estudos Econômicos São Paulo v 40 n 1 janmar 2010 p 112 3 Anne G Hanley Native capital financial institutions and economic development in São Paulo Brazil 18501920 Stanford Stanford University Press 2005 p 97 4 Rui Barbosa Obras completas Anexos ao relatório do ministro da Fazenda 1891 op cit v 18 t 2 p 158 5 William Roderick Summerhill Order against progress government foreign investment and railroads in Brazil 18541913 Stanford Stanford University Press 2003 p 69 6 Eduardo Modiano A ópera dos três cruzados 19851989 em Marcelo de Paiva Abreu org Dionísio Dias Carneiro et al A ordem do progresso cem anos de política econômica republicana 18891989 Rio de Janeiro Campus 1992 p 388 7 Kris James Mitchener Marc D Weidenmier The Baring crisis and the great Latin American meltdown of the 1890s Cambridge MA National Bureau of Economic Research 2007 p 33 8 Gustavo H B Franco Winston Fritsch Aspects of the Brazilian experience with the gold standard em Pablo Matín Aceña Jaime Reis orgs Monetary standards in the periphery paper silver and gold 18541933 Londres Macmillan Press 2000 p 6 9 Discurso de Tristão de Alencar Araripe ministro da Fazenda 2121891 em Dunshee de Abranches O golpe de Estado atas e atos do governo Lucena Rio de Janeiro Jornal do Brasil 1954 p 159 10 Relatório de Rodrigues Alves ministro da Fazenda 1892 em Rui Barbosa Obras completas anexos ao relatório do ministro da Fazenda 1891 op cit v 18 t 2 p lx CAPÍTULO 40 A ESFINGE 1 Marechal Floriano Peixoto Manifesto à nação 23111891 em Edgard Carone A Primeira República texto e contexto 18891930 São Paulo Difusão Europeia do Livro 1973 pp 2324 2 Ibid 3 Francolino Cameu Artur Vieira Peixoto Floriano Peixoto vida e governo Brasília Editora da Universidade de Brasília 1983 p 99 CAPÍTULO 41 PRESIDENTE ELEITO 1 Discurso de posse de Prudente de Morais no Congresso Legislativo 451893 em Antônio Barreto do Amaral Prudente de Morais uma vida marcada São Paulo Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo 1971 p 184 2 Ata da sessão da Convenção do Partido Republicano Federal realizada no dia 23 de setembro de 1893 em José Sebastião Witter A primeira tentativa de organização partidária na República o Partido Republicano Federal 18931897 tese de doutorado Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas Universidade de São Paulo 1971 p 150 3 Discurso de Manoel Vitorino na sessão da Convenção do Partido Republicano Federal realizada no dia 23 de setembro de 1893 em José Sebastião Witter op cit pp 15152 4 Visconde de Taunay O encilhamento cenas contemporâneas da bolsa do Rio de Janeiro em 1890 1891 e 1892 São Paulo Melhoramentos sd p 59 5 Ibid p 136 6 Ibid p 301 CAPÍTULO 42 A ARTE DE ENSACAR DEMÔNIOS 1 Luiz Felipe dÁvila Os virtuosos os estadistas que fundaram a República brasileira São Paulo A Girafa 2006 p 75 2 Carta de Prudente de Morais a Bernardino de Campos 18111891 em Antônio Barreto do Amaral Prudente de Morais uma vida marcada op cit pp 22122 3 Oleone Coelho Fontes O TremeTerra Moreira César a República e Canudos Petrópolis Vozes 1995 p 167 4 Euclides da Cunha Os sertões São Paulo Brasiliense Secretaria do Estado de Cultura 1985 p 325 5 Brígido Tinoco A vida de Nilo Peçanha Rio de Janeiro José Olympio 1962 p 92 6 Antônio Barreto do Amaral Prudente de Morais op cit p 295 7 Euclides da Cunha Canudos Diário de uma expedição Canudos 1o de Outubro O Estado de S Paulo 25101897 8 Silveira Peixoto A tormenta que Prudente de Morais venceu São Paulo Imprensa Oficial do Estado 1990 p 243 9 Edgard Carone A República Velha a evolução política 18891930 São Paulo Difel 1977 v 2 p 182 10 Prudente de Morais O atentado à nação O Estado de S Paulo 7111897 CAPÍTULO 43 PRIMEIRA DÉCADA ALTERNÂNCIA E MERCADO 1 Evolução da população amazônica da região Norte censos de 1872 a 1980 em Samuel Benchimol Amazônia legal na década de 7080 expansão e concentração demográfica Manaus CEDEAMUA 1981 p 7 2 Bernardino de Campos Relatório do ministro dos Negócios da Fazenda de 1898 Rio de Janeiro Imprensa Oficial 1898 p 421 3 Ibid p 201 4 Flávio Saes São Paulo republicana vida econômica em Paula Porta org História da cidade de São Paulo a cidade na primeira metade do século XX 18901954 São Paulo Paz e Terra 2004 v 3 p 224 5 Wilson Suzigan Indústria brasileira origem e desenvolvimento São Paulo Brasiliense 1986 p 241 6 Odilon Nogueira de Matos Café e ferrovias a evolução ferroviária de São Paulo e o desenvolvimento da cultura cafeeira Campinas Pontes 1990 p 142 7 Thomas H Holloway Imigrantes para o café café e sociedade em São Paulo 18861934 Rio de Janeiro Paz e Terra 1984 p 261 8 Receita com porcentagem da receita federal da Secretaria da