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ISBN 8588777185 o CI ti J ao UJo O J E U E u T CO LO q q O O O JO ANTONIO CANDIDO FICÇÃO E CONFISSÃO ENSAIOS SOBRE GRACILIANO RAMOS 3a edição revista pelo autor SBDFLCHSP 11IIm 321577 Ouro sobre Azul I Rio de Janeiro 2006 4S ÍNDICE Prefácio Ficção e confissão Os bichos do subterrâneo No aparecimento de Caetés Cinqüenta anos de Vidas secas 9 17 101 129 143 PREFÁCIO Este livro reúne os quatro ensaios que escrevi sobre Gra ciliano Ramos Eles formam um conjunto não isento de re petições que apesar da mudança de certos juízos mostra a constância de um ponto de vista que se formou cedo Quando Graciliano publicou Infância 1945 eu era crítico titular como se dizia do Diário de São Paulo Naquela altura ele já me parecia destacarse de maneira singular entre os chamados romancistas do Nordeste que nos anos de 1930 tinham conquistado a opinião literária do país Por isso 9 resolvi aproveitar a oportunidade a fim de marcar a minha opinião por meio de um balanço da sua obra Escrevi então cinco artigos um para cada livro terminando pelo que es tava aparecendo Graciliano agradeceu com a seguinte carta amável e desencantada Rio de Janeiro 12 de novembro de 1945 Antonio Candido Só agora lido o último artigo da série que V me dedicou posso mandarlhe estas linhas e conversar um pouco Muito obrigado Mas não lhe escrevo apenas por cqusa dos agradeci mentos o meu desejo é trazerlhe uma informação ajustável ao que V assevera num dos seus rodapés 10 o zou o u Arriscarmeia a fazer restrições ao primeiro e ao segundo se isto não fosse considerado falsa modéstia E impertinência com as vivas atenções dispensadas ao meu romance de estréia foram apontados vários defeitos o que de certo modo atenua a parcialidade otimista Onde as nossas opiniões coincidem é no julgamento de An gústia Sempre achei absurdos os elogios concedidos a este livro e alguns verdadeiros disparates me exasperaram pois nunca tive semelhança com Dostoievski nem com outros gigantes O que sou é uma espécie de Fabiano e seria Fabiano completo se a seca houvesse destruído a minha gente como V muito bem reconhece Por que é que Angústia saiu ruim Diversas pessoas procura ram razões que não me satisfizeram alívio Montenegro usou frases ingênuas epedantes misturando ética e estética João Gas par Simões afirmou que o americano é incapaz de introspecção e com esta premissa arrasoume Veja só Nada há mais falso que um silogismo Álvaro Lins veio com aquele negócio de tempo metafísico Mas isso diz pouco não é verdade Se eu constituísse uma exceção à regra de João Gaspar Simões e contentasse alívio Montenegro e Álvaro Lins Angústia não deixaria de ser um mau livro apesar de haver nele páginas legíveis POf1 l Devemos afastar a idéia de o terem preju dicado as reminiscências pessoais que não prejudicaram In fância como v afirma Pegome a esta razão velha e clara Angústia é um livro mal escrito Foi isto que o desgraçou Ao reeditáIofiz uma leitura atenta epercebi os defeitos horríveis muita repetição desnecessária um divagar maluco em torno de coisinhas bestas desequilíbrio excessiva gordura enfim as partes corruptíveis tão bem examinadas no seu terceiro artigo É preciso dizermos isto e até exagerarmos as falhas de outro modo o nosso trabalho seria inútil E aqui vem a informação a que me referi Forjei o livro em tempo de perturbações mudanças encrencas de todo o gênero abandonandoo com ódio retomandoo sem entusiasmo Ma tei Julião Tavares em vinte e sete dias o último capítulo um delírio enorme foi arranjado numa noite Naturalmente seria indispensável recompor tudo suprimir excrescências cortar pelo menos a quarta parte da narrativa A cadeia impediume essa operação A 3 de março de 1936 dei o manuscrito à dati lógrafa e no mesmo dia fui preso Nos longos meses de viagens obrigatórias supus que a polícia me houvesse abafado esse ma terial perigoso Isto não aconteceu e o romance foi publicado em agosto Achavame então na sala da capela Não se conferiu a cópia com o original Imagine E a revisão preencheu as la cunas metendo horrores na história Só muito mais tarde os vi Um assunto bom sacrificado foi o que me pareceu Esta explicação tem apenas o fim de exibirlhe o prazer que me causou o seu juízo Quando um modernista retardatário e pouco exigente me vem seringar amabilidades a Angústia digo sempre Nada impede que seja um livro pessimamente escrito Seria preciso fazêIo de novo 11 12 o zou o v Permitame que apenas toque nos seus estudos relativos a São Bernardo Vidas secas e Infância Sermcia difícil es tenderme sobre eles O que faço é agradecer Por muito vaido so que sejamos às vezes certas opiniões nos amarram diante delas ficamos atrapalhados e sem jeito Adeus Antonio Candido Abraços do admirador e amigo Graciliano Ramos Este foi o nosso único contacto epistolar louve outro pessoal no começo de 1947 num jantar em casa de Lúcia Miguel Pereira e Octavio Tarquínio de Sousa promovido para nos apresentar um ao outro Naquele ano o editor José Olympio publicou as suas obras ficcionais com introdução de Floriano Gonçalves autor do romance Lixo Graciliano me mandou os cinco volumes com dedicatórias duas con vencionais e três bastante pitorescas Em Caetés Antonio Candido A culpa não é apenas minha é também sua Se não existisse aquele seu rodapé talvez não se reeditasse isto Em Angústia Antonio Candido Além das partes rudes já corrompidas vão aqui alguns erros e pastéis que as tipografias estão uma lástima Em Insônia A Antonio Candido esta coleção de encrencas algumas bem chinfrins Tempos depois da sua morte Antonio Olavo Pereira que dirigia a sucursal paulista da Editora José Olympio me con vocou para dizer que Graciliano tinha manifestado o desejo de que fosse escrita por mim a introdução à próxima edição de sua obra Foi assim que refundi os cinco artigos escrevi a análise de Memórias do cárcere e uma conclusão compondo o ensaio FICÇÃO E CONFISSÃO que de 1955 a 1969 foi situada no 10 volume Caetés a introdução desejada pelo grande es critor A princípio na edição José Olympio do Rio depois na edição Martins de São Paulo Em 1969 Martins a deslo cou para São Bernardo e em 1974resolveu aposentáIa Deste modo saiu de circulação o meu ensaio do qual José Olympio fizera em 1956 uma tiragem à parte em pequeno volume cujos 1000 exemplares se esgotaram depressa Agora no centenário de Graciliano a Editora 34 teve a idéia de ree ditáIo com outros para formar este livro cujo ar comemo rativo implícito me agrada pois serve para manifestar mais uma vez o meu constante apreço por um dos maiores escri tores da nossa literatura um dos raros cuja alta qualidade parece crescer à medida que o relemos E como costumava dizer Alfredo Mesquita a releitura é quase sempre fatal para a maioria absoluta da narrativa ficcional brasileira 13 14 o ªzou o Ou FICÇÃO E CONFISSÃO envelheceu visivelmente o que me fez hesitar em desenterráIo O seu núcleo data de quarenta e seis anos e de lá para cá a crítica mudou muito e apareceram estudos mais de acordo com o gosto do dia Mas como se trata de contribuir para comemorar um centenário ilustre talvez seja justificada essa volta ao passado cujo peso apare ce em FICÇÃO E CONFISSÃO sobretudo nas longas citações sem análise correspondente e no realce dado ao ângulo psicoló gico de psicologia literária é claro ponto de apoio para captar a visão do homem na obra de Graciliano que era o meu alvo Mas ainda me parece justo o pressuposto básico isto é que ele passou da ficção para a autobiografia como desdobramento coerente e necessário da sua obra O que não parece mais defensável é que as duas fases tenham o mesmo nível literário como o ensaio deixa implícito Se Infância o mantém o mesmo não acontece com o livro puramente au tobiográfico Memórias do cárcere apesar da sua força e do valor como documento humano Esta mudança de atitude se esboça apenas se esboça no ensaio seguinte OS BICHOS DO SUBTERRÃNEO escrito para o volume Graciliano Ramos da Coleção Nossos Clássicos da Edi tora Agir que preparei em 1959a pedido de Alceu Amoroso Lima e apareceu em 1961sendo incluído mais tarde no meu livro Tese e antítese Este ensaio repete alguma coisa do pri meiro mas tenciona sobretudo rever a posição que eu assu mira nele em face de Angústia posição que logo vi ser pelo menos insuficiente Por isso OS BICHOS DO SUBTERRÃNEO deve ser considerado complemento de FICÇÃO E CONFISSÃO OS dois escritos finais breves e menos ambiciosos são francamente circunstanciais No APARECIMENTO DE CAETÉS é o essencial do texto de uma palestra feita em Maceió no simpósio consagrado ao cinqüentenário da publicação cuja matéria foi recolhida numa coletânea editada pela Secretaria de Cultura de Alagoas 50 anos do romance Caetés 1984Nele procurei fixar as primeiras impressões de críticos do tempo o que fiz também cinco anos depois a propósito de Vidas secas em artigo solicitado por Nilo Scalzo que dirigia então o suplemento Cultura do Estado de S Paulo ANTONIO CANDIDO DE MELLO E SOUZA I junho de 1992 15 FICÇÃO E CONFISSÃO Para ler Graciliano Ramos talvez convenha ao leitor aparelharse do espírito de jornada dispondose a uma experiência que se desdobra em etapas e principiada na narração de costumes termina pela confissão das mais vívidas emoções pessoais Com isto percorre o sertão a mata a fazenda a vila a cidade a casa a prisão vendo fa zendeiros e vaqueiros empregados e funcionários políticos e vagabundos pelos quais passa o romancista progredindo no sentido de integrar o que observa ao seu modo peculiar de julgar e de sentir De tal forma que embora pouco afeito ao pitoresco e ao descritivo e antes de mais nada preocupa do em ser por intermédio da sua obra como artista e como homem termina por nos conduzir discretamente a esferas bastante várias de humnidade sem se afastar demasiado de certos temas e modos de escrever 17 18 o zou o u Se quisermos sentir esta unidade na diversidade para re viver a experiência humana que ela comporta é aconselhá vel acompanhar a evolução da sua obra ao longo dos diversos livros na ordem em que foram compostos tentando captar nesse roteiro os motivos que a fazem tão importante como experiência literária pois na verdade é das que não passam sobre nós sem deixar o sulco geralmente aberto no espírito pelas grandes criações Na sua obra Caetés dá a impressão quanto ao estilo e análise de deliberado preâmbulo um exerCÍcio de técnica literária mediante o qual pôde aparelharse para os grandes livros posteriores Publicado em pleno surto nordestino 1933 contrasta com os livros talentosos e apressados de então pelo cuidado da escrita e o equilíbrio do plano Dá idéia de temporão de livro espiritualmente vinculado ao galho já sediço do pós naturalismo cujo medíocre fastígio foi depois de Machado de Assis e antes de 1930 Nele vemos aplicadas as melhores receitas da ficção realista tradicional quer na estrutura lite rária quer na concepção da vida Meticuloso numas coisas esquemático noutras apurado no estilo sumário na psicologia manifesta certa frieza de quem não empenhou realmente as forças A despeito da na turalidade habilmente composta não evitamos o sentimen to de presenciar uma laboriosa ginástica intelectual em que o autor se exercita na descrição narração diálogo notação de atos e costumes daí a sua importância como subsídio para compreender a evolução da obra de Graciliano Ramos a partir dessas receitas artesanais Como certos poetas que praticaram minuciosamente as formas fixas antes de cultivarem o verso livre com tal maes tria que ele parece ter sido sempre a sua via única e preferen cial o romancista profundo e doloroso de São Bernardo e Angústia ainda é aqui praticante aliás magistral de fórmu las convencionais da técnica do romance A atmosfera geral do livro se liga também à lição pósnatu ralista voltada para o registro dos aspectos mais banais e in tencionalmente antiheróicos do cotidiano ecom certo pudor de engatilhar os dramas convulsos de que tanto gostavam os fogosos naturalistas da primeira geração Imaginando torcer o pescoço ao que lhes parecia postiço e convencional os su cessores adotaram a convenção de que a arte deve reproduzir o que há na vida de mais corriqueiro e chegaram assim a um postiço avesso do que pretendiam liquidar pressupondo na vida um máximo de pasmaceira que ela não contém e nos personagens uma estagnação espiritual incompatível com a dinâmica inerente à mais rasteira das existências Caetés é rebento dessa concepção de romance minuciosa e algo estática A intenção do autor parece ter sido horizon talizar ao máximo a vida dos personagens as relações que 19 o t Zou o u o ouo eu 21 Domingo fui à casa do Teixeira Quando Zacarias abriu o por tão havia rumor lá em cima Atravessei o jardim subi a escada cheguei à sala aturdido Ora sim senhor disseme Adrião Veio arrastado mas veio Com a pena irresoluta muito tempo contemplei destroços flu tuantes Eu tinha confiado naquele naufrágio idealizara um gran de naufrágio cheio de adjetivos enérgicos e por fim me aparecia um pequenino naufrágio inexpressivo um naufrágio reles E cur to dezoito linhas de letra espichada com emendas A vocação para a brevidade e o essencial aparece aqui na busca do efeito máximo por meio dos recursos mínimos que terá em São Bernardo a expressão mais alta E se Caetés ainda não tem a sua prosa áspera já possui sem dúvida a parcimônia de vocábulos a brevidade dos períodos devi dos à busca do necessário ao desencanto seco e ao humor algo cortante que se reúnem para definir o perfil literário do autor Como conseqüência a condensação a capacidade de dizer muito em pouco espaço 20 o ª zouo e mantêm uns com os outros Exceto o narrador João Valé dade não há nele imperícias nem arroubos de principiante rio os demais são delineados por meio de aspectos exterio pois superadas as ilusões de prosa artística freqüentes nes res através dos quais vão se revelando progressivamente O sa quadra o autor já demonstra a incapacidade de ênfase e autor procura não apenas conhecêIos através do compor a vergonha de ser empolado que são fatores decisivos da sua tamento como se mostra amador pitoresco da morfologia maneira literária corporal definindo o seu modo de ser em ligação estreita com as características somáticas fisionomia tiques mãos papada de um olho esbugalhado de outro barbicha de um terceiro É por meio desta soma de pequenos sinais externos que os apresenta completandoa aos poucos no decorrer do livro não sem alguma confusão que requer esforço do leitor para identificar os nomes mencionados E assim vemos de que modo a minúcia descritiva do Naturalismo colide neste livro com uma qualidade que se tornará clara nas obras pos teriores a discrição e a tendência à elipse psicológica cujo correlativo formal são a contenção e a síntese do estilo A única dificuldade na leitura de Caetés é essa caracte rização meio imprecisa dos personagens secundários pro veniente da relativa frouxidão psicológica Mas uma vez transposta nós nos integramos de bom grado no mundo desses tabeliães e farmacêuticos intrigantes politiqueiros e jornalistas de cidadezinha padres médicos vencidos da vida velhas bisbilhoteiras moças dissimuladas E como é pitoresco e bem escrito numa língua simples magra e ex pressiva não tardamos em gostar da singeleza deste livro da sua absoluta ausência de dós de peito Escrito na maturi o zou o v 23 Mesmo um trecho como este secundário e modesto mos tra aquelas qualidades que lhe permitem movimentar cenas e personagens por meio da notação precisa não raro alusiva e da redução ao elemento essencial É o que se vê em algumas cenas excelentes como o jantar de aniversário onde os ca racteres vão se manifestando pela rotação da conversa que os traz sucessiva ou alternadamente ao primeiro plano for mando um conjunto animado de que nos parece discernir como modelo alguns jantares magistrais de Eça de Queirós o que abre o 2 volume dOs Maias por exemplo ou o que nA ilustre casa sela a reconciliação de Gonçalo e Cavaleiro Em Graciliano porém há algo mais Nessas cenas talvez inspiradas tecnicamente pelo romancista português que parece ter sido leitura constante da sua mocidade e com efeito impregna em Caetés até certos pormenores de frase 22 o zou o v r Lui colheumemo me e o pem Comp I nun pmnu comnedetl fmm embmÓdo pdo mentei com as orelhas em brasa Vitorinopadre AtanásioMi movimento de conjunto que chegasse a perder de vista os randa NazaréViClementinaescondidaentre o piano e aparede problemas específicos do personagem Nas famosas corridas Balbuciandopedi informaçõessobreasaúdedela ou no sarau beneficente dOs Maias o escritor se absorve no Nãoiabem deleite da cena coletiva e os problemas individuais se esba SimPoisnãopareciaTantavivacidadetão boascores tem para segundo plano Em Graciliano já neste livro de Elaatiroumeum olhar de agradecimentoe encolheuseEuia estréia não por acaso escrito na primeira pessoa cenas e encolhermetambém por detrás das cortinas mas Adriãose le personagens formam uma constelação estreitamente depen vantou convidou I dente do narrado r a vida externa os fatos os outros se de Vamospara a mesa finem em função do seu pensamento dominante o amor por Luísa Por isso em cenas admiráveis como o referido jantar o jogo de pôquer o jogo de xadrez soldamse a descrição dos incidentes e a caracterização dos personagens formando unidades coesas na medida em que são atravessadas pelo solilóquio isto é pela obsessão do narrador À técnica pra ticada segundo molde queirosiano juntase algo próprio a Graciliano a preocupação ininterrupta com o caso indivi dual com o ângulo do indivíduo singular que é e será o seu modo de encarar a realidade No âmago do acontecimen to está sempre o coração do personagem central dominante impondo na visão das coisas a sua posição específica O es tudo de qualquer das cenas mencionadas revela claramente a estreita correlação entre técnica e atitude em face da vida mostrando que o interesse pelos fatos decorre dum interesse prévio pela situação do homem frente a eles 24 o zou o u Evaristo Barroca soltou o baralho Fala o senhor Mesa Eu pensei nas amarguras que me iam aparecer no dia seguinte O que eu devia fazer era esperar o Neves à saída da sessão de espi ritismo e darlhe uma sova Era o que eu devia fazer mas sou um indivíduo fraco desgraçadamente Para iniciar aposto apenas uma disse Evaristo com aquela voz sossegada aquele olhar tranqüilo que nunca mostra o que ele tem por dentro Vejo doutor E atirei a ficha Que tem o senhor perguntou ele Mostrei uma trinca de damas Ganha E franziu os beiços delgados Homem essa agora exclamou Valentim Mendonça O doutor estava feito Como foi que o senhor conheceu que aquilo era bluff O doutor não pediu Abandonei um par de ases Preciso falar com o senhor hoje ou amanhã seu Mendonça Com o senhor e com seu pai Ele está aí Mendonça filho levantou o queixo quadrado e propôs que fôssemos procurar Mendonça pai Se era assunto de interesse devíamos ir logo Como bradou o Pinheiro Negócio a esta hora É uma in dignidade Outro bluff doutor Muito bem O bluff é uma grande i 1I 1i instituição Dê cartas Mendonça que diabo Você está namoran do com o Valério Arriscou uma abertura com trinca branca e atacou o Miranda que tinha seqüência É possível Você pede duas e faz seqüência E máxima Abra os dedos criatura isso assim na mão ninguém vê Confiança na turalmente todos nós somos de confiança mas jogo é na mesa e tenho visto muita seqüência errada Joguei duas horas distraído O que eu queria era saber por que razão não me vinha o ânimo de esbofetear o Neves uma tarde à porta da farmácia No bilhar do Silvé rio levantei o taco para rachar a cabeça do dr Castro E arreceava me de molestar o Neves Por que será que aquele velhaco me faz medo Joga Jogo respondi separando três reis Evaristo reabriu Outra reabertura doutor Santa Maria O senhor leva o di nheiro todo reclamou Valentim Mendonça Tirei um rei Evaristo e Mendonça não quiseram cartas Já que me faltava coragem não seria mau dar cinqüenta milréis a Ma nuel Tavares e mandar que ele desancasse o boticário no Chucu ru que é quase deserto Fala você João Valério resmungou o tabelião Assim não se acaba com isto 25 o zou o u 26 o L Zou ou Neste ziguezague minucioso e admiravelmente construí do o pormenor banal tão caro às tendências naturalistas é alinhavado e tornado significativo pela presença cons tante dos problemas pessoais de João Valério Sem haver introspecção a vida interior se configura graças à situação do personagem num contexto de fatos e acontecimentos Formase um estado reversível levando a uma perspectiva dupla em que o personagem é revelado pelos fatos e estes se ordenam mediante a iluminação projetada pelos problemas do personagem Esta idéia de situação parece uma das chaves para compreender a obra de Graciliano Ramos e em Caetés já a encontramos funcionando servida pela técnica pós naturalista inclusive o uso predominante do diálogo via preferencial que nele compensa a parcimônia do elemento narrativo e facilita a síntese No plano da representação estritamente individual encon tramos a técnica do devaneio que em romance na primeira pessoa serve não apenas de recurso narrativo mas também de equilíbrio interior do personagem permitindo elaborar si tuações fictícias que compensam as frustrações da realidade Talvezeupudessetambém comexíguaciênciae aturadoesfor ço chegarum dia a alinhavar os meuscaetésNão que esperasse embasbacaros povos do futuro Oh não As minhas ambições são modestas Contentavameum triunfo caseiro e transitório que impressionasseLuísaMarta Varejãoos MendonçaEvaris to BarrocaDesejavaque nasbarbearias no cinemana farmácia Nevesno café BacuraudissessemEntãojá leram o romance doValérioOu quena redaçãoda Semanaem discussõesentre IsidoroepadreAtanásioaminhaautoridadefosseinvocadaIsto deselvagensehistóriasvelhasé comoValério Dessas raízes modestas o devaneio chegará em Angústia ao crispado monólogo interior onde à evocação do passado vem juntarse uma força de introjeção que atira o aconteci mento no moinho da dúvida da deformação mental sub vertendo o mundo exterior pela criação de um mundo paro xístico e tenebroso que de dentro rói o espírito e as coisas É preciso ainda notar que na obra de Graciliano Caetés é o momento da ironia Não no sentido anatoliano e macio mas já travada de certo humor ácido que em relação aos ou tros se aproxima do sarcasmo e em relação a si mesmo da impiedade Reponta igualmente o senso de gratuidade e ino cuidade das coisas que percorrerá a sua obra de modo cada vez mais acentuado culminando nas Memórias do cárcere pela situação kafkiana da prisão sem motivo nem esclare cimento Aqui porém tudo é ainda relativamente brando embora a poesia se insinue pouco nessas páginas não secas mas marcadas pela ironia e pelo desencanto que freiam pos síveis expansões líricas Vezpor outra surgem todavia cenas livres de sarcasmo ou reserva como a entrevista decisiva de LuÍsa com o narrador 27 28 o t Zou o u É portanto uma atitude menos vital que intelectual