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Dossiê Crise Feminismo e Comunicação httpsrevistaecoposecoufrjbr ISSN 21758689 v 23 n 3 2020 DOI 1029146ecoposv23i327640 12 Vênus em dois atos1 Venus in Two Acts Saidiya Hartman Professora de Letras e Literatura Comparada na Columbia University autora de Scenes of Subjection Terror Slavery and SelfMaking in Nineteenth Century America 1997 Lose Your Mother A Journey Along the Atlantic Slave Route 2007 e Wayward Lives Beautiful Experiments Intimate Histories of Social Upheaval 2019 este último vencedor do National Book Critics Circle Award Ganhadora em 2019 do Prêmio MacArthur Tradução Fernanda Silva e Sousa Doutoranda no Programa de PósGraduação em Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo Marcelo R S Ribeiro Professor de História e Teorias do Cinema e do Audiovisual na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia Revisão Kênia Freitas e Liv Sovik Submetido em 26 de Setembro de 2020 Aceito em 14 de Novembro de 2020 1 Publicado originalmente como HARTMAN Saidiya Venus in Two Acts In Small Axe Volume 12 no 2 pp 114 Copyright 2008 Small Axe Inc Todos os direitos reservados Republicado com permisão da Duke University Press wwwdukeupressedu Acesso em httpsdoiorg101215 1221 Esta tradução ao português será incluída em uma antologia de black studies organizada por André Arias Clara Barzaghi e Stella Paterniani a ser lançado pela Crocodilo Edições e Bazar do Tempo em 2021 Dossiê Crise Feminismo e Comunicação httpsrevistaecoposecoufrjbr ISSN 21758689 v 23 n 3 2020 DOI 1029146ecoposv23i327640 13 RESUMO Este ensaio examina a ubíqua presença de Vênus no arquivo da escravidão atlântica e luta com a impossibilidade de descobrir qualquer coisa sobre ela que já não tenha sido afirmada Como figura emblemática da mulher escravizada no mundo atlântico Vênus evidencia a convergência do terror e do prazer na economia libidinal da escravidão assim como a intimidade da História com o escândalo e o excesso de literatura Ao escrever no limite do indizível e do desconhecido o ensaio mimetiza a violência do arquivo e tenta reparála ao descrever tão plenamente quanto possível as condições que determinam a aparição de Vênus e que ditam seu silêncio PALAVRASCHAVE arquivo narrativa escravidão violência Vênus ABSTRACT This essay examines the ubiquitous presence of Venus in the archive of Atlantic slavery and wrestles with the impossibility of discovering anything about her that hasnt already been stated As an emblematic figure of the enslaved woman in the Atlantic world Venus makes plain the convergence of terror and pleasure in the libidinal economy of slavery and as well the intimacy of history with the scandal and excess of literature In writing at the limit of the unspeakable and the unknown the essay mimes the violence of the archive and attempts to redress it by describing as fully as possible the conditions that determine the appearance of Venus and that dictate her silence KEYWORDS archive narrative slavery violence Venus Nesta encarnação ela aparece no arquivo da escravidão como uma garota morta nomeada em uma acusação judicial contra um capitão de navio negreiro julgado pelo assassinato de duas garotas negras Mas nós poderíamos têla encontrado de modo igualmente fácil no livro de contabilidade de um navio no registro de débitos ou no diário de um feitor ontem à noite eu deitei com Dido no chão ou como uma companheira amorosa de cama com uma bolsa tão elástica que conterá a maior coisa com a qual qualquer cavalheiro possa presenteála na Harriss List of Covent Garden Ladies2 ou como a amante na narrativa de um soldado mercenário no Suriname ou como uma proprietária de um bordel no relato de um viajante sobre as prostitutas de Barbados ou como uma personagem 2 A Lista de Harris das Senhoras de Covent Garden em tradução livre foi impressa e publicada anualmente no formato de um almanaque entre 1757 e 1795 no distrito de Covent Garden em Londres A publicação reunia descrições físicas e especialidades sexuais de mais de uma centena de prostitutas que trabalhavam na cidade NT Dossiê Crise Feminismo e Comunicação httpsrevistaecoposecoufrjbr ISSN 21758689 v 23 n 3 2020 DOI 1029146ecoposv23i327640 14 menor em um romance pornográfico do século XIX3 Variavelmente chamada de Harriot Phibba Sara Joanna Rachel Linda e Sally ela é encontrada em todo lugar no mundo atlântico O entreposto de escravos o oco do navio negreiro a casa de pragas o bordel a jaula o laboratório do cirurgião a prisão o canavial a cozinha o quarto do senhor de escravos acabam por se revelar exatamente o mesmo lugar e em todos eles ela é chamada de Vênus O que mais há para saber Seu destino é o mesmo de qualquer outra Vênus Negra ninguém lembrou do seu nome ou registrou as coisas que ela disse ou observou que ela se recusou totalmente a dizer alguma coisa4 A sua história5 contada por uma testemunha falha é extemporânea Seriam necessários séculos para que lhe fosse permitido provar sua língua6 Eu poderia dizer seguindo um filósofo famoso que o que sabemos de Vênus em suas muitas formas equivale a pouco mais do que um registro do seu encontro com o poder e que isso fornece um esboço insuficiente de sua existência7 Um ato de acaso ou desastre produziu uma divergência ou uma aberração em relação ao curso esperado e usual de invisibilidade e a catapultou do subterrâneo para a superfície do discurso Nós nos deparamos com ela em circunstâncias exorbitantes que não produzem nenhuma imagem da vida cotidiana nenhum caminho para seus pensamentos nenhum vislumbre da vulnerabilidade de seu rosto ou do que olhar para tal rosto poderia exigir Nós só sabemos o que pode ser extrapolado a partir de uma análise do livro de 3 Last night cum Dido Feitor na Jamaica Thomas Thistlewood relata em latim suas façanhas sexuais com mulheres escravizadas Cum sup terr Eu fodi com ela no chão In Douglas Hall ed In Miserable Slavery Thomas Thistlewood in Jamaica 17501756 Kingston The Press University of the West Indies 1998 31 Samuel Derrick Harriss List of CoventGarden Ladies or Man of Pleasures Kalendar for the Year 1793 London 1793 reimpressão Edinburgh Paul Harris Publishing 1982 83 John Gabriel Stedman Stedmans Surinam Life in an EighteenthCentury Slave Society org Richard Price e Sally Price Baltimore Johns Hopkins University Press 1992 4 Para um relato estendido do dilema de Vênus ver o livro de Janelle Hobson Venus in the Dark Blackness and Beauty in Popular Culture New York Routledge 2005 5 No decorrer do ensaio Hartman utiliza variavelmente as palavras history e story Optamos por distinguir entre esses termos um denotando a história dos historiadores e outro relatos ficcionais ou não estórias que se contam pelo uso hoje antiquado do H maiúscula quando se trata da história maior da historiografia NT 6 Ver M NourbeSe Philip She Tries Her Tongue Her Silence Softly Breaks London The Womens Press 1993 7 Michel Foucault A vida dos homens infames In Estratégia podersaber Ditos e escritos IV Tradução Vera Lucia Avellar Ribeiro Rio de Janeiro Forense Universitária 2003 p 207 Dossiê Crise Feminismo e Comunicação httpsrevistaecoposecoufrjbr ISSN 21758689 v 23 n 3 2020 DOI 1029146ecoposv23i327640 15 contabilidade ou emprestado do mundo de seus captores e senhores e aplicado a ela No entanto precisase transformar o exorbitante em exemplar ou típico para que a vida dela forneça uma janela para as vidas das pessoas escravizadas em geral Não se pode perguntar Quem é Vênus porque seria impossível responder a essa pergunta Há centenas de milhares de outras garotas que compartilham as suas circunstâncias e essas circunstâncias geraram poucas histórias E as histórias que existem não são sobre elas mas sobre a violência o excesso a falsidade e a razão que se apoderaram de suas vidas transformaramnas em mercadorias e cadáveres e identificaramnas com nomes lançados como insultos e piadas grosseiras O arquivo nesse caso é uma sentença de morte um túmulo uma exibição do corpo violado um inventário de propriedade um tratado médico sobre gonorréia umas poucas linhas sobre a vida de uma prostituta um asterisco na grande narrativa da História Dado isso é sem dúvida impossível apreender essas vidas de novo em si mesmas como se elas estivessem em um estado livre8 Fora do mundo e de volta Mas eu quero dizer mais do que isso Eu quero fazer mais do que recontar a violência que depositou esses traços no arquivo Eu quero contar uma história sobre duas garotas capazes de recuperar o que permanece adormecido a aderência ou reivindicação de suas vidas no presente sem cometer mais violência em meu próprio ato de narração É uma história fundamentada na impossibilidade de escutar o não dito traduzir palavras mal interpretadas e remodelar vidas desfiguradas e decidida a atingir um objetivo impossível reparar a violência que produziu números códigos e fragmentos de discurso que é o mais próximo que nós chegamos a uma biografia da cativa e da escravizada Entretanto como recuperar vidas emaranhadas com e impossíveis de diferenciar dos terríveis enunciados que as condenaram à morte dos livros de contabilidade que as identificaram como unidades de valor das faturas que as 8 Ibid p 208 Dossiê Crise Feminismo e Comunicação httpsrevistaecoposecoufrjbr ISSN 21758689 v 23 n 3 2020 DOI 1029146ecoposv23i327640 16 afirmaram como propriedades e das crônicas banais que as despojaram de características humanas Pode o choque de tais palavras como Foucault escreve dar origem a um certo efeito de beleza misturado com terror9 Nós podemos como NourbeSe Phillip sugere conjurar alguma coisa nova a partir da ausência dos africanos como humanos que está no coração do texto10 Se sim quais são as feições dessa nova narrativa Colocando de modo diferente como se reescreve a crônica de uma morte prevista e antecipada como uma biografia coletiva de sujeitos mortos como uma contraHistória do humano como prática da liberdade Como a narrativa pode encarnar a vida em palavras e ao mesmo tempo respeitar o que não podemos saber Como alguém ouve os gemidos e gritos as canções indecifráveis o crepitar do fogo nos canaviais os lamentos pelos mortos e os brados de vitória e então atribui palavras a tudo isso É possível construir um relato a partir do locus da fala impossível ou ressuscitar vidas a partir das ruínas11 Pode a beleza fornecer um antídoto à desonra e o amor uma maneira de exumar gritos enterrados e reanimar os mortos12 Ou é a narração sua própria dádiva e seu próprio fim isto é tudo que é realizável quando a superação do passado e a redenção dos mortos não o são E de qualquer forma o que as histórias tornam possível Um jeito de viver no mundo no rescaldo da catástrofe e da devastação Uma casa no mundo para o ser self mutilado e violado13 Para quem para nós ou para elas A escassez de narrativas africanas sobre o cativeiro e a escravização exacerba a pressão e a gravidade de tais questões Não há uma única narrativa 9 Ibid p 206 10 M NourbeSe Philip Zong Middletown Wesleyan University Press 2008 11 Stephen Best The African Queen ensaio não publicado 12 Assia Djebar Fantasia An Algerian Calvacade trans Dorothy S Blair London Heinneman 1993 13 Relendo o conto de Saadat Hasan Manto Khol Do em que um pai reivindica o corpo violado de sua filha Veena Das escreve Esse pai deseja que a sua filha viva mesmo que partes de seu corpo não possam fazer nada além de proclamar sua brutal violação Ele cria através de sua enunciação Minha filha está viva minha filha está viva um lar para o mutilado e violado eu de sua filha Veena Das Life and Words Violence and the Descent into the Ordinary Berkeley University of California Press 2007 39 47 Dossiê Crise Feminismo e Comunicação httpsrevistaecoposecoufrjbr ISSN 21758689 v 23 n 3 2020 DOI 1029146ecoposv23i327640 17 autobiográfica de uma mulher cativa que sobreviveu à Passagem do Meio14 Esse silêncio no arquivo em combinação com a robustez do forte ou do entreposto de escravos não como uma cela de detenção ou espaço de confinamento mas como episteme faz com que a historiografia do tráfico escravista em sua maior parte focalize assuntos quantitativos e questões de mercados e relações comerciais15 A perda dá origem ao anseio e nessas circunstâncias não seria exagerado considerar as histórias como uma forma de compensação ou mesmo como reparações talvez o único tipo que nós iremos receber Como uma escritora comprometida em contar histórias eu tenho me esforçado em representar as vidas dos sem nomes e dos esquecidos em considerar a perda e respeitar os limites do que não pode ser conhecido Para mim narrar contraHistórias da escravidão tem sido sempre inseparável da escrita de uma História do presente ou seja o projeto incompleto de liberdade e a vida precária doa exescravoa16 uma condição definida pela vulnerabilidade à morte prematura e a atos gratuitos de violência17 Conforme eu a entendo uma História do presente luta para iluminar a intimidade da nossa experiência com as vidas dos mortos para escrever nosso agora enquanto ele é interrompido por esse passado e para imaginar um estado livre não como o tempo antes do