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44 Revista Psicologia Teoria e Prática 191 4454 São Paulo SP janabr 2017 ISSN 15163687 impresso ISSN 19806906 online httpdxdoiorg10593519806906psicologiav19n1p4454 Sistema de avaliação às cegas por pares double blind review Universidade Presbiteriana Mackenzie A escuta de pais nas entrevistas preliminares com crianças algumas questões iniciais Andrea Gabriela Ferrari1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul RS Brasil Rose Gurski Universidade Federal do Rio Grande do Sul RS Brasil Milena da Rosa Silva Universidade Federal do Rio Grande do Sul RS Brasil Resumo Este escrito discute os efeitos da escuta de pais nas Entrevistas Preliminares da criança para o início do tratamento Foram analisadas as entrevistas realizadas com uma mãe que pede atendimento psicológico para seu filho por queixa de hiperativida de Partese do pressuposto de que algumas vezes o sintoma apresentado pela criança revela aspectos mal elaborados do processo de recalcamento da história infantil dos pais Pensamos que o trabalho com quem demanda atendimento para a criança permi te recompor o que de seu infantil ficou fraturado e a partir de uma operação de ela boração permitida pela rememoração este possibilita que os pais autorizem a criança a demandar tratamento em nome próprio Consideramos as Entrevistas Preliminares realizadas com os pais um dispositivo potente que permite o reposicionamento das funções parentais frente à demanda de atendimento para o filho Palavraschave entrevistas preliminares psicanálise com crianças início do tratamen to sintoma na criança escuta a pais LISTENING TO PARENTS IN PRELIMINARY INTERVIEWS WITH CHILDREN SOME INITIAL QUESTIONS Abstract This writing discusses the effects of parents listening to the Preliminary In terviews of a child at the start of treatment Interviews with a mother who asked psychological care for her child because of complaints about hyperactivity were analyzed We start from the hypothesis that sometimes symptoms presented by the child reveal badly elaborated aspects of the repression process of the parents child hood We think that working with those who ask for care for the child lets us recover what was fractured in the childs childhood and from a development operation permit ted by the childs memories enables parents to allow the child to require treatment on their own We consider the Preliminary Interviews with parents a powerful device that allows repositioning of parental roles in order to fulfill the demand of care for the child Keywords preliminary interviews psychoanalysis with children start of treatment symptom in children listening to parents LA ESCUCHA DE PADRES EN ENTREVISTAS PRELIMINARES CON NIÑOS ALGUNAS CUESTIONES INICIALES Resumen Este trabajo pretende discutir los efectos de la escucha de padres en Entre vistas Preliminares del niño para el inicio de su tratamiento Para esto se analizaron las 1 Endereço para correspondência Andrea Gabriela Ferrari Rua Ramiro Barcelos 2600 sala 130 CEP 90035 003 Porto Alegre RS Email andreaferrariufrgsbr Escuta de pais nas entrevistas preliminares 45 Revista Psicologia Teoria e Prática 191 4454 São Paulo SP janabr 2017 ISSN 15163687 impresso ISSN 19806906 online httpdxdoiorg10593519806906psicologiav19n1p4454 entrevistas que fueron realizadas con una madre que pidió atención psicológica para su hijo por una queja de hiperactividad Partimos de la presuposición que muchas veces el síntoma presentado por el niño manifiesta aspectos mal elaborados del proceso de re presión de la historia infantil de los padres Pensamos que el trabajo con quien demanda atención psicológica para el niño permite recomponer por una elaboración permitida por la rememoración lo que quedó fracturado de su propio infantil Esto permitiría que los padres autoricen que el niño demande tratamiento por su propio nombre Conside ramos las Entrevistas Preliminares con los padres un dispositivo potente pues permite un cambio de la posición