com parada à maioria dos romances daquele tempo feitos quase sempre mais com o temperamento e as impressões do que com a reflexão e a análise Assim João Valério nunca chega a tratar os amores com arrebatamento ou verdadeira ilusão apesar de obcecado por eles Romantizaos a princípio de maneira menos reticente na fase dos desejos insatisfeitos Ao se realizarem observa sem tardança Não lhe caí aos pés com uma devoção mais ou menos tingida A felicidade perfeita a que aspirei sem poder concebêIa rapida mente se desfez no meu espírito Livre dos atributos que lhe em prestei LuÍsa me apareceu tal qual era uma criatura sensível que tendo necessidade de amar alguém me preferira ao dr Liberato ao Pinheiro aos indivíduos moços que freqüentam a casa dela Considerando que estas reflexões sucedem à primeira pos se esperada por mais de um ano e partem dum rapaz de vinte e cinco poderseia falar em cinismo Prefiro ver nelas e outras inclusive o modo por que são tratados os demais personagens a imparcialidade construída de certos pessi mistas ante a natureza humana um realismo desencantado que sucedeu em vários escritores ao pessimismo vigoroso e algo romântico dos primeiros naturalistas Nessa linha de discrição e ironia existe no livro dando lhe singular atrativo um romance ou melhor uma tentativa I l I I de romance dentro do romance João Valério anda às voltas com o episódio histórico do bispo D Pero Sardinha devora do pelos índios caetés mas o que busca na verdade é refúgio para onde correr sempre que for necessário um contrapeso às decepções da vida Mas à medida que se aproxima a posse de Luísa deixa de lado os canibais e quando os aborda mis tura neles a gente que serve de matéria à sua narrativa Continuei Suando escrevi dez tiras salpicadas de maracás iga çabas penas de arara cestos redes de caroá jiraus cabaças arcos e tacapes Dei pedaços de Adrião Teixeira ao pajé o beiço caído a perna claudicante os olhos embaçados para completáIo em presteilhe as orelhas de padre Atanásio De tal modo que a novela sobre os índios vai se tornando um romance dentro da vida apesar do tema remoto vai servindo de termômetro para asvariações do sentimento deJoãoValério a sua maior ou menor adaptação à realidade da cidadezinha Serveprincipalmente para Graciliano caracterizar a natureza do personagem central instalando a atividade analítica no cer ne dos seus atos obrigandoo a dobrarse sobre a realidade in terior com certo instinto de vivissecção moral que completa a influência de Eça eAnatole France1 por um toque machadiano num experimentalismo psicológico não isento de crueldade 1 I Com efeito Caetés é dum Anatole ou Eça brasileiro Otto Maria Car peaux VISÃO DE GRACILIANO RAMOSOrigens efins Rio CEB 1943 p 341 29 o g ou o u 30 o zou o v Finalmente é possível sugerir que os caetés simbolizam a presença de um eu primário adormecido nas profundas do espírito pelo jogo socializado da vida de superfície e que emerge periodicamente rompendo as normas Esse impulso irrefletido essa irritação com as regras sociais mal pressa giam aqui o vulto que haverão de assumir nos livros pos teriores Mas o autor os deixa bem patentes quando anota a fragilidade dos usos e convenções ou quando termina o livro pela visão de que o primitivismo dos Índios subsiste nele nos conhecidos na cidade localizada perto duma an tiga taba Que sou eu senão um selvagem ligeiramente polido com uma tênue camada de verniz por fora Deste modo os Índios que perpassam manifestamse co mo subsolo emocional que nele apenas aflora mas estaria chamado a desempenhar papel dominante na obra poste rior E quanto à fragilidade da vida convencional há aqui um trecho realmente premonitório que parece conter em embrião algumas das experiências fundamentais de Memó rias do cárcere O marido enganado dá um tiro no peito A morte é lenta e os amigos inclusive o narrador juntamse em sua casa revezandose na assistência Depois daquela crise na promiscuidade e na azáfama dos dias de angústia existia entre nós todos uma familiaridade estranhá vel Dormíamos quase sempre juntos homens e mulheres senta dos como selvagens Muitas necessidades sociais tinhamse extin guido mostrávamos às vezes impaciência irritação aspereza de palavras pela manhã as senhoras apareciam brancas arrepiadas de beiços amarelentos à noite procurávamos com egoísmo os melhores lugares para repousar Enfim numa semana havíamos dado um salto de alguns mil anos para trás Como se vê há em Caetés muita coisa de qualidade ex pressa com equilíbrio harmonioso e mordente Embora fi que meio na sombra em face dos grandes livros posteriores os atributos de colorido e medida impõem a sua leitura e o salvam da severidade do autor que parece quase se enver gonhava de havêIo publicado Ainda isto mostra que foi um preâmbulo a superar foi o exercício mediante o qualliqui dou as raÍzes pósnaturalistas e se libertou para as obras primas 2 A expressão ocupa um lugar à parte na literatura é lu garcomum da crítica usado quando não se tem o que dizer Apesar disso sinto a necessidade de recorrer a ele para en trar na análise de São Bernardo 31 o S zou o v 32 o zou o Cj Um romance pode ser grande e não ocupar lugar à parte na literatura É freqüente pelo contrário que a sua grande za seja devida à normalidade com que se integra no clima dominante da época Assim Bangüê Os Corumbas Jubia bá Mundos mortos são livros excelentes mas não destoam quanto à maneira do conjunto das correntes literárias a que se filiam Isto é como eles há outros embora de qualidade inferior de que são como irmãos mais belos Parecem para não sair da frase feita diversos picos de uma serra ou dos vários ramos da mesma serra São Bernardo porém como O amanuense Belmiro ou A quadragésima porta permanece isolado com uma originalidade que se não o faz maior que os demais tornao sem dúvida mais estranho quase ímpar Este grande livro é curto direto e bruto Poucos como ele serão tão honestos nos meios empregados e tão despidos de recursos e esta força parece provir da unidade violenta que o autor lhe imprimiu Os personagens e as coisas surgem nele como meras modalidades do narrador Paulo Honório ante cuja personalidade dominadora se amesquinham frágeis e distantes Mas Paulo Honório por sua vez é modalidade duma força que o transcende e em função da qual vive o sentimento de propriedade E o romance é mais do que um estudo analítico verdadeira patogênese deste sentimento2 2 I Cf Carpeaux ar cit p 348 II I De guia de cego filho de pais incógnitos criado pela pre ta Margarida Paulo Honório se elevou a grande fazendeiro respeitado e temido graças à tenacidade infatigável com que manobrou a vida pisando escrúpulos e visando o alvo por todos os meios o meu fito na vida foi apossarme das terras de São Bernardo construir esta casa plantar algodão plantar mamona levantar a serraria e o descaroçador introduzir nestas brenhas a pomicultu ra e a avicultura adquirir um rebanho bovino regular É um verdadeiro homem de propriedade mais ou menos no sentido dos Forsyte de Galsworthy isto é gente para a qual o mundo se divide em dois grupos os eleitos que têm e respeitam os bens materiais os réprobos que não os têm ou não os respeitam Daí resultam uma ética uma estética e até uma metafísica De fato não é à toa que um homem transforma o ganho em verdadeira ascese em questão definitiva de vida ou morte A princípio o capital se desviava de mim e perseguio sem des canso viajando pelo sertão negociando com redes gado imagens rosários miudezas ganhando aqui perdendo ali marchando no fiado assinando letras realizando operações embrulhadíssimas Sofri sede e fome dormi na areia dos rios secos briguei com gente que fala aos berros e efetuei transações de armas engatilhadas 33 o zou o Cj 34 o zouo v o próximo lhe interessa na medida em que está ligado aos seus negócios e na ética dos números não há lugar para o luxo do desinteresse esperneei nas unhas do Pereira que me levou músculo e nervo aquele malvado Depois vingueime hipotecoume a pro priedade e tomeilhe tudo deixeio de tanga levei Padilha para a cidade vigieio durante a noite No ou tro dia cedo ele meteu o rabo na ratoeira e assinou a escritura De duzi a dívida os juros o preço da casa e entregueilhe sete contos quinhentos e cinqüenta milréis Não tive remorsos Uma só vez ele age em obediência ao sentimento da grati dão recolhendo a negra que o alimentou na infância e que ama com a espécie de ternura de que é capaz Mas ainda aí as relações afetivas só se concretizam numericamente A velha Margarida mora aqui em São Bernardo numa casinha limpa e ninguém a incomoda Custame dez milréis por semana quantia suficiente para compensar o bocado que me deu Com o mesmo utilitarismo estreito analisa a sua conduta A verdade é que nunca soube quais foram os meus atos bons e quais foram os maus Fiz coisas boas que me trouxeram prejuízo fiz coisas ruins que me deram lucro Até quando escreve a sua estética é a da poupança É o processo que adoto extraio dos acontecimentos algumas parcelas o resto é bagaço Fora das atitudes consistentes em adquirir ou conservar bens materiais não apenas o senso moral mas o próprio en tendimento baralha e não funciona A aquisição e transformação da fazenda São Bernardo leva todavia o instinto de posse a complicarse em Paulo Honó rio com um arraigado sentimento patriarcal naturalmente desenvolvido tanto é verdade que os modos de ser depen dem em boa parte das relações com as coisas Amanheci um dia pensando em casar Não que estivesse amando pois não me ocupo com amores devem ter notado e sempre me pa receu que mulher é um bicho esquisito difícil de governar O que sentia era desejo de preparar um herdeiro para as terras de São Bernardo 35 o zou o v 36 o zou uo u A partir desse momento instalamse na sua vida os fer mentos de negação do instinto de propriedade cujo desen volvimento constitui o drama do livro Com efeito o patriarca à busca de herdeiro termina apai xonado casando por amor e o amor em vez de dar a demão final na luta pelos bens se revela de início incompatível com eles Para adaptarse teria sido necessária a Paulo Ho nório uma reeducação afetiva impossível à sua mentalidade formada e deformada O sentimento de propriedade acarre tando o de segregação para com os homens separa porque dá nascimento ao medo de perdêIa e às relações de concor rência O amor pelo contrário unifica e totaliza Madalena a mulher humanitária mãosabertas não concebe a vida como relação de possuidor a coisa possuída Daí o horror com que Paulo Honório vai percebendo a sua fraternidade o sentimento incompreensível de participar da vida dos des validos para ele simples autômatos peças da engrenagem rural Quando casa aos quarenta e cinco anos já o ofício criou nele as paixões correspondentes que o modelaram na inteireza do egoísmo Conheci que Madalena era boa em demasia mas não conheci tudo duma vez Ela se revelou pouco a pouco e nunca se revelou inteiramente A culpa foi minha ou antes a culpa foi desta vida agreste que me deu uma alma agreste A bondade humanitária de Madalena ameaça a hierarquia fundamental da propriedade e a couraça moral com que foi possível obtêIa O conflito se instala em Paulo Honório que reage contra a dissolução sutil da sua dureza Descobri nela manifestações de ternura que me sensibilizaram As amabilidades de Madalena surpreenderamme Esmola grande Mas Percebi depois que eram apenas vestígios da bondade que havia nela para todos os viventes A solução do conflito é o ciúme que mata a mulher Até então ninguém fazia sombra a Paulo Honório agora eis que alguém vai destruindo a sua soberania alguém brotado da necessidade patriarcal de preservar a propriedade no tem po e que ameaça perdêIa O senhor de São Bernardo reage pelo ciúme expansão natural do seu temperamento forte e forma ora disfarçada ora ostensiva do mesmo senso de ex clusivismo que o dirige na posse dos bens materiais Ciúme que aparece às vezes como eco de costumes primitivos de velhos raptos tribais de casamentos por compra fervendo no sangue 37 o t Zou u ou 38 o zou o j Mas nessa luta não há vencedores Acuada brutalizada Madalena se suicida Paulo Honório vitorioso de uma vitó ria que não esperava e não queria sente no admirável capí tulo XXXVI a inutilidade do esforço violento da sua vida Sou um homem arrasado Nada disso me traria satisfação Quanto às vantagens restantes casas terras móveis semoventes consideração de políticos etc é preciso convir em que tudo está fora de mim Julgo que me desnorteei numa errada Estraguei minha vida estupidamente Madalena entrou aqui cheia de bons sentimentos e bons propósitos Os sentimentos e os propósi tos esbarraram com a minha brutalidade e o meu egoísmo Portanto ao contrário de Caetés que se horizontaliza na mediania dos personagens São Bernardo é centralizado pela erupção duma personalidade forte e esta a seu turno pela tirania de um sentimento dominante Como um herói de Balzac Paulo Honório corpo rifica uma paixão de que tudo mais até o ciúme não passa de variante Em Caetés qualquer um poderia ter agido como João Valério na mes ma mediocridade de sentimento e atitude Ninguém em São Bernardo poderia agir como Paulo Honório pois ninguém possui a flama interior graças à qual pôde superar a adversi dade Mas ao vencer a vida ficou de certo modo vencido por 1lI I 11I I fi i ela pois ao lhe imprimir a sua marca ela o inabilitou para as aventuras da afetividade e do lazer Neste estudo patológico de um sentimento Graciliano Ramos juntando mais um dado à psicologia materialista de Caetés parte do pressu posto de que a maneira de viver condiciona o modo de ser e de pensar Creio que nem sempre fui egoísta e brutal A profissão é que me deu qualidades tão ruins E a desconfiança terrível que me aponta inimigos em toda a parte A desconfiança é também uma conse qüência da profissão Não se trata evidentemente do resultado mecânico de certas relações econômicas Uma profissão ou ocupação qualquer é um todo complexo integrado por certos impul sos e concepções que ultrapassam o objetivo econômico E este todo complexo como aprendemos nos romances de Balzac vai tecendo em torno da pessoa um casulo de ati tudes e convicções que se apresentam finalmente como a própria personalidade Em Paulo Honório o sentimento de propriedade mais do que simples instinto de posse é uma disposição total do espírito uma atitude geral diante das coisas Por isso engloba todo o seu modo de ser colorindo as próprias relações afetivas Colorindo e deformando Uma personalidade forte nucleada por paixão duradoura avare za paternidade ambição crueldade tende a extremarse 39 o zou o j 40 o ªzou o U em detrimento do equilíbrio do espírito Harpagão Goriot Sorel Verkovenski Foi este modo de vida que me inutilizou Sou um aleijado Devo ter um coração miúdo lacunas no cérebro nervos diferentes dos nervos dos outros homens E um nariz enorme uma boca enor me dedos enormes o seu caso é dramático porque há fissuras de sensibilida de que a vida não conseguiu tapar e por elas penetra uma ternura engasgada e insuficiente incompatível com a dureza em que se encouraçou Daí a angústia desse homem de pro priedade cujos sentimentos eram relativamente bons quan do escapavam à tirania dela e que descobre em si mesmo estranhas sementes de moleza e lirismo que é preciso abafar a todo custo Emoções indefiníveis me agitam inquietação terrível desejo doido de voltar de tagarelar novamente com Madalena como fa zíamos todos os dias a esta hora Saudade Não não é isto é antes desespero raiva um peso enorme no coração Sendo romance de sentimentos fortes São Bernardo é também um romance forte como estrutura psicológica e IIiI j literária Longe de amolecer a inteireza brutal do tempera mento e do caráter de Paulo Honório nos dissolventes sutis da análise Graciliano apresentao com a maior secura ex traindo a sua verdade interior dos atos das situações de que participa E a concentração no tema da vontade de domínio permite darlhe um ritmo psicológico definido e relativa mente simples nas linhas gerais a despeito da profundidade humana que o caracteriza Dois movimentos o integram um a violência do prota gonista contra homens e coisas outro a violência contra ele próprio Da primeira resulta São Bernardofazenda que se incorpora ao seu próprio ser como atributo penosamente elaborado da segunda resulta São Bernardolivrodere cordações que assinala a desintegração da sua pujança De ambos nasce a derrota o traçado da incapacidade afetiva O primeiro movimento ganha corpo no prazer da cons trução material em que Paulo Honório se realiza enquan to homem acrescentando a si os bens nos quais lhe parece residir o bem supremo Por meio de enumerações curtas e precisas ele grava no leitor o quadro da paisagem humani zada pelos elementos que lhe acrescentou com o trabalho o açude e suas plantas aquáticas o descaroçador e a serraria movidos com a energia fornecida por ele as culturas bem tratadas o gado de raça Tudo numa palavra que vindo so breporse à fazenda decadente que soube arrebatar aos maus proprietários perpassa discreta mas necessariamente em 41 o ª zou o u 42 o t Zouo u cada página como suporte do seu modo de ser e legitimação dos seus atos Por isso justificaramse as liquidações sumá rias de vizinhos incômodos a corrupção de funcionários e jornalistas a brutalização dos subordinados Uma fazenda como São Bernardo era diferente Não se podia comparar a qualquer outra empresa pois era o prolongamento dele próprio era a imagem concreta da sua vitória sobre homens e obstáculos de vário porte reduzidos superados ou esmagados E assim percebemos o papel da vio lência que voltada para fora é vontade e constrói destruindo Mas vimos que este primeiro movimento se entrelaça com outro voltada para dentro a violência é dissolução e des trói construindo Caracterizase efetivamente pela volúpia do aniquilamento espiritual o cultivo implacável do ciúme que não é senão uma forma de exprimir a vontade de pode rio e recusar o abrandamento da rigidez Certa tarde no escritório uma idéia indeterminada saltoume na cabeça esteve por lá um instante quebrando louça e deu o fora Quando tentei agarráIa ia longe O fato é que consegue agarráIa plantandoa dolorosa mente no pensamento e dela extraindo a causa final da sua desgraça Nesse processo de autodevoramento pelo ciúme e pela dúvida ele anula a construção anterior percebe a va cuidade das realizações materiais e nega o próprio ser que elas condicionam Intervém então o elemento inesperado Paulo Honório sente uma necessidade nova escrever e dela surge uma nova construção o livro onde conta a sua derrota Por meio dele obtém uma visão ordenada das coisas e de si pois no momento em que se conhece pela narrativa destróise enquanto homem de propriedade mas constrói com o testemunho da sua dor a obra que redime E a inteli gência se elabora nos destroços da vontade O próprio estilo graças à secura e violência dos períodos curtos nos quais a expressão densa e cortante é penosamen te obtida parece indicar essa passagem da vontade de cons truir à vontade de analisar resultando um livro direto e sem subterfúgio honesto como um caderno de notas Aqui não há mais como em Caetés influências diretoras jeito de exercício Há um processo estilístico maduro reve lando o grande escritor na plenitude dos recursos A apren dizagem laboriosa do volume anterior deu todos os frutos narração diálogo e monólogo fundemse numa peça har moniosa e sem lacunas onde cada palavra ou conceito obti dos nas altas temperaturas da inspiração e lavrados pelo sen so artístico perfazem a unidade inimitável cujo efeito sobre nós procuramos inutilmente explicar Vejase um exemplo desta síntese em que sentimos a presença dos elementos apontados em Caetés mas que aqui não podemos separar 43 o zou o u o tZou o u 45 Casounos o padre Silvestre na capela de São Bernardo diante do altar de S Pedro Estávamos em fim de janeiro Os pausdarco floridos salpica vam a mata de pontos amarelos de manhã a serra cachimbava o riacho depois das últimas trovoadas cantava grosso bancando rio e a cascata em que se despenha antes de entrar no açude en feitavase de espuma Quando viu os arames da iluminação o telefone os móveis vários trastes de metal que Maria das Dores conservava areados brilhando d Glória confessou que a vida ali era suportável Eu não dizia Oferecilhe um quarto no lado esquerdo da casa por detrás do escritório com janela para o muro da igreja vermelho O muro está hoje esverdeado pelas águas da chuva mas naquele tempo era E ele calado Por que foi esse atraso seu Ribeiro Doença O velho esfregou as suíças angustiado Não senhor É que há uma diferença nas somas Desde ontem procuro fazer a conferência mas não posso Por que seu Ribeiro Está bem Ponha um cartaz ali na porta proibindo a entrada às pessoas que não tiverem negócio Aqui trabalhase Um cartaz com letras bem grandes Todas as pessoas ouviu Sem exceção Isso é comigo disse d Glória esticandose Prepare logo o cartaz seu Ribeiro Perguntei se era comigo tornou d Glória diminuindo um pouco Ora minha senhora é com toda a gente Se eu digo que não há exceção não há exceção Vim falar com minha sobrinha balbuciou d Glória reduzin dose ao volume ordinário3 3 I Assinalei os pontos nevrálgicos que compõem o movimento psico lógico da cena 44 o zouo u ção dopmoogom pdo 50 pmgo pi I Co duidivo O dapigem No háemO Boma cológic do diálogo obtida por notações breves e certeiras 1 I do uma única descrição no sentido romântico e naturalista conheCimento do espírito pela situação em que o escritor procura fazer efeito encaixando no texto periodicamente visões ou arrolamentos da natureza e das coisas No entanto surgem a cada passo a terra vermelha em lama ou poeira o verde das plantas o relevo as estações as obras do trabalho humano e tudo forma enquadramento constante discretamente referido com um senso de oportu nidade que tirando o caráter de tema dá significado incor porando o ambiente ao ritmo psicológico da narrativa Esse livro breve e severo deixa no leitor impressões admiráveis o zou o u novo e cor de carne crua Eu e Madalena ficamos no lado direito e da nossa varanda avistávamos o algodoal o prado o descaroçador com a serraria e a estrada que se torce contornando um morro Se a percepção literária do mundo sensível aparece aqui refinada é igualmente notável o progresso verificado nos mecanismos do monólogo interior gênese dos sentimentos e evocação da experiência vivida A narrativa áspera de um ho mem que se fezna brutalidade ehesita ante a confissão vai aos poucos ganhando contornos mais macios entrando pela pes quisa do próprio espírito até atingir uma eloqüência pungen te embora freada pelo pudor e pela inabilidade em se expri mir de todo tão habilmente elaborada pelo autor O capítulo XXXI no qual desfecha não apenas o seu drama íntimo mas o da pobre Madalena que se mata é talvez o encontro ideal das linhas de construção da narrativa desde o amadureci mento da autoconsciência até a primeira noção do seu fracas so humano numa seqüência