Fazenda de São Paulo de 18791940 em Joseph L Love A locomotiva São Paulo na federação brasileira 18891937 Rio de Janeiro Paz e Terra 1982 p 415 9 Dados orçamentários da Secretaria da Fazenda de São Paulo de 18791940 em Joseph L Love op cit p 416 10 Sources of Bank funds 18891906 em Anne G Hanley Native Capital op cit p 157 11 Investment of Commercial Banking earning assets 18921906 em Anne G Hanley Native Capital op cit p 166 12 Quadro das fábricas de tecidos instaladas em Minas Gerais entre 1872 e 1900 em Alisson Mascarenhas Vaz Cia Cedro e Cachoeira história de uma empresa familiar 18831987 Belo Horizonte Companhia de Fiação e Tecidos Cedro e Cachoeira 1990 p 25 13 Nilton Baeta A indústria siderúrgica em Minas Gerais Belo Horizonte se 1973 p 261 14 Quadro do valor total do charque exportado e sua participação no valor total das exportações do Rio Grande do Sul em Pedro Cezar Dutra Fonseca RS economia conflitos políticos na República Velha Porto Alegre Mercado Aberto 1983 p 130 15 William R Summerhill Order against progress op cit p 66 16 Ibid p 138 17 Stephen Haber The efficiency consequences of institutional change financial market regulation and industrial productivity growth in Brazil 18661934 em John H Coatsworth Alan M Taylor orgs Latin America and the world economy since 1800 Cambridge MA Harvard University Press David Rockefeller Center for Latin American Studies 1999 p 311 CAPÍTULO 44 PRIMEIRA DÉCADA SERTÃO E CAPITALISMO 1 Antônio Delfim Netto O problema do café no Brasil Rio de Janeiro Fundação Getúlio Vargas Ministério da Agricultura Suplan 1979 p 34 2 Hebe Maria da Costa Mattos Gomes de Castro Ao sul da história lavradores pobres na crise do trabalho escravo São Paulo Brasiliense 1987 p 183 3 Ibid p 179 4 João Heraldo Limia Café e indústria em Minas Gerais no início do século algumas observações Estudos Econômicos São Paulo v 8 n 2 1978 pp 21617 5 Jorge Caldeira História do Brasil com empreendedores São Paulo Mameluco 2009 p 201 6 Barbara Weinstein A borracha na Amazônia expansão e decadência 18501920 São Paulo Hucitec Editora da Universidade de São Paulo 1993 p 41 7 Karl Marx O capital op cit v 3 p 315 8 Barbara Weinstein A borracha na Amazônia op cit p 205 9 Ibid p 207 10 Ibid p 209 11 Robert Levine A velha usina Pernambuco na federação brasileira 18891937 Rio de Janeiro Paz e Terra 1980 pp 5960 CAPÍTULO 45 PRIMEIRA DÉCADA AMÁLGAMAS E INCRUSTAÇÕES 1 Michael Schudson Discovering the news a social history of American newspapers Nova York Basic Books 2010 p 15 2 Ibid 3 Henry B Turner When giants ruled the history of Park Row New Yorks great newspaper street Nova York Fordham University Press 1999 pp 89 4 Michael Schudson op cit p 25 5 Max Leclerc Cartas do Brasil São Paulo 1942 apud Nelson Werneck Sodré História da imprensa no Brasil Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1966 p 288 6 Ibid p 289 7 Bernardino de Campos Relatório do ministro de Estado dos Negócios da Fazenda para o ano de 1897 Rio de Janeiro Imprensa Nacional 1897 p 132 8 Carta de Prudente de Morais ao Jornal do Commercio 19111898 em Antônio Barreto do Amaral Prudente de Morais op cit pp 34243 CAPÍTULO 46 CAMPOS SALES E O PLANO REGRESSIVO 1 Campos Sales Manifesto inaugural à nação 15111898 em Campos Sales Manifestos e mensagens 18981902 São Paulo Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Fundap 2007 pp 3940 2 Célio Debes Campos Sales São Paulo IHGSP 1977 v 2 p 77 3 Joaquim Murtinho Introdução ao relatório do ministro da Indústria Viação e Obras Públicas 1897 em Nícia Villela Luz org Ideias econômicas de Joaquim Murtinho Brasília Rio de Janeiro Senado Federal Fundação Casa de Rui Barbosa 1930 p 148 4 Ibid p 147 5 Ibid p 143 6 Ibid p 148 7 Ibid p 171 8 François Quesnay Cereais em François Quesnay Quadro econômico dos fisiocratas São Paulo Nova Cultural 1996 p 302 9 Karl Marx Teorias de la plusvalia op cit pp 2728 10 Joaquim Murtinho op cit p 144 11 Ibid pp 14445 12 Ibid 13 Campos Sales Manifesto lido no banquete político realizado na capital do Estado de São Paulo em 31 de outubro de 1897 em Campos Sales Manifestos e mensagens op cit p 17 14 Ibid pp 2324 15 Ibid pp 11 e 13 16 Ibid p 24 17 Ibid p 26 18 Campos Sales Da propaganda à presidência São Paulo Lisboa A Editora 1908 p 164 CAPÍTULO 47 O CARANGUEJO E A OSTRA 1 Carta de Campos Sales a Prudente de Morais 1421898 em Silveira Peixoto A tormenta que Prudente de Morais venceu São Paulo Imprensa Oficial do Estado 1990 p 279 2 Prudente de Morais Manifesto à nação 351897 em Câmara dos Deputados Centro de informação e documentação Mensagens presidenciais 18901910 Brasília 1978 p 167 3 Ibid 4 Campos Sales Da propaganda à