ocupada por ellos en relación a la demanda del niño Palabras clave entrevistas preliminares psicoanálisis con niños inicio do tratamiento síntoma en el niño escucha a padres Introdução Entrevistas preliminares Freud 1990a propunha que se fizesse um tratamento de ensaio antes de empreen der o tratamento psicanalítico propriamente dito Esse tinha como função estabelecer a transferência e construir uma possibilidade diagnóstica que permitisse a condução do tratamento Mais recentemente Quinet 1991 ao debruçarse minuciosamente sobre o tema das Entrevistas Preliminares propõem que as mesmas possuem três fun ções principais delas a função sintomal a função diagnóstica e a função transferen cial A função sintomal estaria referida à particularização da demanda representada pelo sintoma apresentado ao analista e a função diagnóstica estaria relacionada à direção da cura Já a função transferencial é tratada como a que constitui o sujeito suposto saber Sublinhamos que neste escrito queremos abordar a função sintomal das entrevistas preliminares ou seja a função que se refere ao trabalho de implicação do sujeito com seu sintoma O sintoma até então enigmático e expropriado do eu passa a ser questionado e endereçado àquele para quem se supõe um saber e que fa rá ilusoriamente com que se extinga Nesse sentido as entrevistas preliminares per mitem uma torção no estatuto do sintoma como resposta a uma formação de compro misso Freud 1990b Dito de outro modo seria uma forma de recolocar um enigma ao sujeito É na tentativa de elaboração desse enigma que a transferência vai se insta lar como motor de análise bem como fonte de resistência No caso do trabalho com a criança temos algumas especificidades que devemos considerar em relação às entrevistas preliminares As produções de Mannoni 1999 e Dolto 2010 colocam na cena psicanalítica da época os efeitos da fantasmática paren tal no aparecimento da sintomatologia do filho Desde então tem sido considerado o encontro do psicanalista com a criança algo singular pois na presença de uma escuta desvinculada de um ideal social da criança revelase algo muitas vezes o filho é de positário de conflitos infantis dos pais e que se revelam sob a forma de sintoma na criança Araújo 2001 Flesler 2012 Mannoni 2004 Oliveira 1996 Sei Souza Arru da 2008 Wiles Ferrari 2015 Zornig 2000 Portanto o percurso de entrada em análise permitiria que a criança fosse liberada do peso das histórias de seus progenito res tornandose possível responder desde uma posição singular às possibilidades de seu viraser Importa sublinhar que tais ponderações não significam que a criança seja Andrea Gabriela Ferrari Rose Gurski Milena da Rosa Silva 46 Revista Psicologia Teoria e Prática 191 4454 São Paulo SP janabr 2017 ISSN 15163687 impresso ISSN 19806906 online httpdxdoiorg10593519806906psicologiav19n1p4454 uma vítima passiva da história parental É preciso considerar o que há do desejo da criança que a faz capturar dentre tudo o que lhe é disponibilizado alguns aspectos que ela pretende dar conta Bernardino 2004 De todo modo geralmente quem se queixa do sintoma não é a criança e sim seus outros pais educadores cuidadores Lévy 2008 sugere por exemplo que a queixa pela sintomatologia da criança atualiza nos pais eou responsáveis que se queixam a fenda aberta quando da vivência da cas tração em seu próprio processo constitutivo A atualização ocorreria nesse segundo tempo a partir do momento que o filho com o seu sintoma confronta os pais para a impossibilidade de satisfação narcísica plena ilusoriamente construída quando do pro jeto do filho Ferrari 2012 Nesse aspecto a função sintomal Quinet 1991 ocupa um lugar privilegiado na economia parental e consequentemente na demanda de análise para o filho Hamad 2001 refere três tempos do pedido dos pais dirigido ao analista para atendimento da criança O primeiro diz respeito a um desconhecimento algo que em função do surgimento do sintoma no filho se torna inacessível Em um segundo tempo o autor relata que não