admirável em que se vêm unir a paisagem e a rotina de trabalho na fazenda o significado la tente do diálogo as entrelinhas cheias de ecos e premonições E o capítulo XIX um dos mais belos trechos da nossa prosa contemporânea pode ser citado como ponto alto daquela mistura de realidade presente e representação evocativa cujo esboço vimos em Caetés Nesta história rude ela surge de ma neira depurada mostrando que o autor conseguiu inscrevêIa na categoria pouco accessível das obrasprimas JiI t1 i g Dos livros de Graciliano Ramos Angústia é provavelmen te o mais lido e citado pois a maioria da crítica e dos lei tores o considera a sua obraprima Obraprima não será mas é sem dúvida o mais ambicioso e espetacular de quantos escreveu Romance excessivo contrasta com a discrição o despojamento dos outros e talvez por isso mesmo seja mais apreciado apesar das partes gordurosas e corruptíveis au sentes de São Bernardo ou Vidas secas que o tornam mais facilmente transitório Não sendo o melhor engastamse todavia em seu tecido nem sempre firme entre defeitos de conjunto as páginas e trechos mais fortes do autor í É um livro fuliginoso e opaco O leitor chega a respirar I mal no clima opressivo em que a força criadora do roman cista fez medrar o personagem mais dramático da moderna f I ficção brasileira Luís da Silva Raras vezes encontraremos íI na nossa literatura estudo tão completo de frustração Com I efeito Luís não é um frustrado como Bento Santiago o proI fessor Jeremias ou Belmiro Borba que se envolvem numal cortina de ironia mediocridade cética ou lirismo Mas um frustrado violento cruel irremediável que traz em si resert vas inesgotáveis de amargura e negação Há certos indivíduos que têm na alma um zero funcio nando como multiplicador dos valores que se aproximam em Luís da Silva não existe esse dissolvente integral como 47 o zou o u I III 48 o B ou o u poderíamos pensar à primeira vista Um zero interior anu la os valores propostos ao pensamento nele há depravação dos valores sentimento de abjeção ante o qual tudo se colore Ide tonalidade corrupta e opressiva Ao contrário da compla cência irônica ou piedosa revestida pelo negativismo de Ben to Santiago Jeremias ou Belmiro no fim das contas uma forma de perdoarse a si mesmo vemos em Luís da Silva uma fúria evidente contra a sua vida e a sua pessoa pelas quais não tem a menor estima Faltalhe na verdade o mí nimo de confiança necessária para viver e o único parente seu que conheço é o herói de Um homem dentro do mundo de Osvaldo Alves possuído pelo mesmo negativismo Deste modo a vida se torna pesadelo sem saída onde as visões des norteiam e suprimem a distinção do real e do fantástico Daí a referida fuligem que encobre suja sufoca e dá dese jos impossíveis de libertação Luís da Silva se sente sujo fisi camente e a obsessão da água purificadora percorre o livro no qual o banheiro desempenha papel importante Alguns dias depois achavame no banheiro nu fumando Abro a torneira molho os pés o banheiro da casa de seu Ramalho é junto separado do meu por uma parede estreita j I Lá estava Marina outra vez nova e fresca enchendo a boca e atirando bochechos nas paredes Lavo as mãos uma infinidade de vezes por dia lavo as canetas antes de escrever tenho horror às apresentações aos cumprimen tos em que é necessário apertar a mão que não sei por onde an dou Preciso muita água e muito sabão Este sentimento de abjeção voltase sobre ele próprio Lúís da Silvase anula pela autopunição e só consegue equilibrarse assassinando o rival equilíbrio precário que o deixa arrasa I o mas de qualquer modo é a única maneira de afirmarse Analisando este sentimento de culpa encontramos no li vro um movimento de consciência angustiada que o aproxi ma do poema A MÃO SUJA de Carlos Drummond de Andrade do qual parece irmão gêmeo na ficção Minha mão está suja Preciso cortá Ia Não adianta lavar A água está podre Nem me ensaboar O sabão é ruim A mão está suja suja há muitos anos 49 o tZouo u I I 11 111 Lendo o poema entendemos melhor o romance e o seu ir remediável desespero tão surdo cerrado e profundo como o de muitos versos do grande poeta mineiro Desespero oriun do do sentimento de um drama não só pessoal mas também coletivo Drama de todos de tudo da vida malfeita dos ho mens mal vividos Drama da velha Germana que dormiu meio século numa cama dura e nunca teve desejos de José Baía matando sem maldade e de riso claro de seu Evaristo enforcado num galho de carrapateiro do Lobisomem e suas filhas Gente acuada bloqueada esmagada pela vida espre mida até virar bagaço sem entender o porquê disso tudo E a 50 dureza a incrível dureza desse pequeno mundo sem dinhei ro nem horizonte cuja existência é uma rede simples e bruta de pequenas misérias golpes miúdos e infinitas cavilações Não há saída O judeu Moisés prega a revolução social e distribui boletins Nada porém penetra a opacidade das vidas pequenoburguesas inaccessÍveis à renovação e trope gamente aferradas à migalha A filosofia de Angústia pressu põe além do nojo a inércia amarela e invicta I Na realidade nojo inércia e desespero são características Ide Luís da Silva mas se estendem por todo o livro porque o Iele assimila o mundo ao seu mundo interior Na crispada Icorrente da narrativa todos se dispõem como projeção dele z próprio a miséria dos outros é a sua e uma vaga fraternidade ligao a seu Ramalho à fraqueza de d Adélia à maluquice de Vitória O vagabundo Ivo é um eco da sua própria in quietação da resignada submissão ao fado Moisés tem na revolução a confiança que quisera ter e não pode o próprio Julião Tavares que entra na vida de ombros e cotovelos pos sui desenvoltura que o atrai Essa solidariedade do narrado r com os outros personagens contribui para unificar a atmos fera pesada multiplicando em combinações infindáveis o drama básico da frustração Aprofundando a análise e passando desse limbo de vidas mesquinhas para os círculos mais ásperos dos motivos tal vez pudéssenl0s encontrar pelo menos em parte umai ppcação sexuFara a consciência estrangulada de Luís da Silva Com efeito há no livro três aspectos sexuais do seu abafamento Na infância foi o isolamento imposto pelo pai a solitude na qual se desenvolveram os sonhos e os germes da inadaptação Eu iajogar pião sozinho ou empinar papagaio Sempre brinquei só Sonhos e desejos acumulados na infância não se libertam na mocidade Pobre vagabundo humilhado Luís vive sem mulheres represando luxúria em conseqüência o amor para mim sempre fora uma coisa dolorosa complicada e incompleta 51 o zouo i 52 o zou o v Finalmente quando encontra Marina vem Julião Tavares e a carrega deixandoo na angústia maior do ciúme ali mentado pelo desejo insatisfeito Essa tensão dramática do sexo reprimido percorre quase todas as páginas Luís tem a obsessão da intimidade dos outros Fareja safadezas vê em tudo manifestações eróticas e vestígios de posse Penso mes mo que o problema do recalque e o conseqüente sentimento de frustração estão marcados por três símbolos fálicos as cobras da fazenda do avô os canos de água de sua casa e a corda com que enforca Julião Lembreime da fazenda de meu avô As cobras se arrastavam no pátio Eu juntava punhados de seixos miúdos que atirava nelas até matáIas Certo dia uma cascavel se tinha enrolado no pescoço do velho Trajano que dormia num banco do copiar Eu olhava de longe aquele enfeite esquisito A cascavel chocalhava Trajano dançava no chão de terra batida e gritava Tira tira tira Dentre as imagens da infância esta é a que lhe vem à me mória em momentos de angústia com maior freqüência e sem motivo aparente Às vezes retocaa acrescentando um deta lhe outras apenas menciona Surge pela primeira vez quan do Luís se sente traído espezinhado no orgulho de homem por Julião Tavares Naturalmente a cobra seria solução para matar o rival como os canos de sua casa pobre os mesmos que levavam água à casa de Marina e também podem matar cJ ft Um pedaço daquilo é uma arma terrível Uma arma terrível sim senhor rebenta a cabeça dum homem E o instrumento de morte lhe parece animado o cano estiravase como uma corda grossa bem esticada uma corda muito comprida Por fim a corda lhe é dada por seu Ivo num momento em que o desespero o predispunha a tudo e ele se enche a prin cípio de horror pressentindo a utilidade que poderá ter de acordo com desejos ainda mal definidos Parecelhe que as sume a forma de cobra alucinandoo com o movimento dos anéis Pouco tempo depois mata com ela Julião Tavares Ora all10rteste como vimQs é firl11içãQ de virilidade espezinhada Pensamos então no papel obscuro no signifi cado dessa corda que tem vida como a cobra e mata como o cano de água Água princípio fertilizante cobra ser vivo que mata Uma ligação profunda da vida e da morte do de sejo bloqueado de viver libertandose pela supressão de um dos obstáculos o rival Amor e morte como nos mitos A violenta fixação fálica está diretameI1te ligada aotomçle sexoreêrdo1o ibafamento psicolgiçdlivro O meni no que viveu sozinho o adolescente sem amor insatisfeito se expande num falismo violento este entrando em conflito com a consciência de recalcado o interioriza inabilitandoo 53 o g zouo v 1 I 54 o zou o v para relações normais e o leva num assomo de desespero a matar Julião MatáIo com a corda imagem que liberta por transferência a energia frustrada da sua virilidade Sefor cabível a sugestãoapresentada será preciso ainda as sill completáiitom aSitondi0asquais se desenvolveu a vida de Luís da Silva A decadência do avô Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva e a do pai reduzido a Cami 10 Pereira da Silva criaram um ambiente de derrota prévia para a sua carreira e a educação forçandoo a refugiarse no próprio eu transformou as pessoas em seres agressivos Sou uma besta Quando a realidade me entra pelos olhos o meu pequeno mundo desaba De vez em quando levava a mão ao rosto e o contacto da palma com a barba crescida arrancavame palavrões obscenos grunhi dos em voz baixa Um porco parecia um porcj Esta comparação não me entristecia Desejava ser como osbichos afastarme dos outros homens E ali estava encostado ao balcão sem perceber o que diziaJI meio bêbedo susceptível e vaidoso desconfiado como um bich Por isso o semelhante é quase sempre barreira em que ba te incapaz de adaptarse As relações humanas lhe parecem sempre contaminadas e é com relativo sentimento de triunfo que se crispa enojado para perceber a vida sexual no apo sento vizinho ou vislumbra de tocaia numa página gros seira a presença na latrina da namorada infiel Reduzidos à animalidade os seres humanos lhe aparecem em tais mo mentos como os quereria ver sempre Tanto que bane das re cordações e devaneios qualquer imagem de fugidia beleza ou interpretação que projete claridade benéfica sobre os atos De todo aquele romance que se passou num fundo de quintal as particularidades que melhor guardei na memória foram os mon tes de cisco a água empapando a terra o cheiro dos monturos urubus nos galhos da mangueira farejando ratos em decompo sição no lixo Tão morno tão chato Nesse ambiente empestado Marina continuava a oferecerse negaceando As pessoas que tolera são pobresdiabos igualmente aca nalhados pela vida Moisés revolucionário furtivo e medro so o vagabundo Ivo Pimentel escriba derrotado eprimário Os demais lhe causam nojo ou pavor E eis que surge gordo burro suado eufórico rico a nulidade triunfante de Julião Tavares A sua morte se impõe a Luís quase com a mesma necessidade de purificação que o faz procurar a água Em meio à imundície dos seres inclusive a própria são necessá rios certos arrancos bruscos que não solucionam mas cons tituem tentativa de seguir vivendo Se em Julião Tavares vem corporificarse o que odeia ou o que Graciliano odeia 55 o zou o v 1111 56 o ou o cr como lembra Laura Austregésilo4 ele se torna o obstá culo máximo entre os obstáculos Os seres são assim e nós procuramos superáIos pela força como tenta em relação a Marina Resistindo devem ser destruídos para não ficarmos destruídos Esta idéia que antes não lhe ocorrera ocorrelhe agora como solução das derrotas constantes Mas não vem de chofre Insinuase devagar no espírito numa progressão admiravelmente bem conduzida que é das melhores coisas do livro Ora em conexão longínqua com os símbolos referi dos ora em idéias de morte sem nitidez ora reportandose a uma pessoa estranha como o marido de d Rosália que mal conhecia mas ouvia à noite nas atividades barulhentas do leito conjugal do outro lado da parede Para sugerir esse mundo atroz Graciliano Ramos modi fica a técnica anterior Como em Caetés e São Bernardo a narrativa é na primeira pessoa mas só aqui podemos falar propriamente enimnÓIginterlàfem palavras que não visam interlocuteaeêriêmdeessidade própria Nos dois primeiros há separação nítida entre a realidade narra da e a do narrador mesmo quando em São Bernardo este se impõe à narrativa em ambos os figurantes são respeitados como tais e as cenas apresentadas como unidades autôno mas Em Angústia o narrador tudo invade e incorpora à sua 4 I As VARIAS FACES SECRETAS DE GRACILIANO RAMOS Homenagem a Graci liano Ramos Rio 1943 p 83 substância que transborda sobre o mundo Daí uma apre sentação diferente da matéria Q diálogo por exemplo que antes era o principal instru mento na arquitetura das cenas chegando a parecer exces sivo em Caetés e pelo menos abundante em São Bernardo se reduz a pouco A narrativa rompe amarras com o mundo e se encaminha para o monólogo de tonalidade solipsista O devaneio assume valor onírico e o livro parece ao leitor as horas de um longo pesadelo Além disso surge elemento novo o recurso à evocação autobiográfica que se junta freqüentemente por associação às coisas vistas e à experiência cotidiana para constituir o fluxo da vida interior Cada acontecimento é estímulo para Luís da Silva repassar teimosamente fatos e sentimentos da infância e da adolescência que pesam na sua vida de adulto como sementeira longínqua das ações e do modo de ser Nesta altura cabe uma interrogação até que ponto há ele mentos da vida do romancista no material autobiográfico do personagem Ninguém dirá que sou vaidoso referindome a essestrês indivíduos disse ele no discurso em que agradeceu o jantar do cinqüen tenário 57 o ªzouo cr It 58 o zou wou porque não sou Paulo Honório não sou Luís da Silva não sou Fabiano Quanto ao primeiro e ao terceiro não há dúvida Do se gundo notase que a sua meninice é pouco mais ou menos a narrada em Infância Só que reduzida a elementos da etapa anterior aos dez anos quando morou na fazenda à sombra do avô materno aqui paterno e na vila de Buíque aprovei tou pois a parte do sertão como quem quer dar maior as pereza às raízes do personagem Pelas Memórias do cárcere sabemos ainda que emprestou a este emoções e experiências dele próprio inclusive o desagrado pelo contacto físico e o episódio com a filha da dona da pensão no cinema que o obseda E não é difícil perceber que deu a Luís da Silva algo de muito seu a vocação literária o ódio ao burguês e coisas ainda mais profundas Angústia é o livro mais pessoal de Graciliano Ramos escreveu certa vez Almeida Sales De outra maneira não se explica essa espontaneidade de criação essa realidade de situações esse desembaraço analítico com que espia o seu Luís da Silva6 5 I Homenagem cit p 29 6 GRACILIANO RAMOS Cadernos da hora presente 1maio de 1939 p 153 Poderseia talvez dizer que Luís épersonagem criado com premissas autobiográficas e Angústia autobiografia poten cial a partir do eu recôndito Mas no processo criador tais premissas que cavam funduras insuspeitadas no subcons ciente e no inconsciente receberam destino próprio e deram resultado novo o personagem no qual só pela análise baseada nos dois livros autobiográficos podemos discernir virtualidades do autor Tomese o caso da aEitudeliteráríãRaras vezes se encon trará escritor de alto nível que deprecie tão metodicamente própriabra Há em Graciliano uma espécie de irritação permanente contra o que escreveu uma sorte de arrependi mento que o leva a justificar e quase desculpar a publicação de cada livro como ato reprovável Nas Memórias do cárcere há todo um complexo de Angústia neste sentido Caetés cau salhe repulsa tão profunda que prefere evitarlhe o nome São Bernardo e Vidas secas lhe parecem simplesmente to leráveis na informação de Francisco de Assis Barbosa Isto se deve é claro ao anseio de perfeição mas também a uma vaidosa timidez que chega ao negativismo e ao pudor de mostrar algo muito seu Em Luís da Silva esta tendência toca o paroxismo Seus escritos que punitivamente faz para vender dãolhe nojo como literatice sem sentido Vende página por página o ca derno de sonetos o resto é consumido pelos ratos 59 o zou w o u li 1111 11111 60 o zou ou Afinal íamos encontrar o armário dos livros transformado em cemitério de ratos Os miseráveis escolhiam para sepultura as obras que mais me agradavam Antes porém faziam um sarapa te feio na papelada Mijavamme a literatura toda comiamme os sonetos inéditos Eu não podia escrever Vejase ainda a atitude em face dos bempostos e satisfeitos da vida Sentese por toda a obra de Graciliano e os livros pessoais vêm confirmar uma aversão que vai da mal refre ada birra ao ódio puro e simples pelos ricos importantes doutos fariseus homens dos vários graus de compromisso com a ordem estabelecida É uma espécie de projeção da sua náusea ante os livros de leitura do solene barão de Macaú bas cujas barbas nos respectivos frontispícios lhe pareciam a mais torva ameaça à inteligência e à beleza como nos conta em Infância Nas Memórias do cárcere há freqüente acentua ção da sua canhestrice rusticidade laconismo em face dos brilhantes No fundo certo alívio de não ser como eles que lhe despertam desconfiança e aversão Estas em Luís da Silva são máximas A misantropia desá gua em asco ou agressiva indiferença pelos homens do Insti tuto Histórico os ricaços os altos funcionários os literatos E tudo converge para Julião Tavares patriota e versejador caricatura do tipo que lhe desagrada e intimida desde a ca pacidade de comunicação fácil até a ligação entre literatura e arrivismo A sua morte como bem viu Laura Austregésilo no estudo citado é a vingança sobre os aspectos humanos que mais o repelem e convém notar já se esboçavam no Evaristo Barroca de Caetés Poderíamos ainda lembrar o sexo que segundo nos diz em Memórias do cárcere ocasionava nele rebeliões periódi cas e violentas confinadas à esfera do desejo Em Angústia romance de carne torturada esta violência rompe as com portas se objetiva e alcança o seu complemento que é a ân sia de destruição Poderíamos dizer finalmente que isso tudo se reúne na I referida antinomia sujeiralimpeza que o persegue fisica mente nas Memórias do cárcere e transposta ao plano moral é um dos eixos para se compreender em profundidade a per sonalidade de Luís da Silva No romance aparecem liberta dos os impulsos complementares de abjeção e purificação que procura superar pela destruição de Julião Tavares não apenas homem física e moralmente sujo suado desonesto como verdadeira encarnação da idéia de imundície Assim parece que Angústia contém muito de Graciliano Ramos tanto no plano consciente pormenores biográficos quanto no inconsciente tendências profundas frustrações representando a sua projeção pessoal até aí mais completa no plano da arte Ele não é Luís da Silva está claro mas Luís da Silva é um pouco o resultado do muito que nele foi pi sado e reprimido E representa na sua obra o ponto extre mo da ficção o máximo obtido na conciliação do desejo de 61 o zou o u 62 o u desvendarse com a tendência de reprimirse que deixará brevemente de lado a fim de se lançar na confissão pura e simples 4 Antes porém escreveu alguns contos e Vidas secas7 Os primeiros são no geral medíocres Constrangidos e dúbios mais parecem fragmentos faltalhes certa gratuidade artís tica e a capacidade de afundarse sinceramente numa situa ção limitada esquecendo possíveis desenvolvimentos sem o que dificilmente se manipula um bom conto Por isso mes mo talvez haja maior afinidade entre o contista e o cronista ambos sentindo que sob a futilidade aparente da anedota da ocorrência singular e do puro arabesco intelectual po dem ocultarse verdades que o romancista só desvenda por meio de seqüências mais longas num contexto que ambicio na refazer o ritmo da vida enquanto o conto só visa a um momento significativo e literariamente depurado Com a ex ceção do maior de todos Machado de Assis os nossos gran 71 Publicados em jornais aqui e na Argentina os contos foram depois reu nidos em volume que se chamou primeiro numa designação não sei até que ponto intencional mas que descreve bem a sua verdadeira natureza Histórias incompletas Livraria do Globo 1946 Mais tarde reorganiza dos com supressões dos fragmentos de livro e acréscimos constituíram o volume Insónia José Olympio 1947 des contistas não têm sido ao mesmo tempo grandes roman cistas embora um ou outro tenha escrito bons romances Vidas secas para alguns a obraprima do autor pertence a um gênero intermediário entre romance e livro de contos e o estudo da sua estrutura esclarece melhor o pouco êxito de Graciliano neste gênero Com efeito é constituído por cenas e episódios mais ou menos isolados alguns dos quais foram efetivamente publicados como contos mas são na maior parte por tal forma solidários que só no contexto adquirem sentido pleno Quando se aproxima das técnicas do conto Graciliano cria histórias incompletas subordinadas a um pensamento unificador que pôde aqui reunir sem violência sob o nome de romance embora na qualificação excelente de Rubem Braga romance desmontável De qualquer modo é o último dos seus livros de ficção e contrasta com os anteriores por mais de um aspecto Parece que fatigado da brutalidade esterilizante de Paulo Honório e do niilismo corrupto r de Luís da Silva quis oferecer da vida uma visão sombria é verdade mas não obstante lim pa e humana Fabiano é um esmagado pelos homens e pela natureza mas o seu íntimo de primitivo é puro Temos a impressão de que esse vaqueiro taciturno e heróico brotou do segundo capítulo dOs sertões onde Euclides da Cunha descreve a retidão impensada e singela do campeiro nordes tino Talvez seja esse o motivo de Otto Maria Carpeaux ter falado em otimismo a propósito de Vidas secas no ensaio 63 o zou o u 1 64 o zou ou por todos os títulos magistral que escreveu sobre o nosso autor em Origens e fins Por isso este livro apresenta um passo além da simplicida de e pureza de linhas já plenamente realizadas em São Ber nardo vai ao tosco e ao elementar Paulo Honório e Luís da Silva pensam logo existem Fabiano existe simplesmente O seu mundo interior é amorfo e nebuloso como o dos filhos e da cachorra Baleia O que há nele são os mecanismos da asso ciação e da participação quando muito o resíduo indigerido da atividade cotidiana É portanto mais que simples primi tivo e o livro mais tosco do que puro A sua estrutura de pe quenos quadros justapostos lembra certos polípticos medie