presidência op cit p 170 5 Gustavo H B Franco A década republicana o Brasil e a economia internacional 18881900 Rio de Janeiro IPEA 1991 p 59 6 Tobias Monteiro O presidente Campos Sales na Europa Belo Horizonte São Paulo Itatiaia Edusp 1983 pp 10203 7 Campos Sales Manifesto inaugural à nação de 15 de novembro de 1898 op cit pp 3940 8 Ibid p 46 9 Campos Sales Mensagem apresentada na terceira sessão da terceira legislatura do Congresso nacional em 3 de maio de 1899 em Campos Sales Manifestos e mensagens op cit pp 6263 10 O terceiro regime 1251899 em Rui Barbosa Obras completas A imprensa 1899 Rio de Janeiro Ministério da Educação e Cultura 1965 p 25 11 Política interior 1351899 em Rui Barbosa Obras completas A imprensa 1899 op cit p 29 12 João Camillo de Oliveira Torres A democracia coroada teoria política do império do Brasil Petrópolis Vozes 1964 p 126 13 Ibid p 119 14 Política interior 1351899 em Rui Barbosa Obras completas A imprensa 1899 op cit pp 3031 15 Administração 1751899 em Rui Barbosa Obras completas A imprensa 1899 op cit pp 5253 CAPÍTULO 48 A PÉROLA HEREDITÁRIA 1 Joaquim Murtinho Introdução ao Relatório do Ministério da Fazenda em 1899 em Nícia Villela Luz org Ideias econômicas de Joaquim Murtinho Brasília Rio de Janeiro Senado Federal Fundação Casa de Rui Barbosa 1930 p 184 2 Ibid p 176 3 Ibid pp 17980 4 Ibid p 208 5 Ibid p 185 6 Ibid 7 Ibid p 232 8 William R Summerhill Order against progress op cit p 68 9 Anne G Hanley Native capital op cit p 174 10 Joaquim Murtinho Introdução ao Relatório do Ministério da Fazenda em 1900 em Nícia Villela Luz org Ideias econômicas de Joaquim Murtinho op cit p 219 11 Campos Sales Da propaganda à presidência op cit p 234 12 Ibid p 250 13 Ibid 14 Ibid p 252 15 João de Scantimburgo O poder moderador história e teoria São Paulo Secretaria do Estado da Cultura Pioneira 1980 p 30 CAPÍTULO 49 GOVERNO CENTRAL REACIONÁRIO 1 Afonso Arinos de Melo Franco Rodrigues Alves apogeu e declínio do presidencialismo Rio de Janeiro São Paulo José Olympio Edusp 1973 v 1 p 183 2 José Ênio Casalecchi O Partido Republicano Paulista política e poder 18891926 São Paulo Brasiliense 1987 pp 18788 3 Joseph L Love A locomotiva São Paulo na federação brasileira 18891937 op cit p 163 4 Campos Sales Da propaganda à presidência op cit pp 24445 5 Ibid p 246 6 Isidro Molas Os partidos políticos Rio de Janeiro Salvat Editora do Brasil 1979 p 23 7 Ibid pp 2627 8 Ibid pp 2930 9 Ibid pp 3233 10 Ibid p 34 11 Robert Michels Political parties a sociological study of the oligarchical tendencies of modern democracy Gloucester Dodo Press 2009 pp xivxv 12 Ibid p iv 13 Manifesto político aos nossos cidadãos O Estado de S Paulo 6111901 14 Ibid 15 Ibid 16 Ibid 17 Eduardo Kugelmas Difícil hegemonia um estudo sobre São Paulo na Primeira República tese de doutorado Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas Universidade de São Paulo 1986 p 77 CAPÍTULO 50 FOSSO 1 Balanço político O Estado de S Paulo 2071901 2 Ibid 3 Ibid 4 Gustave Le Bon The crowd Nova York Ballantine Books 1969 pp 2223 5 Gabriel Cohn Sociologia da comunicação teoria e ideologia São Paulo Pioneira 1973 p 20 6 Júlio Mesquita O Estado de S Paulo 2771901 7 Gabriel Cohn Sociologia da comunicação teoria e ideologia op cit p 49 8 Ibid p 67 9 Paulo Egydio A opinião e a multidão por G Tarde O Estado de S Paulo 211902 10 Júlio Mesquita A revisão O Estado de S Paulo 2971901 11 Campos Sales Da propaganda à presidência op cit pp 34647 12 Ibid pp 34849 13 Ibid p 357 14 Manifesto do Partido Socialista Brasileiro O Estado de S Paulo 28081902 15 Everardo Dias História das lutas sociais no Brasil São Paulo AlfaÔmega 1977 pp 4748 16 Ibid p 50 17 José Veríssimo Uma história dos sertões e da Campanha de Canudos O Estado de S Paulo 5121902 18 Discurso de Arthur Orlando na 95a sessão ordinária da Câmara dos Deputados do Estado de São Paulo em 25 de setembro de 1906 Anais da sessão ordinária de 1906 da Câmara dos Deputados do Estado de São Paulo 3o ano da 6a legislatura p 558 19 José Maria Bello História da República 18891954 São Paulo Companhia Editora Nacional 1958 p 198 20 Discurso de Leopoldo de Bulhões na Câmara dos Deputados na 66a sessão de 02 de agosto de 1893 em Leopoldo de Bulhões Discursos parlamentares Brasília Câmara dos Deputados 1979 p 297 CAPÍTULO 51 O PLANO DO CAFÉ SOCIEDADE E LEGISLATIVO ESTADUAL 1 Ficha do professor doutor Augusto Ferreira Ramos sd Arquivo histórico da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo pasta Prof Dr Augusto Ferreira Ramos 2 Francisco Ferreira Ramos A defesa do café O Estado de S Paulo 2591921 3 Antonio Carlos Botelho Souza Aranha Carlos Botelho nasceu no século