raro emerge um conflito entre o casal prin cipalmente sobre a maneira de educar o filho Sucede a esse o reconhecimento de um dos pais no sintoma do filho desvelando nesse movimento a criança que não cresceu Considerando esses aspectos é fundamental atentar para as tessituras discursivas que circundam a queixa dos pais pelo sintoma da criança e seu processo de implicação no trabalho terapêutico Apostamos que a escuta pacienciosa daquele que pede aten dimento pela criança pode deslocar a queixa para uma pergunta a partir da qual o filho pode passar a ser situado como sujeito de desejo Para pensar a necessidade de um trabalho prévio ao tratamento discorreremos sobre entrevistas preliminares realizadas com uma mãe que pede medicação para controlar o comportamento do filho na escola Método Participantes Com o intuito de refletir sobre a importância da escuta dos pais para o início do tratamento de uma criança relataremos as entrevistas preliminares realizadas com uma mãe que buscou atendimento na Clínica da Universidade para seu filho de 6 anos por demanda da escola Cabe ressaltar que recortaremos o caso em aquilo que se refira aos efeitos da rememoração de situações infantis da mãe no surgimento da função sintomal da queixa apresentada Considerando que o caso foi construído em uma relação transferencial os aspectos característicos da pessoa como a repetição e o detalhamento de algumas histórias contadas transparecem no relato Todos os dados que pudessem identificar o paciente e sua família foram modificados Procedimentos Depois de ter entrevistado a mãe e a criança conjuntamente optouse por escutar somente a mãe a fim de trabalhar a queixa trazida circunscrita a uma reclamação da Escuta de pais nas entrevistas preliminares 47 Revista Psicologia Teoria e Prática 191 4454 São Paulo SP janabr 2017 ISSN 15163687 impresso ISSN 19806906 online httpdxdoiorg10593519806906psicologiav19n1p4454 professora e a possível transformação em demanda de atendimento Apesar de tam bém termos conversado com o pai trazemos somente as entrevistas realizadas com a mãe de modo a pensar como às vezes o trabalho de reminiscências parentais se faz necessário para que a função sintomal Quinet 1991 surja nos pais e permita a partir disso o acesso da criança a seu tratamento Cabe ressaltar ainda que as entrevistas relatadas foram conduzidas com a primeira autora deste trabalho e coordenadora do projeto de pesquisa Sintoma da criança colocação em cena do infantil parental2 As entrevistas realizadas foram discutidas no âmbito do grupo de pesquisa com a segunda e a terceira autoras As transcrições literais das falas da mãe se encontram em aspas Para fins deste trabalho optamos por relatar as entrevistas com a mãe seguindo o fluxo associativo de seu discurso Pensa mos que esse formato de escrita permite por um lado discutir a especificidade do caso e por outro transmitir a importância da escuta daqueles que se queixam de uma criança As identidades da mãe e da criança bem como de alguma situação que pudes sem identificálas foram modificadas Resultados Fragmentos das entrevistas com a mãe Raquel procura atendimento para o filho Eduardo Wellington de 6 anos por quei xa de hiperatividade Conta que a professora reclama que ele não faz os trabalhos em sala de aula demandando atenção exclusiva É a primeira vez que tem queixas do filho Ela chama o filho de Wellington Essa era sua escolha mas o pai queria que se cha masse como ele Eduardo José Ficou Eduardo Wellington para não descontentar nem um nem outro Raquel faz confusões com a temporalidade dos eventos não deixando claro por exemplo quanto tempo de relacionamento tinha com o pai de Eduardo Wellington quando ela engravidou há quanto tempo trabalhava no mesmo lugar com que idade o filho passou a acompanhála ao trabalho a frequentar a cre che ou ainda que idade o filho tinha quando ela se separou ou quando sofreu uma internação de quase dois meses Antes de iniciar o ensino fundamental Wellington frequentou três creches e atualmente