vais onde a vida de um bemaventurado ou os fastos de um herói se organizam em unidade bastante livre dispensado o nexo rigoroso da seqüência vemos aqui um nascimento em seguida uma caçada logo uma batalha e finalmente a extremaunção presidida por um santo com a assistência dos anjos Igualmente sumárias e eloqüentes são as pequenas telas encaixilhadas de Graciliano Ramos em que nos é dado ora este ora aquele passo do calvário dos personagens Não falta a festa votiva nem o lampejo das armas não falta so bretudo a paisagem de fundo áspera e contundente na seca promissora nas águas movimentada e vária nos povoados Benjamim Crémieux falou de romance em rosácea a pro pósito do Temps Perdu Pareceme que Vidas secas pode noutro sentido e com maior propriedade classificarse de igual modo contanto que imaginemos uma rosácea simples e nítida em que as cenas se disponham com ordenada sim plicidade Políptico ou rosácea qualquer coisa de nítido e primitivo cuja cena final venha encontrar a do princípio Fabiano retirando pela caatinga abandona a fazenda que animou por algum tempo Mais do que os outros este livro é uma história contada diretamente A alma dos personagens perquirida com amor e sugerida com desatavio é apenas a câmara lenta do mesmo brilho que lhes vai nos olhos Não pressupõe refolhos não devora nem Vidas secas é romance de análise no sentido de que nele o conhecimento prima a ação Análise haverá em Caetés dissolvida habilmente na ironia e no humor haverá no desespero soturno de São Bernardo ou na desagregação moral de Angústia Aqui não O matutar de Fabiano ou Si nhá Vitória não corrói o eu nem representa atividade exce pcional Por isso é equiparado ao cismar dos dois meninos e da cachorrinha pois no primitivo na criança e no animal a vida interior obedece outras leis que o autor procura des vendar não se opõe ao ato mas nele se entrosa imediata mente Daí a pureza do livro o impacto direto e comovente não dispersado por qualquer artificioso refinamento Notese que abandonando a técnica dos livros anteriores Graciliano abandona aqui a narrativa na primeira pessoa e suprime o diálogo A rusticidade dos personagens tornava im possível a primeira técnica a segunda viria trazer uma ruptu 65 o zouo u 66 o zouo v ra do admirável ritmo narrativo que adotou esolda no mesmo fluxo o mundo interior e o mundo exterior Em nenhum outro livro é tão sensívelquanto neste aperspectiva recíproca referida acima que ilumina o personagem pelo acontecimento e este por aquele É que ambos têm aqui um denominador comum que os funde e nivela o meio físico Essas iluminuras de Li vro de Horas áspero livro em que Deus é substituído pela fa talidade e pelo desespero constituem na verdade um roman ce telúrico uma decorrência da paisagem entroncandose na geografia humana Deste modo representam a incorporação de Graciliano Ramos às tendências mais típicas do romance nordestino no qual se enquadrava apenas em parte até então e ninguém melhor que ele estabelece e analisa os vínculos bru tais entre homem e natureza no Nordeste árido Vidas secas ilustra na ficção o determinismo desesperado dOs sertões o martírio do homem ali é o reflexo de tortura maior abrangen do a economia geral da Vida Nasce do martírio secular da Terra Ora o drama de Vidas secas é justamente esse entrosa mento da dor humana na tortura da paisagem Fabiano ain da não atingiu o estádio de civilização em que o homem se liberta mais ou menos dos elementos Sofre em cheio o seu peso sacudido entre a fome e a relativa fartura a curva da sua existência segue docilmente os caprichos hidrográficos que lhe dão vida ou morte Para continuar com Euclides o heroísmo tem nos sertões para todo o sempre perdidas tragé dias espantosas Não há revivêIas ou episodiáIas Surgem de uma luta que ninguém descreve a insurreição da terra contra o homem Graciliano criou um drama daquele heroísmo e desta in surreição Fabiano a mulher os filhos e a cachorra decorrem da seca À maneira do sertanejo euclideano são apagados na bonança erigindose inesperadamente em heróis ante a ameaça de situações decisivas Os lances da sua vida são co rolários do meio físico e da organização social a ele ajustada Para eles a existência é de fato uma seqüência de quadros aparentemente autônomos mas contraditórios cuja unida de só existe para o demiurgo que os animou e deste modo se esclarece para o leitor a razão profunda da estrutura des montável acima referida Vidas secas começa por uma fuga e acaba com outra De corre entre duas situações idênticas de tal modo que o fim encontrando o princípio fecha a ação num círculo Entre a seca e as águas a vida do sertanejo se organiza do berço à sepultura a modo de retorno perpétuo Como os animais atrelados ao moinho Fabiano voltará sempre sobre os pas sos sufocado pelo meio Daí a sua psicologia rudimentar de forçado Como está nOs sertões o círculo estreito da atividade remorouIhe o aperfeiçoamento psíquico 67 o zouo v o t Zou o V É preciso todavia lembrar que essa ligação com o proble ma geográfico e social só adquire significado pleno isto é só atua sobre o leitor graças à elevada qualidade artística do livro Graciliano soube transpor o ritmo mesológico para a própria estrutura da narrativa mobilizando recursos que a fazem parecer movida pela mesma fatalidade sem saída Eu clides da Cunha tomou o sertanejo e deu ao seu drama que foi o primeiro a exprimir convenientemente faíscas de epo péia Graciliano esbateuo no ramerrão das misérias diárias e o fez irremediavelmente doloroso Apegouse a um deter minismo semelhante ao dOs sertões tornandoo inflexível pela representação literária do eterno retorno E assim como José Lins do Rego produziu as obrasprimas das terras de massapé com a planturosidade das regiões fartas ele se tor nou o escritor por excelência da terra estorricada Romance da zona pastoril encourado como ele na secura da fatalidade geográfica Da consciência mortiça do bom Fabiano podem emergir os transes periódicos em que se estorce o homem es magado pela paisagem e pelos outros homens Assim como em dado momento sente a nostalgia do cangaço nada o impede de seguir Antônio Conselheiro únicas saídas para recompor a consciência mutilada Consciência que lhe per mitiria matar um homem com a gratuidade e a pureza de Casimiro Lopes em São Bernardo e José Baía em Angústia I 1 1 5 E assim chegamos aos livros pessoais onde obedecendo à tendência manifestada em Angústia Graciliano aborda dire tamente a sua experiência Apesar de a crítica mais em voga reagindo contra certos exageros de origem romântica afirmar que a obra vale por si e em si mesma deve ser considerada independente da pessoa do escritor não nos furtamos à curiosidade que este desperta Se cada livro pode dar lugar a um interesse apenas imediato isto é esgotado pelo que elepode oferecer uma obra em con junto nos leva quase sempre a averiguar a realidade que nela se exprime e as características do homem a quem devemos esse sistema de emoções e fatos tecidos pela imaginação Infância e Memórias do cárcere satisfazem este desejo com referência a Graciliano e pelas citações anteriormente fei tas vimos quanto servem para compreender os seus livros E servem mais do que pode parecer pois não apenas reve lam certas características pessoais transpostas ao romance como esclarecem o modo de ser do escritor permitindo interpretar melhor a sua própria atitude literária Assim embora desprovido de elementos autobiográficos aparentes São Bernardo fica mais nítido após a sua leitura fica de algu ma forma tão pessoal quanto Angústia ao compreendermos quanto da sua desesperada contensão do seu gelo ardente diria um barroco se arraiga na personalidade do autor 69 o L Zou o v 70 o zou ou É preciso dizer ainda que Infância e Memórias do cárcere valem por si como leitura autônoma independente da uti lização mais ou menos indevida a que os submete o crítico pois do ponto de vista humano e artístico são grandes li vros no nível do que o autor escrevera de melhor até então Aquele narrando os primeiros anos de vida ainda se prende a uma tonalidade quase romanesca no segundo esta desa parece ante o depoimento Talvez seja errado dizer que Vidas secas é o último livro de ficção de Graciliano Ramos Infância pode ser lido como tal pois a sua fatura convém tanto à exposição da verdade quan to da vida imaginária nele as pessoas parecem personagens e o escritor se aproxima delas por meio da interpretação lite rária situandoas como criações É claro que toda biografia de artista contém maior ou me nor dose de romance pois freqüentem ente ele não consegue pôrse em contacto com a vida sem recriáIa Mas mesmo assim sentimos sempre um certo esqueleto de realidade escorando os arrancos da fantasia Na mentirada das Con fissões de Rousseau percebemos essa ossatura que não nos deixa confundiIa com um romance Percebemos sobretu do o tom de crônica a divisão matemática do tempo Em Infância o esqueleto quase se desfaz dissolvido pela manei ra de narrar simpática e não objetiva restando apenas uns pontos de ossificação para nos chamar à realidade Para o leitor que não conhece a zona do autor creio que esses pon I 1t tos não passam de alguns nomes de cidade e de gente Bu íque Viçosa Mota Lima Por outro lado São Bernardo se passa em Viçosa Caetés em Palmeira dos Índios e nem por isso deixam de ser romances E para nós não há diferença alguma entre por exemplo seu Ribeiro de São Bernardo e o avô do narrador em Infância ambos têm a consistên cia autêntica dos personagens criados De tal modo que a veracidade deste livro só encontra testemunho garantido nos outros de Graciliano Ramos ou para ser mais preciso em Angústia A ficção neste caso explica a vida do autor ao contrário do que se dá geralmente Muitas das pessoas aparecidas na primeira parte de Infância já eram nossos co nhecidos de Angústia E penetrando na vida do narrador menino parecenos que há nela o estofo em que se talham personagens como Luís da Silva i Nesta narração autobiográfica um dos traços mais cons tantes é o sentimento de humilhação e de machucamento Humilhação de menino fraco e tímido maltratado pelos pais e extremamente sensível aos maustratos sofridos e presenciados Por toda parte recordações doídas de alguma injustiça de alguma vitória descarada do forte sobre o fraco Talvez porque ante a sensibilidade do narrador as circuns tâncias banais da vida avolumassem como outras tantas brutalidades Em casa na rua na escola vê sempre um inde feso nas unhas de um opressor A priminha VentaRomba àcolega perseguido João ele próprio E sempre sempre a 71 o êzouo u o zou w o u Punição é gratQjta nascendo daquela desnorteante injustiça i com que trava conhecimento certo dia por causa do cintu I rão paterno Aconseqüência natural é o refúgio no mundo I interior e o interesse pelos aspectos inofensivos davida Ino fensivos e portanto inúteis Sonhar ler imaginar mundos a escala das baratas O avô paterno fora também um perdido no meio dos ho mens práticos eúteis não gozava suponho muito prestígio na família Possuíra engenhos na nlata enganado por amigos e parentes sagazes ar ruinara e depeldia dos filhos Era frágil sOilhador gostava de cantar e fazer urupemas rijas e sóbrias desprezadas pelos outros em favor das cor riqueiras enfeitadas e frágeis O narrador herdou a tara desse antepassado diferente dos homens sem mistério que o rodeavam e a slla vocação literária terá provavelmente mui to de fuga para uma atividade que traz plenitude Mas por sua vez a literatura não dá segurança porque a obra de arte realiza apenas llma parcela mínima do que se imaginou O avô paterno fazia urupemas que não o contentavam mas apesar de critiqdo perseverou não porqu as estimasse mas porque era o meio de expressão que lhe parecia tnais razoável Do mesmo modo procede o narrador provavelmente à busca de saída para o inútil excessivo E compreende en tão o sentido daquele avô isolado A grandeza e a harmonia singular hoje desdobram a figura ge mente e mesquinha de ordinário ocupada apesar da moléstia em fabricar miudezas Tinha habilidade notável e muita paciência Paciência Acho que não é paciência É uma obstinação concen trada um longo sossego que os fatos exteriores não perturbam Os sentidos esmorecem o corpo se imobiliza e curva toda a vida se fixa em alguns pontos no olho que brilha e se apaga na mão que solta o cigarro e continua a tarefa nos beiços que murmuram palavras imperceptíveis e descontentes Sentimos desânimo ou irritação mas isso apenas se revela pela tremura dos dedos pelas rugas que cavam Na aparência estamos tranqüilos Se nos fala rem nada ouviremos ou ignoraremos o sentido do que nos dizem E como há freqüentes suspensões no trabalho com certeza ima ginarão que temos preguiça Desejamos realmente abandonáIo Contudo gastamos uma eternidade num arranjo de ninharias que se combinam resultam na obra tormentosa e falha Insisti nesta citação longa porque referindose ao avô ela se refere também ao neto como nos aparece neste livro de memórias e certamente ao futuro escritor que persegue a expressão do pensamento Verdadeira síntese da criação 73 o g zou w o u 74 o zou o u artística o trecho acima é o mais importante de Infância porque se apresenta como chave de vocação Portanto o narrado r tem de comum com os heróis dos romances de Graciliano Ramos a circunstância de necessi tarem todos eles de evasão João Valério em Caetés se refu gia na história dos Índios Paulo Honório em São Bernardo escreve memórias da mesma forma que Luís da Silva em Angústia Fabiano não pode evadirse porque não consegue ver uma nesga na sufocação completa que o oprime Mas explicar a arte pela necessidade de fugir é coisa vaga e geral mais ou menos um pressuposto em todo artista O problema de Graciliano Ramos como de muitos romancis tas é que os seus livros são espécies de proposições de uma vida possível O menino de Infância é um embrião de Luís da Silva de João Valério e do próprio Fabiano Ampliando o que ficou dito em relação a Angústia talvez se possa afirmar que há em Caetés e Vidas secas um desenvolvimento de ten dências potenciais Ou mesmo hipertrofia de certos aspec tos realmente acontecidos na vida do narrado r Vidas secas teria sido possível se a seca descrita em Infância arruinasse o pai e de queda em queda o nivelasse aos retirantes de pé no chão Foi pelo menos uma passagem sentida na meni nice quando o narrado r padece de sede deitado na esteira enquanto Amaro e José Baía Fabianos possíveis cortam mandacarus para o gado e o pai se abate vencido pelos ele mentos Apenas em Paulo Honório não somos capazes de r reconhecer uma evolução provável do herói de Infância Ho mem rijo e insensível às machucaduras da vida teve uma mocidade obstinada de lutador Os mundos movediços do sonho da dúvida e da autoabjeção que formam em doses variadas a psicologia de João Valério e Luís da Silva apenas se revelam a ele na entrada da velhice e mesmo assim he sitantes e mal definidos Lendo Infância concluímos que os livros de Graciliano Ramos se concatenam num sistema literário pessimista Meninos rapazes homens mulheres pobres ricos mise ráveis inteligentes cultos ignorantes todos obedecem a uma fatalidade cega e má Vontade obscura de viver mais forte nuns que noutros que os leva a caminhos prétraça dos pelo peso do meio social físico doméstico A vida é um mecanismo de negaças em que procuramos atenuar o peso inevitável dessas fatalidades e parecemos ridículos maus inconseqüentes Às vezes somos fortes e pensamos esmagar a vida na realidade esmagamos apenas os outros homens e acabamos esmagados por ela Nada tem sentido porque no fundo de tudo há uma semente corruptora que contamina os atos e os desvirtua em meras aparências Uns se refugiam na ironia e no ceticismo como João Valério ou na fúria de cepcionada da renúncia como Paulo Honório Outros se entregam ao desespero como Luís da Silva Outros ainda abrem os olhos sem entender e os baixam de novo resig nados como Fabiano Tudo depende do ponto de partida 75 o zou o u 76 o zou ov da educação das pancadas do sexo reprimido ou satisfeito da falta ou da abundância de dinheiro O narrador de In fância se encarrega de nos ensinar algumas das razões dessa cadeia necessária de sofrimentos Os castigos imerecidos as maldades sem motivo de que são vítimas os fracos estão na base da organização do mundo Ele a priminha João o colega VentaRomba a irmã natural representam a semente da filosofia de vida característica dos romances de Gracilia no Ramos Ela não é nova nem brilhante e isso não importa Um artista nada mais faz do que tomar os lugarescomuns e renováIos pela criação Memórias do cárcere é evidentemente outro universo O adulto se empenha nas coisas do século é preso jogado dum canto para outro e desce a fundo na experiência dos homens O resultado principal parece ter sido a compreensão de que estes são mais complicados e que é muito mais esfumada a divisão sumária entre bem e mal Há um nítido processo de descoberta do próximo e revisão de si mesmo que o roman cista anota sofregamente como se estivesse completando pela própria vivência o panorama que antes havia elaborado no plano fictício Ao longo do livro repetemse as surpresas em face da gen tileza bondade ou solidariedade que colhem desprevenido esse pessimista insigne arredio e maldisposto para com o semelhante por motivos que relatou em Infância e só aqui produzem frutos Em geral me envergonhava por objeções vagas qualquer dito que revelasse a mais leve censura me tocava melindres bestas Tal vez isso fosse conseqüência de brutalidades e castigos suportados na infância encabulava sem motivo e andava a procurar inten ções ocultas em gestos e palavras Contenhome ao falar a desconhecidos achoos inaccessíveis distantes qualquer opinião diversa da minha chocame em exces so vejo nisso barreiras intransponíveis e revelome suspeitoso e hostil Devo ser desagradável afasto as relações Daí o espanto ao sentir a solidariedade alheia chegando a pensar em traição da memória quando se lembra do ofe recimento de dinheiro feito pelo seu primeiro guardião o excelente capitão Lobo Seria possível O leitor acreditará Há no fato para ele tal subversão de papéis e prénoções que um capítulo inteiro é consagrado à ocorrência estranha fora das possibilidades humanas um oficial que se prontifi ca a auxiliar um escritor prisioneiro No entanto a vida de quartel porão de navio cadeia e colônia correcional lhe mostraria aberrações semelhantes levandoo a descobrir inesperadas qualidades no próximo e 77 o zou o v 78 o ªzou o j a tirar com elas novas medidas da sua alma apalpandose procurando em si vestígios da mesma massa Se os nossos papéis estivessem trocados pergunta noutra conjuntura haveria eu procedido como ele acharia a maneira conveniente de expressar um voto generoso Talvez não Acanhar meia atirarlheia de longe uma saudação oblíqua fingirmeia desatento Essas descobertas de caracteres estranhos me levam a comparações muito penosas analisome e sofro Certa noite pela escotilha do navio um compassivo sol dado da guarda lhe estende várias vezes um copo de água Estranho estranho demais Precisamos viver no inferno mer gulhar nos subterrâneos sociais para avaliar ações que não po deríamos entender aqui em cima Dar de beber a quem tem sede Bem Mas como exercer na vida comum essa obra de misericór dia Há carência de oportunidade as boas intenções embotam se perdemse Ali me havia surgido uma alma na verdade mise ricordiosa Ato gratuito nenhuma esperança de paga qualquer frase conveniente resposta de gente educada morreria isenta de significação Na véspera outro desconhecido negro também me havia encostado um cano de arma à espinha e à ilharga e qual quer gesto de revolta ou defesa passaria despercebido Esquisito Os acontecimentos me apareciam desprovidos de razão as coisas não se relacionavam Daí uma tentação de raciocinar como Paulo Honório e julgar os atos próprios e alheios pela vantagem ou prejuízo que trazem Era razoável observáIos com frieza alheio e distante Impossi vel Insensibilizavame à brutalidade encolhera os ombros indife rente como se ela não fosse comigo tinhame habituado a ela na existência anterior dirigida a mim e a outros Não podia esquivar me àquela piedade que ali espreitava o fundo do porão em busca de sofrimentos remediáveis Nunca percebera em longos anos casos semelhantes Mas a tendência para observar imparcialmente os fatos não o abandona é a própria marca do romancista para quem apesar de tudo se impõe a certa altura o ponto de vista de Sírius e a vocação do espetáculo e é também o desencanto do pessimista pouco afeito a aceitar a existência do bem Aqueles fatos não encerravam possivelmente a significação que eu lhes atribuía O selvagem de bugalho vermelho me encos tara sem raiva a arma ao corpo ação repetida profissional mo vimento de bruto impassível E a criatura solícita que me favore cera duas vezes comportavase levada pelo hábito nem avaliava a grandeza do benefício Proceder mecânico de funcionário Arre liavame essa conjectura confessavame ingrato Para justificar o primeiro soldado reduzia a benevolência do segundo O infeliz 79 o g zouo ju ü 80 o t Zou o u jogo mental nos despoja nos rouba os impulsos mais sãos Con tingência miserável Aliás essa dificuldade de admirar e aceitar as boas quali dades humanas manifestada a cada passo do livro não re presenta mesquinharia pois corresponde a uma severidade constante para consigo Sei lá o que se passava em meu interior é o exame do pro cedimento alheio que às vezes revela as nossas misérias íntimas nos faz querer afastarnos de nós mesmos desgostosos nos incita a correção aparente Na verdade vigiandome sem cessar livrava me de exibir sentimentos indignos Afirmaria porém que eles não existiam Tudo lá dentro é confuso ambíguo contraditório só os atos nos evidenciam e surpreendemonos quando menos espera mos fazendo coisas e dizendo palavras que nos horrorizam Sentese bem o autor de Angústia e o complexo da mão suja mas devolvendo estas linhas ao contexto total do li vro podemos verificar que toda a experiência nele registrada passa pelo crivo exigente da autoanálise sem complacência para condicionar no plano dos atos um traçado límpido e nobre de comportamento Graciliano é a impressão que temos sai depurado íntegro mais capaz do que nunca de encarar a vida com amarga retidão disposto a trazêIa para o testemunho escrito sem ira nem disfarce Nada mais significativo desse estado de espírito que é humanização no sentido mais nobre do que a imparciali dade desse comunista convicto e militante que preservou dentro das convicções a capacidade de ver os semelhantes à luz das qualidades e defeitos reais não do matiz político notei em redor frieza e hostilidade enfim percebi que me consideravam trotskista Essejuízo era idiota e não lhe prestei ne nhuma atenção Avaidade imensa de Trotski me enjoava o tercei ro volume da autobiografia dele me deixara impressão lastimosa Pimponice egocentrismo desonestidade Mas isso não era razão para inimizarme com pessoas