XIX viveu no XX e vislumbrou São Paulo do século XXI São Paulo Ed do Autor 2011 p 12 4 Warren Dean A industrialização de São Paulo 18801945 São Paulo Difel sd p 82 5 O Estado de São Paulo Barcelona Monte Domeq 1918 p 555 6 Warren Dean A industrialização de São Paulo op cit p 83 7 O Estado de São Paulo op cit p 562 8 Wilson Suzigan Indústria brasileira origem e desenvolvimento São Paulo Brasiliense 1986 p 237 9 Antonio Francisco Bandeira Junior A indústria no estado de São Paulo em 1901 São Paulo Tip Diário Oficial 1901 p 218 10 Maria Cecília Brotero Pereira de Castro org A família Souza Queiroz de 1874 a 2004 e a Associação Barão de Souza Queiroz de proteção à infância e à juventude São Paulo Instituto Dona Ana Rosa 2004 p 15 11 Renato Monseff Perissinotto Estado e capital cafeeiro burocracia e interesse de classe na condução da política econômica 18891930 tese de doutorado Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Universidade Estadual de Campinas 1997 p 418 12 Ibid p 414 13 Associação Agricola Commercial Paulista Correio Paulistano 2211902 14 Augusto Ramos Valorização do café III O Estado de S Paulo 1051902 15 Exposição de Augusto Ramos 2171906 em Câmara dos Deputados Política Econômica Valorização do Café 18951906 Rio de Janeiro Tip do Jornal do Commercio 1915 p 381 16 Augusto Ferreira Ramos Valorização do café artigos publicados no Jornal do Commercio e Estado de São Paulo em 1902 São Paulo Tip Diario Oficial 1902 p 30 17 Ibid p 18 18 Augusto Ramos Valorização do café IV O Estado de S Paulo 1151902 19 Augusto Ferreira Ramos Valorização do café op cit p 9 20 Augusto Ramos Valorização do café III O Estado de S Paulo 1051902 21 Augusto Ferreira Ramos Valorização do café op cit p 28 22 Discurso de Rubião Junior na 56a sessão ordinária da Câmara dos Deputados do Estado de São Paulo em 30 de outubro de 1902 Anais da sessão ordinária de 1902 da Câmara dos Deputados do Estado de São Paulo 2o ano da 5a legislatura p 819 CAPÍTULO 52 O PLANO DO CAFÉ OS ESTADOS 1 Augusto Ramos Valorização do café a resistência II O Estado de S Paulo 851903 2 Augusto Ramos Valorização do café a resistência III O Estado de S Paulo 951903 3 Ibid 4 Ibid 5 Ibid 6 Augusto Ramos Valorização do café a resistência V O Estado de S Paulo 1351903 7 Francisco de Assis Barbosa org Ideias políticas de João Pinheiro Brasília Rio de Janeiro Senado Federal Fundação Casa de Rui Barbosa 1980 8 Carta de João Pinheiro da Silva a Pandiá Calógeras 2521905 apud Marcos Fábio Martins de Oliveira Ana Carolina Ferreira Caetano A trajetória de um propagandista no início da república o discurso de João Pinheiro da Silva em prol do desenvolvimento Anais do XIV Seminário sobre a Economia Mineira n 68 Cedeplar Universidade Federal de Minas Gerais 2010 Disponível em httpideasrepecorgscdpdiam10html 9 Resumo do pronunciamento de João Pinheiro no Congresso das municipalidades do norte Diamantina apud Marcos Fábio Martins de Oliveira Ana Carolina Ferreira Caetano A trajetória de um propagandista op cit 10 Cláudia Maria Ribeiro Viscardi O teatro das oligarquias uma revisão da política do café com leite Belo Horizonte CArte 2001 p 150 11 Boletim do Centro Industrial do Brasil sl v 1 19041905 p 317 apud Edgard Carone O Centro Industrial do Rio de Janeiro e a sua importante participação na economia nacional 18271977 Rio de Janeiro CIRJ Cátedra 1978 p 73 12 Ibid p 74 13 Ibid 14 John D Wirth O fiel da balança Minas Gerais na federação brasileira Rio de Janeiro Paz e Terra 1985 pp 8384 15 Discurso proferido na sessão de encerramento do Congresso Agrícola Industrial e Comercial Belo Horizonte 20 de maio de 1903 apud Francisco de Assis Barbosa org João Pinheiro documentário sobre a sua vida Belo Horizonte Arquivo Público Mineiro 1966 pp 12122 16 Alexandre Siciliano Valorização do café O Estado de S Paulo 2481903 CAPÍTULO 53 O PLANO DO CAFÉ O MERCADO INTERNACIONAL 1 Rodrigo Soares Júnior Jorge Tibiriçá e sua época São Paulo Companhia Editora Nacional 1958 pp 44751 2 Augusto Ramos A indústria cafeeira na América hespanhola São Paulo Secretaria da Agricultura Commercio e Obras Públicas do Estado de São Paulo 1907 p 4 3 Ibid pp 6063 4 Ibid pp 6365 5 Ibid p 66 6 Augusto Ramos Valorização do café estudo sobre o projeto de A Siciliano São Paulo Typ Diário Oficial 1905 p 0405 7 Ibid p 7 8 Ibid pp 1112 9 Ibid p 16 10 Ibid pp 1920 11 Ibid p 35 CAPÍTULO 54 O PLANO DO CAFÉ OPORTUNIDADE QUASE MILAGROSA 1 Gustavo Barroso Pinheiro Machado na intimidade Evocações Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro Rio de Janeiro v 211 abrjun 1951 p 92 Joseph L Love O regionalismo gaúcho e as origens da revolução de 1930 São Paulo