cativeiro ou da escravidão mas como o antecipado futuro dessa escrita 14 Em inglês essa travessia é comumente chamada de Middle Passage o comércio triangular de escravizados que envolvia a África as Américas e a Europa e era realizado através do Oceano Atlântico a passagem do meio entre os três continentes NT 15 Stephanie Smallwood Saltwater Slavery Cambridge Harvard University Press 2007 16 Em inglês Hartman escreve the precarious life of the exslave recorrendo a termos que não têm marcação de gênero gramatical No decorrer do texto definimos o gênero gramatical dos substantivos e adjetivos que traduzem o texto de Hartman de acordo com o contexto em que aparecem Mais abaixo por exemplo quando Hartman se refere a the dead traduzimos simplesmente por os mortos sem marcar explicitamente a questão no próprio texto embora ela deva ser considerada já que se trata de mortos e mortas na história da escravidão Em outro momento quando a autora se refere a uma cultural history of the captive traduzimos como história cultural do cativeiro mas quando ela se refere às lives of the captives optamos por vidas dos cativos e cativas já que a expressão aponta para a concretude histórica de existências individuais e Hartman está particularmente interessada no lugar histórico das mulheres NT 17 Achille Mbembe On the Postcolony Berkeley University of California Press 2001 17374 Mbembe aborda a arbitrária e caprichosa natureza do poder colonizador em retirar do mundo e matar o que já havia sido previamente decretado como nada como uma figura vazia 189 Dossiê Crise Feminismo e Comunicação httpsrevistaecoposecoufrjbr ISSN 21758689 v 23 n 3 2020 DOI 1029146ecoposv23i327640 18 Essa escrita é pessoal porque essa História me engendrou porque o conhecimento do outro me marca18 por causa da dor experimentada em meu encontro com os fragmentos do arquivo e por causa dos tipos de histórias que construí para fazer a ponte entre o passado e o presente e dramatizar a produção do nada cômodos vazios e silêncio e vidas reduzidas ao descarte Quais são os tipos de histórias a serem contadas por e sobre aqueles e aquelas que vivem em tal relacionamento íntimo com a morte Romances Tragédias Gritos que fazem seu caminho para a fala e a canção Quais são os protocolos e limites que moldam as narrativas escritas como contraHistória uma aspiração que não é um profilático contra os riscos decorrentes ao reiterar discursos violentos e representar novamente rituais de tortura Como se revisita a cena de sujeição sem replicar a gramática da violência A beleza terrível que reside em tal cena é de algum modo semelhante a um remédio como Fred Moten pareceria sugerir19 O tipo de beleza terrível e de música terrível que ele discerne nos gritos de Tia Hester20 transformados nas canções da Great House Farm21 ou na fotografia da face destruída de Emmett Till22 e a acuidade do olhar23 que surge 18 Das Life and Words 17 19 Fred Moten In the Break Minneapolis University of Minnesota 2003 1422 198200 O primeiro dos dois trechos citados aqui foi publicado em português sob o título A resistência do objeto o grito da Tia Hester In ECOPós Vol 23 No 1 2020 Disponível en httpsdoiorg1029146ecoposv23i127542 20 Tia Hester era a tia de Frederick Douglass exescravizado orador e abolicionista afroamericano Quando criança viu sua tia ser espancada por um feitor a ponto de ficar completamente ensanguentada Esse episódio que aparece no primeiro capítulo de sua Narrativa da Vida foi um dos relatos pelos quais caracteriza a escravidão Moten e Hartman discutem em seus textos a oportunidade e problemas de reiterar e portanto reencenar a tortura da Tia Hester NT 21 A Great House Farm era a sede das plantações em que Douglass nasceu e trabalhou como escravo Ele relata a ida mensal de escravizados para essa sede para retirar os mantimentos Descreve seu canto como algo que expressava para quem ouvisse os horrores da escravidão Moten usa esse trecho de Douglass para esboçar uma posição que ele compartilha com Hartman que a escravidão não pode ser entendida somente pelas torturas e a opressão que impôs e que esses autores relutam em rerepresentar mas pela beleza criada pelas pessoas escravizadas O texto de Moten lida exatamente com a contradição paradoxo e dilema que esse fato constitui diante de quem observa e ouve A gravação de Protest de Max Roach e Abbey Lincoln citada por Moten mostra o que ele está argumentando NT 22 Em agosto de 1955 quando Emmett Till um garoto afroamericano de 14 anos criado em Chicago visitava parentes em uma pequena cidade de Mississipi foi acusado de assobiar para uma mulher branca O marido e cunhado dessa mulher o torturam mutilaram e mataram com um tiro na cabeça alguns dias depois A mãe de Emmett Mamie Till Mobley decidiu como uma forma de denunciar a violência racista deixar o caixão de seu filho aberto no velório expondo seu rosto desfigurado e destruído para que o mundo pudesse ver o que ela jamais conseguiria descrever Os Dossiê Crise Feminismo e Comunicação httpsrevistaecoposecoufrjbr ISSN 21758689 v 23 n 3 2020 DOI 1029146ecoposv23i327640 19 da disposição de olhar para o caixão aberto As possibilidades superam os perigos de olhar de novo Se ler o arquivo é entrar em um necrotério permitindo uma visualização final e autorizando um último vislumbre de pessoas prestes a desaparecer no porão de escravos24 então com qual fim alguém abre o caixão e olha para a face da morte Por que arriscar a contaminação envolvida na reafirmação das maldições obscenidades colunas de perdas e ganhos e medidas de valor pelas quais as vidas cativas eram inscritas e extintas Por que sujeitar os mortos a novos perigos e a uma segunda ordem de violência Ou são as palavras do mercador a ponte para os mortos ou os túmulos escriturários em que eles esperam por nós Tais preocupações sobre a ética da representação histórica explicam em parte os dois atos do título Eu preciso revisitar e revisar meu próprio relato anterior sobre a morte de Vênus em O Livro Morto25 e também os dois atos anunciam o inevitável retorno de Vênus tanto como fantasma haint26 ou seja o que assombra o presente quanto como vida descartável O relato do mercador sobre mortalidade evidencia a inevitabilidade da repetição Melancolia desinteria idem idem Em vez do esforço desperdiçado de traçar uma linha sobre menina magra ou escrever um recusar menino o livro de contabilidade introduz outra morte por meio dessa taquigrafia E nos devolve os mortos na própria forma em que foram expulsos do mundo27 assassinos foram processados no mês seguinte e um júri de brancos os considerou não culpados Meses depois confessaram o crime em uma matéria de revista de grande circulação A brutalidade do assassinato foi tanta e o gesto da mãe tão certeira que essa morte foi creditada como a de George Floyd está sendo agora com o início de uma nova fase da luta contra o racismo nos Estados Unidos NT 23 Elaine Scarry On Beauty and Being Just Princeton Princeton University Press 2001 14 O texto discute como o olhar se altera com a percepção de beleza que antes não era vista ou com a perda da percepção de beleza em um objeto antes admirado A acuidade do olhar é necessária para perceber essas alterações NT 24 Saidiya Hartman Lose Your Mother New York Farrar Straus and Giroux 2007 17 25 Ibid 13653 26 Haint substantivo originado do verbo em inglês haunt é um fantasma raivoso que assombra casas A palavra provavelmente tem origem entre os Gullah Geechee descendentes de escravizados que viviam na Carolina do Sul nos Estados Unidos NT 27 Michel Foucault A vida dos homens infames In Estratégia podersaber Ditos e escritos IV Tradução Vera Lucia Avellar Ribeiro Rio de Janeiro Forense Universitária 2003 p 207 Dossiê Crise Feminismo e Comunicação httpsrevistaecoposecoufrjbr ISSN 21758689 v 23 n 3 2020 DOI 1029146ecoposv23i327640 20 O caixão aberto o escândalo do arquivo Escândalo e excesso inundam o arquivo os números brutos das contas de mortalidade a sonegação estratégica e a desonestidade do registro do capitão as cartas floridas e sentimentais despachadas de portos de escravos por mercadores com saudades de casa as histórias encantatórias de violência chocante escritas por abolicionistas os relatos fascinados de testemunhas oculares feitos por soldados mercenários ansiosos para divulgar o que a decência os proíbe de revelar e os rituais de tortura os espancamentos enforcamentos e amputações consagradas como lei O investimento libidinal na violência é aparente em toda parte nos documentos declarações e instituições que decidem nosso conhecimento do passado O que foi dito e o que pode ser dito sobre Vênus tem como certo o tráfego entre fato fantasia desejo e violência Confirmações disso são abundantes Vamos começar com James Barbot o capitão da Fragata de Albion que atestou a coincidência dos prazeres proporcionados no espaço da morte Era difícil exercer contenção sexual no navio negreiro confessou Barbot porque as jovens donzelas vivazes cheias de alegria e bom humor proporcionavam uma abundância de recreação28 Falconbridge29 endossa isso ampliando o deslizamento entre vítimas e namoradinhas atos de amor e excessos brutais A bordo de alguns navios os marinheiros comuns podem ter relações sexuais com as mulheres negras cujo consentimento podem obter E sabese que alguns deles levaram a inconstância de suas amantes tão a sério a ponto de pularem ao mar e se afogarem Somente Olaudah Equiano30 retrata a violência habitual do navio negreiro sem recorrer à linguagem do romance Era quase uma prática comum entre nossos empregados e outros brancos cometer violentas depredações da castidade das escravas Eu tenho conhecimento de que nossos oficiais cometiam esses atos da maneira mais 28 A Voyage in the Albion Frigate in Churchills Voyages vol 5 1732 republicado em George Francis Dow Slave Ships and Slaving New York Dow 2002 81 29 Alexander Falconbridge 17601791 foi um cirurgião britânico que participou de quatro viagens em navios negreiros entre 1780 e 1787 NT 30 Olaudah Equiano 17451797 foi um exescravizado abolicionista marinheiro e escritor nigeriano que escreveu uma autobiografia chamada The Interesting Narrative of the Life of Olaudah Equiano publicada em 1789 NT Dossiê Crise Feminismo e Comunicação httpsrevistaecoposecoufrjbr ISSN 21758689 v 23 n 3 2020 DOI 1029146ecoposv23i327640 21 vergonhosa para a desgraça não apenas de cristãos mas também dos homens Eu tenho conhecimento até mesmo de que eles satisfazem sua paixão brutal com meninas de menos de dez anos de idade e alguns deles praticaram essas abominações com tal escandaloso excesso que um dos nossos capitães dispensou o oficial e outros por causa disso ênfase minha31 A situação piora na plantação Os estupros em série e as punições com excrementos perpetrados por Thomas Thistlewood32 oferecem um relato vívido dos prazeres extorquidos pela destruição e pela degradação da vida e ao mesmo tempo iluminam a dificuldade de recuperar vidas escravizadas das forças aniquiladoras de uma descrição como essa Dei nele uma chicotada moderada conservei ele bem em salmoura suco de limão e pimenta fiz Hector cagar em sua boca imediatamente colocar uma mordaça nela enquanto estava cheia o fiz usá lo por 4 ou 5 horas33 Enquanto o registro diário de tais abusos constitui sem dúvidas uma História da escravidão a tarefa mais difícil é exumar as vidas enterradas sob essa prosa ou em vez disso aceitar que Phibba e Dido existem apenas dentro dos confins dessas palavras e que esta é a maneira como eles entram na História O sonho é liberar essas vidas das obscenas descrições que primeiro as apresentaram para nós É fácil demais odiar um homem como Thistlewood o que é mais difícil é reconhecer como nossa herança as frases latinas brutais que se derramam nas páginas dos seus diários Ao entrar no arquivo da escravidão o inimaginável assume a forma da prática cotidiana que nunca deixamos de esquecer enquanto olhamos boquiabertas os rostos sombrios e torsos desnudos de Delia Drana Renty e Jack ou nos horrorizamos diante do corpo mutilado de Anarcha ou admiramos uma Diana nua tão linda que até o traje mais esplêndido não pode lhe acrescentar 31 Alexander Falconbridge An Account of the Slave Trade on the Coast of Africa London J Phillips 1780 2324 Olaudah Equiano The Interesting Narrative 1789 reprint New York Penguin 1995 104 32 Thomas Thistlewood 17211786 foi um feitor e proprietário britânico de terras e de escravizados na Jamaica que escreveu 37 diários sobre sua vida e a escravidão detalhando o tratamento destinado aos cativos Seus textos são considerados um importante documento histórico sobre o sistema escravista na Jamaica e o tráfico atlântico NT 33 Hall In Miserable Slavery 72 Dossiê Crise Feminismo e Comunicação httpsrevistaecoposecoufrjbr ISSN 21758689 v 23 n 3 2020 DOI 1029146ecoposv23i327640 22 qualquer elegância34 Outros aparecem sob a pressão e a incitação do discurso uma flagelada e uma hotentote35 Uma vadia carrancuda Uma preta morta Uma puta sifilítica Falas inapropriadas expressões obscenas e comandos arriscados dão origem aos personagens com os quais nós nos deparamos no