que enxergavam qualidades boas no político malandro A opinião delas nesse ponto não me inte ressava Nunca tentei coagirme transigir Isto nos leva a pensar numa das suas qualidades funda mentais respeito pela observação e amor à verdade Como escritor era compelido por força invencível a registrar os fru tos da observação segundo os princípios da verdade Apesar de toda a severidade para com a própria obra e o pavor vai doso de lançáIa à publicidade8 não pôde deixar de escrever estilizar ou mais tarde registrar o que via No tremendo porão do navio na cela na colônia correcional quando o 8 I Vejamsenas Memórias do cárcere os trechos seguintes vaI I 92 e 211 vaI lI 30 87 124 vaI I1I 45 vaI IV 84147 81 o zouo u 82 o B zou ov horror ou o tédio da situação o levavam ao jejum à repul sa pelo mundo vai anotando a sua experiência febrilmen te sem parar Era uma vocação imperiosa vencendo peia timidez pudor desconfiança tornandoo um servidor da vida no sentido de que esta o estimulava e perturbava nele e fora dele obrigandoo a lhe dar categoria de arte Para Graciliano a experiência é condição da escrita e em José Lins do Rego admira a capacidade de descrever com a pura imaginação Eu seria incapaz de semelhante proeza só me abalanço a expor a coisa observada e sentida Nada me interessava fora dos acontecimentos Daí compreendermos que a experiência era para ele um atrativo irresistivel e que sobretudo quando fonte de co moção da personalidade não podia escapar à necessidade de fixáIa Literatura para ele era coisa profunda e cada um dos seus livros depois de Caetés ou entra dolorosamente pelos problemas do espírito tirando substância do seu próprio ou enfrenta situações cruciais de vida Em São Bernardo nada menos que a validade da conduta a correlação entre a eficácia dos atos e o seu sentido para a integridade pessoal Em Vidas secas a liberdade em face das circunstâncias Em Angústia a relação entre o pensamento e o ato Em todos eles o problema do bem e do mal encarado de um ângulo materialista e que nos dois livros autobiográficos é proposto em função da sua própria vida Um homem portanto para quem esta se apresenta como foco de problemas que no desejo de corresponder ao seu estímulo agiu sofreu escreveu e nos livros nunca se afas tou deles Qual o significado geral do que elaborou neste sentido A resposta só pode ser uma tentativa de apreciar no conjunto as tendências fundamentais da sua produção 6 Na obra de Graciliano Ramos há duas componentes bem imarcadas que constituem por assim dizer o nervo da sua es trutura uma de lucidez e equilíbrio outra de desordenados impulsos interiores A tendência dominante do seu espírito visa à primeira e baseado nela constrói a expressão desata viada e parcimoniosa a clara geometria do estilo Todavia mesmo quando ela se impõe e predomina chegamos a sentir correntes profundas de desespero e a certos passos até des vario como as que estão no fundo de um personagem tão aparentemente maciço quanto Paulo Honório e vão afloran do nele através das fendas abertas pela vida Em Caetés a sua manifestação mais viva premonitória de desenvolvimentos futuros é o drama apenas indicado do pobre mitômano Lucílio Varejão que constrói um mundo compensatório na 83 o ª zou o v 84 o zou ov mentira e se afasta para não envergonhar a filha criada pela viúva rica sem tomar conhecimento do pai Já vimos porém que só em Angústia ocorre a explosão das componentes de desvario recalcadas não só na vida mas nos outros livros Ao crítico preocupado em discernir os mecanismos da criação a comparação com Caetés parece mostrar que o autor quis primeiro forjar o estilo para depois abrir as comportas do subconsciente e da revolta deixando fluir as suas ondas obscuras nesse arcabouço nítido e seco Daí a impressão em todo leitor de caos organizado de delí rio submetido à análise minudente que o torna inteligível Nas Memórias do cárcere encontramos elementos para sen tir não apenas esta dualidade como a força resultante de orJ denação que as integra na unidade superior da obra literária Nelas com efeito alternamse a narrativa equilibrada seca e as visões de desordem e degradação A ruptura fácil das normas de convivência entrevista no parágrafo profético de Caetés já referido provoca nas relações humanas uma sub versão paralela à que os recalques operam na consciência Disso resultam asmelhores partes do livro nas quais alucidez procura dar forma à desordem exterior com a mesma maestria que servira em Angústia para dar norma ao caos interior Aqui a perspectiva é mais complexa porque o drama íntimo não se nutre apenas de casos pessoais transpostos no contexto fictí cio é criado por fatores da situação em que se encontra e deve ser analisado segundo os preceitos da verdade objetiva A mensagem dos romances completase desse modo com a verificação de que também no plano da vida coexis tem possibilidades de equilíbrio e desequilíbrio e também nela opera a força do espírito como condição de ordem A grande lição de Graciliano neste sentido reside no esforço despendido tanto no plano da vida quanto da criação para forjar instrumentos que permitam construir uma linha de coerência reconhecendo e mesmo aceitando o delírio e o caos como constantes mas vencendoos a cada passo pela vontade de lucidez Pelo estilo na arte em que se reflete a vida profunda do espírito pela integridade humana na vida em que se cruzam os fatores de desgoverno A isto se liga um segundo aspecto da sua obra que se po deria talvez chamar metaforicamente sentimento ateu do pecadoUm pecado não oriundo da quebra de pacto com a divindade embora como ele original e passível de res gate Foi o que se apontou no decorrer deste estudo como obsessão da sujeira e da limpeza muito visível em Angústia E é o que explica o pessimismo em face dos homens quase sempre nulos mesquinhos e vis em sua obra Mas é também o que prepara os caminhos para a relativa imparcialidade visto como lhe permite focalizar de modo objetivo o com portamento independentemente da posição atribuída pela sociedade A decisão de encarar pela frente sem ilusões a vida interior completase nele com a decisão simétrica de encarar do mesmo modo a vida social permitindolhe em 85 o zouo v 86 o B zou o v I ambos os casos uma corajosa amargura Nas Memórias do I a Infância vemos que em menino elas deram lugar a algu cárcere podendo confrontar o seu modo de ser e o dos ou mas das suas experiências fundamentais no conhecimento tros numa situação em que de todos era solicitado um des do mundo que lhe aparece através delas como campo de wodmoto mmplelo poodo àd qnolidd e Iuo modiçõ eP dolom O iotmáo já moo n doutro modo refreadas essa visão do mundo encontra a I literatura brasileira que lhe ocasionou o castigo injusto sim mais perfeita expressão unificando realmente o que parece boliza as raízes do seu trato com a norma social Daí lhe pa inconciliável pessimismo e imparcialidade condenação e recer gratuita arbitrária e feita para fazer sofrer Nem doutro confiança no homem modo avaliou as relações com os pais a disciplina escolar o Isto nos leva a pensar que a sua amargura cortante vem tratamento dispensado aos subordinados e infelizes menos duma negação essencial deste que da atitude de per Uma das experiências mais duras da criança e do adolescen manente desconfiança em face das normas que lhe regem a te é o conflito entre a virtude teórica e a conduta como real conduta e o solicitam para caminhos quase nunca favoráveis mente é Decorrem disso o sentimento de relatividade do bem à realização plena e das normas em geral que é a prova decisiva para cada um Neste terreno não há meiostons Graciliano Ramos tan e de onde saímos crentes céticos conformados ou rebeldes to na obra fictícia quanto na autobiográfica é um negador Graciliano viveu essa experiência fundamental de maneira pertinaz dos valores da sociedade e das normas decorren dolorosa e se alinhou entre os últimos Dos escritores brasilei teso Estas aparecem em Caetés como convite à hipocrisia ros contemporâneos talvez nenhum outro haja desenvolvido numa tonalidade muito cara às tradições naturalistas Em sentimento mais profundo embora nem sempre ostensivo de São Bernardo são a pauta dos medíocres que o homem enér I que a norma é o mal Nutre birra instintiva em relação a ela e gico esfrangalha para poder construir uma vida autêntica a sua atitude genérica é uma espécie de anarquismo profundo Em Angústia são o obstáculo que cerceia o fraco e permite a que não raro se desenvolve nos homens de sensibilidade pois acomodação vitoriosa do medíocre Em Vidas secas consti a partir de experiências como as referidas é o seu modo de tuem o aparelho de opressão do pobre Em Memórias do cár compensar a decepção por não haver valores absolutos e assim cere são a iniqüidade da ordem vigente incompreensíveis I aplacar a nostalgia da perfeição No fundo desse pessimista de contraditórias algo fantásticas e apenas quando infringidas sencantado há com efeitouma insatisfação permanente por vi dão lugar a certo fermento de humanidade Reportandonos ver em sociedade tão incapaz de se organizar segundo o ideal 87 o zouo v 88 o zou o u Estas considerações permitem compreender outros dois aspSda sua obra oPidlltãae1e a lôposição ao r J mundojá apontadas em detãThe na análise dos livros Compreendese efetivamente que num mundo de normas iníquas as cartadas do comportamento se joguem em torno da capacidade de criar ou não normas alternativas que per mitam a expansão da personalidade Por isso no plano das relações 0lseus personagens vivem dramas ordenados em 9no da vontade Em Paulo Honório vimos que ela éviolenta e inflexível permitindolhe construirse contra os homens e as circunstâncias e o vimos também destruído pela reversão dessa violência João Valério éjoguete de uns e outros Luís da Silva mais do que isso é um meticuloso vencido Um se afir ma no momento em que ousa a conquista de Luísa fácil lon gamente temida e desejada O outro em plano mais dramáti co necessita matar para reequilibrarse e assim compensar a ausência do querer Este aparece em Vidas secas como obscu ra resistência da própria vida às forças negativas do meio É portanto como se houvesse um sistema de barreiras que apenas a determinação da vontade permite transpor conse qüentemente e de acordo com a atitude pessimista o ho mem se agita entre dois limites abulia e violência isto é au sência mórbida da vontade e vontade desvirtuada pela força No entanto a realidade não é simples ordenase conforme um espectrograma onde vemos o violento e arbitrário Pau lo Honório abalarse até a fraqueza o abúlico Luís da Silva I I I embeberse longa mente na idéia de assassínio até afirmar se no delírio com que elimina o rival pela força Dentro do próprio romancista percebemos que o menino brutalizado de Infância o prisioneiro das Memórias do cárcere é alguém cheio de violência reprimida e largos claros de abulia para o qual a vontade é condição de sobrevivência A sua forma pessoal de manifestáIa é a oposição ao mundo a resistência interior às normas tema central do segundo livro No porão do navio que o traz preso ao Rio de Janeiro faz a experiência realmente infernal da imundície da promiscuida de à mercê de determinações que ignora sem noção do desti no que o aguarda O seu ajuste à situação é eloqüente fecha o corpo não ingerindo alimento nem o eliminando numa cris pação negativa e no meio do pandemônio e da abjeção redige sem parar notas em que descreve pesa a situação embora per didas depois elas formarão o núcleo germinal das Memórias do cárcere Resiste pois tenazmente ao meio negase às suas leis e encontra equilíbrio precário mas decisivo nas pequenas folhas de papel em que afirma a sua autonomia espiritual A literatura é o seu protesto o modo de manifestar a reação con tra o mundo das normas constritoras Como em quase todo artista a fuga da situação por meio da criação mental é o seu jeito peculiar de inserirse nele de nele definir um lugar Pensando na arte como forma de protesto podemos com preender a característica porventura fundamental da obra de Graciliano encarada na sucessão dos livros e das etapas 89 o zou o u o zou o u 91 Aliás não éprincipalmente um criador de personagens mas de situações por meio das quais se manifesta o persona gem reduzido praticamente ao narrador de cada livro e al guns apagados satélites O vigor das suas figuras provém so bretudo da rede habilmente tecida de circunstâncias valores e problemas humanos em que se enquadram e na verdade o penúltimo de quantos escreveu Sentese constrangido na ficção e abandonaa para sempre no apogeu das capacidades com apenas quatro livros publicados O desejo de sincerida de vai doravante leváIo a retratarse no mundo real em que se articulam as suas ações já instalado na primeira pessoa do singular como artifício literário deslizará para a expe riência real dentro da mesma perspectiva de narração mas sem qualquer subterfúgio Verificase deste modo uma circunstância de relevo para compreendêIo ao contrário de muitos romancistas que poderiam ser qualificados popularmente de cento por cen to não encontra toda a sua verdade no mundo do romance nem a mentirada gentil de que fala o poeta lhe parece veículo plenamente satisfatório para se exprimir Aspira ao depoimento integral porque a verdade é a sua verdade E quando pensamos nisto começamos a entender a pouca ter nura e quase pouco interesse que dispensa aos personagens como se fossem intermediários insatisfatórios quando não anteparos incômodos ao que deseja exprimir e aos poucos foi descobrindo na confissão I JI b Temos com efeito a princípio dois romances Caetés e São Bernardo construidos com objetividade não levantan do outros problemas senão os da ficção Em seguida outro Angústia em que sentimos clara a atitude de rejeição COllS i ciente da sociedade condicionada por tantas reminiscências e impulsos profundos que pude falar em autobiografia vir tual mais ou menos no sentido de autobiografia de recal ques Infância é autobiografia tratada literariamente a sua técnica expositiva a própria língua parecem indicar o desejo de lhe dar consistência de ficção Memórias do cárcere é de poimento direto e embora grande literatura muito distante da tonalidade propriamente criadora Viagem afinal pós tumo e inacabado abandona os problemas pessoais para cingirse à informação Vemos pois que a tendência principia como testemunho sobre si mesmo por meio da ficção O escritor vê o mundo através dos seus problemas pessoais sente necessidade de lhe dar contorno e projeta nos personagens a sua substân cia deformada pela arte A obra surge então como fruto de uma neurose infantil filtrada por uma nobre imaginação Connolly mas conscientemente filtrada A tendência para manifestarse leva porém a uma encru zilhada o romance com todas as suas exigências formais vai parecendo molde apertado e incompleto e é interessante notar que o primeiro dos que fez segundo esta orientação foi também o último ou se incluirmos Vidas secas no rol 90 o t Zou o v 92 o êzou o u constituem o músculo do livro embora o uso constante da narração na primeira pessoa pudesse dar impressão con trária Este processo é oposto ao dos escritores que se con centram na caracterização e tendendo à galeria de tipos fazem os figurantes sobressaírem pelo jogo das peculiarida des e apenas secundariamente propõem uma constelação de elementos conscientemente organizados de que emerge o personagem Os de Graciliano não passam de um por livro diretamente ligados a problemas vividos e magistralmente propostos que o amparam e lhe dão realidade Isto é dito para esclarecer que no romance há algo mais que o personagem como há algo mais do que a imagem na poesia a situação que o define E embora não existam ge ralmente grandes romances sem grandes personagens estes não bastam para definiIos como tais tanto assim que os há fora de romance como é o caso do Pacheco de Eça de Queirós apreciado justamente como característico da sua maneira ao mesmo título que o conselheiro Acácio ou o conde de Gouvarinho e no entanto vive numa carta de Fra dique Mendes Embora a recíproca seja mais rara podemos apontar al guns grandes romances construídos em torno de situações sem a ocorrência de nenhum personagem impositivo que se destaque do contexto É o caso por exemplo de Le Rivage des Syrtes de ulien Gracq onde os figurantes são elementos da atmosfera fictícia e da elaboração simbólica I Fixarse no personagem que só falta falar como critério fundamental do valor de um livro é pois apreciar só uma parte do seu significado real Graciliano Ramos porém ex travasou os limites do gênero e cada vez mais preocupado pelas situações humanas substituiuse ele próprio aos per sonagens e resolveu decididamente elaborarse como tal em Infância aproveitando os aspectos facilmente romanceáveis que há nos arcanos da memória infantil A seguir dando um passo mais rompeu amarras com a ficção ao registrar a ex periência de adulto e realizouse nas Memórias com maes tria equivalente à dos livros anteriores Depreendese pois que as reminiscências não se justa põem à sua obra nem constituem atividade complementar como se dá na maior parte dos casos Pertencemlhe fazem parte integrante dela formando com os romances um só bloco pois são essenciais para a compreensão da mesma or dem de sentimentos e idéias dos mesmos processos literá rios que observamos neles A autobiografia foi um caminho que escolheu e para o qual passou naturalmente quando a ficção já não lhe bastava para exprimirse Compreendemos assim que os seus romances são expe riências de vida ou experiências com a vida manipulando dados da realidade com extraordinário senso de problemas Daí serem diferentes um do outro pois ao contrário de es critores que giram à volta dos mesmos motivos Graciliano contido e meticuloso esgotava uma direção dizia nela o 93 o zou ou 94 o zou o u que podia e queria em seguida deixavaa por outra Apesar de narrados na primeira pessoa de as heroínas serem todas louras de usar constantemente certas imagens apesar des tes e de outros sinais evidentes de fábrica cada um dos seus livros procura direção diversa da anterior como análise da vida Em todos porém sentimos o crescente interesse por esta a perturbação em face dela segundo Leavis a marca do grande romancista que o levou ao testemunho direto O que ficou dito sugere talvez alguns elementos para com preender a sua atitude política invocada por ligarse à sua arte mais do que poderia parecer A experiência da vida social levouo à mencionada repul sa pelas normas incompatibilizandoo com a sociedade que elas regulam A leitura de seus livros mostra que antes de qualquer adesão ao comunismo já havia na sua sensibili dade a inconformada negação da ordem dominante e certa nostalgia de humanidade depurada que formam o que foi designado acima como o seu fundamental anarquismo A adesão representa precisamente aspiração a uma socieda de refeita segundo outras normas e portanto completa de modo coerente a sua negação do mundo indicando que ela era na verdade negação de um determinado mundo o da urguesia e do capitalismo A morte dos valores burgueses é I surda mente desejada em sua obra sobretudo a partir de São i Bernardo e o estrangulamento de Julião Tavares é de algum modo símbolo do desejo de liquidáIos No entanto persiste em Memórias do cárcere o pouco en tusiasmo pelos homens mesmo quando os admira pois ao fazêIo admirase igualmente de que sejam dignos disso Devo confessarte diz Ivã Karamázov a Aleixo que jamais pude compreender como é possível amar o próximo É justamente o próximo penso eu que não se pode amar pelo menos só se pode amáIo de longe É preciso que um homem esteja escondido para se poder amáIo basta mostrar o rosto e o amor desaparece Sem querer estabelecer um paralelo impossível mas ape Ilas utilizar em nosso proveito estas frases e também algo do personagem sobretudo a frieza negativista encobrindo um coração vulcânico disciplinado pela inteligência par Iamos daí para estabelecer desde logo que no comunismo raciliano Ramos talvez tenha encontrado saída para a sua necessidade profunda e sempre contrariada de amar os homens e acreditar na vida pois não podia odiáIos dada a perturbação que nele despertavam e o interesse pelos seus problemas De fato através da própria teoria determinista que caracteriza o socialismo científico e lhe dá um traveja mento de coisa necessária podese amar o homem impesso 95 o ª zou o l almente por delegação ao partido ou confiança na história reunindoos num conjunto em que as identidades se obli teram Fica assim superado aquele contacto direto que para Ivã Karamázov é destruição de qualquer amor e Graciliano confessa serlhe quase sempre penoso e cheio de decepções Nesse escritor cuja obra revela visão pessimista e não raro sórdida do homem vemos a necessidade de reequilibrarse pela crença racional construída na melhoria do homem porque havia nele reservas profundas de solidariedade que a experiência da prisão justificaria e confirmaria Daí a importância das Memórias do cárcere onde se en 96 contram homem e ficcionista e o pessimismo de um é COln pletado pela solidariedade participante do outro onde se vê que a fidelidade ideológica nada tinha de imposição exte rior exigindo deformações do espírito e da sensibilidade mas brotava de imperativos pessoais e era esculpida por eles por assim dizer Era algo obtido por construção interior e afirmado livremente no plano do comportamento com uma grande liberdade de vistas desinteresse pela palavra de ordem mecanicamente aceita ausência de sectarismo Para ele o comportamento político forma superior da ânsia de o testemunho foi um tipo de manifestação pessoal em que a sua imperiosa personalidade se completou harmonizando z 8 se livremente com uma imperiosa ideologia Conciliando a fidelidade a si mesmo e aos princípios foi realmente um v homem na mais alta acepção da palavra ao obter essa inte I I I gração em profundidade servindo sem se trair e oferecendo o terreno amargo da sua obra às florações do ideal Et qui sait si les fleurs nouvelles que je rêve Trouveront dans ce sollavé comme une grêve Le mystique aliment qui ferait leur vigueur Baudelaire Encontrarão sem dúvida a retidão analítica e o senso dos problemas humanos mais úteis à construção do homem que a logomaquia dos catecismos Assim ficção e confissão constituem na obra de Graci liano Ramos pólos que ligou por uma ponte tornandoos contínuos e solidários A esse propósito algumas reflexões finais O escritor que se realiza integralmente no terreno da confissão vê o mundo sem disfarce através de si mesmo lo caso de Montaigne Peppys ou Amiel que não precisam doutro meio para satisfazer a necessidade de dar forma às idéias e emoções Por outro lado o escritor que consegue realizarse na criação fictícia constrói por meio dela um sistema expres sional igualmente bastante às suas necessidades de expansão 97 o zou o v 98 o zou o c Cf e conhecimento sem recorrer a outro É o caso de Balzac e Machado de