Perspectiva 1975 p 147 2 Rodrigues Alves Eleição presidencial candidaturas apud Afonso Arinos de Melo Franco Rodrigues Alves apogeu e declínio do presidencialismo Rio de Janeiro São Paulo José Olympio Editora da Universidade de São Paulo 1973 v 2 p 527 3 Ibid p 528 4 Carta de Campos Sales a Arnolfo de Azevedo 4101904 em Célio Debes Campos Sales perfil de um estadista São Paulo Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo 1977 t 2 pp 19394 5 Carta de Campos Sales a Pinheiro Machado 531905 em Célio Debes Campos Sales op cit pp 195 97 6 Entrevista concedida por Pinheiro Machado Presidência da República O Estado de S Paulo 651905 7 Entrevista concedida por Bernardino de Campos O programa do Dr Bernardino de Campos O Paiz Rio de Janeiro 2661905 8 Entrevista de Bernardino de Campos op cit Cláudia Maria Ribeiro Viscardi O teatro das oligarquias op cit p 109 9 Américo Jacobina Lacombe Afonso Pena e sua época Rio de Janeiro José Olympio 1986 p 262 10 Ibid p 276 11 Carta de Afonso Pena a Francisco Salles 2771905 em Américo Jacobina Lacombe Afonso Pena op cit p 290 12 Carta de Bias Fortes a Afonso Pena Barbacena 231905 em Américo Jacobina Lacombe Afonso Pena op cit pp 26364 13 Carta de Rodrigues Alves a Afonso Pena Petrópolis 1531905 em Américo Jacobina Lacombe Afonso Pena op cit pp 25557 14 Carta de Rodrigues Alves a Bernardino de Campos Rio de Janeiro 1381904 em Motta Filho Uma grande vida biografia de Bernardino de Campos São Paulo Companhia Editora Nacional 1941 pp 280 81 15 Ibid p 204 16 A renúncia O Estado de S Paulo 1881905 CAPÍTULO 55 O CONVÊNIO DE TAUBATÉ 1 Discurso de Siqueira Campos no Congresso Legislativo do Estado de São Paulo em 16 de agosto de 1905 Anais do Senado do Estado de São Paulo 21a sessão ordinária p 123 2 Peter Louis Blasenheim A regional history of the Zona da Mata in Minas Gerais Brazil 18701906 tese de doutorado Departamento de História Universidade de Stanford 1982 p 244 3 Marcos Fábio Martins de Oliveira O pensamento econômico de Francisco Salles João Pinheiro e João Luís Alves e o desenvolvimento de Minas Gerais 18891914 tese de doutorado Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas Universidade de São Paulo p 77 4 Valorização do café O Estado de S Paulo 2391905 5 Congresso Legislativo do Estado de São Paulo 2591905 Anais do Senado do Estado de São Paulo 47a sessão ordinária p 259 6 Renato Monseff Perissinotto Estado e capital cafeeiro op cit p 418 7 Alberto Sousa Memória Histórica sobre o Correio Paulistano 18541904 São Paulo Arauco 2010 p 84 8 Discurso de Luiz Piza no Congresso Legislativo do Estado de São Paulo em 26 de setembro de 1905 Anais do Senado do Estado de São Paulo 48a sessão ordinária p 273 9 Ibid 10 Ibid 11 Discurso de Luiz Piza no Congresso Legislativo do Estado de São Paulo em 29 de setembro de 1905 Anais do Senado do Estado de São Paulo 51a sessão ordinária pp 30102 12 Discurso de Luiz Piza no Congresso Legislativo do Estado de São Paulo em 3 de outubro de 1905 Anais do Senado do Estado de São Paulo 54a sessão ordinária p 312 13 Discurso de Luiz Piza no Congresso Legislativo do Estado de São Paulo em 17 de agosto de 1905 Anais do Senado do Estado de São Paulo 22a sessão ordinária p 135 14 Thomas H Holloway Vida e morte do Convênio de Taubaté a primeira valorização do café Rio de Janeiro Paz e Terra 1978 p 28 15 Joaquim Murtinho Discurso sobre as candidaturas de Afonso Pena e Nilo Peçanha à presidência e vicepresidência da República em Nícia Villela Luz org Ideias econômicas de Joaquim Murtinho op cit p 301 16 Programa Presidencial Correio Paulistano 14101905 Transcrição de discurso de Afonso Pena 17 Cartas do Rio O Estado de S Paulo 27101905 18 Afonso Arinos de Melo Franco Rodrigues Alves op cit v 2 p 456 56 A GUERRA O FRONT PARLAMENTAR 1 Carta de Leopoldo de Bulhões a Afonso Pena 2721906 em Américo Jacobina Lacombe Afonso Pena opcit pp 30406 2 Ibid pp 30710 3 Brasil Política econômica Valorização do café 18951906 Rio de Janeiro Tip do Jornal do Commercio i195 v1 pp 205206 Coleção Documentos Parlamentares 4 Ibid p 207 5 Ibid 6 Discurso de Paulino de Souza na 79a sessão ordinária da Câmara dos Deputados em 3 de setembro de 1906 Anais da Câmara dos Deputados Rio de Janeiro Imprensa Nacional 1907 p 124 7 Ibid 8 Ibid p 126 9 Ibid p 128 10 Ibid 11 Ibid 12 Ibid 13 Ibid 14 Ibid 15 Ibid p 210 16 Ibid 17 Ibid 18 Ibid 19 Ibid p 131 20 Ibid p 134 21 Discurso de José de Barros Franco Júnior na 102a sessão ordinária da Câmara dos Deputados em 5 de outubro de 1906 Anais da Câmara dos Deputados Rio de Janeiro Imprensa Nacional 1907 p 142 22 Ibid p 143 23 Ibid 24 Ibid 25 Ibid p 145 26 Ibid p 146 27 Ibid 28 Ibid 29 Ibid p 147 