arquivo Dada a condição em que os encontramos a única certeza é que os perderemos novamente que eles irão expirar ou escapar da nossa compreensão ou desmoronar sob a pressão da investigação Esse é o único fato sobre Vênus do qual podemos ter certeza Então é possível reiterar seu nome e contar uma história sobre matéria degradada e vida desonrada que não encanta e excita mas em vez disso se aventura em direção a outro modo de escrita Se não é mais suficiente expor o escândalo então como seria possível gerar um conjunto diferente de descrições a partir desse arquivo Imaginar o que poderia ter sido Visualizar um estado livre a partir dessa ordem de afirmações Os perigos envolvidos nessa tentativa não podem ser colocados entre parênteses ou evitados por causa da inevitabilidade da reprodução dessas cenas de violência que definem o estado da negritude e a vida dao exescravao Pelo contrário esses perigos estão situados no coração do meu trabalho tanto nas histórias que escolhi contar como naquelas que evitei Aqui eu gostaria de retornar a uma história que preferi não contar ou não conseguia contar em Lose Your Mother36 É uma história sobre Vênus a outra garota que morreu a bordo do Recovery e a quem fiz apenas uma breve referência 34 Stedman Stedmans Surinam 248 Delia Drana Renty e Jack eram sujeitos fotográficos do estudo de Louis Aggasiz sobre poligênese Aranchna era uma das onze escravizadas usadas como experimentos por Morton Sims o fundador da ginecologia Ver Harriet Washington Medical Apartheid The Dark History of Medical Experimentation from Colonial Times to the Present New York Harlem Moon 2006 35 O termo hotentote corresponde à designação colonial do povo khoisan grupo étnico do Sudoeste africano Entre 1810 e sua morte em 1815 Sara Baartman frequentemente chamada pelo diminutivo em holandês Saartjie foi uma das mulheres khoisan expostas em diversas cidades europeias em casas de espetáculo de variedades e outros contextos metropolitanos além de ter sido objeto de estudos pseudocientíficos racistas em função das características de seu corpo Ela se tornou conhecida como Vênus Hotentote NT 36 Publicado em 2007 Lose Your Mother A Journey Along the Atlantic Slave Route é um livro que transita entre história romance e autobiografia Nele Harman retoma o tráfico atlântico a partir de sua viagem a Gana quando buscou reconstituir através de fragmentos e indícios da captura de Dossiê Crise Feminismo e Comunicação httpsrevistaecoposecoufrjbr ISSN 21758689 v 23 n 3 2020 DOI 1029146ecoposv23i327640 23 O segundo ato Duas garotas morreram a bordo do Recovery O capitão John Kimber foi indiciado por ter espancado e torturado uma escrava de modo criminoso cruel e com malícia premeditada de maneira a causar a morte dela e ele foi novamente indiciado por ter causado a morte de outra escrava37 Em 7 de junho de 1792 o Sr Pigot advogado do prisioneiro berrou o nome Vênus ao interrogar o cirurgião Thomas Dowling uma das duas testemunhas da tripulação do navio que atestaram que tinham visto o Capitão John Kimber assassinar uma garota negra De acordo com o depoimento do cirurgião o capitão a açoitou repetidamente com um chicote e sucessivamente por vários dias muito severamente causando sua morte38 Vênus não era aquela garota negra mas outra que tinha morrido nas mãos do capitão e que foi mencionada brevemente durante o julgamento Pigot questionou o cirurgião sobre ela Pergunta Não havia uma menina comprada do traficante Jackamachree que estava no mesmo estado que a menina sobre quem temos falado Resposta Eu não sei Pergunta Não havia uma menina com o nome Vênus Resposta Havia Pergunta Ela não estava no mesmo estado Resposta Não que eu saiba39 Havia uma outra menina a bordo do Recovery a quem chamaram Vênus e ela também tinha pústulas40 africanos a sua genealogia perdida inevitavelmente como uma das consequências da escravidão A perda dessa origem é na obra comparada à perda da mãe sugerindo que tanto ela quanto pessoas escravizadas são órfãs e não têm um lugar no mundo NT 37 The Trial of Captain John Kimber for the Murder of Two Female Negro Slaves on Board the Recovery African Slave Ship 1792 2 38 The Whole of the Proceedings and Trial of Captain John Kimber for the Murder of a Negro Girl 1792 1415 39 Ibid 25 40 Trial of Captain Kimber for the Murder of a Negro Girl 1792 19 Dossiê Crise Feminismo e Comunicação httpsrevistaecoposecoufrjbr ISSN 21758689 v 23 n 3 2020 DOI 1029146ecoposv23i327640 24 Quando o capitão foi absolvido do assassinato da primeira garota ele também foi considerado inocente da segunda acusação Como não havia mais evidência para sustentar o segundo indiciamento do que a que sustentava o primeiro o júri também absolveu o prisioneiro em relação a ele41 Essas foram as únicas palavras faladas sobre Vênus durante o julgamento Escrevi duas frases sobre Vênus em O Livro Morto mascarando meu próprio silêncio atrás do de Wilberforce Sobre ele digo Ele escolheu não falar de Vênus a outra garota morta O apelido carinhoso autorizou a devassidão e o fez soar agradável42 Decidi não escrever sobre Vênus por razões diferentes daquelas que atribuí a ele Ao contrário eu temia o que poderia inventar e teria sido um romance Se eu pudesse ter invocado mais do que um nome em uma acusação se eu pudesse ter imaginado Vênus falando em sua própria voz se eu pudesse ter detalhado as pequenas memórias banidas do livro de contabilidade então teria sido possível que eu representasse a amizade que poderia ter florescido entre duas garotas assustadas e solitárias Companheiras de navio Então Vênus poderia ter assistido sua amiga moribunda sussurrado conforto em seu ouvido a embalado com promessas a acalmado com logo logo e desejado a ela um bom regresso Imagine as duas as relíquias de duas garotas uma acalentando a outra inocentes espoliadas um marinheiro avistou as duas e mais tarde disse que eram amigas Duas garotas sem mundo encontraram um país nos braços uma da outra Ao lado da derrota e do terror haveria isso também o vislumbre de beleza o instante de possibilidade 41 Trial of Captain John Kimber for the Murder of Two Female Negro Slaves 36 The Trial of Captain Kimber for the Supposed Murder of an African Girl at the Admiralty Sessions 1792 43 42 Hartman Lose Your Mother 143 Dossiê Crise Feminismo e Comunicação httpsrevistaecoposecoufrjbr ISSN 21758689 v 23 n 3 2020 DOI 1029146ecoposv23i327640 25 A perda de histórias aguça a fome por elas Então é tentador preencher as lacunas e oferecer fechamento onde não há nenhum Criar um espaço para o luto onde ele é proibido Fabricar uma testemunha para uma morte não muito notada Em um estado livre teria sido possível para as garotas atentar para a morte de uma amiga e derramarem lágrimas pela perda mas um navio negreiro não permitia o luto e quando detectado os instrumentos de tortura eram empregados para erradicálo Mas o consolo dessa visão uma vida reconhecida e lamentada no abraço de duas garotas estava em desacordo com a violência aniquiladora do navio negreiro e com virtualmente tudo o que eu já tinha escrito Inicialmente pensei que queria representar as afiliações rompidas e refeitas no oco do navio negreiro imaginando as duas garotas como amigas dandoas uma à outra Mas no final fui forçada a admitir que queria me consolar e escapar do porão dos escravos com uma visão de algo diferente dos corpos de duas garotas se assentando no fundo do Atlântico No fim eu não podia dizer mais sobre Vênus do que tinha dito sobre sua amiga Não tenho certeza se é possível resgatar uma existência a partir de um punhado de palavras o suposto assassinato de uma garota negra43 Eu não podia mudar coisa alguma A garota nunca terá qualquer existência fora do domicílio precário das palavras que permitiu que ela fosse assassinada44 Eu não poderia ter chegado a outra conclusão Então era melhor deixálas como eu as tinha encontrado Duas garotas sozinhas A reprise Escolhi não contar uma história sobre Vênus porque fazer isso teria significado ultrapassar as fronteiras do arquivo A História se compromete a ser fiel aos limites do fato da evidência e do arquivo ainda que tais certezas mortas sejam produzidas pelo terror Eu queria escrever um romance que excedesse as 43 Hartman Lose Your Mother 137 44 Ibid Dossiê Crise Feminismo e Comunicação httpsrevistaecoposecoufrjbr ISSN 21758689 v 23 n 3 2020 DOI 1029146ecoposv23i327640 26 ficções da história os rumores escândalos mentiras evidências inventadas confissões fabricadas fatos voláteis metáforas impossíveis eventos casuais e fantasias que constituem o arquivo e determinam o que pode ser dito sobre o passado Eu desejava escrever uma nova história que não fosse limitada pelos constrangimentos dos documentos legais e fosse além da reiteração e das transposições que constituíram minha estratégia para desordenar e transgredir os protocolos do arquivo e a autoridade de suas afirmações e que me permitiram aumentar e intensificar suas ficções Encontrar um modo estético apropriado ou adequado para retratar as vidas dessas duas garotas decidir como dispor as linhas na página permitir que o rastro narrativo seja reencaminhado ou quebrado pelos sons da memória os lamentos e prantos e cânticos fúnebres desatados no convés e tentar perturbar as disposições do poder ao imaginar Vênus e sua amiga fora dos termos de declarações e julgamentos que as baniram da categoria do humano e decretaram que suas vidas eram descartáveis45 tudo isso estava além do que podia ser pensado dentro dos parâmetros da História O romance de resistência que fracassei em narrar e o evento de amor que me recusei a descrever levantam questões importantes sobre o que significa pensar historicamente sobre assuntos ainda contestados no presente e sobre a vida erradicada pelos protocolos de disciplinas intelectuais O que é necessário para imaginar um estado livre ou para contar uma história impossível É preciso que a poética de um estado livre antecipe seu acontecimento e imagine a vida após o homem em vez de esperar pelo momento sempre retrocedente do Jubileu É preciso que o futuro da abolição seja performado primeiro na folha de papel Ao retirarme diante da história dessas duas garotas será que eu estava sustentando as regras da corporação histórica e as certezas manufaturadas de seus assassinos e ao fazêlo eu não tinha selado seu destino46 Não tinha também eu relegado as 45 Ver Sylvia Wynter Unsettling the Coloniality of BeingPowerTruthFreedom CR The New Centennial Review 3 no 3 2003 257337 46 Stephan Palmié Wizards and Scientists Explorations in AfroCuban Modernity and Tradition Durham Duke University Press 2002 94 Ver também MichelRolph Trouillot Silencing the Past Boston Beacon Press 1997 Dossiê Crise Feminismo e Comunicação httpsrevistaecoposecoufrjbr ISSN 21758689 v 23 n 3 2020 DOI 1029146ecoposv23i327640 27 duas ao esquecimento No final das contas não era melhor deixálas como as encontrei Uma história de fracasso Se não é possível desfazer a violência que inaugura o escasso registro da vida de uma garota ou remediar seu anonimato com um nome ou traduzir a fala da mercadoria então com que finalidade contamos tais histórias Como e por que escrevemos uma História de violência Por que revisitar o acontecimento ou o não acontecimento da morte de uma garota O arquivo da escravidão repousa sobre uma violência fundadora Essa violência determina regula e organiza os tipos de afirmações que podem ser formuladas sobre a escravidão e também cria sujeitos e objetos de poder47 O arquivo não fornece um relato exaustivo da vida da garota mas cataloga as afirmações que autorizaram sua morte Todo o resto é uma espécie de ficção donzela vivaz vadia carrancuda Vênus garota A economia do roubo e o poder sobre a vida que definiram o tráfico negreiro fabricaram mercadorias e cadáveres Mas carga massas inertes e coisas não se prestam à representação ao menos não facilmente Em Lose Your Mother tentei colocar em primeiro plano a experiência das pessoas escravizadas traçando o itinerário de um desaparecimento e narrando histórias que são impossíveis de contar O objetivo era expor e explorar a incomensurabilidade entre a experiência das pessoas escravizadas e as ficções da História ou seja as exigências da narrativa a substância de temas e enredos e fins E como se conta histórias impossíveis Histórias sobre garotas com nomes que deformam e desfiguram sobre as palavras trocadas entre companheiras de navio que nunca adquiriram qualquer reconhecimento diante da lei e que não foram registradas no arquivo sobre os apelos preces e segredos nunca proferidos porque não havia ninguém para recebêlos A comunicação furtiva que pode ter se passado entre duas garotas mas que ninguém da tripulação observou ou relatou 47 Michel Foucault A arqueologia do saber 7ª ed Tradução Luiz Felipe Baeta Neves Rio de Janeiro Forense Universitária 2008 p 145147 Dossiê Crise Feminismo e Comunicação httpsrevistaecoposecoufrjbr ISSN 21758689 v 23 n 3 2020 DOI 1029146ecoposv23i327640 28 afirma o que já sabemos ser verdade o arquivo é inseparável do jogo de poder que assassinou Vênus e sua companheira de navio e que exonerou