o menino passa um turno na escola e o outro com ela em seu trabalho em uma casa de família Conta morar com o filho em Porto Alegre A família dela é do interior mas ela veio para a capital trabalhar quando tinha 16 anos Relata que a separação do pai de Wellington foi muito difícil Quando se separou continuava gostando dele e se vinga va não deixando que Wellington o visse Situa a separação ora aos quatro anos do menino ora aos três ora ao um ano e meio Quando Wellington tinha um ano e meio ela ficou hospitalizada por dois meses Durante esse período não permitiu que o filho a visitasse entrou em depressão por 2 Projeto nº 20723 aprovado em 06 de junho de 2011 pelo Comitê de Ética do Instituto de Psicologia da UFRGS Andrea Gabriela Ferrari Rose Gurski Milena da Rosa Silva 48 Revista Psicologia Teoria e Prática 191 4454 São Paulo SP janabr 2017 ISSN 15163687 impresso ISSN 19806906 online httpdxdoiorg10593519806906psicologiav19n1p4454 falta de dinheiro e por desconfiar que o marido a traía com outra mulher Wellington ficou aos cuidados de sua irmã Quando saiu do hospital estava desgostosa com o marido e passou a se dedicar ao menino Conta que o casamento já estava afundando quando ficou grávida de Wellington Como gosta muito de trabalhar começou aos 11 anos pois queria ter o próprio dinheiro Fala que o pai era muito autoritário e determinava até o tipo de calcinha que ela podia usar Finaliza essa entrevista dizendo que quer estabilizar o comportamento do filho para quando atingir a idade da adolescência sei lá ele teje mais calmo assim por que no momento que ele tá assim e se ele continuá assim a adolescência já tem mu dança aí eu sozinha vai ficá difícil pra controlá sic Na segunda entrevista começa se queixando das cobranças da escola diante do comportamento do filho Comenta que ele é muito dissimulado porque nos atendi mentos e na sala de espera da clínica Wellington não é inquieto mas que em casa e na escola sim Queixase que ele nunca faz os temas que é ela quem os faz e que se ela não os fizesse a escola reclamaria mais o que a deixaria mais incomodada Tem de ficar controlando o filho constantemente apesar de ele ter tudo para brincar tanto em sua casa quanto no trabalho da mãe mas ele não brinca Com relação à própria infância descrevese moleca Tinha de brincar sozinha no pátio de casa porque o pai não permitia que fosse brincar na rua Até os 10 anos brincou bastante depois foi preciso ajudar os pais Apanhou bastante do pai muito mais que seus irmãos homens isso porque ela falava o que vinha à cabeça e o pai achava que era falta de respeito Tem uma cicatriz da vez em que mais apanhou Apanhou muito de coturno não sabe como ela pode ter filho A mãe dela não fazia nada era submissa O seu inferno ini ciou quando descobriu um bilhete de amor escrito por uma mulher para seu pai Ela tinha 7 anos e o leu para a mãe que era analfabeta Achou que a mãe teria uma ati tude mas não fez nada Além de não aceitar ser mandada nasceu com espírito de dança mas o pai não a deixava ir às matinês com a família vizinha Um dia fugiu com uma amiga adulta e foi ao baile de noite Foi por esse motivo que saiu de casa tão cedo se ela não fosse embora ia matar seu pai que a fez passar por muita coisa Durante os primeiros anos longe de casa sentiu muita saudade de sua mãe Em função do que passou na infância e na adolescência dá tudo para o Wellington pois ela não pode fazer com o filho o que seu pai fez com ela em sua juventude Termina a entrevista brava dizendo que não quer falar das coisas ruins que não levam a nada só a deixam perturbada no serviço Raquel retorna à clínica 15 dias depois Conta que no fim de semana foi a primeira vez que levou o filho para andar de bicicleta e que ela ficou conversando com uma vizinha Onde eles moram tem muito tráfico então ela quer se mudar e os patrões se propuseram a ajudar Não quer falar mais sobre a infância dela Ela fica muito irritada prefere nem pensar Como teve de comentar ficou irritada Quer resolver o problema do