30 Ibid p 148 31 Ibid p 149 CAPÍTULO 57 A GUERRA O QUEBRADOR DE OSSOS 1 Notas e informações O Estado de S Paulo 1021906 2 Ficha do prof Dr Francisco Ferreira Ramos sd Arquivo Histórico da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo pasta Prof Dr Francisco Ferreira Ramos 3 Notas e informações O Estado de S Paulo 1821906 4 Santos 21 O Estado de S Paulo 2221906 5 Notas e informações O Estado de S Paulo 441906 6 Notas e informações O Estado de S Paulo 441906 Francisco Ferreira Ramos La question de la valorization du café au Brésil Conférence faite au cercle détudes coloniales dAnvers le 29 janvier 1907 Antuérpia J E Buschmann 1907 p 7 7 Institut Royal Colonial Belge Biographie coloniale belge Bruxelas Librairie Falk 1948 t I pp 180 03 Disponível em httpwwwkaowarsombe Acesso em 2232015 8 William Harrison Ukers All about coffee Nova York The Tea and Coffee Trade Journal Company 1922 p 519 Trad do autor 9 Crossmans estate valued at 5310953 Coffee importer bequeathed 1000000 to Herman Sielcken his partner The New York Times 3181913 Trad do autor 10 Sugar Men Retaliate the Havemeyers Buy a Coffee Refinery and Get a Manager The New York Times 22121896 Trad do autor 11 Thomas H Holloway Vida e morte do Convênio de Taubaté A primeira valorização do café Rio de Janeiro Paz e Terra 1978 p 70 12 How Brazil cornered the worlds coffee market though flying in the face of the law of supply and demand the valorization plan worked so well that now steps are being taken to find the coffee trust The New York Times 2651912 Trad do autor 13 O café O Estado de S Paulo 2771906 14 Thomas H Holloway Vida e morte do Convênio de Taubaté op cit p 70 CAPÍTULO 58 A GUERRA A BATALHA DOS CHEQUES 1 Antônio Delfim Netto O problema do café no Brasil Rio de Janeiro Fundação Getúlio Vargas Ministério da Agricultura Suplan 1979 pp 501 2 Francisco Ferreira Ramos A defesa do café O Estado de S Paulo 2591921 3 Ibid 4 Ibid 5 How Brazil cornered the worlds coffee market though flying in the face of the law of supply and demand the valorization plan worked so well that now steps are being taken to find the coffee trust The New York Times 2651912 Trad do autor 6 Francisco Ferreira Ramos A defesa do café O Estado de S Paulo 2591921 7 Pierre Denis Brazil Londres Fisher Unwin 1911 p 255 8 Carta de Jorge Tibiriçá a Pinheiro Machado 571906 em Rodrigo Soares Júnior Jorge Tibiriçá e sua época 18551928 op cit pp 5401 9 Charles A Gauld Farquhar o último titã Um empreendedor americano na América Latina São Paulo Editora de Cultura 2006 p 232 10 Ibid 11 Discurso de Barata Ribeiro na 63a sessão ordinária do Senado Federal em 3 de agosto de 1907 Anais do Senado Federal Rio de Janeiro Imprensa Nacional 1908 p 144 12 Ibid p 145 13 Ibid p 146 14 Ibid p 156 15 Notas e Informações O Estado de S Paulo 140507 16 MJ Albuquerque Lins mensagem enviada ao Congresso Legislativo a 14 de julho de 1908 O Estado de S Paulo 15 jul 1908 pp 12 17 Mensagem de Afonso Augusto Moreira Pena ao Congresso Nacional 10111908 em Rio de Janeiro Tip do Jornal do Commercio 1916 v 2 p 9 18 Discurso de Pandiá Calógeras na 145ª sessão ordinária da Câmara dos Deputados em 18 de novembro de 1908 Anais da Câmara dos Deputados Rio de Janeiro Imprensa Nacional 1909 pp 6034 v XI 19 Ibid p 596 20 Thomas H Holloway Vida e morte do Convênio de Taubaté op cit p 79 21 Ibid p 81 CAPÍTULO 59 A GUERRA BRASILEIROS CONTRA BRASILEIROS 1 Augusto Ramos Valorização do café III O Estado de S Paulo 1051902 2 Antônio Delfim Netto O problema do café no Brasil op cit pp 556 3 Carta de Rui Barbosa a Afonso Pena 16121908 em Américo Jacobina Lacombe Afonso Pena op cit p 407 4 Ibid p 408 5 Ibid p 444 6 Rui Barbosa A situação política O Estado de S Paulo 2151909 7 Ibid 8 Rui Barbosa A conferência da Bahia O Estado de S Paulo 1611910 9 Discurso de Hermes da Fonseca no Teatro Municipal do Rio de Janeiro em 26 de dezembro de 1909 em A presidência da República O Estado de S Paulo 27121909 pp 34 10 Leopoldo de Bulhões Jardim Relatório de Bulhões Jardim para o ano de 1910 Rio de Janeiro Ministério da Fazenda Imprensa Nacional 1910 p xxii 11 Discurso de Josino de Araújo na Câmara dos Deputados em 15 de dezembro de 1910 op cit p 331 12 Discurso de Cincinato Braga na Câmara dos Deputados 10111910 em A taxa cambial O Estado de S Paulo 12111910 13 Winston Fritsch External constraints on economic policy in Brazil 18891930 Pittsburgh University of Pittsburgh Press 1988 p 24 CAPÍTULO 60 CAPITALISMO NO TOPO DA VELOCIDADE DO MUNDO 1 Carlos Manuel Peláez Wilson Suzigan História monetária do Brasil análise da política comportamento e instituições monetárias op cit p 152 2 Piketty Thomas O capital