o capitão E esse conhecimento não nos aproxima de uma compreensão das vidas de duas garotas cativas ou da violência que as destruiu e nomeou a ruína Vênus Nem pode explicar por que razão nesta data tardia ainda queremos escrever histórias sobre elas É possível exceder ou negociar os limites constitutivos do arquivo Ao propor uma série de argumentos especulativos e ao explorar as capacidades do subjuntivo um modo gramatical que expressa dúvidas desejos e possibilidades ao moldar uma narrativa que se baseia na pesquisa de arquivo e com isso quero dizer uma leitura crítica do arquivo que mimetiza as dimensões figurativas da História eu pretendia tanto contar uma história impossível quanto amplificar a impossibilidade de que seja contada A temporalidade condicional do que poderia ter sido segundo Lisa Lowe simboliza adequadamente o espaço de um tipo diferente de pensamento um espaço de atenção produtiva à cena da perda um pensamento com atenção dupla que procura abranger os objetos e métodos positivos da História e da ciência social e simultaneamente as questões ausentes emaranhadas e indisponíveis pelos seus métodos48 A intenção aqui não é tão miraculosa como recuperar as vidas das pessoas escravizadas ou redimir os mortos mas em vez disso trabalhar para pintar o quadro mais completo possível das vidas de cativos e cativas Este gesto duplo pode ser descrito como um esforço contra os limites do arquivo para escrever uma História cultural do cativeiro e ao mesmo tempo uma encenação da impossibilidade de representar as vidas dos cativos e cativas precisamente por meio do processo de narração O método que guia essa prática de escrita é melhor descrito como fabulação crítica Fábula denota os elementos básicos da história os blocos de construção da narrativa Uma fábula de acordo com Mieke Bal é uma série de eventos relacionados lógica e cronologicamente que são causados e 48 Lisa Lowe The Intimacies of Four Continents in Ann Laura Stoler ed Haunted by Empire Geographies of Intimacy in North American History Durham Duke University Press 2006 208 Dossiê Crise Feminismo e Comunicação httpsrevistaecoposecoufrjbr ISSN 21758689 v 23 n 3 2020 DOI 1029146ecoposv23i327640 29 experimentados por atores Um evento é uma transição de um estado a outro Atores são agentes que realizam ações Não são necessariamente humanos Agir é causar ou experimentar um evento49 Jogando com os elementos básicos da história e rearranjandoos re apresentando a sequência de eventos em histórias divergentes e de pontos de vista em disputa eu tentei comprometer o status do evento deslocar o relato preestabelecido ou autorizado e imaginar o que poderia ter acontecido ou poderia ter sido dito ou poderia ter sido feito Lançando em crise o que aconteceu quando e explorando a transparência das fontes como ficções da História eu queria tornar visível a produção de vidas descartáveis no tráfico atlântico de escravos e também na disciplina da História descrever a resistência do objeto50 mesmo que por apenas imaginálo primeiro e escutar os murmúrios e profanações e gritos da mercadoria Aplainando os níveis do discurso narrativo e confundindo narradora e falantes eu esperava iluminar o caráter contestado da História narrativa evento e fato derrubar a hierarquia do discurso e submergir a fala autorizada no choque de vozes O resultado desse método é uma narrativa recombinante que enlaça os fios de relatos incomensuráveis e que tece presente passado e futuro recontando a história da garota e narrando o tempo da escravidão como o nosso presente51 A contenção narrativa a recusa em preencher as lacunas e dar fechamento é uma exigência desse método assim como o imperativo de respeitar o ruído negro os berros os gemidos o sem sentido e a opacidade que sempre excedem a legibilidade e a lei e que insinuam e encarnam aspirações que são desvairadamente utópicas abandonadas pelo capitalismo e antitéticas ao seu concomitante discurso do Homem52 A intenção dessa prática não é dar voz ao escravo mas antes imaginar o que não pode ser verificado um domínio de experiência que está situado entre 49 Mieke Bal Narratology Introduction to the Theory of Narrative Toronto University of Toronto Press 1997 7 50 Moten In the Break 14 51 Tomo emprestada a noção de narrativa recombinante de Stan Douglass mas a ideia me foi apresentada pelo ensaio não publicado de NourbeSe Philip 52 Ver Stephen Best e Saidiya Hartman Fugitive Justice Representations no 92 Fall 2005 9 Dossiê Crise Feminismo e Comunicação httpsrevistaecoposecoufrjbr ISSN 21758689 v 23 n 3 2020 DOI 1029146ecoposv23i327640 30 duas zonas de morte morte social e corporal e considerar as vidas precárias que são visíveis apenas no momento de seu desaparecimento É uma escrita impossível que tenta dizer o que resiste a ser dito uma vez que garotas mortas são incapazes de falar É uma História de um passado irrecuperável é uma narrativa do que talvez tivesse sido ou poderia ter sido é uma História escrita com e contra o arquivo Reconhecidamente a minha própria escrita é incapaz de ultrapassar os limites do dizível ditados pelo arquivo Ela depende dos registros legais dos diários dos cirurgiões dos livros de contabilidade dos manifestos de carga dos navios e dos diários de bordo e nesse aspecto ela vacila diante do silêncio do arquivo e reproduz as suas omissões A violência irreparável do tráfico atlântico de escravos reside precisamente em todas as histórias que não podemos conhecer e que nunca serão recuperadas Esse obstáculo formidável ou impossibilidade constitutiva define os parâmetros do meu trabalho A necessidade de recontar a morte de Vênus é ofuscada pelo fracasso inevitável de qualquer tentativa de representála Penso que esta é uma tensão produtiva que é inevitável ao narrar as vidas das pessoas subalternas despossuídas e escravizadas Ao recontar a história do que aconteceu a bordo do Recovery enfatizei a incomensurabilidade entre os discursos prevalecentes e o evento amplifiquei a instabilidade e a discrepância do arquivo desprezei a ilusão realista usual na escrita da História e produzi uma contraHistória na intersecção do fictício e do histórico A contraHistória de acordo com Gallagher e Greenblatt opõese não apenas às narrativas dominantes mas também aos modos de pensamento histórico e métodos de pesquisa prevalecentes53 Entretanto a História dos projetos contraHistóricos negros é uma história de fracasso precisamente porque tais relatos nunca foram capazes de se instalarem como História mas são antes narrativas insurgentes perturbadoras que são marginalizadas e descarrilhadas antes sequer de ganhar pé 53 Catherine Gallagher e Stephen Greenblatt CounterHistory and the Anecdote in Practicing New Historicism Chicago University of Chicago 2001 52 Dossiê Crise Feminismo e Comunicação httpsrevistaecoposecoufrjbr ISSN 21758689 v 23 n 3 2020 DOI 1029146ecoposv23i327640 31 Se essa história de Vênus tem algum valor este consiste em iluminar o modo como nossa era está presa à dela Uma relação que outros podem descrever como um tipo de melancolia mas que prefiro descrever como a sobrevida da propriedade quero dizer o detrito de vidas às quais ainda precisamos atentar um passado que ainda não passou e um estado de emergência contínuo em que a vida negra permanece em perigo Por essas razões escolhi me engajar com um conjunto de dilemas sobre a representação a violência e a morte social sem usar a forma de um discurso meta histórico mas performando os limites de escrever a História por meio do ato de narração Fiz isso principalmente porque 1 minha própria narrativa não opera fora da economia de afirmações que ela submete à crítica e 2 aquelas existências relegadas ao não histórico ou consideradas descartáveis exercem uma reivindicação sobre o presente e exigem que imaginemos um futuro no qual a sobrevida da escravidão tenha terminado A necessidade de tentar representar o que não podemos em vez de conduzir ao pessimismo ou desespero deve ser acolhida como a impossibilidade que condiciona nosso conhecimento do passado e anima nosso desejo por um futuro liberto Meu esforço para reconstruir o passado é também uma tentativa de descrever obliquamente as formas de violências autorizadas no presente isto é as formas de morte desencadeadas em nome de liberdade segurança civilização e Deuso bem A narrativa é central para esse esforço por causa da relação explícita ou implicada que ela estabelece entre passado presentes e futuros54 Lutar com a reivindicação da garota sobre o presente é uma forma de nomear nosso tempo pensar nosso presente e visualizar o passado que o criou Infelizmente não descobri uma forma de perturbar o arquivo de modo que possa recordar o conteúdo da vida de uma garota ou revelar uma imagem mais verdadeira nem consegui arrombar o livro morto que selou o estatuto dela como mercadoria A coleção aleatória de detalhes dos quais fiz uso são as mesmas descrições citações literais e transcrições de julgamentos que a destinaram à 54 David Scott Conscripts of Modernity The Tragedy of Colonial Enlightenment Durham Duke University Press 2004 7 Dossiê Crise Feminismo e Comunicação httpsrevistaecoposecoufrjbr ISSN 21758689 v 23 n 3 2020 DOI 1029146ecoposv23i327640 32 morte e tornaram o assassinato não muito notado ao menos de acordo com o cirurgião55 A promiscuidade do arquivo gera uma ampla variedade de leituras mas nenhuma que seja capaz de ressuscitar a garota Meu relato replica a própria ordem de violência contra a qual ele escreve colocando ainda mais uma demanda sobre a garota exigindo que sua vida se torne útil ou instrutiva ao encontrar nela uma lição para nosso futuro ou uma esperança para a História Nós sabemos muito bem É tarde demais para que os relatos de morte previnam outras mortes e é cedo demais para tais cenas de morte interromperem outros crimes Mas enquanto isso no espaço do intervalo entre tarde demais e cedo demais entre o não mais e o ainda não nossas vidas são contemporâneas com a da garota no projeto ainda incompleto da liberdade Enquanto isso é claro que a vida dela e as nossas estão em jogo Então o que se faz enquanto isso Quais são as histórias que se contam em tempos sombrios Como uma narrativa de derrota pode possibilitar um lugar para os vivos ou imaginar um futuro alternativo Michel de Certeau nota que há pelo menos dois modos pelos quais a operação historiográfica pode fabricar um lugar para os vivos um é atentar para o passado e recrutálo em nome dos vivos estabelecendo quem somos em relação a quem fomos e o segundo envolve interrogar a produção do nosso conhecimento sobre o passado56 Nas linhas esboçadas por de Certeau Kindred de Octavia Butler oferece um modelo para uma prática57 Quando Dana a protagonista da ficção especulativa de Butler viaja do século XX para os anos 1820 para encontrar sua ancestral escravizada ela descobre para sua surpresa que não é capaz de resgatar sua família ou escapar das relações emaranhadas de violência e dominação em vez disso acaba aceitando que elas tornaram sua própria existência possível Com isso em mente devemos suportar o que não pode ser suportado a imagem de Vênus acorrentada 55 Trial of Captain John Kimber for the Murder of a Negro Girl 14 Trial of Captain John Kimber for the Supposed Murder of an African Girl 20 O cirurgião testemunhou que castigos brutais a bordo dos navios de escravos eram usuais 56 Michel de Certeau The Writing of History New York Columbia University Press 1992 DE CERTEAU Michel A escrita da História Tradução Maria de Lourdes Menezes Rio de Janeiro Forense Universitária 1982 57 Octavia Butler Kindred Boston Beacon Press 2002 BUTLER Octavia Kindred Laços de Sangue Tradução Carolina Caires Coelho São Paulo Editora Morro Branco 2017 Dossiê Crise Feminismo e Comunicação httpsrevistaecoposecoufrjbr ISSN 21758689 v 23 n 3 2020 DOI 1029146ecoposv23i327640 33 Começamos a história de novo como sempre na esteira de seu desaparecimento e com a esperança desvairada de que nossos esforços possam devolvêla ao mundo A conjunção de esperança e derrota define esse trabalho e deixa em aberto seu resultado A tarefa de escrever o impossível não o fantasioso ou o utópico mas histórias tornadas irreais e fantásticas58 tem como pré requisitos o acolhimento ao provável fracasso e a prontidão para aceitar o caráter contínuo inacabado e provisório desse esforço particularmente quando as disposições do poder ocluem o próprio objeto que desejamos resgatar59 Como Dana nós também emergimos do encontro com um sentido de incompletude e com o reconhecimento de que alguma parte de nós the self está faltando como consequência desse engajamento 58 Palmié Wizards and Scientists 97 59 Slavoj Žižek descreveu isso como uma prática da resignação entusiasmada Entusiasmo ao indicar a experiência do objeto por meio do próprio fracasso de sua representação adequada Entusiasmo e resignação não são assim dois momentos opostos é a própria resignação isto é a experiência de uma certa impossibilidade que incita o entusiasmo Beyond DiscourseAnalysis in Ernesto Laclau ed New Reflections on the Revolution of Our Time New York Verso 1990 259 60