Wellington que tem hiperatividade e não sabe de onde surgiu esse problema Escuta de pais nas entrevistas preliminares 49 Revista Psicologia Teoria e Prática 191 4454 São Paulo SP janabr 2017 ISSN 15163687 impresso ISSN 19806906 online httpdxdoiorg10593519806906psicologiav19n1p4454 Desde nenezinho foi cheio de querer mas nas creches nunca reclamaram dele As reclamações começaram a aparecer agora no colégio porque ele não faz as tarefas O que a incomoda muito é o fato de a professora reclamar dele Não sabe dizer como era quando bebê porque frequenta creche desde os dois meses Mas sempre foi mais inquieto Mas ela também não sabe porque é filho único Ela relata que é muito sobrecarregada e Wellington é uma criança difícil Sabe que quem tem hiperatividade e que poderia se concentrar e fazer as tarefas se tomar um remedinho Quer que um neurologista lhe diga o que ele tem Confessa que veio à clínica para que nós a encaminhássemos a um neurologista que medicasse o menino Já levou ele a uma consulta neurológica no ano anterior mas a médica disse que nos exames não apareceu nada Fica brava quando digo que não temos neurologista na equipe que possa avaliar o filho Refere incomodada que não é ela quem tem proble ma é o filho ela não tem motivo para conversar tanto com uma psicóloga É o filho que lhe traz problemas quando a professora reclama dele Por isso quer medicálo Sabe que é uma medicação que dura quatro horas o tempo do turno escolar Assim a professora não se queixaria e ela estaria bem Além disso não é ela que tem de en trar no ritmo do filho e sim o filho no dela Em seguida conta que levou o filho duas vezes ao posto foi encaminhada ao neurologista e nas duas avaliações não prescre veram a medicação que ela queria Ela quer resolver o problema do filho e a única solução possível para ela é a prescrição de ritalina Na esteira disso comenta que uma psicóloga uma vez lhe disse que certamente o menino tinha algo porque tinha o número cinco na carteira de bebê dele supusemos que fosse o teste de Apgar Mas ela não soube dizer como foi o parto porque não se lembra de nada em função da anestesia geral Também não soube explicar o motivo de o parto ter sido cesárea Só sabe que o bebê teve de ir para o oxigênio Nasceu de oito meses Volta ao assunto da mudança de casa Está se mudando em função do filho porque em alguns anos não poderá controlálo em relação ao tráfico Quando finalizamos a entrevista agradece Na entrevista seguinte sua última Raquel chegou com um aspecto feliz apesar de dizer que estava cansada Contou que tinha comprado a casa que tanto queria sendo muito importante para ela ter saído do beco e ser moradora de frente Ficou mais perto do trabalho e da escola do filho Wellington já fez amizade com as crian ças da rua mas também já ficou de castigo Ela o deixou sair de bicicleta desde que andasse somente na calçada Raquel ficou arrumando as coisas na casa e ouviu o vizi nho gritar o nome do filho Quando ela saiu o vizinho lhe contou que o caminhão do gás quase atropelou o menino Vai ficar duas semanas sem andar de bicicleta por ter desobedecido Estão para iniciar as férias escolares e às vezes acha que ele está mais tranquilo Vai procurar neurologista assim que se organizar com a casa e se cadastrar no posto de saúde de seu bairro Comento que Wellington iniciará seu tratamento em março e que ela também poderia ter um acompanhamento se assim o desejasse Ela não se opõe e ainda refere que gostaria já que nossas conversas têm lhe feito bem Afirma Andrea Gabriela Ferrari Rose Gurski Milena da Rosa Silva 50 Revista Psicologia Teoria e Prática 191 4454 São Paulo SP janabr 2017 ISSN 15163687 impresso ISSN 19806906 online httpdxdoiorg10593519806906psicologiav19n1p4454 que toda ajuda é bemvinda Os dois iniciam seus respectivos trabalhos psicotera pêuticos e o menino passa também a ter acompanhamento neurológico que ela pro curou no posto de saúde Discussão do caso Finalizando para iniciar A opção de seguir a cadeia associativa de Raquel para o relato