Assis de Dickens e Dostoievski cuja obra não fictícia é circunstancial ou accessória Há ainda o caso dos que trabalham nas duas frentes elaborando paralelamente a expressão pessoal e a fictícia autônomas embora às vezes complementares como se vê em Rousseau ou Stendhal Há também os que têm vocação marcada para a confissão e usam o romance como apêndi ce de memorial ou diário íntimo Benjamim Constant por exemplo O caso mais freqüente porém é o do romancista ou poeta que a certa altura sente necessidade de revelarse diretamente escrevendo confissões que completam e escla recem a obra de criação como estamos vendo em nossa literatura com Oswald de Andrade Manuel Bandeira Au gusto Frederico Schmidt Augusto Meyer Álvaro Moreyra Gilberto Amado Não será todavia freqüente o caso de Graciliano Ramos no qual a necessidade de expressão se transfere a certa al tura do romance para a confissão como conseqüência de marcha progressiva e irreversível graças à qual o desejo bá sico de criação permanece íntegro e a obra resultante é uma unidade solidária Este é um dos traços que o diferenciam dos confrades como José Lins do Rego ou Jorge Amado plenamente rea lizados dentro dos quadros da ficção não sentindo necessi dade de extravasálos mesmo quando querem é o caso do segundo exprimir a sua posição e a sua experiência política Voltemos à constatação que Graciliano Ramos grande ro mancista não encontrou todavia no romance possibilidades que esgotassem a sua necessidade de expressão Podemos tal vez esclarecêIa dizendo que havia nele desajuste muito mais profundo de toda a personalidade em relação aos valores so ciais que a formaram e deformaram um desajuste essencial que o levou não apenas a assumir atitude antagônica mas a analisar em si mesmo as suas conseqüências A sua obra 11150nos toca somente como arte mas também quem sabe para alguns sobretudo como testemunho de uma grande consciência mortificada pela iniqüidade e estimulada a 99 Illanifestarse pela força dos conflitos entre a conduta e os iIllperativos íntimos E a seca lucidez do estilo o travo acre do temperamento a coragem da exposição deram alcance duradouro a uma das visões mais honestas que a nossa lite ratura produziu do homem e da vida o zou o c Cf a CJ c u uo Qj f OS BICHOS DO SUBTERRÂNEO Têm garras têm enormes perigos De exércitos disfarçados Milhares de gatos escondidos por detrás da noite incerta I MÁRIO DE ANDRADE A obra de Graciliano Ramos mostra três aspectos dis tintos embora vinculados pela unidade de concepção da arte e da vida que podemos encontrar em todo grande escritor Em primeiro lugar a série de romances escritos na primei ra pessoa Caetés São Bernardo Angústia que constituem essencialmente uma pesquisa progressiva da alma huma na no sentido de descobrir o que vai de mais recôndito no homem sob as aparências da vida superficial Poderíamos dizer Usando linguagem dostoievskiana que essa pesquisa tenta descobrir o homem subterrâneo a nossa parte reprimi da que opõe a sua irredutível por vezes tenebrosa singulari dade ao equilíbrio padronizado do ser social Em segundo lugar as narrativas feitas na terceira pessoa Vidas secas os contos de Insônia comportando visão 101 102 o zou o v mais destacada da realidade estudando modos de ser e con dições de existência sem a obsessiva análise psicológica dos outros Em terceiro lugar encontramos as obras autobiográ ficas Infância Memórias do cárcere nas quais a subjetivi dade do autor encontra expressão mais pura e ele dispensa a fantasia para se abordar diretamente como problema e caso humano Nos três setores encontramos obrasprimas seja de arte contida e despojada como São Bernardo e Vidas secas seja de imaginação lírica como Infância seja de tumultuosa exuberância como Angústia Em todas elas estão presentes a correção de escrita e a suprema expressividade da lingua gem assim como a secura da visão do mundo e o acentuado pessimismo tudo marcado pela ausência de qualquer chan tagem sentimental ou estilística De modo geral há nelas uma característica interessante a cujo estudo consagrei um ensaio FICÇÃO E CONFISSÃO à medida que os livros passam vai se acentuando a necessidade de abastecer a imaginação no arsenal da memória a ponto de o autor a certa altura largar de todo a ficção em prol das recordações que a vi nham invadindo de maneira imperiosa Com efeito a um livro cheio de elementos tomados à experiência de menino Angústia sucede outro de recordações é verdade mas apresentadas com tonalidade ficcional Infância e depois desta ponte á narrativa sem atavios dum trecho decisivo da sua vida de homem Memórias do cárcere Isto permite supor que houve nele uma rotação de atitude Iiterária tendo a necessidade de inventar cedido o passo em certo momento à necessidade de depor E o mais interes sante é que a transição não se apresenta como ruptura mas l1I110conseqüência natural sendo que nos dois planos a sua arte conseguiu transmitir visões igualmente válidas da vida l do mundo oncluímos daí que no âmago da sua arte há um desejd illtenso de testemunhar sobre o homem e que tanto os per sonagens criados quanto em seguida ele próprio são pro jlÜCSdesse impulso fundamental que constitui a unidace l profunda dos seus livros 2 Caetés decorre numa cidade do interior O narrador João Vllério empregado duma firma comercial apaixonase pela l11ulherdo patrão e tem com ela um caso amoroso que de nunciado por carta anônima leva o marido ao suicídio Ar rependido e aliás arrefecido nos sentimentos Valéria acaba llilstado de Luísa mas sócio da firma Esta é a espinha do lIlrcdo a cuja roda se organiza a vida da cidade descrita l111cenas e retratos de perfeita fatura realista São capitais a iI11portância do ambiente a descrição minuciosa das cenas o uso realista do diálogo de tal modo que o papel das cir cunstâncias é quase tão grande quanto o do protagonista 103 o Z fj t o Ôu Ô 104 o zou uo u Em tal livro a despeito do problema humano central somos levados insensivelmente ao meio aos outros personagens aos pormenores externos como desejava a estética natura lista e como procuraram realizar os seus seguidores Há cenas exemplares a este respeito sobretudo coletivas quando a técnica é solicitada para compor o intercâmbio in trincado dos figurantes um jogo de cartas um jantar um velório em que o narrador se situa no mundo como os de mais personagens e nós sentimos progredir o conhecimento dele e de todo o ambiente em que vive No jantar cruzam se as conversas dos figurantes com a exata caracterização sumária de cada um e aquele ar de naturalidade de coisa comorealmentesedá um dos mais caros objetivos do Na turalismo Embora saibamos e o autor deixe explícito que o foco é a corte do narrador a Luísa tudo se dispõe de modo a que isso não fique para o leitor mais importante que o movimento animado da reunião Tinhase acabado a sopa Aquele indivíduo me intrigava Diri gime à vizinha da direita Quem é aquele homem moreno D Clementina lá na ponta ao lado da professora É o Dr Castro Que significa o Dr Castro Promotor chegou há dias parente do Dr Barroca Serviram um prato que não pude saber se era peixe ou carne fa tias desenxabidas em molho branco Evaristo iniciou um palavre ado sonoro em que de novo encaixou a sã política filha da moral e da razão mas a frase repetida não produziu efeito Apenas o pro motor balançou a cabeça e rosnou um monossílabo aprobativo Evaristo queria eleitores conscientes uma democracia verdadeira Procurei pela segunda vez os olhos de Luísa e não os encontran do declarei com aversão que a democracia era blague Por quê Naturalmente porque Luísa estava amuada Mas julguei este motivo inaceitável e perigoso recorri a outros que o deputado inutilizou com meia dúzia de chavões Vitorino disse que não vo lava tinha rasgado o título achava que eleição era batota E não ompreendia o empenho do Dr Barroca em aliciar eleitores Tendo quatro soldados e um cabo o senhor tem tudo O Dr Castro reconheceu que os soldados e o cabo eram de grande eficiência Ora a força do direito isto é o direito da força Afinal os senhores me entendem Além dessa forma precisa e quase impessoal de organiza lO literária do mundo épreciso assinalar em Caetés um tra importante para os rumos futuros de Graciliano Ramos I presença esfumada dos índios que lhe dão nome através dum romance que João Valério anda tentando escrever sobre eles Este romance é tratado como elemento de pitoresco e de humor mas aos poucos vamos percebendo que desempenha 105 z i E s o Ôu Ô o zou w o C 106 certas funções entre as quais a de esclarecer a psicologia de Valéria propenso ao devaneio e à fuga da realidade Ou ain da manifestar alguns pontos de vista sobre a criação literá ria não obstante o tom meio jocoso mostrando como Gra ciliano a concebia e praticava inclusive o apego irresistível à realidade observada ou sentida que faz João Valério utili zar na descrição do passado as pessoas e fatos do presente Serve também para sugerir a lentidão da escrita escrupulo sa sem ímpeto nem facilidade e desvendar a luta por uma visão coesa partindo de fragmentos isolados pela percepção Mais importante do que tudo porém para as intenções do presente ensaio é a função simbólica dos caetés encarnando o que há de permanentemente selvagem em cada homem lembrando que ao rasparse a crosta policiada desponta o primitivo instintivo e egoísta bárbaro e infantil Na última página do livro dando um balanço melancó lico na sua vida e na da cidade João Valério sente essa pre sença constante E é necessário transcrever um trecho longo fundamental para o aspecto da obra de Graciliano que este ensaio procura focalizar A estrela vermelha brilhava à esquerda Pareceume pequena como as outras uma estrela comum Comum como as outras E es tive um dia muito tempo a contempláIa com respeito supersticioso contandolhe cá de baixo os segredos do meu coração E lamentei não ser selvagem para colocáIa entre os meus deuses e adoráIa o vento zumbia no fio telegráfico À porta do hospital de S Vi cente de Paulo gente discutia A escuridão chegou Não ser selvagem Que sou eu senão um selvagem ligeiramente polido com uma tênue camada de verniz por fora Quatrocentos anos de civilização outras raças outros costumes E eu disse que não sabia o que se passava na alma de um caeté Provavelmente o que se passa na minha com algumas diferenças Um caeté de olhos azuis que fala português ruim sabe escrituração merca til lê jornais ouve missas É isto um caeté Estes desejos exces sivos que desaparecem bruscamente Esta inconstância que me faz doidejar em torno de um soneto incompleto um artigo que se esquiva um romance que não posso acabar O hábito de vaga bundear por aqui por ali por acolá da pensão para o Bacurau da Semana para a casa do Vitorino aos domingos pelos arrabaldes e depois dias extensos de preguiça e tédio passados no quarto aborrecimentos sem motivo que me atiram para a cama embru tecido e pesado Esta inteligência confusa pronta a receber sem exame o que lhe impingem A timidez que me obriga a ficar cinco minutos diante de uma senhora torcendo as mãos com angústia Explosões súbitas de dor teatral logo substituídas por indiferença completa Admiração exagerada às coisas brilhantes ao período sonoro às miçangas literárías o que me induz a pendurar no que escrevo adjetivos de enfeite que depois risco A cidade estendiase lá embaixo sob uma névoa luminosa O vento continuava a zumbir no arame Fazia frio Violões passaram gemendo 107 z C j o o 10 Ô o o 108 o ªzou o cr Um caeté sem dúvida O Pinheiro é um santo e eu às vezes me rio dele dou razão ao Nazaré que é um canalha Guardo um ódio feroz ao Neves um ódio irracional e dissimulo falo com ele a falsidade do índio E um dia me vingarei se puder Passo horas escutando as histórias de Nicolau Varejão chego a convencerme de que são verdades gosto de ouviIas Agradamme os desregra mentos da imaginação Um caeté 3 Com São Bernardo escrito quatro anos depois estamos em plena maturidade literária É a história de um enjeitado Pau lo Honório dotado de vontade inteiriça e da ambição de se tornar fazendeiro Depois de uma vida de lutas e brutalida de atinge o alvo assenhoreandose da propriedade onde fora trabalhador de enxada e que dá nome ao livro Aos quarenta e cinco anos casa com uma mulher boa e pura mas como está habituado às relações de domínio e vê em tudo quase obsessivamente a resistência da presa ao apresador não per cebe a dignidade da esposa nem a essência do seu próprio sentimento Tiranizaa sob a forma de um ciúme agressivo e degradante Madalena se suicida cansada de lutar deixando o só e tarde demais clarividente Corroído pelo sentimento de frustração sente a inutilidade da sua vida orientada ex clusivamente para coisas exteriores e procura se equilibrar escrevendo a narrativa da tragédia conjugal Acompanhando a natureza do personagem tudo em São Ilcrnardo é seco bruto e cortante Talvez não haja em nos sa literatura outro livro tão reduzido ao essencial capaz de exprimir tanta coisa em resumo tão estrito Por isso é ines gotável o seu fascínio pois poucos darão quanto ele seme lhante idéia de perfeição de ajuste ideal entre os elementos que compõem um romance À primeira vista poderseia pensar em prolongamento d1fórmula naturalista usada em Caetés Mas logo percebe mos que falta nele o que no outro livro é básico a autono mia do mundo exterior a realidade dos demais figurantes Imorosamente composta Num nítido antinaturalismo a ilcnica é determinada pela redução de tudo seres e coisas 10 protagonista Não se trata mais de situar um persona gem no contexto social mas de submeter o contexto ao seu drama íntimo Circunstância tanto mais sugestiva quanto raciliano Ramos guardou nele a capacidade de caracte rização realista dos homens e do mundo conservando a maior impressão de objetividade e verossimilhança ao lado da concentração absoluta em Paulo Honório facilitada pela Ilcniéa da narrativa na primeira pessoa O mundo áspero IS relações diretas e decisivas os atos bruscos a dureza de sentimentos tudo que forma a atmosfera de São Bernardo decorre da visão pessoal do narrador Nele fulge invicto um caeté ele próprio se compara a um hicho um ser dalgum modo animalizado na luta pela vida 109 oz fo s o Ôu Ô 110 o zoV o v E isto se reflete no estilo como podemos ver entre outros traços pelo diálogo Embora tecnicamente perfeito já em Ca etés era lá um instrumento de sociabilidade comunicação e revelação dos outros através do fio condutor de João Valério Aqui parece antes fator de antagonismo tornandose um contraponto de réplicas breves essenciais sempre desfe chando em algo decisivo Os inter1ocutores não falam à toa e a impressão é que duelam Duelo entre Paulo Honório e o pobre Luís Padilha que termina entregando a fazenda No outro dia cedo ele meteu o rabo na ratoeira e assinou a escri tura Deduzi a dívida os juros o preço da casa e entregueilhe sete contos quinhentos e cinqüenta milréis Não tive remorsos Duelos os diálogos armados com o velho Mendonça um de cada lado da cerca ou na sala de visitas rondada por capan gas duelos as conversas com Madalena que acabam pela sua morte Na admirável recapitulação final a cujo lado é fraca e juvenil a de João Valério percebemos toda a curva de uma vida que se quis violentamente plena e acabou destruída pela ignorância dos valores essenciais O que estou é velho Cinqüenta anos pelo S Pedro Cinqüenta anos perdidos cinqüenta anos gastos sem objetivo a maltratar me a maltratar os outros O resultado é que endureci calejei e não é um arranhão que penetra esta casca espessa e vem ferir cá dentro a sensibilidade embotada Cinqüenta anos Quantas horas inúteis Consumirse uma pes soa a vida inteira sem saber para quê Comer e dormir como um porco Levantarse cedo todas as manhãs e sair correndo procu rando comida E depois guardar comida para os filhos para os netos para muitas gerações Que estupidez Que porcaria Não é bom vir o diabo e levar tudo Madalena entrou aqui cheia de bons sentimentos e bons pro púsitos Os sentimentos e os propósitos esbarraram com a minha brutalidade e o meu egoísmo Creio que nem sempre fui assim egoísta e brutal A profissão é quc me deu qualidades tão ruins E a desconfiança terrível que me aponta inimigos em toda a parte A desconfiança é também conseqüência da profissão Ioi este modo de vida que me inutilizou Sou um aleijado Devo ler um coração miúdo lacunas no cérebro nervos diferentes dos ncrvos dos outros homens E um nariz enorme uma boca enor me dedos enormes Se Madalena me via assim com certeza me achava extraordi na ríamente feio Fecho os olhos agito a cabeça para repelir a visão que me exibe essas deformidades monstruosas A vela está quase a extinguirse Julgo que delirei e sonhei com atoleiros rios cheios e uma fi gura de lobisomem 111 8 Z f S oa g o 112 o ou o v Lá fora há uma treva dos diabos um grande silêncio Entretan to o luar entra por uma janela fechada e o nordeste furioso espalha folhas secas no chão o narrador sente que o homem que ele manifestou para o mundo e se desumanizou na conquista da fazenda São Bernardo no domínio sobre os outros que esse homem era uma parte do seu ser não o seu ser autêntico mas que o contaminou todo inclusive a outra parte que não soube tra zer à tona e que avulta de repente aos seus olhos espantados levandoo a desleixar a fazenda os negócios os animais porque tudo estava fora dele 4 Sob o ponto de vista da análise da personalidade focaliza da de preferência neste ensaio Angústia completa a pesquisa de Graciliano Ramos É a história de um frustrado Luís da Silva tímido e so litário dotado de um poder mórbido de autoanálise que o faz em conseqüência desenvolver um nojo impotente outros e de si mesmo Certo dia entabula amizade com a moça vizinha acaba apaixonado pedea em casamento e lhe entrega as parcas economias para um enxoval hipotético A essa altura se intrometellião Tavares que tem tudo o que falta ao outro ousadia dinheiro posição social euforia e tranqüila inconsciência A fútil Marina se deixa seduzir sem dificuldade e Luís espezinhado confirmado no abismo in terior pela derrota vai nutrindo impulsos de assassínio que o levam de fato a estrangular o rival Após uma longa doen acausada pelo abalo nervoso conta a própria história Tclliçªmente Angústia éo livro rnaiscqJllplQ de Gra liliano Ramos Senhor dos recursos de descrição diálogo e análise empregaos aqui num plano que transcende com pletamente o Naturalismo pois o mundo e as pessoas são 11111a espécie de realidade fantasma colorida pela disposi IOmórbida do narrado r A narrativa não flui como nos ro Illances anteriores Constróise aos poucos em fragmentos 1111111 ritmo de vaivém entre a realidade presente descrita Olll aliência naturalistlacol1stanteevaçãq do passado 1 fllga para o devaneio e a deformaçãoexpressionista Daí 1111 cmpo riôvelísÍiêômuito mais rico e diríamosiipii I0icada fato apresenta ao menos tiêsfacesa sua realidade ijlliva a sua referência à experiência passada asua defor 1lIaopor uma crispada visão subjetiva Se por exemplo Ii andando de bonde o narrado r registra em atropelo a pllcpção do exterior quase delira com as agruras por que Vlll passando foge na imaginação para certo período da 11Hlcidaderecua por um mecanismo associativo até a infân ia volta à obsessão presente e à visão deformada da rua Ilestc modo a narrativa oscila incessantemente nos três pla IHIS ganhando intensidade dramática e alucinatória 113 oz o l f o Q Ôu ô 114 o zou o u A caracterização psicológica de Luís da Silva é igualmente mais complexa levando ao extremo como disse certas cons tantes dos personagens anteriores ele é por excelência o sel vagem o bicho escondido na pele dum burguês medíocre Quando a clarividência e o senso de análise em relação a nós e aos outros atingem o máximo dáse na personalidade uma espécie de desdobramento Passam a colidir no mes mo indivíduo um ser social ligado à necessidade de ajustar se a certas normas convencionais para sobreviver e um ser profundo revoltado contra elas inadaptado vendo a marca da contingência e da fragilidade em tudo e em si mesmo Daí a incapacidade de viver normalmente e o nascimento do senso de culpa ou autonegação Tudo provém da circunstância de eu não ter estima por mim mas quem se conhece pode lá estimarse ainda que seja um pouco Este conceito terrível é enunciado pelo narrador daMê 1órias escritas num subteaneÓàe Dostoievski Juja i cação ajuda a conhecer o protagonista de Angústia Ambos são homens acuados tímidos vaidosos hipercríticos fas cinados pela vida e incapazes de vivêIa desenvolvendo um modo de ser de animal perseguido Como tudo lhes parece voltado contra eles e tudo neles parece insatisfatório mes quinho sentem um desejo profundo de aniquilamento abjeção catástrofe uma espécie de surda aspiração à ani Illalidade à inconsciência dos brutos que libertaria do mal de pensar e ao mesmo tempo levaria ao limite possível o selltimento de autoabjeção Ikclaro solenemente que tentei várias vezes tornarme um inseto Illas não fui considerado digno diz o mesmo personagem dostoievskiano O processo che 1 Hl fim no Gregório Samsa de Kafka que certa manhã llrda metamorfoseado numa sevandija enorme Luís da Silva não segue este rumo lógico mas vive cerca dll de animais que simbolizam a sua natureza conturbada llhrls ligadas a recordações infantis a impulsos de morte sexo oprimido ratos que povoam a sua casa roem os seus lIJJJulscritose se identificam em certos trechos aos movi IIWlIlosmais torpes nele e nos outros Em tudo sentimos rsrer um homem das profundezas parente do de Dostoie lIk i perseguido por um senso demasiado agudo dos subter IllllllSdo espírito mencionados nas Memórias do cárcere Avultando sempre na obra de Graciliano Ramos a pre paçao com a análise do Eu culmina pois em Angústia lide atinge simbolicamente a materialização do homem dillrerado isto é a duplicação a formação de uma alma xllrior que adquire realidade e projeta o desdobramento do 1 Sob certos aspectos Julião Tavares como observou Lau r1Austregésilo é uma espécie de duplo de Luís da Silva en 115 116 o zouo J carnando a metade triunfante que lhe falta é suscitado pelo vulto que o sentimento de frustração adquire na sua cons ciência É um ente de superfície ajustado ao cotidiano que Luísodeia e secreta mente inveja mas que vem agravar por contraste a sua desarticulação Por isso é necessário matá 10 esconjurar a projeção caricatural dos próprios desejos que o reflete como um espelho deformante Depois de len tamente amadurecido no espírito o assassínio surge como ato de reequilíbrio descrito magistralmente num dos passos mais belos da nossa prosa contemporânea onde convergem todas as constantes da obra devaneio deformação subjetiva associação de idéias trazendo o passado visão fragmentária e nebulosa da realidade presente Depois de seduzir e abandonar Marina Julião passa a no vas aventuras Uma noite o narrador vai esperálo à saída de uma delas no arrabalde A escuridão esbranquiçada feita pela neblina aumentava escu ridão pegajosa em que os postes