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Dossiê Crise Feminismo e Comunicação httpsrevistaecoposecoufrjbr ISSN 21758689 v 23 n 3 2020 DOI 1029146ecoposv23i327640 12 Vênus em dois atos1 Venus in Two Acts Saidiya Hartman Professora de Letras e Literatura Comparada na Columbia University autora de Scenes of Subjection Terror Slavery and SelfMaking in Nineteenth Century America 1997 Lose Your Mother A Journey Along the Atlantic Slave Route 2007 e Wayward Lives Beautiful Experiments Intimate Histories of Social Upheaval 2019 este último vencedor do National Book Critics Circle Award Ganhadora em 2019 do Prêmio MacArthur Tradução Fernanda Silva e Sousa Doutoranda no Programa de PósGraduação em Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo Marcelo R S Ribeiro Professor de História e Teorias do Cinema e do Audiovisual na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia Revisão Kênia Freitas e Liv Sovik Submetido em 26 de Setembro de 2020 Aceito em 14 de Novembro de 2020 1 Publicado originalmente como HARTMAN Saidiya Venus in Two Acts In Small Axe Volume 12 no 2 pp 114 Copyright 2008 Small Axe Inc Todos os direitos reservados Republicado com permisão da Duke University Press wwwdukeupressedu Acesso em httpsdoiorg101215 1221 Esta tradução ao português será incluída em uma antologia de black studies organizada por André Arias Clara Barzaghi e Stella Paterniani a ser lançado pela Crocodilo Edições e Bazar do Tempo em 2021 Dossiê Crise Feminismo e Comunicação httpsrevistaecoposecoufrjbr ISSN 21758689 v 23 n 3 2020 DOI 1029146ecoposv23i327640 13 RESUMO Este ensaio examina a ubíqua presença de Vênus no arquivo da escravidão atlântica e luta com a impossibilidade de descobrir qualquer coisa sobre ela que já não tenha sido afirmada Como figura emblemática da mulher escravizada no mundo atlântico Vênus evidencia a convergência do terror e do prazer na economia libidinal da escravidão assim como a intimidade da História com o escândalo e o excesso de literatura Ao escrever no limite do indizível e do desconhecido o ensaio mimetiza a violência do arquivo e tenta reparála ao descrever tão plenamente quanto possível as condições que determinam a aparição de Vênus e que ditam seu silêncio PALAVRASCHAVE arquivo narrativa escravidão violência Vênus ABSTRACT This essay examines the ubiquitous presence of Venus in the archive of Atlantic slavery and wrestles with the impossibility of discovering anything about her that hasnt already been stated As an emblematic figure of the enslaved woman in the Atlantic world Venus makes plain the convergence of terror and pleasure in the libidinal economy of slavery and as well the intimacy of history with the scandal and excess of literature In writing at the limit of the unspeakable and the unknown the essay mimes the violence of the archive and attempts to redress it by describing as fully as possible the conditions that determine the appearance of Venus and that dictate her silence KEYWORDS archive narrative slavery violence Venus Nesta encarnação ela aparece no arquivo da escravidão como uma garota morta nomeada em uma acusação judicial contra um capitão de navio negreiro julgado pelo assassinato de duas garotas negras Mas nós poderíamos têla encontrado de modo igualmente fácil no livro de contabilidade de um navio no registro de débitos ou no diário de um feitor ontem à noite eu deitei com Dido no chão ou como uma companheira amorosa de cama com uma bolsa tão elástica que conterá a maior coisa com a qual qualquer cavalheiro possa presenteála na Harriss List of Covent Garden Ladies2 ou como a amante na narrativa de um soldado mercenário no Suriname ou como uma proprietária de um bordel no relato de um viajante sobre as prostitutas de Barbados ou como uma personagem 2 A Lista de Harris das Senhoras de Covent Garden em tradução livre foi impressa e publicada anualmente no formato de um almanaque entre 1757 e 1795 no distrito de Covent Garden em Londres A publicação reunia descrições físicas e especialidades sexuais de mais de uma centena de prostitutas que trabalhavam na cidade NT Dossiê Crise Feminismo e Comunicação httpsrevistaecoposecoufrjbr ISSN 21758689 v 23 n 3 2020 DOI 1029146ecoposv23i327640 14 menor em um romance pornográfico do século XIX3 Variavelmente chamada de Harriot Phibba Sara Joanna Rachel Linda e Sally ela é encontrada em todo lugar no mundo atlântico O entreposto de escravos o oco do navio negreiro a casa de pragas o bordel a jaula o laboratório do cirurgião a prisão o canavial a cozinha o quarto do senhor de escravos acabam por se revelar exatamente o mesmo lugar e em todos eles ela é chamada de Vênus O que mais há para saber Seu destino é o mesmo de qualquer outra Vênus Negra ninguém lembrou do seu nome ou registrou as coisas que ela disse ou observou que ela se recusou totalmente a dizer alguma coisa4 A sua história5 contada por uma testemunha falha é extemporânea Seriam necessários séculos para que lhe fosse permitido provar sua língua6 Eu poderia dizer seguindo um filósofo famoso que o que sabemos de Vênus em suas muitas formas equivale a pouco mais do que um registro do seu encontro com o poder e que isso fornece um esboço insuficiente de sua existência7 Um ato de acaso ou desastre produziu uma divergência ou uma aberração em relação ao curso esperado e usual de invisibilidade e a catapultou do subterrâneo para a superfície do discurso Nós nos deparamos com ela em circunstâncias exorbitantes que não produzem nenhuma imagem da vida cotidiana nenhum caminho para seus pensamentos nenhum vislumbre da vulnerabilidade de seu rosto ou do que olhar para tal rosto poderia exigir Nós só sabemos o que pode ser extrapolado a partir de uma análise do livro de 3 Last night cum Dido Feitor na Jamaica Thomas Thistlewood relata em latim suas façanhas sexuais com mulheres escravizadas Cum sup terr Eu fodi com ela no chão In Douglas Hall ed In Miserable Slavery Thomas Thistlewood in Jamaica 17501756 Kingston The Press University of the West Indies 1998 31 Samuel Derrick Harriss List of CoventGarden Ladies or Man of Pleasures Kalendar for the Year 1793 London 1793 reimpressão Edinburgh Paul Harris Publishing 1982 83 John Gabriel Stedman Stedmans Surinam Life in an EighteenthCentury Slave Society org Richard Price e Sally Price Baltimore Johns Hopkins University Press 1992 4 Para um relato estendido do dilema de Vênus ver o livro de Janelle Hobson Venus in the Dark Blackness and Beauty in Popular Culture New York Routledge 2005 5 No decorrer do ensaio Hartman utiliza variavelmente as palavras history e story Optamos por distinguir entre esses termos um denotando a história dos historiadores e outro relatos ficcionais ou não estórias que se contam pelo uso hoje antiquado do H maiúscula quando se trata da história maior da historiografia NT 6 Ver M NourbeSe Philip She Tries Her Tongue Her Silence Softly Breaks London The Womens Press 1993 7 Michel Foucault A vida dos homens infames In Estratégia podersaber Ditos e escritos IV Tradução Vera Lucia Avellar Ribeiro Rio de Janeiro Forense Universitária 2003 p 207 Dossiê Crise Feminismo e Comunicação httpsrevistaecoposecoufrjbr ISSN 21758689 v 23 n 3 2020 DOI 1029146ecoposv23i327640 15 contabilidade ou emprestado do mundo de seus captores e senhores e aplicado a ela No entanto precisase transformar o exorbitante em exemplar ou típico para que a vida dela forneça uma janela para as vidas das pessoas escravizadas em geral Não se pode perguntar Quem é Vênus porque seria impossível responder a essa pergunta Há centenas de milhares de outras garotas que compartilham as suas circunstâncias e essas circunstâncias geraram poucas histórias E as histórias que existem não são sobre elas mas sobre a violência o excesso a falsidade e a razão que se apoderaram de suas vidas transformaramnas em mercadorias e cadáveres e identificaramnas com nomes lançados como insultos e piadas grosseiras O arquivo nesse caso é uma sentença de morte um túmulo uma exibição do corpo violado um inventário de propriedade um tratado médico sobre gonorréia umas poucas linhas sobre a vida de uma prostituta um asterisco na grande narrativa da História Dado isso é sem dúvida impossível apreender essas vidas de novo em si mesmas como se elas estivessem em um estado livre8 Fora do mundo e de volta Mas eu quero dizer mais do que isso Eu quero fazer mais do que recontar a violência que depositou esses traços no arquivo Eu quero contar uma história sobre duas garotas capazes de recuperar o que permanece adormecido a aderência ou reivindicação de suas vidas no presente sem cometer mais violência em meu próprio ato de narração É uma história fundamentada na impossibilidade de escutar o não dito traduzir palavras mal interpretadas e remodelar vidas desfiguradas e decidida a atingir um objetivo impossível reparar a violência que produziu números códigos e fragmentos de discurso que é o mais próximo que nós chegamos a uma biografia da cativa e da escravizada Entretanto como recuperar vidas emaranhadas com e impossíveis de diferenciar dos terríveis enunciados que as condenaram à morte dos livros de contabilidade que as identificaram como unidades de valor das faturas que as 8 Ibid p 208 Dossiê Crise Feminismo e Comunicação httpsrevistaecoposecoufrjbr ISSN 21758689 v 23 n 3 2020 DOI 1029146ecoposv23i327640 16 afirmaram como propriedades e das crônicas banais que as despojaram de características humanas Pode o choque de tais palavras como Foucault escreve dar origem a um certo efeito de beleza misturado com terror9 Nós podemos como NourbeSe Phillip sugere conjurar alguma coisa nova a partir da ausência dos africanos como humanos que está no coração do texto10 Se sim quais são as feições dessa nova narrativa Colocando de modo diferente como se reescreve a crônica de uma morte prevista e antecipada como uma biografia coletiva de sujeitos mortos como uma contraHistória do humano como prática da liberdade Como a narrativa pode encarnar a vida em palavras e ao mesmo tempo respeitar o que não podemos saber Como alguém ouve os gemidos e gritos as canções indecifráveis o crepitar do fogo nos canaviais os lamentos pelos mortos e os brados de vitória e então atribui palavras a tudo isso É possível construir um relato a partir do locus da fala impossível ou ressuscitar vidas a partir das ruínas11 Pode a beleza fornecer um antídoto à desonra e o amor uma maneira de exumar gritos enterrados e reanimar os mortos12 Ou é a narração sua própria dádiva e seu próprio fim isto é tudo que é realizável quando a superação do passado e a redenção dos mortos não o são E de qualquer forma o que as histórias tornam possível Um jeito de viver no mundo no rescaldo da catástrofe e da devastação Uma casa no mundo para o ser self mutilado e violado13 Para quem para nós ou para elas A escassez de narrativas africanas sobre o cativeiro e a escravização exacerba a pressão e a gravidade de tais questões Não há uma única narrativa 9 Ibid p 206 10 M NourbeSe Philip Zong Middletown Wesleyan University Press 2008 11 Stephen Best The African Queen ensaio não publicado 12 Assia Djebar Fantasia An Algerian Calvacade trans Dorothy S Blair London Heinneman 1993 13 Relendo o conto de Saadat Hasan Manto Khol Do em que um pai reivindica o corpo violado de sua filha Veena Das escreve Esse pai deseja que a sua filha viva mesmo que partes de seu corpo não possam fazer nada além de proclamar sua brutal violação Ele cria através de sua enunciação Minha filha está viva minha filha está viva um lar para o mutilado e violado eu de sua filha Veena Das Life and Words Violence and the Descent into the Ordinary Berkeley University of California Press 2007 39 47 Dossiê Crise Feminismo e Comunicação httpsrevistaecoposecoufrjbr ISSN 21758689 v 23 n 3 2020 DOI 1029146ecoposv23i327640 17 autobiográfica de uma mulher cativa que sobreviveu à Passagem do Meio14 Esse silêncio no arquivo em combinação com a robustez do forte ou do entreposto de escravos não como uma cela de detenção ou espaço de confinamento mas como episteme faz com que a historiografia do tráfico escravista em sua maior parte focalize assuntos quantitativos e questões de mercados e relações comerciais15 A perda dá origem ao anseio e nessas circunstâncias não seria exagerado considerar as histórias como uma forma de compensação ou mesmo como reparações talvez o único tipo que nós iremos receber Como uma escritora comprometida em contar histórias eu tenho me esforçado em representar as vidas dos sem nomes e dos esquecidos em considerar a perda e respeitar os limites do que não pode ser conhecido Para mim narrar contraHistórias da escravidão tem sido sempre inseparável da escrita de uma História do presente ou seja o projeto incompleto de liberdade e a vida precária doa exescravoa16 uma condição definida pela vulnerabilidade à morte prematura e a atos gratuitos de violência17 Conforme eu a entendo uma História do presente luta para iluminar a intimidade da nossa experiência com as vidas dos mortos para escrever nosso agora enquanto ele é interrompido por esse passado e para imaginar um estado livre não como o tempo antes do