das entrevistas nos permitiu colocar em discussão a importância das entrevistas preliminares com aquele que leva uma criança para atendimento Esse formato possibilita desvendar a sequên cia da cadeia associativa que enlaça a história infantil parental e a queixa sobre a sin tomatologia do filho Pensando nessa cadeia podemos vislumbrar algumas torções discursivas importantes que se refletiram em uma mudança no modo de Raquel se relacionar com o filho Cabe ressaltar que as hipóteses levantadas na discussão desse material clínico no nosso grupo de trabalho estão enlaçadas a partir dos questiona mentos da pesquisa Sintoma da criança colocação em cena do infantil parental Primeiramente Raquel procura o atendimento para Wellington por um encami nhamento da escola sem se implicar ou se preocupar com esse pedido Traz o menino porque a escola disse que era necessário Do nosso lado não acatando a esse pedido sem questionálo propomos uma série de entrevistas com ela no intuito de transfor mar a queixa em demanda a partir de uma mínima implicação de Raquel em relação ao sofrimento do filho Como não aceitamos prontamente a criança em atendimento ela teve de se pôr a falar Inicia revelando o desconhecimento a respeito da história inicial do filho não sabe dizer muito sobre ele O fato de não ter podido vivenciar o parto como experiência inaugurou uma série de desencontros na relação com o filho transformando essa re lação em um cenário propício para que as lembranças traumáticas infantis dela fossem dramatizadas e condensadas Uma das grandes surpresas e que nos parece ter permitido fazer uma importante modificação frente ao cuidado com o filho foram as rememorações a respeito de sua infância e adolescência as feridas não tinham cicatrizado elas estavam tão vívidas que apesar da aparente indiferença se encarnavam na dificuldade de Raquel se adap tar às necessidades do filho Da dificuldade de situar a história de Wellington surgi ram rememorações de violência e descaso com as quais ela teve que lidar A impossibilidade de se colocar em um lugar de cuidadora do filho possivelmente se enraíze no seu drama infantil e na dificuldade de situarse em um lugar de filiação diante da mãe submissa que não a defendia e um pai autoritário que determinava até as roupas íntimas que ela podia usar As identificações necessárias com uma mãe cuidadora que permitiriam a transformação subjetiva do lugar de filha para o lugar de mãe pareciam estar suspensas na relação com seu filho Não conseguiu situar um lugar de cuidado em relação ao filho possivelmente porque desde muito cedo ela teve Escuta de pais nas entrevistas preliminares 51 Revista Psicologia Teoria e Prática 191 4454 São Paulo SP janabr 2017 ISSN 15163687 impresso ISSN 19806906 online httpdxdoiorg10593519806906psicologiav19n1p4454 de se cuidar Não tendo encontrado ancoragem para dividir seus dramas constitutivos com algum adulto que lhe oferecesse uma contenção não soube o que fazer quando o filho começou a lhe demandar outras coisas além dos objetos que ela podia com prar Nesse sentido assim como ela se colocou como portavoz da mãe coloca o filho como seu portavoz na relação com o exmarido quiçá em uma tentativa de elabora ção de seus dramas infantis Na esteira dessa lembrança podemos construir uma hipótese sobre a dificuldade que ela tem em se relacionar com Wellington desde um lugar de maternal de cuidado Assim como ela o filho foi colocado no lugar de revelar e testemunhar a traição sofri da Ao mesmo tempo o pedido de que o filho não fosse vêla quando ela foi hospita lizada pode manifestar uma ressignificação do momento que ela teve que sair preco cemente de sua casa e viuse impedida de ter sua mãe por perto Uma mãe não pode ser vista frágil ou submissa o preço que ela pagou por isso foi alto demais e não per mitiu que o filho passasse pela mesma experiência No enlace de tudo isso surge tam bém a mágoa que ela tem da mãe por não a ter defendido das surras do pai a mãe não cuidou da filha da maneira como