no século XXI op cit pp 7879 3 Estatísticas históricas do Brasil séries econômicas demográficas e sociais de 1550 a 1988 Rio de Janeiro IBGE 1990 pp 56974 4 Ibid pp 385 e 56970 5 Augusto Ramos José de Barros Franco et al Pela estabilidade do câmbio à nação e aos seus representantes no Congresso Nacional Manifesto do Comitê de Defesa da Produção Nacional O Estado de S Paulo 2271910 6 Ibid 7 Ibid 8 Ibid 9 Ibid 10 Ibid 11 Ibid 12 Ibid 13 Ibid 14 Ibid 15 Ibid 16 Wilson Cano Raízes da concentração industrial em São Paulo op cit pp 23536 CAPÍTULO 61 19101918 TEMPOS EXCRUCIANTES I 1 A revolta da armada a bordo dos dois dreadnoughts O Estado de S Paulo 26111910 2 O Minas Gerais virou sucata em 1953 e seu grande comandante temporário viveu como marinheiro civil cidadão pobre e digno até 1969 3 Paulo R Pestana O progresso paulista O Estado de S Paulo 1421909 4 Anne G Hanley Native capital op cit p 179 5 Discurso de Francisco de Paula Rodrigues Alves no banquete do Partido Republicano Paulista São Paulo 1611912 em Eugênio Egas Galeria dos presidentes de São Paulo São Paulo Publicação Oficial do Estado de São Paulo 1927 v 2 pp 41112 6 Ibid pp 41213 7 Altino Arantes Meu diário registro íntimo de factos e de impressões v 4 Arquivo Histórico da Academia Paulista de Letras CAPÍTULO 62 19171930 TEMPOS EXCRUCIANTES II 1 Júlio Mesquita A guerra 19141918 São Paulo Estado de S Paulo Terceiro Nome 2002 v 4 p 745 2 Ibid 3 Rui Barbosa Obras completas Campanha presidencial Rio de Janeiro Ministério da Educação e Cultura 1956 v 46 t 1 p 6 4 Ibid p 51 5 Ibid p 81 6 Ibid 7 Ibid p 110 8 Ibid p 117 9 Ibid p 82 10 Epitácio Pessoa Pela verdade Rio de Janeiro Francisco Alves 1925 p 157 11 José Pires do Rio Relatório de 1919 Rio de Janeiro Ministério da Viação e Obras Públicas Imprensa Oficial 1920 p 86 12 Ibid pp 293 353 13 Conferência de Menotti del Picchia 1521922 em Gilberto Mendonça Teles Vanguarda europeia e modernismo brasileiro apresentação de 1922 Petrópolis Vozes 1997 pp 28788 CAPÍTULO 63 18891930 UM BALANÇO 1 Estatísticas históricas do Brasil Rio de Janeiro Fundação IBGE 1990 p 34 2 Ibid p 74 3 Ibid p 382 4 Ibid p 493 5 Ibid 6 Ibid p 474 7 Ibid p 457 8 Ibid p 463 9 Ibid p 385 10 Ibid p 350 11 Alberto Carlos Almeida O Brasil no final do século XX Um caso de sucesso Dados Rio de Janeiro v 41 n 4 1998 Disponível em httpdxdoiorg101590S001152581998000400004 acesso em 20032017 12 José Bento Monteiro Lobato Urupês O Estado de S Paulo 23121914 PARTE IV 19302017 CAPÍTULO 64 CENTRALIZAÇÃO COM SENTIDO 1 Lira Neto Getúlio São Paulo Companhia das Letras 2012 v 1 p 100 2 Ibid 3 Mario Henrique Simonsen Oswaldo Aranha e o Ministério da Fazenda em Oswaldo Aranha a Estrela da Revolução São Paulo Mandarim 1996 p 384 4 Marcelino Martins 150 anos de café São Paulo Salamandra 1992 p 369 5 Ibid p 383 6 Mario Henrique Simonsen Oswaldo Aranha e o Ministério da Fazenda op cit pp 398405 7 Estatísticas nacionais op cit p 385 CAPÍTULO 65 A SONHADA DITADURA 1 Apud Leon Trotsky Revolução e contra revolução na Alemanha São Paulo Ciências Humanas 1979 p153 2 Ibid pp 2529 3 Oliveira Viana Evolução do povo brasileiro Rio de Janeiro José Olympio 1956 pp 21950 4 Decreto 19770 de 1931931 5 Diário Carioca 24232 apud Lira Neto Getúlio Vargas op cit v 2 p29 6 Ibid p 35 7 Oliveira Viana Problemas de política objetiva Rio de Janeiro Record 1974 pp 12141 8 Ibid p 81 9 Ibid p 36 10 Lira Neto Getúlio op cit v 2 p 226 11 Ibid p 258 12 Diário Carioca 3345 CAPÍTULO 66 DEMOCRACIA POPULISTA 1 Antonio Candido Os parceiros do Rio Bonito Estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida São Paulo Duas Cidades Editora 34 2001 p 105 2 Ibid p 273 3 Sergio Besserman Viana Política econômica externa e industrialização 19461951 em Marcelo Paiva Abreu org A ordem do progresso Rio de Janeiro Campus 1992 pp10607 CAPÍTULO 67 DITADURA MILITAR E SEUS PARADOXOS 1 Claudio Bojunga JK Rio de Janeiro Objetiva 2001 p 817 2 Getúlio Vargas Diário São Paulo Rio de Janeiro Siciliano FGV 1995 p 203 3 Andrew G Terborgh The postwar rise of world trade does the Bretton Woods system deserve credit working paper 7803 Department of Economic History London School of Economics 2003 Trad do autor 4 Ministério do Planejamento e Coordenação Econômica Programa de Ação Econômica do Governo 19641966 Documentos Epea Rio de Janeiro novembro de 1964 p 28 5 Thomas Skidmore Brasil de Castelo a Tancredo Rio de Janeiro Paz e Terra 1988 p 75 6 André Lara Resende Estabilização e reforma em Marcelo Abreu org A ordem do progresso op cit p 215 CAPÍTULO 68 O MURO E A GRANDE MURALHA 1 Carlos Langoni The development crisis São Francisco International Center for Economic Growth 