cativeiro ou da escravidão mas como o antecipado futuro dessa escrita 14 Em inglês essa travessia é comumente chamada de Middle Passage o comércio triangular de escravizados que envolvia a África as Américas e a Europa e era realizado através do Oceano Atlântico a passagem do meio entre os três continentes NT 15 Stephanie Smallwood Saltwater Slavery Cambridge Harvard University Press 2007 16 Em inglês Hartman escreve the precarious life of the exslave recorrendo a termos que não têm marcação de gênero gramatical No decorrer do texto definimos o gênero gramatical dos substantivos e adjetivos que traduzem o texto de Hartman de acordo com o contexto em que aparecem Mais abaixo por exemplo quando Hartman se refere a the dead traduzimos simplesmente por os mortos sem marcar explicitamente a questão no próprio texto embora ela deva ser considerada já que se trata de mortos e mortas na história da escravidão Em outro momento quando a autora se refere a uma cultural history of the captive traduzimos como história cultural do cativeiro mas quando ela se refere às lives of the captives optamos por vidas dos cativos e cativas já que a expressão aponta para a concretude histórica de existências individuais e Hartman está particularmente interessada no lugar histórico das mulheres NT 17 Achille Mbembe On the Postcolony Berkeley University of California Press 2001 17374 Mbembe aborda a arbitrária e caprichosa natureza do poder colonizador em retirar do mundo e matar o que já havia sido previamente decretado como nada como uma figura vazia 189 Dossiê Crise Feminismo e Comunicação httpsrevistaecoposecoufrjbr ISSN 21758689 v 23 n 3 2020 DOI 1029146ecoposv23i327640 18 Essa escrita é pessoal porque essa História me engendrou porque o conhecimento do outro me marca18 por causa da dor experimentada em meu encontro com os fragmentos do arquivo e por causa dos tipos de histórias que construí para fazer a ponte entre o passado e o presente e dramatizar a produção do nada cômodos vazios e silêncio e vidas reduzidas ao descarte Quais são os tipos de histórias a serem contadas por e sobre aqueles e aquelas que vivem em tal relacionamento íntimo com a morte Romances Tragédias Gritos que fazem seu caminho para a fala e a canção Quais são os protocolos e limites que moldam as narrativas escritas como contraHistória uma aspiração que não é um profilático contra os riscos decorrentes ao reiterar discursos violentos e representar novamente rituais de tortura Como se revisita a cena de sujeição sem replicar a gramática da violência A beleza terrível que reside em tal cena é de algum modo semelhante a um remédio como Fred Moten pareceria sugerir19 O tipo de beleza terrível e de música terrível que ele discerne nos gritos de Tia Hester20 transformados nas canções da Great House Farm21 ou na fotografia da face destruída de Emmett Till22 e a acuidade do olhar23 que surge 18 Das Life and Words 17 19 Fred Moten In the Break Minneapolis University of Minnesota 2003 1422 198200 O primeiro dos dois trechos citados aqui foi publicado em português sob o título A resistência do objeto o grito da Tia Hester In ECOPós Vol 23 No 1 2020 Disponível en httpsdoiorg1029146ecoposv23i127542 20 Tia Hester era a tia de Frederick Douglass exescravizado orador e abolicionista afroamericano Quando criança viu sua tia ser espancada por um feitor a ponto de ficar completamente ensanguentada Esse episódio que aparece no primeiro capítulo de sua Narrativa da Vida foi um dos relatos pelos quais caracteriza a escravidão Moten e Hartman discutem em seus textos a oportunidade e problemas de reiterar e portanto reencenar a tortura da Tia Hester NT 21 A Great House Farm era a sede das plantações em que Douglass nasceu e trabalhou como escravo Ele relata a ida mensal de escravizados para essa sede para retirar os mantimentos Descreve seu canto como algo que expressava para quem ouvisse os horrores da escravidão Moten usa esse trecho de Douglass para esboçar uma posição que ele compartilha com Hartman que a escravidão não pode ser entendida somente pelas torturas e a opressão que impôs e que esses autores relutam em rerepresentar mas pela beleza criada pelas pessoas escravizadas O texto de Moten lida exatamente com a contradição paradoxo e dilema que esse fato constitui diante de quem observa e ouve A gravação de Protest de Max Roach e Abbey Lincoln citada por Moten mostra o que ele está argumentando NT 22 Em agosto de 1955 quando Emmett Till um garoto afroamericano de 14 anos criado em Chicago visitava parentes em uma pequena cidade de Mississipi foi acusado de assobiar para uma mulher branca O marido e cunhado dessa mulher o torturam mutilaram e mataram com um tiro na cabeça alguns dias depois A mãe de Emmett Mamie Till Mobley decidiu como uma forma de denunciar a violência racista deixar o caixão de seu filho aberto no velório expondo seu rosto desfigurado e destruído para que o mundo pudesse ver o que ela jamais conseguiria descrever Os Dossiê Crise Feminismo e Comunicação httpsrevistaecoposecoufrjbr ISSN 21758689 v 23 n 3 2020 DOI 1029146ecoposv23i327640 19 da disposição de olhar para o caixão aberto As possibilidades superam os perigos de olhar de novo Se ler o arquivo é entrar em um necrotério permitindo uma visualização final e autorizando um último vislumbre de pessoas prestes a desaparecer no porão de escravos24 então com qual fim alguém abre o caixão e olha para a face da morte Por que arriscar a contaminação envolvida na reafirmação das maldições obscenidades colunas de perdas e ganhos e medidas de valor pelas quais as vidas cativas eram inscritas e extintas Por que sujeitar os mortos a novos perigos e a uma segunda ordem de violência Ou são as palavras do mercador a ponte para os mortos ou os túmulos escriturários em que eles esperam por nós Tais preocupações sobre a ética da representação histórica explicam em parte os dois atos do título Eu preciso revisitar e revisar meu próprio relato anterior sobre a morte de Vênus em O Livro Morto25 e também os dois atos anunciam o inevitável retorno de Vênus tanto como fantasma haint26 ou seja o que assombra o presente quanto como vida descartável O relato do mercador sobre mortalidade evidencia a inevitabilidade da repetição Melancolia desinteria idem idem Em vez do esforço desperdiçado de traçar uma linha sobre menina magra ou escrever um recusar menino o livro de contabilidade introduz outra morte por meio dessa taquigrafia E nos devolve os mortos na própria forma em que foram expulsos do mundo27 assassinos foram processados no mês seguinte e um júri de brancos os considerou não culpados Meses depois confessaram o crime em uma matéria de revista de grande circulação A brutalidade do assassinato foi tanta e o gesto da mãe tão certeira que essa morte foi creditada como a de George Floyd está sendo agora com o início de uma nova fase da luta contra o racismo nos Estados Unidos NT 23 Elaine Scarry On Beauty and Being Just Princeton Princeton University Press 2001 14 O texto discute como o olhar se altera com a percepção de beleza que antes não era vista ou com a perda da percepção de beleza em um objeto antes admirado A acuidade do olhar é necessária para perceber essas alterações NT 24 Saidiya Hartman Lose Your Mother New York Farrar Straus and Giroux 2007 17 25 Ibid 13653 26 Haint substantivo originado do verbo em inglês haunt é um fantasma raivoso que assombra casas A palavra provavelmente tem origem entre os Gullah Geechee descendentes de escravizados que viviam na Carolina do Sul nos Estados Unidos NT 27 Michel Foucault A vida dos homens infames In Estratégia podersaber Ditos e escritos IV Tradução Vera Lucia Avellar Ribeiro Rio de Janeiro Forense Universitária 2003 p 207 Dossiê Crise Feminismo e Comunicação httpsrevistaecoposecoufrjbr ISSN 21758689 v 23 n 3 2020 DOI 1029146ecoposv23i327640 20 O caixão aberto o escândalo do arquivo Escândalo e excesso inundam o arquivo os números brutos das contas de mortalidade a sonegação estratégica e a desonestidade do registro do capitão as cartas floridas e sentimentais despachadas de portos de escravos por mercadores com saudades de casa as histórias encantatórias de violência chocante escritas por abolicionistas os relatos fascinados de testemunhas oculares feitos por soldados mercenários ansiosos para divulgar o que a decência os proíbe de revelar e os rituais de tortura os espancamentos enforcamentos e amputações consagradas como lei O investimento libidinal na violência é aparente em toda parte nos documentos declarações e instituições que decidem nosso conhecimento do passado O que foi dito e o que pode ser dito sobre Vênus tem como certo o tráfego entre fato fantasia desejo e violência Confirmações disso são abundantes Vamos começar com James Barbot o capitão da Fragata de Albion que atestou a coincidência dos prazeres proporcionados no espaço da morte Era difícil exercer contenção sexual no navio negreiro confessou Barbot porque as jovens donzelas vivazes cheias de alegria e bom humor proporcionavam uma abundância de recreação28 Falconbridge29 endossa isso ampliando o deslizamento entre vítimas e namoradinhas atos de amor e excessos brutais A bordo de alguns navios os marinheiros comuns podem ter relações sexuais com as mulheres negras cujo consentimento podem obter E sabese que alguns deles levaram a inconstância de suas amantes tão a sério a ponto de pularem ao mar e se afogarem Somente Olaudah Equiano30 retrata a violência habitual do navio negreiro sem recorrer à linguagem do romance Era quase uma prática comum entre nossos empregados e outros brancos cometer violentas depredações da castidade das escravas Eu tenho conhecimento de que nossos oficiais cometiam esses atos da maneira mais 28 A Voyage in the Albion Frigate in Churchills Voyages vol 5 1732 republicado em George Francis Dow Slave Ships and Slaving New York Dow 2002 81 29 Alexander Falconbridge 17601791 foi um cirurgião britânico que participou de quatro viagens em navios negreiros entre 1780 e 1787 NT 30 Olaudah Equiano 17451797 foi um exescravizado abolicionista marinheiro e escritor nigeriano que escreveu uma autobiografia chamada The Interesting Narrative of the Life of Olaudah Equiano publicada em 1789 NT Dossiê Crise Feminismo e Comunicação httpsrevistaecoposecoufrjbr ISSN 21758689 v 23 n 3 2020 DOI 1029146ecoposv23i327640 21 vergonhosa para a desgraça não apenas de cristãos mas também dos homens Eu tenho conhecimento até mesmo de que eles satisfazem sua paixão brutal com meninas de menos de dez anos de idade e alguns deles praticaram essas abominações com tal escandaloso excesso que um dos nossos capitães dispensou o oficial e outros por causa disso ênfase minha31 A situação piora na plantação Os estupros em série e as punições com excrementos perpetrados por Thomas Thistlewood32 oferecem um relato vívido dos prazeres extorquidos pela destruição e pela degradação da vida e ao mesmo tempo iluminam a dificuldade de recuperar vidas escravizadas das forças aniquiladoras de uma descrição como essa Dei nele uma chicotada moderada conservei ele bem em salmoura suco de limão e pimenta fiz Hector cagar em sua boca imediatamente colocar uma mordaça nela enquanto estava cheia o fiz usá lo por 4 ou 5 horas33 Enquanto o registro diário de tais abusos constitui sem dúvidas uma História da escravidão a tarefa mais difícil é exumar as vidas enterradas sob essa prosa ou em vez disso aceitar que Phibba e Dido existem apenas dentro dos confins dessas palavras e que esta é a maneira como eles entram na História O sonho é liberar essas vidas das obscenas descrições que primeiro as apresentaram para nós É fácil demais odiar um homem como Thistlewood o que é mais difícil é reconhecer como nossa herança as frases latinas brutais que se derramam nas páginas dos seus diários Ao entrar no arquivo da escravidão o inimaginável assume a forma da prática cotidiana que nunca deixamos de esquecer enquanto olhamos boquiabertas os rostos sombrios e torsos desnudos de Delia Drana Renty e Jack ou nos horrorizamos diante do corpo mutilado de Anarcha ou admiramos uma Diana nua tão linda que até o traje mais esplêndido não pode lhe acrescentar 31 Alexander Falconbridge An Account of the Slave Trade on the Coast of Africa London J Phillips 1780 2324 Olaudah Equiano The Interesting Narrative 1789 reprint New York Penguin 1995 104 32 Thomas Thistlewood 17211786 foi um feitor e proprietário britânico de terras e de escravizados na Jamaica que escreveu 37 diários sobre sua vida e a escravidão detalhando o tratamento destinado aos cativos Seus textos são considerados um importante documento histórico sobre o sistema escravista na Jamaica e o tráfico atlântico NT 33 Hall In Miserable Slavery 72 Dossiê Crise Feminismo e Comunicação httpsrevistaecoposecoufrjbr ISSN 21758689 v 23 n 3 2020 DOI 1029146ecoposv23i327640 22 qualquer elegância34 Outros aparecem sob a pressão e a incitação do discurso uma flagelada e uma hotentote35 Uma vadia carrancuda Uma preta morta Uma puta sifilítica Falas inapropriadas expressões obscenas e comandos arriscados dão origem aos personagens com os quais nós nos deparamos no