ela almejava Como esperar uma posição de cuidado se ela ficou à mercê da fúria de um pai que a espancava a ponto de deixar marcas no corpo Novamente uma dupla identificação parece se precipitar nessas lem branças a necessidade que ela teve de sair muito cedo de casa e o imperativo que ela própria colocou de que o filho não a visitasse no hospital para não a encontrar fragi lizada assim como sua mãe Em vários momentos Raquel refere que precisa controlar o filho antes de chegar à adolescência Falando de sua vinda para a capital conta com muita dor que se ela não saísse de casa ela mataria seu pai pela violência sofrida pois não se submetia às exi gências dele sem questionálas O que disso retorna na relação com Wellington às vésperas da adolescência do menino O que se antecipa como ponto de chegada se riam os questionamentos do filho ao seu controle e a consequente solidão pelo aban dono Já não serão só os dois ela voltará a ser só ela As questões aqui elencadas são uma pequena parte do que foi suscitado por esse caso nas discussões no grupo de pesquisa A escolha pelos fragmentos aqui reproduzi dos nos permitiu refletir sobre a importância da escuta dos adultos que levam uma criança para atendimento A partir do momento que se propõe uma escuta para Ra quel como mãe de Wellington é possível uma torção de olhar ela coloca em cena seu sofrimento e abre a porta para o filho aparecer como sujeito passa a se disponibilizar no cuidado do filho As entrevistas realizadas com Raquel quiçá tenham permitido construir outro des tino para o sofrimento próprio e do filho O percurso de Raquel por sua história per mitiu começar a se perguntar sobre o filho e consequentemente sobre sua materni dade Os dramáticos eventos da sua infância e adolescência que passamos a testemunhar começam a desfazer os nós que estavam encarnados nas reclamações da escola a respeito do filho As lembranças que foram surgindo de forma quase catárti Andrea Gabriela Ferrari Rose Gurski Milena da Rosa Silva 52 Revista Psicologia Teoria e Prática 191 4454 São Paulo SP janabr 2017 ISSN 15163687 impresso ISSN 19806906 online httpdxdoiorg10593519806906psicologiav19n1p4454 ca permitiram tecer hipóteses explicativas a respeito do sofrimento de Wellington e de Raquel De total descomprometimento a respeito das dificuldades de Wellington passamos a testemunhar uma mudança de disponibilidade frente à problemática do filho A dificuldade de Raquel de poder se adaptar às necessidades do filho possuem raízes muito arcaicas A posteriori pode ser trabalhada a solidão sofrida quando das surras e da descoberta da traição do pai da submissão da mãe e da impossibilidade da mãe de defendêla da traição de seu marido a saudade da mãe quando veio morar na cidade e a saudade do filho quando ficou hospitalizada entre outras tantas cenas de sofrimento relatadas Esses eventos se precipitaram no corpo do filho em uma tes situra de expectativas de encontros frustrados a mãe que não a acolheu o marido que a traiu o filho que ela não pode cuidar Considerar as reminiscências trazidas por Raquel a respeito de sua infância e adoles cência permitiu que as representações que estavam sendo transferidas para a relação com seu filho pudessem ser deslocadas Nesse movimento de uma total indiferença frente à queixa do filho passa a reclamar que o problema de Wellington a incomoda porque a escola se queixa para ela Essa reclamação vem acompanhada de um pedido de esbatimento do sintoma Como esse pedido não foi acatado ela fica brava mas a incidência de uma fenda permite o surgimento da função sintomal Quinet 1991 em relação à manifestação sintomática do filho Pensamos que o não acolhimento literal do pedido de conformidade do filho em relação ao ideal parental interroga o seu saber imaginário totalizante e permite que os questionamentos sobre as necessidades do filho surjam Acontece um deslocamen to do tem tudo o que ele quer para a necessidade de encontrar outro lugar mais adequado para um futuro adolescente morar Na trilha