espaçados abriam clareiras de luz escassa Caminhando atrás do rival Luísvai vendo a sua transfigura ção na noite deformado pelo próprio medo pelas recordações Julião Tavares flutuava para a cidade no ar denso e leitoso Es taria longe ou perto Aparecia vagamente nos pontos iluminados em seguida o nevoeiro engoliao e eu tinha a impressão de que de ia voar sumirse Um balão colorido em noite de São João hoiando no céu escuro Ainda não sabe o que vai fazer desvaria recolhese às Illllbranças e encontra no bolso a corda que lhe dera seu Ivo vagabundo A idéia das humilhações sofridas cresce nele sentimento da sua vida subalterna e esmagada pede uma olllpensação A recordação do manso assassino José Baía volta com insistência e ele com um salto e um gesto rápido sirangula o rival desprevenido li corda enlaçou o pescoço do homem e as minhas mãos aper ladas afastaramse Houve uma luta rápida um gorgolejar uns hraços a debaterse Exatamente o que eu havia imaginado O cor po de Julião Tavares ora tombava para a frente e ameaçava arras larme ora se inclinava para trás e queria cair em cima de mim A obsessão ia desaparecer Tive um deslumbramento O homen inho da repartição e do jornal não era eu Esta convicção afastou qualquer receio de perigo Uma alegria enorme encheume Pes soas que aparecessem ali seriam figurinhas insignificantes Tinha Ille enganado Em trinta e cinco anos haviamme convencido de que só me podia mexer pela vontade dos outros Os mergulhos que meu pai me dava no Poço da Pedra a palmatória do mestre Antônio Justino os berros do sargento a grosseria do chefe de revisão a impertinência macia do diretor tudo virou fumaça Ju 117 oz t S o Q Ôu Ô 118 o zouo lião Tavares estrebuchava Tanta empáfia tanta lorota tanto ad jetivo besta em discurso e estava ali amunhecado vencido pelo próprio peso esmorecendo escorregando para o chão coberto de folhas secas amortalhado na neblina Morto Julião Tavares esconjurado o duplo o narrador se reintegra no seu ser profundo e irremediável condenase em definitivo a permanecer com a frustração e o desespero Mas o que não podia era continuar a luta desigual com o outro que acabaria por expulsáIo da vida como a projeção de Go liadkin no romance de Dostoievski O duplo Esta passagem de um realismo nutrido pelo senso objetivo do mundo exterior para um realismo trágico que sobrepõe os problemas do Eu à própria integridade do mundo defor mandoo é característica de Graciliano Ramos e faz da sua obra uma caminhada sob certos aspectos inversa por exem plo à de um José Lins do Rego Isto se manifesta em vários aspectos da sua escrita como para citar um caso a técnica seletiva a composição por meio de fragmentos João Valério constrói os caetés um pouco humoristicamente com pedaços de conhecidos Paulo Ho nório explica que o seu método consiste em extrair o sumo dos acontecimentos e pôr fora o accessório como bagaço mais tarde em Vidas secas a visão se elabora por meio de uma justaposição de ângulos parciais enquanto Infância acompanhará a natureza episódica da memória infantil Mas em Angústia estes processos culminam dando uma vi S1O quebrada um mundo reconstituído com fragmentos de lembranças englobados arbitrariamente no devaneio gra as à percepção falha e incompleta Resulta uma realidade deformada nebulosa tremendamente subjetiva projetan do um Eu em crise permanente Luís da Silva guarda dos contecimentos certos pormenores neuroticamente fixados jlralmente os que permitem uma interpretação deprimente Illl brutal assim como guarda das cenas de rua pedaços des osidos e incompletos Quando caminha bate nos outros e nJOpercebe os obstáculos que lhe chegam à percepção em 1 rtes destacadas do todo um olho uma perna uma pe Ira As pessoas são vistas segundo a cor da sua própria alma tatuadas de maneira selvagem pelas letras brancas de um pclho de café esganadas pela imaginação bestializadas r suspeitas delirantes E para culminar este banho de in trlljeção o autor recorre aqui pela primeira vez na sua obra I lCrtos dissolventes das formas nítidas escuridão névoa sons percebidos através de um anteparo CÍrculo estreito em vlllta das lâmpadas Na narrativa idas e vindas desvios oleção de fragmentos Sentimos que a sua firmeza é devida em parte à experiên ia prévia do mundo objetivamente descrito A deformação k tonalidade expressionista a que chega em Angústia no li l11ileda sua pesquisa da personalidade tem como base um 1ll1hecimento seguro da realidade normalmente percebida 119 120 o t zouo v e das técnicas destinadas a exprimiIa Só quem havia or denado as confissões de João Valério e Paulo Honório seria capaz de desaçaimar o homem subterrâneo de Angústia com essa infinita capacidade de experimentar própria da literatura 5 A partir deste livro a sua investigação literária se bifurca O lastro de observação do mundo segundo a narrativa dire ta vai decantarse num alto nível de depuração em Vidas secas sem falar nos contos reunidos em Insônia accessórios na sua obra A preocupação com os problemas da análise interior se transfere para a autobiografia primeiro em tona lidade fictícia depois em depoimento direto Graciliano não se repetia tecnicamente para ele uma experiência literária efetuada era uma experiência humana superada o Aurélio Buarque de Holanda chamoume a atenção para a circunstância de representar cada uma das obras de Graciliano Ramos um tipo diferente de romance o Graciliano Ramos faz experimentos com a sua arte e como o mestre singular não precisa disso temos ai um indício certo de que está buscando a solução de um problema vital9 9 I Otto Maria Carpeaux VISÃODE GRACILIANO RAMOSOrigens efins Rio de Janeiro CEB 1943 po341 Daí a variedade da sua obra relativamente parca e o es gotamento de filões que o levou a passar da invenção ao tes tcmunho Vidas secas é o único dos seus romances escrito na tercei ra pessoa e isto não fossem outros motivos bastaria para Iguçar o nosso interesse É também o único inteiramente voltado para o drama social e geográfico da sua região que 1llIeencontra a expressão mais alta ía história de uma família de pobres vaqueiros que che gll11 a uma fazenda abandonada ali vivem servindo o dono llIsente durante um período de bonança entre os incidentes de todo dia e os problemas pessoais de cada um Sobrevém a scca esgotamse as possibilidades o pequeno grupo reto Illla peregrinação acossado pela miséria mas animado por lima esperança vaga e sempre renovada omo nos outros livros é perfeita a adequação da técnica literária à realidade expressa Fabiano sua mulher seus filhos rodam num âmbito exíguo sem saída nem variedade Daí a oIlstrução por fragmentos quadros quase destacados onde os Lllosse arranjam sem se integrarem uns com os outros aparen llmente sugerindo um mundo que não secompreende esecap Ia apenas por manifestações isoladas Os seus capítulos foram scritos e publicados inicialmente como episódios separados à IIJaIleirado que se daria também com Infância Ao reuniIos o autor não quis amaciar a sua articulação mostrando que a con pção geral obedecia de fato àquela visão tacteante do rústico 121 oz t S o Ôu Ô 122 o zouo v Em lugar de contentarse com o estudo do homem Gra ciliano Ramos o relaciona aqui intimamente ao da paisa gem estabelecendo entre ambos um vínculo poderoso que é a própria lei da vida naquela região Mas conserva sob a objetividade da terceira pessoa o filete da escavação inte rior Cada um desses desgraçados na atrofia da sua rustici dade se perscruta se apalpa tenta compreender ajustando o mundo à sua visão de homem de mulher de menino até de bicho pois a cachorra Baleia já famosa em nossa li teratura também tem os seus problemas e vale sutilmente como vínculo entre a inconsciência da natureza e a frouxa consciência das pessoas Publicado este livro Graciliano Ramos deixou quase por completo a ficção Nos quinze anos que lhe restavam para viver optou pelo material da memória evocando a infân cia redigindo as recordações da prisão que sofreu de 1936 a 1937 Embora tenham em comum o caráter autobiográfico são obras bastante diversas Infância como foi dito conserva a tonalidade ficcional e é composto segundo um revestimen to poético da realidade que despersonaliza dalgum modo o depoimento e o mergulha na fluidez da evocação Um dos seus aspectos mais belos é a progressiva descober ta do mundo das pessoas das coisas do bem e do mal da liberdade peada e da tirania da convenção às quais se choca ou se adapta a tenra haste da meninice Mergulhei numa comprida manhã de inverno O açude apoja do a roça verde amarela e vermelha os caminhos estreitos mu dados em riachos ficaramme na alma Depois veio a seca Árvo res pelaram se bichos morreram o sol cresceu bebeu as águas e ventos mornos espalharam na terra queimada uma poeira cin zenta Olhandome por dentro percebo com desgosto a segunda paisagem Devastação calcinação Nesta vida lenta sintome co agido entre duas situações contraditórias uma longa noite um dia imenso e enervante favorável à modorra Frio e calor trevas densas e claridades ofuscantes Iessa nebulosa a idade vai tirando os seres e a experiência do mundo Um mundo decepcionante confuso em que o IIHninonão entende bem as coisas O pobre mendigo Venta loll1bamanso e inofensivo é preso porque a mãe do nar 1ldorse assustou e seu pai não pode voltar atrás As noções Ilacscola parecem inúteis e vêm impostas A doutrina oficial smge no pedantismo de uma formiga faladeira e bempen Sill1te glosada pela solenidade do livro didático E a práti l1 da vida vai se articulando como um tacteio improfícuo Illortificante refletido no estilo de uma beleza admirável 1IlCenvolve as formas nítidas na névoa evocativa Memórias do cárcere a que o autor consagrou toda a fase Iil1alda vida e só veio à luz depois da sua morte é depoi Il1el1torelato que se esforça por ser direto e desataviado lestemunho sobre o mundo da prisão visto do ângulo da 123 8z jb oo Ô ô 124 o zou o c sua experiência pessoal Abandonadas as vias da criação fictícia Graciliano Ramos se concentra no documento mas guarda os traços fundamentais da sua arte narrativa e da sua visão do mundo O livro é desigual A longa elaboração foi possivelmente entrecortada de escrúpulos vincada pelo esforço de objetividade e imparcialidade em conflito com a ânsia subjetiva de confissão ressecando nalguns pontos e sob certos aspectos a sua veia artística O diálogo antes tão perfeito entre os personagens fictícios é insatisfatório por vezes constrangido entre os personagens reais e às ve zes parece faltar discernimento para manipular episódios e cenas Finalmente a sua estética de poupança foi talvez um pouco longe sacrificando não raro por exemplo a fluência e o equilíbrio na caça aos relativos numerais possessivos e determinativos juntas perigosas que podem emperrar e empastar as frases mas que são doutro lado recursos de clareza e naturalidade Permanece todavia intacta a visão do conjunto a capaci dade tão dele de criar uma atmosfera que marca e dá sentido específico aos atos e sentimentos das pessoas fazendo dos seus livros universos poderosamente diferenciados onde mergulhamos com fascinado abandono Permanecem igualmente os trechos de alta qualidade lite rária E aqui mais do que em qualquer outro livro predomina o esforço constante para exprimir uma verdade essencial ma nifestar o real com um máximo de expressividade que corres ponda simultaneamente à visão justa Tratandose do relato de acontecimentos sem transposição fictícia esta qualidade aIcança o apogeu e chega a um significado de eminência mo ral como se pode ver pelo esforço registrado no capítulo ini cial do livro onde a verdade aparece despida de qualquer de magogia preconceito ou autovalorização Isto num homem de temperamento forte vivendo de sentimentos e paixões adepto de uma ideologia política absorvente não raro defor madora da realidade na dura coerência da sua tática Em relação ao sistema formado pelas suas obras Memórias tio cárcere constitui um outro tipo de experiência favorável sondagem do homem Foi como se revistas certas possibi Iidades de experimentar ficticiamente Graciliano houvesse obtido a possibilidade de experimentar de fato à custa da in tegridade física e espiritual dele e dos outros A prisão atirou I I nessa franja de inferno que cerca a nossa vida de homens in llgrados numa rotina socialmente aceita franja que em geral SI conhecemos por lampejos e da qual nos afastamos pro li rando ignoráIa a fim de pacificar a nossa parcela de culpa lIe é permanente inferno de outros dos seres condenados à lllomia moral ao crime à prostituição à fome e dos que delegamos para contêlos para se contaminarem na mesma hama que os devora e de que tentamos nos preservar Parcela desse halo negativo a prisão preocupa e fascina a liltratura moderna dsde os mestres do romance no sécu lo passado Atenuada em Dickens terrível em Victor Hugo 125 oz o Ô ô 126 o zou j e Balzac monstruosa em Dostoievski Para o romancista é uma espécie de laboratório donde surgem as soluções mais inesperadas e contraditórias Se de um lado piora as relações humanas ela as refaz ao seu modo e neste processo fazendo descer ao máximo a humanidade do homem pode extrair do báratro novas leis de pureza e lealdade É como se hou vesse em nós um joãoteimoso que precisa a qualquer preço e em meio à degradação mais profunda estabelecer algumas leis de conduta para poder através delas afirmar aspirações de limpeza Nessa escola de humanidade arrisquemos a locução ba nal ingressou Graciliano Ramos para certas experiências de aviltamento que vão desde o parasitismo dos percevejos até a dissolução da integridade moral por efeito do medo do desespero do envenenamento das relações passando pela promiscuidade nos porões de navio salas comuns carros de presos sem falar na tortura física e em formas repulsivas de perversão que presenciou ou pressentiu O fato de ter consagrado os últimos anos da vida a relatar uma experiência dessas prendese evidentemente ao desejo de testemunhar e é conseqüência lógica da marcha da sua arte cada vez mais atraída pelo pólo da confissão Mas é necessário juntar uma terceira componente para avaliar o significado pleno deste esforço e sobretudo a sua integra ção numa certa ordem de pesquisa profunda do homem que o presente ensaio procura focalizar Ele aparece como I I ti testemunho sobre uma realidade que complementou a vi são do mundo aprofundada desde a intuição dos caetés re cônditos e culminada em Angústia É a conseqüência duma concepção de homem encurralado animalizado agora pelo universo concentracionário que se abateu tragicamente so bre o nosso tempo não como exceção fortuita segundo pensaria o liberalismo do tempo em que abrir escolas dava a esperança de fechar prisões mas como dimensão própria do século dos totalitarismos Acompanhando a intuição psico lúgica os acontecimentos fizeram Graciliano Ramos passar do mundo como prisão à prisão enquanto mundo Mas é curioso ao passo que fora das grades no espaço Iberto a vida se amesquinhava e aparecia refractada na fic ao como teia de capitulações e desajustes sem saída aqui 110 exíguo universo em que o amontoam como bicho o iJomem preso pode se humanizar estranhamente Aumen ta a capacidade de compreender e perdoar da atrofia dos pd Iíesconvencionais podem surgir outros mais lídimos dllllllase o genuíno do falso e dos brutos esmagados che 11 a fi Itrar por vezes uma límpida componente humana A IIl1iênciado pior permite assim discernir o melhor e 1IIldoxalmente o sujo viveiro do cárcere propicia na obra dsse pessimista lampejos de confiança na vida queé santa Iesa r de todas as quedas 127 o Z i c C J Ô 128 o zouo u como diz o verso de Manuel Bandeira e como teria sentido porventura Graciliano Ramos todas as vezes em que não apenas analisoua mas aceitou a íntegra impureza da sua força de luz e treva NO APARECIMENTO DE CAETÉS Quando Caetés foi publicado havia em Maceió um grupo intelectual que funcionou como público res trito de alta qualidade cujo papel foi não apenas receber o livro mas manifestar o sêu juízo sobre ele Eram não con tando Jorge de Lima que acabava de mudarse para o Rio Graciliano Ramos José Lins do Rego RacheI de Queirós Aurélio Buarque de Holanda Valdemar Cavalcanti Alberto Passos Guimarães Raul Lima e diversos outros sem esque cer o artista Tomás Santa Rosa que foi também poeta Não sei se este conjunto de autores já foi estudado de ma neira sistemática Se não foi deveria ser porque representa um fato importante de sociabilidade literária considerada como estímulo à produção e à formação de juízos críticos o que significa que pode ter influído na própria natureza do discurso que se elaborava ou se projetava a partir de Maceió 129 SCUWIDT catf4frJ romuucf Gacil iano Ramos o meu intuito é mostrar como esse grupo restrito e alta mente qualificado leu Caetés e comunicou a sua leitura ao país por intermédio do Rio de Janeiro que era então a nossa metrópole cultural artística e literária onde se aferiam as reputações Para este fim tomarei apenas três exemplos que me parecem significativos a leitura gráfica de Santa Rosa e as leituras críticas de Valdemar Cavalcanti e Aurélio Buarque de Holanda Comecemos pelo corpo físico do livro pelo aspecto da edi ção original que os da minha idade leram quando ele apa receu faz meio século Na capa de Santa Rosa por baixo das letras do título o desenho onde predomina uma tonalidade ocre traduz visualmente os três pontos de apoio da narrativa João Valéria escrevendo nocanto inferior esquerdo obsedado pela representação dos índios caetés seu tema literário e de Luísa seu tema vital Neste espaço dividido em dois níveis o artista registrou o movimento do romance no qual o narra dor João Valéria luta em vão para contar no nível da fantasia a história dos índios enquanto sem querer vai construindo 110 nível da realidade o relato do que era a sua experiência de vida O romance vivido engole o romance projetado e os índios ficam apenas como símbolo que o final do livro revela quando o narrador sente e nos faz sentir que eles estão den Iro de cada um porque são o limite selvagem de todos Pela maneira de tratar o espaço e as figuras o desenho de Santa Rosa abre portanto a possibilidade de uma leitura am 131 u o z E g oz 132 o zou o v bígua inclusive porque os caetés que pairam no nível superior sobre a figura de João Valério poderiam ser também a pro jeção desta componente selvagem da sua alma como Luísa à direita e no mesmo nível que ele seria a projeção do seu desejo de escrita antes de ser o alvo particular do seu afeto Assim podemos considerar este desenho como leitura na medda em que sugere não apenas o enredo mas as am bigüidades do texto vinculadas à ironia criadora de Graci liano Ramos ironia que está na estrutura e é um dos maiores encantos do livro Com efeito o narrador lamenta a própria incapacidade de escrever o romance sobre os índios e parece construir um vazio que é a ausência do discurso planeja do mas simultaneamente como sem querer vai escrevendo algo mais importante a história da sua experiência amorosa no quadro da pequena cidade O seu fracasso é portanto o seu triunfo o vácuo aparente é uma plenitude e nesta ambigüidade está a ironia que a capa sugere enquanto os caetés se esvaem no nível do irreal Luísa penetra surdamen te no espaço do narrador dando ao sonho uma carne cheia de realidade Com isto vemos que dentro do grupo de Maceió surgiu um artista que por meio do desenho exprimiu um modo de ler Caetés denotando o enredo e sugerindo a estrutura de ambigüidades Passemos agora à crítica literária focalizando uma nota de Valdemar Cavalcanti e um artigo de Aurélio Buarque de Holanda ambos publicados no Boletim de Ariel excelente revista mensal do Rio de Janeiro que entre 1931e 1938exer ceu notável atividade crítica e informativa Procurarei mostrar como esses então jovens críticos ala goanos souberam indicar desde logo em Caetés alguns traços que a crítica posterior desenvolveu e confirmou Em segundo plano desejo assinalar também o fato importante para a his tória literária de um autor vinculado a um grupo intelectual numa determinada cidade produzir um livro que o grupo é capaz de avaliar imediatamente nos devidos termos com preendendo o seu significado e distinguindo aspectos que se tornariam por assim dizer canônicos no desenvolvimento da crítica posterior A importância do que fizeram é fácil de pro var pois à medida que eu for analisando os dois artigos os leitores irão certamente dizendo consigo coisas como mas é óbvio isto é o que toda gente diz foi assim mesmo que eu sempre pensei A diferença é que naquele momento há cinqüenta anos os dois mencionados críticos disseram antes de qualquer outro coisas que todos nós passamos a repetir ou a encontrar por conta própria eles tiveram a capacidade de sentir imediatamente alguns traços fundamentais que se impuseram em seguida a todos como constitutivos do texto Para entender bem o que escreveram é preciso fazer dos seus artigos uma leitura de época isto é levar em conta as con cepções críticas predominantes e não exigir a presença de pontos de vista desenvolvidos mais tarde 133 u o Z 8 oz 134 o zou o 0 o escrito de Valdemar Cavalcanti intitulado O ROMANCE CAETÉS é uma nota curta de mais ou menos lauda e meia publicada no Boletim de Ariel ano III nO 3 dezembro de 1933provavelmente com o intuito de chamar a atenção dos leitores no momento da publicação do livro que aliás ele já tinha lido fazia três anos como declara e relera então com mais maturidade Naquele tempo os espíritos se orientavam em grande par te pelo aspecto documentário da ficção porque era grande o desejo de desmascarar e criticar as injustiças sociais e de conhecer a realidade oculta do Brasil Por isso o que hoje se tornou secundário ou mesmo derrogatório para muitos crí ticos era então marca de excelência e Valdemar Cavalcanti começa por reconhecêIa em Caetés mas com um matiz especial e muito justamente observado Sentese no Caetés a força íntima do documento humano ele é uma luminosa fotografia da multidão realizada por um que acre dita naquela realidade histórica dos acontecimentos tão dentro dos grandes romances de que Duhamel falou num recente ensaio Apesar da comparação com a fotografia não se trata para o crítico de documento puro e simples pois a tônica do trecho recai sobre o conceito de força íntima Valdemar Cavalcanti chama a atenção para o que está dentro da apa rência documentária e vem a ser o que denomina adiante mais especificadamente força de humanidade O realis mo de Graciliano Ramos é exato na sugestão da vida e dos fatos mas a sua capacidade de ser verdadeiro e convincente decorre da dimensão estética caracterizada como a rara condensação da escrita ou a densidade do descritivo Portanto tratase de uma fotografia extremamente seletiva e transfiguradora que se resolve na capacidade de representar os aspectos significativos que constituem a força íntima dos fatos isto é os aspectos que funcionam porque se torna ram material artisticamente estilizado Com