1987 p 19 2 Dionísio Dias Carneiro Crise e esperança 19741980 em Marcelo Abreu org A ordem do progresso op cit p 311 CAPÍTULO 70 PASTURO 1 Luiz Aranha Corrêa do Lago A retomada do crescimento e as distorções do milagre em Marcelo Abreu org A ordem do progresso op cit p 290 2 Ibid p 203 3 Antonio Manuel Hespanha Ângela Barreto Xavier op cit pp 12930 CAPÍTULO 71 DESENCALHE REENCALHE 1 Thomas Piketty O capital no século XXI op cit p 171 2 Ibid p 318 3 Ibid 4 Ibid p 337 SOBRE O AUTOR JORGE CALDEIRA nasceu em São Paulo em 1955 É doutor em Ciência Política mestre em Sociologia e bacharel em Ciências Sociais FFLCHUSP Sóciofundador da Mameluco Edições e Produções Culturais é escritor e possui ampla experiência profissional na área jornalística e editorial Foi publisher da revista Bravo consultor do projeto Brasil 500 Anos da Rede Globo de Televisão editorexecutivo da revista Exame editor do caderno Ilustrada e da Revista da Folha do jornal Folha de SPaulo editor de economia da revista IstoÉ e editor da revista Novos Estudos Cebrap É autor de 101 brasileiros que fizeram história Estação Brasil Noel Rosa de costas para o mar Brasiliense Mauá empresário do Império e Viagem pela história do Brasil Companhia das Letras A nação mercantilista e Ronaldo glória e drama no futebol globalizado Editora 34 O banqueiro do sertão A construção do samba História do Brasil com empreendedores e Júlio Mesquita e seu tempo Mameluco além de organizador dos volumes Diogo Antônio Feijó e José Bonifácio de Andrada e Silva que integram a coleção Formadores do Brasil LanceEditora 34 e do livro Brasil a história contada por quem viu Mameluco Ocupa a cadeira no 18 da Academia Paulista de Letras Este livro foi editado na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro no inverno de 2017 Foram usados tipos TheAntiqua e TheSans criados por Lucas de Groot Estação Brasil é o ponto de encontro dos leitores que desejam redescobrir o Brasil Queremos revisitar e revisar a história discutir ideias revelar as nossas belezas e denunciar as nossas misérias Os livros da Estação Brasil misturamse com o corpo e a alma de nosso país e apontam para o futuro E o nosso futuro será tanto melhor quanto mais e melhor conhecermos o nosso passado e a nós mesmos Sumário Créditos Apresentação por Mary del Priore Prefácio I 15001808 Alianças colônia e o mundo do Antigo Regime 1 Costumes e problemas de escrita 2 Governos com genros europeus 3 Governo português teoria escrita e Igreja 4 Vilas 5 Capitanias 6 Governogeral 7 Governo francês corpo e espírito 8 Aliança geral 9 Governos da Espanha 10 Governos da Holanda 11 Economia colonial economia metropolitana e o lugar do Brasil 12 Governo central e economia 13 Governos locais e costumes 14 Política miserável e caranguejo 15 Brasileiros 16 Governogeral no sertão 17 Os favores da cabeça 18 Ouro e redistribuição dos governos no território 19 Riqueza e empreendedores 20 Governos locais e costumes na mineração do ouro 21 Costumes e lei civil após o ouro II 18081889 Coroas e estagnação durante o desenvolvimento do Ocidente 22 Teoria dos governos uma revolução 23 Reino colonial sonho de reação 24 Governo nacional 25 A Constituição de 1824 26 Dando para si mesmo 27 Poderes em confronto 28 Regências e lideranças 29 Executivo eleito 30 Imperador 31 Mauá e a reação 32 O arbítrio ilustrado 33 Republicanos 34 Ocaso 35 Fim 36 Balanço do Império III 18891930 Primeira República explosão de crescimento 37 Governo provisório e ditadura 38 Reformas fundamentais 39 Nova lei velhos costumes 40 A esfinge 41 Presidente eleito 42 A arte de ensacar demônios 43 Primeira década alternância e mercado 44 Primeira década sertão e capitalismo 45 Primeira década amálgamas e incrustações 46 Campos Sales e o plano regressivo 47 O caranguejo e a ostra 48 A pérola hereditária 49 Governo central reacionário 50 Fosso 51 O plano do café sociedade e legislativo estadual 52 O plano do café os estados 53 O plano do café o mercado internacional 54 O plano do café oportunidade quase milagrosa 55 O Convênio de Taubaté 56 A guerra o front parlamentar 57 A guerra o quebrador de ossos 58 A guerra a batalha dos cheques 59 A guerra brasileiros contra brasileiros 60 Capitalismo no topo da velocidade do mundo 61 19101918 tempos excruciantes I 62 19171930 tempos excruciantes II 63 18891930 um balanço IV 19302017 A era do muro uma centralização dois resultados 64 Centralização com sentido 65 A sonhada ditadura 66 Democracia populista 67 Ditadura militar e seus paradoxos 68 O muro e a Grande Muralha 69 Cuidando da franguinha 70 Pasturo 71 Desencalhe reencalhe Posfácio Notas bibliográficas Sobre o autor Sobre a Estação Brasil