desse caminho que se inicia vislumbra em Wellington um sujeito que à medida que cresce tem diferentes neces sidades para além dos objetos que ela pode comprar Pelo não acolhimento literal de um pedido de conformidade mas pelo acolhimento dela como mãe faz uma tentati va de enxergar o filho como alguém que precisa de sua proteção proteção esta que lhe foi negada quando ela era criança Foi necessário permitir o surgimento da criança que não cresceu nela Hamad 2001 para ela pudesse se ocupar do filho Nesse percur so faz um movimento concreto na sua vida cotidiana Mudase de bairro em função de uma necessidade que percebe no filho e uma disponibilidade que ela passa a ter agora pode cuidálo e lhe oferecer um lugar menos perigoso para crescer Wellington pode fazer amigos andar de bicicleta e ser colocado de castigo porque se expôs ao perigo Raquel acabou por aceitar o tratamento para o filho e uma escuta para ela a fim de ser ajudada na relação com essa criança o filho mas também a que ainda resta nela Possivelmente sem a escuta de Raquel como mãe de Wellington o início do traba lho clínico com o filho não tivesse acontecido Talvez ela continuasse incessantemen te a busca pela receita de ritalina que extirpasse a queixa da escola frente à inquie tude de Wellington impedindo a elaboração de um passado de dores traições e Escuta de pais nas entrevistas preliminares 53 Revista Psicologia Teoria e Prática 191 4454 São Paulo SP janabr 2017 ISSN 15163687 impresso ISSN 19806906 online httpdxdoiorg10593519806906psicologiav19n1p4454 descasos Assim como lembra Lévy 2008 muitas vezes o sintoma da criança tem uma função estruturante para um dos pais Considerando que na chegada de um filho há uma atualização do momento constitutivo da castração parental e em havendo fratu ras no recalcamento podemos supor que o filho pode ser utilizado como palco onde se atuam as tragédias de sua própria filiação Ferrari 2012 Sem o dispositivo da escu ta pacienciosa e atenta de Raquel sobre sua história é possível que o enigma do sin toma de Wellington não tivesse aparecido impedindo a construção e sustentação de uma demanda na direção de um sujeito suposto saber acerca do sofrimento que esta va em questão no sintoma do filho Conclusão Pensamos que a escuta dos pais em Entrevistas Preliminares pode ser um dispositi vo potente especialmente no que se refere a possibilitar uma operação de elaboração do recalcamento infantil fraturado dos pais que pode ter se precipitado quando da chegada de um filho No momento em que as rememorações parentais encontram outra guarida abrese o espaço necessário para que a criança possa despojarse do que não lhe pertence e passar a assumir os próprios dramas constitutivos Acreditamos que quando a sintomatologia da criança está tão contaminada pela história infantil parental a escuta dos pais viabiliza que o trabalho com a criança aconteça Assim o enigma do sintoma trazido pela criança pode ser enlaçado à história infantil daquele que se queixa precipitando a função sintomal e a consequente implicação dos pais no sofrimento da criança Referências Araújo M L 2001 O discurso dos pais na clínica psicanalítica com crianças signi ficantes transgeracionais em questão Colóquio do LEPSI IPFEUSP São Paulo SP Brasil 3 Recuperado em 27 fevereiro 2017 de httpwwwproceedingsscielobr scielophpscriptsciarttextpidMSC0000000032001000300025lngennrm abn Bernardino L 2004 As psicoses não decididas na infância São Paulo Casa do Psicólogo Dolto F 2010 A imagem inconsciente do corpo São Paulo Perspectiva Ferrari A G 2012 dezembro Sintoma da criança atualização do processo cons titutivo parental Tempo psicanalítico 442 299319 Flesler A 2012 A psicanálise de crianças e o lugar dos pais Rio de Janeiro Zahar Freud S 1990a Sobre la dinámica de la trasferencia In J Strachey Org Obras completas pp 93106 Buenos Aires Amorrortu Trabalho original publicado em 1912 Andrea Gabriela Ferrari Rose Gurski Milena da Rosa Silva 54 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