arquivo Dada a condição em que os encontramos a única certeza é que os perderemos novamente que eles irão expirar ou escapar da nossa compreensão ou desmoronar sob a pressão da investigação Esse é o único fato sobre Vênus do qual podemos ter certeza Então é possível reiterar seu nome e contar uma história sobre matéria degradada e vida desonrada que não encanta e excita mas em vez disso se aventura em direção a outro modo de escrita Se não é mais suficiente expor o escândalo então como seria possível gerar um conjunto diferente de descrições a partir desse arquivo Imaginar o que poderia ter sido Visualizar um estado livre a partir dessa ordem de afirmações Os perigos envolvidos nessa tentativa não podem ser colocados entre parênteses ou evitados por causa da inevitabilidade da reprodução dessas cenas de violência que definem o estado da negritude e a vida dao exescravao Pelo contrário esses perigos estão situados no coração do meu trabalho tanto nas histórias que escolhi contar como naquelas que evitei Aqui eu gostaria de retornar a uma história que preferi não contar ou não conseguia contar em Lose Your Mother36 É uma história sobre Vênus a outra garota que morreu a bordo do Recovery e a quem fiz apenas uma breve referência 34 Stedman Stedmans Surinam 248 Delia Drana Renty e Jack eram sujeitos fotográficos do estudo de Louis Aggasiz sobre poligênese Aranchna era uma das onze escravizadas usadas como experimentos por Morton Sims o fundador da ginecologia Ver Harriet Washington Medical Apartheid The Dark History of Medical Experimentation from Colonial Times to the Present New York Harlem Moon 2006 35 O termo hotentote corresponde à designação colonial do povo khoisan grupo étnico do Sudoeste africano Entre 1810 e sua morte em 1815 Sara Baartman frequentemente chamada pelo diminutivo em holandês Saartjie foi uma das mulheres khoisan expostas em diversas cidades europeias em casas de espetáculo de variedades e outros contextos metropolitanos além de ter sido objeto de estudos pseudocientíficos racistas em função das características de seu corpo Ela se tornou conhecida como Vênus Hotentote NT 36 Publicado em 2007 Lose Your Mother A Journey Along the Atlantic Slave Route é um livro que transita entre história romance e autobiografia Nele Harman retoma o tráfico atlântico a partir de sua viagem a Gana quando buscou reconstituir através de fragmentos e indícios da captura de Dossiê Crise Feminismo e Comunicação httpsrevistaecoposecoufrjbr ISSN 21758689 v 23 n 3 2020 DOI 1029146ecoposv23i327640 23 O segundo ato Duas garotas morreram a bordo do Recovery O capitão John Kimber foi indiciado por ter espancado e torturado uma escrava de modo criminoso cruel e com malícia premeditada de maneira a causar a morte dela e ele foi novamente indiciado por ter causado a morte de outra escrava37 Em 7 de junho de 1792 o Sr Pigot advogado do prisioneiro berrou o nome Vênus ao interrogar o cirurgião Thomas Dowling uma das duas testemunhas da tripulação do navio que atestaram que tinham visto o Capitão John Kimber assassinar uma garota negra De acordo com o depoimento do cirurgião o capitão a açoitou repetidamente com um chicote e sucessivamente por vários dias muito severamente causando sua morte38 Vênus não era aquela garota negra mas outra que tinha morrido nas mãos do capitão e que foi mencionada brevemente durante o julgamento Pigot questionou o cirurgião sobre ela Pergunta Não havia uma menina comprada do traficante Jackamachree que estava no mesmo estado que a menina sobre quem temos falado Resposta Eu não sei Pergunta Não havia uma menina com o nome Vênus Resposta Havia Pergunta Ela não estava no mesmo estado Resposta Não que eu saiba39 Havia uma outra menina a bordo do Recovery a quem chamaram Vênus e ela também tinha pústulas40 africanos a sua genealogia perdida inevitavelmente como uma das consequências da escravidão A perda dessa origem é na obra comparada à perda da mãe sugerindo que tanto ela quanto pessoas escravizadas são órfãs e não têm um lugar no mundo NT 37 The Trial of Captain John Kimber for the Murder of Two Female Negro Slaves on Board the Recovery African Slave Ship 1792 2 38 The Whole of the Proceedings and Trial of Captain John Kimber for the Murder of a Negro Girl 1792 1415 39 Ibid 25 40 Trial of Captain Kimber for the Murder of a Negro Girl 1792 19 Dossiê Crise Feminismo e Comunicação httpsrevistaecoposecoufrjbr ISSN 21758689 v 23 n 3 2020 DOI 1029146ecoposv23i327640 24 Quando o capitão foi absolvido do assassinato da primeira garota ele também foi considerado inocente da segunda acusação Como não havia mais evidência para sustentar o segundo indiciamento do que a que sustentava o primeiro o júri também absolveu o prisioneiro em relação a ele41 Essas foram as únicas palavras faladas sobre Vênus durante o julgamento Escrevi duas frases sobre Vênus em O Livro Morto mascarando meu próprio silêncio atrás do de Wilberforce Sobre ele digo Ele escolheu não falar de Vênus a outra garota morta O apelido carinhoso autorizou a devassidão e o fez soar agradável42 Decidi não escrever sobre Vênus por razões diferentes daquelas que atribuí a ele Ao contrário eu temia o que poderia inventar e teria sido um romance Se eu pudesse ter invocado mais do que um nome em uma acusação se eu pudesse ter imaginado Vênus falando em sua própria voz se eu pudesse ter detalhado as pequenas memórias banidas do livro de contabilidade então teria sido possível que eu representasse a amizade que poderia ter florescido entre duas garotas assustadas e solitárias Companheiras de navio Então Vênus poderia ter assistido sua amiga moribunda sussurrado conforto em seu ouvido a embalado com promessas a acalmado com logo logo e desejado a ela um bom regresso Imagine as duas as relíquias de duas garotas uma acalentando a outra inocentes espoliadas um marinheiro avistou as duas e mais tarde disse que eram amigas Duas garotas sem mundo encontraram um país nos braços uma da outra Ao lado da derrota e do terror haveria isso também o vislumbre de beleza o instante de possibilidade 41 Trial of Captain John Kimber for the Murder of Two Female Negro Slaves 36 The Trial of Captain Kimber for the Supposed Murder of an African Girl at the Admiralty Sessions 1792 43 42 Hartman Lose Your Mother 143 Dossiê Crise Feminismo e Comunicação httpsrevistaecoposecoufrjbr ISSN 21758689 v 23 n 3 2020 DOI 1029146ecoposv23i327640 25 A perda de histórias aguça a fome por elas Então é tentador preencher as lacunas e oferecer fechamento onde não há nenhum Criar um espaço para o luto onde ele é proibido Fabricar uma testemunha para uma morte não muito notada Em um estado livre teria sido possível para as garotas atentar para a morte de uma amiga e derramarem lágrimas pela perda mas um navio negreiro não permitia o luto e quando detectado os instrumentos de tortura eram empregados para erradicálo Mas o consolo dessa visão uma vida reconhecida e lamentada no abraço de duas garotas estava em desacordo com a violência aniquiladora do navio negreiro e com virtualmente tudo o que eu já tinha escrito Inicialmente pensei que queria representar as afiliações rompidas e refeitas no oco do navio negreiro imaginando as duas garotas como amigas dandoas uma à outra Mas no final fui forçada a admitir que queria me consolar e escapar do porão dos escravos com uma visão de algo diferente dos corpos de duas garotas se assentando no fundo do Atlântico No fim eu não podia dizer mais sobre Vênus do que tinha dito sobre sua amiga Não tenho certeza se é possível resgatar uma existência a partir de um punhado de palavras o suposto assassinato de uma garota negra43 Eu não podia mudar coisa alguma A garota nunca terá qualquer existência fora do domicílio precário das palavras que permitiu que ela fosse assassinada44 Eu não poderia ter chegado a outra conclusão Então era melhor deixálas como eu as tinha encontrado Duas garotas sozinhas A reprise Escolhi não contar uma história sobre Vênus porque fazer isso teria significado ultrapassar as fronteiras do arquivo A História se compromete a ser fiel aos limites do fato da evidência e do arquivo ainda que tais certezas mortas sejam produzidas pelo terror Eu queria escrever um romance que excedesse as 43 Hartman Lose Your Mother 137 44 Ibid Dossiê Crise Feminismo e Comunicação httpsrevistaecoposecoufrjbr ISSN 21758689 v 23 n 3 2020 DOI 1029146ecoposv23i327640 26 ficções da história os rumores escândalos mentiras evidências inventadas confissões fabricadas fatos voláteis metáforas impossíveis eventos casuais e fantasias que constituem o arquivo e determinam o que pode ser dito sobre o passado Eu desejava escrever uma nova história que não fosse limitada pelos constrangimentos dos documentos legais e fosse além da reiteração e das transposições que constituíram minha estratégia para desordenar e transgredir os protocolos do arquivo e a autoridade de suas afirmações e que me permitiram aumentar e intensificar suas ficções Encontrar um modo estético apropriado ou adequado para retratar as vidas dessas duas garotas decidir como dispor as linhas na página permitir que o rastro narrativo seja reencaminhado ou quebrado pelos sons da memória os lamentos e prantos e cânticos fúnebres desatados no convés e tentar perturbar as disposições do poder ao imaginar Vênus e sua amiga fora dos termos de declarações e julgamentos que as baniram da categoria do humano e decretaram que suas vidas eram descartáveis45 tudo isso estava além do que podia ser pensado dentro dos parâmetros da História O romance de resistência que fracassei em narrar e o evento de amor que me recusei a descrever levantam questões importantes sobre o que significa pensar historicamente sobre assuntos ainda contestados no presente e sobre a vida erradicada pelos protocolos de disciplinas intelectuais O que é necessário para imaginar um estado livre ou para contar uma história impossível É preciso que a poética de um estado livre antecipe seu acontecimento e imagine a vida após o homem em vez de esperar pelo momento sempre retrocedente do Jubileu É preciso que o futuro da abolição seja performado primeiro na folha de papel Ao retirarme diante da história dessas duas garotas será que eu estava sustentando as regras da corporação histórica e as certezas manufaturadas de seus assassinos e ao fazêlo eu não tinha selado seu destino46 Não tinha também eu relegado as 45 Ver Sylvia Wynter Unsettling the Coloniality of BeingPowerTruthFreedom CR The New Centennial Review 3 no 3 2003 257337 46 Stephan Palmié Wizards and Scientists Explorations in AfroCuban Modernity and Tradition Durham Duke University Press 2002 94 Ver também MichelRolph Trouillot Silencing the Past Boston Beacon Press 1997 Dossiê Crise Feminismo e Comunicação httpsrevistaecoposecoufrjbr ISSN 21758689 v 23 n 3 2020 DOI 1029146ecoposv23i327640 27 duas ao esquecimento No final das contas não era melhor deixálas como as encontrei Uma história de fracasso Se não é possível desfazer a violência que inaugura o escasso registro da vida de uma garota ou remediar seu anonimato com um nome ou traduzir a fala da mercadoria então com que finalidade contamos tais histórias Como e por que escrevemos uma História de violência Por que revisitar o acontecimento ou o não acontecimento da morte de uma garota O arquivo da escravidão repousa sobre uma violência fundadora Essa violência determina regula e organiza os tipos de afirmações que podem ser formuladas sobre a escravidão e também cria sujeitos e objetos de poder47 O arquivo não fornece um relato exaustivo da vida da garota mas cataloga as afirmações que autorizaram sua morte Todo o resto é uma espécie de ficção donzela vivaz vadia carrancuda Vênus garota A economia do roubo e o poder sobre a vida que definiram o tráfico negreiro fabricaram mercadorias e cadáveres Mas carga massas inertes e coisas não se prestam à representação ao menos não facilmente Em Lose Your Mother tentei colocar em primeiro plano a experiência das pessoas escravizadas traçando o itinerário de um desaparecimento e narrando histórias que são impossíveis de contar O objetivo era expor e explorar a incomensurabilidade entre a experiência das pessoas escravizadas e as ficções da História ou seja as exigências da narrativa a substância de temas e enredos e fins E como se conta histórias impossíveis Histórias sobre garotas com nomes que deformam e desfiguram sobre as palavras trocadas entre companheiras de navio que nunca adquiriram qualquer reconhecimento diante da lei e que não foram registradas no arquivo sobre os apelos preces e segredos nunca proferidos porque não havia ninguém para recebêlos A comunicação furtiva que pode ter se passado entre duas garotas mas que ninguém da tripulação observou ou relatou 47 Michel Foucault A arqueologia do saber 7ª ed Tradução Luiz Felipe Baeta Neves Rio de Janeiro Forense Universitária 2008 p 145147 Dossiê Crise Feminismo e Comunicação httpsrevistaecoposecoufrjbr ISSN 21758689 v 23 n 3 2020 DOI 1029146ecoposv23i327640 28 afirma o que já sabemos ser verdade o arquivo é inseparável do jogo de poder que assassinou Vênus e sua companheira de navio e que exonerou