efeito Valdemar Cavalcanti alude a seguir a um se gundo traço a segurança de sua fatura sugerindo que o efeito de realidade decorre desta não do ânimo fotográfico contido na imagem inicial Em Graciliano Ramos esta fatu ra se caracteriza pela simplicidade a disciplina e a secura da fala e a propósito o crítico produz uma boa fórmula Escritor mais próximo da aridez que da fartura mais amigo da pobreza que da riqueza verbal Desta maneira identifica um dos traços mais constante mente lembrados pelos críticos posteriores que ele associa com grande penetração ao tema da aridez fundamental para a crítica contemporânea na medida em que exprime o limite onde a palavra se destrói sendo ao mesmo tempo o desafio que ela procura enfrentar instaurandose como presença 135 u 10o s 8 o Z 136 o zou o v A esterilidade como acicate e como perigo é tema obsessivo em muitas reflexões modernas sobre a natureza do discurso literário e evocada a respeito de Graciliano Ramos equivale a um parâmetro para analisar a sua tendência angustiada para o silêncio Prosseguindo Valdemar Cavalcanti desdobra o conceito em duas imagens contrastantes a sua magrém de ossos de fora oposta à verificação de que banha não é sinal de saúde Feita a identificação do escritor com uma parcimônia que parece espelhar a do texto analisado Valdemar Cavalcanti passa a uma verificação que se tornou lugarcomum dizen do que Eça deixou nele marcas profundas de muitas qua lidades e alguns defeitos mas sem interferir na expressão pessoal do narrador pois sua escrita não é resto de ban quete de Eça de Queirós é cozinha especial é comida de primeira mesa Há pouco vimos o crítico falar em luminosa fotografia de multidão Esta última palavra é imprópria pois talvez qui sesse aludir a grupo ou sociedade com referência ao pa norama social da cidade pequena magistralmente descrito no romance onde multidão mesmo só aparece de raspão nas alusões a festas populares e procissões Mais longe diz que a primeira leitura feita em 1930 lhe dera a impressão de que o livro era uma caricatura mas especifica carica tura de massa enquanto a leitura de 1933lhe mostrou que a impressão fora precipitada pois não há deformação cari I1 III I catural e sim alguma coisa de grande de real de densa mente humano E a nota termina com senso de simetria ao retomar a afirmação do início o que nos impressiona no romance de Graciliano Ramos é a sua força de humanidade Na verdade a impressão de 1930 também era válida pois há em Caetés uma estilização caricatural de grande eficácia que tende a arrebanhar os figurantes num grupo movimen tado com habilidade embora como ressalta o crítico depois da leitura de 1933cada personagem tenha uma força indivi dual que o destaca mesmo quando humanamente medíocre ou dissolvido na coletividade No número 5 do mesmo volume em fevereiro de 1934 Aurélio Buarque de Holanda publicou um artigo mais longo e ambicioso cuja diretriz metodológica bastante definida se baseia num tipo de reflexão antitética por meio da qual examina o verso e o reverso das características do livro Dei xando de lado a mera apreciação conclusiva estabelece um jogo de contrários que enriquece o seu ponto de vista mos trando a acuidade que a seguir faria dele um mestre da aná lise estilística como se verificaria por exemplo nos estudos de seu livro Território lírico O primeiro traço que assinala é a concisão a cujo lado positivo se opõe um lado negativo expresso na falta de entu 137 u 10o z s S oz 138 o t Zou o lf siasmo na falta de vibração que arrasta o leitor para dentro da obra Daí uma primeira imagem crítica interessante Escreve quase como quem passa telegrama pagando caro por cada palavra Com severidade que deriva da sua escolha metodológica Aurélià Buarque de Holanda manifesta preferência pelas es critas mais redondas e abundantes e assinala que Graciliano Ramos compreendendo que a reta é a menor distância entre dois pontos raramente deixa levarse pela sedução das curvas não querendo ver que na arte o ideal não é procurar os caminhos mais curtos mas sim os caminhos mais belos Em contraposição prefere um estilo de linhas mistas isto é que combine retas e curvas ou seja fique a meio caminho da secura e do derramamento Outra qualidade segundo ele é a maestria técnica com que sabe construir o romance e devido à qual tudo em Caetés é bem calculado Mas fiel à sua posição crítica lembra que daí decorre também certa frieza e monotonia Na firmeza de mão do narrador ele vê por vezes sinais do que chama o tédio do perfeito e acha que para ser um grande romance faltam a Caetés certos admiráveis defeitos É curioso que o crítico parece meio incomodado pela segurança parcimoniosa do livro manifestando em conseqüência certa nostalgia da irre gularidade seivosa de tantos outros escritores nossos A seguir sublinha a capacidade de Graciliano Ramos criar tipos humanos manifestada entre outras coisas por um excelente diálogo E ainda aí procura o aspecto negativo achando que abusa deste recurso e deixa os personagens fa larem demais enquanto ele próprio fala de menos Abor dando adiante outra oposição lembra que a secura e apa rente frieza do autor em face da narrativa e dos personagens são contrabalança das positivamente pela emoção que se des prende de vários dentre eles Uma última oposição é verificada pelo crítico a propósito do predomínio constante da inteligência sobre a sensibilida de que lhe parece redundar em falta de alegria e de expan sividade além de levar o autor a se situar muito acima dos personagens mas isto é compensado por vários momentos em que a sensibilidade avulta e faz o texto vibrar A partir daí Aurélio Buarque de Holanda constata em Ca etés uma opção franca pelos simples e ignorantes a que cor responde a rejeição dos sabidos os cultos salvo no tocante a Luísa que embora requintada é favorecida pela visão do autor enquanto o narradorprotagonista João Valério não passa de um medíocre sem relevo tomado por duas obses sões os índios sobre os quais quer escrever um romance e Luísa que desperta nele uma paixão violenta mas sem gran 139 U o z 8 o Z 140 o zou o Cv deza A essa altura sentimos como a visão implacável de Graciliano Ramos desnorteava um pouco os seus primeiros leitores que tergiversavam ante a força com que desvendava neste livro a banalidade trágica das vidas medianas O artigo termina por aproximações literárias já iniciadas na nota de Valdemar Cavalcanti Assim registra e especifica a presença de Eça de Queirós mostrando concretamente a ocorrência de pelo menos um torneio estilístico tomado de empréstimo e acrescenta a de Machado de Assis à qual cre dita dois traços a secura do estilo e o tratamento da nature za Com argúcia e boas imagens críticas diz que em Caetés a natureza se encontra amarrada de corda não obstante ser Graciliano Ramos um paisagista seguro pois no seu texto a paisagem entra como coisa necessária vinculada funcionalmente à ação Além do motivo meto dológico já mencionado isto é o jogo esclarecedor das oposições a severidade do artigo deve ser devida também a um intuito ético aliás quase declarado o combate ao elogio fácil e enfático dispensado pela crítica de maneira nem sempre discriminada o que oblitera a esca la de valores Talvez Aurélio Buarque de Holanda se esfor çasse com integridade para não transformar em panelinha de elogio mútuo o grupo a que todos pertenciam daí querer mostrar o lado negativo mas não derrogatório das quali dades que reconhece Por isso prefere inclusive dizer que o livro é bom mas não um grande romance como quem não quer baratear o juízo Mas ainda há outro motivo possível que surge nas linhas finais e este é de cunho estratégico o próximo aparecimento de um romance muito mais forte de Graciliano Ramos São Bernardo que ele anuncia abrindo então as comportas do entusiasmo Os defeitos apontados em Caetés insignificantes na sua maio ria não chegam a obscurecer antes põem em destaque o que o romance tem de realmente belo Com ele o sr Graciliano Ramos pode sem favor formar na fileira dos melhores romancistas do Brasil E dentro de poucos meses anuncioo com o maior pra zer aos leitores do Boletim a publicação de São Bernardo que já conheço revelará ao país um dos seus grandes dos seus maiores romancistas de todos os tempos À luz destas linhas finais o artigo revela a sua dimensão real pois é como se o crítico dissesse este é muito bom sem sombra de dúvida mas tem defeitos e não alcança a grande za no entanto o romancista é grande como se verá em São Bernardo este sim uma obra de absoluto primeiro plano onde os traços estudados no artigo aparecerão sob o seu as pecto plenamente positivo livre das amarras de uma estréia E isto constitui uma implícita oposição metodológica final que de certo modo sobrevoa as outras e anima o artigo a oposição que o crítico estabelece para contrastáIos entre os dois primeiros romances de Graciliano Ramos 141 E CU Qo E Z 8 U CoZ Numa observação fundamental registrada por Otto Maria Carpeaux em Origens efins 1943 vimos num ensaio anterior que paraAurélio Buarque de Holanda 142 o g zou o u J Assim os dois jovens críticos de Maceió ofereciam ao Bra CINQÜENTA ANOS DE VIDAS SECAS sil leituras reveladoras e quase sempre corretas de Caetés I leituras cujas qualidades fui assinalando à medida que as expunha A favor deles é preciso ainda notar que souberam caracterizar Graciliano Ramos com base apenas no seu pri meiro livro que lhes bastou para perceber não só a força rara do narrador mas muitas das suas características que seriam desevolvidas e confirmadas nos livros seguintes Aurélio Buarque de Holanda manifesta conhecimento também do inédito São Bernardo e antes de qualquer manifestação críti ca de terceiro avaliou com o devido calor a sua grandeza que deve ter sido o primeiro a proclamar Portanto louvemos os dois moços que mais tarde se projetariam como autoridades reconhecidas sobre o país e já naquela altura demonstraram a capacidade de identificar um supremo narrador cada uma das obras de Graciliano Ramos é um tipo diferente de romance Esta característica o separa de outros romancistas do seu tempo sobretudo os nordestinos a cujo grupo pertence De fato é notório que por exemplo a parte mais impor tante da obra de José Lins do Rego consiste na retomada dos mesmos temas no mesmo ambiente e que há muito disso na de Jorge Amado Mas Graciliano queimava meticulosa mente cada etapa no sentido quase próprio de quem destrói a forma para recomeçar adiante Tanto assim que depois de 143 144 o zou ou dizer o que queria em quatro romances que são outras tan tas experiências sucessivas deixou o gênero de lado e passou para a autobiografia Esse medo de encher lingüiça é um dos motivos da sua eminência de escritor que só dizia o essencial e quanto ao resto preferia o silêncio O silêncio devia ser para ele uma espécie de obsessão tanto assim que quando corrigia ou re tocava os seus textos nunca aumentava só cortava cortava sempre numa espécie de fascinação abissal pelo nada o nada do qual extraíra a sua matéria isto é as palavras que inventam as coisas e ao qual parecia querer voltar nessa cor reçãodestruição de quem nunca estava satisfeito Seria ca paz de eliminar páginas inteiras eliminar os seus romances eliminar o próprio mundo diz Carpeaux Entre o nada primordial anterior ao texto e o risco de acabar em nada devido à insatisfação posterior se equilibra a sua obra essen cial uma das poucas em nossa literatura que parece melhor com a passagem do tempo porque mais válida à medida que a lemos de novo É um clássico diz Carpeaux com razão pois de fato Graciliano Ramos é o grande clássico da nossa narrativa contemporânea cheia de neoromânticos e neo barrocos Olhando no conjunto os seus quatro romances sentimos que se cada um deles representa uma experiência nova Vi das secas talvez seja o mais diferente É o único escrito na terceira pessoa e o único a não ser organizado em torno de um protagonista absorvente como João Valério em Caetés Paulo Honório em São Bernardo Luís da Silva em Angústia É também o único cuja composição não é contínua mas fei ta de pedaços que poderiam ser lidos isoladamente Muitos deles foram publicados antes como peças autônomas e tal vez a idéia inicial não tenha sido a de um romance No en tanto é perfeita a unidade do todo como a dO amanuense Belmiro de Ciro dos Anjos que surgiu a partir de crônicas publicadas em jornal Quando Vidas secas apareceu há cinqüenta anos nin guém supunha estar lendo o último romance do autor já então considerado um mestre supremo sem dúvida alguma Mas muitos refletiram sobre as originalidades do livro Lú cia Miguel Pereira por exemplo perguntava numa resenha do Boletim de Ariel em maio de 1938 Será um romance É antes uma série de quadros de gravuras em madeira talhadas com precisão e firmeza Esta imagem é adequada à perspectiva da ensaísta que gra ças a ela nega o caráter fotográfico isto é de documentário realista então na moda mostrando a força de Graciliano ao construir um discurso poderoso a partir de personagens quase incapazes de falar devido à rusticidade extrema para os quais o narrador elabora uma linguagem virtual a par tir do silêncio Como diz Lúcia tratase de romance mudo 145 u âz fizo Cfz Ü 146 o zou o u como um filme de Carlitos Esta nova imagem aprofunda a visão crítica sobre o livro assinalando a força criadora de um estilo parcimonioso que parece estar no limite da ex pressão possível em contraste com a caudalosa falação de tantos romances daquela hora Do mesmo modo pouco an tes em Tempos modernos Chaplin tentara manter a força da imagem silenciosa em meio à orgia de sonoridade do cinema falado Na mesma nota Lúcia observa com razão que Gracilia no Ramos conseguiu em Vidas secas ressaltar a humanidade dos que estão nos níveis sociais e culturais mais humildes mostrando a condição humana intangível e presente na criatura mais embru tecida Saber descobrir essa riqueza escondida pôr a nu esse filão é afinal a grande tarefa do romancista Dostoievski não fez outra coisa Mauriac o tenta em nossos dias Realizandoa Graciliano deu voz aos que não sabem ana lisar os próprios sentimentos e mostrou ao fazer isso que ao mesmo tempo se impõe uma limitação e põe à prova a sua técnica Para Lúcia de fato serlheia infinitamente mais fácil descobrir a complexidade em criaturas proustianas do que nos meninos de Sinhá Vitória a que nem nome dá Por isso o livro não se enquadrava nas categorias em moda no tempo Vidas secas não deve ser julgado como romance nordestino ou romance proletário expressôes que não têm sentido mas como um romance onde palpita a vida a vida que é a mesma em todas as classes e todos os climas Nesta nota curta de uma ensaísta de excepcional talento estão presentes alguns elementos essenciais para compreen der Vidas secas o problema da classificação de uma narrati va que o autor qualificou de romance apesar de ser muito breve equivalendo talvez a cem páginas datilografadas a trinta linhas a sua estrutura descontínua à força com que transcende o realismo descritivo para desvendar o universo mental de criaturas cujo silêncio ou inabilidade verbal leva o narrado r a inventar para elas um expressivo universo inte rior por meio do discurso indireto a superação do regiona lismo e da literatura empenhada devida a uma capacidade de generalização que engloba e transcende estas dimensões e explorandoas mais fundo do que os seus contemporâne os consegue exprimir a vida em potencial Deste modo Lúcia Miguel Pereira destacou os traços que ainda hoje fa zem pensar criticamente o livro indicandoos com a discre ta segurança que sabia cultivar tão bem 147 u Bo o 7 a Ü 148 o zouo u Para continuar falando de resenhas esquecidas lembro a de Almir de Andrade no primeiro número da Revista do Brasil 3 fase em julho de 1938 É menos penetrante do que a anterior mas diz duas coisas de interesse Primeira Enquanto José Lins do Rego traduz os problemas sociais do Nordeste em grandes quadros em visões de conjunto que surpre endem Graciliano Ramos nos descreve esses problemas através dos efeitos que produzem nos pequenos ambientes e na própria intimidade do homem Em Vidas secas não vemos a sociedade do alto nos seus planos e nas suas linhas de movimento coletivo mas a surpreendemos na repercussão profunda dos seus problemas através de vidas humanas que vão passando a braços com a misé ria perseguidas por opressões e sofrimentos Num trecho como este estamos no universo mais comum das verificações críticas daquele momento quando ainda despertava grande interesse a força de desvendamento social que o romance ia operando no Brasil num processo que hoje pode parecer secundário porque já desempenhou o papel que devia desempenhar mas que então equivalia a uma revelação transfigurada do país pondo as suas partes em contacto vivo através da narrativa ficcional Almir de Andrade distingue no caso as abordagens mais abrangentes daquelas que esqua drinham porque a sua grande arma é o escalpelo A segunda observação interessante dessa resenha é que Vi das secas se distingue de Angústia porque não tem a sua im portância nem estrutura orgânica mas apesar disso não deixa de ter o seu valor E aqui temos um exemplo da crítica mais conservadora inclusive porque ligada às formas habi tuais de análise psicológica na ficção Almir de Andrade põe visivelmente Angústia muito acima de Vidas secas porque tem estrutura orgânica ou seja no caso contínua e flui da E também porque procede a uma introspecção analítica mais canônica Já Lúcia Miguel Pereira percebeu melhor a legitimidade e a força inovadora da forma descontínua per cebendo também que Graciliano Ramos fazia alguma coisa mais original e mais difícil ao mostrar paradoxalmente a riqueza interior das vidas culturalmente pobres Nesse sentido lembro que a presença da cachorra Baleia institui um parâmetro novo e quebra a hierarquia mental digamos assim pois permite ao narrador inventar a interio ridade do animal próxima à da criança rústica próxima por sua vez à do adulto esmagado e sem horizonte O resultado é uma criação em sentido pleno como se o narrado r fosse não um intérprete mimético mas alguém que institui a humani dade de seres que a sociedade põe à margem empurrando os para as fronteiras da animal idade Aqui a animalidade reage e penetra pelo universo reservado em geral ao adulto civilizado Sem querer dizer que uma coisa é igual à outra poderseia considerar a invenção de Baleia tão importante 149 u e Ô r 5 ri 150 o zou o u ao seu modo quanto o monólogo interior do retardado men tal Benjy em Sound and Fury de Faulkner São tentativas de alargar o território literário e rever a humanidade dos per sonagens Para chegar lá Graciliano Ramos usou um discurso espe cial que não é monólogo interior e não é também intromis são narrativa por meio de um discurso indireto simples Ele trabalhou como uma espécie de procurador do personagem que está legalmente presente mas ao mesmo tempo ausente O narrado r não quer identificarse ao personagem e por isso há na sua voz uma certa objetividade de relator Mas quer fazer as vezes do personagem de modo que sem perder a própria identidade sugere a dele Resulta uma realidade honesta sem subterfúgios nem ilusionismo mas que fun ciona como realidade possível Inclusive porque Graciliano Ramos aqui e no resto da sua obra é o autor menos kitsch menos sentimental da ficção brasileira contemporânea que mesmo em praticantes de alto nível atola com freqüência nes ses brejos desde os condenados de Oswald de Andrade até os proletários de Jorge Amado com estações de passagem em textos tão eminentes quanto os de Guimarães Rosa Mas voltando à forma descontínua cuja legitimidade Lú cia Miguel Pereira aceitou é preciso observar que Graciliano Ramos a utilizou de maneira muito pessoal diferente por exemplo da modalidade que Oswald de Andrade inaugurou no plano da composição com as Memórias sentimentais de João Miramar Em Oswald neste e em outros textos a des continuidade da composição estava ligada à técnica do frag mento e tinha como correspondente certa sintaxe elíptica no plano do discurso vejase o estudo fundamental de Haroldo de Campos MIRAMAR NA MIRA Em Graciliano Ramos tra tase de coisa completamente diversa Vidas secas é composto por segmentos relativamente ex tensos autônomos mas completos de narrativa cheia e con tínua baseada num discurso que nada tem de fragmentário É a justaposição dos segmentos não fragmentos que esta belece a descontinuidade porque não há entre eles os famo sos elementos de ligação cavalos de batalha da composição tradicional Foi essa justaposição que me levou no passado a falar de composição em rosácea para sugerir os episódios nitidamente separados com o último tocando o primeiro Este encontro do fim com o começo como já foi observado forma um anel de ferro em cujo círculo sem saída se fecha a vida esmagada da pobre família de retirantesagregados retirantes mostrando que a poderosa visão social de Graci liano Ramos neste livro não depende como viu desde logo Lúcia Miguel Pereira do fato de ter ele feito romance regio nalista ou romance proletário Mas do fato de ter sabido criar em todos os níveis desde o pormenor do discurso até o desenho geral da composição os modos literários de mos trar a visão dramática de um mundo opressivo 151 U ô Jaz Li I L ªBD I FFLCH I USP 1 i i Bib Florestan Fernandes Tombo 321577j iAqufãoRPOSiÇ I Il L Proc NUSP 6469911 i I i NF R 3900 22122009 L J NOTA BIBLIOGRÁFICA O ensaio maior que dá nome a este livro Ficção e confis são apareceu no ano de 1955 em Caetés como introdução à edição José Olympio das obras completas da Graciliano Ramos tendo sido feita uma separata de 1000 exemplares que circulou como volume independente Os bichos do subterrâneo é a introdução ao volume Gra ciliano Ramos da coleção Nossos clássicos da Editora Agir 1961 Em 1964 foi incluído no livro Tese e antitese No aparecimento de Caétes se baseia numa palestra feita em Maceió no ano de 1983 e incluída no pequeno volume coletivo Cinqüenta anos do romance Caetés publicado em 1984pela Secretaria de Cultura de Alagoas Cinqüenta anos de Vidas secas saiu no suplemento Cultura do Jornal O Estado de São Paulo em 1988 Em 1992 eles foram reunidos no volume Ficção e confissão Ensaios sobre Graciliano Ramos que a Editora 34 publicou e depois reeditou em 1999Reeditado agora pela Editora Ouro Sobre Azul é referido como terceira edição embora se pos sa considerar primeira quanto ao ensaio maior a separata de 1955Ficção e confissão Estudo sobre a obra de Graciliano Ramos 153 tI 00449 CIP BRASIL I CATALOGAÇAONA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS Rj C223f 3aedição Candido Antonio 1918 Ficção e confissão ensaios sobre Gradliano Ramos Antonio Candido 13a edição revista pelo autor I Rio de janeiro Ouro sobre Azul 2006 I 156 pág ISBN 85 88777 18 5 1 Ramos Graciliano 1892195312Literatura brasileira I Históriae Crítica r Titulo lI Título Ensaios sobre Graciliano Ramos IH Série 061586 CDD 869 93 CDU 821 1343 81 3 040506 080506 014410