o capitão E esse conhecimento não nos aproxima de uma compreensão das vidas de duas garotas cativas ou da violência que as destruiu e nomeou a ruína Vênus Nem pode explicar por que razão nesta data tardia ainda queremos escrever histórias sobre elas É possível exceder ou negociar os limites constitutivos do arquivo Ao propor uma série de argumentos especulativos e ao explorar as capacidades do subjuntivo um modo gramatical que expressa dúvidas desejos e possibilidades ao moldar uma narrativa que se baseia na pesquisa de arquivo e com isso quero dizer uma leitura crítica do arquivo que mimetiza as dimensões figurativas da História eu pretendia tanto contar uma história impossível quanto amplificar a impossibilidade de que seja contada A temporalidade condicional do que poderia ter sido segundo Lisa Lowe simboliza adequadamente o espaço de um tipo diferente de pensamento um espaço de atenção produtiva à cena da perda um pensamento com atenção dupla que procura abranger os objetos e métodos positivos da História e da ciência social e simultaneamente as questões ausentes emaranhadas e indisponíveis pelos seus métodos48 A intenção aqui não é tão miraculosa como recuperar as vidas das pessoas escravizadas ou redimir os mortos mas em vez disso trabalhar para pintar o quadro mais completo possível das vidas de cativos e cativas Este gesto duplo pode ser descrito como um esforço contra os limites do arquivo para escrever uma História cultural do cativeiro e ao mesmo tempo uma encenação da impossibilidade de representar as vidas dos cativos e cativas precisamente por meio do processo de narração O método que guia essa prática de escrita é melhor descrito como fabulação crítica Fábula denota os elementos básicos da história os blocos de construção da narrativa Uma fábula de acordo com Mieke Bal é uma série de eventos relacionados lógica e cronologicamente que são causados e 48 Lisa Lowe The Intimacies of Four Continents in Ann Laura Stoler ed Haunted by Empire Geographies of Intimacy in North American History Durham Duke University Press 2006 208 Dossiê Crise Feminismo e Comunicação httpsrevistaecoposecoufrjbr ISSN 21758689 v 23 n 3 2020 DOI 1029146ecoposv23i327640 29 experimentados por atores Um evento é uma transição de um estado a outro Atores são agentes que realizam ações Não são necessariamente humanos Agir é causar ou experimentar um evento49 Jogando com os elementos básicos da história e rearranjandoos re apresentando a sequência de eventos em histórias divergentes e de pontos de vista em disputa eu tentei comprometer o status do evento deslocar o relato preestabelecido ou autorizado e imaginar o que poderia ter acontecido ou poderia ter sido dito ou poderia ter sido feito Lançando em crise o que aconteceu quando e explorando a transparência das fontes como ficções da História eu queria tornar visível a produção de vidas descartáveis no tráfico atlântico de escravos e também na disciplina da História descrever a resistência do objeto50 mesmo que por apenas imaginálo primeiro e escutar os murmúrios e profanações e gritos da mercadoria Aplainando os níveis do discurso narrativo e confundindo narradora e falantes eu esperava iluminar o caráter contestado da História narrativa evento e fato derrubar a hierarquia do discurso e submergir a fala autorizada no choque de vozes O resultado desse método é uma narrativa recombinante que enlaça os fios de relatos incomensuráveis e que tece presente passado e futuro recontando a história da garota e narrando o tempo da escravidão como o nosso presente51 A contenção narrativa a recusa em preencher as lacunas e dar fechamento é uma exigência desse método assim como o imperativo de respeitar o ruído negro os berros os gemidos o sem sentido e a opacidade que sempre excedem a legibilidade e a lei e que insinuam e encarnam aspirações que são desvairadamente utópicas abandonadas pelo capitalismo e antitéticas ao seu concomitante discurso do Homem52 A intenção dessa prática não é dar voz ao escravo mas antes imaginar o que não pode ser verificado um domínio de experiência que está situado entre 49 Mieke Bal Narratology Introduction to the Theory of Narrative Toronto University of Toronto Press 1997 7 50 Moten In the Break 14 51 Tomo emprestada a noção de narrativa recombinante de Stan Douglass mas a ideia me foi apresentada pelo ensaio não publicado de NourbeSe Philip 52 Ver Stephen Best e Saidiya Hartman Fugitive Justice Representations no 92 Fall 2005 9 Dossiê Crise Feminismo e Comunicação httpsrevistaecoposecoufrjbr ISSN 21758689 v 23 n 3 2020 DOI 1029146ecoposv23i327640 30 duas zonas de morte morte social e corporal e considerar as vidas precárias que são visíveis apenas no momento de seu desaparecimento É uma escrita impossível que tenta dizer o que resiste a ser dito uma vez que garotas mortas são incapazes de falar É uma História de um passado irrecuperável é uma narrativa do que talvez tivesse sido ou poderia ter sido é uma História escrita com e contra o arquivo Reconhecidamente a minha própria escrita é incapaz de ultrapassar os limites do dizível ditados pelo arquivo Ela depende dos registros legais dos diários dos cirurgiões dos livros de contabilidade dos manifestos de carga dos navios e dos diários de bordo e nesse aspecto ela vacila diante do silêncio do arquivo e reproduz as suas omissões A violência irreparável do tráfico atlântico de escravos reside precisamente em todas as histórias que não podemos conhecer e que nunca serão recuperadas Esse obstáculo formidável ou impossibilidade constitutiva define os parâmetros do meu trabalho A necessidade de recontar a morte de Vênus é ofuscada pelo fracasso inevitável de qualquer tentativa de representála Penso que esta é uma tensão produtiva que é inevitável ao narrar as vidas das pessoas subalternas despossuídas e escravizadas Ao recontar a história do que aconteceu a bordo do Recovery enfatizei a incomensurabilidade entre os discursos prevalecentes e o evento amplifiquei a instabilidade e a discrepância do arquivo desprezei a ilusão realista usual na escrita da História e produzi uma contraHistória na intersecção do fictício e do histórico A contraHistória de acordo com Gallagher e Greenblatt opõese não apenas às narrativas dominantes mas também aos modos de pensamento histórico e métodos de pesquisa prevalecentes53 Entretanto a História dos projetos contraHistóricos negros é uma história de fracasso precisamente porque tais relatos nunca foram capazes de se instalarem como História mas são antes narrativas insurgentes perturbadoras que são marginalizadas e descarrilhadas antes sequer de ganhar pé 53 Catherine Gallagher e Stephen Greenblatt CounterHistory and the Anecdote in Practicing New Historicism Chicago University of Chicago 2001 52 Dossiê Crise Feminismo e Comunicação httpsrevistaecoposecoufrjbr ISSN 21758689 v 23 n 3 2020 DOI 1029146ecoposv23i327640 31 Se essa história de Vênus tem algum valor este consiste em iluminar o modo como nossa era está presa à dela Uma relação que outros podem descrever como um tipo de melancolia mas que prefiro descrever como a sobrevida da propriedade quero dizer o detrito de vidas às quais ainda precisamos atentar um passado que ainda não passou e um estado de emergência contínuo em que a vida negra permanece em perigo Por essas razões escolhi me engajar com um conjunto de dilemas sobre a representação a violência e a morte social sem usar a forma de um discurso meta histórico mas performando os limites de escrever a História por meio do ato de narração Fiz isso principalmente porque 1 minha própria narrativa não opera fora da economia de afirmações que ela submete à crítica e 2 aquelas existências relegadas ao não histórico ou consideradas descartáveis exercem uma reivindicação sobre o presente e exigem que imaginemos um futuro no qual a sobrevida da escravidão tenha terminado A necessidade de tentar representar o que não podemos em vez de conduzir ao pessimismo ou desespero deve ser acolhida como a impossibilidade que condiciona nosso conhecimento do passado e anima nosso desejo por um futuro liberto Meu esforço para reconstruir o passado é também uma tentativa de descrever obliquamente as formas de violências autorizadas no presente isto é as formas de morte desencadeadas em nome de liberdade segurança civilização e Deuso bem A narrativa é central para esse esforço por causa da relação explícita ou implicada que ela estabelece entre passado presentes e futuros54 Lutar com a reivindicação da garota sobre o presente é uma forma de nomear nosso tempo pensar nosso presente e visualizar o passado que o criou Infelizmente não descobri uma forma de perturbar o arquivo de modo que possa recordar o conteúdo da vida de uma garota ou revelar uma imagem mais verdadeira nem consegui arrombar o livro morto que selou o estatuto dela como mercadoria A coleção aleatória de detalhes dos quais fiz uso são as mesmas descrições citações literais e transcrições de julgamentos que a destinaram à 54 David Scott Conscripts of Modernity The Tragedy of Colonial Enlightenment Durham Duke University Press 2004 7 Dossiê Crise Feminismo e Comunicação httpsrevistaecoposecoufrjbr ISSN 21758689 v 23 n 3 2020 DOI 1029146ecoposv23i327640 32 morte e tornaram o assassinato não muito notado ao menos de acordo com o cirurgião55 A promiscuidade do arquivo gera uma ampla variedade de leituras mas nenhuma que seja capaz de ressuscitar a garota Meu relato replica a própria ordem de violência contra a qual ele escreve colocando ainda mais uma demanda sobre a garota exigindo que sua vida se torne útil ou instrutiva ao encontrar nela uma lição para nosso futuro ou uma esperança para a História Nós sabemos muito bem É tarde demais para que os relatos de morte previnam outras mortes e é cedo demais para tais cenas de morte interromperem outros crimes Mas enquanto isso no espaço do intervalo entre tarde demais e cedo demais entre o não mais e o ainda não nossas vidas são contemporâneas com a da garota no projeto ainda incompleto da liberdade Enquanto isso é claro que a vida dela e as nossas estão em jogo Então o que se faz enquanto isso Quais são as histórias que se contam em tempos sombrios Como uma narrativa de derrota pode possibilitar um lugar para os vivos ou imaginar um futuro alternativo Michel de Certeau nota que há pelo menos dois modos pelos quais a operação historiográfica pode fabricar um lugar para os vivos um é atentar para o passado e recrutálo em nome dos vivos estabelecendo quem somos em relação a quem fomos e o segundo envolve interrogar a produção do nosso conhecimento sobre o passado56 Nas linhas esboçadas por de Certeau Kindred de Octavia Butler oferece um modelo para uma prática57 Quando Dana a protagonista da ficção especulativa de Butler viaja do século XX para os anos 1820 para encontrar sua ancestral escravizada ela descobre para sua surpresa que não é capaz de resgatar sua família ou escapar das relações emaranhadas de violência e dominação em vez disso acaba aceitando que elas tornaram sua própria existência possível Com isso em mente devemos suportar o que não pode ser suportado a imagem de Vênus acorrentada 55 Trial of Captain John Kimber for the Murder of a Negro Girl 14 Trial of Captain John Kimber for the Supposed Murder of an African Girl 20 O cirurgião testemunhou que castigos brutais a bordo dos navios de escravos eram usuais 56 Michel de Certeau The Writing of History New York Columbia University Press 1992 DE CERTEAU Michel A escrita da História Tradução Maria de Lourdes Menezes Rio de Janeiro Forense Universitária 1982 57 Octavia Butler Kindred Boston Beacon Press 2002 BUTLER Octavia Kindred Laços de Sangue Tradução Carolina Caires Coelho São Paulo Editora Morro Branco 2017 Dossiê Crise Feminismo e Comunicação httpsrevistaecoposecoufrjbr ISSN 21758689 v 23 n 3 2020 DOI 1029146ecoposv23i327640 33 Começamos a história de novo como sempre na esteira de seu desaparecimento e com a esperança desvairada de que nossos esforços possam devolvêla ao mundo A conjunção de esperança e derrota define esse trabalho e deixa em aberto seu resultado A tarefa de escrever o impossível não o fantasioso ou o utópico mas histórias tornadas irreais e fantásticas58 tem como pré requisitos o acolhimento ao provável fracasso e a prontidão para aceitar o caráter contínuo inacabado e provisório desse esforço particularmente quando as disposições do poder ocluem o próprio objeto que desejamos resgatar59 Como Dana nós também emergimos do encontro com um sentido de incompletude e com o reconhecimento de que alguma parte de nós the self está faltando como consequência desse engajamento 58 Palmié Wizards and Scientists 97 59 Slavoj Žižek descreveu isso como uma prática da resignação entusiasmada Entusiasmo ao indicar a experiência do objeto por meio do próprio fracasso de sua representação adequada Entusiasmo e resignação não são assim dois momentos opostos é a própria resignação isto é a experiência de uma certa impossibilidade que incita o entusiasmo Beyond DiscourseAnalysis in Ernesto Laclau ed New Reflections on the Revolution of Our Time New York Verso 1990 259 60